CAPÍTULO 39


Fujiko se ferira. Nigatsu, a criada, estava morta. O primeiro abalo fizera desabar os pilares centrais da casa, espalhando as brasas do fogo da cozinha, Fujiko e Nigatsu tinham sido atingidas por uma das vigas caídas e as chamas transformaram Nigatsu numa tocha. Fujiko fora arrancada de sob a trave. Um dos filhos do cozinheiro também fora morto, mas o resto dos criados sofrera apenas escoriações e alguns membros torcidos. Ficaram todos exultantes ao descobrir que Blackthorne estava vivo e incólume.

Fujiko estava deitada sobre um futon poupado às chamas, perto da cerca do jardim intacta, semi-consciente. Quando também ela viu que Blackthorne estava incólume, quase chorou.

— Agradeço a Buda que o senhor não esteja ferido, Anjin-san — disse debilmente. Ainda parcialmente em choque, tentou se levantar, mas ele ordenou que não se movesse. As pernas e a base das costas dela estavam com sérias queimaduras. Um médico já a estava tratando, enrolando bandagens embebidas de chá e outras ervas em torno dos membros para aliviá-los. Blackthorne dissimulou a preocupação e esperou até que o médico tivesse acabado, então, em particular, disse: — Fujiko-san, yoi ka? A Senhora Fujiko ficará bem?

O doutor encolheu os ombros.

— Hai. — Seus lábios repuxaram-se em cima dos dentes protuberantes de novo. — Karma, neh?

— Hai. — Blackthorne vira morrer marujos queimados em quantidade suficiente para saber que qualquer queimadura séria era perigosa, a ferida aberta quase sempre arruinando em poucos dias e nada podendo impedir a infecção de se alastrar. — Não quero que ela morra.

— Dozo?

Repetiu em japonês e o médico meneou a cabeça e disse, que a senhora certamente ficaria bem. Era jovem e forte.

— Shikata ga nai — disse o médico, e ordenou às criadas que mantivessem as bandagens úmidas, deu a Blackthorne ervas para as suas próprias esfoladuras, disse que voltaria logo, depois subiu às pressas a colina em direção à casa danificada de Omi lá em cima.

Blackthorne manteve-se ao portão principal da sua casa, que permanecera intacto. As setas de Buntaro ainda estavam cravadas no batente esquerdo. Distraidamente, tocou uma delas. Karma que ela tenha se queimado, pensou tristemente.

Voltou para junto de Fujiko e ordenou a uma criada que trouxesse chá. Ajudou-a a beber e segurou-lhe a mão até que adormecesse, ou parecesse dormir. Os criados estavam salvando tudo o que podiam, trabalhando rapidamente, ajudados por alguns aldeãos. Sabiam que as chuvas logo chegariam. Quatro homens tentavam erguer um abrigo provisório.

— Dozo, Anjin-san. — O cozinheiro lhe oferecia chá fresco, tentando não demonstrar o sofrimento. A garotinha era a sua filha favorita.

— Domo — retrucou Blackthorne. — Sumimasen. Sinto muito.

— Arigato, Anjin-san. Karma, neh?

Blackthorne assentiu, aceitou o chá e fingiu não notar o pesar do cozinheiro, para não envergonhá-lo. Mais tarde um samurai subiu a colina trazendo um recado de Toranaga de que Blackthorne e Fujiko deviam dormir na fortaleza até a casa ser reconstruída. Chegaram dois palanquins. Blackthorne ergueu-a suavemente, colocou-a num deles e enviou-a com algumas criadas. Dispensou o seu palanquim, dizendo a ela que a seguiria logo.

A chuva começou, mas ele não prestou atenção. Sentou-se sobre uma pedra do jardim que lhe dera tanto prazer. Agora era um campo devastado. A pequena ponte estava quebrada, o lago destruído e o riacho desaparecera.

— Não tem importância — disse ele a ninguém. — As rochas não estão mortas.

Ueki-ya lhe dissera que um jardim deve ser formado em torno das suas rochas, que sem elas um jardim está vazio, meramente um lugar de crescimento.

Uma das pedras era denteada e comum, mas Ueki-ya a plantara de modo tal que se se olhasse longa e intensamente para ela, ao crepúsculo, o brilho avermelhado, o reflexo dos veios e do cristal enterrado nela, podia-se ver toda uma cadeia de montanhas com vales indolentes, lagos profundos e, à distância, um horizonte verdejante, a noite formando-se lá.

Blackthorne tocou a rocha.

— Dou-lhe o nome de Ueki-yasama — disse ele. Isso o deixou satisfeito e ele sabia que se o velho estivesse vivo, também teria ficado muito contente. Embora esteja morto, talvez ele saiba, disse-se Blackthorne, talvez o seu kami se encontre aqui agora. Os xintoístas acreditam que quando morrem tornam-se um kami...

— O que é um kami, Mariko-san?

— Kami é inexplicável, Anjin-san. É como um espírito, mas não é, é como uma alma, mas não é. Talvez seja a parte insubstancial de uma coisa ou de uma pessoa... o senhor deve saber que um ser humano se torna um kami após a morte, mas uma árvore, uma rocha ou uma planta, ou uma pintura, são kamis igualmente. Os kamis são venerados, nunca idolatrados. Existem entre o céu e a terra e visitam esta Terra dos Deuses ou a deixam, tudo ao mesmo tempo.

— E Xintó? O que é Xintó?

— Ah, isso também é inexplicável, sinto muito. É como uma religião, mas não é. No começo não tinha nem nome. Simplesmente chamávamos de Xintó, o Caminho do Kami, mil anos atrás, para distingui-lo do Butsudo, o Caminho de Buda. Mas embora indefinível, o Xintó é a essência do Japão e dos japoneses, e embora não possua nem teologia nem divindade, fé ou sistema ético, é a nossa justificação para a existência. O Xintó é um culto natural de mitos e lendas nas quais ninguém acredita sinceramente, embora todo mundo venere totalmente. Uma pessoa é xintoísta do mesmo modo como nasceu japonesa.

— A senhora também é xintoísta... assim como cristã? — Oh, sim, muito, naturalmente...

Blackthorne tocou a pedra de novo.

— Por favor, kami de Ueki-ya, por favor, fique no meu jardim.

Depois, sem se importar com a chuva, deixou os olhos levarem-no pela pedra, passando pelos vales viçosos, o lago sereno e o horizonte verdejante, a escuridão formando-se lá.

Seus ouvidos lhe disseram que voltasse. Levantou os olhos. Omi o observava, pacientemente acocorado. Ainda chovia e Omi estava usando uma capa de palha de arroz, e um largo chapéu cônico de bambu. O cabelo fora lavado recentemente.

— Karma, Anjin-san — disse ele, apontando para as ruínas fumegantes.

— Hai. Ikaga desu ka? — Blackthorne enxugou a chuva do rosto.

— Yoi. — Omi apontou para a sua casa. — Watakushi no yuya wa hakaisarete imasen ostukai ni narimasen-ka? Minha casa de banho não foi danificada. Importa-se em usá-la?

— Ah so desu! Domo, Omi-san, hai, domo. — Agradecido, Blackthorne acompanhou Omi pelo caminho sinuoso, dirigindo-se para o pátio da casa dele. Os criados e alguns artesãos da aldeia, sob a supervisão de Mura, já estavam martelando e serrando e reparando. Os pilares centrais já tinham sido recolocados no lugar e o telhado estava quase reparado.

Por meio de sinais e palavras simples, e muita paciência, Omi explicou que seus criados haviam conseguido extinguir as chamas em tempo. Dentro de um ou dois dias, disse ele a Blackthorne, a casa estaria em pé novamente, tão boa como antes, portanto não havia nada com que se preocupar. A sua levará mais tempo, uma semana, Anjin-san. Não se preocupe, Fujiko-san é uma excelente administradora. Combinará todos os custos com Mura e sua casa ficará melhor do que nunca. Ela se queimou, ouvi dizer. Bem, isso acontece às vezes, mas não se preocupe, nossos médicos são bons especialistas em queimaduras, têm que ser, neh? Sim, Anjin-san, foi um terremoto sério, mas não muito. Os campos de arroz quase não foram tocados e o sistema de irrigação, tão essencial, permaneceu incólume. E os barcos não se danificaram, e isso é muito importante também. Apenas cento e cinqüenta e quatro samurais foram mortos pela avalanche, o que não é muito, neh? Quanto à aldeia, uma semana e o senhor mal saberá que houve um abalo. Cinco camponeses foram mortos e algumas crianças — nada! Anjiro teve muita sorte, neh? Ouvi dizer que o senhor arrancou Toranaga-sama da morte. Somos-lhe todos gratos, Anjin-san. Muito. Se o perdêssemos... o Senhor Toranaga disse que aceitava a sua espada — o senhor tem sorte, isso é uma grande honra. Sim. O seu karma é forte, muito rico. Sim, agradeço-lhe muitíssimo. Ouça, conversaremos mais depois que o senhor tiver tomado banho. Estou contente por ser seu amigo.

Omi chamou as criadas de banho.

— Isogi! Rápido!

As criadas escoltaram Blackthorne até a casa de banho, que se erguia dentro de um minúsculo bosque de bordos e se unia à casa principal por um caminho sinuoso, em condições normais coberto por um telhado. Era muito mais suntuosa do que a sua. Uma parede estava seriamente rachada, mas já havia aldeãos a rebocá-la. O telhado estava firme, embora faltassem algumas telhas e a chuva vazasse aqui e ali, mas isso não tinha importância.

Blackthorne despiu-se e se sentou no minúsculo assento. As criadas o esfregaram e o ensaboaram à chuva. Quando estava limpo, entrou na casa e mergulhou no banho fumegante. Todos os seus problemas se dissiparam.

Fujiko vai ficar boa. Sou um homem de sorte. Foi sorte eu estar lá para puxar Toranaga, sorte ter salvado Mariko, e sorte que ele estivesse lá para nos puxar para fora.

A mágica de Suwo revigorou-o como de hábito. Mais tarde ele deixou-o cuidar-lhe das escoriações e cortes, e vestiu a tanga limpa e o quimono e os tabis que tinham sido trazidos para ele, e saiu. A chuva parara.

Um abrigo provisório fora erguido num canto do jardim. Tinha um caprichoso soalho elevado e estava mobiliado com futons limpos e um pequeno vaso com um arranjo de flores. Omi o esperava com uma velha sem dentes, de rosto duro.

— Por favor, sente-se, Anjin-san — disse Omi.

— Obrigado, e obrigado pela roupa — respondeu ele em japonês vacilante.

— Por favor, esqueça isso. Aceitaria chá? Ou saque?

— Chá — decidiu Blackthorne, pensando que era melhor conservar as idéias claras para a entrevista com Toranaga. — Obrigado.

— Esta é minha mãe — disse Omi com formalidade, claramente a idolatrando.

Blackthorne curvou-se. A velha sorriu com afetação.

— A honra é minha, Anjin-san — disse ela.

— Obrigado, mas sou eu quem fica honrado. — Blackthorne repetiu automaticamente a sucessão de cortesias formais que Mariko lhe ensinara.

— Anjin-san, sentimos muito ver sua casa em chamas.

— O que se poderia fazer? Foi karma, neh?

— Sim, karma. — A velha desviou o olhar e carregou o sobrolho. — Depressa! O Anjin-san deseja o seu chá quente!

A garota em pé ao lado da criada que carregava a bandeja deixou Blackthorne sem fôlego. Então se lembrou dela. Não fora aquela garota que vira com Omi, na primeira vez, quando atravessava a praça da aldeia a caminho da galera?

— Esta é minha esposa — disse Omi sucintamente.

— Estou honrado — disse Blackthorne, enquanto ela tomava seu lugar, ajoelhava-se e se curvava.

— O senhor deve perdoar-lhe a lentidão — disse a mãe de Omi. — O chá está quente o suficiente para o senhor?

— Obrigado, está muito bom. — Blackthorne notara que a velha não usara o nome da esposa conforme devia. Mas não se surpreendeu, porque Mariko já lhe falara sobre a posição dominante da sogra de uma garota na sociedade japonesa.

— Graças a Deus que o mesmo não acontece na Europa — dissera-lhe ele.

— A sogra de uma esposa não erra. Afinal de contas, Anjin-san, os pais escolhem a esposa em primeiro lugar, e que pai escolheria sem antes consultar a própria esposa? Claro, a nora tem que obedecer, e o filho sempre faz o que a mãe e o pai desejam.

— Sempre?

— Sempre.

— Que acontece se o filho se recusa?

— Isso não é possível. Todo mundo tem que obedecer ao cabeça da casa. O primeiro dever de um filho é para com os pais. Naturalmente. Os filhos recebem tudo das mães: vida, alimento, ternura, proteção. Ela os socorre a vida toda. Portanto, é claro que um filho deva atender aos desejos de sua mãe. A nora... tem que obedecer. É dever dela.

— Conosco não acontece o mesmo.

— É difícil ser uma boa nora, muito difícil. Tem-se apenas que esperar viver o bastante para se ter filhos e se tornar uma a gente mesma.

— E a sua sogra?

— Ah, morreu, Anjin-san. Morreu há muitos anos. Nunca a conheci. O Senhor Hiromatsu, na sua sabedoria, nunca tomou outra esposa.

— Buntaro-san é o único filho?

— Sim. Meu marido tem cinco irmãs vivas, mas não tem irmãos. — Ela brincara. — De certo modo somos aparentados agora, Anjin-san. Fujiko é sobrinha do meu marido. O que há?

— Estou surpreso de que a senhora nunca me tenha dito, é tudo.

— Bem, é complicado, Anjin-san. — Então Mariko explicara que Fujiko na realidade era uma filha adotiva de Numara Akinori, que se casara com a irmã mais nova de Buntaro, e que o verdadeiro pai de Fujiko era um neto do ditador Goroda pela sua oitava consorte, que Fujiko fora adotada por Numata ainda recém-nascida a unia ordem do táicum, porque o táicum desejava laços mais estreitos entre os descendentes de Hiromatsu e Goroda...

— O quê?

Mariko rira, dizendo-lhe que sim, os relacionamentos de família no Japão eram muito complicados porque a adoção era normal, os casais trocavam-se filhos e filhas com freqüência, e se divorciavam, casavam-se de novo, casavam-se entre si o tempo todo. Com tantas consortes legais e a facilidade do divórcio — particularmente se por uma ordem de um suserano — todas as famílias logo se tornavam inacreditavelmente entrelaçadas.

— Deslindar com precisão os elos de família do Senhor Toranaga levaria dias, Anjin-san. Pense apenas na complicação: atualmente ele tem sete consortes oficiais vivas, que lhe deram cinco filhos e três filhas. Algumas consortes eram viúvas ou já tinham sido casadas, com outros filhos e filhas — alguns desses Toranaga adotou, outros não. No Japão não se pergunta se uma pessoa é adotada ou natural. Na verdade, o que importa? A herança depende sempre do cabeça da casa, portanto, adotado ou não, dá na mesma, neh? Até a mãe de Toranaga era divorciada. Mais tarde tornou a se casar e teve três filhos e duas filhas do segundo marido, todos, agora, casados! O filho mais velho do segundo casamento é Zakati, senhor de Shinano.

Blackthorne ponderara sobre isso. Depois dissera:

— O divórcio não é possível para nós. Não é possível.

— Assim nos dizem os santos padres. Sinto muito, mas isso não é muito sensato, Anjin-san. Os enganos acontecem, as pessoas mudam, isso é karrna, neh? Por que um homem deveria suportar uma esposa abominável, ou uma esposa um homem abominável? É tolice ficar amarrado para sempre, homem ou mulher, neh?

— Sim.

— Nisso somos muito sábios e os santos padres não. Essa foi uma das duas grandes razões pelas quais o táicum não abraçou o cristianismo, essa tolice sobre o divórcio. E o sexto mandamento, "Não matarás". O padre-inspetor foi até Roma solicitar dispensa para o Japão com relação ao divórcio. Mas Sua Santidade, o Papa, na sua sabedoria, negou. Se Sua Santidade tivesse consentido, acredito que o táicum se teria convertido, os daimios estariam seguindo a verdadeira fé agora, e o país seria cristão. O aspecto de "matar" não teria tido importância, porque na realidade ninguém presta atenção alguma a isso, os cristãos menos que todos. Uma concessão tão pequena portanto, neh?

— Sim — dissera Blackthorne. Como o divórcio parecia razoável! Por que era um pecado mortal lá em casa, atacado por cada padre da cristandade, católico ou protestante, em nome de Deus?

— Como era a esposa de Toranaga? — perguntara, querendo fazê-la continuar falando. A maior parte do tempo ela evitara o tema de Toranaga e a história de sua família, e era importante para Blackthorne saber tudo.

Uma sombra atravessara o rosto de Mariko. — Morreu. Era a segunda esposa dele e morreu há uns dez ou onze anos. Era filha do padrasto do táicum. O Senhor Toranaga nunca teve êxito com as esposas, Anjin-san.

— Por quê?

— Oh, a segunda era velha, cansada, avarenta, idolatrando o ouro, embora fingisse o contrário, como o irmão, o próprio táicum. Estúpida e de mau temperamento. Foi um casamento político, naturalmente. Tive que ser uma das suas damas de companhia durante um tempo. Nada lhe agradava, e nenhum dos jovens ou homens conseguia desatar o nó no seu Pavilhão Dourado.

— O quê?

— O seu Portão de Jade, Anjin-san. Com a Cabeça de Tartaruga — a Seta Aquecida. Não compreende? A... coisa dela.

— Oh! Compreendo. Sim.

— Ninguém conseguia desatar-lhe o nó... satisfazê-la.

— Nem Toranaga?

— Ele nunca "travesseirou" com ela, Anjin-san — dissera ela, completamente chocada. — Claro, depois do casamento ele não tinha mais nada que ver com ela, além de dar-lhe um castelo, assistentes e as chaves da sua casa do tesouro. Por que deveria ter? Ela era muito velha, fora casada duas vezes antes, mas o irmão, o táicum, dissolvera os casamentos. Uma mulher muito desagradável. Todos ficaram muito aliviados quando ela foi para o Grande Vazio, até o táicum, e todas as suas noras e todas as consortes de Toranaga secretamente queimaram incenso com grande alegria.

— E a primeira esposa de Toranaga?

— Ah, a Senhora Tachibana. Esse foi outro casamento político. O Senhor Toranaga tinha dezoito anos, ela quinze. Cresceu para ser uma mulher terrível. Há vinte anos Toranaga condenou-a à morte porque descobriu que ela estava secretamente tramando o assassinato do suserano deles, o ditador Goroda, a quem ela odiava. Meu pai sempre me dizia que achava que todos eles tiveram sorte em conservar a cabeça — ele, Toranaga, Nakamura, e todos os generais —, porque Goroda era inclemente, implacável, e particularmente desconfiado dos que lhe eram mais chegados. Aquela mulher poderia tê-los arruinado a todos, por mais inocentes que fossem. Devido à sua conspiração contra o Senhor Goroda, o seu único filho, Nobunaga, também foi condenado à morte, Anjin-san. Ela matou o próprio filho. Pense nisso, tão triste, tão terrível. Pobre Nobunaga, era o filho favorito de Toranaga e seu herdeiro oficial, bravo, um general totalmente leal. Era inocente, mas ela o envolveu na trama. Tinha só dezenove anos quando Toranaga lhe ordenou que cometesse seppuku.

— Toranaga matou o próprio filho? E a esposa?

— Sim, ordenou-lhes que fizessem isso, mas não teve escolha, Anjin-san. Se não tivesse feito isso, o Senhor Goroda, acertadamente, teria presumido que Toranaga fazia parte da conspiração e lhe teria ordenado instantaneamente que cortasse o ventre. Oh, sim, Toranaga teve sorte de escapar à cólera de Goroda e foi sábio em mandá-la matar-se rapidamente. Quando ela morreu, sua nora e todas as consortes de Toranaga ficaram em êxtase. O filho dela tivera que mandar a primeira esposa de volta para casa, em desgraça, por ordem dela, devido a algum descuido imaginário — depois de lhe gerar dois filhos. A garota cometeu seppuku — eu lhe disse, Anjin-san, que as senhoras cometem seppuku cortando a garganta e não o estômago, como os homens? —, mas morreu agradecida, contente por se libertar de uma vida de lágrimas, exatamente como a próxima esposa orava pela morte, já que sua vida foi tornada igualmente miserável pela sogra...

Agora, olhando para a sogra de Midori, o chá escorrendo-lhe pelo queixo, Blackthorne sabia que aquela velha bruxa tinha poder de vida ou morte, divórcio ou degradação sobre Midori, desde que o marido, o cabeça da casa, concordasse. E, decidissem eles o que decidissem, Omi obedeceria. Que terrível, disse-se ele.

Midori tinha toda a graça e juventude que a velha não tinha, o rosto oval, o cabelo abundante. Era mais bonita do que Mariko, mas sem o ardor e a força da outra, flexível como uma samambaia e frágil como uma teia de aranha.

— Onde está a comida? Naturalmente o Anjin-san deve estar com fome — disse a velha.

— Oh, sinto muito — replicou Midori imediatamente. — Vá buscar — disse ela à criada. — Depressa! Sinto muito, Anjin-san!

— Sinto muito, Anjin-san — disse a velha.

— Por favor, não se desculpe — disse Blackthorne a Midori, e imediatamente percebeu que isso fora um erro. As boas maneiras decretavam que ele devia dirigir-se apenas à sogra, particularmente se ela tivesse uma má reputação. — Sinto muito — disse ele. — Eu não fome. Esta noite eu comer devo com o Senhor Toranaga.

— Ah so desu! Ouvimos dizer que o senhor lhe salvou a vida. O senhor deve saber como lhe estamos gratos, nós, todos os seus vassalos! — disse a velha.

— Foi dever. Não fiz nada.

— O senhor fez tudo, Anjin-san. Omi-san e o Senhor Yabu apreciam o seu ato tanto quanto todos nós.

Blackthorne viu a velha olhar de relance para o filho. Gostaria de poder sondá-la, sua cadela velha, pensou ele. Será que você é tão má quanto a outra, Tachibana?

— Mãe — disse Omi, — sou feliz por ter o Anjin-san como amigo.

— Todos nós somos felizes — disse ela.

— Não, sou eu quem se sente feliz — replicou Blackthorne. — Eu afortunado ter amigos como família de Kasigi Omi-san. — Estamos todos mentindo, pensou Blackthorne, mas não sei por que vocês mentem. Eu minto por auto-proteção e porque é hábito. Mas nunca me esqueci... espere um instante. Com toda a honestidade, isso não foi karma? Você não teria feito o que Omi fez? Isso foi há muito tempo, numa vida anterior, neh? Não tem mais sentido agora.

Um grupo de cavaleiros subiu a colina com estrépito, Naga à frente. Desmontou e avançou pelo jardim. Todos os aldeãos pararam de trabalhar e puseram-se de joelhos. Ele lhes fez sinal que continuassem.

— Sinto muito perturbá-lo, Omi-san, mas o Senhor Toranaga me mandou.

— Por favor, não está me incomodando. Por favor, junte-se a nós — disse Omi. Imediatamente Midori cedeu a sua almofada, curvando-se profundamente. — Aceita chá, ou saquê, Naga-sama?

Naga sentou-se.

— Nada, obrigado. Não estou com sede.

Omi insistiu polidamente, passando pelo interminável e necessário ritual, embora fosse óbvio que Naga estava com pressa.

— Como está o Senhor Toranaga?

— Muito bem. Anjin-san, o senhor nos prestou um grande serviço. Sim. Agradeço-lhe pessoalmente.

— Foi dever, Naga-san. Mas fiz pouco. O Senhor Toranaga puxou-me da... puxou-me da terra também.

— Sim. Mas isso foi depois. Agradeço-lhe muitíssimo.

— Naga-san, há algo que eu possa fazer pelo Senhor Toranaga? — perguntou Omi, já que a etiqueta finalmente lhe autorizava ir ao ponto.

— Ele gostaria de vê-lo após a refeição noturna. Haverá uma reunião de todos os oficiais.

— Ficarei honrado.

— Anjin-san, deve vir comigo agora, se lhe aprouver. — Naturalmente. A honra é minha.

Mais mesuras e saudações e depois Blackthorne estava sobre um cavalo, descendo a colina a trote. Quando a falange de samurais atingiu a praça, Naga puxou as rédeas.

— Anjin-san!

— Hai?

— Agradeço-lhe de todo o coração por haver salvado o Senhor Toranaga. Permita-me ser seu amigo... — e algumas palavras que Blackthorne não assimilou.

— Desculpe, não compreendo. "Karite iru"?

— Ah, desculpe, "Karite iru": um homem karite iru coisas a outro, como "dívida". O senhor entende "dívida"?

"Dever" surgiu na cabeça de Blackthorne.

— Ah so desu! Wakarimasu.

— Ótimo. Disse apenas que lhe devo uma vida.

— Era o meu dever, neh?

— Sim. Ainda assim, devo-lhe uma vida.


— Toranaga-sama diz que toda a pólvora de canhão e a munição foram postos de volta no seu navio, Anjin-san, aqui em Anjiro, antes de partir para Yedo. Ele pergunta quanto tempo o senhor levaria para se preparar para zarpar.

— Isso depende do estado do navio, se os homens o querenaram e cuidaram dele, se o mastro foi substituído, e assim por diante. O Senhor Toranaga sabe como se encontra o navio?

— O navio parece em ordem, diz ele, mas não é um marujo, por isso não poderia ter certeza. Não subiu a bordo desde que o navio foi rebocado para a enseada de Yedo, quando deu instruções para que cuidassem dele. Presumindo-se que o navio esteja em condições, neh, ele pergunta quanto tempo o senhor levaria para se preparar para a guerra.

O coração de Blackthorne perdeu uma batida.

— Contra quem combatemos, Mariko-san?

— Ele pergunta contra quem o senhor gostaria de combater.

— Contra o Navio Negro deste ano — respondeu Blackthorne imediatamente, tomando uma decisão repentina, esperando desesperadamente que aquele fosse o momento correto para expor diante de Toranaga o plano que elaborara secretamente ao longo dos dias. Estava especulando com o fato de que ter salvo a vida de Toranaga naquela manhã talvez lhe desse um privilégio especial que o ajudaria a superar os obstáculos.

Mariko foi dominada pela surpresa.

— O quê?

— O Navio Negro. Diga ao Senhor Toranaga que tudo o que ele tem a fazer é dar-me as suas cartas de corso. Farei o resto. Com o meu navio e uma ajudazinha... dividimos a carga, toda a seda e o dinheiro.

Ela riu. Toranaga não.

— Meu amo... diz que isso seria um imperdoável ato de guerra contra uma nação amiga. Os portugueses são essenciais para o Japão.

— Sim, são... no momento. Mas acredito que sejam inimigos dele tanto quanto meus, e seja qual for o serviço que ofereçam, podemos fazer melhor. A um custo menor.

— Ele diz que talvez. Mas não acredita que a China faça comércio com o senhor. Nem os ingleses nem os neerlandeses estão maciçamente na Ásia ainda, e necessitamos das sedas agora e de um fornecimento contínuo.

— Ele tem razão, claro. Mas num ou dois anos isso mudará e ele terá a prova. Por isso, eis outra sugestão. Já estou em guerra com os portugueses. Além do limite de três milhas, as águas são internacionais. Legalmente, com as minhas atuais cartas de corso, posso tomar o navio e, na qualidade de presa, posso levá-lo para qualquer porto e vendê-lo, assim como a carga. Com o meu navio e uma tripulação, será fácil. Em poucas semanas ou meses, eu poderia entregar o Navio Negro e tudo o que contém em Yedo. Eu poderia vendê-lo em Yedo. Metade do valor será o seu... a taxa de porto.

— Ele diz que o que acontece no mar entre o senhor e os seus inimigos é de pouco interesse para ele. O mar pertence a todos. Mas esta terra é nossa, e aqui nossas leis governam e não podem ser infringidas.

— Sim — Blackthorne sabia que seu curso era perigoso, mas sua intuição lhe dizia que o momento era perfeito e que Toranaga morderia a isca. E Mariko. — Foi só uma sugestão. Ele me perguntou contra quem eu gostaria de combater. Por favor, desculpe-me, mas às vezes é bom planejar para qualquer eventualidade. Nisso acredito que os interesses do Senhor Toranaga são os meus.

Mariko traduziu. Toranaga grunhiu e falou brevemente.

— O Senhor Toranaga dá valor a sugestões sensatas, Anjin-san, como a sua idéia sobre a marinha, mas isto é ridículo. Ainda que os interesses de ambos fossem os mesmos, coisa que não são, como o senhor poderia, com nove homens, atacar um vaso tão imenso com quase mil pessoas a bordo?

— Eu não faria isso. Preciso de uma nova tripulação, Mariko-san. Oitenta ou noventa homens, marujos e atiradores treinados. Encontro-os em Nagasaki, em navios portugueses. — Blackthorne fingiu não notar que ela tomou fôlego, nem o modo como o leque parou. — Deve haver alguns franceses, um inglês ou dois se eu tiver sorte, alguns alemães e holandeses, serão renegados na maioria, ou gente que foi levada à força para bordo. Eu necessitaria de um salvo-conduto para Nagasaki, alguma proteção, e um pouco de prata ou ouro. Há sempre marinheiros em frotas inimigas que se engajarão por dinheiro vivo e uma parte do dinheiro da presa.

— Meu amo diz que qualquer comandante que confie em tal imundície num ataque seria louco.

— Concordo — Blackthorne —, mas preciso de uma tripulação para zarpar.

— Ele pergunta se seria possível treinar samurais e nossos marujos para serem atiradores e marinheiros.

— Facilmente. Com tempo. Mas isso poderia levar meses. Com certeza estariam prontos no próximo ano. Não haveria chance de ir contra o Navio Negro este ano.

— O Senhor Toranaga diz: "Não planejo atacar o Navio Negro dos portugueses, neste ano ou no próximo. Não são meus inimigos e não estou em guerra com eles".

— Eu sei. Mas eu estou em guerra com eles. Por favor, desculpe-me. Naturalmente isto é apenas uma discussão, mas precisarei ter alguns homens para zarpar, para estar ao serviço do Senhor Toranaga se ele desejar.

Estavam sentados nos aposentos privados de Toranaga, que davam para o jardim. A fortaleza mal fora tocada pelo terremoto. A noite estava úmida e sem ar, e a fumaça que vinha das espirais de incenso subia preguiçosamente para expulsar os mosquitos.

— Meu amo quer saber — estava dizendo Mariko — se o senhor, caso tivesse o seu navio agora, e os poucos membros da tripulação que chegaram com o senhor, iria a Nagasaki para encontrar esses homens suplementares que solicita.

— Não. Isso seria perigoso demais. Eu estaria tão insuficientemente tripulado, que os portugueses me capturariam. Seria muito melhor conseguir os homens primeiro, trazê-los para águas domésticas, para Yedo, neh? Uma vez que eu esteja com a tripulação completa, o inimigo não tem nada nestes mares com que consiga me tocar.

— Ele não acha que o senhor e noventa homens pudessem tomar o Navio Negro.

— Posso velejar melhor que ele e afundá-lo com o Erasmus. Naturalmente, Mariko-san, sei que tudo isso são conjecturas; mas se eu fosse autorizado a atacar o meu inimigo, no momento em que tivesse uma tripulação, navegaria imediatamente para Nagasaki. Se o Navio Negro já estivesse atracado, eu mostraria as minhas bandeiras de guerra e o bloquearia no mar. Eu o deixaria terminar o comércio e aí, quando o vento estivesse propício para a viagem para casa, fingiria precisar de suprimentos e o deixaria sair do porto. Depois o capturaria a algumas léguas, porque temos mais velocidade e meus canhões fariam o resto. Uma vez que ele tenha arriado suas bandeiras, eu ponho uma tripulação a bordo e trago-o para Yedo. Ele deve ter mais de trezentas, quase quatrocentas toneladas de ouro a bordo.

— Mas por que o capitão do Navio Negro não afundaria o navio uma vez que o senhor o tivesse derrotado, se o derrotar, antes que o senhor possa ir a bordo?

— Geralmente... — Blackthorne ia dizer: "Geralmente a tripulação se amotina se o capitão é um fanático, mas nunca conheci nenhum tão louco. Na maioria das vezes faz-se um acordo com o capitão: poupa-se a vida dele, dá-se-lhe uma pequena parte da carga e transporte até o porto mais próximo. Mas desta vez terei que lidar com Rodrigues e eu o conheço e sei o que ele fará". Mas pensou melhor nisso e decidiu não revelar todo o plano. É melhor deixar os métodos bárbaros aos bárbaros, disse a si mesmo. — Geralmente o navio derrotado capitula, Mariko-san. É uni costume, um dos nossos costumes de guerra no mar, poupar a perda desnecessária de vidas.

— O Senhor Toranaga diz, sinto muito, Anjin-san, que isso é um costume repulsivo. Se ele tivesse navios, não haveria rendição. — Mariko tomou um gole de chá, depois continuou: — E se o navio não estiver no porto?

— Aí eu corro as rotas marítimas para capturá-lo a algumas léguas, em águas internacionais. Será mais fácil pegá-lo pesado de carga e chafurdando, mas mais difícil de trazer para Yedo. Quando se espera que atraque?

— Meu amo não sabe. Talvez dentro de trinta dias, diz ele. O navio virá mais cedo este ano.

Blackthorne sabia que estava muito perto da presa, muito perto. — Então é bloqueá-lo e torná-lo no fim da estação. — Ela traduziu e Blackthorne pensou ver um desapontamento momentâneo perpassar o rosto de Toranaga. Fez uma pausa, como se estivesse considerando alternativas, e disse: — Se estivéssemos na Europa, haveria outro modo. Poderíamos navegar à noite e torná-lo a força. Um ataque de surpresa.

Toranaga apertou com força o punho da espada.

— Ele pergunta se o senhor ousaria atacar os seus inimigos na nossa terra.

Os lábios de Blackthorne estavam secos. — Não. Claro que isto ainda é uma suposição, mas se existisse um estado de guerra entre ele e os portugueses, e o Senhor Toranaga os quisesse prejudicar, seria esse o modo de fazê-lo. Se eu tivesse duzentos ou trezentos combatentes bem disciplinados, uma boa tripulação e o Erasmus, seria fácil emparelhar com o Navio Negro e abordá-lo, arrastá-lo para o largo. Ele poderia escolher a época do ataque de surpresa... se estivéssemos na Europa.

Houve um longo silêncio.

— O Senhor Toranaga diz que isto não é a Europa e que não existe, nem jamais existirá, um estado de guerra entre ele e os portugueses.

— Claro. Um último ponto, Mariko-san: Nagasaki não está sob controle do Senhor Toranaga, está?

— Não, Anjin-san. O Senhor Harima é dono do porto e de toda a região.

— Mas na prática não são os jesuítas que controlam o porto e todo o comércio? — Blackthorne reparou na relutância dela em traduzir, mas pressionou-a mais ainda. — Não é essa a honto, Mariko-san? E o Senhor Harima não é católico? A maior parte de Kyushu não é católica? E por conseguinte os jesuítas, em certa medida, não controlam a ilha toda?

— O cristianismo é uma religião. Os daimios controlam suas terras, Anjin-san — disse Mariko por si mesma.

— Mas fui informado de que Nagasaki na realidade é solo português. Fui informado de que eles agem como se o fosse. O pai do Senhor Harima não vendeu a terra aos jesuítas?

A voz de Mariko excitou-se.

— Sim. Mas o táicum tomou-a de volta. Nenhum estrangeiro tem autorização para possuir terra aqui, agora.

— Mas o táicum não permitiu que seus editos caducassem, de modo que hoje nada acontece lá sem a aprovação dos jesuítas? Os jesuítas não controlam toda a navegação em Nagasaki, e todo o comércio? Não negociam todo o comércio para vocês e não agem como intermediários?

— O senhor está muito bem informado sobre Nagasaki, Anjin-san — disse ela enfaticamente.

— Talvez o Senhor Toranaga devesse tomar do inimigo o controle do porto. Talvez...

— Eles são seus inimigos, Anjin-san, não nossos — disse ela, mordendo a isca finalmente. — Os jesuítas são...

— Nan ja?

Ela se voltou para Toranaga desculpando-se, e explicou o que fora dito entre eles. Quando terminou ele falou severamente, uma reprimenda evidente.

— Hai — disse ela várias vezes, e curvou-se, disciplinada.

— O Senhor Toranaga me lembra — disse ela — de que as minhas opiniões não têm valor e que um intérprete deve apenas interpretar, neh? Por favor, desculpe-me.

Em outra oportunidade Blackthorne se teria desculpado por ter-lhe armado uma cilada. Agora isso não lhe ocorreu. Mas como atingira o alvo, riu e disse:

— Hai, kawaii Tsukkuko-sama! Sim, linda Senhora Intérprete!

Mariko sorriu atravessado, furiosa consigo mesma por ter caído na armadilha, a mente em conflito com suas lealdades divididas.

— Yoi, Anjin-san — disse Toranaga, mais uma vez cordial.

— Mariko-san kawaii desu yori! Tsukku-san anamsu ka nori masen, neh? E Mariko-san é muito mais bonita do que o velho Sr. Tsukku, não é, e também muito mais perfumada?

Toranaga riu.

— Hai.

Mariko corou e serviu chá, um pouco abrandada. Depois Toranaga falou. Seriamente.

— Nosso amo pergunta por que o senhor está fazendo tantas perguntas — ou tantas afirmações — sobre o Senhor Harima e Nagasaki.

— Só para mostrar que o porto de Nagasaki de fato é controlado por estrangeiros. Pelos portugueses. E pela minha lei, tenho o direito legal de atacar o inimigo em qualquer lugar.

— Mas isto não é "qualquer lugar", diz ele. Esta é a Terra dos Deuses e tal ataque é impensável.

— Concordo inteiramente. Mas se o Senhor Harima se tornasse hostil, ou os jesuítas que comandam os portugueses se tornassem hostis, seria esse o modo de atingi-los.

— O Senhor Toranaga diz que nem ele, nem qualquer daimio jamais permitiria um ataque de qualquer nação estrangeira contra outra em solo japonês, ou que elas matassem qualquer um dos nossos. Contra inimigos do imperador, o caso é diferente. Quanto a conseguir combatentes e uma tripulação, seria fácil um homem conseguir qualquer quantidade desde que falasse japonês. Há muitos wakos em Kyushu.

— Wakos, Mariko-san?

— Oh, desculpe. Chamamos os corsários de "wakos", Anjin-san. Costumavam ter muitos covis em torno de Kyushu, mas foram destruídos, na maioria, pelo táicum. Infelizmente ainda se podem encontrar sobreviventes. Os wakos aterrorizaram as costas da China durante séculos. Foi por causa deles que a China fechou seus portos para nós. — Explicou a Toranaga o que fora dito. Ele falou de novo, mais enfaticamente. — Ele diz que nunca permitirá, planejará ou lhe permitirá realizar um ataque por terra, embora fosse correto que o senhor pilhasse o inimigo da sua rainha em alto-mar. Ele repete que isto não é qualquer lugar. Esta é a Terra dos Deuses. O senhor deve ser paciente, conforme ele lhe disse.

— Sim. Pretendo tentar ser paciente à maneira dele. Só quero atingir o inimigo porque eles são o inimigo. Acredito de todo o coração que são inimigos dele também.

— O Senhor Toranaga diz que os portugueses lhe dizem que o senhor é o inimigo dele, e Tsukku-san e o padre-inspetor têm certeza absoluta disso.

— Se eu fosse capaz de capturar o Navio Negro no mar e trazê-lo como presa legal para Yedo, sob a bandeira da Inglaterra, teria autorização para vende-lo e tudo o que contém, em Yedo, de acordo com o nosso costume?

— O Senhor Toranaga diz que isso depende.

— Se a guerra vier, posso ser autorizado a atacar o inimigo, o inimigo do Senhor Toranaga, da melhor maneira que eu puder?

— Ele diz que esse é o dever de um hatamoto. Um hatamoto, naturalmente, está sob as ordens pessoais dele o tempo todo. Meu amo deseja que eu deixe claro que as coisas no Japão nunca serão resolvidas por outro método que não seja o japonês.

— Sim. Compreendo perfeitamente. Com a devida humildade, eu gostaria de assinalar que quanto mais eu souber sobre os problemas dele, mais eu poderei ajudar.

— Ele diz que o dever de um hatamoto é sempre ajudar seu senhor, Anjin-san. Diz que devo responder a quaisquer perguntas razoáveis que o senhor queira me fazer mais tarde.

— Obrigado. Posso perguntar-lhe se ele gostaria de ter uma marinha? Conforme sugeri na galera?

— Ele já disse que gostaria de ter uma marinha, uma marinha moderna, Anjin-san, manejada pelos seus próprios homens. Que daimio não gostaria?

— Então consideremos isto: se eu tivesse sorte o bastante para tomar o navio inimigo, eu o levaria a Yedo para ser reparado e para avaliar a presa. Depois baldearia a minha metade do butim para o Erasmus e venderia o Navio Negro aos portugueses, ou o ofereceria a Toranaga-sama como presente, ou o queimaria, o que ele desejasse. Aí eu voltaria para casa. Dentro de um ano retornaria e traria quatro belonaves, como um presente da rainha da Inglaterra ao Senhor Toranaga.

— Ele pergunta onde estaria o seu lucro nisso.

— A honto é que sobraria muito para mim, Mariko-san, depois que os navios fossem pagos, dado por Sua Majestade. Depois eu gostaria de levar um dos conselheiros dele mais dignos de confiança, como embaixador junto à minha rainha. Um tratado de amizade entre os nossos países poderia ser do interesse dele.

— O Senhor Toranaga diz que isso seria muita generosidade da sua rainha. Ele pergunta, porém, no caso de tal coisa miraculosamente acontecer e o senhor voltar com os novos navios, quem treinaria os marinheiros, os samurais e os capitães para equipá-los.

— Inicialmente eu mesmo, se isso lhe aprouvesse. Eu ficaria honrado, depois outros poderiam se seguir.

— Ele pergunta o que é "inicialmente".

— Dois anos.

Toranaga sorriu fugazmente.

— Nosso amo diz que dois anos não seria "inicialmente" suficiente. Entretanto, acrescenta, é tudo uma ilusão. Ele não está em guerra com os portugueses nem com o Senhor Hirama de Nagasaki. Repete que o que o senhor fizer fora de águas japonesas, no seu próprio navio, com a sua própria tripulação, é o seu karma. — Mariko parecia perturbada. — Fora das nossas águas o senhor é estrangeiro, diz ele. Mas aqui é samurai.

— Sim. Sei da honra que ele me concedeu. Posso perguntar como um samurai consegue dinheiro emprestado, Mariko-san?

— De um prestamista, Anjin-san. Onde mais? De um imundo mercador prestamista. — Traduziu para Toranaga. — Por que o senhor precisaria de dinheiro?

— Existem prestamistas em Yedo?

— Oh, sim. Os prestamistas estão por toda parte, neh? Não ocorre o mesmo no seu país? Pergunte à sua consorte, Anjin-san, talvez ela possa ajudá-lo. Isso faz parte do dever dela.

— A senhora disse que partimos para Yedo amanhã?

— Sim, amanhã.

— Infelizmente Fujiko-san não será capaz de viajar amanhã. Mariko conversou com Toranaga.

— O Senhor Toranaga diz que a mandará de galera, quando o navio partir. Ele pergunta por que o senhor precisa de dinheiro emprestado.

— Terei que arrumar uma nova tripulação, Mariko-san, para zarpar a qualquer parte, a fim de servir o Senhor Toranaga, caso ele o deseje. Isso é permitido?

— Uma tripulação de Nagasaki?

— Sim.

— Ele lhe dará uma resposta quando o senhor chegar a Yedo.

— Domo, Toranaga-sama. Mariko-san, quando eu chegar a Yedo, para onde vou? Haverá alguém para me orientar?

— Oh, o senhor não deve jamais se preocupar com coisas assim, Anjin-san. É um hatamoto do Senhor Toranaga. Houve uma batida na porta interna.

— Entre.

Naga abriu a shoji e curvou-se.

— Desculpe-me, Pai, mas o senhor queria ser avisado do momento cm que todos os oficiais estivessem presentes.

— Obrigado, estarei lá dentro em pouco. — Toranaga pensou um instante, depois fez sinal a Blackthorne, amistosamente. — Anjin-san, vá com Naga-san. Ele lhe mostrará o seu lugar. Obrigado pelas suas opiniões.

— Sim, senhor. Obrigado por ter escutado. Obrigado pelas suas palavras. Sim. Tento arduamente ser paciente e perfeito.

— Obrigado, Anjin-san. — Toranaga observou-o se curvar e se afastar. Quando ficaram a sós, voltou-se para Mariko: — Bem, o que pensa?

— Duas coisas, senhor. Primeiro, o ódio dele pelos jesuítas é incomensurável, superando até a aversão que tem pelos portugueses, portanto ele é um flagelo que o senhor pode usar contra qualquer um deles ou contra ambos, se o desejar. Sabemos que ele é corajoso, portanto rechaçaria arrojadamente qualquer ataque vindo do mar. Segundo, o objetivo dele ainda é dinheiro. Em sua defesa, pelo que aprendi, devo dizer que o dinheiro é o único meio real de que os bárbaros dispõem para tornar duradouro o poder. Compram terras e posição — até a rainha é uma mercadora, que "vende" terra aos seus lordes, e compra navios e terras, provavelmente. Eles não são muito diferentes de nós, senhor, exceto nisso. E também no fato de não compreenderem o poder, nem que a guerra é a vida e a vida é a morte.

— Os jesuítas são meus inimigos?

— Não acredito nisso.

— Os portugueses?

— Acredito que estejam interessados apenas em lucros, terra e a difusão da palavra de Deus.

— Os cristãos são meus inimigos?

— Não, senhor. Embora alguns dos seus inimigos possam ser cristãos — católicos ou protestantes.

— Ah, acha que o Anjin-san é meu inimigo?

— Não, senhor. Não. Acredito que ele o honra e, com o tempo, se tornará um vassalo autêntico.

— Quanto aos nossos cristãos? Quem é inimigo?

— Os senhores Harima, Kiyama, Onoshi, e qualquer outro samurai que se volte contra o senhor.

Toranaga riu.

— Sim, mas os padres os controlam, conforme Anjin-san insinua?

— Não creio.

— Esses três vão se colocar contra mim?

— Não sei, senhor. No passado foram tanto hostis quanto amistosos em relação ao senhor. Mas se se puserem do lado de Ishido, será muito mau.

— Concordo. Sim. Você é uma conselheira de valor. É difícil para você, sendo cristã católica, ser amiga de um inimigo, ouvir idéias inimigas.

— Sim, senhor.

— Ele a pegou numa armadilha, neh?

— Sim. Mas na verdade ele tinha o direito. Eu não estava fazendo o que o senhor ordenara. Estava me colocando entre os pensamentos dele e o senhor. Por favor, aceite as minhas desculpas.

— Continuará a ser difícil. Talvez até mais.

— Sim, senhor. Mas é melhor conhecer os dois lados da moeda. Muito do que ele disse comprovou-se verdadeiro. Por exemplo, sobre o mundo sendo dividido por espanhóis e portugueses, sobre os padres contrabandeando armas, por mais impossível de crer que seja. Não deve nunca recear pela minha lealdade, senhor. Por mais grave que se torne a situação, sempre cumprirei o meu dever para com o senhor.

— Obrigado. Bem, foi muito interessante o que o Anjin-san disse, neh? Interessante, mas absurdo. Sim, obrigado, Mariko-san, você é uma conselheira valiosa. Devo ordenar que você se divorcie de Buntaro?

— Senhor?

— Bem?

Oh, ser livre, cantou o espírito dela. Oh, minha Nossa Senhora, ser livre!

Lembre-se de quem você é, Mariko, lembre-se do que é. E lembre-se de que "amor" é uma palavra bárbara.

Toranaga a observava em meio ao grande silêncio. Mosquitos vindos de fora vagavam até as espirais de incenso para disparar imediatamente para a segurança. Sim, ponderou ele, ela é um falcão. Mas contra que presa eu a lanço?

— Não, senhor — disse Mariko, finalmente. — Obrigada, senhor, mas não.

— O Anjin-san é um homem estranho, neh? Tem a cabeça cheia de sonhos. Ridículo considerar a idéia de atacar os nossos amigos portugueses, ou o Navio Negro deles. Absurdo acreditar no que ele fala sobre quatro navios, ou vinte.

Mariko hesitou.

— Se ele diz que uma marinha é possível, senhor, então acredito que seja.

— Não concordo — disse Toranaga enfaticamente. — Mas você tem razão em que ele serve de equilíbrio contra os outros, ele e o seu navio de combate. Que curioso — mas que esclarecedor! É como disse Omi no momento necessitamos dos bárbaros, para aprender com eles. E ainda há muito o que aprender, particularmente com ele, neh?

— Sim.

— É tempo de abrir o império, Mariko-san. Ishido o fechará tão apertado quanto uma ostra. Se eu fosse presidente dos regentes novamente, faria tratados com qualquer nação, desde que amistosa. Enviaria homens para aprender com as outras nações, sim, e enviaria embaixadores. A rainha deste homem seria um bom começo. Para uma rainha talvez eu devesse enviar uma embaixadora, se ela fosse inteligente o bastante.

— Ela teria que ser muito inteligente e muito forte, senhor.

— Sim. Seria uma viagem perigosa.

— Todas as viagens são perigosas, senhor — disse Mariko.

— Sim. — Novamente Toranaga se desviou sem avisar.

— Se o Anjin-san partisse com o seu navio carregado será que retornaria? Ele mesmo?

Após um longo tempo, ela disse:

— Não sei.

Toranaga resolveu não pressioná-la agora.

— Obrigado, Mariko-san — disse numa dispensa cordial. — Quero que esteja presente à reunião, para traduzir ao Anjin-san o que eu disser.

— Tudo, senhor?

— Sim. E esta noite, quando for à casa de chá para comprar o contrato de Kiku, leve o Anjin-san com você. Diga à consorte dele que tome as providências. Ele necessita de uma recompensa, neh?

— Hai.

Quando ela se encontrava junto à shoji, Toranaga disse:

— Uma vez que a questão entre mim e Ishido esteja resolvida, ordenarei que você se divorcie.

A mão dela se crispou sobre a tela. Assentiu ligeiramente em agradecimento. Mas não olhou para trás. A porta fechou-se. Toranaga observou a fumaça um instante, depois se levantou, encaminhou-se para o jardim, até a latrina, e se acocorou. Quando terminou e usou o papel, ouviu um criado puxar o recipiente de sob o buraco para substituí-lo por outro limpo. Os mosquitos zumbiam e ele os afastou distraidamente. Estava pensando em falcões e gaviões, sabendo que até os maiores falcões cometem erros, como Ishido, e Kiri, e Mariko, e Omi, e até o Anjin-san.


Os cento e cinqüenta oficiais estavam alinhados em fileiras, Yabu, Omi e Buntaro à frente. Mariko estava ajoelhada perto de Blackthorne, ao lado. Toranaga marchou sala adentro com a sua de ouro, guarda pessoal, e sentou-se sobre a almofada solitária, encarando-os.

Agradeceu-lhes a mesura, depois informou-os resumidamente sobre a essência do despacho e expôs diante deles, pela primeira vez publicamente, seu plano de batalha definitivo. Novamente omitiu a parte que se relacionava com as secretas e cuidadosamente planejadas insurreições, e também o fato de que o ataque tomaria a estrada nordeste e não a estrada costeira de sudeste. E, para aclamação geral — pois todos os seus guerreiros ficaram contentes de que finalmente a incerteza chegasse ao fim —, disse-lhes que quando as chuvas cessassem, ele pronunciaria as palavras em código "Céu Carmesim", o que os lançaria ao ataque. — Nesse meio tempo, espero que Ishido ilegalmente reúna um novo conselho de regentes. Espero ser falsamente impedido. Espero que a guerra seja declarada contra mim, contra a lei. — Inclinou-se para a frente, o punho esquerdo caracteristicamente apoiado na coxa, o outro apertado à espada.

— Ouçam. Eu apóio o testamento do táicum e reconheço meu sobrinho Yaemon como kwampaku e herdeiro do táicum. Não desejo outras honras. Mas se for atacado por traidores, devo me defender. Se traidores iludirem Sua Alteza Imperial e tentarem assumir o poder, é meu dever defender o imperador e banir o mal. Neh?

Um troar de aprovação saudou o comentário. Gritos de batalha de "Kasigi" e "Toranaga" se derramaram pela sala, para ecoarem por toda a fortaleza.

— O regimento de ataque será preparado para embarcar dentro de cinco dias em galeras com destino a Yedo, Toda Buntaro-san comandando, Kasigi Omi-san como segundo em comando. O Senhor Kasigi Yabu, por favor, mobilizará Izu e ordenará que seis mil homens se postem nas passagens da fronteira, para o caso de o traidor Ikawa Jikkyu atacar o sul para cortar as nossas linhas de comunicação. Quando as chuvas cessarem, Ishido atacará o Kwanto...

Omi, Yabu e Buntaro silenciosamente concordaram com a sabedoria de Toranaga em omitir a informação sobre a decisão daquela tarde de deslanchar o ataque na estação chuvosa, imediatamente.

Isso causará um impacto, disse-se Omi, os intestinos se contorcendo ante o pensamento de combater sob a chuva através das montanhas de Shinano.

— Nossos atiradores romperão caminho à força — dissera Yabu entusiasticamente àquela tarde.

— Sim — concordara Omi, não confiando no plano, mas não tendo alternativa para oferecer. É loucura, disse a si mesmo, embora estivesse encantado com a promoção a segundo em comando. Não compreendo como Toranaga pode conceber que haja qualquer chance de êxito na estrada nordeste.

Não há chance alguma, disse-se ele novamente, e semicerrou os ouvidos à estimulante exortação de Toranaga, a fim de se permitir concentrar-se mais uma vez no problema da sua vingança. Certamente o ataque em Shinano dará a você dezenas de oportunidades para manipular Yabu na linha de frente, sem risco para você mesmo. Guerra, qualquer guerra lhe será vantajosa, desde que não seja perdida...

Então ouviu Toranaga dizer:

— Hoje quase fui morto. Hoje o Anjin-san arrancou-me da terra. Esta é a segunda vez, talvez até a terceira, que ele me salva a vida. Minha vida não é nada em relação ao futuro do meu clã, e quem pode dizer se eu teria vivido ou morrido sem a ajuda dele? Mas, embora seja bushido que vassalos nunca devem esperar recompensa por qualquer serviço, é dever de um suserano conceder favores de tempos em tempos.

Entre a aclamação geral, Toranaga disse:

— Anjin-san, sente-se aqui! Mariko-san, você também.

Ciumentamente Omi observou o homem altaneiro se erguer e se ajoelhar no ponto que Toranaga indicara, ao seu lado, e não houve um homem na sala que não desejasse ter tido ele próprio a boa fortuna de fazer o que o bárbaro fizera.

— Ao Anjin-san é concedido um feudo próximo à aldeia pesqueira de Yokohama, ao sul de Yedo, no valor de dois mil kokus anuais, e direito de recrutar duzentos assistentes samurais, direitos absolutos de samurai e hatamoto da casa de Yoshi Toranaga-noh-Chikitada-Minowara. Além disso, receberá dez cavalos, vinte quimonos, junto com equipamento de batalha completo para os seus vassalos. E o posto de almirante-chefe e piloto do Kwanto. — Toranaga esperou até que Mariko tivesse traduzido, depois chamou: — Naga-san!

Obedientemente Naga trouxe a Toranaga o pacote embrulhado em seda. Toranaga atirou longe o envoltório. Havia duas espadas, uma curta, a outra, a espada mortífera.

— Notando que a terra engolira as minhas espadas e que eu estava desarmado, o Anjin-san desceu novamente ao abismo para buscar as suas e me dar. Anjin-san, dou-lhe estas em troca. Foram feitas pelo mestre artesão, Yori-ya. Lembre-se, a espada é a alma do samurai. Se ele a esquece, ou a perde, nunca será perdoado.

Para aclamação ainda maior, e inveja individual igualmente maior, Blackthorne pegou as espadas, curvou-se corretamente, e colocou-as no sash, curvando-se novamente em seguida.

— Obrigado, Toranaga-sama. Concede-me muita honra. Obrigado.

Começou a se afastar, mas Toranaga mandou-o ficar.

— Não, sente-se aqui, ao meu lado, Anjin-san. — Toranaga olhou de novo para o rosto militante e fanático dos seus oficiais.

Imbecis! Tinha ele vontade de gritar. Não compreendem que a guerra, tanto agora como depois das chuvas, só seria desastrosa? Qualquer guerra com Ishido-Ochiba-Yaemon e seus atuais aliados terminaria em massacre de todos os meus aliados, todos vocês, e aniquilação de mim e de toda a minha linhagem? Não compreendem que não tenho chance senão aguardando, e esperando que Ishido se estrangule?

Mas, em vez disso, incitou-os ainda mais, pois era essencial desconcertar o inimigo.

— Ouçam, samurais: logo serão capazes de provar o seu valor, homem a homem, como os nossos antepassados fizeram. Destruirei Ishido e todos os seus traidores, e o primeiro será Ikawa Jikkyu. Por isso dôo todas as terras dele, as duas províncias de Suruga e Totomi, no valor de trezentos mil kokus, ao meu fiel vassalo Kasigi Yabu, e, em Izu, confirmo-o, e à sua descendência, como governantes.

Uma estrondosa aclamação. Yabu ficou rubro de júbilo.

Omi martelava o chão, gritando de modo igualmente exultante. Agora a sua presa era ilimitada, pois por costume o herdeiro de Yabu herdaria todas as suas terras.

Então seus olhos se fixaram no Anjin-san, que aplaudia vigorosamente. Por que não deixar o Anjin-san fazê-lo por você, perguntou-se ele, e riu alto ante o pensamento imbecil. Buntaro inclinou-se para ele e deu-lhe um tapinha no ombro, amavelmente interpretando mal a risada como felicidade por Yabu.

— Logo você terá o feudo que merece, neh? — gritou por sobre o tumulto. — Você também merece reconhecimento. Suas idéias e conselhos são valiosos.

— Obrigado, Buntaro-san.

— Não se preocupe. Podemos atravessar quaisquer montanhas.

— Sim. — Buntaro era um feroz general de batalha e Omi sabia que estavam bem combinados: Omi, o audacioso estrategista, Buntaro, o destemido líder de ataque.

Se há alguém que pode nos fazer atravessar as montanhas, é ele.

Houve uma outra explosão de alegria quando Toranaga ordenou que trouxessem saquê, encerrando a reunião formal.

Omi tomou seu saquê e observou Blackthorne esvaziar outro cálice, seu quimono em ordem, as espadas corretas, Mariko ainda falando. Você mudou muitíssimo, Anjin-san, desde aquele primeiro dia, pensou ele satisfeito. Ainda tem muitas das suas idéias estranhas, mas está quase se tornando civilizado...

— O que há, Omi-san?

— Nada... nada, Buntaro-san...

— Você está com o ar que teria se um eta lhe tivesse esfregado as nádegas no rosto!

— Não é nada disso... em absoluto! Iiiiiih, é exatamente o oposto. Tive o começo de uma idéia. Beba! Ei, Flor de Pêssego, traga mais saquê, o meu Senhor Buntaro está com o cálice vazio!


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