A primeira luz
Os três detetives tinham muitos detalhes para investigar, de modo que voltei sozinho para nossas modestas acomodações na hospedaria do vilarejo. Mas antes de ir para lá dei uma volta pelo curioso jardim de outros tempos que cercava a casa. Filas de teixos muito antigos, cortados em desenhos estranhos, a rodeavam. Na parte interna havia um bonito gramado com um antigo relógio de sol no centro. Esse cenário tinha um efeito repousante que fazia muito bem aos meus nervos um tanto perturbados. Naquela atmosfera absolutamente tranqüila pode-se esquecer de tudo ou lembrar-se apenas com um fantástico pesadelo daquele escritório sinistro com aquele homem cheio de sangue estendido no chão. Mesmo assim, enquanto eu caminhava pelo jardim e tentava mergulhar a alma nessa calma, ocorreu um estranho incidente que me levou de volta à tragédia e deixou uma impressão sinistra em minha mente.
Eu disse que uma seqüência de teixos orlava o jardim. Na parte que ficava mais distante da casa eles eram menos espaçados e formavam uma cerca viva densa. Do outro lado dessa cerca viva, oculto da visão de quem viesse do lado da casa, havia um banco de pedra. Ao me aproximar do local, ouvi vozes, distinguindo depois a voz grave de um homem e o riso de uma mulher. Pouco depois cheguei ao final da cerca de teixos e meus olhos bateram na sra. Douglas e em Barker antes que eles percebessem a minha presença. A aparência dela chocou-me. Na sala de jantar ela estava séria e discreta. Agora toda a simulação de tristeza desaparecera. Seus olhos brilhavam com a alegria de viver, e o rosto ainda balançava, divertido, por causa de alguma observação engraçada de seu companheiro. Ele estava inclinado para a frente, com as mãos apertadas e os antebraços apoiados nos joelhos, com um sorriso no rosto atrevido e belo. Num instante – mas já tarde demais – eles recolocaram suas máscaras sérias quando me viram. Eles trocaram uma ou duas palavras apressadas e então Barker levantou-se e veio na minha direção.
– Desculpe-me, senhor – ele disse – mas seu nome é dr. Watson?
Eu assenti de modo frio, que mostrou, ouso dizer, de modo bastante claro, a impressão que aquela cena havia causado em mim.
– Achamos que devia ser o senhor, já que sua amizade com o sr. Sherlock Holmes é muito conhecida. O senhor se incomodaria de falar um instante com a sra. Douglas?
Eu o segui de cara fechada. Eu conseguia visualizar nitidamente aquela figura morta lá no chão. Aqui, algumas horas após sua morte, estavam sua esposa e seu melhor amigo rindo atrás de uma moita no jardim que fora dele. Cumprimentei a senhora com reserva. Eu havia me preocupado com a tristeza dela na sala de jantar. Agora eu a olhava com indiferença.
– Receio que o senhor me considere insensível e sem coração – disse ela.
Eu dei de ombros.
– Não é da minha conta – eu disse.
– Talvez algum dia me dê razão. Se o senhor fizesse idéia...
– Não há necessidade de explicar nada ao dr. Watson – Barker cortou rapidamente. – Como ele mesmo disse, não tem nada com isso.
– Exatamente – eu disse – e por isso peço licença para continuar minha caminhada.
– Um momento, dr. Watson! – gritou a mulher, com voz suplicante. – Há uma pergunta que o senhor pode responder com muito mais autoridade que qualquer outra pessoa, e pode ser muito importante para mim. O senhor conhece o sr. Holmes e seu relacionamento com a polícia melhor do que qualquer um. Supondo-se que ele fosse informado, de modo confidencial, de alguma coisa, é absolutamente necessário que revele isso aos detetives?
– Sim, é verdade – disse Barker, impaciente. – Ele está aqui por conta própria ou está trabalhando juntamente com os outros?
– Nem sei se eu deveria estar falando sobre isso.
– Eu lhe peço. Eu lhe imploro, dr. Watson, que o senhor responda. Eu lhe asseguro que estará nos ajudando; ajudando-me muito se nos orientar a respeito disso.
Havia um tom de sinceridade na voz da mulher, e por um instante esqueci-me de tudo sobre sua leviandade e estava pensando apenas em atender ao seu desejo.
– O sr. Holmes é um investigador particular – eu disse. – Ele é o seu próprio chefe e age de acordo com sua própria opinião. Ao mesmo tempo, naturalmente, ele é leal com os detetives da polícia que estejam trabalhando num mesmo caso, e não esconde deles nada que possa ajudá-los a solucionar o problema. Fora isso não posso dizer nada mais, a não ser encaminhá-la ao sr. Holmes para que a senhora obtenha maiores informações.
Ao dizer isso, fiz um cumprimento erguendo o chapéu e continuei em minha caminhada, deixando-os ainda sentados naquele banco escondido atrás da cerca de teixos. Olhei para trás, ao contornar a extremidade da cerca, e vi que os dois conversavam de modo muito compenetrado, e como olhavam para mim, estava claro que a nossa conversa era o assunto da discussão deles.
– Não quero saber das confidências dela – disse Holmes quando lhe contei o que acontecera. Ele passara a tarde inteira na Casa Senhorial discutindo o caso com seus dois colegas, e voltou à hospedaria às cinco horas com muito apetite para tomar o chá que eu havia pedido para ele. – Não quero saber de confidências, Watson, pois elas se tornarão muito embaraçosas se houver uma acusação de conspiração e assassinato.
– Você acha que acontecerá isso?
Ele estava muito alegre e com um jeito jovial.
– Meu caro Watson, depois que eu devorar aquele quarto ovo estarei em condições de pôr você a par de toda a situação. Não digo que já tenhamos elucidado tudo – longe disso –, mas quando encontrarmos o halter que desapareceu...
– O halter!
– Puxa, Watson, será possível que você não tenha percebido que o caso gira em torno do halter que sumiu? Bem, bem, não precisa ficar triste, pois, cá entre nós, acho que nem o inspetor Mac, nem o excelente médico local compreenderam a importância desse incidente. Um halter, Watson! Considere um atleta com um halter. Imagine o que isso acarretaria: o perigo de uma curvatura na espinha. Surpreendente, Watson; surpreendente!
Ele estava com a boca cheia de torrada e os olhos com um brilho que revelavam alguma idéia inusitada, observando meu embaraço intelectual. O seu bom apetite era uma garantia de sucesso, porque eu tinha lembranças muito vivas de dias e noites em que ele nem tocava na comida, quando sua mente se ocupava com algum problema e seu corpo esguio, ágil, tornava-se mais magro ainda com o ascetismo da completa concentração mental. Finalmente ele acendeu o cachimbo e, sentado junto à lareira da hospedaria, falou calmamente e sem seguir uma linha lógica sobre o caso, como se estivesse pensando alto e não fazendo uma afirmação ponderada.
– Uma mentira, Watson: uma grande, enorme, intrometida, inflexível mentira, é isso que nos espera. É esse o nosso ponto de partida. Toda a história contada por Barker é uma mentira. Mas a história de Barker é apoiada pela sra. Douglas. Conseqüentemente, ela está mentindo também. Os dois estão mentindo, conspirando. Então agora temos o problema bem claramente: por que estão mentindo, e qual a verdade que tentam tão obstinadamente esconder? Vamos tentar, Watson, você e eu, descobrir o que há por trás dessa mentira e reconstituir a verdade.
– Como eu sei que eles estão mentindo? Porque é uma invenção tosca que simplesmente não pode ser verdadeira. Veja bem! Segundo a história que nos contaram, o assassino teve menos de um minuto, após o assassinato, para retirar a aliança, que estava por baixo de um anel, colocar esse outro anel (coisa que ninguém faria) e deixar aquele estranho cartão ao lado da vítima. Obviamente eu acho tudo isso impossível. Você pode argumentar – mas tenho muito respeito por você, Watson, para achar que você faria isso – que a aliança pode ter sido retirada antes de ele ter sido assassinado. O fato de que a vela fora acesa pouco antes mostra que não houve tempo para conversas. Seria Douglas, já que dizem que ele era destemido, capaz de entregar sua aliança assim sem opor resistência, ou devemos imaginar que ele seria capaz de entregá-la? Não, não, Watson, o assassino ficou sozinho com o morto por algum tempo com a luz acesa. Quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Mas a espingarda, aparentemente, foi a causa da morte. Conseqüentemente, ela deve ter sido disparada antes da hora que nos disseram. Mas não deveria haver dúvida quanto a isso. Estamos diante de uma deliberada conspiração por parte de duas pessoas que ouviram o disparo: Barker e a esposa de Douglas. Quando eu tiver condições, no desenvolvimento das investigações, de provar que a marca de sangue sobre o peitoril foi colocada ali deliberadamente por Barker para dar uma pista falsa à polícia, você verá que as coisas ficarão pretas para o lado dele.
– Agora precisamos nos perguntar a que horas o assassinato realmente ocorreu. Até as 22:30h os criados ainda estavam andando pela casa, de modo que certamente não aconteceu antes dessa hora. Às 22:45h todos já tinham ido para os seus aposentos, com exceção de Ames, que estava na copa. Fiz alguns testes, depois que você veio embora, hoje à tarde, e vi que nenhum ruído feito por Barker no escritório poderia chegar à copa estando todas as portas fechadas. Mas não acontece o mesmo com o quarto da governanta. Não fica tão longe assim e de lá eu podia ouvir vozes vagamente, se elas estivessem num tom alto. O som de um disparo é até certo ponto abafado quando o disparo é feito de muito perto, como sem dúvida aconteceu neste caso. Não deve ter sido um som muito alto, e mesmo assim, no silêncio da noite, deve ter chegado facilmente ao quarto da sra. Allen. Ela é, como nos disse, um tanto surda, mas mesmo assim citou no depoimento que ouviu uma porta bater meia hora antes de ser dado o alarme. Meia hora antes do alarme pode ter sido 22:45h. Não tenho dúvida de que o que ela ouviu foi o disparo da arma, e que esse foi o exato momento do crime. Se assim for, temos agora que determinar o que o sr. Barker e a sra. Douglas, presumindo que eles não são os verdadeiros assassinos, ficaram fazendo de 22:45h quando o barulho do disparo os fez descer, até 23:15h, quando tocaram a campainha e chamaram os criados. O que estavam fazendo e por que não deram o alarme imediatamente? É essa pergunta que temos, e quando ela for respondida, teremos dado um passo para a resolução do problema.
– Estou convencido – eu disse – de que existe alguma combinação entre esses dois. Ela tem de ser uma pessoa insensível para ficar rindo de um gracejo poucas horas depois do assassinato do marido.
– Exatamente. Ela não parece se comportar como uma esposa nem mesmo no relato que fez sobre o ocorrido. Não sou, como você sabe, Watson, um grande admirador das mulheres, mas minha experiência de vida me ensinou que há poucas mulheres, seja qual for o seu relacionamento com o marido, que deixariam as palavras de alguém se interpor entre elas e o cadáver do marido. Se algum dia eu me casasse, Watson, desejaria inspirar em minha mulher um sentimento tal que impedisse que ela fosse afastada por uma governanta quando meu corpo estivesse estendido a uns poucos metros dela. Isso foi mal arquitetado, porque até o investigador mais frio estranharia a falta de lamentações dessa mulher. Mesmo que não houvesse mais nada, só isso, para mim, sugeriria a existência de uma conspiração.
– Você pensa, então, que a sra. Douglas e Barker são mesmo os culpados do assassinato?
– Suas perguntas, Watson, são de uma objetividade aterrorizante – disse Holmes, sacudindo o cachimbo no ar em minha direção. – Parecem balas disparadas contra mim. Se você partir da idéia de que a sra. Douglas e Barker sabem a verdade sobre o assassinato e tentam encobri-la, então posso lhe dar uma resposta. Tenho certeza de que eles sabem a verdade. Mas sua proposição mais ferina ainda não está muito clara. Vamos analisar as dificuldades que existem.
– Vamos supor que os dois estão unidos pelos laços de um amor proibido e que decidiram se livrar do homem que estava entre eles. É uma suposição muito vaga, pois uma investigação discreta entre os criados e outras pessoas não confirma isso. Pelo contrário, há fortes indícios de que os Douglas eram muito ligados um ao outro.
– Quanto a isso, tenho certeza de que não pode ser verdade – eu disse, lembrando-me daquele rosto de mulher lindo e risonho que vi no jardim.
– Bem, pelo menos eles davam essa impressão. Mas vamos imaginar que eles fossem um casal muito astuto, que ilude todo mundo a respeito disso e que conspira para matar o marido dela. Acontece que ele é um homem sobre o qual paira algum perigo...
– Sobre isso só temos o depoimento deles dois.
Holmes pareceu preocupado.
– Entendo, Watson. Você defende a teoria segundo a qual tudo que eles disseram desde o início é falso. De acordo com o seu pensamento, nunca houve ameaça nenhuma, nem sociedade secreta, nem o Vale do Medo, nem o chefe Mac-sei-lá-o-quê ou qualquer outra coisa. Bem, isso é uma generalização muito grande. Vamos ver aonde isso nos leva. Eles inventaram isso para justificar o crime. Então reforçaram a idéia deixando a bicicleta perto da casa como prova de que alguém entrou lá. A marca sobre o peitoril sustenta a mesma idéia. E também o cartão sobre o corpo, que deve ter sido preparado na casa. Tudo isso se encaixa na sua hipótese, Watson. Mas agora chegamos ao ponto em que as coisas não se encaixam. Por que uma espingarda com o cano serrado? E ainda por cima americana? Como eles poderiam ter tanta certeza de que o disparo não chamaria a atenção de ninguém? Foi um mero acaso, se assim se pode chamar, que a sra. Allen não tenha saído para ver por que a porta batera. Por que os seus dois culpados fizeram tudo isso, Watson?
– Confesso que não sei explicar.
– Então, novamente se uma mulher e seu amante conspiram para assassinar o marido, será que os dois vão anunciar sua culpa retirando ostensivamente a aliança do morto após o crime? Você acha que isso é provável, Watson?
– Não, não é.
– E mais: a idéia de deixar uma bicicleta escondida lá fora ocorreu a você, mas será que mesmo o mais obtuso dos detetives não perceberia nisso uma pista falsa, já que a bicicleta era a primeira coisa de que o fugitivo precisaria?
– Não consigo imaginar uma explicação.
– Mesmo assim, não precisa haver uma lógica nos fatos para que a mente do homem formule uma explicação. Apenas como um exercício mental, sem supor que seja verdade, deixe-me indicar uma linha de pensamento possível. Ou seja, tudo é fruto de minha imaginação, mas quantas vezes não é a imaginação a origem da verdade?
– Vamos supor que havia um segredo, um segredo realmente vergonhoso na vida de Douglas. Isso nos faz pensar que seu assassino seja, vamos supor, alguém que queira se vingar: alguém de fora da casa. Essa pessoa, por algum motivo que, confesso, ainda não consigo explicar, pegou a aliança do morto. A vingança pode ter a ver com o primeiro casamento dele e o roubo da aliança, alguma relação com isso. Depois que essa pessoa saiu, Barker e a esposa dele chegaram ao escritório. O assassino os convenceu de que qualquer tentativa de detê-lo faria com que fosse revelado um escândalo horrível. Os dois se convenceram disso e preferiram deixá-lo sair. Talvez por isso eles tenham abaixado a ponte, o que pode ser feito quase sem provocar ruído, e depois a levantaram novamente. Ele fugiu, e por algum motivo achou que seria mais seguro ir a pé do que de bicicleta. Por isso deixou-a num local onde só seria encontrada depois que ele estivesse em segurança em algum lugar. Até aqui estamos dentro dos limites da possibilidade, não é?
– Bem, é possível, sem dúvida – eu disse com certa reserva.
– Precisamos lembrar, Watson, que, o que quer que tenha ocorrido, foi algo inusitado. Bem, agora para continuar nossas suposições, os dois – não necessariamente os dois culpados – perceberam, após a fuga do assassino, que haviam se colocado numa situação em que seria difícil provar que não cometeram o crime ou nem foram coniventes. Eles então, de modo rápido e desajeitado, encontraram a saída. A marca na janela foi feita com o chinelo manchado de Barker para dar a idéia de como o assassino fugiu. Eles dois eram as pessoas que deviam ter ouvido o disparo, de modo que não deram o alarme quando deviam e sim meia hora depois.
– E como você pretende provar tudo isso?
– Bem, se alguém entrou na casa, poderá ser procurado e detido. Esta seria a melhor prova de todas. Caso contrário... bem, os recursos científicos ainda não foram esgotados. Acredito que uma noite sozinho naquele escritório me ajudaria bastante.
– Uma noite sozinho!
– Pretendo ir até lá agora. Combine isso com o atencioso Ames, que não gosta muito de Barker. Vou me sentar naquele escritório e ver se a sua atmosfera me traz alguma inspiração. Acredito no genius loci. Você ri, meu caro Watson. Bem, veremos. A propósito, você trouxe aquele seu guarda-chuva grande, não trouxe?
– Está aqui.
– Bem, vou levá-lo, se não se importa.
– Claro que não... Mas que arma desprezível! Em caso de perigo...
– Não há nada de grande, meu caro Watson. Do contrário eu certamente pediria a sua ajuda. No momento estou apenas aguardando a volta de meus colegas de Tunbridge Wells, onde no momento estão tentando encontrar o provável dono da bicicleta.
O inspetor MacDonald e White Mason só voltaram das suas investigações no começo da noite, e chegaram radiantes, contando que haviam feito um grande progresso no nosso caso.
– Olha, vou admitir que eu duvidava que alguém tivesse entrado na casa – disse MacDonald – mas as dúvidas desapareceram. Identificamos a bicicleta e temos a descrição do nosso homem, de modo que foi um bom avanço.
– Isso me soa como o princípio do fim – disse Holmes. – Quero cumprimentar os dois do fundo do meu coração.
– Bem, eu parti do fato de que o sr. Douglas parecera perturbado desde o dia anterior, quando esteve em Tunbridge Wells. Fora em Tunbridge Wells, então, que ele tomara conhecimento de algum perigo. Estava claro, portanto, que se algum homem chegou numa bicicleta, com certeza tinha vindo de Tunbridge Wells. Levamos a bicicleta conosco e a mostramos em diversos hotéis. Foi identificada imediatamente pelo gerente do Eagle Commercial, que disse que ela pertencia a um homem chamado Hargrave, que alugara um quarto lá dois dias antes. A bicicleta e uma pequena valise eram todos os seus pertences. Ele se registrou dizendo ter chegado de Londres, mas não deu endereço. A valise foi fabricada em Londres e dentro só havia objetos ingleses, mas o homem, sem dúvida alguma, é americano.
– Bem, bem – disse Holmes, satisfeito – vocês realmente fizeram um bom trabalho, enquanto eu fiquei sentado com meu amigo elaborando teorias. É uma lição de como ser prático, sr. Mac.
– Pois é, sr. Holmes – disse o inspetor com satisfação.
– Mas tudo isso pode se encaixar na sua teoria – eu comentei.
– Pode ser e pode não ser. Mas vamos ouvir o final, sr. Mac. Não havia nada que identificasse esse homem?
– Tão pouco que é evidente que ele tomou cuidados para não ser identificado. Não havia nenhum papel ou cartas em seu quarto, nem marcas nas roupas. Havia um mapa de ciclovias da região na mesinha de cabeceira. Ele saiu do hotel ontem, depois do café-da-manhã, de bicicleta, e ninguém mais soube dele até nós chegarmos.
– É isso que me intriga, sr. Holmes – disse White Mason. – Se esse sujeito não desejava que as suspeitas recaíssem sobre ele, o certo seria ter voltado ao hotel e ficado como um turista inocente. Do jeito como ele fez, deveria saber que o gerente do hotel iria comunicar à polícia e que seu desaparecimento seria relacionado com o assassinato.
– Isso é o que seria certo imaginar. Mesmo assim, ele já comprovou sua esperteza, de qualquer modo, já que não foi apanhado. Mas a descrição dele... Qual é a descrição dele?
MacDonald apanhou o bloco de notas.
– Aqui só temos o que nos disseram. Pelo visto não observaram nada de particular nele, mas mesmo assim o carregador, o rapaz da portaria e a camareira fizeram a mesma descrição. Ele é um homem de aproximadamente 1,70 metro de altura, cerca de 50 anos, os cabelos ligeiramente grisalhos, bigode claro, nariz curvo, e um rosto que todos descreveram como ameaçador e desagradável.
– Fora a expressão, seria quase que a descrição do próprio Douglas – disse Holmes. – Ele tem pouco mais de 50, cabelos e bigodes grisalhos e mais ou menos a mesma altura. Mais alguma coisa?
– Ele usava um terno cinza-escuro com colete, um sobretudo amarelo e um boné.
– E quanto à arma?
– Tem cerca de meio metro. Podia muito bem caber na valise. Ele poderia carregá-la dentro do sobretudo sem dificuldade.
– E como o senhor acha que tudo isso se encaixa no caso?
– Bem, sr. Holmes – disse MacDonald – quando tivermos agarrado o homem – e o senhor pode ter certeza de que enviei a descrição dele por telégrafo assim que a anotei –, poderemos julgar melhor os fatos. Mas mesmo assim, já progredimos bastante. Sabemos que um americano que diz chamar-se Hargrave chegou a Tunbridge Wells dois dias antes com uma bicicleta e uma valise. Nesta ele guardava uma espingarda de cano serrado. Então veio com o propósito deliberado de cometer o crime. Ontem de manhã ele saiu em sua bicicleta com a arma escondida no sobretudo. Ninguém o viu chegar, até onde sabemos, mas ele não precisa passar pelo vilarejo para chegar aos portões do parque, e há muitos ciclistas na estrada. Presumivelmente, ele escondeu logo a bicicleta entre os loureiros, onde foi encontrada, e talvez também tenha se escondido ali, com os olhos na casa, esperando que o sr. Douglas saísse. A arma é estranha para ser usada dentro de casa, mas ele pretendia usá-la do lado de fora, e nesse caso então ela apresentava vantagens óbvias, já que seria impossível errar, e o barulho de tiros é tão comum no esporte inglês que ninguém estranharia nada na vizinhança.
– Está tudo muito claro! – disse Holmes.
– Bem, o sr. Douglas não apareceu. O que ele fez a seguir? Deixou a bicicleta e aproximou-se da casa ao anoitecer. Encontrou a ponte abaixada e ninguém por perto. Aproveitou a oportunidade pensando, sem dúvida, em dar alguma desculpa se encontrasse com alguém. Não encontrou ninguém. Entrou furtivamente no primeiro cômodo que viu e escondeu-se atrás da cortina. Dali ele pôde ver a ponte ser levantada e sabia que sua única possibilidade de fuga seria pelo fosso. Ele esperou até 22:45h, quando o sr. Douglas, em sua ronda noturna, entrou no escritório. Ele o acertou e fugiu, como planejado. Ele sabia que o pessoal do hotel falaria sobre a bicicleta e que isso seria uma pista para achá-lo. Então deixou-a lá e seguiu de alguma outra forma para Londres ou para algum esconderijo seguro que já tivesse providenciado. O que acha, sr. Holmes?
– Bem, sr. Mac, muito bom e muito claro até aí. Esse é o seu final da história. Meu final é que o crime foi cometido meia hora mais cedo do que o relatado; que a sra. Douglas e o sr. Barker estão envolvidos numa conspiração para esconder algo; que eles ajudaram a fuga do assassino (ou, pelo menos, que chegaram ao escritório antes que o assassino tivesse fugido) e que forjaram provas da fuga pela janela, enquanto, com toda certeza, eles mesmos abaixaram a ponte para que o assassino fugisse. É assim que eu vejo a primeira metade.
Os dois detetives sacudiram a cabeça.
– Bem, sr. Holmes, se isso é verdade, saímos de um mistério e entramos em outro – disse o inspetor de Londres.
– E, de certa forma, um mistério pior – acrescentou White Mason. A senhora nunca esteve na América em toda a sua vida. Que ligação ela poderia ter com um assassino americano que fizesse com que o acobertasse?
– Eu reconheço as dificuldades – disse Holmes. – Pretendo fazer uma investigação sozinho hoje à noite, e talvez isso possa esclarecer alguma coisa.
– Podemos ajudá-lo, sr. Holmes?
– Não, não! Trevas e o guarda-chuva de Watson. Meus desejos são simples. E Ames, o leal Ames. Não há dúvida de que ele me fará essa concessão. Todas as minhas linhas de pensamento me levam de volta a uma pergunta básica: por que um homem de porte atlético desenvolve seu físico com um aparelho tão incomum quanto o halter simples?
Já era bem tarde da noite quando Holmes voltou de sua investigação solitária. Dormíamos num quarto com duas camas, que foi a melhor coisa que a hospedaria pôde nos arranjar. Eu já estava dormindo quando fui meio despertado pela entrada dele.
– Como é, Holmes – eu murmurei –, descobriu alguma coisa?
Ele ficou ao meu lado em silêncio, com a vela na mão. Depois, aquela figura alta e magra se inclinou na minha direção.
– Watson – ele sussurrou – você teria medo de dormir no mesmo quarto com um lunático, um homem de miolo mole, um idiota que perdeu o juízo?
– De modo algum – eu respondi, perplexo.
– Que sorte – ele disse, e não pronunciou nem mais uma palavra naquela noite.