CAPÍTULO 5
Pouco antes da primeira luz da manhã, os gritos cessaram.
A mãe de Omi dormiu. Yabu também.
A aldeia ainda estava agitada ao amanhecer. Ainda restavam quatro canhões para trazer à praia, cinqüenta barriletes de pólvora, mil balas de canhão.
Kiku estava deitada sob o cobertor, olhando as sombras na parede shoji. Não dormira, embora estivesse mais exausta do que nunca. Os roncos resfolegantes da velha no quarto contíguo abafavam a suave e profunda respiração do daimio ao seu lado. O menino dormia silenciosamente nos outros cobertores, um braço passado sobre os olhos por causa da luz.
Um leve tremor percorreu o corpo de Yabu e Kiku susteve o fôlego. Mas ele continuou dormindo e isso a agradou, pois sabia que muito breve poderia partir sem o perturbar. Enquanto esperava pacientemente, forçou-se a pensar em coisas agradáveis. "Lembre-se sempre, criança", inculcara nela sua primeira professora, "de que ter maus pensamentos é realmente a coisa mais fácil do mundo. Se você deixar a mente por conta própria, ela vai sugá-la para baixo, numa infelicidade sempre crescente. Ter bons pensamentos, porém, exige esforço. Isso é uma das coisas de que a disciplina - treinamento - trata. Portanto treine sua mente para se deter em perfumes doces, o toque desta seda, tenras gotas de chuva contra o shoji, a curva deste arranjo de flores, a tranqüilidade do amanhecer. Depois, finalmente, você não precisará fazer um esforço tão grande e isso será de valor para você mesma, um valor para a nossa profissão - e trará honra para o nosso mundo, o mundo do salgueiro."
Pensou na gloriosa sensualidade do banho que tomaria em breve e que expulsaria aquela noite, e depois nas carícias calmantes das mãos de Suwo. Pensou nas risadas que daria com as outras garotas e com Gyoko-san, a Mama-san, quando trocariam tagarelices, rumores e histórias, e no quimono limpo, oh, tão limpo, que usaria naquela noite, o dourado com flores amarelas e verdes, e as fitas de cabelo que combinavam. Depois do banho, pentearia o cabelo e do dinheiro da noite passada haveria muito para saldar sua dívida com a patroa, Gyoko-san, algum para mandar ao pai, que era um camponês fazendeiro, e ainda algum para si mesma.
Logo encontraria seu amante e seria uma noite perfeita.
A vida é muito boa, pensou.
Sim. Mas é muito difícil afastar os gritos. Impossível. As outras garotas ficarão igualmente infelizes, e coitada de Gyoko-san! Mas não importa. Amanhã partiremos todas de Anjiro e voltaremos para casa, a nossa adorável casa de chá em Mishima, a maior cidade de Izu, que circunda o maior castelo do daimio em Izu, onde a vida começa e existe.
Que pena que a Senhora Midori tenha mandado me buscar. Seja séria, Kiku, disse a si mesma categoricamente. Você não deveria lamentar. Não está lamentando, neh? Foi uma honra servir o nosso senhor. Agora que você foi honrada, seu valor para Gyoko-san é maior do que nunca, neh? Foi uma experiência e agora você será conhecida como a Senhora da Noite dos Gritos e, se tiver sorte, alguém escreverá uma balada sobre você e talvez a balada seja cantada até em Yedo. Oh, isso seria muito bom!
Depois o seu amante certamente comprará o seu contrato, você estará segura e contente e terá filhos.
Ela sorriu para si mesma. Ah, que histórias os trovadores farão sobre esta noite, que serão contadas em todas as casas de chá de Izu. Sobre o senhor daimio, sentado imóvel em meio aos gritos, o suor escorrendo. O que foi que ele fez na cama? - todos quererão saber. E por que o menino? Como foi? O que foi que a Senhora Kiku fez e disse, e o que o Senhor Yabu fez e disse? O pilão sem par dele era insignificante ou farto? Foi uma vez, duas ou nenhuma? Nada aconteceu?
Mil perguntas. Mas nenhuma feita ou respondida diretamente, nunca. Isso é prudente, pensou Kiku. A primeira e última regra do mundo do salgueiro era sigilo absoluto, nunca falar sobre um cliente ou seus hábitos ou o que era pago, e assim ser completamente digna de confiança. Se alguma outra pessoa falasse, bem, era problema dela, mas com paredes de papel e casas tão pequenas, sempre havia histórias correndo da cama para a balada - nunca a verdade, sempre exageros, porque o povo é o povo, neh?
Mas nada da senhora. Uma sobrancelha arqueada talvez, ou um dar de ombros hesitante, um alisar delicado de um penteado perfeito ou de uma dobra do quimono era tudo o que se permitia.
E sempre suficiente, se a garota tivesse juízo.
Quando os gritos cessaram, Yabu permanecera como estátua ao luar pelo que parecera uma eternidade e depois se levantara. Imediatamente ela correra de volta para o outro quarto, o quimono de seda suspirando como o mar de meia-noite. O menino estava assustado, tentando não demonstrá-lo, e enxugou as lágrimas que a tortura causara. Ela lhe sorrira tranqüilizadora, forçando uma calma que não sentia. Então Yabu apareceu à porta. Estava banhado em suor, o rosto tenso e os olhos semicerrados. Kiku ajudou-o a tirar as espadas, depois o quimono encharcado e a tanga. Enxugou-o, ajudou-o a pôr um quimono fresco e amarrou o cinto de seda.
Começara a saudá-lo, mas ele lhe pusera um dedo gentil sobre os lábios. Depois se dirigira para a janela e olhara a lua declinando, como que enlevado, balançando-se levemente sobre os pés. Ela permaneceu tranqüila, sem medo, pois o que havia a temer? Ele era um homem e ela uma mulher, treinada para ser mulher, para dar prazer, do modo que fosse. Mas não para dar ou receber dor.
Havia outras cortesãs especializadas nessa forma de sensualidade.
Um apertão aqui e ali, talvez uma mordida, bem, isso era parte do prazer-dor de dar e receber, mas sempre dentro da razão, pois a honra estava envolvida e ela era uma dama do Mundo do Salgueiro de primeira classe, nunca para ser menosprezada, a ser sempre honrada. Mas parte do seu treinamento era saber como manter um homem dócil dentro dos limites. Às vezes um homem ficava indócil e então era terrível. Pois a dama estava sozinha. Sem direitos.
Seu penteado estava impecável com exceção de minúsculas mechas de cabelo, cuidadosamente soltas sobre as orelhas para sugerir um desalinho erótico, mas, ao mesmo tempo, para realçar a pureza do conjunto. O quimono vermelho e preto, axadrezado, bordado com o mais puro. verde, que lhe aumentava a brancura da pele, estava apertado à minúscula cintura por uma larga faixa rija, um obi, de um verde iridescente. Ela podia ouvir a arrebentação na praia agora e um vento leve que farfalhava o jardim.
Finalmente Yabu se voltara e olhara para ela, depois para o menino.
O menino tinha quinze anos, era o filho de um pescador local, aprendiz, no mosteiro das proximidades, de um monge budista que era artista, pintor e ilustrador de livros. O menino era um dos que gostavam de ganhar dinheiro, daqueles que apreciavam sexo com meninos e não com mulheres.
Yabu fez-lhe um gesto. Obedientemente o menino, que agora também superara o medo, afrouxou a faixa do quimono com uma elegância estudada. Não usava tanga mas uma combinação de mulher que chegava quase ao chão. Tinha o corpo macio, curvilíneo e quase sem pêlos. Kiku lembrou-se de como o quarto estivera tranqüilo, os três aproximados pela tranqüilidade e pelos gritos extintos, ela e o menino esperando que Yabu indicasse o que era ordenado. Yabu em pé ali entre os dois, balançando-se levemente, olhando de um para o outro.
Finalmente fizera um sinal para ela. Graciosamente ela desatara a fita do obi, desenrolara-o gentilmente e deixara-o cair. As dobras de seus três quimonos, leves como teia, abriram-se sussurrantes e revelaram a combinação que lhe acentuava os quadris.
Yabu se deitou e, a uma ordem sua, os dois se deitaram também, um de cada lado dele. Ele pôs-lhes as mãos sobre si e abraçou aos dois. Aqueceu-se rapidamente, mostrando-lhes como usar as unhas nos flancos dele, urgindo-os, seu rosto uma máscara, mais depressa, mais depressa e depois o estremecimento, o grito violento de dor absoluta. Por um instante, ficou deitado, arquejando, os olhos apertados, o peito arfante, depois se virara e quase instantaneamente caíra no sono.
No silêncio eles contiveram o fôlego, tentando esconder a própria surpresa. Acabara tão depressa.
O menino arqueara uma sobrancelha, espantado.
- Será que fomos inábeis, Kiku-san? Quero dizer, tudo aconteceu tão depressa - sussurrou ele.
- Fizemos tudo o que ele quis - disse ela.
- Ele certamente atingiu as nuvens e a chuva - disse o menino. - Pensei que a casa fosse desabar.
Ela sorriu.
- Sim.
- Estou contente. Primeiro fiquei com muito medo. É muito bom agradar.
Juntos, enxugaram Yabu gentilmente e cobriram-no com o acolchoado. Depois o menino deitou-se de costas langorosamente, meio apoiado num cotovelo e reprimindo um bocejo.
- Por que você não dorme também? - disse ela.
O menino puxou o quimono mais para junto do corpo e mudou de posição para ajoelhar diante dela, que estava sentada ao lado de Yabu, a mão direita acariciando suavemente o braço do daimio, acalmando seu sono trêmulo.
- Nunca tinha estado com um homem e uma mulher ao mesmo tempo, Kiku-san - sussurrou o menino.
- Nem eu.
O menino franziu o cenho.
- Nunca estive com uma garota, também. Quero dizer, nunca me deitei com uma.
- Gostaria de ter a mim? - perguntou ela polidamente. - Se esperar um pouquinho, tenho certeza de que nosso senhor não acordará.
O menino franziu a testa de novo. Depois:
- Sim, por favor -, e mais tarde: - Foi muito estranho, Senhora Kiku.
Ela sorriu interiormente.
- Qual você prefere?
O menino pensou um longo tempo, os dois deitados em paz, nos braços do outro.
- Este jeito dá muito mais trabalho.
Ela afundou a cabeça no ombro dele e beijou-lhe a nuca para esconder o sorriso.
- Você é um amante maravilhoso – sussurrou – Agora deve dormir, após tanto trabalho. - Acariciou-o até que pegasse no sono, depois deixou-o e foi para os outros acolchoados.
A outra cama estava fria. Ela não quis se mover para o calor de Yabu com receio de perturbá-lo. Logo seu lado estava quente.
As sombras da shoji estavam nítidas. Os homens são uns bebês, pensou ela. Tão cheios de orgulho tolo. Todo o sofrimento desta noite por uma coisa tão transitória. Por uma paixão que em si mesma não passa de uma ilusão, neh?
O menino mexeu-se no sono. Por que foi que você se ofereceu a ele? perguntou ela a si mesma. Pelo prazer dele - por ele e não por mim, embora tenha me divertido, passado o tempo e dado a ele a tranqüilidade de que necessitava. Por que você não dorme um pouquinho? Mais tarde. Dormirei mais tarde, disse a si mesma.
Quando chegou a hora, deslizou da tepidez e levantou-se. Seus quimonos se abriram num sussurro e o ar esfriou-lhe a pele. Rapidamente cingiu os trajes com perfeição e amarrou o obi. Um rápido, mas cuidadoso toque no penteado. E na maquilagem.
Partiu sem nenhum ruído.
O samurai de sentinela na entrada da varanda inclinou-se e ela retribuiu a reverência, e logo se encontrava à luz do amanhecer. Sua empregada estava à espera.
- Bom dia, Kiku-san.
- Bom dia.
O sol causou uma sensação ótima e lavou a noite. É muito bom estar viva, pensou ela.
Deslizou os pés para dentro das sandálias, abriu a sombrinha carmesim e atravessou o jardim, para o caminho que levava à aldeia, através da praça, à casa de chá que era sua residência temporária. A empregada seguiu-a.
- Bom dia, Kiku-san - chamou Mura, curvando-se. Estava descansando momentaneamente na varanda de sua casa, tomando chá, o fraco chá verde do Japão. Sua mãe o servia.
- Bom dia, Kiku-san - ecoou esta última.
- Bom dia, Mura-san. Bom dia, Saiko-san, a senhora está com ótima aparência - replicou Kiku.
- Como vai? - perguntou a mãe, seus velhíssimos olhos cravados na garota. - Que noite terrível! Tome um chá conosco, por favor. Você parece pálida, criança.
- Obrigada, mas, por favor, desculpe-me, preciso ir para casa agora. A senhora realmente me faz uma grande honra. Talvez mais tarde.
- Claro, Kiku-san. Você honra nossa aldeia com sua presença.
Kiku sorriu e fingiu não notar os olhares inquisitivos. Para deixar mais picante o dia deles, e o dela, fingiu uma dorzinha nas regiões inferiores.
Isto vai correr pela aldeia inteira, pensou feliz, enquanto se curvava, estremecia novamente e se afastava como se estivesse estoicamente dissimulando uma dor intensa, as dobras dos quimonos oscilando à perfeição, e a sombrinha inclinada para dar-lhe exatamente aquela luz mais maravilhosa. Estava muito contente de ter ganhado aquele quimono e a sombrinha. Num dia insípido o efeito nunca teria sido tão dramático.
- Ah, pobre, pobre criança! É tão bonita, neh? Que vergonha! Terrível! - disse a mãe de Mura com um suspiro de cortar o coração.
- O que é terrível, Saiko-san? - perguntou a esposa de Mura, vindo para a varanda.
- Você não viu o sofrimento da pobre garota? Não viu como ela estava bravamente tentando escondê-lo? Pobre criança! Apenas dezessete anos e ter que passar por tudo isso!
- Ela tem dezoito anos - disse Mura secamente.
- Tudo o quê, senhora? - disse uma das empregadas ansiosamente, juntando-se a eles. A velha olhou em torno para ter certeza de que todos a escutavam e abaixando a voz: - Ouvi dizer - deixou escapar -, ouvi dizer que ela ficará... ficará inutilizada... por três meses.
- Oh, não! Pobre Kiku-san! Oh! Mas por quê?
- Ele usou os dentes. Fiquei sabendo da melhor fonte.
- Oh!
- Oh!
- Mas por que foi que ele quis o menino, senhora? Com certeza, ele não...
- Ah! Vão embora! De volta ao trabalho, boas-para-nada! Isto não é para os ouvidos de vocês! Vamos, fora, todas! O patrão e eu temos que conversar.
Enxotou-as todas da varanda. Até a esposa de Mura. E sorveu o chá, afável e muito contente.
Mura rompeu o silêncio.
- Dentes?
- Dentes. Corre o boato de que os gritos o fazem grande porque ele foi assustado por um dragão quando era pequeno - disse ela num fôlego só. - Ele sempre tem um menino junto para lembrá-lo de quando era menino, petrificado, mas na realidade o menino fica lá só para se deitar com ele, para exauri-lo - de outro modo ele arrancaria tudo com os dentes, pobre garota.
Mura suspirou. Foi até o pequeno telheiro ao lado do portão dianteiro e peidou involuntariamente quando começou a se aliviar no balde. Gostaria de saber o que realmente aconteceu, disse a si mesmo, excitado. Por que será que Kiku-san estava sofrendo? Talvez o daimio realmente use os dentes! Que extraordinário!
Saiu, sacudindo-se para não sujar a tanga, e rumou através da praça, profundamente absorto. Puxa, como eu gostaria de ter uma noite com a Senhora Kiku! Que homem não gostaria? Quanto será que Omi-san teve que pagar à Mama-san dela - que no final nós é que vamos ter que pagar? Dois kokus? Dizem que a Mama-san dela, Gyoko-san, pediu e obteve dez vezes a paga regular.
Conseguiu cinco kokus por uma noite. Kiku-san certamente valeria isso, neh? Corre o boato de que ela tem tanta prática aos dezoito anos quanto uma mulher duas vezes mais velha. Consta que é capaz de prolong... liih, que alegria ela é! Se fosse eu como eu começaria?
Distraidamente ajeitou-se dentro da tanga enquanto os pés o levavam para fora da praça, pelo caminho batido até o pátio de funeral.
A pira fora preparada. A delegação de cinco homens da aldeia já se encontrava lá.
Era o lugar mais agradável da aldeia, onde as brisas do mar eram mais frescas no verão e a vista, melhor. Perto ficava o santuário xintó da aldeia, um minúsculo telhado de palha sobre um pedestal para o kami, o espírito, que vivia ali, ou poderia querer viver ali, se lhe agradasse. Um teixo retorcido, plantado antes de a aldeia nascer, inclinava-se ao vento.
Mais tarde Omi subiu o caminho. Com ele vieram Zukimoto e quatro guardas. Manteve-se a distância. Quando se curvou formalmente para a pira e para o corpo amortalhado, quase desconjuntado, que jazia sobre ela, todos se curvaram com ele em homenagem ao bárbaro que morrera para que os companheiros pudessem viver.
A um sinal dele, Zukimoto avançou e acendeu a pira. Zukimoto havia pedido a Omi o privilégio e a honra lhe fora concedida. Curvou-se uma última vez. Depois, quando o fogo estava bem aceso, todos se afastaram.
Blackthorne mergulhou a mão na borra do barril, cuidadosamente mediu meia xícara de água e deu-a a Sonk. Sonk tentou tomá-la aos goles para fazê-la durar, a mão tremendo, mas não conseguiu. Sorveu de um trago o líquido morno, lamentando tê-lo feito no momento em que ele passou pela sua garganta ressecada, e tateou fatigado de volta a seu lugar junto da parede, passando por cima dos que estavam no turno de ficar deitado. O chão agora era um lodo profundo, o mau cheiro e as moscas hediondos. Uma tênue claridade chegava ao buraco através das ripas do alçapão.
Vinck era o seguinte na fila da água. Pegou sua xícara e ficou contemplando-a, sentado perto do barril, Spillbergen do outro lado.
- Obrigado - murmurou melancolicamente.
- Apresse-se! - disse Jan Roper, com o corte no rosto já supurando. Era o último na fila e, estando tão próximo, sua garganta o torturava. - Apresse-se, Vinck, pelo amor de Cristo!
- Desculpe. Pegue, tome você - murmurou Vinck, estendendo-lhe a xícara, esquecido das moscas que o cobriam.
- Beba, seu idiota! É a última que vai receber até o pôr-do-sol! Beba! - Jan Roper empurrou a xícara de volta para as mãos do homem. Vinck não levantou os olhos para ele, mas obedeceu, infeliz, e mais uma vez deslizou de volta ao seu inferno particular.
Jan Roper pegou sua xícara de água de Blackthorne. Fechou os olhos e fez uma oração de graças silenciosa. Era um dos que estavam em pé, sentindo doer os músculos das pernas. A xícara mal e mal continha dois goles.
Quando todos haviam recebido sua ração, Blackthorne afundou a mão no barril e sorveu agradecido. Tinha a boca e a língua ásperas, queimadas e cobertas de pó.
Estava infestado de moscas, suor e imundície. O peito e as costas estavam seriamente machucados.
Observou o samurai que fora deixado na cela. Estava amontoado contra a parede, entre Sonk e Croocq, ocupando tão pouco espaço quanto possível, e não se movia há horas. Fitava friamente o vazio, vestido só com a tanga, com escoriações violentas por todo o corpo, um grosso vergão em torno do pescoço.
Quando Blackthorne voltara a si, a cela se encontrava em completa escuridão. Os gritos enchiam o buraco, e ele pensou que tivesse morrido e estivesse nas sufocantes profundezas do inferno. Sentiu-se sugado para uma lama viscosa e que causava arrepios além de qualquer medida, gritara e farejara em pânico, incapaz de respirar, até que, após uma eternidade, ouvisse: — Está tudo bem, piloto, você não morreu, está tudo bem. Acorde, acorde, pelo amor de Cristo, isto não é o inferno mas poderia muito bem ser. Ó abençoado Senhor Jesus, ajude-nos a todos! Quando recuperou totalmente a consciência, contaram-lhe sobre Pieterzoon e os barris de água do mar.
- Oh, Senhor Jesus, tire-nos daqui! - choramingou alguém.
- O que estão fazendo com o coitado do Pieterzoon? O que estão fazendo com ele? Oh, Deus nos ajude. Não posso agüentar esses gritos.
- Oh, Senhor, deixe o coitado morrer! Deixe-o morrer!
- Cristo Deus, pare esses gritos! Por favor, pare esses gritos!
O buraco e os gritos de Pieterzoon haviam dado a medida de todos, forçando-os a olhar para dentro de si mesmos. E nenhum homem gostara do que vira.
A escuridão ainda torna as coisas piores, pensara Blackthorne. Fora uma noite interminável no buraco.
Com o crepúsculo os gritos se extinguiram. Quando o amanhecer escoara até eles, viram o samurai esquecido.
- O que vamos fazer com ele? - perguntara Van Nekk.
- Não sei. Parece tão assustado quanto nós — dissera
Blackthorne, o coração latejando.
- É melhor que ele não comece nada, por Deus.
- Oh, Senhor Jesus, tirem-me daqui... - começou a voz de Croocq num crescendo. - Socooooooorro!
Van Nekk, que estava perto dele, sacudiu-o e acalmou-o.
- Está tudo bem, mocinho. Estamos nas mãos de Deus. Ele está zelando por nós.
- Olhem o meu braço - gemeu Maetsukker. O ferimento já havia supurado. Blackthorne levantou-se tremulamente. - Estaremos todos delirando como loucos dentro de um ou dois dias se não sairmos daqui - disse, a ninguém em particular.
- A água quase acabou - disse Van Nekk.
- Vamos racionar a que há. Um pouco agora, mais um pouco ao meio-dia. Com sorte haverá o suficiente para três turnos. Deus amaldiçoe todas as moscas!
Então encontrara a xícara e lhes dera uma ração, e agora estava sorvendo a sua, tentando fazê-la durar.
- E quanto a ele, o japonês? - disse Spillbergen. O capitão-mor passara melhor do que nunca durante a noite porque tapara os ouvidos aos gritos com um pouco de lama e, como estava ao lado do barril de água, cuidadosamente saciara a sede.
- O que vamos fazer com ele?
- Ele deveria receber um pouco de água - disse Van Nekk.
- Pois sim! - disse Sonk. - Digo que não deve receber coisa nenhuma.
Todos votaram e concordou-se em que o samurai não tomaria água.
- Não concordo - disse Blackthorne.
- Você não concorda com nada que a gente diga - disse Jan Roper.
- Ele é o inimigo. É um diabo pagão e quase nos matou.
- Você também quase me matou. Meia dúzia de vezes. Se o seu mosquete tivesse disparado em Santa Magdellana, você teria me estourado os miolos.
- Eu não estava mirando você. Estava mirando satanistas fedorentos.
- Eram sacerdotes desarmados. E havia tempo de sobra.
- Eu não estava mirando você.
- Você quase me matou meia dúzia de vezes, com a sua maldita raiva, sua maldita beatice e sua maldita estupidez!
- Blasfêmia é pecado mortal. Proferir o nome dele em vão é pecado. Estamos nas mãos dele, não nas suas. Você não é um rei e isto não é um navio. Não é nosso...
- Mas vai fazer o que eu disser!
Jan Roper olhou em torno da cela, inutilmente em busca de apoio.
- Faça o que quiser - disse sombriamente.
- Eu farei.
O samurai estava tão sedento quanto eles, mas meneou a cabeça à xícara que lhe foi oferecida. Blackthorne hesitou, colocou-a junto dos lábios inchados do samurai, mas o homem afastou-a com um golpe, entornando a água, e disse alguma coisa asperamente. Blackthorne preparou-se para aparar o golpe seguinte. Mas ele não veio nunca. O homem não tornou a se mover, simplesmente mergulhou o olhar no vazio.
- Ele está louco. São todos loucos - disse Spilibergen.
- Sobra mais água para nós. Bom - disse Jan Roper. - Deixem-no ir para o inferno, que é o que merece.
- Qual é o seu nome? Nami? - perguntou Blackthorne.
Repetiu de maneiras diferentes, mas o samurai parecia não ouvir. Deixaram-no em paz. Mas observavam-no como se fosse um escorpião. Ele não os olhava. Blackthorne tinha certeza de que o homem estava tentando tomar alguma decisão, mas não tinha idéia do que pudesse ser.
Que será que ele tem na cabeça? perguntou Blackthorne a si mesmo. Por que recusou a água? Por que foi deixado aqui? Será que foi um engano de Omi? Não é provável. Será que foi um plano? Não é provável. Poderíamos usá-lo para sair daqui? Não é provável. O mundo inteiro é improvável, só é provável que vamos ficar aqui até que nos deixem sair... se deixarem. E se deixarem, o que virá a seguir? O que aconteceu a Pieterzoon?
As moscas enxameavam com o calor do dia.
Oh, Deus, como gostaria de me deitar, como gostaria de tomar aquele banho, não teriam que me carregar desta vez. Nunca tinha percebido como um banho é importante. Aquele velho cego com os dedos de aço! Eu poderia usá-lo por uma ou duas horas.
Que desperdício! Todos os nossos navios, homens e esforço para isto. Um fracasso total. Bem, quase. Alguns ainda estamos vivos.
- Piloto! - Van Nekk o estava sacudindo. - Você adormeceu. Ele... ele está se curvando para você há um minuto ou mais. - Fez um gesto para o samurai, que estava ajoelhado e de cabeça inclinada à sua frente.
Blackthorne esfregou a exaustão dos olhos. Fez um esforço e retribuiu a reverência.
- Hai? - disse bruscamente, lembrando-se da palavra japonesa para "sim".
O samurai segurou a faixa do seu quimono rasgado e enrolou-a em torno do pescoço. Ainda ajoelhado, deu uma ponta a Blackthorne e a outra a Sonk, baixou a cabeça e fez-lhes sinal para que a puxassem com força.
- Está com medo de que o estrangulemos - disse Sonk.
- Jesus Cristo, acho que isso é o que ele quer que façamos.
Blackthorne deixou cair o cinto e sacudiu a cabeça.
- Kinjiru - disse, pensando em como essa palavra era inútil. Como você diz a um homem que não fala a sua língua que é contra o seu código cometer assassínio, matar um homem desarmado, que você não é um executor, que o suicídio é condenado por Deus?
O samurai pediu de novo, claramente implorando-lhe, mas Blackthorne sacudiu a cabeça novamente.
- Kinjiru. - O homem olhou em torno ansiosamente. De repente se pôs em pé e mergulhou a cabeça bem fundo na latrina, tentando se afogar. Jan Roper e Sonk imediatamente puxaram-no para trás, sufocado e debatendo-se.
- Deixem-no - ordenou Blackthorne. Obedeceram. Ele apontou para a latrina.
- Samurai, se é isso o que você quer, vá em frente!
O homem estava com ânsias de vômitos, mas compreendeu.
Olhou para a tina repugnante e soube que não teria forças para manter a cabeça lá o tempo suficiente. Na mais profunda infelicidade, voltou a seu lugar junto da parede.
- Jesus - murmurou alguém.
Blackthorne raspou meia xícara de água no barril, levantou-se, sentindo as juntas rijas, aproximou-se do japonês e ofereceu-lhe a água. Ele olhou para além da xícara.
- Pergunto a mim mesmo quanto tempo ele consegue agüentar - disse Blackthorne.
- Para sempre - disse Jan Roper. - São animais. Não são humanos.
- Pelo amor de Cristo, quanto tempo mais vão nos manter aqui? - perguntou Ginsel.
- O tempo que quiserem.
- Teremos que fazer qualquer coisa que eles queiram - disse Van Nekk. - Teremos que fazer, se quisermos continuar vivos e sair deste buraco do inferno. Não teremos, piloto?
- Sim. - Blackthorne avaliou, agradecido, as sombras do sol. - É pleno meio-dia, o turno muda.
Spillbergen, Maetsukker e Sonk começaram a se queixar, mas ele os fez levantar-se com imprecações e quando haviam todos se redistribuído, deitou-se agradavelmente. A lama era repelente e as moscas piores que nunca, mas o prazer de poder estirar-se por inteiro foi enorme.
O que fizeram com Pieterzoon? - perguntou a si mesmo, sentindo a fadiga tragá-lo. Oh, Deus nos ajude a sair daqui. Estou com tanto medo!
Ouviram passos lá em cima. O alçapão se abriu. O padre apareceu, ladeado de samurais.
- Piloto. Você deve subir. Deve subir sozinho - disse ele.