CAPÍTULO 2


- O daimio, Kasigi Yabu, senhor de Izu, quer saber quem é você, de onde vem, como chegou aqui e que atos de pirataria cometeu - disse o Padre Sebastio.

- Continuo lhe dizendo que não somos piratas. - A manhã estava clara e quente, e Blackthorne estava ajoelhado diante da plataforma na praça da aldeia, a cabeça ainda doendo por causa da pancada. Conserve a calma e ponha o cérebro a funcionar, disse a si mesmo. Você está em julgamento pela vida de todos.

Você é o porta-voz e isso é tudo. O jesuíta é hostil, é o único intérprete disponível, e você não tem meios de saber o que ele está dizendo, só pode ter certeza de que ele não vai ajudá-lo... "Ponha. os miolos a trabalhar, rapaz", quase podia ouvir o velho Alban Caradoc dizendo. "É quando a tempestade está pior e o mar mais terrível que você precisa dos seus miolos especiais. É isso que o mantém vivo e mantém vivo o seu navio - se você é o piloto. Ponha os miolos a funcionar e tome seu suco todos os dias... "

O suco de hoje é bile, pensou Blackthorne de cara fechada.

Por que ouço a voz de Alban com tanta clareza?

- Primeiro diga ao daimio que estamos em guerra, que somos inimigos - disse. - Diga-lhe que a Inglaterra e a Neerlândia estão em guerra com a Espanha e Portugal.

- Previno-o de novo para simplesmente falar e não torcer os fatos. A Neerlândia, ou Holanda, Zelândia, Províncias Unidas, ou seja, como for que vocês, imundos rebeldes holandeses, a chamem, é uma pequena província revoltosa do império espanhol. Você é o líder de traidores que se encontram em estado de insurreição contra o rei legítimo.

- A Inglaterra está em guerra e a Neerlândia está sep... - Blackthorne não continuou porque o padre não estava mais ouvindo, e sim traduzindo.

O daimio estava sobre a plataforma, baixo, atarracado e dominador. Ajoelhara-se confortavelmente, os calcanhares cuidadosamente dobrados sob o corpo, ladeado por quatro lugar-tenentes, um dos quais era Kasigi Omi, seu sobrinho e vassalo. Todos usavam quimonos de seda e, sobre ele, sobrecotas ornadas, com cintos largos apertando-os até a altura do peito e imensos ombros engomados. E as inevitáveis espadas.

Mura estava ajoelhado sobre o pó. Era o único aldeão presente, e os únicos outros espectadores eram os cinqüenta samurais que tinham vindo com o daimio. Sentavam-se em filas disciplinadas, silenciosas. A tripulação do navio estava atrás de Blackthorne e, como ele, todos de joelhos, com guardas por perto. Tiveram que carregar o capitão-mor consigo quando foram mandados para ali, embora ele ainda estivesse passando pessimamente. Autorizaram-no a permanecer deitado, ainda em semi-coma. Blackthorne e todos os outros se curvaram quando chegaram diante do daimio, mas isso não fora suficiente. Os samurais os fizeram ajoelhar-se à força e empurraram-lhes a cabeça até o pó, à maneira dos camponeses. Ele tentara resistir e gritara ao padre que explicasse que o costume deles não era aquele, que ele era o líder e um emissário de seu país e devia ser tratado como tal. Mas o cabo de uma lança o fizera cambalear. Seus homens se agruparam para um ataque impulsivo, mas ele lhes gritara que parassem e ajoelhassem.

Felizmente obedeceram. O daimio proferiu alguma coisa gutural e o padre traduziu isso como uma advertência para que ele dissesse a verdade, e a dissesse rapidamente. Blackthorne pedira uma cadeira, mas o padre disse que os japoneses não usavam cadeiras e não havia nenhuma no Japão.

Blackthorne estava concentrado no padre enquanto este falava com o daimio, procurando um indício, uma passagem entre os recifes.

Há arrogância e crueldade no rosto do daimio, pensou. Aposto como é um verdadeiro bastardo. O japonês do padre não é fluente. Ah, viu isso? Irritação e impaciência. O daimio pediu outra palavra, uma palavra mais clara? Acho que sim. Por que o jesuíta está usando vestes alaranjadas? O daimio é católico?

Olhe, o jesuíta é muito respeitoso e está suando um bocado. Aposto que o daimio não é católico. Preste atenção! Talvez ele não seja católico. Se for, não lhe dará acolhida alguma. Como será que você pode usar esse bastardo miserável? Como falar diretamente com ele? Como é que você vai lidar com o padre? Como desacreditá-lo? Qual é a isca? Vamos, pense! Você sabe o suficiente sobre jesuítas...

- O daimio diz para você se apressar e responder às perguntas dele.

- Sim. Claro, desculpe. Meu nome é John Blackthorne. Sou inglês, piloto-mor de uma frota neerlandesa. Nosso porto de partida é Amsterdã.

- Frota? Que frota! Está mentindo. Não há frota alguma. Por que um inglês é piloto de um navio holandês?

- Tudo na sua hora. Primeiro, por favor, traduza o que eu disse. Vamos!

Blackthorne decidiu jogar. Sua voz endureceu abruptamente e rompeu o calor da manhã.

- Que vá! Primeiro traduza o que eu disse, espanhol! Agora!

O padre corou.

- Sou português! Já lhe disse. Responda à pergunta.

- Estou aqui para falar com o daimio, não com você. Traduza o que eu disse. seu lixo sem mãe! - Blackthorne viu o padre avermelhar-se ainda mais e sentiu que isso não passara despercebido ao daimio. Seja prudente, preveniu a si mesmo. Esse bastardo amarelo vai cortá-lo em pedaços mais depressa do que um cardume de tubarões se você passar da conta. - Diga ao senhor daimio! - Blackthorne fez deliberadamente uma profunda reverência para a plataforma e sentiu um suor gelado começar a porejar enquanto se comprometia irreversivelmente com o rumo da sua ação.

O Padre Sebastio sabia que seu treinamento deveria fazê-lo impermeável aos insultos do pirata e ao plano evidente de desacreditá-lo frente ao daimio. Mas pela primeira vez isso não ocorreu e ele se sentiu perdido. Quando o mensageiro de Mura levara a notícia do navio à sua missão na província vizinha, ele ficara agitado com as implicações. Não pode ser holandês nem inglês! - pensara. Nunca houvera um navio herético no Pacífico, com exceção dos do arquidiabólico corsário Drake, e nunca ali na Ásia. As rotas eram secretas e guardadas. Ele se preparara imediatamente para partir e enviara uma mensagem urgente, por pombo-correio, a seu superior em Osaka, desejando ter podido consultá-lo primeiro, sabendo que era jovem, quase inexperiente o novo no Japão, há uns escassos dois anos ali, ainda não ordenado e sem competência para lidar com essa emergência. Correra para Anjiro, esperando e rezando para que a notícia não fosse verdadeira. Mas o navio era holandês e o piloto, inglês, e toda a sua repugnância pelas satânicas heresias de Lutero, Calvino, Henrique VIII e a arquiinimiga Elizabeth, filha bastarda deste último, o dominara completamente. E ainda lhe anuviara o discernimento.

- Padre, traduza o que o pirata disse - ouviu o daimio dizer.

Ó bendita mãe de Deus, ajude-me a fazer a sua vontade. Ajude-me a ser forte diante do daimio, dê-me o dom das línguas e deixe-me convertê-lo à verdadeira fé.

O Padre Sebastio reuniu toda a habilidade que tinha e começou a falar com mais confiança.

Blackthorne ouviu com cuidado, tentando distinguir as palavras e os significados. O padre falou "Inglaterra", "Blackthorne", o apontou para o navio, lindamente ancorado na baía.

- Como chegou aqui? - perguntou o Padre Sebastio.

- Pelo estreito de Magalhães. Estamos a cento e trinta e seis dias de lá. Diga ao daimio...

- Está mentindo. O estreito de Magalhães é secreto. Você veio pela África e índia. Você terá que dizer a verdade de qualquer modo. Usam tortura aqui.

- O estreito era secreto! Um português nos vendeu um portulano. Um dos seus vendeu vocês por um pouco do ouro de Judas. Vocês são todos estrume! Agora os navios de guerra ingleses, e holandeses, conhecem o caminho através do Pacífico. Há uma esquadra - vinte navios de linha ingleses, navios de guerra com sessenta canhões - atacando Manila bem neste instante. O seu império está acabado!

- Está mentindo!

Sim, pensou Blackthorne, sabendo que não havia meio de provar a mentira exceto indo até Manila.

- Essa esquadra vai devastar as suas rotas marítimas e aniquilar as suas colônias. Há outra esquadra holandesa com chegada aqui prevista para qualquer semana. O porco luso-espanhol está de volta ao chiqueiro, e o pênis do seu geral jesuíta está no ânus dele, que é o lugar onde deve estar! - Voltou-se e curvou-se para o daimio.

- Deus o amaldiçoe e à sua boca imunda!

- Ano mono wa nani o moshite oru! - vociferou o daimio com impaciência.

O sacerdote falou mais rápida e asperamente, e citou "Magalhães" e "Manila", mas Blackthorne achou que o daimio e seus lugar-tenentes não pareciam compreender com muita clareza.

Yabu estava se cansando daquele julgamento. Olhou para a enseada, para o navio que o obcecava desde que recebera a mensagem secreta de Omi, e perguntou novamente a si mesmo se aquele era o presente dos deuses que esperava.

- Já inspecionou a carga, Omi-san? - perguntara assim que chegara naquela manhã, respingado de lama e muito cansado.

- Não, senhor. Achei melhor lacrar o navio até que o senhor viesse pessoalmente, mas os porões estão cheios de engradados e fardos. Espero ter agido corretamente. Aqui estão todas as chaves. Confisquei-as.

- Bom. - Yabu viera de Yedo, capital de Toranaga, a mais de cem milhas de distância, com a urgência de um mensageiro, furtivamente, e com grande risco pessoal, e era vital que regressasse tão rapidamente quanto viera. A jornada levara quase dois dias por estradas enlameadas e riachos transbordantes devido à primavera, parcialmente a cavalo e parcialmente de palanquim.

- Irei até o navio imediatamente.

- Deveria ver os estrangeiros, senhor - dissera Omi com uma risada. - São inacreditáveis. A maioria tem olhos azuis, como gatos siameses, e cabelo dourado. Mas a melhor notícia é que eles são piratas...

Omi lhe falara sobre o padre, sobre o que este relatara a respeito daqueles corsários, o que o pirata dissera e o que acontecera; a animação de Yabu triplicara. Dominara a impaciência para ir a bordo e quebrar os lacres. Em vez disso tomara um banho, trocara a roupa e ordenara que os bárbaros fossem trazidos à sua presença.

- Você, padre - disse com voz cortante, praticamente incapaz de compreender o mau japonês do sacerdote. - Por que ele está tão furioso com você?

- Ele é mau. Pirata. Adora o Diabo.

Yabu inclinou-se para Omi, o homem à sua esquerda.

- Você entende o que ele está dizendo, sobrinho? Está mentindo? O que acha?

- Não sei, senhor. Quem sabe no que é que os bárbaros realmente acreditam? Imagino que o padre acha que o pirata é adorador do Diabo. Claro que isso tudo é um absurdo.

Yabu deu as costas ao padre, detestando-o. Gostaria de poder crucificá-lo hoje e apagar o cristianismo dos seus domínios de uma vez por todas. Mas não podia. Embora ele e todos os outros daimios tivessem poder total em seus respectivos territórios, ainda estavam sujeitos à autoridade superior do conselho de regentes, a junta militar dirigente à qual o taicum legara legalmente o poder durante a minoridade de seu filho, e sujeitos também aos editos que o taicum emitira em vida, que ainda estavam todos legalmente em vigor. Um desses, promulgado anos antes, tratava dos bárbaros portugueses e ordenava que fossem todos protegidos e que, dentro dos limites do bom senso, sua religião devia ser tolerada e seus padres autorizados, dentro dos limites do bom senso, a fazer prosélitos e a converter.

- Você, padre! O que mais o pirata disse? O que estava lhe dizendo? Vamos! Perdeu a língua?

- Pirata diz coisas ruins. Ruins. Sobre mais velejares de guerra piratas, muitos.

- O que quer dizer com "velejares de guerra"?

- Desculpe, senhor, não entendo.

- Velejares de guerra não faz sentido, neh?

- Ah! Pirata diz outros guerra barcos estar em Manila, nas Filipinas.

- Omi-san, você compreende o que ele está dizendo?

- Não, senhor. A pronúncia é assustadora, é quase uma linguagem desarticulada. Está dizendo que há mais navios piratas a leste do Japão?

- Você, padre! Esses navios piratas estão ao largo da nossa costa? A leste? Hein?

- Sim, senhor. Mas acho que ele mente. Falou em Manila.

- Não compreendo. Onde é Manila?

- A leste. Uma viagem de muitos dias.

- Se aparecerem navios piratas aqui, daremos a eles uma agradável acolhida, seja Manila onde for.

- Por favor, desculpe-me, não o compreendo.

- Não importa - disse Yabu, com a paciência esgotada.

Já decidira que os estrangeiros deviam morrer e antecipava com prazer essa perspectiva. Obviamente aqueles homens não se incluíam no edito do taicum, que especificava "bárbaros portugueses", e de qualquer modo eram piratas. Pelo que podia se lembrar, sempre odiara os bárbaros, seu mau cheiro, sua imundície e seus nojentos hábitos de comer carne, sua religião estúpida, sua arrogância, e suas maneiras detestáveis. Mais do que isso, ele se sentia humilhado, como todos os daimios, pela opressão deles sobre a Terra dos deuses. Fazia séculos que existia um estado de guerra entre China e Japão. A China não permitia o comércio. A seda chinesa era vital para tornar suportável o longo, quente e úmido verão japonês. Durante gerações apenas uma quantidade mínima de seda contrabandeada escorregara pelas malhas da fiscalização, para ser encontrada no Japão a um custo enorme. Então, sessenta e tantos anos atrás, os primeiros bárbaros chegaram. O imperador chinês em Pequim deu-lhes uma minúscula base permanente em Macau, no sul da China, e concordou em comerciar seda por prata. O Japão tinha prata em abundância. Logo o comércio estava florescendo. Ambos os países prosperaram. Os intermediários, os portugueses, enriqueciam, e seus padres - jesuítas na maioria - logo se tornaram vitais para o comércio. Só eles haviam tentado aprender japonês e chinês, e por isso podiam agir como negociadores e intérpretes. À medida que o comércio foi crescendo, os padres foram se tornando mais essenciais. Agora o comércio anual era imenso e tocava a vida de cada samurai. De modo que os padres tinham que ser tolerados, assim como a difusão da sua religião, ou os bárbaros levantariam âncoras e o comércio cessaria.

Havia atualmente uma grande quantidade de daimios cristãos importantes, e muitas centenas de milhares de convertidos, na maioria em Kyushu, a ilha meridional que ficava mais próxima da China e abrigava o porto português de Nagasaki. Sim, pensou Yabu, temos que tolerar os padres e os portugueses, mas não estes bárbaros, os novos, os inacreditáveis homens de cabelo dourado e olhos azuis. Sentiu-se invadido pela animação. Agora, finalmente, poderia satisfazer a curiosidade de saber como um bárbaro morreria quando submetido à tortura. E tinha onze homens, onze testes diferentes, para experimentar. Nunca se interrogara por que a agonia dos outros o agradava. Apenas sabia que agradava e que por isso era algo a procurar e a gozar.

- Este navio, estrangeiro, não português e pirata - disse Yabu -, está confiscado com tudo o que contém. Todos os piratas estão condenados à... - Ficou boquiaberto quando viu o chefe dos piratas subitamente saltar para cima do padre, arrancar-lhe o crucifixo de madeira do cinto, quebrá-lo em pedaços e atirá-los no chão, depois gritar bem alto alguma coisa. Quando os guardas se lançaram para ele, espadas em riste, o pirata imediatamente caiu de joelhos e fez-lhe uma profunda reverência.

- Parem! Não o matem! - Yabu estava atônito de que alguém pudesse ter a impertinência de agir com tal falta de educação na sua frente. - Esses bárbaros são absolutamente inacreditáveis!

- Sim - disse Omi, a mente fervilhando com as questões que aquela atitude implicava.

O padre ainda estava ajoelhado, contemplando fixamente os pedaços da cruz. Todos viram-no estender a mão, trêmula, e recolher o lenho violado. Disse alguma coisa ao pirata em voz baixa, quase gentil. Seus olhos se fecharam, as mãos se postaram e os lábios começaram a mover-se lentamente. O chefe pirata olhava os japoneses imóvel, os olhos azul-pálidos sem piscar, felinos, diante da sua tripulação.

- Omi-san - disse Yabu -, primeiro quero ir até o navio, depois começaremos. - Sua voz se turvou quando ele contemplou o prazer que prometera a si mesmo. - Quero começar com aquele de cabelo vermelho ali na ponta, o homem baixinho.

Omi inclinou-se mais, para chegar mais perto, e baixou a voz excitada.

- Por favor, desculpe-me, mas isso nunca aconteceu antes, senhor. Desde que os bárbaros portugueses chegaram aqui.

O crucifixo não é o símbolo sagrado deles? Não são sempre respeitosos com os padres? Exatamente como os nossos cristãos? Os padres não têm controle absoluto sobre eles?

- Vá direto ao ponto.

- Nós todos detestamos os portugueses, senhor. Exceto os cristãos entre nós, neh? Talvez esses bárbaros lhe sejam de mais valia vivos do que mortos.

- Como?

- Porque são únicos. São anticristãos! Talvez um homem sábio pudesse encontrar um meio de usar o ódio deles - ou a irreligiosidade - a nosso favor. São propriedade sua, pode fazer com eles o que quiser. Neh?

Sim. E quero-os sob tortura, pensou Yabu. Sim, mas você pode gozar disso a qualquer momento. Ouça Omi. É um bom conselheiro. Mas merece confiança agora? Será que tem um motivo secreto para dizer isso? Pense.

- Ikawa Jikkyu é cristão - ouviu o sobrinho dizer, citando o seu odiado inimigo, um dos parentes e aliados de Ishido, assentado nos seus limites ocidentais. — Não é lá que esse padre imundo tem o seu lar? Talvez estes bárbaros pudessem lhe dar a chave para abrir toda a província de Ikawa. Talvez a de Ishido. Talvez até a do Senhor Toranaga - acrescentou Omi delicadamente.

Yabu estudou o rosto de Omi, tentando alcançar o que estava por trás dele. Depois desviou o olhar para o navio. Não tinha dúvida alguma, agora, de que fora enviado pelos deuses. Sim.

Mas como um presente ou como um flagelo?

Renunciou ao próprio prazer pela segurança do seu clã.

- Concordo. Mas primeiro baixe a crista desses piratas. Ensine-lhes boas maneiras. Especialmente a ele.


- Pela morte do bom Jesus! - resmungou Vinck.

- Devíamos fazer uma prece - disse Van Nekk.

- Acabamos de fazer uma.

- Talvez fosse melhor fazermos outra. Senhor Deus no paraíso, eu saberia como usar uma pinta de conhaque agora!

Estavam amontoados numa cela profunda, uma das muitas que os pescadores usavam para armazenar peixe seco ao sol. Os samurais os haviam arrebanhado através da praça, desceram uma escada, e agora estavam trancados no subterrâneo. A cela tinha cinco passos de comprimento, cinco de largura e quatro de altura, com chão e paredes de terra. O teto era feito de pranchas de madeira com um pé de terra em cima e um único alçapão.

- Saia de cima do meu pé, seu gorila amaldiçoado!

- Cale a boca, seu apanhador de merda! - disse Pieterzoon amavelmente. - Ei, Vinck, afaste-se um pouco, seu velho peido desdentado, você ocupa mais espaço do que qualquer um! Por Deus, eu poderia usar uma cerveja gelada! Afaste-se.

- Não posso, Pieterzoon. Estamos mais apertados aqui do que a bunda de uma virgem.

- É o capitão-mor. Ficou com o espaço todo. Dêem-lhe um empurrão. Acordem-no! - disse Maetsukker.

- Hein? O que é que há? Deixem-me em paz. O que está acontecendo? Estou doente. Tenho que ficar deitado. Onde estamos?

- Deixem-no em paz. Ele está doente. Vamos, Maetsukker, levante-se, pelo amor de Deus. - Zangado, Vinck empurrou Maetsukker e atirou-o contra a parede. Não havia espaço suficiente para todos se deitarem, ou mesmo sentarem confortavelmente, ao mesmo tempo. O capitão-mor, Paulus Spillbergen, estava deitado ao comprido sob o alçapão, onde havia o melhor ar, a cabeça apoiada no seu capote enrolado. Blackthorne estava encostado a um canto, olhando fixamente para o alçapão. A tripulação o deixara em paz e permanecera à distância dele, preocupada, da melhor maneira que pudera, reconhecendo-lhe, de longa experiência, o estado de espírito e a violência tempestuosa e explosiva que sempre espreitava logo abaixo da sua aparência tranqüila.

Maetsukker perdeu o controle e desferiu um soco na virilha de Vinck.

- Deixe-me em paz ou eu o mato, seu bastardo!

Vinck voou para cima dele, mas Blackthorne agarrou a ambos e bateu-lhes a cabeça contra a parede.

- Calem-se, todos vocês - disse calmamente. Fizeram o que lhes foi ordenado. - Vamos nos dividir em grupos. Um grupo dorme, outro senta, e outro fica em pé. Spillbergen fica deitado até se recuperar. Aquele canto é a latrina. - Dividiu-os. Quando se reorganizaram, a situação tornou-se mais suportável. Temos que dar o fora daqui dentro de um dia ou estaremos fracos demais, pensou Blackthorne. Quando descerem a escada para nos trazer comida ou água. Terá que ser esta noite ou amanhã à noite.

Por que nos puseram aqui? Não representamos ameaça. Poderíamos ajudar o daimio. Será que ele vai compreender? Era o meu único meio de mostrar-lhe que o padre é o nosso verdadeiro inimigo. Será que vai compreender? O padre compreendeu.

- Talvez Deus possa perdoar-lhe pelo sacrilégio, mas eu não - dissera o Padre Sebastio, muito calmamente. - Não descansarei enquanto você e o seu mal não forem aniquilados.

O suor pingava-lhe pelas faces e o queixo. Enxugou-o distraidamente, ouvidos sintonizados na cela, como ficavam quando ele estava a bordo e dormindo, ou de guarda e devaneando: apenas para tentar ouvir o perigo antes que ele ocorresse.

Temos que dar o fora daqui e tomar o navio. Gostaria de saber o que Felicity está fazendo. E as crianças. Vejamos, Tudor tem sete anos agora e Lisbeth... Estamos a um ano, onze meses e seis dias de Amsterdã, mais trinta e sete dias abastecendo e vindo de Chatham para cá, mais os onze dias de idade que ela já tinha antes do embarque em Chatham. É essa a idade dela, exatamente - se tudo estiver bem. Deve estar. Felicity estará cozinhando, tomando precauções, limpando e tagarelando enquanto as crianças crescem, tão fortes e destemidas quanto a mãe. Será ótimo estar em casa de novo, caminharmos juntos pela praia e pelas florestas e clareiras e pela beleza que é a Inglaterra.

Através dos anos ele se treinara a pensar neles como personagens de uma peça. Pessoas que a gente amou e por quem sofreu, numa peça que não termina nunca. De outro modo a dor de estar longe seria excessiva. Quase que podia contar os dias que passara em casa nos onze anos de casamento. Poucos, pensou, muito poucos. - É uma vida dura para uma mulher, Felicity - ele lhe dissera antes. E ela dissera: - Qualquer vida é dura para uma mulher. - Tinha dezessete anos então, era alta, seu cabelo era comprido e sensu...

Seus ouvidos lhe disseram para se acautelar.

Os homens estavam sentados, encostados ou tentando dormir.

Vinck e Pieterzoon, bons amigos, conversavam tranqüilamente.

Van Nekk, como os outros, fitava o espaço. Spillbergen estava meio desperto, e Blackthorne pensou que o homem era mais forte do que deixara qualquer um crer.

Houve um súbito silêncio quando ouviram os passos acima da cabeça. Os passos pararam. Vozes abafadas, ásperas, numa língua de sons estranhos. Blackthorne pensou reconhecer a voz do samurai - Omi-san? Sim, era esse o nome dele -, mas não conseguiu ter certeza. Num instante as vozes cessaram e os passos se afastaram.

- Acha que vão nos alimentar, piloto? - disse Sonk.

- Sim.

- Eu saberia o que fazer com um drinque. Uma cerveja gelada, por Deus - disse Pieterzoon.

- Cale a boca - disse Vinck. - Você sozinho é suficiente para fazer um homem tranqüilo transpirar.

Blackthorne tinha consciência da sua camisa encharcada. E do mau cheiro. Pelo Senhor Deus, eu tomaria um banho, pensou, o repentinamente sorriu, lembrando-se.

Mura e os outros o haviam carregado para dentro da sala quente naquele dia e o deitaram num banco de pedra, com os membros ainda adormecidos e movendo-se lentamente.

As três mulheres, lideradas pela velha, começaram a despi-lo o ele tentara detê-las, mas cada vez que se movia um dos homens lhe apertava um nervo e o deixava impotente; apesar do muito que xingou e praguejou, continuaram a despi-lo até deixá-lo nu.

Não que se sentisse envergonhado de ficar nu na frente de uma mulher, acontecia simplesmente que o ato de despir-se era sempre realizado privadamente e esse era o costume. Além disso, não gostava de ser despido por ninguém, especialmente por aqueles nativos incivilizados. Mas ser despido publicamente como um bebê indefeso e lavado como um bebê com água quente, contendo sabão o perfume, enquanto todos tagarelavam e sorriam vendo-o de costas, era demais. Depois tivera uma ereção e, quanto mais tentava impedir que acontecesse, pior se tornava - pelo menos foi o que pensou, mas as mulheres não. Os olhos delas cresceram e ele começou a corar. Jesus, Senhor Deus, Um e único, não posso estar corando, mas estava e isso pareceu aumentar-lhe o tamanho. A velha bateu palmas de admiração e disse alguma coisa a que todos assentiram com mais veemência.

Mura dissera com enorme gravidade:

- Capitão-san, Mãe-san lhe agradece, o melhor dia da vida dela, agora morre feliz! - e inclinaram-se, ele e os outros, ao mesmo tempo. Foi nessa altura que Blackthorne percebeu o cômico da situação e começou a rir. Os outros ficaram surpresos, depois se puseram a rir também, a risada levou-lhe a potência embora, a velha ficou um pouco triste, e disse isso, o que o fez rir ainda mais, assim como a todos. Em seguida deitaram-no gentilmente no imenso calor da água profunda, que ele não conseguiu suportar muito tempo; estenderam-no ofegante sobre o banco mais uma vez. As mulheres o enxugaram e depois apareceu um velho cego. Blackthorne jamais conhecera massagem. Inicialmente tentara resistir aos dedos esquadrinhadores, mas depois deixou-se seduzir pela mágica deles o se viu quase como uni gato enquanto os dedos descobriam as nodosidades e davam passagem ao sangue ou ao elixir que espreitava por sob pele, músculos e tendões.

Depois ajudaram-no a ir para a cama, estranhamente fraco, meio em sonho, e a garota estava lá. Foi paciente com ele, e depois de dormir, quando ele teve força, tomou-a com cuidado.

Não lhe perguntou o nome e de manhã, quando Mura, tenso o muito assustado, o arrancara ao sono, ela já se tinha ido.

Blackthorne suspirou. A vida é maravilhosa, pensou.

Na cela, Spillbergen gemia novamente, Maetsukker embalava-lhe a cabeça e lamentava-se não de dor, mas de medo, e o rapaz Croocq estava a ponto de estourar. Jan Roper disse:

- Há algum motivo para sorrir, piloto?

- Vá para o inferno.

- Com todo o respeito, piloto - disse Van Nekk cuidadosamente, trazendo à tona o que estava em primeiro lugar na cabeça de todos -, você foi muito imprudente atacando o padre na frente do miserável bastardo amarelo.

Houve um assentimento geral, embora expresso com precaução.

- Se não tivesse feito isso, acho que não estaríamos nesta pocilga imunda. - Van Nekk não se aproximou de Blackthorne.

- Tudo o que você tem a fazer é pôr a cabeça no pó quando o lorde bastardo estiver por perto e eles ficarão tão mansos quanto cordeiros.

Esperou uma resposta, mas Blackthorne não deu nenhuma, simplesmente voltou-se para o alçapão. Foi como se ninguém tivesse dito nada. A apreensão deles aumentou.

Paulus Spilibergen ergueu-se sobre um cotovelo com dificuldade.

- Do que é que você está falando, Baccus?

Van Nekk, com os olhos doendo mais do que nunca, foi até ele e explicou sobre o padre e a cruz, o que acontecera e por que estavam ali.

- Sim, isso foi perigoso, piloto-mor - disse Spillbergen. - Sim, eu diria que foi absolutamente errado. Passem-me um pouco de água. Agora os jesuítas não vão nos deixar em paz em hipótese alguma.

- Você devia ter quebrado o pescoço dele, piloto. Porque de qualquer modo os jesuítas não vão nos deixar em paz - disse Jan Roper. - São piolhos imundos, e estamos aqui neste buraco fedorento por castigo de Deus.

- Isso é absurdo, Roper - disse Spillbergen. - Estamos aqui porq...

- É um castigo de Deus! Devíamos ter queimado todas as igrejas em Santa Magdellana e não apenas duas. Devíamos ter queimado. Fossas de Satã!

Spillbergen, fracamente, afastou uma mosca com um tapa.

- As tropas espanholas estavam se reagrupando e nos excediam em quinze para um. Dêem-me um pouco de água! Saquêamos a cidade, conseguimos o butim e esfregamos o nariz deles no pó.

Se tivéssemos ficado lá, teríamos sido mortos. Pelo amor de Deus, alguém me dê um pouco de água. Teríamos sido todos mortos se não tivéssemos rec...

- Que importa isso quando se está fazendo a obra de Deus? Faltamos a ele.

- Talvez estejamos aqui para fazer a obra de Deus - disse Van Nekk, apaziguador, pois Roper era um bom homem, embora fervoroso, um mercador esperto e sócio de seu filho. - Talvez possamos mostrar aos nativos daqui o erro das suas práticas. Talvez possamos convertê-los à verdadeira fé.

- Absolutamente - — disse Spillbergen. Ainda se sentia fraco, mas sua força estava voltando. - Acho que você devia ter consultado Baccus, piloto-mor. Afinal ele é o mercador-chefe. É muito bom para negociar com selvagens. Passem a água, eu disse!

- Não há água, Paulus. - O abatimento de Van Nekk aumentou. - Não nos deram nem comida nem água. Não nos deram nem um pote para mijar.

- Bem, peça um! E água! Deus do paraíso, estou com sede.

- Peça água! Você!

- Eu? - perguntou Vinck.

- Sim. Você!

Vinck olhou para Blackthorne, mas Blackthorne simplesmente observava o alçapão, distraído, de modo que Vinck parou embaixo da abertura e gritou:

- Ei! Você aí em cima! Dê-nos água! Queremos comida e água!

Não houve resposta. Ele gritou de novo. Nenhuma resposta.

Os outros gradualmente se puseram a gritar também. Todos, exceto Blackthorne. Logo o pânico e a náusea do confinamento exíguo se insinuou na voz deles e começaram a uivar como lobos.

O alçapão se abriu. Omi olhou-os lá embaixo. A seu lado estava Mura. E o padre.

- Água! E comida, por Deus! Tirem-nos daqui! - E logo se puseram todos a berrar novamente.

Omi fez um gesto para Mura, que assentiu e se afastou. Um momento depois, voltou com outro pescador, carregando um grande barril entre eles. Esvaziaram-lhe o conteúdo - peixe podre e água do mar - sobre a cabeça dos prisioneiros.

Os homens se espalharam na cela, tentaram escapar, mas nenhum conseguiu. Spillbergen ficou soterrado, quase sufocado. Alguns homens escorregaram e foram pisados. Blackthorne não se moveu do canto onde estava. Simplesmente encarou Omi, odiando-o.

Então Omi começou a falar. Houve um silêncio amedrontado, rompido por algumas tossidelas e pelas ânsias de vômito de Spillbergen. Quando Omi terminou, o padre surgiu na abertura, nervoso.

- As ordens de Kasigi-Omi são estas: vocês começarão a se comportar como seres humanos decentes. Vocês não farão mais barulho. Se fizerem, da próxima vez serão esvaziados na cela cinco barris. Depois dez, depois vinte. Receberão comida e água duas vezes por dia. Quando tiverem aprendido a se comportar, terão permissão para subir ao mundo dos homens. O Senhor Yabu graciosamente poupou-lhes a vida, estipulando que vocês o sirvam com lealdade. Todos menos um. Um deve morrer. Ao crepúsculo. Vocês devem escolher quem morrerá. Mas você - apontou para Blackthorne - não deve ser escolhido. - Ansioso, o padre tomou fôlego profundamente, fez uma meia mesura ao samurai, e recuou.

Omi perscrutou o buraco lá embaixo. Podia ver os olhos de Blackthorne e sentiu-lhe o ódio. Vai levar muito tempo para domar o espírito desse homem, pensou. Não importa. Há bastante tempo.

O alçapão foi fechado com força.


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