a aventura do
construtor de norwood
– Do ponto ponto de vista de um perito criminal – disse ao sr. Sherlock Holmes –, Londres transformou-se numa cidade singularmente desinteressante desde a morte do saudoso professor Moriarty.
– Duvido que encontre muitos cidadãos decentes que concordem com você – respondi.
– Bem, bem, não devo ser egoísta – ele disse com um sorriso, enquanto afastava sua cadeira da mesa, depois do café-da-manhã. – A comunidade com certeza é a ganhadora e ninguém é o perdedor, a não ser o pobre perito sem trabalho, cuja ocupação desapareceu. Com aquele homem na área, cada jornal matutino apresentava possibilidades infinitas. Freqüentemente, Watson, o menor traço, a indicação mais vaga já bastavam para me dizer que o grande cérebro maligno estava ali, assim como
os menores tremores nas bordas da teia lembram-nos da aranha que se oculta no centro. Furtos insignificantes, assaltos audaciosos, afrontas sem propósito – quem tivesse a pista poderia juntar tudo num conjunto interligado. Para o estudioso científico do alto mundo do crime, nenhuma capital da Europa oferecia as vantagens que Londres tinha então. Mas agora... – encolheu os ombros numa depreciação bem-humorada do estado de coisas para o qual ele próprio contribuíra.
Na época de que falo, Holmes tinha reaparecido havia alguns meses, e, a seu pedido, eu vendera minha clínica e voltara a dividir com ele os antigos aposentos em Baker Street. Um jovem médico chamado Verner comprara minha pequena clínica em Kensington, pagando sem objeções o alto preço que ousei pedir – um incidente que só se explicou alguns anos depois, quando descobri que Verner era um parente distante de Holmes e, na verdade, fora o meu amigo quem dera o dinheiro.
Nossos meses de parceria não foram tão desprovidos de casos como ele afirmara, pois descobri, examinando minhas anotações, que este período inclui o caso dos papéis do ex-presidente Murillo, e também o caso chocante do barco a vapor holandês ,que quase nos custou a vida. Entretanto, sua natureza fria e orgulhosa era sempre avessa a qualquer tipo de aplauso público, intimando-me, nos termos mais rigorosos, a não dizer uma palavra sobre ele, seus métodos ou suas vitórias – uma proibição que, como já expliquei, só agora foi retirada.
Sherlock Holmes recostara-se na cadeira após seu protesto lamentoso e estava desdobrando sem pressa o jornal matutino, quando nossa atenção foi atraída por um tremendo toque da campainha, seguido de uma pancada oca, como se alguém estivesse batendo na porta de fora com a mão fechada. Assim que ela se abriu, houve um tumulto no saguão, passos rápidos subindo a escada e logo depois um jovem fora de si, com um olhar selvagem, pálido, desalinhado e palpitante, irrompeu na sala. Olhou alternadamente para nós dois e, diante de nosso olhar inquiridor, percebeu que era preciso alguma desculpa para esta entrada sem cerimônia.
– Desculpe-me, sr. Holmes! – exclamou. – Não deve me censurar. Estou quase louco, sr. Holmes, sou o infeliz John Hector McFarlane.
Ele se anunciou como se bastasse o nome para explicar sua visita e seus modos, mas eu podia ver, pelo rosto inexpressivo do meu amigo, que não significava mais para ele do que para mim.
– Pegue um cigarro, sr. McFarlane – disse ele, estendendo-lhe sua cigarreira. – Estou certo de que, com os seus sintomas, meu amigo aqui, o dr. Watson, lhe prescreveria um sedativo. O tempo tem estado tão quente nesses últimos dias. Agora, se o senhor estiver um pouco melhor, eu gostaria que se sentasse naquela cadeira e nos contasse calma e lentamente quem é e o que deseja. Mencionou seu nome como se eu devesse conhecê-lo, mas asseguro-lhe que, a não ser os fatos óbvios de que é solteiro, advogado, maçom e asmático, não sei mais nada sobre o senhor.
Familiarizado como estava com os métodos do meu amigo, não foi difícil para mim acompanhar suas deduções e observar as roupas desalinhadas, o maço de papéis legais, o berloque do relógio e a respiração que as sugerira. Mas nosso cliente ficou espantado.
– Sim, sou tudo isso, sr. Holmes, e também o homem mais infeliz de Londres neste momento. Por Deus, não me abandone, sr. Holmes! Se vierem me prender antes de eu terminar minha história, faça com que me dêem tempo para que possa lhe contar toda a verdade. Poderia ir para a cadeia feliz, se soubesse que o senhor estaria trabalhando por mim do lado de fora.
– Prender você! – disse Holmes. – Isto é realmente muito grati... muito interessante. Sob que acusação você espera ser preso?
– Sob a acusação de assassinar o sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.
O rosto expressivo do meu amigo mostrava uma simpatia que, receio, não estava totalmente isenta de satisfação.
– Pobre de mim – disse ele. – Há poucos instantes, no café-da-manhã, eu estava dizendo ao meu amigo, dr. Watson, que os casos sensacionais haviam desaparecido dos nossos jornais.
Nosso visitante estendeu a mão trêmula e pegou o que ainda estava sobre os joelhos de Holmes.
– Se o tivesse lido, senhor, teria visto logo com que intenção vim aqui esta manhã. Sinto-me como se meu nome e meu infortúnio estivessem na boca de todos. – Mostrou-nos a página central. – Aqui está e, com sua permissão, vou lê-lo para o senhor. Escute isto, sr. Holmes. O cabeçalho é: “Caso Misterioso em Lower Norwood. Desaparecimento de um Conhecido Construtor. Suspeita de Assassinato e Incêndio Premeditado. Pista para o Criminoso.” Esta é a pista que eles já estão seguindo, sr. Holmes, e sei que ela conduz infalivelmente a mim. Fui seguido desde a estação da Ponte de Londres, e tenho certeza de que estão apenas esperando pelo mandado para me prenderem. Isto vai partir o coração de minha mãe – vai partir o coração dela! – Ele torcia as mãos de angústia e se balançava para a frente e para trás na cadeira.
Olhei com interesse para esse homem, que era acusado de ser o autor de um crime violento. Era bonito e louro, de um modo desbotado e neutro, com olhos azuis amedrontados e um rosto escanhoado, uma boca sensível e delicada. Devia ter uns 27 anos, seu modo de vestir e seu procedimento eram os de um cavalheiro. Do bolso de seu sobretudo claro de verão sobressaía o maço de papéis que revelava sua profissão.
– Devemos aproveitar o tempo que temos – disse Holmes. – Watson, você faria a gentileza de pegar o jornal e ler o tema em questão?
Abaixo dos cabeçalhos incisivos que nosso cliente citara, li o seguinte relato sugestivo:
– Na noite de ontem, ou bem cedo esta manhã, ocorreu um incidente em Lower Norwood que aponta, como se receia, para um crime grave. O sr. Jonas Oldacre é um conhecido morador daquele subúrbio, onde, durante muitos anos, manteve seu negócio como construtor. O sr. Oldacre é solteiro, tem 52 anos de idade e mora em Deep Dene House, no terminal Sydenham da estrada do mesmo nome. Tinha fama de ser um homem excêntrico, reservado e modesto. Há alguns anos praticamente se retirou do negócio, no qual dizem que acumulou uma fortuna considerável. Entretanto, ainda existe um pequeno depósito de madeiras nos fundos da casa, e na noite passada, por volta da meia-noite, foi dado o alarme: uma pilha de lenha estava pegando fogo. Os bombeiros chegaram logo ao local, mas a madeira seca queimou com muita fúria, e não foi possível apagar o incêndio até que a pilha toda fosse consumida. Até esse ponto o fato parecia um acidente comum, mas novos indícios parecem apontar para um crime grave. Causou surpresa a ausência, no local do incêndio, do dono do estabelecimento, e procedeu-se a um interrogatório, que apurou que ele desaparecera da casa. Um exame do seu quarto revelou que a cama não fora desarrumada, o cofre que havia lá estava aberto, vários papéis importantes estavam espalhados pelo chão e, finalmente, que havia sinais de luta mortal, sendo encontrados vestígios de sangue pelo quarto, e uma bengala de carvalho, cujo cabo também mostrava manchas de sangue. Sabe-se que o sr. Jonas Oldacre recebeu em seu quarto um visitante naquela noite, e a bengala encontrada foi identificada como de propriedade desta pessoa, um jovem advogado de Londres chamado John Hector McFarlane, sócio da Graham e McFarlane, no número 426 dos edifícios Gresham, E. C. A polícia acredita dispor de indícios que fornecem um motivo bem convincente para o crime, e não há dúvida de que se farão progressos sensacionais.
MAIS TARDE:
Surgiram rumores, enquanto imprimimos, de que o sr. John Hector McFarlane já foi preso sob a acusação de assassinato do sr. Jonas Oldacre. É certo, pelo menos, que um mandado foi expedido. Existem mais indícios sinistros na investigação em Norwood. Além dos sinais de luta no quarto do infeliz construtor, sabe-se agora que as portas envidraçadas de seu quarto (que fica no primeiro andar) foram encontradas abertas; que há marcas como se um objeto grande tivesse sido atirado na pilha de madeira e, finalmente, afirma-se que restos carbonizados foram descobertos entre as cinzas do incêndio. A teoria da polícia é a de que um crime, dos mais sensacionais, foi cometido, que a vítima foi morta a pauladas em seu próprio quarto, seus papéis revirados e seu corpo sem vida jogado na pilha de madeira, que foi então acesa, para esconder todos os vestígios do crime. A condução da investigação criminal foi deixada nas mãos experientes do inspetor Lestrade, da Scotland Yard, que está seguindo as pistas com sua energia e sagacidade costumeiras.
Sherlock Holmes ouviu, de olhos fechados e com as pontas dos dedos unidas, este relato incrível.
– O caso certamente tem alguns pontos interessantes – disse ele com seu jeito indolente. – Em primeiro lugar, sr. McFarlane, posso perguntar como ainda está em liberdade, já que parece haver indícios suficientes para justificar sua prisão?
– Moro em Torrington Lodge, Blackheath, com meus pais, sr. Holmes, mas na noite passada, tendo de trabalhar até muito tarde com o sr. Jonas Oldacre, pernoitei num hotel em Norwood, e vim de lá para o trabalho. Não sabia nada sobre este caso até estar no trem, quando li o que acabou de ouvir. Percebi logo o perigo horrível da minha situação e corri para pôr o caso em suas mãos. Não tenho dúvida de que teria sido preso no escritório ou em casa. Um homem me seguiu desde a estação da Ponte de Londres e não duvido que... Meu Deus! O que é isto?
Houve um toque de campainha, seguido de passos pesados na escada. Logo depois, nosso velho amigo Lestrade apareceu à porta. Por cima do seu ombro vi um ou dois policiais uniformizados do lado de fora.
– Sr. John Hector McFarlane? – perguntou Lestrade.
Nosso infeliz cliente levantou-se, pálido.
– Prendo-o pelo assassinato premeditado do sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.
McFarlane virou-se para nós com um gesto de desespero, e afundou de novo na cadeira como alguém que se sentisse derrotado.
– Um momento, Lestrade – disse Holmes. – Meia hora a mais ou a menos não fará diferença, e o cavalheiro estava para nos dar um resumo deste caso interessante e que pode nos ajudar a esclarecê-lo.
– Creio que não há dificuldade em esclarecê-lo – disse Lestrade, inflexível.
– Mas, com sua permissão, eu gostaria muito de ouvir o relato dele.
– Bem, sr. Holmes, é difícil para mim recusar-lhe qualquer coisa, pois já foi útil para a polícia uma ou duas vezes no passado, e nós lhe devemos muito na Scotland Yard – disse Lestrade. – Enquanto isso, devo ficar com o meu prisioneiro, e aviso-lhe que qualquer coisa que diga pode depor contra ele.
– Não espero nada melhor – disse nosso cliente. – Tudo que peço é que escute e reconheça a verdade absoluta.
Lestrade consultou o relógio. – Tem meia hora – avisou.
– Devo explicar primeiro – disse McFarlane – que não sabia nada sobre o sr. Jonas Oldacre. Eu o conhecia de nome porque meus pais mantinham relações com ele, mas depois se afastaram. Portanto, fiquei muito surpreso quando ontem, lá pelas 15 horas, ele entrou no meu escritório, na cidade. Mas fiquei ainda mais espantado quando me disse o objetivo de sua visita. Tinha na mão várias folhas de caderno cobertas com texto manuscrito – aqui estão – e as deixou sobre a minha mesa.
– “Aqui está o meu testamento”, disse ele. “Quero que o senhor, McFarlane, o coloque numa forma legal apropriada. Vou me sentar aqui enquanto faz isso.”
– Pus-me a copiá-lo, e o senhor pode imaginar o meu assombro quando descobri que, com algumas exceções, deixara todas as suas posses para mim. Era um homem pequeno e estranho, parecido com um furão, com pestanas brancas e, quando ergui os olhos para ele, encontrei seus penetrantes olhos cinzentos fixos em mim com uma expressão divertida. Mal podia acreditar nos meus próprios sentidos enquanto lia os termos do testamento; mas ele explicou que era solteiro, com quase nenhum parente vivo, que tinha conhecido meus pais quando era jovem e que sempre ouvira falar de mim como um rapaz muito digno, e estava certo de que seu dinheiro estaria em boas mãos. Naturalmente, eu só pude balbuciar os meus agradecimentos. O testamento foi devidamente terminado, assinado e testemunhado pelo meu escrivão. Está aqui no papel azul, e estas notas, como já expliquei, são o rascunho. O sr. Jonas Oldacre me informou então que havia vários documentos – aluguéis de edifícios, títulos de propriedade, hipotecas, certificados de subscrição de ações e assim por diante, que eu precisava ver e entender. Disse que sua cabeça não ficaria tranqüila até que a coisa toda estivesse pronta, e me pediu para ir à sua casa em Norwood aquela noite, levando o testamento comigo, para acertar tudo.
– “Lembre-se, meu rapaz, nem uma palavra a seus pais sobre isto, até que tudo esteja pronto. Guardaremos isto como uma pequena surpresa para eles.” Ele insistiu muito nesse ponto e me fez prometer.
– Pode imaginar, sr. Holmes, que eu não estava num estado de espírito para lhe recusar nada. Era o meu benfeitor e tudo o que eu queria era satisfazer seus desejos em cada detalhe. Portanto, mandei um telegrama para casa dizendo que tinha um negócio importante para resolver e que era impossível calcular quanto tempo me atrasaria. O sr. Oldacre dissera que gostaria que eu jantasse com ele às 21 horas, pois não estaria em casa antes dessa hora. Mas, tive certa dificuldade em achar sua casa e já estava quase meia hora atrasado quando cheguei. Encontrei-o...
– Um momento! – interrompeu Holmes. – Quem abriu a porta?
– Uma senhora de meia-idade, que era a governanta, suponho.
– Presumo que tenha sido ela quem mencionou o seu nome?
– Exatamente – disse McFarlane.
– Continue, por favor.
McFarlane enxugou a testa úmida e continuou a narrativa:
– Essa senhora me levou até uma sala de estar onde estava servido um jantar frugal. Mais tarde, o sr. Jonas Oldacre me levou até o seu quarto, onde havia um cofre pesado. Ele o abriu e pegou uma pilha de documentos, que examinamos juntos. Terminamos entre 23 horas e meia-noite. Ele comentou que não deveríamos perturbar a governanta. Fez com que eu saísse pela porta envidraçada que ficara aberta o tempo todo.
– A veneziana da janela estava abaixada?
– Não tenho certeza, mas creio que estava apenas à meia altura. Sim, lembro-me de que ele a levantou para abrir a janela. Eu não conseguia achar a minha bengala, e ele disse: “Não tem importância, meu rapaz, eu o verei com freqüência agora, espero, e eu a guardarei até que volte para apanhá-la”. Deixei-o lá, o cofre aberto e os papéis em pilhas sobre a mesa. Era tão tarde que não poderia voltar a Blackheath, de modo que passei a noite no Anerley Arms, e não soube de mais nada até que li sobre este caso horrível de manhã.
– Não há mais nada que gostaria de perguntar, sr. Holmes? – disse Lestrade, cujas sobrancelhas se ergueram uma ou duas vezes durante este relato.
– Não até que tenha ido a Blackheath.
– Você quer dizer a Norwood – comentou Lestrade.
– Ah, sim, sem dúvida é o que pretendia dizer – afirmou Holmes, com seu sorriso enigmático. Lestrade aprendera, por mais experiências do que podia se lembrar, que aquela mente afiada como lâmina podia trespassar o que era impenetrável para ele. Vi que olhava com curiosidade para o meu amigo.
– Acho que gostaria de ter uma palavra com o senhor – disse ele para Holmes. – Agora, sr. McFarlane, dois de meus homens estão lá na porta, e há um carro esperando. – O infeliz jovem se levantou com um último olhar suplicante para nós, e saiu da sala. Os policiais o levaram para o cabriolé, mas Lestrade ficou.
Holmes apanhara as páginas do rascunho do testamento e as estava examinando com o maior interesse.
– Existem alguns detalhes a respeito deste documento, Lestrade, não é? – disse ele, entregando-os.
O policial olhou para eles com uma expressão confusa.
– Posso ler as primeiras linhas, e as do meio da segunda página, e uma ou duas no final. São nítidas como se fossem impressas – disse ele –, mas a escrita entre elas é muito ruim, e há três lugares em que não consigo ler nada.
– O que você deduz daí? – disse Holmes.
– Bem, o que deduz dele?
– Que foi escrito num trem. A caligrafia boa representa paradas, a ruim significa movimento, e a muito ruim, passando por desvios. Um perito diria que isto foi escrito numa linha suburbana, já que em nenhum outro lugar, a não ser na periferia de uma cidade grande, haveria uma sucessão tão rápida de desvios. Admitindo que ele passou a viagem toda fazendo o testamento, então o trem era um expresso, só parando uma vez entre Norwood e a Ponte de Londres.
Lestrade começou a rir.
– O senhor é demais para mim quando começa com suas teorias, sr. Holmes – disse ele. – O que isso tem a ver com o caso?
– Bem, isso confirma a história do rapaz de que o testamento foi escrito por Jonas Oldacre durante sua viagem ontem. É curioso – não é? – que um homem escreva um documento tão importante de maneira tão displicente. Isso sugere que ele não achava que iria ter muita importância prática. Se um homem fosse escrever um testamento que não quisesse efetivar nunca, ele o faria desta maneira.
– Bem, ele escreveu ao mesmo tempo a sua própria sentença de morte – disse Lestrade.
– Oh, acha isso?
– Você não?
– Bem, é possível, mas o caso ainda não está claro para mim.
– Não está claro? Bem, se aquilo não está claro, o que estar? Temos um rapaz que de repente descobre que, se um certo homem idoso morrer, ele herdará uma fortuna. O que ele faz? Não diz nada a ninguém, mas inventa que tem de ir visitar seu cliente, sob algum pretexto, aquela noite. Espera até que a outra pessoa da casa esteja na cama, e então, no isolamento do quarto de um homem, assassina-o, queima seu corpo na pilha de madeira e vai para um hotel da vizinhança. As manchas de sangue no quarto e também na bengala são muito tênues. É provável que imaginasse que seu crime fosse sem sangue, e pensou que se o corpo fosse consumido, ocultaria todos os traços do método da morte – traços que, por algum motivo, apontariam para ele. Isso tudo não é óbvio?
– Isto me impressiona, meu bom Lestrade, por ser uma ninharia óbvia demais – disse Holmes. – Você não acrescenta imaginação às suas outras grandes qualidades, mas se o conseguir por um instante, ponha-se no lugar deste rapaz; escolheria a noite seguinte à preparação do testamento, para cometer seu crime? Não pareceria perigoso, para você, fazer uma relação tão próxima entre os dois incidentes? Além disso, escolheria uma ocasião em que sabiam que você estava na casa, quando uma empregada o deixara entrar? E, finalmente, você se esforçaria para ocultar o corpo e mesmo assim deixa sua própria bengala como um sinal de que foi o criminoso? Confesse, Lestrade, que tudo isso é muito improvável.
– Com relação à bengala, sr. Holmes, sabe tão bem quanto eu que em geral um criminoso é um indivíduo perturbado, e faz coisas que um homem equilibrado evitaria. Muito provavelmente ele estava com medo de voltar ao quarto. Dê-me outra teoria que se encaixe nos fatos.
– Poderia facilmente dar meia dúzia – disse Holmes. – Aqui, por exemplo, está uma muito possível e mesmo provável. Vou dá-la de graça para você. O velho está mostrando documentos que são de valor evidente, um vagabundo passa e os vê pela janela, cuja persiana só está à meia altura. O advogado sai. Entra o vagabundo! Pega a bengala que vê ali, mata Oldacre e vai embora depois de queimar o corpo.
– Por que o vagabundo queimaria o corpo?
– Quanto a isso, por que McFarlane o faria?
– Para esconder alguma prova.
– Possivelmente o vagabundo queria esconder que havia sido cometido um crime.
– E por que ele não levou nada?
– Porque não eram papéis que ele pudesse negociar.
Lestrade balançou a cabeça, embora me desse a impressão de estar menos seguro do que antes.
– Bem, sr. Sherlock Holmes, pode procurar o seu vagabundo, e enquanto faz isso, nós seguraremos o nosso homem. O futuro mostrará quem está certo. Mas atente para este ponto, sr. Holmes: até onde sabemos, nenhum dos papéis foi roubado, e nosso prisioneiro é o único homem no mundo que não tinha motivo para tirá-los de lá, já que era o herdeiro legítimo, e teria a posse deles de qualquer maneira.
Meu amigo pareceu impressionado por esta observação.
– Não nego que a evidência, em alguns aspectos, é muito forte em favor de sua teoria – disse ele. – Só desejo lembrar que existem outras teorias possíveis. Como você disse, o futuro decidirá. Até logo! Acho que durante o dia vou dar um pulo a Norwood e ver como está se saindo.
Quando o detetive foi embora, meu amigo levantou-se e fez seus preparativos para o dia de trabalho com a expressão alerta de um homem que tem pela frente uma tarefa adequada.
– Meu primeiro movimento, Watson – disse ele, enquanto se metia na sua sobrecasaca –, tem de ser, como eu disse, na direção de Blackheath.
– Por que não Norwood?
– Porque nós temos neste caso um incidente singular vindo junto com outro incidente singular. A polícia está cometendo o erro de concentrar sua atenção no segundo, porque este parece ser o único realmente criminoso. Mas para mim é evidente que a maneira lógica de solucionar o caso é começar tentando jogar alguma luz sobre o primeiro incidente – o curioso testamento, feito tão repentinamente, e para um herdeiro tão inesperado. Pode ajudar a simplificar o que veio depois. Não, meu caro amigo, não acho que você possa me ajudar. Não existe nenhuma perspectiva de perigo, ou nem sonharia em sair sem você. Creio que quando o vir à noite, estarei apto a dizer que pude fazer algo por este jovem infeliz que se colocou sob a minha proteção.
Já era tarde quando meu amigo voltou, e pude ver, num olhar de relance para o seu rosto fatigado e ansioso, que as grandes esperanças com que começara não se realizaram. Durante uma hora ficou arranhando seu violino, tentando acalmar seu espírito agitado. Finalmente deixou o instrumento e começou a fazer um relato detalhado de suas desventuras.
– Está tudo dando errado, Watson; o mais errado possível. Não dei o braço a torcer diante de Lestrade, mas no fundo da minha alma acredito que pela primeira vez o sujeito está no caminho certo e nós no errado. Todos os meus instintos vão num sentido e todos os fatos noutro, e receio que os júris britânicos ainda não tenham alcançado este nível de inteligência quando derem preferência às minhas teorias e não aos fatos de Lestrade.
– Você foi a Blackheath?
– Sim, Watson, estive lá, e descobri rapidamente que o saudoso Oldacre era um grandissíssimo cafajeste. O pai de McFarlane tinha saído para procurar o filho. A mãe estava em casa – pequenina, rechonchuda, de olhos azuis, trêmula de medo e indignação. É claro que ela não podia admitir nem mesmo a possibilidade de culpa dele. Mas não manifestou nem surpresa nem pesar pela morte de Oldacre. Pelo contrário, falou dele com tal rancor que estava inconscientemente reforçando a tese da polícia, pois, naturalmente, se o seu filho a ouviu falar desse homem desta maneira, ficaria predisposto contra ele com ódio e violência. “Ele se parecia mais com um macaco maligno e manhoso do que com um ser humano”, disse ela, “e sempre foi assim, desde que era jovem”.
– Você o conhecia naquela época? – perguntei.
– “Sim, na verdade o conhecia bem; era um antigo pretendente meu. Graças a Deus tive o bom senso de me afastar dele e me casar com um homem melhor, embora mais pobre. Estava noiva dele, sr. Holmes, quando ouvi uma história chocante de como ele soltou um gato num aviário, e fiquei tão horrorizada com sua crueldade brutal que não quis ter mais nada a ver com ele.” Ela foi até uma escrivaninha, pegou a fotografia de uma mulher, horrivelmente desfigurada e mutilada com uma faca. “É a minha fotografia”, e disse: “Ele a enviou para mim neste estado na manhã de meu casamento, junto com sua maldição.”
– “Bem”, eu disse, “pelo menos ele a perdoou agora, pois deixou todas as suas posses para seu filho.”
– “Nem meu filho nem eu queremos nada de Jonas Oldacre, vivo ou morto!”, exclamou ela, com coerência. “Existe um Deus no céu, sr. Holmes, e o mesmo Deus que puniu esse homem perverso mostrará, em Seu justo tempo, que as mãos de meu filho são inocentes do sangue dele.”
– Bem, tentei um ou dois outros indícios, mas não consegui chegar a nada que pudesse ajudar a nossa hipótese, e há vários pontos que vêm contra ela. Finalmente desisti e fui para Norwood.
– Este lugar, Deep Dene House, é uma casa de campo grande e moderna, nos fundos de seu terreno, com moitas de louro na frente. À direita e a uma certa distância da estrada estava o pátio de lenha que foi o cenário do incêndio. Aqui está um esboço do mapa, numa folha do meu caderno. Esta janela à esquerda é a que dá para o quarto de Oldacre. Da estrada, você pode olhar lá para dentro. Este foi o único consolo que tive hoje. Lestrade não estava lá, mas seu braço direito fez as honras. Tinham acabado de achar uma preciosidade. Haviam passado a manhã inteira remexendo as cinzas da pilha de madeira queimada e, além dos restos orgânicos torrados, encontraram vários discos de metal descoloridos. Examinei-os com cuidado, e não havia dúvida de que eram botões de calça. Até percebi que um deles estava marcado com o nome de “Hyams”, que era o alfaiate de Oldacre. Então examinei a área cuidadosamente à procura de sinais e vestígios, mas esta seca deixou tudo duro como ferro. Não havia nada para ser visto, a não ser que um corpo ou fardo fora atirado numa pequena sebe de alfena, que está ao lado da pilha de madeira. Tudo isso, claro, se encaixa na teoria oficial. Rastejei pelo jardim com um sol de agosto nas minhas costas, mas me levantei depois de uma hora sem saber mais do que antes.
– Bem, depois deste fiasco, fui para o quarto e o revistei também. As manchas de sangue eram muito tênues, simples borrões e descolorações, mas, sem dúvida alguma, frescas. A bengala já tinha sido retirada, mas lá as marcas também eram superficiais. Não há dúvida de que a bengala pertencia ao nosso cliente. Ele admite isso. Pegadas dos dois homens podiam ser notadas no tapete, mas nenhuma de uma terceira pessoa, o que é novamente uma decepção para nós. Eles estão aumentando seu escore, enquanto nós ainda estamos na estaca zero.
– Só tive um pequeno lampejo de esperança – e de novo não deu em nada. Examinei o conteúdo do cofre, cuja maior parte havia sido retirada e colocada em cima da mesa. Os papéis foram postos em envelopes selados, dos quais um ou dois a polícia abrira. Não eram, pelo que pude ver, de grande valor, nem a caderneta do banco mostrava que o sr. Oldacre estava numa situação tão boa. Mas me pareceu que nem todos os papéis estavam ali. Havia alusões a certos documentos – possivelmente os mais valiosos – que não consegui encontrar. Isto, é claro, se pudéssemos prová-lo definitivamente, viraria o argumento de Lestrade contra ele mesmo; pois quem roubaria algo se soubesse que o herdaria em breve?
– Por fim, tendo vasculhado todos os livros e não encontrando nenhuma pista, tentei a sorte com a governanta, a sra. Lexington – pequenina, morena e silenciosa, com olhos desconfiados e oblíquos. Ela poderia nos contar algo, se quisesse – estou convencido disso. Mas era muito fechada. Sim, deixara o sr. McFarlane entrar às 21:30h. Desejou que sua mão tivesse secado antes de fazer aquilo. Foi para a cama às 22:30h. Seu quarto ficava no outro lado da casa, e não podia ouvir nada do que se passou. O sr. McFarlane tinha deixado o chapéu e, tanto quanto sabia, a bengala, no saguão. Foi acordada pelo alarme de incêndio. Seu pobre, querido patrão certamente fora assassinado. Ele tinha inimigos? Ora, todo homem tem inimigos, mas o sr. Oldacre era muito fechado, e só se relacionava com as pessoas na área de trabalho. Ela vira os botões e tinha certeza de que pertenciam às roupas que ele vestira na noite passada. A pilha de madeira estava muito seca, pois não chovera durante um mês. Queimou como uma isca inflamável, e quando chegou ao local, não se via nada além das chamas. Ela e todos os bombeiros sentiram o cheiro de carne queimada que vinha de lá. Não sabia nada sobre os papéis nem sobre a vida particular do sr. Oldacre.
– Aí está, meu caro Watson, o relato de um fracasso. E ainda assim – e ainda assim – ele cerrou as mãos num paroxismo de convicção. – Eu que está tudo errado. Sinto isso nos meus ossos. Existe algo que ainda não apareceu, e aquela governanta sabe o que é. Havia uma espécie de desafio irritado em seus olhos, que só se explica pelo conhecimento culposo. Entretanto, é melhor não falarmos mais nisso, Watson; mas, a não ser que algum feliz acaso nos apareça, receio que o Caso do Desaparecimento de Norwood não figurará nas crônicas dos nossos êxitos, dos quais prevejo que um público paciente tomará conhecimento, cedo ou tarde.
– Decerto – disse eu – a aparência do homem ajudaria em qualquer júri?
– Este é um argumento perigoso, meu caro Watson. Lembra-se daquele assassino terrível, Bert Stevens, que queria que o puséssemos em liberdade em 1887? Já houve algum rapaz mais bem-educado, com aparência de aluno de uma escola de catecismo?
– É verdade.
– A menos que consigamos elaborar uma teoria alternativa, este homem está perdido. Você dificilmente pode achar uma falha na acusação que agora pode ser apresentada contra ele, e toda investigação a mais tem servido para reforçá-la. Falando nisso, há um pequeno detalhe curioso em relação a esses papéis que pode nos servir como ponto de partida de uma investigação. Ao examinar a caderneta do banco, descobri que o saldo pequeno era causado principalmente por grandes somas que foram retiradas durante o ano passado para o sr. Cornelius. Confesso que estou interessado em saber quem seria este sr. Cornelius, com quem um construtor aposentado manteve transações tão vultosas. Será possível que ele tenha tido um dedo no caso? Cornelius podia ser um corretor, mas não encontramos nenhum certificado de subscrição de ações que correspondesse a esses pagamentos grandes. Depois do fracasso de outras indicações, minhas pesquisas devem se concentrar agora no banco, para descobrir o cavalheiro que se apresentou para descontar estes cheques. Mas receio, meu caro amigo, que o nosso caso termine de modo inglório, com Lestrade enforcando nosso cliente, o que certamente será um triunfo para a Scotland Yard.
Não sei se Sherlock Holmes conseguiu dormir aquela noite, mas, quando desci para o café-da-manhã, encontrei-o pálido e fatigado, seus olhos brilhantes reluziam ainda mais devido às sombras escuras ao redor deles. O tapete em volta da sua cadeira estava coberto de pontas de cigarro e com as edições recentes dos jornais matutinos. Um telegrama estava aberto sobre a mesa.
– O que acha disso, Watson? – perguntou, atirando-o para mim.
Era de Norwood, e dizia o seguinte:
Importante indício novo em mãos. Culpa de McFarlane definitivamente estabelecida. Aconselho abandonar caso.
Lestrade.
– Isso parece ser sério – eu disse.
– É o pequeno canto de vitória de Lestrade – respondeu Holmes, com um sorriso amargurado. – E ainda pode ser prematuro abandonar o caso. Afinal, importante indício novo é uma faca de dois gumes, e pode cortar numa direção bem diferente da que Lestrade imagina. Tome o seu café, Watson, sairemos juntos e veremos o que podemos fazer. Sinto-me como se precisasse de sua companhia e apoio moral hoje.
Meu amigo não tomou o café-da-manhã, pois uma de suas peculiaridades era que em seus momentos mais intensos ele não se permitia nenhuma comida, e eu sabia que confiava demais na sua força de ferro, até que desmaiava de pura inanição. “No momento não posso gastar energia e força dos nervos para a digestão”, ele diria, em resposta aos meus conselhos médicos. Sendo assim, não me surpreendi quando nessa manhã ele deixou sua comida intacta e foi comigo para Norwood. Um grupo de observadores mórbidos ainda estava reunido em volta de Deep Dene House, que era uma casa de campo suburbana tal como eu imaginara. Dentro dos portões, Lestrade encontrou-se conosco, seu rosto corado com a vitória, seus modos triunfantemente brutos.
– Bem, sr. Holmes, já provou que estamos errados? Achou o seu vagabundo? – exclamou.
– Ainda não cheguei a nenhuma conclusão – respondeu o meu amigo.
– Mas nós chegamos à nossa ontem, e agora ela prova que é correta; assim, deve reconhecer que desta vez estamos um pouco à sua frente, sr. Holmes.
– Sua expressão mostra que aconteceu algo incomum – disse Holmes.
Lestrade riu alto.
– O senhor não gosta de ser derrotado, assim como nós – ele disse. – Um homem não pode esperar que tudo saia sempre à sua maneira, pode, dr. Watson? Sigam por aqui, cavalheiros, e acho que posso convencê-los de uma vez por todas que foi John McFarlane quem cometeu este crime.
Ele nos levou por um corredor e chegamos a um saguão.
– Foi aqui que o jovem McFarlane deve ter vindo para apanhar seu chapéu, depois de o crime ter sido cometido – disse ele. – Agora olhem para isto. – Com uma rapidez dramática, acendeu um fósforo, e à sua luz vimos uma mancha de sangue na parede branca. Quando ele aproximou o fósforo, vi que era mais do que uma mancha. Era a nítida impressão de um polegar.
– Olhe para ela com sua lente de aumento, sr. Holmes.
– Sim, estou fazendo isso.
– Sabe que duas impressões de polegar nunca são iguais?
– Ouvi algo deste tipo.
– Bem, então, queira comparar esta impressão com a do jovem McFarlane, em cera, que eu mandei tirar esta manhã.
Quando ele comparou as duas, não era necessário usar uma lente de aumento para se ver que elas eram, sem sombra de dúvida, do mesmo polegar. Era evidente para mim que o nosso cliente estava perdido.
– Isto é definitivo – disse Lestrade.
– Sim, é definitivo – repeti involuntariamente.
– É definitivo – disse Holmes.
Alguma coisa no seu tom chamou minha atenção, e me virei para ele. Ocorrera uma mudança extraordinária em seu rosto. Estava com uma expressão de contentamento interior. Seus olhos brilhavam como estrelas. Parecia que estava fazendo um esforço desesperado para reprimir um ataque de riso.
– Pobre de mim! Pobre de mim! – ele disse afinal. – Bem, agora, quem teria pensado nisso? E como as aparências podem ser enganadoras! Parece um rapaz tão bom! É uma lição para nós não confiarmos no nosso próprio julgamento, não é, Lestrade?
– Sim, alguns de nós tendem a ser convencidos, sr. Holmes – disse Lestrade. A insolência do homem era enlouquecedora, mas não podíamos nos ofender com isso.
– Que coisa providencial que o rapaz tenha apertado seu polegar direito na parede ao pegar seu chapéu no cabide! Um ato bastante natural, também, se pensarmos nisso. – Holmes aparentemente estava calmo, mas todo o seu corpo estremecia de excitação contida enquanto falava.
– Por falar nisso, Lestrade, quem fez esta descoberta notável?
– Foi a governanta, sra. Lexington, quem chamou a atenção do policial da noite para ela.
– Onde estava o policial?
– Ele ficou de guarda no quarto onde o crime foi cometido, para que nada fosse tocado.
– Mas por que a polícia não viu esta marca ontem?
– Ora, não tínhamos nenhum motivo especial para examinar com cuidado o saguão. Além disso, não é um lugar muito visível, como pode constatar.
– Não, não, claro que não. Suponho que não haja dúvida de que a marca estava aí ontem.
Lestrade olhou para Holmes como se pensasse que ele estivesse fora de si. Confesso que eu mesmo fiquei surpreso com seu jeito irônico e sua observação irritada.
– Não sei se pensa que McFarlane saiu da cadeia na calada da noite para reforçar a prova contra ele mesmo – disse Lestrade. – Desafio qualquer perito no mundo a me dizer se não é a marca do polegar dele.
– Esta é, inegavelmente, a marca do seu polegar.
– Então, isto é suficiente – disse Lestrade. – Sou um homem prático, sr. Holmes, e, quando consigo minhas provas, chego às minhas conclusões. Se tiver algo a me dizer, estarei escrevendo meu relatório na sala de estar.
Holmes havia recobrado sua calma, embora eu ainda pudesse detectar sinais de regozijo na sua expressão.
– Pobre de mim, este é um acontecimento muito triste, Watson, não é? – disse ele. – E mesmo assim existem detalhes singulares sobre ele que dão esperanças ao nosso cliente.
– Estou encantado por ouvir isso – eu disse calorosamente. – Receava que estivesse tudo acabado para ele.
– Não chegaria a ponto de dizer isso, meu caro Watson. O fato é que existe uma falha grave nesse indício, ao qual nosso amigo dá tanta importância.
– É mesmo, Holmes? Qual é?
– Apenas isto: eu que aquela marca não estava lá ontem quando examinei o saguão. E agora, Watson, vamos dar uma voltinha ao sol.
Com a mente confusa, mas com um coração que voltava a ter alguma esperança, acompanhei meu amigo numa caminhada pelo jardim. Holmes escolhia um lado da casa de cada vez e o examinava com grande interesse. Depois entrou e percorreu o prédio inteiro, do porão ao sótão. A maioria dos aposentos estava sem mobília, mas mesmo assim Holmes os inspecionou detalhadamente. Por fim, no corredor do último andar, que passava por três quartos vazios, ele manifestou contentamento.
– Há realmente alguns aspectos muito singulares neste caso, Watson – disse. – Acho que é hora de confiarmos no nosso amigo Lestrade. Ele deu sua risadinha à nossa custa, e talvez possamos fazer o mesmo com ele, se minha interpretação deste problema se mostrar correta. Sim, sim, acho que sei como podemos abordá-lo.
O inspetor da Scotland Yard ainda estava escrevendo na sala de visitas quando Holmes o interrompeu.
– Entendi que você estava escrevendo o relatório deste caso – disse ele.
– E estou.
– Não acha que pode ser um pouco prematuro? Não consigo deixar de pensar que o seu indício está incompleto.
Lestrade conhecia o meu amigo bem demais para desprezar suas palavras. Largou a caneta e olhou para ele com curiosidade.
– O que quer dizer, sr. Holmes?
– Apenas que há uma testemunha importante que ainda não viu.
– Pode apresentá-la?
– Acho que posso.
– Então faça isso.
– Farei o possível. Quantos policiais você tem?
– Tenho três aqui perto.
– Excelente! – disse Holmes. – Posso perguntar se eles são grandes, homens robustos com vozes potentes?
– Não tenho dúvida de que são, embora não consiga ver o que as suas vozes têm a ver com isso.
– Talvez eu possa ajudá-lo a ver isso, e mais uma ou duas outras coisas também – disse Holmes. – Mande chamar os seus homens e eu tentarei.
Cinco minutos depois, três policiais estavam no saguão.
– Fora da casa encontrarão grande quantidade de palha – disse Holmes. – Peço a vocês que tragam dois molhos dela. Creio que vai ajudar a fazer aparecer a testemunha de que eu necessito. Muito obrigado. Acho que tem alguns fósforos no bolso, Watson. Agora, sr. Lestrade, peço que todos me acompanhem ao último patamar.
Como já mencionara, havia um corredor largo ali, que passava por três quartos vazios. Numa extremidade do corredor estávamos todos nós, conduzidos por Sherlock Holmes, os policiais sorrindo e Lestrade encarando meu amigo com espanto, expectativa e escárnio se alternando em suas feições. Holmes ficou diante de nós com a expressão de um ilusionista que está fazendo seu número.
– Você poderia, por gentileza, mandar um de seus subordinados buscar dois baldes de água? Ponham a palha no chão aqui, longe da parede, dos dois lados. Agora acho que já estamos prontos.
O rosto de Lestrade começou a ficar vermelho e furioso.
– Não sei se está fazendo uma brincadeira conosco, sr. Sherlock Holmes – disse ele. – Se sabe de alguma coisa, pode muito bem contá-la para nós sem toda essa tolice.
– Eu lhe asseguro, meu bom Lestrade, que tenho um ótimo motivo para tudo o que faço. É provável que se lembre de que caçoou de mim algumas horas atrás, quando o sol parecia brilhar a seu favor; portanto, você tem de me conceder um pouco de pompa e cerimônia agora. Watson, quer abrir aquela janela e depois jogar um fósforo na ponta da palha?
Fiz isso, e levada pela corrente de ar, uma coluna de fumaça cinza encheu o corredor, enquanto a palha seca crepitava e ardia.
– Agora vamos ver se conseguimos arranjar essa testemunha para você, Lestrade. Peço-lhes que gritem juntos “fogo!” Agora, então: 1, 2, 3...
– Fogo! – gritamos todos.
– Obrigado. Vou incomodá-los mais uma vez.
– Fogo!
– Só mais uma vez, cavalheiros, e todos juntos.
– Fogo! – O grito deve ter ecoado por toda Norwood.
O grito mal havia morrido, quando aconteceu uma coisa espantosa. Uma porta se abriu de repente no lugar que parecia ser uma parede sólida no final do corredor, e um homem pequeno e mirrado saiu correndo como um coelho para fora da toca.
– Excelente! – disse Holmes, calmamente. – Watson, um balde de água sobre a palha. Está bom! Lestrade, permita-me apresentá-lo à nossa principal testemunha desaparecida, sr. Jonas Oldacre.
O inspetor olhou para o recém-chegado com uma surpresa desconcertada. Este, piscando por causa da luz brilhante do corredor, olhava com curiosidade para nós e para o fogo que ardia. Era um rosto odioso – manhoso, perverso, maligno, com olhos astutos, de um cinza-claro com pestanas brancas.
– O que é isto? – perguntou Lestrade finalmente. – O que esteve fazendo todo este tempo, hein?
Oldacre deu um sorriso forçado, recuando diante da cara vermelha e furiosa do inspetor.
– Não fiz nenhum mal.
– Nenhum mal? Você fez o que pôde para levar à forca um homem inocente. Se não fosse por estes cavalheiros aqui, não sei se não teria conseguido.
A criatura desprezível começou a choramingar.
– Estou certo, senhor, de que foi só uma brincadeira.
– Oh! Uma brincadeira, não foi? Não vai achar graça na sua vez, eu lhe prometo. Levem-no para baixo e o mantenham na sala de visitas até que eu chegue. Sr. Holmes – continuou, depois que eles saíram –, eu não podia falar diante dos policiais, mas não me importo de dizer, na presença do dr. Watson, que esta foi a coisa mais brilhante que já fez, embora seja um mistério para mim como a fez. Salvou a vida de um homem inocente e evitou um grande escândalo, que arruinaria minha reputação na polícia.
Holmes sorriu e deu um tapinha no ombro de Lestrade.
– Em vez de ser arruinada, meu caro, descobrirá que a sua reputação foi enormemente aumentada. Faça algumas alterações naquele relatório que estava escrevendo, e eles entenderão como é difícil jogar areia nos olhos do inspetor Lestrade.
– E o senhor não quer que seu nome apareça?
– De modo algum. O trabalho é a própria recompensa. Talvez eu também tenha algum crédito num dia distante, quando permitir que o meu zeloso historiador espalhe seus papéis mais uma vez – hein, Watson? Bem, agora vamos ver onde esse rato estava escondido.
Havia um aposento de ripas e gesso junto ao corredor, a 2 metros do final, com uma porta engenhosamente disfarçada nele. Era iluminado por meio de brechas no beiral do telhado. Alguns móveis e um suprimento de comida e água estavam ali, juntamente com alguns livros e papéis.
– Esta é a vantagem de ser um construtor – disse Holmes quando saímos. – Era capaz de fazer seu próprio esconderijo sem nenhum cúmplice – a não ser, é claro, aquela sua preciosa governanta, que eu não demoraria em colocar na sua bagagem, Lestrade.
– Seguirei o seu conselho. Mas como descobriu este lugar, sr. Holmes?
– Concluí que o sujeito estava escondido nesta casa. Quando medi um corredor e descobri que era 2 metros menor que o seu correspondente abaixo, ficou bem claro onde ele estava. Imaginei que não teria sangue-frio para ficar quieto depois de um alarme de incêndio. É claro que nós poderíamos ter entrado e o capturado, mas me diverti fazendo com que ele se denunciasse. Além do mais, devia-lhe um pequeno embuste, Lestrade, pela sua troça da manhã.
– Bem, senhor, conseguiu empatar comigo nisso. Mas como soube que ele estava de fato na casa?
– A marca do polegar, Lestrade. Você disse que era definitiva; e era, num sentido muito diferente. Eu sabia que não estava lá no dia anterior. Presto muita atenção nos detalhes, como já deve ter observado, e tinha examinado o saguão e me certificado de que a parede estava limpa. Portanto, fora feita durante a noite.
– Mas como?
– Muito simples. Quando aqueles pacotes foram selados, Jonas Oldacre fez McFarlane segurar um dos selos, colocando o seu polegar na cera mole. Isto pode ser feito tão rápida e naturalmente que duvido que o rapaz se lembre. Muito provavelmente isso aconteceu, e Oldacre não tinha idéia de como usá-lo. Remoendo o caso em seu refúgio, ele percebeu de repente que poderia forjar uma prova contra McFarlane usando aquela impressão de polegar. Era a coisa mais simples do mundo para ele fazer uma impressão em cera do selo, umedecê-la com o sangue que poderia tirar de uma pequena alfinetada, e colocar a marca na parede durante a noite, com suas próprias mãos ou com as da governanta. Se examinar os documentos que ele levou para sua toca, aposto que encontrará o selo com a marca do polegar.
– Maravilhoso! – disse Lestrade. – Maravilhoso! Está tudo claro como cristal, do jeito como explica. Mas qual é o objetivo desta imensa fraude?
Divertia-me ver como o comportamento arrogante do inspetor mudara rapidamente para o de uma criança fazendo perguntas ao professor.
– Ora, não acho muito difícil explicar. O cavalheiro que agora está nos esperando lá embaixo é uma pessoa muito astuta, maliciosa e vingativa. Sabe que uma vez ele foi rejeitado pela mãe de McFarlane? Não sabe! Eu lhe disse que deveria ir primeiro a Blackheath e depois a Norwood. Bem, essa ferida, se a considerarmos assim, envenenava-lhe a mente cruel e ardilosa, e durante toda a vida desejou vingança, mas nunca via sua oportunidade. Durante o ano passado, e talvez no anterior também, as coisas correram mal para ele – especulações secretas, acho – e ele descobre que está em má situação. Resolve dar um calote nos seus credores e, com esse objetivo, paga grandes cheques em favor de um certo sr. Cornelius, que é, imagino, ele mesmo com outro nome. Ainda não localizei esses cheques, mas não tenho dúvida de que estão depositados sob aquele nome em alguma cidade do interior onde Oldacre, de tempos em tempos, levava uma vida dupla. Pretendia mudar de nome, pegar seu dinheiro e desaparecer, começando uma vida nova em outro lugar.
– É, isso é bem provável.
– Pensou que, se desaparecesse, tiraria os perseguidores da sua pista e, ao mesmo tempo, iria se vingar de modo esmagador de sua antiga namorada se desse a impressão de que fora assassinado pelo filho único dela. Era uma obra-prima de maldade, e ele a conduziu como um mestre. A idéia do testamento, que daria um motivo óbvio para o crime, a visita secreta sem o conhecimento dos pais, a retenção da bengala, o sangue e os restos de animais e os botões na pilha de madeira, tudo isso é admirável. Era uma rede da qual me parecia, algumas horas atrás, não haver escapatória. Mas ele não tinha aquele dom supremo do artista: saber quando parar. Queria melhorar o que já estava perfeito – apertar ainda mais a corda em torno do pescoço de sua desgraçada vítima – e aí arruinou tudo. Vamos descer, Lestrade. Quero fazer uma ou duas perguntas a ele.
A criatura maligna estava sentada em sua própria sala de visitas, com um policial de cada lado.
– Foi uma brincadeira, meu bom senhor – um trote, nada mais – ele gemia sem parar. – Eu lhe asseguro, senhor, que eu só me escondi para ver o efeito do meu desaparecimento, e tenho certeza de que não seria tão injusto a ponto de imaginar que eu permitiria que algum mal acontecesse ao pobre rapaz McFarlane.
– Isso é o júri que vai decidir – disse Lestrade. – De qualquer modo, nós o prendemos sob acusação de conspiração, se não por tentativa de homicídio.
– E você com certeza vai descobrir que os seus credores confiscarão a conta bancária do sr. Cornelius – disse Holmes.
O homenzinho estremeceu e virou seus olhos malignos para o meu amigo.
– Tenho muito que agradecer a você – ele disse. – Talvez algum dia eu pague a minha dívida.
Holmes sorriu com indulgência.
– Imagino que, durante alguns anos, o seu tempo estará muito ocupado – disse ele. – Falando nisso, o que foi que colocou na pilha de madeira, além de suas calças? Um cachorro morto, coelhos ou o quê? Não quer dizer? Pobre de mim, quanta indelicadeza sua! Ora, ora, arriscaria dizer que um casal de coelhos serviria de explicação para o sangue e para os restos torrados. Se algum dia escrever um resumo disto, Watson, pode usar os coelhos para o seu objetivo.