CAPÍTULO 35


Blackthorne esperava no jardim. Agora usava o quimono marrom que Toranaga lhe dera, com espadas ao sash e uma pistola carregada, escondida também sob o sash. Através das apressadas explicações de Fujiko e subseqüentemente pelos criados, aprendera que tinha que receber Buntaro formalmente, porque o samurai era um importante general e hatamoto, e era o primeiro hóspede na sua casa. De modo que tomara um banho e trocara de roupa rapidamente e se dirigira ao local que fora preparado.

Vira brevemente Buntaro na véspera, quando ele chegou. Buntaro estivera ocupado com Toranaga e Yabu o resto do dia, junto com Mariko, e Blackthorne fora deixado sozinho para organizar às pressas a demonstração de ataque com Omi e Naga. O ataque fora satisfatório.

Mariko voltara para casa muito tarde. Contara-lhe rapidamente sobre a escapada de Buntaro, os dias que passara sendo caçado pelos homens de Ishido, esquivando-se, e finalmente atravessando as províncias hostis para atingir o Kwanto.

- Foi muito difícil, mas talvez não demais, Anjin-san. Meu marido é muito forte e muito corajoso.

- O que vai acontecer agora? A senhora vai partir?

- O Senhor Toranaga ordenou que tudo permaneça como estava. Nada deve ser mudado.

- A senhora mudou, Mariko. Perdeu uma centelha.

- Não. Isso é imaginação sua, Anjin-san. É apenas o meu alívio por ele estar vivo, quando eu estava certa de que ele morrera.

- Sim. Mas fez uma diferença, não fez?

- Claro. Agradeço a Deus por meu arpo não ter sido capturado, por ter vivido para obedecer ao Senhor Toranaga. O senhor me desculpará, Anjin-san, estou cansada agora. Sinto muito, estou muito, muito cansada.

- Há alguma coisa que eu possa fazer?

- O que deveria fazer, Anjin-san? Além de estar feliz por mim e por ele? Nada mudou, realmente. Nada terminou porque nada começou. Tudo está como estava. Meu marido está vivo.

Você não gostaria que ele estivesse morto? perguntou-se Blackthorne ali no jardim. Não.

Então por que a pistola escondida? Você está com sensação de culpa?

Não. Nada começou.

Não mesmo?

Não.

Você pensou que estava com ela. Não é o mesmo que ter estado de fato com ela?

Viu Mariko sair da casa e dirigir-se para o jardim. Parecia uma miniatura de porcelana seguindo meio passo atrás de Buntaro, cuja corpulência parecia ainda maior em comparação. Fujiko vinha com ela, assim como as criadas. Ele se curvou.

- Yokoso oide kudasareta, Buntaro-san. Bem-vindo à minha casa.

Todos se curvaram. Buntaro e Mariko se sentaram sobre as almofadas à sua frente, Fujiko atrás. Nigatsu e a criada, Koi, começaram a servir chá e saquê. Buntaro tomou saquê. Blackthorne fez o mesmo.

- Domo, Anjin-san. lkaga desu ka?

- li. Ikaga desu ka?

- li. Kowa jozuni shabereru yoni natta na. Ótimo. O senhor está começando a falar japonês muito bem.

Logo Blackthorne se perdeu na conversa, pois Buntaro engolia as palavras, falando rápida e descuidadamente.

- Desculpe, Mariko-san, não compreendi isso.

- Meu marido deseja agradecer-lhe por ter tentado salvá-lo. Com o remo. Lembra-se? Quando estávamos escapando de Osaka.

- Ah, so desu! Domo. Por favor, diga-lhe que ainda acho que devíamos ter voltado à praia. Havia tempo suficiente. A criada afogou-se desnecessariamente.

- Ele diz que foi karma.

- Foi uma morte desperdiçada - replicou Blackthorne, e lamentou a rudeza. Notou que ela não traduziu.

- Meu marido diz que a estratégia de ataque é muito boa, muito boa mesmo.

- Domo. Diga-lhe que estou contente por ele ter escapado ileso. E que seja ele quem vai comandar o regimento. E, naturalmente, que ele é bem-vindo se quiser ficar aqui.

- Domo, Anjin-san. Buntaro diz que o plano de assalto é muito bom. Mas quanto a ele, sempre carregará seu arco e espadas. Pode matar a uma distância muito maior, com grande precisão, e mais rápido do que um mosquete.

- Amanhã atiraremos juntos e veremos, se ele quiser.

- O senhor perderá, Anjin-san, sinto muito. Posso preveni-lo para não fazer isso? - disse ela.

Blackthorne viu os olhos de Buntaro esvoaçarem de Mariko para ele e voltar para ela.

- Obrigado, Mariko-san. Diga-lhe que eu gostaria de vê-lo atirar.

- Ele pergunta se o senhor sabe usar um arco.

- Sim, mas não como um arqueiro adequado. Os arcos estão completamente fora de uso entre nós. Exceto a besta. Fui treinado para o mar. Lá usamos apenas canhões, mosquetes, ou alfanjes. Algumas vezes usamos setas incendiárias, mas apenas contra as velas do inimigo, e bem de perto.

- Ele pergunta como são usadas, como são feitas, essas setas incendiárias. São diferentes das nossas, como as que foram usadas contra a galera, em Osaka?

Blackthorne começou a explicar e houve as fatigantes interrupções habituais e novas perguntas mais minuciosas. A esta altura estava acostumado à mente incrivelmente inquisitiva deles cor: relação a qualquer aspecto da guerra, mas achava exaustivo conversar por meio de um intérprete. Ainda que Mariko fosse excelente, o que ela realmente dizia raramente era exato. Uma longa réplica era sempre encurtada, alguma coisa do que era dito era, naturalmente, ligeiramente alterada, e ocorriam mal-entendidos. Então as explicações tinham que ser repetidas desnecessariamente.

Mas sem Mariko ele sabia que jamais poderia ter-se tornado tão valioso. É apenas o conhecimento que me mantém longe do abismo, lembrou-se ele. Mas isso não é problema, pois ainda há muito a contar e uma batalha a vencer. Uma autêntica batalha a vencer. Você estará seguro até lá. Você tem uma marinha para planejar. E depois, para casa. Ileso.

Viu as espadas de Buntaro, as espadas do guarda, sentiu as suas e o calor da pistola, e soube, verdadeiramente, que nunca estaria seguro naquela terra. Nem ele nem qualquer outra pessoa, nem mesmo Toranaga.

- Anjin-san, Buntaro-sama pergunta se, mandando-lhe alguns homens amanhã, o senhor poderia mostrar-lhes como fazer essas setas.

- Onde podemos conseguir alcatrão?

- Não sei. - Mariko interrogou-o sobre onde era geralmente encontrado, qual era a aparência, o cheiro, e possíveis alternativas. Depois falou a Buntaro longamente. Fujiko estivera silenciosa o tempo todo, os olhos e os ouvidos treinados, não perdendo nada. As criadas, bem comandadas por um leve movimento do seu leque em direção a um cálice vazio, constantemente enchiam de novo os frascos de saquê.

- Meu marido diz que discutirá isso com o Senhor Toranaga. Talvez exista alcatrão em algum lugar no Kwanto. Nunca ouvimos falar nisso antes. Se não for alcatrão, temos óleo de baleia, que talvez substitua. Ele pergunta se no seu país usam rojões de combate, como os chineses.

- Sim. Mas não são considerados de muito valor, exceto em cercos. Os turcos usaram-nos quando atacaram os cavaleiros de São João, em Malta. Os rojões são usados, na maior parte, para causar incêndios e pânico.

- Ele pede, por favor, que o senhor dê detalhes sobre essa batalha.

- Foi há quarenta anos, na maior... - Blackthorne parou, a mente disparando. Fora o assédio mais vital da Europa. Sessenta mil turcos islâmicos, a nata do Império Otomano, atacaram seiscentos cavaleiros, apoiados por uns poucos milhares de auxiliares malteses, encurralados no seu vasto castelo em St. Elmo, na minúscula ilha de Malta, no Mediterrâneo. Os cavaleiros haviam resistido com êxito aos seis meses de cerco e, inacreditavelmente, forçaram o inimigo a se retirar humilhado. Essa vitória salvara toda a costa mediterrânea, e 'assim a cristandade, de ser devastada pelas hordas infiéis.

Blackthorne repentinamente percebera que essa batalha lhe dava uma das chaves para o Castelo de Osaka: como atacá-lo, como acossá-lo, como atravessar os portões, e como conquistá-lo.

- Estava dizendo, senhor?

- Foi há quarenta anos, no maior mar intercontinental que temos na Europa, Mariko-san. O Mediterrâneo. Foi apenas um cerco, como qualquer outro, que não merece que se fale a respeito - mentiu ele. Esse conhecimento era inestimável, certamente não para ser cedido levianamente e não agora, em absoluto. Mariko explicara muitas vezes que o Castelo de Osaka se erguia inexoravelmente entre Toranaga e a vitória. Blackthorne estava certo de que a solução para Osaka poderia muito bem ser o seu passaporte para fora do império, com todas as riquezas de que ele poderia precisar na vida.

Notou que Mariko parecia perturbada.

- Senhora?

- Nada, senhor. - Começou a traduzir o que ele dissera. Mas ele sabia que ela sabia que ele estava ocultando alguma coisa. O cheiro do guisado distraiu-o.

- Fujiko-san!

- Hai, Anjin-san?

- Shokuji wa madaka? Kyaku wa... sazo kufuku de oro, neh? Quando é o jantar? Os convidados podem estar com fome.

- Ah, gomen nasai, hi ga kurete kara ni itashimasu.

Blackthorne viu-a apontar para o sol e entendeu que dissera:

"Depois do pôr-do-sol". Assentiu e grunhiu, o que passava no Japão por um polido "Obrigado, compreendi".

Mariko voltou-se novamente para Blackthorne.

- Meu marido gostaria que o senhor lhe contasse sobre uma batalha em que tenha estado.

- Estão todas no Manual de Guerra, Mariko-san.

- Ele diz que o leu com grande interesse, mas contém apenas breves detalhes. Nos próximos dias ele deseja aprender tudo sobre as suas batalhas. Uma agora, se lhe agradar.

- Estão todas no Manual de Guerra. Talvez amanhã, Mariko-san. - Ele queria tempo para examinar o seu deslumbrante novo pensamento sobre o Castelo de Osaka e aquela batalha, e estava cansado de conversar, cansado de ser interrogado, mas acima de tudo queria comer.

- Por favor, Anjin-san, o senhor contaria novamente, só uma vez, ao meu marido?

Ele ouviu a súplica cuidadosa sob o tom dela, e cedeu.

- Claro. De qual a senhora acha que ele gostaria?

- A batalha da Neerlândia. "Neerlândia", é assim que se pronuncia?

- Sim - disse ele.

Então ele começou a contar a história dessa batalha que era como quase todas as outras batalhas onde morriam homens, na maior parte das vezes por causa dos erros e da estupidez dos oficiais no comando.

- Meu marido diz que aqui não é assim, Anjin-san. Aqui os oficiais no comando têm que ser muito bons, ou morrem rapidamente.

- Naturalmente a minha crítica se aplicava apenas aos líderes ingleses.

- Buntaro-sama diz que lhe falará sobre as nossas guerras e os nossos líderes, particularmente do taicum, nos próximos dias. Uma troca justa pelas suas informações - disse ela, impassível.

- Domo. - Blackthorne curvou-se ligeiramente, sentindo os olhos de Buntaro cravados nele.

O que é que você realmente quer de mim, seu filho da puta?


O jantar foi uma calamidade. Para todos.

Mesmo antes de deixarem o jardim para irem comer na varanda, o dia já se tornara de mau agouro.

- Desculpe-me, Anjin-san, mas o que é aquilo? - apontou Mariko. - Ali. Meu marido pergunta o que é aquilo.

- Onde? Oh, lá! É um faisão - disse Blackthorne. - O Senhor Toranaga enviou-o para mim, junto com uma lebre. É o que teremos no jantar, em estilo inglês... pelo menos é o que eu terei, embora haja o suficiente para todos.

- Obrigada, mas... nós, meu marido e eu, não comemos carne. Mas por que o faisão está pendurado lá? Com este calor, não deveria ser descido e preparado?

- É assim que se prepara um faisão. A gente o pendura para amadurecer a carne.

- O quê? Assim? Desculpe-me, Anjin-san - disse ela, desconcertada -, sinto muito, mas vai apodrecer rapidamente. Ainda está com as penas e não foi ... limpo.

- A carne do faisão é seca, Mariko-san, por isso ele deve ser pendurado durante alguns dias, talvez umas duas semanas, dependendo do tempo. Depois é depenado, limpo e cozido.

- O senhor... o senhor o deixa ao ar? Para apodrecer? Como...

- Nan ja? - perguntou Buntaro impaciente.

Ela falou com ele, desculpando-se, ele ouviu incrédulo, depois se levantou, aproximou-se, examinou a ave e cutucou-a. Algumas moscas zumbiram, depois pousaram de novo. Hesitantemente Fujiko falou a Buntaro, que corou.

- Sua consorte disse que o senhor ordenou que ninguém além do senhor deveria tocá-lo - disse Mariko.

- Sim. Não se pendura caça aqui? Nem todos são budistas.

- Não, Anjin-san. Acho que não.

- Algumas pessoas acreditam que se deve pendurar um faisão pelas penas da cauda até que caia, mas isso é história de velhas - disse Blackthorne. - O jeito certo é pelo pescoço, assim os sumos ficam onde devem ficar. Algumas pessoas deixam-no pendurado até que se separe do pescoço, mas eu pessoalmente não gosto de carne decomposta assim. Costumávamos... - Parou pois ela adquirira uma leve tonalidade esverdeada.

- Nan desu ka, Mariko-san? - perguntou Fujiko rapidamente.

Mariko explicou. Todos riram nervosamente e Mariko levantou-se debilmente, dando tapinhas no brilho da testa.

- Desculpe, Anjin-san, quer me dar licença um instante...

A comida de vocês também é estranha, queria ele dizer. Que tal a de ontem, lula crua - mascar a carne branca, viscosa, quase sem gosto, com nada além de um pouco de molho de soja para ajudar a descer? Ou os tentáculos picados de polvo, novamente crus, com arroz frio e alga marinha? E a água-viva fresca com tofu - feijões fermentados - ensopado, amarelo-amarronzado, que parecia uma tigela de vômito de cão? Oh, sim, servido lindamente numa frágil e atraente tigela, mas sempre se parecendo com vômito! Sim, por Deus, é o bastante para deixar um homem doente!

Acabaram indo todos para a varanda e, depois das mesuras habituais e intermináveis, da conversa amena, do chá e do saquê, a comida começou a chegar. Pequenas bandejas de uma transparente sopa de peixe, arroz, peixe cru, como sempre. E depois o cozido dele.

Ele ergueu a tampa do caldeirão. O vapor subiu e os dourados glóbulos de gordura dançaram na superfície fumegante. A sopa-molho rica, de dar água na boca, estava densa com os sumos da carne e tenros nacos. Orgulhosamente ele ofereceu, mas todos menearam a cabeça e pediram-lhe que comesse.

- Domo - disse ele.

Era sinal de boas maneiras tomar a sopa diretamente das tigelinhas laqueadas e comer qualquer coisa sólida contida na sopa com os pauzinhos. Havia uma concha na bandeja. Quase incapaz de conter a fome, ele encheu a tigela e começou a comer. Então viu os olhos deles.

Observavam-no com uma fascinação nauseada que, em vão, tentavam ocultar. Seu apetite começou a se desvanecer. Tentou ignorá-los, mas não conseguiu, o estômago roncando. Dissimulando a própria irritação, pousou a tigela, recolocou a tampa e disse-lhes asperamente que não estava ao seu gosto. Ordenou a Nigatsu que levasse embora.

- Fujiko-san pergunta se deve ser jogado fora – disse Mariko esperançosa.

- Sim.

Fujiko e Buntaro descontraíram-se.

- Gostaria de um pouco mais de arroz? – perguntou Fujiko.

- Não, obrigado.

Mariko abanou o leque, sorriu encorajadoramente, e tornou a encher-lhe o cálice de saquê. Mas Blackthorne não se sentia mais calmo e resolveu que no futuro cozinharia nas colinas, isolado, comeria isolado, e caçaria abertamente.

Ao inferno com eles, pensou. Se Toranaga pode caçar, eu também posso. Quando é que vou vê-lo? Quanto tempo tenho que esperar?

- Sífilis na espera e sífilis em Toranaga! - disse alto em inglês, e sentiu-se melhor.

- O quê, Anjin-san? - perguntou Mariko em português.

- Nada - retrucou ele. - Só estava me perguntando quando verei o Senhor Toranaga.

- Ele não me disse. Muito em breve, imagino.

Buntaro sorvia o saquê e a sopa sonoramente, conforme o costume. Isso começou a aborrecer Blackthorne. Mariko falava animadamente com o marido, que grunhia, mal lhe prestando atenção. Ela não estava comendo, e Blackthorne ficou ainda mais aborrecido de que tanto ela quanto Fujiko estivessem quase bajulando Buntaro, e também que ele próprio tivesse que acolher aquele hóspede indesejado.

- Diga a Buntaro-sama que no meu país o anfitrião brinda ao convidado de honra. - Ergueu o cálice com um sorriso rígido.

- Longa vida e felicidade! - Bebeu.

Buntaro ouviu a explicação de Mariko. Assentiu, ergueu o cálice, sorriu por entre os dentes, e esvaziou-o.

- Saúde! - brindou Blackthorne de novo.

E de novo.

E de novo.

- Saúde!

Desta vez Buntaro não bebeu. Puxou o cálice cheio e fitou Blackthorne com seus olhos pequenos. Então chamou alguém lá fora. A shoji deslizou imediatamente. Seu guarda, sempre presente, curvou-se e estendeu-lhe o imenso arco e a aljava. Buntaro pegou-o e falou veemente e rapidamente a Blackthorne.

- Meu marido... meu marido diz que o senhor queria vê-lo atirar, Anjin-san. Ele acha que amanhã está longe demais. Agora é um bom momento. O portão da sua casa, Anjin-san. Ele pergunta que batente o senhor escolhe.

- Não compreendo - disse Blackthorne. O portão principal estava a uns quarenta passos de distância, em algum ponto do outro lado do jardim, mas agora completamente oculto pela shoji fechada à sua direita.

- O batente da esquerda ou o da direita? Por favor, escolha. - A polidez dela traía urgência.

Prevenido, ele olhou para Buntaro. O homem parecia à parte, esquecido deles, um boneco atarracado e feio, sentado e olhando a distância.

- Esquerda - disse ele, fascinado.

- Hidari! - disse ela.

Imediatamente Buntaro puxou uma seta da aljava e, ainda sentado, assestou o arco, levantou-o, retesou a corda ao nível dos olhos e soltou a flecha com uma fluidez selvagem, quase poética. A seta disparou na direção do rosto de Mariko, tocou-lhe um fio de cabelo de passagem, e desapareceu através da parede shoji. Outra seta foi atirada quase antes de a primeira ter sumido, depois outra, cada uma passando a uma polegada de Mariko. Ela permanecia calma e imóvel, ajoelhada como estivera o tempo todo.

Uma quarta flecha e depois a última. O silêncio encheu-se om o eco da corda do arco vibrando. Buntaro suspirou e voltou lentamente. Pôs o arco atravessado sobre os joelhos. Mariko e Fujiko sorriram, curvaram-se e cumprimentaram Buntaro, que assentiu e curvou-se ligeiramente. Olharam para Blackthorne. Ele sabia que o que testemunhara fora quase mágico. Todas as setas haviam passado pelo mesmo furo na shoji.

Buntaro estendeu o arco de volta ao guarda e pegou o minúsculo cálice. Contemplou-o um momento, depois ergueu-o para Blackthorne, esvaziou-o e falou rudemente, seu ego bestial de novo.

- Ele... meu marido pede, polidamente, por favor, vá e olhe.

Blackthorne pensou um momento, tentando acalmar o coração.

- Não há necessidade. Claro que ele atingiu o alvo.

- Ele diz que gostaria de que o senhor tivesse certeza.

- Eu tenho certeza.

- Por favor, Anjin-san. O senhor o honraria.

- Não preciso honrá-lo.

- Sim. Mas posso, por favor, juntar ao dele o meu pedido?

Novamente a súplica nos olhos dela.

- Como se diz: "Foi maravilhoso assistir a isso"?

Ela lhe disse. Ele disse as palavras e se curvou. Buntaro curvou-se perfunctoriamente em retribuição.

- Peça-lhe, por favor, que venha comigo ver as setas.

- Ele diz que gostaria que o senhor fosse sozinho. Ele não deseja ir, Anjin-san.

- Por quê?

- Se ele foi exato, Anjin-san, o senhor deve ver isso sozinho. Se não foi, deve ver isso sozinho também. Assim nem o senhor nem ele ficam embaraçados.

- E se ele tiver errado?

- Não errou. Mas pelo nosso costume a precisão, nestas circunstâncias impossíveis, não tem importância comparada à graça demonstrada pelo arqueiro, a nobreza do movimento, a força de atirar sentado, ou o desprendimento quanto a ter vencido ou perdido.

As setas estavam a uma polegada uma da outra, no meio do batente esquerdo. Blackthorne olhou para trás, para a casa, e viu, a quarenta e poucos passos, o furinho nítido na parede de papel que era uma centelha de luz na escuridão.

É quase impossível ter tanta pontaria, pensou. Do lugar onde Buntaro estava sentado, não podia ver nem o jardim nem o portão, e a noite estava escura aqui fora. Blackthorne voltou-se para o batente e ergueu um pouco mais a lanterna. Com uma mão tentou arrancar uma seta. A cabeça de aço estava enterrada fundo demais. Ele poderia ter quebrado o cabo de madeira, mas não quis fazer isso.

O guarda observava.

Blackthorne hesitou. O guarda aproximou-se para ajudar, mas ele meneou a cabeça.

- Iyé, domo - e voltou para dentro.

- Mariko-san, por favor, diga à minha consorte que eu gostaria que as setas ficassem no batente para sempre. Todas elas. Para me lembrar de um arqueiro magistral. Eu nunca tinha visto pontaria assim. - Curvou-se para Buntaro.

- Obrigada, Anjin-san. - Traduziu e Buntaro curvou-se e agradeceu o elogio.

- Saquê! - ordenou Blackthorne.

Beberam mais. Muito mais. Buntaro bebia a grandes goles agora, descuidado, o vinho tomando conta dele. Blackthorne observou-o dissimuladamente, depois deixou a atenção vagar, perguntando-se como o homem conseguira alinhar e atirar as setas com uma precisão tão incrível. É impossível, pensou, ainda que eu tenha visto. Gostaria de saber o que Vinck, Baccus e os demais estão fazendo agora. Toranaga lhe dissera que a tripulação estava instalada em Yedo, perto do Erasmus. Jesus Cristo, gostaria de vê-los e voltar a bordo.

Olhou de soslaio para Mariko, que dizia alguma coisa ao marido. Buntaro ouviu, depois, para surpresa de Blackthorne, o rosto do samurai contorceu-se de repugnância. Antes que pudesse desviar os olhos, Buntaro o olhou.

- Nan desu ka? - As palavras de Buntaro soaram quase como uma acusação.

- Nani-mo, Buntaro-san. Nada. - Blackthorne ofereceu saquê a todos, esperando disfarçar o seu lapso. Novamente as mulheres aceitaram, mas tomaram apenas um pequeno gole de vinho. Buntaro acabou o seu imediatamente, com um humor péssimo. Depois falou com Mariko.

Apesar de si mesmo, Blackthorne falou:

- O que há com ele? O que está dizendo?

- Oh, desculpe, Anjin-san. Meu marido estava perguntando sobre o senhor, sobre a sua esposa e consortes. E sobre seus filhos. E sobre o que aconteceu desde que partimos de Osaka. Ele... - Parou, mudando de idéia, e acrescentou numa voz indiferente: - Ele está muito interessado no senhor e nas suas idéias.

- Estou interessado nele e nas idéias dele, Mariko-san. Como se conheceram, a senhora e ele? Quando se casaram? Ele... - Buntaro irrompeu com um jorro de japonês impaciente.

Imediatamente Mariko traduziu o que fora dito. Buntaro estendeu a mão e encheu duas xícaras de chá com saquê, ofereceu uma a Blackthorne e acenou às mulheres que levassem os cálices.

- Ele ... meu marido diz que às vezes os cálices de saquê são pequenos demais. - Mariko encheu os cálices. Sorveu um, Fujiko o outro. Houve outra arenga, mais belicosa, e o sorriso de Mariko congelou-sê-lhe no rosto. O de Fujiko também.

- Iyé, dozo gomen nasai, Buntaro-sama - começou Mariko.

- Ima! - ordenou Buntaro.

Nervosamente Fujiko começou a falar, mas Buntaro calou-a com um olhar.

- Gomen nasai — sussurrou Fujiko, desculpando-se. - Dozo, gomen nasai.

- O que ele disse, Mariko-san? - Ela não pareceu ter ouvido Blackthorne. - Dozo gomen nasai, Buntaro-sama, watashi...

O rosto do marido avermelhou-se.

- IMA!

- Desculpe, Anjin-san, mas meu marido me ordena que lhe conte... que responda às suas perguntas... que lhe conte a meu respeito. Eu lhe disse que não achava que esses assuntos de família devessem ser discutidos tão tarde da noite, mas ele ordena. Por favor, seja paciente. - Ela tornou um grande gole de saquê. Depois outro. Os fios de cabelo que lhe estavam soltos sobre as orelhas oscilaram à leve corrente produzida pelo leque de Fujiko. Ela esvaziou o cálice e pousou-o. - Meu nome de solteira é Akechi. Sou a filha do Senhor General Akechi Jinsai, o assassino. Meu pai traiçoeiramente assassinou o seu suserano, o Senhor Ditador Goroda.

- Deus do paraíso! Por que fez isso?

- Seja qual for a razão, Anjin-san, é insuficiente. Meu pai cometeu o pior crime do nosso mundo. Meu sangue está maculado, assim como o sangue do meu filho.

- Então por que... - Ele parou.

- Sim, Anjin-san?

- Eu só ia dizer que compreendo o que isso quer dizer... matar um suserano. Estou surpreso de que a tenham deixado viva.

- Meu marido honrou-me...

Novamente Buntaro a interrompeu com malignidade e ela se desculpou e explicou o que Blackthorne perguntara. Desdenhosamente, Buntaro fez-lhe um gesto para continuar.

- Meu marido honrou-me mandando-me embora - continuou ela, do mesmo modo meigo. - Implorei que me autorizasse a cometer seppuku, mas ele me negou esse privilégio. Era... Devo explicar que seppuku é um privilégio concedido por ele ou pelo Senhor Toranaga. Eu ainda lhe peço humildemente uma vez por ano, no aniversário do dia da traição. Mas na sua sabedoria, meu marido sempre recusou. - O sorriso dela era adorável. - Meu marido me honra todos os dias, todos os momentos, Anjin-san. Se eu fosse ele, não seria capaz sequer de conversar com uma pessoa tão... conspurcada.

- É por isso que ... é por isso que a senhora é a última da sua linhagem? - perguntou ele, lembrando-se do que ela dissera sobre uma catástrofe, durante a marcha do Castelo de Osaka. Mariko traduziu a pergunta para Buntaro, e depois voltou-se novamente.

- Hai, Anjin-san. Mas não foi uma catástrofe, não para eles. Foram apanhados nas colinas, meu pai e sua família, por Nakamura, o general que se tornou taicum. Foi Nakamura quem comandou os exércitos de vingança e dizimou todas as forças do meu pai, vinte mil homens, um por um. Meu pai e sua família foram acuados, mas meu pai teve tempo de ajudá-los a todos, meus quatro irmãos e três irmãs, minha... minha mãe e as duas consortes. Depois cometeu seppuku. Nisso ele foi samurai, e eles eram samurais. Ajoelharam-se bravamente diante dele, um por um, e ele os matou um por um. Morreram honrosamente. E ele morreu honrosamente. Os dois irmãos do meu pai, e um tio, se haviam aliado a ele na traição contra o suserano. Também foram perseguidos. E morreram com honra igual. Nenhum Akechi foi deixado com vida para enfrentar o ódio e o escárnio do inimigo, exceto eu... não, desculpe-me, por favor, Anjin-san, estou errada... meu pai e seus irmãos e tio eram o verdadeiro inimigo. Do inimigo, apenas eu permaneci viva, uma testemunha viva da imunda traição. Eu, Akechi Mariko, fui deixada viva porque era casada e portanto pertencia à família do meu marido. Morávamos em Kyoto então. Eu estava em Kyoto quando o meu pai morreu. Sua traição e rebelião duraram apenas treze dias, Anjin-san. Mas enquanto viver um homem nestas ilhas, o nome Akechi será vergonhoso.

- Há quanto tempo estava casada quando isso aconteceu?

- Há dois meses e três dias, Anjin-san.

- E tinha quinze anos?

- Sim. Meu marido honrou-me não se divorciando de mim nem me expulsando como deveria ter feito. Fui mandada embora. Para uma aldeia ao norte. Fazia frio lá, Anjin-san, na província de Shonai. Muito frio.

- Quanto tempo ficou lá?

- Oito anos. O Senhor Goroda tinha quarenta e cinco anos quando cometeu seppuku para impedir a própria captura. Isso foi há quase dezesseis anos, Anjin-san, e a maioria dos seus descend...

Buntaro interrompeu de novo, sua língua um açoite.

- Por favor, desculpe-me, Anjin-san - disse Mariko. - Meu marido corretamente assinala que teria sido suficiente que eu dissesse que sou filha de um traidor, que longas explicações são desnecessárias. Claro que algumas explicações eram necessárias - acrescentou ela cuidadosamente. - Por favor, desculpe os maus modos do meu marido e rogo-lhe que se lembre do que eu disse sobre ouvidos para ouvir e sobre a Cerca Óctupla. Perdoe-me, Anjin-san, recebi ordem de ir embora. O senhor não deve sair antes que ele saia, nem beber mais do que ele. Não interfira. - Ela se curvou para Fujiko. - Dozo gomen nasai.

- Do itashimashité.

Mariko inclinou a cabeça para Buntaro e partiu. Seu perfume demorou-se no ar.

- Saquê! - disse Buntaro, e sorriu malignamente.

Fujiko encheu a xícara de chá.

- Saúde - disse Blackthorne, confuso.

Por mais de uma hora ele brindou a Buntaro, até sentir a própria cabeça girando. Então Buntaro tomou a última xícara e caiu deitado por entre xícaras despedaçadas. A shoji abriu-se instantaneamente. O guarda entrou com Mariko. Levantaram Buntaro, ajudados por criados que pareciam ter surgido do nada, e carregaram-no para o aposento oposto. O quarto de Mariko. Ajudada por Koi, a criada, ela começou a despi-lo. O guarda cerrou a shoji e sentou do lado de fora, a mão no punho da espada solta.

Fujiko esperava, olhando Blackthorne. Vieram criadas e arrumaram a desordem. Exausto, Blackthorne correu as mãos pelo longo cabelo e amarrou de novo a fita que prendia a cauda. Depois levantou-se oscilante e saiu para a varanda, seguido da consorte.

O ar cheirava bem e limpou-o. Mas não o suficiente. Ele se sentou pesadamente na varanda e sorveu a noite.

Fujiko ajoelhou-se atrás dele e inclinou-se para a frente.

- Gomen nasai, Anjin-san - sussurrou, movendo a cabeça na direção da casa. - Wakarimasu ka?

- Wakarimasu, shigata ga na!. - Depois, vendo-lhe o medo aparente, afagou-lhe o cabelo.

- Arigato, arigato, Anjin-sama.

- Anata wa suimin ima, Fujiko-san - disse ele, encontrando as palavras com dificuldade. Você dormir agora.

- Dozo gomen nasai, Anjin-san, suimin, neh? - disse ela, gesticulando na direção do quarto dele, os olhos suplicando.

- Iyé. Watashi oyogu ima. Não, vou nadar.

- Hai, Anjin-sama. - Obedientemente ela se voltou e chamou. Dois criados vieram correndo. Eram ambos jovens da aldeia, fortes e conhecidos como bons nadadores.

Blackthorne não fez objeção. Naquela noite sabia que as suas objeções seriam sem sentido.

- Bem, de qualquer jeito - disse alto, enquanto seguia oscilante colina abaixo, os homens atrás, o cérebro entorpecido pela bebida, - consegui pô-lo para dormir. Não pode machucá-la agora.


Blackthorne nadou durante uma hora e sentiu-se melhor. Quando voltou, Fujiko o esperava na varanda com um bule de chá. Ele aceitou um pouco, depois foi para a cama e pegou no sono imediatamente.

O som da voz de Buntaro, transbordante de maldade, despertou-o. Sua mão direita automaticamente agarrou a coronha da pistola que mantinha sempre embaixo do futon, o coração ribombando no peito devido ao inesperado despertar.

A voz de Buntaro cessou. Mariko começou a falar. Blackthorne só conseguia apreender algumas palavras, mas podia sentir os argumentos razoáveis e a súplica, não abjeta, lamentosa ou mesmo perto das lágrimas, apenas a firme serenidade habitual dela. Novamente Buntaro explodiu.

Blackthorne tentou não ouvir.

- Não interfira - dissera-lhe ela, e ela era prudente. Ele não tinha direitos, mas Buntaro tinha muitos. - Rogo-lhe que seja cuidadoso, Anjin-san. Lembre-se do que eu lhe disse de ouvidos para ouvir e a Cerca Óctupla.

Obedientemente deitou-se, a pele gelada de suor, e forçou-se a pensar no que ela dissera.

- Veja, Anjin-san - dissera-lhe naquela noite muito especial, quando terminavam a última de muitas últimas garrafas de saquê e ele brincara sobre a falta de privacidade por toda parte: gente sempre por perto, paredes de papel, ouvidos e olhos sempre espreitando -, aqui o senhor tem que aprender a criar a sua própria privacidade. Somos ensinados desde a infância a desaparecer dentro de nós mesmos, a erguer paredes impenetráveis, por trás das quais vivemos. Se não pudéssemos fazer isso, com certeza ficaríamos todos loucos e mataríamos uns aos outros e a nós mesmos.

- Que paredes?

- Oh, temos um labirinto ilimitado onde nos esconder, Anjin-san. Rituais e costumes, tabus de toda espécie, oh, sim. Até a nossa língua tem nuanças que a sua não tem, as quais nos permitem evitar, polidamente, uma pergunta se não queremos responder.

- Mas como cerrar os ouvidos, Mariko-san? Isso é impossível.

- Oh, muito fácil, com treinamento. Claro, o treinamento começa assim que a criança aprende a falar, portanto isso bem cedo se torna uma segunda natureza para nós. De que outro modo poderíamos sobreviver? Primeiro se começa purificando a mente de gente, colocando-se num plano diferente. A observação do pôrdo-sol é uma grande ajuda, ou a escuta da chuva. Anjin-san, já notou os diferentes sons da chuva? Se o senhor realmente ouvir, então o presente desaparece, neh? Ouvir flores caindo e rochas crescendo são exercícios excepcionalmente bons. Claro que não se espera que o senhor veja as coisas, elas são apenas sinais, mensagens ao seu hara, o seu centro, para lembrá-lo da transitoriedade da vida, para ajudá-lo a atingir a wa, a harmonia, Anjin-san, a harmonia perfeita, que é a qualidade mais visada em toda a vida do Japão, toda a arte, toda... - Ela rira. - Pronto, veja o que o excesso de saquê faz comigo. - A ponta da língua tocara-lhe os lábios sedutoramente. - Vou lhe cochichar um segredo: não se deixe enganar pelos nossos sorrisos e gentilezas, nosso cerimonial, nossas mesuras, delicadezas e atenções. Por trás disso tudo, podemos estar a um milhão de ris de distância, seguros e sozinhos. Pois é isso o que procuramos: esquecimento. Um dos nossos primeiros poemas jamais escritos - está no Kojiko, nosso primeiro livro de história, que foi escrito há cerca de mil anos - talvez explique o que estou dizendo:


“Oito cúmulos se erguem

Para os amantes se esconderem

A Cerca óctupla da província de Izumo

Encerra aquelas nuvens óctuplas Oh, que maravilhosa, essa Cerca Óctupla!"


- Nós certamente enlouqueceríamos se não tivéssemos uma Cerca Óctupla, oh, sim!

Lembre-se da Cerca Óctupla, disse ele a si mesmo, enquanto a fúria sibilante de Buntaro continuava. Não sei nada sobre ela. Nem sobre ele, na realidade. Pense no Regimento de Mosquetes, ou na sua casa, em Felicity, ou em como recuperar o navio, em Baccus, em Toranaga ou em Omi-san. Que tal Omi? Preciso de vingança? Ele quer ser meu amigo e tem sido bom e gentil desde o caso das pistolas e...

O som da pancada feriu-o dentro da cabeça. Depois a voz de Mariko começou de novo, e houve uma segunda pancada e Blackthorne se pôs de pé num instante e escancarou a shoji. O guarda erguia-se no corredor, junto à porta de Mariko, encarando-o maldosamente, a espada pronta.

Blackthorne estava se preparando para se atirar contra o samurai quando a porta na extremidade do corredor se abriu. Fujiko, o cabelo solto e flutuando sobre o quimono de dormir, aproximou-se, o som do pano rasgando e outro golpe aparentemente não a afetando em absoluto. Ela se curvou polidamente para o guarda e se postou entre eles, depois se curvou meigamente para Blackthorne e pegou-lhe o braço, guiando-o de volta ao quarto. Ele viu a tensa prontidão do samurai. Tinha apenas uma pistola e uma bala no momento, por isso recuou. Fujiko seguiu-o e fechou a shoji atrás de si. Depois, muito assustada, balançou a cabeça advertindo-o, pôs um dedo sobre os lábios, e balançou a cabeça de novo, os olhos suplicando.

- Gomen nasai, wakarimasu ka? - sussurrou ela.

Mas ele estava concentrado na parede do quarto contíguo, que poderia ser despedaçada com muita facilidade.

Fujiko também olhou para a parede, depois se colocou entre ele e a parede, e sentou-se, fazendo-lhe sinal que a imitasse.

Mas ele não podia. Continuou de pé, preparando-se para o ataque que os destruiria a todos, aguilhoado por um soluço que seguiu outra pancada.

- Iyé! - Fujiko estremeceu aterrorizada.

Ele fez-lhe sinal para sair do caminho.

- Iyé, iyé - implorou ela novamente.

- IMA!

Imediatamente Fujiko se levantou e fez-lhe sinal que esperasse enquanto corria sem ruído algum para as espadas que jaziam diante do takonoma, a pequena alcova de honra. Pegou a espada comprida, de mãos trêmulas, tirou-a da bainha, e preparou-se para segui-lo através da parede. Nesse instante houve um tapa final e uma exaltada torrente de fúria. A outra shoji abriu-se com estrondo e Buntaro se afastou com passos pesados, seguido pelo guarda.

Houve silêncio na casa por um momento, depois o som do portão

do jardim batendo.

Blackthorne dirigiu-se para a porta. Fujiko arremessou-se à sua frente, mas ele a empurrou para o lado e a escancarou.

Mariko ainda estava ajoelhada no canto do quarto ao lado, um vergão lívido no rosto, o cabelo desgrenhado, o quimono em farrapos, contusões graves nas coxas e na base das costas.

Ele se precipitou para levantá-la, mas ela gritou:

- Vá embora, por favor, vá embora, Anjin-san!

Ele viu o fio de sangue no canto da boca.

- Jesus, como a senhora está mal...

- Eu lhe disse que não interferisse. Por favor, vá embora - disse ela na mesma voz calma que a violência em seus olhos desmentia. Depois viu Fujiko, que ficara à soleira da porta. Falou com ela. Fujiko obedientemente pegou o braço de Blackthorne para levá-lo embora, mas ele se soltou com um repelão.

- Não! Iyé!

- Sua presença aqui me tira a dignidade, não me dá paz nem conforto e me envergonha - disse Mariko. - Vá embora!

- Quero ajudar. Não compreende?

- O senhor não compreende? Não tem direitos nisto. Foi uma discussão particular entre marido e mulher.

- Isso não é desculpa para bater...

- Por que não ouve, Anjin-san? Ele pode me espancar até a morte se quiser. Tem o direito e eu gostaria de que... até isso! Então eu não teria que suportar a vergonha. Acha que é fácil viver com a minha vergonha? Não ouviu o que eu disse? Sou filha de Akechi Jinsai!

- Não é culpa sua. A senhora não fez nada!

- É minha culpa e sou filha de meu pai. - Mariko teria parado aí. Mas, vendo a compaixão dele, o interesse, e o amor, e sabendo como ele prezava a verdade, permitiu que alguns dos seus véus tombassem. - Esta noite a culpa foi minha, Anjin-san - disse. - Se eu tivesse chorado como ele quer, implorado perdão como ele quer, bajulado e ficado petrificada e lisonjeado como ele quer, aberto os olhos em terror fingido como ele quer, fizesse todas as coisas próprias de mulher que o meu dever exige, ele seria como uma criança nas minhas mãos. Mas eu não farei.

- Por quê?

- Porque essa é a minha vingança. Para retribuir por me deixar viva depois da traição. Para retribuir por ter me mandado embora por oito anos e ter me deixado viva todo esse tempo. E para retribuir por me ordenar que voltasse à vida e continuasse vivendo. - Ela se sentou penosamente e arrumou o quimono esfarrapado mais junto ao corpo. - Nunca me darei a ele de novo. Uma vez eu fiz isso, voluntariamente, embora o tenha detestado desde o primeiro momento em que o vi.

- Então por que se casou? A senhora disse que as mulheres aqui têm o direito de recusar, que não têm que se casar contra a vontade.

- Casei-me com ele para agradar ao Senhor Goroda, e para agradar a meu pai. Eu era muito jovem e não sabia sobre Goroda então, mas se quer a verdade Goroda era o homem mais cruel e repugnante que jamais nasceu. Ele levou meu pai à traição. É a verdade! Goroda! - Ela cuspiu o nome. - Não fosse ele, estaríamos todos vivos e honrados. Rezo a Deus para que Goroda esteja condenado ao inferno por toda a eternidade! - Moveu-se cuidadosamente, tentando abrandar o sofrimento no flanco. - só existe ódio entre mim e meu marido, esse é o nosso karma. Seria tão fácil para ele permitir-me ascender à morte.

- Por que ele não a deixa ir embora? Não se divorcia da senhora? Ou lhe concede o que a senhora deseja?

- Porque ele é um homem. - Um retesar de dor percorreu-a e ela fez uma careta. Blackthorne estava de joelhos ao seu lado, amparando-a. Ela o empurrou, lutou por recobrar o domínio de si. Fujiko, à soleira, observava estoicamente. - Estou bem, Anjin-san. Por favor, deixe-me sozinha. O senhor deve ser cuidadoso.

- Não tenho medo dele.

Debilmente Mariko afastou o cabelo dos olhos e o encarou inquisitiva. Por que não deixar o Anjin-san ir ao encontro do seu karma, perguntou a si mesma. Ele não é do nosso mundo. Buntaro o matará com toda a facilidade. Apenas a proteção pessoal de Toranaga o protegeu até agora. Yabu, Omi, Naga, Buntaro - qualquer um deles poderia ser facilmente provocado para matá-lo. Ele só causou problemas desde que chegou, neh? Assim como o seu conhecimento. Naga tem razão: o Anjin-san pode destruir o nosso mundo, a menos que seja contido.

E se Buntaro soubesse a verdade? Ou Toranaga? Sobre o "travesseiro"...

- Ficou louca? - dissera Fujiko naquela noite.

- Não.

- Então por que vai tomar o lugar da criada?

- Por causa do saquê e por diversão, Fujiko-san, e por curiosidade - mentira ela, ocultando a verdadeira razão: ele a excitava, ela o desejava, nunca tivera um amante. Se não fosse naquela noite, não seria nunca, e tinha que ser o Anjin-san e apenas o Anjin-san.

Então fora a ele, sentira-se enlevada e depois, quando a galera chegara, Fujiko dissera em particular:

- A senhora teria ido se soubesse que o seu marido estava vivo?

- Não. Claro que não - mentiu ela.

- Mas agora vai contar a Buntaro-sama, neh? Que "travesseirou" com o Anjin-san?

- Por que deveria fazer isso?

- Pensei que talvez fosse o seu plano. Se contar a Buntaro-sama no momento certo, a fúria dele lhe explodirá em cima e a senhora estará agradecidamente morta antes que ele saiba o que fez.

- Não, Fujiko-san, ele nunca me matará. Ele me mandaria para os etas, se tivesse desculpa suficiente, se conseguisse obter a aprovação do Senhor Toranaga, mas nunca me matará.

- Adultério com o Anjin-san... isso seria suficiente?

- Oh, sim.

- O que aconteceria ao seu filho?

- Herdaria a minha desgraça, se eu ficasse desgraçada, neh?

- Por favor, se achar que Buntaro-sama desconfia do que aconteceu, diga-me. Enquanto consorte, é meu dever proteger o Anjin-san.

Sim, é, Fujiko, pensara Mariko então. E isso lhe daria a desculpa para se vingar abertamente do acusador de seu pai, coisa pela qual você anseia. Mas o seu pai era um covarde, sinto muito, pobre Fujiko. Hiromatsu estava lá, do contrário seu pai estaria vivo agora e Buntaro morto, pois Buntaro é muito mais odiado do que seu pai era desprezado. Mesmo as espadas que você tanto preza, nunca lhe foram dadas como uma honra de batalha, foram compradas de um samurai ferido. Sinto muito, mas nunca serei eu quem vai lhe dizer, mesmo que a verdade seja essa.

- Não tenho medo dele - estava dizendo Blackthorne de novo.

- Eu sei - disse ela, a dor dominando-a. - Mas, por favor, imploro-lhe, tenha medo dele por mim.

Blackthorne dirigiu-se para a porta.


Buntaro o esperava a cem passos, no meio do caminho que levava para a aldeia lá embaixo - atarracado, imenso e mortífero. O guarda erguia-se ao seu lado. O amanhecer estava nublado.

Barcos de pesca já estavam contornando os bancos de areia, o mar calmo.

Blackthorne viu o arco frouxo nas mãos de Buntaro, e as espadas, e as espadas do guarda. Buntaro oscilava ligeiramente e isso lhe deu esperança de que a pontaria do homem falhasse, o que lhe daria tempo para se aproximar o suficiente. Não havia cobertura aos lados do caminho. Ele engatilhou as duas pistolas e avançou na direção dos dois homens.

Ao inferno com cobertura, pensou por entre o nevoeiro da sua ânsia por sangue, sabendo ao mesmo tempo que o que estava fazendo era loucura, que não tinha chance contra os dois samurais ou o arco de longo alcance, que não tinha qualquer direito de interferir. E então, enquanto ainda se encontrava fora do alcance da pistola, Buntaro curvou-se profundamente, e o mesmo fez o guarda. Blackthorne parou, pressentindo uma armadilha.

Olhou em torno mas não havia ninguém por perto. Como num sonho, viu Buntaro desabar pesadamente sobre os joelhos, pôr o arco de lado, as mãos estendidas no chão, e curvar-se para ele como um camponês se curvaria diante do seu senhor. O guarda o imitou.

Blackthorne contemplou-os, pasmado. Quando teve certeza de que seus olhos não o estavam enganando, avançou lentamente, a pistola pronta mas não apontada, esperando traição. Atingindo um fácil raio de tiro, parou. Buntaro não se movera. O costume ditava que ele devia se ajoelhar e retribuir a saudação, porque eles eram iguais, ou quase iguais, mas ele não conseguia compreender por que devesse haver aquela inacreditável cerimônia de deferência numa situação como aquela, em que ia jorrar sangue.

- Levante-se, seu filho da puta! - Blackthorne preparou os dois gatilhos.

Buntaro não disse nada, não fez nada. Manteve a cabeça baixa, as mãos estendidas. As costas do seu quimono estavam ensopadas de suor.

- Nan ja? - Deliberadamente Blackthorne usou o modo mais insultante de perguntar, "O que e?", esperando induzir Buntaro a se levantar, a começar, sabendo que não podia alvejá-lo daquele jeito, com a cabeça baixa e quase no pó.

Então, consciente de que era rude permanecer em pé enquanto eles estavam ajoelhados, e que o "nan ja" era um insulto intolerável e certamente desnecessário, Blackthorne se ajoelhou e, agarrado às pistolas, pousou as duas mãos no chão e retribuiu a reverência.

Sentou-se sobre os calcanhares.

- Hai? - perguntou, com uma polidez forçada.

Imediatamente Buntaro começou a resmungar. Abjetamente. Desculpando-se. De quê e exatamente por quê, Blackthorne não sabia. Só conseguia apreender uma palavra aqui outra ali, e "saquê" muitas vezes, mas tratava-se de um pedido de desculpas e uma humilde súplica por perdão. Buntaro continuava interminavelmente. Depois parou e encostou a cabeça no chão novamente.

Nessa altura a cólera ofuscante de Blackthorne já desaparecera.

- Shigata ga nai - disse ele, rouco, o que significava "não se pode evitar", ou "não há nada a ser feito", ou "o que o senhor podia fazer?", sem saber ainda se o pedido de desculpas era meramente ritual, precedendo o ataque. - Shigata ga nai. Hakkiri wakaranu ga shinpai surukotowanai. Não pode ser evitado. Não compreendo exatamente, mas não se preocupe.

Buntaro levantou os olhos e sentou-se.

- Arigato ... arigato, Anjin-sama. Domo gomen nasai.

- Shigata ga nai - repetiu Blackthorne e, agora que ficara claro que o pedido de desculpas era genuíno, agradeceu a Deus por lhe dar aquela miraculosa oportunidade de cancelar o duelo.

Ele sabia que não tinha direitos, que agira como um louco, e que o único meio de resolver a crise com Buntaro era de acordo com as regras. E isso queria dizer Toranaga.

Mas por que as desculpas? perguntava-se ele freneticamente.

Pense! Você tem que aprender a pensar como eles.

Então a solução precipitou-sê-lhe no cérebro. Deve ser porque sou hatamoto e Buntaro, meu hóspede, perturbou a wa, a harmonia da minha casa. Tendo uma violenta discussão com a esposa na minha casa, insultou-me, portanto ele está totalmente errado e tem que se desculpar, com sinceridade ou não. Desculpas obrigatórias de um samurai a outro, de um hóspede ao anfit...

Espere! Não se esqueça de que, pelo costume deles, todos, os homens podem se embebedar, espera-se que se embebedem às vezes, e quando bêbados não são, legitimamente, responsáveis pelos próprios atos. Não se esqueça de que não há perda de dignidade se se fica fedendo de bêbado. Lembre-se de como Mariko e Toranaga nem se preocuparam no navio, quando você ficou totalmente entorpecido. Acharam engraçado e não repugnante, como nós acharíamos.

E você tem realmente alguma coisa a censurar? Não foi você quem começou a rodada de bebida? O desafio não foi seu?

- Sim - disse alto.

- Nan desu ka, Anjin-san? - perguntou Buntaro, os olhos injetados.

- Nani-mo. Watashi no kashitsu desu. Nada. A culpa foi minha.

Buntaro levantou a cabeça e disse que não, que a culpa era só dele, e curvou-se e desculpou-se de novo.

- Saquê - disse Blackthorne com determinação, e encolheu os ombros. - Shigata ga nai. Saquê!

Buntaro curvou-se e agradeceu-lhe de novo. Blackthorne retribuiu e levantou-se. Buntaro imitou-o, e o guarda. Ambos se curvaram mais uma vez. E mais uma vez foram correspondidos.

Finalmente Buntaro deu-lhe as costas e se afastou cambaleante. Blackthorne esperou até estar fora do alcance da seta, perguntando-se se o homem estava tão bêbado quanto aparentava. Depois voltou para dentro da casa.

Fujiko encontrava-se na varanda, novamente dentro do seu escudo polido e sorridente. O que é que você está realmente pensando? perguntou-se Blackthorne ao saudá-la e ser correspondido.

A porta de Mariko estava fechada. Sua criada encontrava-se em pé do lado de fora.

- Mariko-san?

- Sim, Anjin-san?

Ele esperou mas a porta continuou fechada.

- Está bem?

- Sim, obrigada. - Ele a ouviu pigarrear, depois a voz débil continuou: - Fujiko mandou avisar a Yabu-san e ao Senhor Toranaga que estou indisposta hoje e não poderei interpretar.

- Seria melhor que a senhora visse um médico.

- Oh, obrigada, mas Suwo será excelente. Mandei chamá-lo. Eu... só torci o lado. Estou bem, realmente. Não há necessidade de o senhor se preocupar.

- Olhe, conheço alguma coisa sobre cuidados médicos. Não está tossindo sangue, está?

- Oh, não. Quando escorreguei só bati com o rosto. Verdade. Estou absolutamente bem.

Após uma pausa, ele disse:

- Buntaro desculpou-se.

- Sim. Fujiko observou do portão. Agradeço-lhe humildemente por ter aceitado o pedido de desculpas. Obrigada, Anjin-san, sinto muito que tenha sido perturbado... é imperdoável que a sua harmonia... por favor, aceite minhas desculpas também. Eu nunca deveria ter perdido o controle sobre a minha boca. Foi muito descortês. Por favor, perdoe-me também. A culpa da discussão foi minha. Por favor, aceite minhas desculpas.

- Por ter sido espancada?

- Por ter falhado em obedecer ao meu marido, por ter falhado em ajudá-lo a dormir satisfeito, por ter falhado a ele e ao meu anfitrião. E também pelo que eu disse.

- Tem certeza de que não há nada que eu possa fazer?

- Não... não, obrigada, Anjin-san. É só por hoje.

Mas Blackthorne não a viu durante oito dias.


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