Loja 341, Vermissa
No dia seguinte àquela noite de tantos acontecimentos excitantes, McMurdo mudou-se da casa de Jacob Shafter e foi se instalar na pensão da viúva MacNamara, na periferia da cidade. Scanlan, seu primeiro conhecimento, feito no trem, teve oportunidade, pouco depois, de mudar-se para Vermissa, e os dois moravam juntos. Não havia nenhum outro hóspede e a dona da hospedaria era uma velha escocesa simpática que deixava os dois à vontade, de forma que tinham liberdade de falar e agir, o que era muito bom para homens que tinham segredos em comum. Shafter ficara menos severo, a ponto de deixar McMurdo fazer as refeições em sua casa quando quisesse, de modo que sua ligação com Ettie não foi interrompida. Pelo contrário, a relação tornou-se mais estreita e íntima à medida que passavam as semanas. McMurdo sentiu-se suficientemente seguro no quarto de sua nova casa para mostrar seus moldes de cunhagem e, sob a condição de manter
segredo, alguns irmãos de Loja eram recebidos lá para vê-los, e cada um deles carregava no bolso alguns exemplares do dinheiro falsificado, certos de que não haveria a menor dificuldade em passá-lo adiante. Por que, dominando arte tão magnífica, McMurdo continuava trabalhando era um completo mistério para seus companheiros, embora deixasse claro a todos que lhe perguntavam sobre isso que, se não tivesse um emprego para manter as aparências, logo a polícia estaria atrás dele.
Já havia, na verdade, um policial atrás dele, mas o incidente, por sorte, fez-lhe mais bem do que mal. Depois do primeiro encontro, eram raras as noites em que não ia ao saloon de McGinty, a fim de se entrosar melhor com “os rapazes”, que era o título jovial pelo qual a perigosa quadrilha que infestava o lugar era conhecida entre seus integrantes. Seu jeito impetuoso e destemido de falar fez dele um favorito entre o grupo, enquanto que o modo rápido e científico pelo qual eliminava seus antagonistas numa disputa de bar fez com que conquistasse o respeito daquela comunidade rude. Mas um outro incidente fez com que os outros o estimassem ainda mais.
Uma noite, na hora de maior movimento, a porta do saloon se abriu e entrou um homem trajando o uniforme azul da polícia das minas de carvão e ferro. Era uma corporação especial criada pelos proprietários das minas e das ferrovias a fim de ajudar os efetivos da polícia civil, que não tinham condições de combater o banditismo que aterrorizava a região. Houve um silêncio quando o homem entrou, e muitos o olharam com curiosidade, mas as relações entre policiais e criminosos são especiais em algumas regiões dos Estados Unidos, e o próprio McGinty, que estava atrás do balcão, não se mostrou surpreso quando o inspetor se misturou aos seus clientes.
– Um uísque puro, porque a noite está fria – disse o oficial. – Acho que não nos encontramos antes, conselheiro.
– O senhor será o novo comandante? – perguntou McGinty.
– Exatamente. Confiamos no senhor, conselheiro, e em outros cidadãos de destaque para nos ajudar a manter a lei e a ordem nesta cidade. Meu nome é capitão Marvin, da polícia das minas.
– Ficaríamos melhor sem o senhor, capitão Marvin – disse McGinty secamente. – Porque temos a polícia da cidade e não precisamos de coisas importadas. As pessoas da sua corporação são instrumentos pagos pelos homens de dinheiro, contratados por eles para bater ou atirar nas pessoas mais pobres, não é?
– Bem, não vamos discutir sobre isso – disse o policial de bom humor. – Acho que cada um faz seu trabalho, mas não podemos ter a mesma opinião sobre ele. – Ele esvaziou seu copo e virou-se para sair quando seus olhos bateram no rosto de Jack McMurdo, que estava apoiado com cotovelo no balcão. – Olá! – ele gritou, olhando o outro de cima a baixo. – Aqui está um velho conhecido.
McMurdo afastou-se dele.
– Nunca fui seu amigo nem de nenhum outro maldito policial em toda a minha vida – disse ele.
– Ser conhecido não significa ser amigo – disse o policial, sorrindo. Você é Jack McMurdo, de Chicago, tenho certeza, e não tente negar.
McMurdo deu de ombros.
– Não estou negando nada – disse ele. – Acha que tenho vergonha do meu nome?
– Você tem bons motivos para isso.
– Que diabo você quer dizer com isso? – ele gritou, fechando os punhos.
– Não, não, Jack. Gritos não adiantam comigo. Eu era oficial em Chicago antes de vir para esse maldito depósito de carvão, e reconheço logo um criminoso de Chicago quando ponho os olhos nele.
O rosto de McMurdo mostrou espanto.
– Não me diga que você é o Marvin da Central de Chicago! – ele gritou.
– O mesmo Teddy Marvin, às suas ordens. Não esquecemos do assassinato de Jonas Pinto lá.
– Eu não o matei.
– Não? Que testemunho imparcial, não acha? Bem, você fez a coisa de modo notável, do contrário eles o teriam agarrado. Mas vamos deixar de lado essas coisas do passado porque, aqui entre nós (e talvez eu esteja me excedendo ao dizer isso), eles não têm como acusá-lo de nada, e Chicago o espera de braços abertos.
– Estou muito bem onde estou.
– Bem, eu lhe ofereci a sugestão e você é mal-humorado demais para me agradecer.
– É, acho que você tem razão, e realmente lhe agradeço – disse McMurdo, de um modo não muito amável.
– Pra mim está tudo bem, desde que você esteja andando dentro da lei – disse o capitão. – Mas se sair da linha, aí é outra coisa! Então, boa-noite pra você. E boa-noite, conselheiro.
Ele deixou o saloon, mas não sem antes criar um herói ali. O passado de McMurdo em Chicago já fora comentado antes. Ele desestimulara todas as perguntas com um sorriso, como alguém que não desejasse ser enaltecido por seus feitos. Mas agora a coisa toda estava oficialmente confirmada. Os freqüentadores do bar o rodearam e cumprimentaram com entusiasmo, apertando sua mão. Ele estava livre da comunidade a partir de então. Ele conseguia beber muito sem demonstrar embriaguez, mas naquela noite, se seu amigo Scanlan não estivesse por perto para levá-lo para casa, o grande herói certamente teria passado a noite debaixo do balcão.
Numa noite de sábado McMurdo foi apresentado à Loja. Ele pensou que não haveria cerimônia por ter sido iniciado em Chicago; mas em Vermissa havia ritos particulares dos quais todos se orgulhavam, e os postulantes tinham de se submeter a eles. O grupo se reuniu numa grande sala reservada para essa finalidade no sindicato. Cerca de sessenta membros se reuniam em Vermissa, mas esse número nem de longe representava a força total da organização, pois havia várias outras lojas no vale, e ainda outras espalhadas pelas montanhas que delimitavam o vale. Essas lojas intercambiavam seus membros quando havia negócios sérios em andamento, de modo que os crimes podiam ser praticados por homens estranhos à localidade. Ao todo havia cerca de quinhentas lojas espalhadas pelo distrito mineiro.
Na despojada sala de reuniões, os homens sentavam-se em torno de uma mesa comprida. Na lateral ficava uma outra mesa cheia de garrafas e copos e para a qual alguns membros já estavam olhando. McGinty sentou-se na cabeceira com um chapéu achatado de veludo preto sobre o seu cabelo preto emaranhado e uma estola púrpura em torno do pescoço, de modo que parecia um sacerdote presidindo um ritual diabólico. À sua direita e à sua esquerda ficavam os membros mais destacados da Loja, entre eles o rosto cruel e vistoso de Ted Baldwin. Cada membro usava uma estola ou um medalhão como emblema de sua categoria. Eram, em sua maioria, homens de meia-idade, mas o resto do grupo era formado por companheiros mais jovens, entre 18 e 25 anos, e que executavam as ordens dos superiores. Entre os mais velhos havia alguns cujas feições indicavam almas ferozes e desregradas, mas olhando aqueles soldados era difícil acreditar que aqueles jovens vivos e de rosto franco fizessem realmente parte de uma quadrilha de assassinos, cujas mentes sofreram uma tal perversão moral que eles sentiam um tremendo orgulho de sua competência e olhavam com o maior respeito os homens que tinham a fama de fazer o que chamavam de um “trabalho limpo”. Para suas naturezas pervertidas, tornara-se algo divertido e nobre a apresentação voluntária para a execução de serviços contra homens que nunca os ofenderam, e que, em muitos casos, jamais tinham visto antes. Depois de cometido o crime, discutiam quem havia disparado o tiro mortal, e divertiam-se – e divertiam todos os demais – descrevendo os gritos e contorções do morto. No início, haviam mostrado certa discrição em seus trabalhos, mas na época em que se passa esta narrativa seus métodos eram ostensivos, já que as falhas freqüentes da lei lhes mostraram que, por um lado, ninguém ousaria testemunhar contra eles, e, por outro, tinham um número ilimitado de testemunhas de confiança que poderiam utilizar e um tesouro bem forrado do qual poderiam retirar os fundos necessários para contratar os melhores advogados do país. Em dez anos de atuação não ocorrera nenhuma prisão, e o único perigo que sempre ameaçara os Scowrers estava nas próprias vítimas que, embora fossem muitas e apanhadas de surpresas, podiam, como às vezes acontecia, deixar sua marca em seus assassinos.
McMurdo fora advertido de que teria de passar por algumas provações, embora ninguém lhe dissesse em que consistiam. Ele foi levado para outra sala por dois irmãos que o conduziram de modo solene. Pelas frestas da madeira podia ouvir o murmúrio de muitas vozes vindo da sala de reuniões. Uma ou duas vezes percebeu que falavam em seu nome, e sabia que estavam discutindo sua candidatura. Depois entraram na sala onde ele estava três guardas da sociedade, com uma faixa verde e dourada atravessada no peito.
– O chefe ordena que seus braços sejam amarrados e seus olhos vendados antes de entrar – disse um deles. Os três então retiraram o casaco dele, arregaçaram a manga direita de sua camisa e finalmente amarraram uma corda nos seus braços, acima do cotovelo, e a apertaram bem. Depois colocaram um grosso capuz preto em sua cabeça, que cobria até a metade do rosto, de modo que ele não conseguia enxergar nada. Então foi conduzido até a sala de reuniões.
Estava escuro como breu e sufocante debaixo do capuz. Ele ouvia os ruídos e o murmúrio das pessoas em torno dele, e depois ouviu a voz de McGinty, lenta e distante.
– John McMurdo – disse ele –, você já é membro da Venerável Ordem dos Homens Livres?
Ele assentiu.
– A sua Loja é a 29, de Chicago?
Ele assentiu novamente.
– As noites escuras são desagradáveis – disse o chefe.
– Sim, para um estranho viajar – ele respondeu.
– As nuvens estão carregadas.
– Sim, uma tempestade se aproxima.
– Os irmãos estão satisfeitos? – perguntou o chefe.
Houve um murmúrio geral de aprovação.
– Sabemos, irmão, pela sua marca e pelas senhas, que você é realmente um dos nossos – disse McGinty. – Devemos informá-lo, contudo, que neste distrito e em outros distritos desta região temos alguns ritos, e também tarefas próprias, que precisam de bons homens para executá-las. Você está preparado para ser testado?
– Estou.
– Dê um passo à frente para provar isso.
Logo em seguida ele sentiu duas coisas duras diante de seus olhos, pressionando-os, dando a impressão de que não poderia andar para a frente sem o perigo de perdê-los. Mesmo assim, teve coragem suficiente para andar, e quando se moveu para a frente, a pressão se desfez. Houve um murmúrio de aprovação.
– Ele é corajoso – disse alguém. – Você consegue suportar dor?
– Tanto quanto os outros – respondeu.
– Teste-o!
Ele mal conseguiu reprimir um grito, pois uma dor lancinante percorreu seu braço. Ele quase desmaiou com o choque repentino que a dor lhe provocou, mas mordeu os lábios e cerrou os punhos para esconder sua agonia.
– Posso agüentar mais ainda – disse.
Dessa vez ele foi aplaudido. Jamais houvera uma primeira impressão na Loja tão boa quanto aquela. Recebeu tapinhas nas costas e o capuz foi retirado da sua cabeça. Ele ficou piscando e sorrindo em meio aos cumprimentos que recebia dos irmãos.
– Só mais uma coisa, Irmão McMurdo – disse McGinty. – Você já fez o juramento de manter segredo e fidelidade, e você sabe que o castigo pela quebra desse juramento é a morte instantânea e inevitável?
– Sei – disse McMurdo.
– E você aceita o comando do chefe atual sob todas as circunstâncias?
– Aceito.
– Então, em nome da Loja 341, Vermissa, eu o cumprimento pelo seu ingresso em nosso mundo de privilégios e debates. Ponha a bebida sobre a mesa, Irmão Scanlan, e vamos beber à saúde do nosso notável irmão.
O casaco de McMurdo lhe foi devolvido, mas antes de vesti-lo, examinou seu braço direito, que ainda doía muito. Ali, na carne do antebraço, havia um círculo com um triângulo dentro, fundo e vermelho, onde o ferrete fora colocado. Um ou dois dos outros membros levantaram suas mangas e lhe mostraram suas próprias marcas da Loja.
– Todos nós passamos por isso – disse um deles. – Mas nem todos de modo tão corajoso quanto você.
– Oh, isso não foi nada! – ele disse. Mas a pele queimava e doía.
Quando as bebidas que se seguiram à cerimônia foram servidas, a reunião prosseguiu para tratar dos assuntos da Loja. McMurdo, acostumado apenas com os feitos prosaicos de Chicago, ouvia atentamente, demonstrando mais surpresa do que pretendia ao ouvir o que relatavam.
– O primeiro assunto da pauta – disse McGinty – é esta carta do chefe da Divisão Windle, de Merton County, Loja 249. Diz ele:
PREZADO SENHOR: Há um serviço a ser executado em Andrew Rae, da empresa Rae e Sturmash, proprietária de minas de carvão perto daqui. O senhor se lembra de que sua Loja nos deve uma retribuição, já que executamos aquele caso dos dois guardas no outono passado. Se o senhor mandar dois homens dos bons, eles serão informados de tudo pelo tesoureiro Higgins, da nossa Loja, cujo endereço o senhor sabe. Ele dirá a eles quando e onde agir. – Atenciosamente,
J. W. Windle, D.M.A.O.F.
– Windle nunca nos recusou auxílio nas ocasiões em que precisamos de um homem ou dois dele emprestados, e não devemos negar-lhe ajuda. – McGinty parou e olhou ao redor da mesa com seus olhos sombrios, maldosos. – Quem se apresenta para o trabalho?
Vários jovens levantaram as mãos. O chefe olhou para eles com um sorriso aprovador.
– Você serve, Tigre Cormac. Se você cuidar disso como fez da última vez, não haverá erro. E você, Wilson.
– Não tenho arma – disse o voluntário, ainda um adolescente.
– É a sua primeira vez, não? Bem, você tem de começar um dia. Será um bom começo para você. Quanto à arma, estará esperando por você, acredite. Se vocês se apresentarem na segunda-feira, dará tempo de sobra. Vocês terão uma bela recepção quando voltarem.
– Desta vez não haverá recompensa? – perguntou Cormac, um jovem grandalhão, de rosto moreno e mal-encarado, cuja ferocidade lhe valera o apelido de Tigre.
– Não se preocupe com a recompensa. Você só fará isso pela honra do serviço. Talvez depois que o serviço for executado apareçam alguns dólares.
– O que esse homem fez? – perguntou o jovem Wilson.
– Na verdade, isso não é da sua conta. Ele foi julgado lá. Não é problema nosso. Tudo que temos a fazer é executar o serviço para eles, do mesmo modo como fariam para nós. Por falar nisso, dois irmãos da Loja de Merton vão chegar na próxima semana para resolver algumas coisas por aqui.
– Quem são eles? – alguém perguntou.
– É mais prudente não perguntar. Se a gente não sabe nada, não pode testemunhar, e não se arranja encrenca. Mas esses são homens que farão um trabalho limpo.
– Já não é sem tempo! – gritou Ted Baldwin. – As pessoas estão ficando incontroláveis por aqui. Na semana passada mesmo três dos nossos homens foram demitidos por Blaker. Ele está devendo há muito tempo, mas vai receber o dele direitinho.
– Receber o quê? – McMurdo perguntou num sussurro ao seu vizinho de mesa.
– Um cartucho de chumbo grosso! – gritou o homem, dando uma gargalhada bem alta. – O que acha dos nossos métodos, irmão?
A alma criminosa de McMurdo parecia já ter absorvido o espírito da sociedade perversa da qual agora era membro.
– Gosto deles – disse. – Aqui é o lugar certo para um cara esperto.
Muitos dos que estavam perto dele ouviram suas palavras e o aplaudiram.
– O que houve? – gritou o chefe cabeludo lá da cabeceira da mesa.
– É esse nosso novo irmão, senhor, que gosta dos nossos métodos.
McMurdo levantou-se por um instante.
– Eu gostaria de dizer, Venerável Chefe, que, se deve ser escolhido um homem, eu gostaria de ser indicado. Para mim seria uma honra ajudar a Loja.
Houve muitos aplausos quando disse isso. Percebia-se que um novo sol surgia no horizonte. Para alguns dos membros mais velhos, parecia que o progresso era rápido demais.
– Eu proponho – disse o secretário, Harraway, um velho de barba grisalha e cara de abutre que estava sentado perto do presidente da reunião – que o Irmão McMurdo espere até que a Loja decida convocá-lo.
– Certo, foi isso que eu quis dizer. Estou às suas ordens – disse McMurdo.
– A sua vez chegará, irmão – disse o presidente. – Nós o consideramos um homem disposto e acreditamos que fará um bom trabalho por aqui. Há uma pequena questão hoje à noite na qual você poderá ajudar, se assim desejar.
– Vou esperar algo que valha a pena.
– Você pode ir hoje à noite, pois isso o ajudará a saber como agimos nessa comunidade. Mais tarde eu direi do que se trata. Por enquanto... – ele olhou para a pauta – tenho mais um ou dois assuntos a tratar antes da reunião. Em primeiro lugar, vou pedir ao tesoureiro o nosso balanço. Tem a pensão para a viúva de Jim Carnaway. Ele foi morto fazendo serviço para a Loja, e não queremos que ela fique no prejuízo.
– Jim foi morto no mês passado quando tentava matar Chester Wilcox, de Marley Creek – o vizinho de McMurdo lhe disse.
– Os fundos estão bem no momento – disse o tesoureiro, tendo à sua frente o extrato do banco. – As firmas têm sido generosas ultimamente. Max Linder & Co. pagou 500 dólares para ser deixado em paz. Walker Brothers deu 100 dólares, mas por minha conta eu devolvi a quantia e pedi 500. Se até quarta-feira eu não receber nada deles, suas máquinas podem sofrer algum problema. No ano passado tivemos de provocar um incêndio em suas instalações para que se tornassem razoáveis. Então a Seção Oeste da Companhia de Mineração pagou sua contribuição anual. Temos o suficiente em caixa para enfrentar qualquer situação.
– E Archie Swindon? – perguntou um dos irmãos.
– Ele vendeu a firma e se mudou. O velho safado deixou um bilhete para nós dizendo que preferia ser um varredor de ruas de Nova York do que proprietário de uma grande mina de carvão sob a pressão de um grupo de chantagistas. Ainda bem que foi embora antes que recebêssemos o bilhete! Acho que não ousará mostrar a cara neste vale novamente.
Um homem mais velho, sem barba, com expressão bondosa e a testa larga, levantou-se da cabeceira oposta à do presidente.
– Sr. tesoureiro – disse – posso lhe perguntar quem comprou a propriedade desse homem que nós expulsamos daqui?
– Sim, Irmão Morris. Quem comprou foi a State and Merton County Railroad Company.
– E quem comprou as minas de Todman e de Lee que foram postas à venda pelo mesmo motivo no ano passado?
– A mesma empresa ferroviária, Irmão Morris.
– E quem comprou as siderúrgicas de Manson e de Shuman, e de Van Deher e de Atwood, que foram abandonadas ultimamente?
– Foram todas compradas pela West Gilmerton General Mining Company.
– Não consigo entender, Irmão Morris – disse o presidente – o que pode nos interessar saber quem comprou as empresas, já que não podem levá-las daqui.
– Com todo o respeito ao senhor, Venerável Chefe, acho que isso nos interessa muito. O processo se arrasta há dez anos. Estamos aos poucos afastando do comércio todos os pequenos negociantes. Qual é o resultado disso? No lugar dessas pessoas vêm grandes companhias, como a estrada de ferro ou a General Iron, cujos diretores ficam em Nova York ou na Filadélfia e que não ligam para as nossas ameaças. Podemos tirar os seus chefes locais, mas isso significa apenas que outros virão para os seus lugares. E estamos tornando a coisa perigosa para nós. Os pequenos não podem nos prejudicar. Não têm dinheiro nem poder. Desde que não arranquemos tudo deles, podem ficar sob nosso poder. Mas se essas grandes empresas acharem que estamos nos interpondo entre elas e o seu lucro, não hesitarão em nos perseguir e nos levar à Justiça.
Houve um silêncio absoluto depois que essas palavras pessimistas foram ditas, e todos os rostos ficaram sombrios. Eles tinham sido tão onipotentes durante todo esse tempo, e tão acostumados à impunidade, que o simples pensamento de que havia uma possibilidade de desforra de tudo aquilo fora banido de suas mentes. Mesmo assim a idéia provocou um frio arrepio até no mais despreocupado de todos.
– A minha opinião – Morris continuou – é que devemos apertar menos os pequenos. No dia em que todos tiverem ido embora, a força desta sociedade desaparecerá.
As verdades geralmente não agradam. Houve manifestações de hostilidade enquanto ele retomava seu lugar. McGinty levantou-se com uma expressão sombria.
– Irmão Morris – disse – você é sempre um pessimista. Desde que os membros da Loja estejam unidos, não há força nos Estados Unidos que possa afetá-la. Na verdade, já não aconteceu isso diversas vezes na Justiça? Na minha opinião as grandes companhias acharão mais fácil pagar do que lutar, da mesma forma que as pequenas empresas. E agora, irmão – McGinty tirou o chapéu preto de veludo e a estola – a Loja encerrou sua reunião de hoje, a não ser que alguém tenha algum assunto a tratar. Chegou a hora de bebermos alguma coisa e de confraternização.
A natureza humana é mesmo estranha. Ali estavam aqueles homens, para quem um assassinato é coisa normal, que repetidamente abatiam um pai de família, algum homem contra o qual não tinham nada pessoal, sem um sentimento de remorso ou de compaixão pela viúva desesperada ou pelos filhos desamparados, e mesmo assim uma música romântica ou enternecedora era capaz de levá-los às lágrimas. McMurdo possuía uma excelente voz de tenor, e se não tivesse conquistado a simpatia da Loja antes, teria conseguido quando cantou para eles trechos de I’m Sitting on the Stile, Mary e On the Banks of Allan Water. Nessa mesma noite o novo camarada tornara-se um dos mais populares, marcado antecipadamente com distinção. Mas eram necessárias outras qualidades, além de um bom relacionamento, para que alguém se tornasse um Homem Livre respeitável, e ele viu um exemplo disso antes de a noite terminar. A garrafa de uísque circulara pela mesa várias vezes e os homens estavam vermelhos e prontos para uma travessura quando seu chefe levantou-se outra vez para se dirigir a eles.
– Rapazes – disse – há um homem nesta cidade que deseja confusão, e cabe a vocês fazer com que ele consiga isso. Estou falando de James Stanger, do Herald. Vocês repararam como ele tem falado contra nós novamente?
Houve um murmúrio de assentimento intercalado por muitos xingamentos. McGinty pegou um pedaço de papel que estava no bolso do colete.
“Lei e Ordem!”
É o título do artigo. “Império do Terror nas Minas de Carvão e Ferro. Já se passaram 12 anos desde que ocorreu o primeiro assassinato que prova a existência de uma organização criminosa entre nós. Daquele dia em diante esses ultrajes nunca mais pararam, e agora chegaram ao ponto em que nos transformam no opróbrio do mundo civilizado. É para uma coisa dessas que nossa grande pátria acolhe os estrangeiros que fogem do despotismo da Europa? É certo que eles se tornem tiranos de homens que lhes deram guarida e que um estado de terrorismo e ilegalidade seja criado sob a sombra acolhedora da bandeira estrelada da liberdade, e que nos aterrorizaria se soubéssemos de sua existência numa monarquia do Leste? Os homens são conhecidos. A organização é patente e pública. Por quanto tempo vamos suportá-la? Poderemos viver desse modo para sempre...
Eu já li o suficiente! – gritou o presidente, jogando o papel sobre a mesa. – É isso que ele diz sobre nós. O que lhes pergunto é o seguinte: o que devemos dizer a ele?
– Matá-lo! – gritaram várias vozes ferozes.
– Protesto contra isso – disse o Irmão Morris, o homem de rosto amável e barbeado. – Eu lhes digo, companheiros, nossa mão é tão pesada neste vale que chegará um momento em que todos se unirão para nos esmagar, buscando sua autodefesa. James Stanger é um velho. Ele é respeitado na cidade e em toda essa região. Seu jornal representa o que há de mais sólido no vale. Se ele for eliminado, haverá tamanha agitação nesse Estado que acabará nos destruindo.
– E como conseguiriam nossa destruição, sr. Um-Passo-Atrás? – gritou McGinty. – Com a polícia? Metade dos policiais faz parte de nossa folha de pagamento e a outra metade morre de medo de nós. Ou será por meio dos tribunais e dos juízes? Já não tentaram isso antes? E o que aconteceu?
– O juiz Lynch pode tentar – disse o Irmão Morris.
A sugestão do companheiro foi recebida com uma manifestação geral de raiva.
– Eu só preciso levantar meu dedo – gritou McGinty – e ponho duzentos homens nessa cidade para varrê-la de ponta a ponta. – Então, elevando de repente a voz e franzindo as sobrancelhas de modo apavorante, disse: – Veja bem, Irmão Morris, estou de olho em você e já tem algum tempo. Você não tem coragem pra nada e quer tirar a coragem dos outros. Será muito ruim pra você o dia em que o seu nome, Irmão Morris, estiver em nossa agenda e estou pensando que é lá mesmo que ele deve ser colocado.
Morris ficou terrivelmente pálido e seus joelhos pareceram ceder sob seu peso quando caiu sentado em sua cadeira. Levantou os óculos com as mãos trêmulas e bebeu um gole antes de responder.
– Peço desculpas, Venerável Chefe, ao senhor e a todos os irmãos desta Loja se falei mais do que devia. Sou um membro fiel – todos sabem disso – e é o medo que tenho de que algo de ruim aconteça à Loja que me faz dizer coisas assim. Mas confio mais em seu julgamento do que no meu próprio, Venerável Chefe. Eu prometo que não farei mais isso.
O rosto do chefe desanuviou-se quando ouviu aquelas palavras de humildade.
– Muito bem, Irmão Morris. Eu sentiria muito se fosse obrigado a lhe dar uma lição. Mas enquanto eu permanecer neste posto seremos uma Loja unida na palavra e na ação. E agora, rapazes – continuou, olhando para os demais – vou lhes dizer o seguinte: se acontecesse alguma coisa a Stanger, nós arranjaríamos mais encrenca do que desejamos. Esses editores são muito unidos e todos os jornais do Estado pediriam a ação da polícia e até de tropas. Mas acho que vocês podem lhe fazer uma advertência bem dura. Você pode cuidar disso, Irmão Baldwin?
– Claro! – disse o jovem com veemência.
– Quantos vai querer levar?
– Uns seis, e dois pra ficarem de guarda na porta. Vou levar você, Gower; e você, Mansel; você, Scanlan e os dois Willabys.
– Eu prometi ao novato que ele iria – disse o presidente.
Ted Baldwin olhou para McMurdo com uma expressão de quem não esquecera nem perdoara o outro.
– Muito bem, ele pode vir, se quiser – disse ele, de má vontade. – É o bastante. Quanto mais cedo formos, melhor.
A reunião se dissolveu com gritos e gargalhadas e cantorias de homens bêbados. O bar ainda estava lotado de gente à toa e alguns dos irmãos permaneceram ali. O pequeno grupo escolhido para o serviço foi para rua e se subdividiu em pequenos grupos de dois ou três para não chamar atenção. Estava uma noite especialmente fria, e a lua em quarto crescente brilhava no céu estrelado. Os homens pararam e se reuniram num pátio em frente a um edifício alto. As palavras Vermissa Herald estavam ali em letras douradas entre as janelas excessivamente iluminadas. Lá de dentro vinha o ruído da máquina impressora.
– Você aí – disse Baldwin a McMurdo. – Você fica aqui embaixo, na porta, e cuide para que o caminho esteja livre pra nós. Arthur Willaby pode ficar com você. Os outros vêm comigo. Não fiquem com medo, rapazes, pois temos uma porção de testemunhas de que estamos no bar neste exato momento.
Era quase meia-noite e a rua estava deserta, com exceção de um ou outro que ainda perambulava por ali a caminho de casa. O grupo cruzou a rua e, empurrando a porta da redação do jornal, Baldwin e seus homens entraram no prédio e subiram a escada que ficava em frente. McMurdo e o outro permaneceram embaixo. Da sala que ficava logo no andar de cima veio um grito, depois um pedido de socorro e depois o ruído de passos e de cadeiras caindo. Pouco depois um homem de cabelos grisalhos saiu correndo do prédio. Foi agarrado antes que pudesse continuar seu caminho e seus óculos caíram bem nos pés de McMurdo. Ouviu-se a seguir um soco e um gemido. Ele estava no chão e recebeu uma série de socos quando todos caíram em cima dele. Ele se contorcia e seus membros longos e finos se agitavam com os golpes que recebia. Finalmente pararam de bater nele, mas Baldwin, com seu rosto cruel exibindo um sorriso diabólico, golpeava a cabeça do homem, que tentava inutilmente defender-se com os braços. Seus cabelos brancos estavam molhados com manchas de sangue. Baldwin ainda estava debruçado sobre sua vítima, acertando um soco perverso onde quer que visse uma parte exposta, quando McMurdo correu e o puxou.
– Você vai matar o homem – disse ele. – Pare com isso!
Baldwin olhou para ele com espanto.
– Vá pro diabo! – ele gritou. – Quem é você pra se meter? Você que é novo na Loja? Vá embora! – Ele ergueu seu bastão, mas McMurdo puxou a pistola do bolso.
– Vá embora você! – ele gritou. – Eu estouro seus miolos se você tocar em mim. Quanto à Loja, a ordem do chefe não era para matar. E você, o que está fazendo? Está matando o homem.
– Ele tem razão – disse um dos homens.
– É melhor vocês todos sumirem daqui! As janelas estão todas acesas e daqui a pouco toda a cidade estará aqui.
Realmente havia um vozerio pela rua e um grupo de linotipistas e jornalistas estava se juntando na entrada do prédio e querendo entrar em ação. Deixando o corpo inerte e machucado do editor na escada, os criminosos correram e fugiram rapidamente pela rua. Quando chegaram ao sindicato, alguns deles se misturaram aos fregueses do saloon de McGinty, sussurrando para o chefe, em meio ao movimento, que o serviço tinha sido executado a contento. Outros, e entre eles McMurdo, entraram por ruas transversais e assim, por caminhos mais longos, foram para suas casas.