a aventura de abbey grange

Foi numa manhã gelada, depois de uma noite de frio cortante, no final do inverno de 1897, que fui acordado por uma batida em meu ombro. Era Holmes. A vela em sua mão iluminava seu rosto ansioso e ele me revelou num olhar que havia algo errado.

– Venha, Watson, venha! – exclamou. – O jogo está em andamento. Nem uma palavra! Vista-se e venha!

Dez minutos depois estávamos num cabriolé, passando pelas ruas silenciosas a caminho da estação de Charing Cross. Os primeiros e fracos raios do sol de inverno começavam a aparecer, e podíamos ver vagamente as silhuetas ocasionais de algum operário madrugador ao passar por nós, borrado e indistinto no opalescente nevoeiro de Londres. Holmes aconchegou-se em seu casaco grosso, e eu fiquei contente por fazer a mesma coisa, porque o ar estava muito gelado, e nenhum de nós

havia quebrado o jejum.

Só depois de ter tomado um pouco de chá quente na estação e ocupado nossos lugares no trem de Kent, ficamos suficientemente dispostos, ele para falar e eu para ouvir. Holmes tirou um bilhete do bolso e o leu em voz alta:


Abbey Grange, Marsham, Kent,

3:30h.


Meu caro sr. Holmes:

Estaria muito agradecido por sua ajuda imediata no que promete ser um caso bastante notável. É algo da sua especialidade. A não ser pelo fato de liberar a dama, cuidarei para que tudo seja mantido exatamente como encontrei, mas imploro-lhe que não perca um instante, pois é difícil manter sir Eustace lá.

Cordialmente,

Stanley Hopkins.


– Hopkins já me chamou sete vezes, e em cada ocasião seus apelos foram inteiramente justificados – disse Holmes. – Aposto como cada um dos casos dele já foi para a sua coleção, e devo admitir, Watson, que você tem uma certa capacidade de seleção, que compensa muita coisa que eu deploro em suas narrativas. Seu hábito desastroso de olhar para tudo sob o ponto de vista de uma história e não de um exercício científico arruinou o que poderia ter sido uma série de demonstrações instrutivas e até mesmo clássicas. Você omite um trabalho da maior fineza e delicadeza, a fim de se estender em detalhes sensacionais que podem excitar, mas provavelmente não podem instruir o leitor.

– Por que você mesmo não os escreve? – perguntei com azedume.

– Escreverei, meu caro Watson, escreverei. No momento, como sabe, estou muito ocupado, mas pretendo dedicar meus últimos anos à preparação de um livro que irá enfocar toda a arte da investigação em um volume. Nossa pesquisa atual parece ser um caso de assassinato.

– Acha então que sir Eustace está morto?

– Eu diria isso. A caligrafia de Hopkins revela muita agitação, e ele não é um homem emotivo. Sim, creio que houve violência, e que o corpo foi deixado para nossa inspeção. Um mero suicídio não faria com que ele me chamasse. Quanto à liberação da dama, parece que estava trancada em seu quarto durante a tragédia. Estamos lidando com a alta sociedade, Watson, papel crepitante, monograma “E.B.”, brasão de armas, endereço pitoresco. Creio que o amigo Hopkins vai se manter à altura de sua reputação, e que teremos uma manhã interessante. O crime foi cometido ontem, antes da meia-noite.

– Como pode afirmar?

– Pela verificação dos trens, e calculando os horários. A polícia local tinha de ser chamada, eles tinham de se comunicar com a Scotland Yard, Hopkins tinha de sair, e ele, por sua vez, teve de me chamar. Tudo isto ocupa uma noite de trabalho. Bem, aqui estamos na estação Chiselhurst, e logo tiraremos nossas dúvidas.

Uma viagem de alguns quilômetros por caminhos estreitos do campo nos levou até o portão de um parque, que foi aberto por um velho porteiro, cuja face crispada refletia algum grande desastre. A avenida atravessava um parque imponente, entre filas de velhos olmos, e terminava numa casa grande e baixa, com colunas na frente, em estilo paladiano. A ala central, evidentemente, era muito antiga e coberta de musgo, mas as grandes janelas mostravam que tinham sido feitas reformas recentes, e uma ala da casa parecia ser inteiramente nova. A figura jovem e o rosto atento e ansioso do inspetor Stanley Hopkins nos esperavam na porta aberta.

– Estou grato por ter vindo, sr. Holmes. E o senhor também, dr. Watson. Mas, na verdade, se pudesse voltar no tempo, não os teria incomodado, pois desde que a dama voltou a si, relatou o caso de maneira tão clara que não nos restou muita coisa a fazer. Lembra-se daquela gangue de assaltantes de Lewisham?

– Qual, os três Randalls?

– Exatamente; o pai e dois irmãos. É trabalho deles. Não tenho dúvida. Fizeram um trabalho em Sydenham há 15 dias, foram vistos e descritos. Muito frios para fazer outro tão depressa e tão perto, mas foram eles, sem a menor dúvida. É caso para enforcamento desta vez.

– Então sir Eustace está morto?

– Sim, sua cabeça foi golpeada com seu próprio atiçador de lareira.

– Sir Eustace Brackenstall, disse-me o motorista.

– Exato – um dos homens mais ricos de Kent. – Lady Brackenstall se encontra na sala de estar. Pobre senhora, passou por uma experiência terrível. Parecia quase morta, quando a vi pela primeira vez. Acho que é melhor vocês irem até lá para ouvir o seu relato dos fatos. Depois examinaremos juntos a sala de jantar.

Lady Brackenstall não era uma pessoa comum. Raras vezes vi uma figura tão graciosa, uma presença tão feminina e um rosto mais bonito. Era loura, cabelos dourados, olhos azuis e sem dúvida teria a compleição perfeita que combina essas cores, não fossem os acontecimentos recentes que a deixaram abatida e tensa. Seus sofrimentos eram tão físicos como mentais, porque sobre um dos olhos aparecia uma horrível inchação roxa, que sua criada, uma mulher alta e austera, molhava o tempo todo com vinagre e água. A dama estava deitada, exausta, num sofá, mas seu olhar rápido e observador, quando entramos no aposento, e a expressão atenta de suas feições bonitas mostravam que nem seu juízo nem sua coragem tinham sido abalados por sua terrível experiência. Vestia um roupão folgado azul e prata, mas um vestido de noite preto, bordado com vidrilhos, estava a seu lado no sofá.

– Já lhe contei tudo o que aconteceu, sr. Hopkins – disse ela, cansada. – O senhor não poderia repeti-lo por mim? Bem, se acha necessário, direi a estes cavalheiros o que ocorreu. Eles já estiveram na sala de jantar?

– Achei que seria melhor que ouvissem primeiro a história contada pela senhora.

– Ficarei satisfeita quando conseguirem solucionar as coisas. É horrível para mim pensar nele ainda estendido lá. – Ela estremeceu e enterrou o rosto nas mãos. Ao fazer isso, as mangas do roupão largo deslizaram, deixando à mostra seus antebraços. Holmes soltou uma exclamação.

– A senhora tem outros ferimentos, madame! O que é isso? – Duas marcas bem vermelhas apareciam num dos braços brancos e roliços. Ela o cobriu rapidamente.

– Não é nada. Não tem nenhuma ligação com este negócio horrendo desta noite. Se o senhor e seu amigo se sentarem, eu lhes contarei tudo o que puder.

– Sou a esposa de sir Eustace Brackenstall. Estive casada durante um ano, mais ou menos. Acho que não adianta tentar esconder que nosso casamento não era feliz. Receio que todos os nossos vizinhos lhe digam isso, mesmo que eu tentasse negar. Talvez a culpa em parte fosse minha. Fui educada na atmosfera mais livre e menos convencional do sul da Austrália, e esta vida inglesa, com suas formalidades e sua rigidez, não é adequada para mim. Mas o motivo principal está no fato, conhecido de todos, de que sir Eustace era um bêbado inveterado. Estar com um homem assim durante uma hora é desagradável. Pode imaginar o que significa, para uma mulher sensível e decidida, estar presa a ele noite e dia? É um sacrilégio, um crime, uma infâmia dizer que um casamento assim é obrigatório. Digo que estas suas leis monstruosas atrairão uma maldição sobre a terra – Deus não permitirá que essa perversidade continue. – Por um momento ela se sentou, ruborizada, e seus olhos brilhavam abaixo da terrível marca na sobrancelha. Depois a mão forte e suave da criada austera acomodou sua cabeça na almofada, e o ódio selvagem transformou-se num soluço impetuoso. Por fim continuou:

– Eu lhes contarei sobre a noite passada. Talvez os senhores saibam que nesta casa todos os criados dormem na ala nova. Este bloco central inclui os aposentos principais, com a cozinha nos fundos e nosso quarto em cima. Minha criada, Theresa, dorme no quarto acima do meu. Não há mais ninguém, e nenhum som poderia alertar aqueles que estão na ala mais distante. Os ladrões deviam saber disso, ou não teriam agido do modo como fizeram.

– Sir Eustace foi para o quarto por volta de 22:30h. Os criados já tinham se retirado para seus aposentos. Apenas minha empregada estava de pé, e permanecia em seu quarto no alto da casa até que eu precisasse de seus serviços. Fiquei sentada neste quarto até depois das 23 horas, entretida com um livro. Então dei uma volta para ver se tudo estava em ordem antes de subir. Era meu costume fazer isso pessoalmente, pois, como já expliquei, nem sempre era possível confiar em sir Eustace. Entrei na cozinha, na copa, na sala de armas, sala de bilhar, sala de visitas, e, finalmente, na sala de jantar. Ao me aproximar da janela, coberta com cortinas grossas, senti de repente o vento soprar no meu rosto, e percebi que estava aberta. Puxei a cortina para o lado e me vi cara a cara com um homem idoso de ombros largos, que acabara de entrar na sala. A janela é grande, do tipo porta-janela, que na verdade é uma porta que dá para o jardim. Estava segurando a vela do quarto acesa e, com sua luz, vi atrás do homem dois outros, prestes a entrar. Dei um passo para trás, mas o sujeito me alcançou num instante. Segurou-me primeiro pelo pulso e depois pela garganta. Abri a boca para gritar, mas ele me deu um golpe violento com o punho no olho e me derrubou no chão. Devo ter ficado inconsciente por alguns minutos porque, quando voltei a mim, descobri que haviam cortado a corda da campainha, e me amarrado bem firme à cadeira de carvalho que fica na cabeceira da mesa de jantar. Estava tão firmemente atada que não podia me mover, e um lenço em minha boca me impedia de emitir qualquer som. Foi nesse instante que meu marido entrou na sala. Evidentemente ouvira algum som suspeito e veio preparado para a cena que encontrou. Estava vestido com uma camisa de dormir e calças, com seu porrete favorito, de ameixeira brava, na mão. Arremeteu contra os assaltantes, mas um outro – era o velho – abaixou-se, pegou o atiçador da lareira e deu-lhe uma pancada horrível ao passar por ele. Caiu com um gemido e não se moveu mais. Desmaiei de novo, mas deve ter sido também por apenas alguns minutos, durante os quais estive insensível. Quando abri os olhos, descobri que haviam recolhido a prataria do aparador e bebido uma garrafa de vinho que ficava lá. Cada um deles tinha uma garrafa na mão. Já lhes disse, creio, que um era idoso, com uma barba, e os outros jovens, calvos. Devem ser o pai e seus dois filhos. Conversaram entre eles, sussurrando. Depois se aproximaram e se certificaram de que eu estava bem presa. Finalmente, foram embora, fechando a janela atrás deles. Quase 15 minutos depois consegui arrancar o lenço da boca. Quando fiz isso, meus gritos atraíram a criada. Os outros criados foram logo avisados e enviados para chamar a polícia local, que na mesma hora informou Londres. Isto é realmente tudo o que posso lhes contar, cavalheiros, e espero que não seja necessário repetir essa história tão dolorosa mais uma vez.

– Alguma pergunta, sr. Holmes? – disse Hopkins.

– Não vou impor mais nenhum sacrifício à paciência e ao tempo de Lady Brackenstall – disse Holmes. – Antes de ir para a sala de jantar, gostaria de ouvir sua experiência. – Olhou para a criada.

– Eu vi os homens antes de eles entrarem na casa – disse. – Quando estava sentada à janela do meu quarto, vi três homens à luz do luar, perto do portão da casa do porteiro, mas não pensei em nada naquele momento. Mais de uma hora depois ouvi minha patroa gritar e corri para baixo, para encontrá-la, pobre cordeirinho, exatamente como ela diz, e ele no chão, com sangue e miolos espalhados pelo quarto. Era o suficiente para deixar uma mulher fora de si, amarrada ali, e seu próprio vestido manchado, mas nunca lhe faltou coragem, desde que era a srta. Mary Fraser, de Adelaide, e Lady Brackenstall, de Abbey Grange, de fato não aprendeu novos caminhos. Já a interrogaram por muito tempo, cavalheiros, e agora ela vai para seu próprio quarto, com sua velha Theresa, para ter o descanso de que tanto precisa.

Com delicadeza maternal, a mulher magra colocou o braço ao redor de sua patroa e a conduziu para fora do aposento.

– Esteve com ela a vida inteira – disse Hopkins. – Cuidou dela quando bebê, e veio para a Inglaterra quando saíram da Austrália pela primeira vez, há 18 meses. O nome dela é Theresa Wright, e é do tipo de criada que não se encontra mais hoje em dia. Por aqui, sr. Holmes, por favor!

O interesse profundo desaparecera do rosto expressivo de Holmes, e eu sabia que, junto com o mistério, todo o encanto do caso havia sumido. Ainda faltava efetuar uma prisão, mas o que eram esses patifes vulgares para que ele sujasse suas mãos com eles? Um especialista impenetrável e culto que descobre ter sido chamado para um caso de sarampo experimentaria um pouco da irritação que eu lia nos olhos do meu amigo. Ainda assim a cena na sala de jantar de Abbey Grange era suficientemente estranha para atrair sua atenção e reacender seu interesse, que minguava.

Era um aposento amplo e alto, com um teto de carvalho esculpido, com painéis também de carvalho, e uma ótima coleção de cabeças de cervos e armas antigas nas paredes. Ao fundo estava a porta-janela da qual já ouvíramos falar. Três janelas menores no lado direito enchiam o aposento com o frio sol de inverno. À esquerda havia uma lareira larga e funda, com um consolo de carvalho maciço. Ao lado da lareira estava uma pesada cadeira de carvalho, com braços e barras transversais na parte debaixo. De um lado e de outro da peça de madeira trabalhada e vazada havia uma corda avermelhada, amarrada em cada lado da madeira cruzada embaixo. Quando a dama foi libertada, a corda tinha sido tirada dela, mas os nós que foram feitos ainda estavam lá. Estes detalhes só chamaram nossa atenção depois, pois nossos pensamentos estavam totalmente concentrados no terrível objeto que jazia sobre o tapete de pele de tigre diante da lareira.

Era o corpo de um homem alto, de boa compleição, cerca de 40 anos de idade. Estava deitado de costas, o rosto para cima, com os dentes brancos brilhando por entre a barba curta e preta. Suas duas mãos fechadas erguiam-se acima da cabeça e um porrete pesado estava ao seu lado. Suas feições morenas, bonitas e aquilinas estavam contorcidas num espasmo de ódio vingativo, que deu ao seu rosto de morto uma terrível expressão demoníaca. Estivera obviamente em sua cama quando o alarme fora dado, pois vestia um camisolão ridículo, bordado, e seus pés descalços projetavam-se das calças. Sua cabeça estava terrivelmente machucada, e toda a sala era testemunha da ferocidade do golpe que o abatera. Ao seu lado achava-se o pesado atiçador, entortado pelo golpe. Holmes examinou o objeto e a indescritível destruição que causara.

– Deve ser um homem forte, esse velho Randall – notou.

– Sim – disse Hopkins. – Tenho alguns registros do sujeito, e ele é um indivíduo desordeiro.

– Você não deverá ter dificuldades para pegá-lo.

– Nem um pouco. Estivemos procurando por ele, e há indícios de que fugiu para os Estados Unidos. Agora que sabemos que a gangue está aqui, não vejo como eles possam escapar. Já espalhamos a notícia em todos os portos, e uma recompensa será oferecida antes do anoitecer. O que me intriga é terem feito algo tão louco, sabendo que a dama poderia descrevê-los e que não deixaríamos de reconhecer a descrição.

– Exato. Era de se esperar que tivessem silenciado lady Brackenstall também.

– Talvez não tenham percebido – sugeri – que ela se recobrara do desmaio.

– É provável. Se ela parecia sem sentidos, não lhe tirariam a vida. E quanto a este pobre sujeito, Hopkins? Ouvi algumas histórias estranhas sobre ele.

– Era um homem de bom coração quando estava sóbrio, mas um perfeito demônio quando estava bêbado, ou mesmo meio bêbado, pois raras vezes o ficava inteiramente. O diabo parecia encarnar nele nessas ocasiões, e ele era capaz de tudo. Pelo que ouvi, apesar de sua riqueza e do título, quase veio parar na polícia uma ou duas vezes. Houve um escândalo por ter embebido um cão em petróleo e ateado fogo no animal – o cão de sua esposa, para piorar as coisas – e só foi contido com dificuldade. Depois jogou uma garrafa na criada, Theresa Wright – houve uma confusão a respeito disso. Em resumo, e aqui entre nós, será uma casa mais alegre sem ele. O que está olhando agora?

Holmes estava ajoelhado, examinando com grande atenção os nós na corda vermelha com que a mulher fora amarrada. Depois, observou cuidadosamente

a ponta cortada e esfiapada no lugar em que havia sido partida quando o ladrão a puxou para baixo.

– Quando isto foi puxado, a campainha da cozinha deve ter tocado bem alto – observou.

– Ninguém podia ouvi-la. A cozinha fica bem nos fundos da casa.

– Como é que o ladrão poderia saber que ninguém a ouviria? Como ousou puxar a corda da campainha de uma maneira tão imprudente?

– Exato, sr. Holmes, exato. Tocou na pergunta que fiz a mim mesmo várias vezes. Não há dúvida de que esse sujeito conhecia a casa e seus hábitos. Devia saber perfeitamente bem que todos os criados estariam em suas camas àquela hora, relativamente cedo, e que ninguém ouviria a campainha tocar na cozinha. Portanto, devia estar em contato com um dos criados. Isto é evidente. Mas são oito criados e todos de ótimo caráter.

– Se outros fatores são iguais – disse Holmes –, suspeitaríamos daquela em cuja cabeça o patrão jogou uma garrafa. Mesmo assim, isso significaria trair a patroa a quem essa mulher parece tão dedicada. Ora, ora, isto é o de menos, e quando pegar Randall, provavelmente não encontrará dificuldades para agarrar seus cúmplices. A história da dama parece ser confirmada, se é que precisa de confirmação, por todos os detalhes que vemos diante de nós. – Foi até a porta-janela e a abriu. – Não há marcas aqui, mas o chão está duro como ferro, e ninguém esperaria que houvesse marcas. Vejo que as velas do consolo foram acesas.

– Sim, foi com a luz delas, e com a da vela do quarto da dama, que os ladrões enxergaram o caminho dentro da casa.

– E o que eles levaram?

– Bem, não levaram muita coisa – apenas meia dúzia de objetos de prata do aparador. Lady Brackenstall acha que eles próprios estavam tão perturbados com a morte de sir Eustace que não saquearam a casa, como normalmente teriam feito.

– Sem dúvida isso é verdade, e mesmo assim beberam vinho, eu acho.

– Para relaxar os nervos.

– Exatamente. Estes três copos no aparador não foram tocados, suponho?

– Sim, e a garrafa está como a deixaram.

– Vamos dar uma olhada nela. Ora, ora! O que é isso?

Os três copos estavam juntos, todos eles com marcas de vinho, e um deles contendo resíduos da película que se forma na superfície do vinho velho. A garrafa estava perto deles, com 2/3 de bebida, e ao seu lado havia uma rolha comprida e muito manchada. Sua aparência e a poeira sobre a garrafa mostravam que não era de vinho comum que os assassinos gostavam.

O comportamento de Holmes tinha mudado. Sua expressão indiferente desaparecera, e eu via novamente um brilho de interesse em seus olhos penetrantes e fundos. Levantou a rolha e examinou-a atentamente.

– Como a tiraram? – perguntou.

Hopkins apontou para uma gaveta meio aberta. Dentro havia toalhas de mesa e um grande saca-rolhas.

– Lady Brackenstall disse que o saca-rolhas foi usado?

– Não, lembre-se de que ela estava sem sentidos no momento em que a garrafa foi aberta.

– Exato. Para falar a verdade, o saca-rolhas não foi usado. Esta garrafa foi aberta com um saca-rolhas de bolso, provavelmente de um canivete, que não tinha mais do que uns 4 centímetros de comprimento. Se examinar o alto da rolha, vai observar que o saca-rolhas foi colocado três vezes antes de extraí-la. Ela jamais foi trespassada. Este saca-rolhas comprido a teria trespassado e extraído com um único puxão. Quando agarrar esse sujeito, vai descobrir que ele tem um desses canivetes múltiplos em seu poder.

– Excelente! – disse Hopkins.

– Mas essas garrafas me intrigam, confesso. Lady Brackenstall viu realmente os três homens bebendo, não?

– Sim, ela foi clara nesse ponto.

– Então isso é o final. O que há mais para ser dito? E ainda assim, deve admitir que os três copos são notáveis, Hopkins. O quê? Não vê nada de notável? Ora, ora, deixe estar. Talvez, quando um homem tem conhecimento e poderes especiais como os meus, isso o estimula a procurar uma explicação complexa quando uma mais simples está ao seu alcance. É claro que pode ser simples casualidade, quanto às garrafas. Bem, bom-dia, Hopkins, não creio que possa ser útil a você, e parece que seu caso é muito claro. Avise-me quando Randall for preso, e sobre outras novidades que possam ocorrer. Acredito que logo teremos de congratulá-lo por uma conclusão bem-sucedida. Venha, Watson, acho que podemos nos dedicar a coisas mais proveitosas em casa.

Durante nossa viagem de volta eu podia ver pelo rosto de Holmes que ele estava muito intrigado com algo que observara. De vez em quando, com esforço, conseguia afastar a impressão e conversar como se o caso estivesse claro, mas depois as dúvidas lhe voltavam, e suas sobrancelhas carregadas e olhos absortos mostravam que seus pensamentos iam de novo para a grande sala de jantar de Abbey Grange, na qual esta tragédia noturna ocorrera. Por fim, num impulso repentino, quando nosso trem estava saindo de uma estação suburbana, ele pulou para a plataforma e me puxou para fora atrás dele.

– Desculpe-me, meu caro amigo – disse ele enquanto olhávamos os últimos vagões do nosso trem desaparecendo numa curva –, sinto fazer de você a vítima do que pode parecer um mero capricho, mas por minha vida, Watson, eu simplesmente não posso deixar o caso nessa situação. Todos os meus instintos protestam contra isso. Está errado – está tudo errado –, juro que está errado. E ainda assim a história da dama estava completa, a confirmação da criada foi suficiente, o detalhe era preciso. O que tenho para contestar isso? Três copos de vinho, isso é tudo. Mas se eu não tivesse dado as coisas como certas, se tivesse conferido tudo com o cuidado que deveria ter demonstrado, teríamos abordado o caso de novo, e se não tivesse nenhuma história estereotipada para torcer minhas idéias, será que eu não teria descoberto algo mais definido com o qual pudesse continuar? É claro que teria. Sente-se neste banco, Watson, até que chegue um trem para Chiselhurst, e permita-me mostrar-lhe o indício, implorando-lhe primeiro que tire da cabeça a idéia de que tudo o que a criada ou sua patroa disseram tem necessariamente de ser verdade. A personalidade encantadora da dama não deve desvirtuar nosso julgamento.

– Com certeza existem detalhes na história dela que, se olharmos com sangue-frio, despertarão nossa suspeita. Esses ladrões tiveram um ganho considerável em Sydenham 15 dias atrás. Algo sobre eles e suas fisionomias apareceu nos jornais, e naturalmente seriam lembrados por qualquer um que desejasse uma história em que ladrões imaginários tomassem parte. Para falar a verdade, assaltantes que fizeram um bom ganho em seu negócio, em geral, ficam contentes em apenas desfrutar seu lucro em paz sem embarcar num outro empreendimento perigoso. Além disso, não é comum ladrões agirem tão cedo, não é comum golpearem uma dama para evitar que ela grite, já que qualquer um imaginaria que este é o caminho certo para fazê-la gritar, é incomum cometerem assassinato quando o seu número é suficiente para subjugar um homem, é incomum contentarem-se com uma pilhagem limitada quando havia muito mais ao seu alcance, e por fim, diria que foi muito estranho homens desse tipo deixarem uma garrafa meio vazia. Todos estes fatos pouco comuns não o impressionam, Watson?

– O efeito cumulativo deles com certeza é considerável, e mesmo assim cada um deles separadamente é bastante possível. A coisa mais extraordinária de todas, ao que me parece, é que a mulher estivesse amarrada à cadeira.

– Bem, não estou muito convencido disso, Watson, pois é evidente que deveriam tê-la matado ou então a amarrado de modo que não pudesse dar um alarme imediato da fuga deles. Mas de qualquer modo mostrei que há um certo elemento de improbabilidade na história da dama, não é? E agora, além de tudo isso, vem o incidente com os copos de vinho.

– O que têm os copos de vinho?

– Pode vê-los de memória?

– Vejo-os claramente.

– Disseram-nos que três homens beberam neles. Isto lhe parece provável?

– Por que não? Havia vinho em cada copo.

– Exato. Mas só havia borra em um deles. Deve ter notado o fato. O que isto lhe sugere?

– O último copo enchido tinha mais probabilidade de conter a borra.

– Nada disso. A garrafa estava cheia de borra e é inconcebível que os dois primeiros copos estivessem puros e o terceiro com muita borra. Há duas explicações possíveis, e apenas duas. Uma é que depois de ter sido enchido o segundo copo, a garrafa foi violentamente agitada, e assim o terceiro recebeu a borra. Isto não parece provável. Não, não, estou convencido de que estou certo.

– Então, o que supõe?

– Que apenas dois copos foram usados, e que os restos de ambos foram despejados no terceiro, para dar a falsa impressão de que três pessoas estiveram lá. Desse modo, toda a borra ficaria no último copo, não? Sim, estou convencido de que é isso. Mas se eu tiver encontrado a explicação verdadeira deste pequeno fenômeno, então num instante o caso passa do lugar-comum para o extraordinário, pois só pode significar que lady Brackenstall e sua criada mentiram deliberadamente, que não se deve acreditar em nenhuma palavra da história delas, que têm algum motivo muito forte para encobrir o verdadeiro criminoso, e que devemos imaginar o caso por nossa conta, sem qualquer ajuda delas. Esta é a missão que temos pela frente, e aqui, Watson, está o trem de Sydenham.

O pessoal de Abbey Grange ficou muito surpreso com a nossa volta, mas Sherlock Holmes, descobrindo que Stanley Hopkins saíra para informar à chefatura, apossou-se da sala de jantar, trancou a porta por dentro e dedicou-se, durante duas horas, a uma daquelas investigações minuciosas e trabalhosas que formam a base sólida sobre a qual suas brilhantes deduções se apóiam. Sentado num canto como um estudante interessado que observa a demonstração do professor, acompanhei cada passo daquela pesquisa memorável. A porta-janela, o tapete, a cadeira, a corda – cada um deles foi examinado com cuidado e devidamente analisado. O corpo do infeliz baronete havia sido removido, e tudo o mais permanecia como víramos pela manhã. Finalmente, para meu assombro, Holmes subiu no maciço consolo da lareira. Muito acima de sua cabeça estavam pendurados alguns centímetros da corda vermelha que ainda estavam atados ao fio. Durante muito tempo ficou olhando para ela, e depois, numa tentativa de chegar mais perto, apoiou o joelho numa prateleira de madeira na parede. Isto fez com que sua mão ficasse a poucos centímetros do pedaço partido da corda, mas não precisava tanto, pois era a própria prateleira que parecia atrair sua atenção. Por fim, pulou para o chão com uma exclamação de contentamento.

– Está tudo bem, Watson – disse. – Temos nosso caso – um dos mais memoráveis da nossa coleção. Mas, meu Deus, como fui estúpido, e quase cometi o grande erro da minha vida! Agora, acho que, com alguns elos que faltam, minha cadeia está quase completa.

– Descobriu os seus homens?

– Homem, Watson, homem. Apenas um, mas uma pessoa terrível. Forte como um leão – veja pelo golpe que amassou aquele atiçador! Quase 1,90m de altura, ágil como um esquilo, hábil com os dedos e, finalmente, com uma incrível presença de espírito, pois toda essa história engenhosa é um plano seu. Sim, Watson, deparamo-nos com um trabalho de um indivíduo notável. E mesmo assim, com aquela corda da campainha, ele nos forneceu uma pista que não nos deixa dúvida alguma.

– Onde estava a pista?

– Bem, se puxasse uma corda de campainha, Watson, onde esperaria que ela se rompesse? Com certeza no ponto em que está atada ao fio. Por que arrebentaria 8 centímetros antes do lugar, como aconteceu?

– Porque está puída ali?

– Exatamente. Esta ponta, que podemos examinar, está puída. Ele foi suficientemente esperto para fazer isso com seu canivete. Mas a outra ponta não está. Não poderia observar daqui, mas se estivesse sobre o consolo da lareira, veria que está cortada sem qualquer marca de desgaste. Pode-se reconstituir o que aconteceu. O homem precisava da corda. Não a puxaria por temer dar

o alarme tocando a campainha. O que faz? Pula para o consolo da lareira, não a alcança, põe o joelho na prateleira – verá a marca na poeira – e então pega o canivete para lançar-se sobre a corda. Não consegui alcançar o lugar por uma diferença de pelo menos 7 centímetros – e daí eu deduzo que ele é pelo menos 7 centímetros mais alto do que eu. Olhe para aquela marca no assento da cadeira de carvalho! O que é isso?

– Sangue.

– Sem dúvida é sangue. Só isto põe a história da dama fora de cogitação. Se ela estava sentada na cadeira quando o crime foi cometido, como apareceu esta marca? Não, não, ela foi colocada na cadeira depois da morte do marido. Aposto como o vestido negro mostra uma marca semelhante a esta. Ainda não encontramos nosso Waterloo, Watson, mas esta é nossa Marengo, porque começa em derrota e acaba em vitória. Agora gostaria de trocar algumas palavras com a enfermeira, Theresa. Devemos ser cautelosos por enquanto, se quisermos obter a informação de que precisamos.

Era uma pessoa interessante, esta austera enfermeira australiana – taciturna, desconfiada, indelicada; demorou algum tempo para que as maneiras agradáveis de Holmes e a franca aceitação de tudo o que ela dizia a abrandassem, fazendo-a exibir uma amabilidade correspondente. Não tentou esconder seu ódio pelo patrão falecido.

– Sim, senhor, é verdade que jogou a garrafa em mim. Ouvi quando ele xingou minha patroa, e eu lhe disse que ele não ousaria falar assim se o irmão dela estivesse lá. Foi então que ele jogou a garrafa em mim. Teria atirado uma dúzia se tivesse, mas deixou minha moça bonita em paz. Sempre a tratou mal, e ela era orgulhosa demais para reclamar. Nunca me contará tudo o que ele fez a ela. Nunca me falou daquelas marcas no braço que o senhor viu esta manhã, mas sei muito bem que resultaram de um golpe com um alfinete de chapéu. O demônio fingido – Deus me perdoe por falar assim dele, agora que está morto! Mas era um demônio, se algum já andou pela Terra. Era todo doçura quando o conhecemos – há apenas 18 meses, e nós duas sentimos como se fossem 18 anos. Ela acabara de chegar a Londres. Sim, era sua primeira viagem – nunca tinha se afastado de casa antes. Conquistou-a com seu título, seu dinheiro e suas falsas maneiras de Londres. Se ela cometeu um erro, já pagou por ele se alguma mulher o fez. Em que mês nós o conhecemos? Bem, digo-lhe que foi logo depois que chegamos. Desembarcamos em junho, foi em julho. Casaram-se em janeiro do ano passado. Sim, ela está na sala de estar novamente, e não tenho dúvida de que o atenderá, mas o senhor não deve exigir muito dela, porque já agüentou mais do que podia.

Lady Brackenstall estava recostada no mesmo sofá, mas parecia mais animada do que antes. A criada entrou conosco, e começou novamente a tratar do ferimento na sobrancelha de sua patroa.

– Espero – disse a dama – que não tenha vindo para me interrogar de novo.

– Não – respondeu Holmes na sua voz mais suave –, não vou perturbá-la desnecessariamente, lady Brackenstall, e tudo que quero é tornar as coisas mais fáceis para a senhora, pois estou convencido de que é uma mulher que já passou por muitas provações. Se me tratar como um amigo e confiar em mim, verá que corresponderei à sua confiança.

– O que quer que eu faça?

– Que me conte a verdade.

– Sr. Holmes!

– Não, não, lady Brackenstall – é inútil. Deve ter ouvido falar da minha modesta reputação. Aposto tudo no fato de que sua história é pura invenção.

A patroa e a criada olharam para Holmes com rostos pálidos e olhos amedrontados.

– O senhor é um sujeito insolente! – exclamou Theresa. – Está querendo dizer que minha patroa contou uma mentira?

Holmes levantou-se da cadeira.

– Não tem nada para me contar?

– Já lhe contei tudo.

– Pense mais uma vez, lady Brackenstall. Não é melhor ser franca?

Por um instante seu rosto bonito mostrou hesitação. Depois algum novo pensamento o fez fechar-se como uma máscara.

– Já lhe disse tudo o que sabia.

Holmes pegou o chapéu e encolheu os ombros. – Desculpe-me – disse, e sem dizer mais nada saímos do aposento e da casa. Havia um lago no parque, e meu amigo se encaminhou para lá. Estava todo congelado, mas um único buraco foi deixado para a cordialidade de um cisne solitário. Holmes olhou para ele e passou pelo portão da casa. Ali escreveu um bilhete para Stanley Hopkins e o deixou com o porteiro.

– Pode ser um tiro no alvo ou um erro, mas estamos fazendo algo por nosso amigo Hopkins, apenas para justificar esta segunda visita – disse. – Ainda não lhe confiarei tudo. Creio que nosso próximo local de operações será a agência de navegação da linha Adelaide-Southampton, que fica ao final de Pall Mall, se me lembro bem. Existe uma segunda linha de navios que ligam o sul da Austrália à Inglaterra, mas procuraremos primeiro a maior.

O cartão de Holmes, mandado ao gerente, garantiu uma atenção imediata, e ele não demorou a obter a informação de que precisava. Em junho de 1895, apenas um de seus navios chegou ao porto de origem. Era o Rock of Gibraltar, seu maior e melhor vapor. Uma olhada na lista de passageiros mostrou que

a srta. Fraser, de Adelaide, e sua criada viajaram nele. O navio estava agora em algum lugar ao sul do Canal de Suez, a caminho da Austrália. Seus oficiais eram os mesmos de 1895, com uma exceção. O primeiro oficial, sr. Jack Crocker, foi promovido a capitão e iria assumir o comando do seu novo navio, o Bass Rock, que ia partir de Southampton dentro de dois dias. Morava em Sydenham mas devia vir aquela manhã para receber instruções, se quiséssemos esperar por ele.

Não, o sr. Holmes não desejava falar com ele, mas gostaria de saber mais sobre seus antecedentes e seu caráter.

Sua ficha era magnífica. Não havia um só oficial na esquadra que se comparasse a ele. Quanto ao seu caráter, era confiável no trabalho, mas um sujeito violento e desesperado quando estava fora do deck de seu navio – cabeça-quente, irritável, mas leal, honesto e de bom coração. Essa era a essência da informação com a qual Holmes deixou o escritório da companhia Adelaide-Southampton. Depois foi até a Scotland Yard, mas, em vez de entrar, ficou sentado na carruagem com o cenho franzido, perdido em pensamentos. Por fim, foi até o posto telegráfico de Charing Cross, mandou uma mensagem, e, finalmente, voltamos mais uma vez a Baker Street.

– Não, não podia fazer isso, Watson – disse, quando entramos nos nossos aposentos. – Depois que o mandado fosse expedido, nada neste mundo o salvaria. Uma ou duas vezes em minha carreira senti que causei mais prejuízo real com minha descoberta do criminoso do que ele jamais provocou com seu crime. Aprendi a prudência agora, prefiro fazer brincadeiras com a justiça da Inglaterra do que com minha própria consciência. Vamos saber um pouco mais antes de agirmos.

Antes do anoitecer, recebemos a visita de Stanley Hopkins. As coisas não estavam andando bem para ele.

– Acredito que o senhor é um mágico, sr. Holmes. Algumas vezes chego a pensar que o senhor tem poderes que não são humanos. Agora, como diabos pôde saber que a prataria roubada estava no fundo daquele lago?

– Eu não sabia.

– Mas me aconselhou a examiná-lo.

– Conseguiu, então?

– Sim, consegui.

– Estou contente por tê-lo ajudado.

– Mas não me ajudou. Tornou o caso ainda mais difícil. Que espécie de ladrões são esses que roubam prataria e a jogam no lago mais próximo?

– Foi com certeza um comportamento bastante excêntrico. Apenas desenvolvi a idéia de que se a prataria foi levada por pessoas que não a queriam – que só a levaram para disfarçar, como de fato aconteceu –, ficariam ansiosos para se livrar dela.

– Mas por que tal idéia passou pela sua cabeça?

– Bom, pensei que isso era possível. Quando saíram pela porta-janela, lá estava o lago com um pequeno e tentador buraco no gelo, bem diante dos seus narizes. Poderia haver um esconderijo melhor?

– Ah, um esconderijo – isso é melhor! – exclamou Stanley Hopkins. – Sim, sim, vejo tudo agora! Era cedo, havia gente nas ruas, ficaram com medo de serem vistos com a prataria, de modo que afundaram os objetos no lago, pretendendo voltar para apanhar tudo quando não houvesse risco. Excelente, sr. Holmes – isto é melhor do que sua idéia de disfarce.

– Talvez, você tem uma teoria admirável. Não tenho dúvida de que minhas próprias idéias são bem absurdas, mas deve admitir que acabaram descobrindo a prata.

– Sim, senhor – sim. Tudo obra sua. Mas tive um péssimo contratempo.

– Um contratempo?

– Sim, sr. Holmes. A gangue de Randall foi presa em Nova York esta manhã.

– Meu Deus, Hopkins! Isto com certeza derruba sua teoria de que eles cometeram um assassinato em Kent na noite passada.

– É desastroso, sr. Holmes – absolutamente desastroso. Mas existem outras gangues de três elementos além dos Randall, ou deve ser alguma nova gangue da qual a polícia nunca ouviu falar.

– Talvez, é perfeitamente possível. O quê! Está indo embora?

– Sim, sr. Holmes, não poderei descansar enquanto não chegar ao fundo desse negócio. Não tem nenhuma pista para me dar?

– Já lhe dei uma.

– Qual?

– Ora, eu sugeri um disfarce.

– Mas por quê, sr. Holmes, por quê?

– Ah, essa é a questão, é claro. Mas recomendo que pense na idéia. Provavelmente vai descobrir que há alguma coisa nela. Não vai ficar para jantar? Bem, adeus, e informe-nos sobre o andamento do caso.

O jantar havia terminado e a mesa já fora tirada quando Holmes voltou a tocar no assunto. Acendera seu cachimbo, e os pés metidos em chinelos estavam próximos ao agradável calor da lareira. De repente olhou para seu relógio.

– Espero novidades, Watson.

– Quando?

– Agora – dentro de poucos minutos. Aposto como pensou que agi mal com Stanley Hopkins agora há pouco.

– Confio em seu julgamento.

– Uma resposta muito sensata, Watson. Deve encarar isto deste modo: o que eu sei não é oficial, o que ele sabe é oficial. Tenho direito a um julgamento pessoal, mas ele não. Ele deve revelar tudo, ou será um traidor do seu serviço. Num caso duvidoso, eu não o deixaria em situação constrangedora, de modo que guardo minhas informações até que eu tenha uma idéia mais clara do assunto.

– Mas quando será isso?

– Já está na hora. Você agora vai presenciar a última cena de um drama pequeno e notável.

Houve um ruído na escada, e nossa porta foi aberta para deixar entrar o exemplar masculino mais bonito que já passara por ela. Era um jovem muito alto, bigode dourado, olhos azuis, com uma pele que deve ter sido bronzeada pelo sol tropical, e um passo elástico que demonstrava ser o corpo enorme tão ágil quanto forte. Fechou a porta e ficou parado com as mãos fechadas e a respiração ofegante, mostrando uma certa emoção contida.

– Sente-se, capitão Crocker. Recebeu meu telegrama?

Nosso visitante afundou-se numa poltrona, mirando-nos com um olhar de curiosidade.

– Recebi seu telegrama e vim no horário que me pediu. Ouvi dizer que foi até o escritório. Não havia jeito de evitá-lo. Vou ouvir o pior. O que vai fazer comigo? Prender-me? Fale, homem! Não pode ficar sentado aí e brincar comigo como um gato com um rato.

– Dê-lhe um charuto – disse Holmes. – Morda-o, capitão Crocker, e não deixe seus nervos se descontrolarem. Eu não estaria sentado aqui fumando com o senhor se achasse que era um criminoso comum, pode estar certo disto. Seja franco comigo e podemos fazer algo de bom. Brinque comigo e eu o destruirei.

– O que quer que eu faça?

– Que me faça um relato verdadeiro de tudo que aconteceu em Abbey Grange na noite passada – um relato verdadeiro, lembro-lhe, sem acrescentar nem omitir nada. Já sei tanta coisa que se você se afastar um centímetro do correto, soprarei este apito de polícia da minha janela e o caso escapará de minhas mãos para sempre.

O marinheiro pensou um pouco. Depois bateu na perna com sua grande mão bronzeada.

– Vou arriscar – exclamou. – Acredito que o senhor seja um homem leal e de palavra, e vou contar-lhe a história toda. Mas antes vou dizer uma coisa. No que me toca, não me arrependo de nada e não tenho medo de nada; faria tudo outra vez e ficaria orgulhoso. Mas é a dama, Mary – Mary Fraser – porque eu jamais a chamarei por nome maldito.

Quando penso que a estou envolvendo em problemas, eu, que daria a minha vida apenas para vê-la sorrir, fico arrasado. Ainda assim – ainda assim – o que mais poderia ser feito? Eu lhes contarei minha história, cavalheiros, e então vou lhes perguntar, de homem para homem, o que mais poderia ter feito?

– Devo retroceder um pouco. O senhor parece saber de tudo, portanto suponho que saiba que a conheci quando era uma passageira e eu primeiro oficial do Rock of Gibraltar. Desde o primeiro dia, foi a única mulher para mim. Cada dia daquela viagem eu a amava mais e desde então tenho me ajoelhado na calada da noite e beijado o convés daquele navio porque sabia que seus pés amados tinham caminhado por ele. Nunca teve um compromisso comigo. Tratava-me melhor do que qualquer mulher já tratara um homem. Não tenho queixas a fazer. Tudo era amor de minha parte e companheirismo e amizade da parte dela. Quando nos separamos, ela era uma mulher livre, mas eu nunca poderia ser um homem livre de novo.

– Quando voltei do mar na vez seguinte, soube do casamento dela. Ora, por que não poderia se casar com quem quisesse? Título e dinheiro – quem poderia lidar com isso melhor do que ela? Nascera para tudo o que é bonito e luxuoso. Não fiquei magoado com seu casamento. Não fui tão egoísta a esse ponto. Apenas fiquei contente pela boa sorte que atravessou seu caminho, e que ela não tivesse ido atrás de um marujo sem dinheiro. Foi assim que amei Mary Fraser.

– Bem, nunca pensei que iria vê-la novamente, mas na última viagem fui promovido, e o novo navio ainda não havia sido lançado ao mar, de modo que tive de esperar por alguns meses com meu pessoal em Sydenham. Um dia, no campo, encontrei Theresa Wright, sua velha criada, que me contou tudo sobre ela, sobre ele, sobre todas as coisas. Digo-lhes, cavalheiros, aquilo quase me deixou maluco. Esse cão bêbado ousou levantar a mão para ela, cujos sapatos ele não merecia lamber! Encontrei-me de novo com Theresa. Depois encontrei-me com a própria Mary – e mais uma vez. Então deixamos de nos encontrar. Mas outro dia eu soube que minha viagem iria começar dentro de uma semana, e decidi vê-la mais uma vez antes de partir. Theresa sempre foi minha amiga, porque amava Mary e odiava aquele vilão quase tanto quanto eu. Foi ela que me falou sobre os hábitos da casa. Mary costumava ficar sentada lendo em seu quarto, no andar térreo. Aproximei-me silenciosamente naquela noite e bati na janela. A princípio ela não quis abrir, mas eu sabia que agora ela me amava e não podia deixar que eu ficasse ali fora naquela noite gelada. Ela sussurrou-me para dar a volta até a grande janela da frente, e a encontrei aberta, de modo a me deixar entrar na sala de jantar. Novamente ouvi de seus próprios lábios coisas que fizeram meu sangue ferver, e de novo amaldiçoei esse bruto que maltratava a mulher que eu amava. Bem, cavalheiros, estava com ela perto da janela, na maior inocência, Deus é meu juiz, quando ele entrou como um louco na sala, chamou-a do nome mais ofensivo que se pode usar para uma mulher, e a espancou no rosto com a bengala que tinha na mão. Eu havia agarrado o atiçador e foi uma luta justa entre nós dois. Veja aqui, no meu braço, onde foi o primeiro golpe. Então foi a minha vez, e o ataquei como se fosse uma abóbora podre. Acha que me arrependo? Não! Era a vida dele ou a minha, mas muito mais que isso, era a vida dele ou a dela, pois como podia deixá-la em poder desse louco? Foi assim que o matei. Fiz mal? Bem, então o que cada um dos senhores teria feito, se estivesse em minha situação?

– Ela gritou quando ele a golpeou, e isso atraiu a velha Theresa, que estava no quarto de cima. Havia uma garrafa de vinho na prateleira, eu a abri e despejei um pouco entre os lábios de Mary, pois estava quase morta pelo choque. Depois eu mesmo tomei um gole. Theresa estava fria como gelo, e foi seu o plano, tanto quanto meu. Devíamos fazer parecer que ladrões tinham feito aquilo. Theresa ficou repetindo a nossa história para a patroa enquanto eu subia e cortava a corda da campainha. Depois a amarrei na cadeira e desgastei a ponta da corda para parecer natural, pois poderiam se perguntar por que diabos um ladrão teria subido lá para cortá-la. Então peguei alguns pratos e jarros de prata, para dar a idéia de roubo, e as deixei ali, com ordens de darem o alarme 15 minutos depois da minha saída. Joguei os objetos de prata no lago e fui para Sydenham, sentindo que pelo menos uma vez na vida eu fizera realmente um bom trabalho noturno. E esta é a verdade, toda a verdade, sr. Holmes, mesmo que custe o meu pescoço.

Holmes ficou fumando durante algum tempo em silêncio. Depois atravessou a sala e apertou a mão do nosso visitante.

– Isto é o que eu penso – disse. – Sei que cada palavra é verdadeira, porque você não disse praticamente nenhuma palavra que eu não soubesse. Só um acrobata ou um marinheiro poderiam alcançar a corda da campainha do lugar da prateleira, e só um marinheiro poderia ter dado os nós com que a corda foi amarrada na cadeira. A dama só teve contato com marinheiros uma vez, e foi na viagem dela, e era alguém de sua classe, já que tentava tanto protegê-lo, mostrando assim que o amava. Vê como foi fácil para mim pôr as mãos em você, depois que comecei a seguir a trilha certa.

– Pensei que a polícia nunca iria perceber nossa artimanha.

– E a polícia ainda não o fez, nem irá, na minha opinião. Agora, olhe aqui, capitão Crocker, este é um assunto muito sério, embora eu esteja inclinado a admitir que agiu instigado pela maior provocação a que um homem pode ser submetido. Não tenho certeza de que na defesa de sua própria vida sua ação não será considerada legítima. Contudo, é um júri britânico que vai decidir. Enquanto isso tenho tanta simpatia por você que, se preferir desaparecer nas próximas 24 horas, prometo-lhe que ninguém o impedirá.

– E então tudo será divulgado?

– Com certeza será divulgado.

O marinheiro ficou vermelho de raiva.

– Que espécie de proposta é esta para se fazer a um homem? Conheço o suficiente da lei para saber que Mary seria arrolada como cúmplice. Acha que eu a deixaria sozinha para enfrentar a polícia, enquanto eu fugia? Não, senhor, deixe que façam o pior comigo, mas, pelo amor de Deus, sr. Holmes, descubra alguma maneira de deixar minha pobre Mary longe dos tribunais.

Holmes, pela segunda vez, apertou a mão do marinheiro.

– Eu estava apenas testando o senhor, e falou a verdade o tempo todo. Bem, é uma grande responsabilidade que assumo, mas já dei a Hopkins uma pista excelente, e se ele próprio não souber se aproveitar disto, não posso fazer mais nada. Olhe aqui, capitão Crocker, faremos isso em conformidade com a lei. Você é o prisioneiro. Watson, você é um júri britânico, e jamais conheci um homem mais apropriado para representar um. Sou o juiz. Agora, cavalheiro do júri, já ouviu o depoimento. Declara o prisioneiro culpado ou inocente?

– Inocente, meu senhor – eu disse.

– Vox populi, vox Dei. Está absolvido, capitão Crocker. Desde que a lei não descubra outra vítima, está livre de mim. Volte com esta dama em um ano e deixe o futuro de ambos justificar a sentença que proferimos esta noite!


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