a aventura da segunda mancha

Eu pretendia que a “Aventura de Abbey Grange” fosse a última das proezas do meu amigo, sr. Sherlock Holmes, que eu iria relatar ao público. Esta minha decisão não era devida à falta de material, já que tenho anotações de centenas de casos aos quais nunca fiz inferência, nem foi causada pela diminuição do interesse por parte de meus leitores pela personalidade singular e os métodos únicos deste homem notável. O verdadeiro motivo está na relutância que o sr. Holmes demonstrou em relação à publicação constante de suas experiências. Enquanto estava atuando em sua profissão, os registros de seus sucessos tinham algum valor prático para ele, mas desde que saiu definitivamente de Londres e se dedica ao estudo e à criação de abelhas em Sussex Downs, passou a detestar a fama, e me pediu categoricamente que seus desejos a esse respeito fossem estritamente observados. Foi só quando fiz um apelo é que obtive a promessa de que “A aventura da

segunda mancha” poderia ser publicada no momento oportuno, convencendo-o de que era bastante apropriado que esta longa série de episódios culminasse no caso internacional mais importante para o qual já fora chamado, que por fim consegui o seu consentimento para que um relato do incidente cuidadosamente guardado em segredo fosse afinal divulgado para o público. Se, ao contar a história, eu parecer um tanto vago em certos detalhes, o público rapidamente entenderá que há um ótimo motivo para minha reticência.

Portanto, foi num ano, e mesmo numa década, que devem permanecer indeterminados, que numa manhã de terça-feira, no outono, encontramos dois visitantes de fama européia entre as paredes dos nossos modestos aposentos da Baker Street. O primeiro, austero, nariz protuberante, olhos de águia e aspecto dominador, não era outro senão o ilustre lorde Bellinger, duas vezes primeiro-ministro da Inglaterra. O outro, moreno, de traços nítidos, elegante, quase ainda na meia-idade, e dotado de beleza de corpo e alma, era o right honourable Trelawney Hope, secretário dos Assuntos Europeus, e o estadista mais destacado do país. Sentaram-se lado a lado no sofá cheio de papéis, e era fácil ver pelos rostos cansados e ansiosos que um assunto da maior importância os trouxera até ali. As mãos magras e cheias de veias azuladas do primeiro-ministro agarravam o cabo de marfim de seu guarda-chuva, e seu rosto ossudo e austero olhava sombriamente de Holmes para mim. O secretário dos Assuntos Europeus cofiava nervosamente o bigode e brincava com o fecho da corrente do relógio.

– Quando descobri minha perda, sr. Holmes, às oito horas, informei logo o primeiro-ministro. Foi por sugestão dele que viemos procurar o senhor.

– Informaram a polícia?

– Não, senhor – disse o primeiro-ministro, no seu conhecido estilo rápido e decidido. – Não fizemos isso, nem é possível fazer. Informar a polícia seria, em última análise, um meio de divulgar para o público. É exatamente isso que desejamos evitar em particular.

– E por quê, senhor?

– Porque o documento em questão é tão importante que a sua publicação poderia muito facilmente – quase posso dizer provavelmente – causar complicações na Europa no mesmo instante. Não seria exagero dizer que a paz ou a guerra dependem desse documento. Talvez não o recuperemos mais, a não ser que a sua recuperação seja feita com o máximo segredo, pois tudo o que desejam aqueles que o levaram é que seu conteúdo seja do conhecimento de todos.

– Entendo. Agora, sr. Trelawney Hope, ficaria muito agradecido se me contasse exatamente em que circunstâncias o documento desapareceu.

– Isso pode ser feito em muito poucas palavras, sr. Holmes. A carta – pois era uma carta de uma potência estrangeira – foi recebida seis dias atrás. Sua importância era tão grande que nunca a deixei em meu cofre, mas eu a levava todas as noites para minha casa, em Whitehall Terrace, guardando-a no meu quarto, trancada numa caixa de correspondência. Estava lá na noite passada. Disto tenho certeza. Eu abri a caixa enquanto me vestia para jantar e vi o documento ali dentro. Esta manhã ele havia sumido. A caixa de correspondência ficara ao lado do copo sobre meu toucador a noite inteira. Tenho sono leve, e minha esposa também. Nós dois estamos dispostos a jurar que ninguém poderia ter entrado no quarto durante a noite. Ainda assim, repito que o papel sumiu.

– A que horas o senhor jantou?

– Às 19:30h.

– Isto foi quanto tempo antes de ir para a cama?

– Minha esposa tinha ido ao teatro. Esperei por ela. Eram 23:30h quando fomos para o nosso quarto.

– Então durante quatro horas a caixa de correspondência ficou sem vigilância?

– Ninguém tem permissão para entrar naquele aposento a não ser a faxineira pela manhã, e meu criado de quarto, ou a criada de minha esposa, durante o resto do dia. São todos criados fiéis que estão conosco há algum tempo. Além disso, nenhum deles poderia saber que havia algo mais valioso do que os papéis comuns do departamento naquela caixa de correspondência.

– Quem sabia da existência daquela carta?

– Ninguém na casa.

– Certamente sua esposa sabia.

– Não, senhor. Não comentei nada com minha mulher até que perdi o papel esta manhã.

O primeiro-ministro balançou a cabeça em sinal de aprovação.

– Já conheço há muito tempo, senhor, o seu senso de dever público – disse ele. – Estou convencido de que, no caso de um segredo desta importância, ele se sobreporia aos mais íntimos laços domésticos.

O secretário se inclinou.

– Não me faz mais do que justiça, senhor. Até esta manhã nunca disse uma só palavra à minha esposa sobre o assunto.

– Ela poderia ter adivinhado?

– Não, sr. Holmes, não poderia – nem qualquer outra pessoa.

– Já perdeu algum documento antes?

– Não, senhor.

– Quem mais na Inglaterra sabia da existência dessa carta?

– Todos os membros do gabinete foram informados a respeito dela ontem, mas o compromisso de segredo que cerca todas as reuniões do gabinete foi reforçado pela advertência solene do primeiro-ministro. Meu Deus, pensar que em poucas horas eu mesmo o perderia! – Seu belo rosto estava retorcido num espasmo de desespero, e suas mãos puxavam os cabelos. Por um momento tivemos um vislumbre de um homem natural, impulsivo, ardente e bastante sensível. Mas logo a máscara aristocrática foi recolocada, e a voz suave retornou. – Além dos membros do gabinete, existem dois, possivelmente três funcionários do ministério que sabiam da carta. Ninguém mais na Inglaterra, sr. Holmes, eu lhe garanto.

– Mas, e fora?

– Acredito que ninguém fora da Inglaterra a viu, a não ser o homem que a escreveu. Estou convencido de que seus ministros... que os canais oficiais normais não foram utilizados.

Holmes refletiu durante algum tempo.

– Agora, senhor, devo lhe perguntar mais detalhadamente o que é este documento, e por que seu desaparecimento teria conseqüências tão graves?

Os dois homens do governo trocaram um rápido olhar e as sobrancelhas cerradas do primeiro-ministro se franziram.

– Sr. Holmes, o envelope é comprido, fino, com uma cor azul clara. Tem um selo de lacre vermelho impresso com um leão agachado. Está endereçado, numa caligrafia grande e vigorosa, para o...

– Receio, senhor – disse Holmes – que, por mais interessantes e mesmo essenciais que esses detalhes possam ser, minha investigação deve ir às raízes das coisas. O que era a carta?

– Isso é um segredo de estado da maior importância, e receio não poder contar-lhe, nem penso que isso seja necessário. Se com a ajuda dos poderes que diz possuir o senhor conseguir achar esse envelope que descrevi, terá prestado um bom serviço ao seu país, e receberá a recompensa que pudermos conceder.

Sherlock Holmes levantou-se com um sorriso.

– Os senhores são dois dos homens mais ocupados do país – disse –, e da minha maneira modesta também tenho muitos compromissos. Sinto muito não poder ajudá-los neste assunto, e qualquer continuação desta entrevista seria uma perda de tempo.

O primeiro-ministro levantou-se num pulo com aquele brilho forte e intenso nos olhos profundos diante dos quais um gabinete havia se atemorizado. – Não estou acostumado, senhor – começou, mas controlou sua raiva e voltou a sentar-se. Durante um minuto ou mais ficamos em silêncio. Então o velho estadista encolheu os ombros.

– Devemos aceitar suas condições, sr. Holmes. Sem dúvida está certo, e é insensato esperar que aja sem confiarmos inteiramente no senhor.

– Concordo com o senhor – disse o jovem.

– Então lhe contarei, confiando em sua honra e na de seu colega, dr. Watson. Apelarei também para seu patriotismo, pois não posso imaginar maior desgraça para o país do que a divulgação desse caso.

– Pode confiar plenamente em nós.

– A carta, então, vem de um certo potentado estrangeiro que foi incomodado por alguns recentes acontecimentos coloniais deste país. Foi escrita apressadamente e sob sua própria responsabilidade. Investigações mostraram que seus ministros não sabem de nada sobre isso. Ao mesmo tempo, está redigida de uma maneira tão imprópria e certas frases nela têm um caráter tão provocador, que sua publicação resultaria, sem dúvida, no mais perigoso estado de exaltação neste país. Haveria tamanha agitação, senhor, que eu não hesitaria em dizer que menos de uma semana depois da publicação daquela carta este país estaria envolvido numa grande guerra.

Holmes escreveu um nome numa folha de papel e o entregou ao primeiro-ministro.

– Exatamente. Foi ele. E é esta carta – esta carta que pode muito bem significar o gasto de milhões e o desperdício de centenas de milhares de vidas humanas – que foi perdida desta maneira inexplicável.

Comunicou ao remetente?

– Sim, senhor, enviamos um telegrama em código.

– Talvez ele deseje a publicação da carta.

– Não, senhor, temos fortes motivos para acreditar que ele já compreende que agiu de maneira indiscreta e precipitada. Seria um golpe maior para ele e para seu país do que para nós, se essa carta for divulgada.

– Se é assim, a quem interessa que essa carta seja divulgada? Por que alguém desejaria roubá-la ou publicá-la?

– Aí, sr. Holmes, o senhor entra nas áreas da alta política internacional. Mas se considerar a situação européia, não terá dificuldades em perceber o motivo. A Europa inteira é um campo armado. Existem duas ligas que fazem um equilíbrio justo do poderio militar. A Grã-Bretanha mantém a balança. Se entrasse em guerra contra uma confederação, isso garantiria a supremacia da outra, quer entrassem quer não na guerra. Percebeu?

– Muito claramente. Então interessa aos inimigos desse potentado possuir e publicar essa carta, a fim de provocar um rompimento de relações entre o país dele e o nosso?

– Sim, senhor.

– E para quem esse documento seria enviado se caísse nas mãos de um inimigo?

– Para qualquer uma das grandes chancelarias da Europa. Está provavelmente indo nessa direção agora, tão depressa quanto um vapor pode levá-la.

O sr. Trelawney Hope deixou a cabeça cair sobre o peito e gemeu alto. O primeiro-ministro pôs a mão delicadamente em seu ombro.

– Foi um azar seu, meu caro amigo. Ninguém pode culpá-lo. Não foi negligente com nenhuma precaução. Agora, sr. Holmes, sabe de todos os fatos. Que atitude o senhor recomenda?

Holmes balançou a cabeça com pesar.

– O senhor acredita que, a menos que esse documento seja recuperado, haverá guerra?

– Acho que é muito provável.

– Então, senhor, prepare-se para a guerra.

– Esta é uma declaração penosa, sr. Holmes.

– Considere os fatos, senhor. É inconcebível que tenha sido levada depois das 23:30h, pois disse-me que o sr. Hope e a esposa estavam no quarto desde essa hora até o momento em que o desaparecimento foi notado. Então, foi retirada ontem à noite, entre 19:30h e 23:30h, provavelmente mais perto do primeiro horário, já que, seja quem for que a tenha apanhado, evidentemente sabia que estava ali e naturalmente a pegaria o mais cedo possível. Agora, senhor, se um documento desta importância fosse levado àquela hora, onde poderia estar neste momento? Ninguém tem motivo para retê-lo. Foi transferido com rapidez para os que precisam dele. Qual a possibilidade que temos agora de apanhá-lo ou mesmo de localizá-lo? Está fora de nosso alcance.

O primeiro-ministro levantou-se do sofá.

– O que diz é perfeitamente lógico, sr. Holmes. Sinto que o assunto está de fato fora de nossas mãos.

– Vamos presumir, apenas como raciocínio, que o documento foi levado pela criada ou pelo criado de quarto.

– São ambos serviçais antigos e leais.

– Creio que o senhor disse que o seu quarto fica no segundo andar, que não há nenhuma entrada de fora e que de dentro ninguém poderia subir sem ser visto. Então, deve ter sido alguém de casa que a levou. A quem o ladrão a entregaria? A um dos vários espiões internacionais e agentes secretos, cujos nomes me são um pouco familiares. Existem três que podem ser considerados os líderes, cabeças da profissão. Começarei minha pesquisa saindo e descobrindo se cada um deles está em seu posto. Se um estiver sumido – principalmente se desapareceu desde a noite passada –, teremos alguma indicação do lugar para onde o documento foi.

– Por que ele estaria desaparecido? – perguntou o secretário de Assuntos Europeus. – Ele levaria a carta para uma embaixada em Londres, provavelmente.

– Aposto que não. Esses agentes trabalham de modo independente, e suas relações com as embaixadas em geral são tensas.

O primeiro-ministro fez um sinal afirmativo com a cabeça.

– Creio que está certo, sr. Holmes. Ele levaria um prêmio tão valioso ao quartel-general com suas próprias mãos. Acho que sua linha de ação é excelente. Enquanto isso, Hope, não podemos deixar de lado todas as nossas outras tarefas por causa desse infortúnio. Se houver alguma novidade durante o dia, nós entraremos em contato com o senhor, e certamente o senhor nos informará dos resultados de suas próprias pesquisas.

Os dois homens com um cumprimento saíram da sala.

Depois que nossos ilustres visitantes foram embora, Holmes acendeu o cachimbo em silêncio e ficou sentado durante algum tempo, perdido em seus pensamentos. Eu abri o jornal matutino e estava absorvido no relato de um crime sensacional que havia ocorrido em Londres na noite anterior, quando meu amigo soltou uma exclamação, levantou-se e deixou seu cachimbo na borda da lareira.

– Sim – disse –, não há maneira melhor de abordar o caso. A situação é desesperadora, mas não irremediável. Mesmo agora, se pudéssemos ter certeza de quem levou a carta, é bem provável que ainda não a tenha passado adiante. Afinal, tudo é uma questão de dinheiro com esses sujeitos, e tenho o tesouro da Inglaterra atrás de mim. Se estiver no mercado, eu o comprarei – se significar mais 1 pêni no imposto de renda. É possível que o sujeito o tenha guardado para ver que ofertas aparecem deste lado, antes de tentar a sorte no outro. Só existem três capazes de jogar um jogo tão audacioso – são Oberstein, La Rothiere e Eduardo Lucas. Verei cada um deles.

Dei uma olhada no jornal da manhã.

– É o Eduardo Lucas, da rua Godolphin?

– Sim.

– Você não o verá.

– Por que não?

– Foi assassinado em sua casa ontem à noite.

Meu amigo tem me surpreendido com tanta freqüência ao longo de nossas aventuras que foi com um sentimento de exultação que percebi como eu o surpreendera. Ele olhou espantado, e então tirou o jornal das minhas mãos. Este era o parágrafo que estivera lendo quando ele se levantou da cadeira.


Assassinato em Westminster

Um crime com características misteriosas foi cometido na noite passada no número 16 da rua Godolphin, uma das casas antigas e isoladas do século XVIII, que ficam entre o rio e a abadia, quase à sombra da grande torre do Parlamento. Nesta mansão pequena mas elegante morava há alguns anos o sr. Eduardo Lucas, conhecido nos círculos da sociedade pela sua personalidade encantadora, bem como pela merecida fama de ser um dos melhores tenores amadores do país. O sr. Lucas é solteiro, tem 34 anos de idade, e sua criadagem é formada pela sra. Pringle, uma velha governanta, e por Mitton, seu criado de quarto. A governanta se recolhe cedo e dorme no alto da casa. O criado estava fora à noite, visitando um amigo em Hammersmith. Das 22 horas em diante, o sr. Lucas ficou sozinho em casa. O que ocorreu durante aquele tempo ainda não se sabe, mas quando eram 23:45h, o guarda Barrett, que passava pela rua Godolphin, notou que a porta do número 16 estava entreaberta. Bateu, mas não teve resposta. Percebendo uma luz na sala da frente, bateu de novo, mas sem resposta. Então empurrou a porta e entrou. O aposento estava num estado de desordem selvagem, com a mobília toda empurrada para um lado e uma cadeira de cabeça para baixo bem no centro. Ao lado dessa cadeira, e ainda agarrando uma das pernas dela, estava o infeliz dono da casa. Fora apunhalado bem no coração e deve ter morrido instantaneamente. A faca com a qual o crime foi cometido era uma adaga indiana curvada, tirada de um painel de armas orientais que enfeitava uma das paredes. Roubo não parece ter sido o motivo para o crime, pois não houve tentativa de levar as peças valiosas do aposento. O sr. Eduardo Lucas era tão conhecido e popular que seu destino violento e misterioso despertou um doloroso interesse e uma grande emoção num vasto círculo de amigos.


– Bem, Watson, o que acha disso? – perguntou Holmes, depois de uma longa pausa.

– É uma coincidência assombrosa.

– Uma coincidência! Aqui está um dos três homens que havíamos mencionado como possíveis atores neste drama, e ele encontra uma morte violenta no mesmo horário em que, pelo que sabemos, o drama foi encenado. São grandes os indícios de que isso não pode ser uma coincidência. Nenhum número poderia expressá-los. Não, meu caro Watson, os dois fatos estão ligados – têm de estar ligados. Cabe a nós descobrir a ligação.

– Mas agora a polícia já deve saber de tudo.

– Não tudo. Eles sabem tudo o que viram na rua Godolphin. Não sabem – e nem devem saber – nada de Whitehall Terrace. Só nós conhecemos os dois fatos,

e podemos estabelecer a ligação entre eles. Existe um ponto óbvio que, de qualquer modo, atrairia minhas suspeitas para Lucas. Rua Godolphin, Westminster, é uma caminhada de apenas alguns minutos até Whitehall Terrace. Os outros agentes secretos que mencionei moram no distante West End. Portanto era mais fácil para Lucas do que para os outros estabelecer uma conexão ou receber uma mensagem dos criados do secretário para Assuntos Europeus – uma coisa pequena, e ainda assim, quando acontecimentos estão limitados a um período de algumas horas, ela pode ser essencial. Ora! O que temos aqui?

A sra. Hudson havia aparecido com o cartão de uma dama numa bandeja. Holmes olhou-o, ergueu as sobrancelhas e me entregou o cartão.

– Diga a lady Trelawney Hope que tenha a bondade de subir – disse.

Logo depois nosso modesto apartamento, já tão procurado aquela manhã, teve a honra de receber a mulher mais graciosa de Londres. Eu ouvira falar com freqüência da beleza da filha mais nova do duque de Belminster, mas nenhuma descrição dela, e nenhuma observação das fotografias em preto-e-branco haviam me preparado para o charme sutil e delicado e a coloração bonita daquela cabeça encantadora. Mesmo assim, ao vê-la naquela manhã de outono, não era a beleza a primeira coisa a impressionar o observador. O rosto era encantador, mas estava pálido de emoção, os olhos brilhavam, mas era o brilho da febre, a boca sensível estava fechada e contraída num esforço de autocontrole. Terror – não beleza – era o que saltava aos olhos quando nossa famosa visitante parou por um instante na porta aberta.

– Meu marido esteve aqui, sr. Holmes?

– Sim, madame, esteve aqui.

– Sr. Holmes, eu lhe imploro que não conte a ele que estive aqui. – Holmes fez uma curvatura com frieza, e indicou uma cadeira à dama.

– A sua condição de dama me coloca numa posição muito delicada. Por favor, sente-se e diga o que deseja, mas receio não poder fazer nenhuma promessa incondicional.

Ela atravessou a sala e sentou-se de costas para a janela. Era uma presença majestosa – alta, graciosa e intensamente feminina.

– Sr. Holmes – disse, e suas mãos de luvas brancas se juntavam e se separavam enquanto falava –, vou falar com franqueza com o senhor, na esperança de induzi-lo também a falar francamente. Existe uma confiança absoluta entre mim e meu marido em todos os assuntos, menos em um. Este é a política. Sobre isso, seus lábios estão selados. Não me conta nada. Agora, soube que houve um incidente dos mais deploráveis em nossa casa na noite passada. Sei que um papel desapareceu. Mas como o assunto é política, meu marido se recusa a confiar em mim. Agora é essencial – essencial, eu digo – que eu o entenda direito. O senhor é a única pessoa, além desses políticos, que conhece os fatos verdadeiros. Portanto eu lhe imploro, sr. Holmes, que me conte exatamente o que aconteceu e quais as conseqüências. Conte-me tudo, sr. Holmes. Não deixe que qualquer consideração pelos interesses de seu cliente o silencie, pois lhe asseguro que seria melhor para os interesses dele, se ao menos ele pudesse ver isso, se confiasse totalmente em mim. O que era esse papel que foi roubado?

– Madame, o que me pede é realmente impossível.

Ela deu um gemido e mergulhou o rosto nas mãos.

– Deve compreender que isto é assim, madame. Se seu marido acha melhor que a senhora ignore esse assunto, caberá a mim, que apenas soube dos fatos verdadeiros sob a promessa de segredo profissional, contar o que ele se recusou a fazer? Não é justo me pedir isso. É a ele que deve perguntar.

– Eu perguntei a ele. Vim procurar o senhor como último recurso. Mas se não me contar nada de definitivo, sr. Holmes, pode me fazer um grande favor se me esclarecer um detalhe.

– Qual, madame?

– A carreira política de meu marido pode ser prejudicada por causa deste incidente?

– Bem, madame, a menos que seja solucionado, pode com certeza ter um efeito muito infeliz.

– Ah! – respirou profundamente, como alguém cujas dúvidas foram esclarecidas.

– Mais uma pergunta, sr. Holmes. Por uma expressão que meu marido deixou escapar ao primeiro choque do desastre, compreendi que a perda desse documento poderia provocar terríveis conseqüências.

– Se ele disse isso, com certeza não posso negá-lo.

– De que tipo são?

– Não, madame, novamente me pergunta mais do que posso responder.

– Então não tomarei mais o seu tempo. Não posso condená-lo, sr. Holmes, por ter se negado a falar mais livremente, e o senhor, por sua vez, não pensará o pior de mim por desejar, embora contra a vontade dele, compartilhar as ansiedades de meu marido. De novo peço-lhe que não lhe diga nada sobre minha visita.

Olhou para nós da porta, e tive uma última impressão daquele bonito rosto apavorado, dos olhos atemorizados e da boca contraída. Depois foi embora.

– Agora, Watson, o sexo frágil é o nosso departamento – disse Holmes com um sorriso, quando o farfalhar de saias desapareceu no momento em que a porta da frente foi fechada. – Qual é a jogada da bela dama? O que ela realmente queria?

– Com certeza o que ela disse é claro e sua ansiedade é muito natural.

– Hum! Pense na aparência dela, Watson – seu comportamento, sua excitação contida, sua inquietação, sua insistência em fazer perguntas. Lembre-se de que vem de uma casta de gente que não demonstra a menor emoção.

– Ela com certeza estava muito emocionada.

– Lembre-se também da curiosa vivacidade com que nos garantiu que era melhor para o marido que ela soubesse de tudo. O que queria dizer com isso? E deve ter observado, Watson, como agiu para que a luz ficasse às suas costas. Não queria que víssemos sua expressão.

– Sim, escolheu a única cadeira da sala.

– Ainda assim os motivos das mulheres são inescrutáveis. Recorda-se da mulher em Margate de quem eu suspeitei pelo mesmo motivo. Sem pó no nariz – aquilo acabou sendo a solução correta. Como se pode construir nessa areia movediça? A mais trivial ação delas pode significar enormidades, ou a mais extraordinária conduta delas pode depender de um grampo para cabelo ou de uma pinça. Adeus, Watson.

– Vai sair?

– Sim, darei um pulo até a rua Godolphin com nossos amigos da polícia oficial. A solução do nosso problema está com Eduardo Lucas, embora deva admitir que não tenho nenhuma idéia da forma que pode assumir. É um erro fundamental teorizar antes de se conhecerem os fatos. Fique de guarda, meu bom Watson, e receba quaisquer novos visitantes. Devo encontrá-lo no almoço, se puder.

Durante todo aquele dia e no outro e no outro, Holmes pemaneceu num estado de espírito que seus amigos chamariam de taciturno e outros de mal-humorado. Entrava e saía, fumava sem parar, tocava alguns acordes em seu violino, mergulhava em devaneios, devorava sanduíches em horas irregulares, e quase não respondia às perguntas casuais que eu lhe fazia. Era evidente que as coisas não iam bem com ele nem com sua busca. Não disse nada sobre o caso, e foi pelos jornais que soube dos detalhes do inquérito, e da prisão, e posterior libertação, de John Mitton, o criado de quarto do falecido. O júri de instrução apresentou o óbvio homicídio premeditado, mas os participantes ainda permaneciam desconhecidos. Nenhum motivo foi sugerido. A sala estava cheia de objetos de valor, mas nada foi levado. Os papéis do morto não foram tocados. Foram examinados com cuidado, e mostraram que ele era um estudioso atento da política internacional, um tagarela infatigável, um notável poliglota e um incansável escritor de cartas. Tinha contatos freqüentes com os principais políticos de vários países. Mas nada de sensacional foi descoberto entre os documentos que enchiam suas gavetas. Quanto às suas relações com mulheres, pareciam ter sido promíscuas, mas superficiais. Tinha muitas relações, mas poucas amigas entre elas, e ninguém a quem amasse. Seus hábitos eram regulares, sua conduta inofensiva. Sua morte era um mistério absoluto e com a probabilidade de permanecer assim.

Quanto à prisão de John Mitton, o criado de quarto, foi um ato de desespero, como uma alternativa à total inatividade. Mas nenhum processo poderia ser mantido contra ele. Havia visitado amigos em Hammersmith naquela noite. O álibi era perfeito. É verdade que partiu de volta para casa numa hora que lhe permitiria estar em Westminster antes que o crime fosse descoberto, mas sua própria explicação, de que fizera a pé uma parte do caminho, parecia muito provável por causa da beleza da noite. Chegou de fato à meia-noite e parecia estar transtornado pela tragédia inesperada. Sempre teve boas relações com seu patrão. Vários objetos de propriedade do morto – particularmente uma caixinha de lâminas – foram encontrados no quarto do criado, mas ele explicou que eram presentes do falecido, e a governanta confirmou a história. Mitton esteve a serviço de Lucas durante três anos. É digno de nota que Lucas não levava Mitton quando ia ao continente. Às vezes ficava em Paris durante três meses, mas Mitton ficava encarregado da casa da rua Godolphin. Quanto à governanta, não ouviu nada na noite do crime. Se seu patrão recebeu alguma visita, ele mesmo a deixou entrar.

De modo que durante três manhãs o mistério continuou, pelo que pude acompanhar nos jornais. Se Holmes sabia mais, guardou para si mesmo, mas, ao me contar que o inspetor Lestrade fazia-lhe confidências sobre o caso, deduzi que estava a par de todas as novidades. No quarto dia apareceu um longo telegrama de Paris que parecia resolver toda a questão.


A polícia parisiense acaba de fazer uma descoberta [dizia o Daily Telegraph] que levanta o véu existente em torno do trágico destino do sr. Eduardo Lucas, que teve uma morte violenta na noite da última segunda-feira, na rua Godolphin, Westminster. Nossos leitores se lembrarão de que o falecido foi encontrado apunhalado em seu quarto e que alguma suspeita recaiu em seu criado, mas foi afastada com um álibi. Ontem uma senhora, conhecida como mme. Henri Fournaye, que mora numa pequena casa isolada na rua Austerlitz, foi denunciada às autoridades por seus criados como sendo louca. Um exame mostrou que ela de fato desenvolveu uma mania de forma perigosa e permanente. Na investigação a polícia descobriu que mme. Henri Fournaye só voltou de uma viagem

a Londres na terça-feira passada, e há indícios que a ligam ao crime de Westminster. Uma comparação de fotografias provou de modo conclusivo que o sr. Henri Fournaye e Eduardo Lucas eram na verdade a mesma pessoa, e que o falecido, por algum motivo, levava uma vida dupla em Londres e Paris. Mme. Fournaye, que é de origem mestiça, tem um temperamento extremamente excitável, e sofreu no passado de ataques de ciúmes que chegaram ao delírio. Levantou-se a hipótese de que foi num desses ataques que ela cometeu o crime terrível que causou tanta sensação em Londres. Seus movimentos na noite de segunda-feira ainda não foram reconstituídos, mas sem dúvida uma mulher que corresponde à descrição dela atraiu muita atenção na estação de Charing Cross na manhã de terça-feira, por causa do seu aspecto transtornado e da violência de seus gestos. Portanto, é provável que o crime tenha sido cometido quando estivesse fora de si ou que seu efeito imediato fosse o de levar a infeliz mulher ao delírio. No momento ela é incapaz de fazer um relato coerente do passado, e os médicos não dão esperanças de recuperação da razão. Há evidências de que uma mulher, que pode ter sido mme. Fournaye, foi vista durante algumas horas na noite de segunda-feira rondando a casa da rua Godolphin.

– O que acha disto, Holmes? – Eu li em voz alta o artigo, enquanto ele terminava o café-da-manhã.

– Meu caro Watson – disse ao se levantar da mesa, passando a andar de um lado para o outro na sala –, você é muito paciente, mas se não lhe contei nada nos últimos três dias, é porque não há nada para dizer. Mesmo agora, esta reportagem de Paris não nos ajuda muito.

– Com certeza é definitivo no que se refere à morte do sujeito.

– A morte do homem é um mero incidente – um episódio banal – em comparação com o nosso objetivo real, que é localizar esse documento e evitar uma catástrofe na Europa. Apenas uma coisa importante aconteceu nesses últimos três dias, e é o fato de que nada aconteceu. Tenho notícias quase de hora em hora do governo, e é certo que em nenhum lugar na Europa existem sinais de problemas. Agora, se esta carta estivesse perdida – não, ela não pode estar perdida – mas se não está perdida, onde pode estar? Quem está com ela? Por que está sendo retida? Esta é a questão que bate em minha cabeça como um martelo. Foi de fato uma coincidência a morte de Lucas na noite em que a carta desapareceu? Será que a carta chegou até ele? Se chegou, por que não está entre seus papéis? Esta sua esposa louca a terá levado consigo? Se levou, estará em sua casa em Paris? Como eu poderia procurá-la sem levantar suspeitas da polícia francesa? É um caso, meu caro Watson, em que a justiça é tão perigosa para nós quanto para os criminosos. Cada mão humana está contra nós, e ainda assim os interesses em jogo são colossais. Se eu conseguir concluir com êxito este caso, isto com certeza representará o coroamento glorioso da minha carreira. Ah, aqui estão as últimas da frente de combate! Deu uma olhada rápida no bilhete que segurava. – Ora! Lestrade parece ter notado algo de interessante. Ponha seu chapéu, Watson, e caminharemos juntos até Westminster.

Era a minha primeira visita ao local do crime – uma casa alta, com os fundos estreitos, escura, empertigada, formal e sólida como o século em que fora construída. As feições de buldogue de Lestrade nos olharam da janela da frente, e ele nos cumprimentou calorosamente quando um policial corpulento abriu a porta e nos deixou entrar. O aposento ao qual fomos levados era aquele em que o crime fora cometido, mas não havia mais nenhum vestígio dele, a não ser uma mancha feia e irregular no tapete. Esse tapete era um pequeno quadrado de lã no centro da sala, cercado por um bonito assoalho de madeira, em blocos quadrados, bastante polidos. Sobre a lareira havia um magnífico painel de armas, uma das quais fora usada naquela noite trágica. Perto da janela havia uma escrivaninha suntuosa, e cada detalhe da casa, as pinturas, os tapetes e o papel de parede, tudo indicava um gosto luxuoso quase efeminado.

– Viu as novidades de Paris? – perguntou Lestrade.

Holmes confirmou.

– Nossos amigos franceses parecem ter acertado no alvo desta vez. Sem dúvida é como eles dizem. Ela bateu à porta – visita de surpresa, eu creio, porque ele levava sua vida em compartimentos estanques –, deixou-a entrar, pois não podia deixá-la na rua. Ela disse-lhe como o localizara, e o censurou. Uma coisa levou à outra, e então com aquela adaga tão acessível o fim chegou logo. Mas não foi feito tudo num instante, pois estas cadeiras estavam espalhadas por toda a sala e ele tinha uma na mão, como se tentasse manter a mulher afastada com ela. Está tudo tão claro como se tivéssemos visto.

Holmes ergueu as sobrancelhas.

– E ainda assim me procurou?

– Ah, sim, isso é um outro assunto – uma ninharia, mas o tipo de coisa pela qual o senhor se interessa – esquisito, sabe, e o que se pode chamar de bizarro. Não tem nada a ver com o fato principal – não pode ter, pela aparência.

– O que é, então?

– Bem, o senhor sabe, depois de um crime deste tipo tomamos muito cuidado para manter as coisas na mesma posição. Nada foi removido. Guardas se encarregam disso dia e noite. Esta manhã, como o homem foi enterrado e a investigação terminou – no que se relaciona com a sala –, pensamos em dar uma arrumada por aqui. Este tapete. Vê, não é pregado no chão, apenas colocado aí. Tivemos de levantá-lo. Encontramos...

– Sim? Vocês encontraram...

O rosto de Holmes ficou tenso de ansiedade.

– Ora, tenho certeza de que não adivinharia o que encontramos nem em 100 anos. Vê esta mancha no tapete? Bem, uma grande quantidade deve ter passado através dele, não?

– Sem dúvida.

– Bem, ficará surpreso ao saber que não há uma mancha correspondente no assoalho de madeira clara.

– Nenhuma mancha! Mas deve ter...

– Sim, é o que diz. Mas o fato é que não tem.

Pegou a ponta do tapete, levantou-a e mostrou que realmente era como ele dissera.

– Mas o lado de baixo está tão manchado quanto o de cima. Deveria ter deixado uma marca.

Lestrade exultava com o prazer de ter deixado intrigado o perito famoso.

– Agora, vou dar a explicação. Há uma segunda mancha, mas em outra parte do tapete, e lá, de fato, estava uma grande quantidade de sangue derramado sobre o quadrado branco do assoalho antigo. – O que acha disso, sr. Holmes?

– Ora, é muito simples. As duas manchas na verdade se correspondem, mas o tapete foi trocado de lado. Como era quadrado e despregado, isto pôde ser feito com facilidade.

– A polícia não precisa do senhor para concluir que o tapete foi invertido. Isto está bem claro, pois as manchas ficam uma sobre a outra – se o colocar deste modo. Mas o que quero saber é quem o deslocou e por quê?

Eu podia ver pelo rosto rígido de Holmes que estava vibrando de excitação interior.

– Olhe aqui, Lestrade – disse –, aquele guarda no corredor ficou em seu posto o tempo todo?

– Sim, ficou.

– Bem, siga meu conselho. Interrogue-o com cuidado. Não o faça diante de nós. Esperaremos aqui. Leve-o para a sala dos fundos. Pergunte a ele como ousou fazer entrar pessoas e deixá-las sozinhas nesta sala. Não lhe pergunte se fez isso. Fale como se tivesse certeza. Diga-lhe que sabe que alguém esteve aqui. Pressione-o. Diga-lhe que uma confissão total é sua única possibilidade de perdão. Faça exatamente o que lhe digo!

– Por Deus, se ele souber, eu o afastarei! – exclamou Lestrade. Correu para o saguão e alguns momentos depois sua voz arrogante soou nos fundos da casa.

– Agora, Watson, agora! – exclamou Holmes com uma impaciência exaltada. Toda a força demoníaca do homem escondida atrás daquele comportamento indiferente explodiu num paroxismo de energia. Arrancou o tapete do chão, e num instante estava com as mãos e os joelhos no chão, pressionando para baixo cada um dos quadrados de madeira. Um deles girou de lado quando ele colocou a unha em sua borda. Abria-se como a tampa de uma caixa. Uma pequena cavidade negra abriu-se embaixo. Holmes meteu nela sua mão impaciente e a retirou com um rugido agudo de raiva e desapontamento. Estava vazia.

– Depressa, Watson, depressa! Encaixe de novo! – A tampa de madeira foi recolocada, e o tapete acabara de ser posto no lugar quando ouviram a voz de Lestrade no corredor. Ele encontrou Holmes apoiado languidamente na lareira, resignado e paciente, tentando disfarçar seus bocejos irreprimíveis.

– Desculpe-me por tê-lo deixado esperando, sr. Holmes. Posso ver que está bastante entediado com todo esse caso. Bem, ele confessou, tudo certo. Venha aqui dentro, MacPherson. Deixe estes cavalheiros ouvirem a respeito de sua conduta indesculpável.

O policial corpulento, muito vermelho e arrependido, aproximou-se.

– Eu achei que não tinha nada de mal, senhor. A jovem veio até a porta ontem à tarde – errou de casa, ela disse. E então começamos a conversar. É muito solitário, quando se fica de guarda aqui o dia inteiro.

– Bem, o que aconteceu, então?

– Ela queria ver o lugar onde o crime foi cometido – lera sobre ele nos jornais. Era uma jovem muito respeitável, bem-educada, senhor, e não vi mal nenhum em deixá-la dar uma olhada. Quando viu aquela marca no tapete, caiu no chão e ficou como se estivesse morta. Corri para os fundos e peguei um pouco de água, mas não consegui reanimá-la. Então saí, dobrei a esquina e fui até o Ivy Plant em busca de brandy, e quando o trouxe, a jovem já se recuperara e saíra – envergonhada, eu diria, e sem coragem de me encarar.

– E sobre aquele tapete que foi moído?

– Bem, senhor, estava um pouco enrugado, é claro, quando voltei. Ora, ela caiu sobre ele, e ele fica num assoalho polido sem nada para segurá-lo no lugar. Eu o endireitei depois.

– É uma lição para você aprender que não pode me enganar, guarda MacPherson – disse Lestrade com dignidade. – Sem dúvida pensou que sua falta no cumprimento do dever nunca seria descoberta, e ainda assim uma ligeira olhada naquele tapete foi suficiente para me convencer de que alguém fora admitido na sala. Sorte sua, meu rapaz, que não esteja faltando nada, senão já estaria na rua Queer. Lamento tê-lo chamado por causa de uma coisa tão insignificante, sr. Holmes, mas achei que o fato de a segunda mancha não corresponder à primeira interessaria ao senhor.

– Com certeza foi muito interessante. Esta mulher só esteve aqui uma vez, guarda?

– Sim, senhor, apenas uma.

– Quem era ela?

– Não sei o nome, senhor. Estava respondendo a um anúncio sobre datilografia e veio ao número errado – uma jovem muito agradável e gentil, senhor.

– Alta? Bonita?

– Sim, senhor, era uma mulher alta e jovem. Pode-se dizer que ela era bonita. Talvez alguns dissessem que era muito bonita. “Oh, guarda, deixe-me dar uma olhada!”, ela disse. Tinha um jeito elegante e persuasivo, como se poder dizer, e pensei que não havia nada de mal em apenas deixá-la espiar pela porta.

– Como estava vestida?

– Discretamente, senhor. Uma capa longa, até os pés.

– A que horas foi isso?

– Estava anoitecendo. Começavam a acender os postes quando eu voltei com o brandy.

– Muito bom – disse Holmes. – Venha, Watson, creio que temos um trabalho mais importante num outro lugar.

Quando saímos da casa, Lestrade permaneceu na sala da frente, enquanto o guarda arrependido abria a porta para nós. Holmes virou-se no degrau e mostrou algo em sua mão. O policial olhou atentamente.

– Meu Deus, senhor! – exclamou, com uma expressão de assombro. Holmes pôs o dedo nos lábios, enfiou a mão no bolso da frente, e começou a rir enquanto descíamos a rua. – Excelente! – disse. – Venha, amigo Watson, a cortina se levanta para o último ato. Ficará aliviado em saber que não haverá guerra nenhuma, que o right honourable Trelawney Hope não sofrerá nenhum golpe em sua carreira, que o soberano indiscreto não receberá punição alguma por sua indiscrição, que o primeiro-ministro não terá de lidar com nenhuma complicação européia, e que, com um pouco de tato e esperteza de nossa parte, ninguém perderá 1 pêni sequer pelo que foi um incidente muito perigoso.

Enchi-me de admiração por este homem extraordinário.

– Você solucionou o caso! – exclamei.

– Quase, Watson. Alguns detalhes ainda não foram esclarecidos. Mas já temos tanto que será uma falha nossa se não conseguirmos saber o resto. Iremos direto a Whitehall Terrace e levaremos o caso até o fim.

Quando chegamos à residência do secretário para Assuntos Europeus, foi por lady Hilda Trelawney Hope que Holmes perguntou. Fomos levados para a sala de visitas.

– Sr. Holmes! – disse a dama, e seu rosto estava vermelho de indignação. – Isto é com certeza muito injusto e mesquinho de sua parte. Queria, como expliquei, manter em segredo minha visita ao senhor, receando que meu marido soubesse que eu estava me intrometendo em seus negócios. E mesmo assim o senhor me compromete vindo aqui e demonstrando desse modo que existem relações de negócios entre nós.

– Infelizmente, madame, não tive alternativa. Fui encarregado de recuperar este papel extremamente importante. De modo que devo lhe pedir, madame, que faça a gentileza de colocá-lo em minhas mãos.

A dama ficou de pé num pulo, e a cor desapareceu de seu bonito rosto num instante. Seus olhos ficaram vidrados – ela cambaleou –, e pensei que iria desmaiar. Depois, com grande esforço, recobrou-se do choque, e seu rosto demonstrava assombro e idignação.

– O senhor... o senhor me insulta, sr. Holmes.

– Ora, ora, madame, isso é inútil. Entregue a carta.

Ela correu para a campainha.

– O mordomo lhes mostrará a saída.

– Não a toque, lady Hilda. Se o fizer, todos os meus esforços para evitar um escândalo serão frustrados. Entregue a carta e tudo ficará bem. Se colaborar comigo, posso ajeitar tudo. Se trabalhar contra mim, terei de expô-la.

Ela parou, desafiadora, as feições majestosas, os olhos fixos nos dele como se lesse a sua alma. Sua mão estava na campainha, mas ela não ousara tocá-la.

– Está tentando me amedrontar. Não é uma atitude muito adequada a um homem, sr. Holmes, vir aqui e intimidar uma mulher. O senhor diz que sabe de algo. O que sabe?

– Por favor, sente-se, madame. Vai se machucar se cair aí. Não falarei enquanto não se sentar. Obrigado.

– Dou-lhe cinco minutos, sr. Holmes.

– Um é suficiente, lady Hilda. Sei de sua visita a Eduardo Lucas, que lhe entregou o documento, sei de seu engenhoso retorno ao aposento na noite passada, e a maneira pela qual tirou a carta de seu esconderijo sob o tapete.

Ela o encarou com um rosto cadavérico e engoliu em seco duas vezes antes de poder falar.

– Está louco, sr. Holmes... o senhor está louco! – exclamou finalmente.

Ele tirou um pedaço de papelão do bolso. Era o rosto de uma mulher cortado de um retrato.

– Trouxe isto porque pensei que poderia ser útil – disse. – O policial a reconheceu.

Ela deu um gemido e apoiou a cabeça no encosto da cadeira.

– Vamos, lady Hilda. A senhora está com a carta. O caso ainda pode ser consertado. Não desejo criar-lhe problemas. Minha obrigação termina quando eu devolver a carta perdida ao seu marido. Siga o meu conselho e seja franca comigo. É sua única chance.

Sua coragem era admirável. Mesmo agora não se deixava vencer.

– Afirmo de novo, sr. Holmes, que está absolutamente enganado.

Holmes levantou-se da cadeira.

– Sinto muito pela senhora, lady Hilda. Fiz o máximo que pude. Vejo que foi tudo em vão.

Ele tocou a campainha. O mordomo entrou.

– O sr. Trelawney Hope está em casa?

– Ele estará em casa, senhor, às 12:45h.

Holmes olhou para seu relógio.

– Ainda faltam 15 minutos – disse. – Muito bem, eu esperarei.

Mal o mordomo fechara a porta, lady Hilda ajoelhou-se aos pés de Holmes, as mãos estendidas, o rosto bonito erguido e molhado de lágrimas.

– Oh, poupe-me, sr. Holmes! Poupe-me! – implorou, numa súplica frenética. – Pelo amor de Deus, não conte a ele! Amo-o tanto! Não seria capaz de provocar uma única mancha em sua vida, e sei que isto partiria seu coração nobre.

Holmes ergueu a dama. – Estou grato, madame, por ter dado ouvidos à razão, mesmo neste último instante! Não temos tempo a perder. Onde está a carta?

Ela correu até uma escrivaninha, destrancou-a e tirou um envelope azul comprido.

– Aqui está, sr. Holmes. Gostaria de nunca tê-la visto!

– Como podemos devolvê-lo? – murmurou Holmes. Rápido, rápido, devemos pensar em alguma maneira! Onde está a caixa de correspondência?

– Aqui no quarto dele.

– Que golpe de sorte! Depressa, madame, traga-a aqui!

Logo depois ela apareceu com uma caixa vermelha na mão.

– Como a abriu antes? Tem uma duplicata da chave? Sim, é claro que tem. Abra-a!

De seu decote, lady Hilda tirou uma chave pequena. A caixa foi aberta. Estava entulhada de papéis. Holmes enfiou o envelope azul no meio deles; entre as folhas de um outro documento. A caixa foi fechada, trancada e levada de volta para o quarto.

– Agora estamos prontos para recebê-lo – disse Holmes. – Ainda temos dez minutos. Estou fazendo o possível para acobertá-la, lady Hilda. Em troca, vai passar esse tempo me contando francamente o verdadeiro significado deste caso extraordinário.

– Sr. Holmes, eu lhe contarei tudo – exclamou a dama. – Oh, sr. Holmes, eu preferiria cortar minha mão direita a dar a ele um momento de mágoa! Não existe uma mulher em toda Londres que ame seu marido como eu o amo, e ainda assim, se ele soubesse como agi – como fui induzida a agir –, nunca me perdoaria. Pois preza tanto sua própria honra que ele não poderia esquecer ou perdoar um lapso na honra dos outros. Ajude-me, sr. Holmes! Minha felicidade, a felicidade dele, nossas próprias vidas estão em jogo!

– Depressa, madame, o tempo está acabando!

– Era uma carta minha, sr. Holmes, uma carta indiscreta escrita antes do meu casamento – uma carta boba, de uma garota impulsiva e romântica. Não fiz por mal, e mesmo assim ele a acharia criminosa. Se tivesse lido essa carta, toda sua confiança em mim seria destruída para sempre. Já se passaram anos desde que a escrevi. Pensei que todo esse assunto estivesse esquecido. Então, afinal, ouvi deste homem, Lucas, que ela havia passado para suas mãos, e que ele a entregaria ao meu marido. Implorei sua misericórdia. Ele disse que devolveria a carta se eu lhe entregasse um certo documento que descreveu, e que estava na caixa de correspondência do meu marido. Tinha uma espécie de espião no escritório que lhe falou sobre a sua existência. Ele me garantiu que meu marido não seria prejudicado. Ponha-se na minha situação, sr. Holmes! O que eu deveria fazer?

– Contar tudo ao seu marido.

– Não podia, sr. Holmes, não podia! De um lado, parecia ser a ruína certa, e de outro, por mais terrível que parecesse tirar um papel de meu marido, ainda mais sobre um assunto político, não podia compreender as conseqüências, enquanto em matéria de amor e confiança era tudo muito claro para mim. Eu o fiz, sr. Holmes! Tirei um molde da chave. Esse homem, Lucas, fez uma duplicata. Abri a caixa de correspondência dele, tirei o papel e o levei à rua Godolphin.

– O que aconteceu lá, madame?

– Bati na porta da maneira combinada. Lucas a abriu. Fui atrás dele até a sala, deixando a porta do saguão entreaberta, pois temia ficar sozinha com aquele homem. Lembro-me de que havia uma mulher do lado de fora quando entrei. Nosso negócio foi feito logo. Ele estava com a minha carta em sua mesa, e eu lhe entreguei o documento. Ele me deu a carta. Nesse momento ouvimos um barulho à porta. Passos no corredor. Lucas afastou rapidamente o tapete, jogou o documento em algum esconderijo ali e o cobriu.

– O que aconteceu depois disso parece um pesadelo. Vi um rosto moreno e louco, transtornado, ouvi uma voz de mulher que gritava em francês: “Minha espera não foi em vão. Afinal, afinal encontrei você com ela!” Houve uma luta feroz. Eu o vi com uma cadeira na mão, uma faca brilhava na dela. Fugi correndo da cena horrível, da casa, e somente na manhã seguinte, no jornal, é que soube do desfecho terrível. Aquela noite eu estava feliz porque tinha a minha carta, e ainda não sabia o que o destino iria trazer.

– Foi na manhã seguinte que percebi que apenas trocara um problema por outro. A angústia de meu marido com a perda do documento me doeu no coração. Mal pude me controlar para não me ajoelhar diante dele e lhe contar o que havia feito. Mas isso seria de novo uma confissão do passado. Vim procurar o senhor naquela manhã para compreender a plena dimensão do meu ato. Desde o instante em que compreendi, eu só pensava em trazer de volta o papel do meu marido. Ainda devia estar no lugar onde Lucas o colocara, porque fora escondido antes que aquela mulher horrível entrasse na sala. Não fosse a chegada dela, eu não saberia onde ficava o esconderijo. Como eu poderia entrar na sala? Durante dois dias fiquei vigiando o lugar, mas a porta nunca foi deixada aberta. Na noite passada fiz minha última tentativa. O que fiz e como me saí o senhor já sabe. Trouxe o papel de volta e pensei em destruí-lo, já que não via um jeito de devolvê-lo sem confessar ao meu marido a minha culpa. Céus, ouço seus passos na escada!

O secretário para Assuntos Europeus entrou agitado na sala.

– Alguma novidade, sr. Holmes, alguma novidade? – exclamou.

– Tenho algumas esperanças.

– Ah, graças aos céus! – Seu rosto ficou radiante. – O primeiro-ministro vai almoçar comigo. Posso contar a ele sobre as suas esperanças? Ele tem nervos

de aço, mas sei que mal tem conseguido dormir desde esse incidente terrível. Jacobs, poderia pedir ao primeiro-ministro para subir? Quanto a você, querida, este é um assunto político. Espere na sala de jantar. Estaremos lá daqui a alguns minutos.

A atitude do primeiro-ministro era controlada, mas pude ver pelo brilho de seus olhos e pelo tremor de suas mãos ossudas que estava tão excitado quanto seu jovem colega.

– Creio que tem algo a contar, sr. Holmes?

– Puramente negativo por enquanto – respondeu meu amigo. – Investiguei cada ponto onde poderia estar, e tenho certeza de que não há perigo algum a temer.

– Mas isso não é suficiente, sr. Holmes. Não podemos viver eternamente nesse vulcão. Precisamos ter algo definitivo.

– Tenho esperanças de consegui-lo. É por isso que estou aqui. Quanto mais penso no assunto, mais fico convencido de que a carta nunca saiu desta casa.

– Sr. Holmes!

– Se tivesse saído, a esta altura já teria sido publicada, com certeza.

– Mas por que alguém a pegaria para deixá-la em sua própria casa?

– Não tenho certeza de que alguém a pegou.

– Então como ela pode ter saído da caixa de correspondência?

– Não estou convencido de que ela chegou a sair da caixa de correspondência.

– Sr. Holmes, esta brincadeira é muito importuna. Eu lhe asseguro que a carta saiu da caixa.

– O senhor examinou a caixa desde terça de manhã?

– Não. Não foi necessário.

– Provavelmente apenas deu uma olhada superficial.

– Impossível, eu afirmo.

– Mas não estou convencido disso. Sei que essas coisas acontecem. Presumo que haja outros papéis ali. Ora, pode ter sido misturada com os outros.

– Estava bem em cima.

– Alguém pode ter sacudido a caixa e tê-la tirado do lugar.

– Não, não, estava tudo em ordem.

– Bem, isto pode ser resolvido facilmente, Hope – disse o primeiro-ministro. – Traga a caixa de correspondência.

O secretário tocou a campainha.

– Jacobs, traga minha caixa de correspondência. Isto é uma perda de tempo idiota, mas, se nada mais irá convencê-lo, isso será feito. Obrigado, Jacobs,

ponha-a aqui. Sempre guardei a chave na corrente do meu relógio. Aqui estão os papéis, veja. Carta do lorde Merrow, relatório de sir Charles Hardy, memorando de Belgrado, notas sobre as taxas de grãos russo-germânicas, carta de Madri, bilhete do lorde Flowers – Meu Deus! O que é isto? Lorde Bellinger! Lorde Bellinger!

O primeiro-ministro viu o envelope azul na mão dele.

– Sim, é ele – e a carta está intacta. Hope, eu lhe dou os parabéns.

Obrigado! Obrigado! Que peso me tirou do coração. Mas isto é inconcebível... é impossível. Sr. Holmes, o senhor é um feiticeiro, um adivinho! Como descobriu que estava aqui?

– Porque sabia que não estava em nenhum outro lugar.

– Não consigo acreditar em meus olhos! – Ele correu para a porta.

– Onde está minha esposa? Preciso dizer-lhe que está tudo bem. Hilda! Hilda! – ouvimos sua voz nas escadas.

O primeiro-ministro olhou para Holmes piscando os olhos.

– Ora, senhor – disse. – Há mais coisa nisso do que aquilo que parece à primeira vista. Como é que a carta voltou para a caixa?

Holmes desviou-se sorridente do exame atento daqueles olhos cintilantes.

– Também temos nossos segredos diplomáticos – disse e, pegando o seu chapéu, virou-se para a porta.

*

FIM


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