O Chefe

McMurdo era um homem que fazia rapidamente seu nome. Onde quer que estivesse, as pessoas em volta passavam a conhecê-lo. Em apenas uma semana ele se tornara o mais notório dos moradores da casa de Shafter. Havia cerca de dez ou 12 hóspedes, mas eram todos trabalhadores honestos ou funcionários das lojas, de uma formação muito diferente daquela do jovem escocês. À noite, quando todos se reuniam, as brincadeiras dele eram as mais vivas, sua conversa, a mais brilhante, e sua canção, a melhor. A sua alegria era inata e seu magnetismo atraía o bom humor de todos que estivessem ao seu redor. Mesmo assim, ele mostrava diversas vezes, como fizera no trem, uma capacidade de se enfurecer subitamente e de modo violento, o que lhe valia o respeito e mesmo o temor dos que o viam assim. Com relação à lei e a todas as pessoas ligadas a ela, exibia, também, um cáustico desprezo que encantava alguns dos seus companheiros

de pensão e alarmava outros.

Logo de início ele deixou bem claro, por sua admiração incontida, que a filha do dono da pensão conquistara seu coração no instante em que pusera os olhos em sua beleza e graça. Ele não era um pretendente tímido. No segundo dia dissera-lhe que a amava, e daí em diante repetia a mesma história com absoluto descaso pelo que ela pudesse dizer para desencorajá-lo.

– Existe outro? – ele examinava. – Bem, pior para esse outro! Ele que se cuide. Vou perder a chance da minha vida e deixar morrer os desejos do meu coração por causa de outro? Você pode continuar a dizer não, Ettie! Chegará o dia em que você dirá sim, e sou suficientemente jovem para esperar.

Ele era um pretendente perigoso, com sua língua escocesa muito loquaz e seus modos lisonjeiros. Havia nele também aquele fascínio da experiência e de mistério que atrai o interesse de uma mulher e, finalmente, o seu amor. Ele podia falar dos maravilhosos vales de County Monaghan, de onde viera, da encantadora e distante ilha, os pequenos montes e verdes prados que pareciam ainda mais belos quando a imaginação os via daqui dessa terra suja e cheia de neve. De repente ele começava a falar nas cidades do norte, de Detroit e dos campos madeireiros de Michigan, de Buffalo e, finalmente, de Chicago, onde ele trabalhara numa serraria. E depois vinha a insinuação de romances, a sensação de que coisas fantásticas haviam acontecido com ele naquela cidade grande, coisas tão fantásticas e íntimas que não podiam nem ser contadas. Ele falou com nostalgia de uma partida súbita, rompimento de antigos laços, um recomeço num mundo diferente que acabou sendo nesse vale sombrio, e Ettie escutava, seus olhos negros brilhando com pena e simpatia – esses dois sentimentos que podem se transformar tão rapidamente e tão naturalmente em amor.


McMurdo conseguira um emprego temporário como guarda-livros, pois era um homem muito bem preparado. Isso o mantinha fora de casa a maior parte do dia, e não encontrara tempo ainda para ir falar com o chefe da Loja da Venerável Ordem dos Homens Livres. Mas ele foi lembrado da sua omissão certa noite pela visita de Mike Scanlan, o companheiro que ele conhecera no trem. Scanlan, um homem baixo de rosto severo e com olhos negros muito nervosos, pareceu contente em vê-lo novamente. Depois de um copo ou dois de uísque, ele contou o motivo de sua visita.

– McMurdo – ele disse – eu me lembrava do seu endereço e então tomei a liberdade de procurá-lo. Estou surpreso por você ainda não ter ido procurar o chefe. Por que, afinal, você não foi ver o chefe McGinty?

– Eu precisava arranjar um emprego. Andei ocupado.

– Você tem de encontrar tempo para ele mesmo que não tenha tempo pra nada mais. Meu Deus! Cara, você é louco de não ter ido ao sindicato e registrado seu nome no dia seguinte ao da sua chegada aqui! Se você entrar em choque com ele... Bem, você não deve entrar em choque. É tudo.

McMurdo mostrou-se um tanto surpreso.

– Sou membro da Loja há mais de dois anos e nunca ouvi falar que as tarefas fossem tão urgentes assim.

– Talvez não sejam em Chicago!

– Bem, aqui é a mesma sociedade.

– É? – Scanlan o encarou demoradamente. Havia algo de sinistro em seu olhar.

– Não é?

– Você me dirá se é daqui a um mês. Eu soube que você conversou com os guardas depois que eu saltei do trem.

– Como você ficou sabendo?

– Oh, a notícia se espalhou. Por aqui as coisas boas e as más se espalham.

– Bem, é verdade. Eu disse àqueles cachorros o que achava deles.

– Meu Deus, McGinty vai gostar muito disso!

– Ele também odeia a polícia?

Scanlan deu uma boa gargalhada.

– Vá conhecê-lo, camarada – disse ele, preparando-se para ir embora. – Não é a polícia que ele odeia, mas odiará você, se você não for lá! Agora ouça o conselho de um amigo e vá imediatamente!

Por acaso, na mesma noite McMurdo teve outra visita mais incisiva que insistiu para que ele fizesse a mesma coisa. Talvez suas atenções para com Ettie estivessem mais evidentes do que antes, ou que elas tenham sido percebidas pelo bom hospedeiro alemão; mas, qualquer que tenha sido a causa, o dono da pensão chamou o jovem ao seu escritório e foi direto ao assunto.

– Parece-me – disse ele – que o senhor está de olho na minha Ettie. É verdade ou estou enganado?

– Sim, é verdade – o jovem respondeu.

– Bem, desejo lhe dizer de saída que não é possível. Alguém chegou na sua frente.

– Ela me disse.

– Pode ter certeza de que lhe disse a verdade! Mas ela lhe disse quem era?

– Não. Eu perguntei, mas ela não quis dizer.

– Eu não ousarei dizer. Talvez ela não quisesse assustá-lo.

– Assustar! – McMurdo ficou irritado na mesma hora.

– É verdade, meu amigo! Não precisa se envergonhar por ter medo dele. É Teddy Baldwin.

– E quem é esse cara, afinal?

– É o chefe dos Scowrers.

– Scowrers! Já ouvi falar neles. Todo mundo fala em Scowrers, mas sempre sussurrando. Do que é que todos vocês têm medo? Quem são os Scowrers?

O dono da pensão instintivamente baixou a voz, como faziam todos ao falar sobre a terrível sociedade.

– Os Scowrers – disse ele – são a Venerável Ordem dos Homens Livres.

O jovem se assustou.

– E daí? Eu sou membro da Ordem.

– O senhor?! Eu jamais o receberia em minha casa se soubesse disso. Nem se o senhor pagasse 100 dólares por semana.

– O que há de errado com a Ordem? Ela só faz caridade e reúne as pessoas que são membros.

– Pode ser assim em outros lugares. Não aqui!

– Como é aqui?

– Uma sociedade de extermínio, é isso que ela é.

McMurdo riu, incrédulo.

– Como o senhor prova isso? – ele perguntou.

– Provar! Não há cinqüenta assassinatos que provem isso? O que me diz de Milman e Van Shorst, e a família Nicholson, e o velho sr. Hyam, e o pequeno Billy James e os outros? Provar! Será que existe alguém neste vale que não a conheça?

– Veja bem – disse McMurdo em tom sério. – Quero que o senhor retire o que disse ou então explique melhor. O senhor tem de fazer alguma coisa antes de eu sair desta sala. Ponha-se no meu lugar. Estou na cidade há pouco tempo. Pertenço a uma sociedade que conheço apenas como uma entidade inocente. O senhor a encontra no país inteiro, sempre atuando de modo inocente. Agora que estou pensando em me filiar à Loja daqui, o senhor me diz que ela é uma sociedade de extermínio chamada Scowrers. Acho que o senhor me deve uma desculpa ou uma explicação, sr. Shafter.

– Só posso lhe dizer o que todo mundo sabe, senhor. Os chefes de uma sociedade são os chefes da outra. Se o senhor ofender um, é o outro que vai acertá-lo. Temos muitas provas disso.

– Isso não passa de mexerico! Quero provas! – disse McMurdo.

– Se o senhor ficar aqui muito tempo, terá as provas. Mas esqueci que é um deles. Logo, será tão mau quanto os outros. Mas terá de achar outra pensão. Não posso mantê-lo aqui. Já não basta ter um deles cortejando minha Ettie sem que eu ouse afastá-lo, e ainda ter outro hospedado em minha casa? Bem, o senhor só dorme aqui esta noite.

McMurdo viu que estava sendo afastado tanto do seu quarto confortável como da mulher que amava. Ele a encontrou sozinha na sala de estar naquela mesma noite e contou a ela os seus problemas.

– Na verdade, seu pai acaba de me contar – disse ele. – Eu não ligaria muito se fosse apenas pelo quarto. Acredite Ettie, embora eu a conheça há apenas uma semana, você é o ar que eu respiro e não posso viver sem você.

– Calma, sr. McMurdo! Não fale assim! – disse a moça. – Eu já lhe falei que o senhor chegou tarde demais, não falei? Há um outro, e embora eu não tenha prometido me casar com ele logo, não posso prometer isso a um outro.

– Suponha que eu tivesse sido o primeiro, Ettie. Eu teria chance?

A moça enfiou o rosto nas mãos.

– Eu desejaria que o senhor tivesse sido o primeiro – ela disse, soluçando.

McMurdo imediatamente ajoelhou-se diante dela.

– Pelo amor de Deus, Ettie, esqueça tudo isso! – ele gritou. – Você vai estragar sua vida e a minha por causa dessa promessa? Siga a vontade do seu coração, puxa! É um guia muito mais seguro do que qualquer promessa feita antes que você soubesse o que estava dizendo.

Ele segurava a mão branca de Ettie entre as suas mãos fortes e morenas.

– Diga que você será minha, e nós enfrentaremos isso juntos.

– Longe daqui?

– Não, aqui.

– Não, não, Jack! – Os braços dele a envolviam agora. – Não poderia ser aqui. Você não poderia me levar para longe?

O rosto de McMurdo mostrou hesitação por um instante, mas acabou ficando rijo como granito.

– Não, aqui – disse ele. – Vou lutar por você contra o mundo, Ettie, aqui mesmo onde estamos!

– Por que não vamos embora?

– Não, Ettie, não posso ir embora.

– Por quê?

– Eu nunca mais ergueria minha cabeça novamente se sentisse que tive de fugir daqui. Além do mais, ter medo do quê? Não somos pessoas livres num país livre? Se você me ama e eu a amo, quem ousará se intrometer?

– Você não sabe, Jack. Você está aqui há muito pouco tempo. Você não conhece Baldwin. Não conhece McGinty e os Scowrers.

– Não, não os conheço, não tenho medo deles, e não acredito neles! – disse McMurdo. – Vivi no meio de homens rudes, querida, e em vez de ter medo deles, eram sempre eles que acabavam tendo medo de mim. Sempre, Ettie. É uma loucura! Se esses homens, como diz o seu pai, cometeram crime atrás de crime nesse vale, e se todos os conhecem, por que não foram condenados? Responda-me, Ettie.

– Porque nenhuma testemunha tem coragem de depor contra eles. Quem fizesse isso não viveria um mês, se chegasse a tanto. E também porque eles têm sempre homens que juram que o acusado estava longe do local do crime. Mas certamente, Jack, você já deve ter lido sobre isso. Eu sabia que todos os jornais dos Estados Unidos contaram a respeito deles.

– Sim, eu li alguma coisa, mas pensei que não fosse verdade. Talvez esses homens tenham algum motivo para fazer o que fazem. Talvez tenham sido ofendidos e não tenham outro modo de se defender.

– Oh, Jack, não fale uma coisas dessas! É assim que ele fala, o outro!

– Baldwin. Ele fala assim?

– É por isso que eu o detesto. Oh, Jack, agora posso lhe contar toda a verdade. Eu o odeio com todas as minhas forças; mas tenho medo dele. Tenho medo por mim, mas, acima de tudo, tenho medo por meu pai. Eu sei que um grande sofrimento nos atingiria se eu ousasse dizer o que realmente sinto. Foi por isso que usei de meias-promessas para me livrar dele. Era nossa única esperança. Mas se você me tirasse daqui, Jack, nós poderíamos levar papai conosco e viver para sempre longe do perigo desses homens cruéis.

Novamente o rosto de McMurdo mostrou hesitação e novamente ficou duro como o granito.

– Não acontecerá nada a você, Ettie. Nem a seu pai. Quanto aos homens cruéis, espero que você possa descobrir que eu sou tão mau quanto o pior deles antes de ficarmos juntos.

– Não, não, Jack! Eu confiaria em você em qualquer outro lugar.

McMurdo riu com amargura.

– Meu Deus, como você sabe pouco a meu respeito! Sua alma inocente, querida, não pode nem imaginar o que se passa na minha. Mas quem chegou aí?

A porta se abriu de repente e surgiu um rapaz empertigado com ar de superioridade. Era um jovem atraente, elegante, que tinha mais ou menos a mesma idade e compleição de McMurdo. Sob o chapéu de feltro com aba larga, que ele não se preocupara em tirar, um rosto bonito com olhos frios, dominadores, e um nariz curvo. Ele olhava de modo agressivo para o casal sentado perto da lareira.

Ettie levantara-se rapidamente, confusa e alarmada.

– Fico feliz em vê-lo, sr. Baldwin – disse ela. – O senhor chegou mais cedo do que eu esperava. Entre e sente-se.

Baldwin estava parado no mesmo lugar, com as mãos na cintura, olhando para McMurdo.

– Quem é ele? – perguntou secamente.

– Um amigo meu, sr. Baldwin. Um novo inquilino. Sr. McMurdo, posso apresentá-lo ao sr. Baldwin?

Os dois jovens cumprimentaram-se com um aceno de cabeça não muito cortês.

– Talvez a srta. Ettie tenha lhe contado o que há entre nós – disse Baldwin.

– Não pensei que houvesse alguma coisa entre vocês dois.

– Não? Pode pensar a partir de agora. Fique sabendo que essa garota é minha. E você vai achar que a noite está ótima para dar um passeio.

– Obrigado, não estou com vontade de caminhar.

– Não está? – os olhos selvagens do homem brilharam de raiva. – Talvez esteja com vontade de lutar, sr. Inquilino.

– E estou mesmo! – exclamou McMurdo, ficando de pé. – Você nunca falou uma coisa tão certa.

– Pelo amor de Deus, “Jack”! Oh, pelo amor de Deus! – gritava a pobre e confusa Ettie. – Oh, Jack, Jack – ele vai machucá-lo!

– Ah, é de "Jack" que você o chama? – disse Baldwin, praguejando. – Já está assim, é?

– Oh, Ted, seja razoável, seja cortês! Por mim, Ted, se é que você me ama, tenha um bom coração e perdoe.

– Eu acho, Ettie, que se você nos deixasse sozinhos, poderíamos resolver isso – disse McMurdo com tranqüilidade. – Ou talvez, sr. Baldwin, o senhor prefira dar uma volta comigo na rua. Está uma noite linda. Há uns espaços vazios no próximo quarteirão.

– Eu vou acertar as contas com você sem ter que sujar as minhas mãos – disse o outro. – Você vai se arrepender de ter posto os pés nesta casa antes de eu acabar com você.

– Não há melhor hora do que agora! – gritou McMurdo.

– Eu mesmo escolho a hora certa, senhor. Deixe isso por minha conta. Veja isso! – ele levantou a manga e mostrou no antebraço um sinal estranho que parecia ter sido marcado a fogo. Era um círculo com um triângulo em seu interior. – Sabe o que significa isso?

– Não sei nem quero em saber!

– Bem, você ficará sabendo. Isso eu lhe prometo. Não vai demorar muito tempo. Talvez a srta. Ettie possa dizer-lhe algo sobre isso. Quanto a você, Ettie, voltará para mim de joelhos. Ouviu bem? De joelhos! E então eu lhe direi qual será o seu castigo. Você plantou: juro por Deus que verei você colhendo os frutos do que semeou! – ele olhou para os dois com expressão de fúria. Então virou-se e pouco depois a porta da rua bateu atrás dele.

Durante alguns minutos McMurdo e a moça ficaram calados. Depois ela lançou seus braços em volta dele.

– Oh, Jack, como você foi corajoso! Mas não adianta nada, tem de ir embora! Hoje ainda, Jack. Hoje ainda! É sua única esperança. Ele acabará com a sua vida. Vi isso nos olhos dele. Que chance você tem contra uma porção deles, com o chefe McGinty e toda a força da Loja atrás deles?

McMurdo afastou os braços dela, beijou-a e levou-a gentilmente até uma cadeira.

– Puxa! Não fique perturbada nem tema nada por mim. Eu sou da Loja. Acabei de contar isso ao seu pai. Talvez eu não seja melhor do que os outros, portanto não pense que eu sou um santo. Talvez você também me odeie agora que lhe contei isso.

– Odiá-lo, Jack?! Enquanto eu viver jamais poderei sentir isso por você. Já ouvi falar que não há nada de mais em pertencer à Loja em outros lugares, a não ser aqui. Então por que eu haveria de pensar mal de você? Mas se você pertence à Loja, Jack, por que não vai se apresentar ao chefe McGinty? Depressa, Jack, depressa! Conte sua versão primeiro, ou então aqueles miseráveis o pegarão.

– Eu estava pensando na mesma coisa – disse McMurdo. – Vou lá agora mesmo tratar disso. Você pode dizer ao seu pai que dormirei aqui esta noite e que amanhã cedo procurarei outro lugar para ficar.

O bar do saloon de McGinty estava superlotado como sempre, pois era o local preferido pelos piores elementos da cidade. O homem era popular, porque tinha uma aparência rude e jovial que servia de máscara para encobrir muita coisa. Mas fora sua popularidade, o medo que tinham dele em toda a cidade, e, na verdade, num raio de 40 quilômetros, que incluía o vale e além das montanhas que o delimitavam dos dois lados, era suficiente para manter seu bar cheio, pois ninguém podia se dar ao luxo de dispensar sua benevolência.

Além dessas forças secretas, que todos acreditavam que ele exercia de modo impiedoso, ele era um alto funcionário público, um membro do conselho municipal e um comissário de estradas, eleito pelos votos dos malfeitores que, por sua vez, esperavam favores em troca. Os impostos e as taxas eram enormes, os serviços públicos eram notoriamente negligenciados, a contabilidade era aprovada por auditores subornados, e os cidadãos decentes eram obrigados a pagar subornos e ficar calados a fim de que algo pior não se abatesse sobre eles. Foi assim que, ano após ano, os alfinetes de diamante de McGinty tornaram-se maiores, as correntes de ouro mais pesadas atravessadas num colete mais elegante, e seu saloon se expandia até ameaçar englobar todo um lado do quarteirão da Market Square.

McMurdo empurrou a porta de vaivém do saloon e abriu caminho entre a multidão de homens que estava ali dentro, numa atmosfera carregada de fumaça de tabaco e com forte cheiro de álcool. O lugar era muito iluminado e os grandes espelhos que havia em cada parede multiplicavam a iluminação espalhafatosa. Havia vários garçons em manga de camisa preparando bebidas para os clientes que se amontoavam no grande balcão de metal. No canto do saloon, com o corpo apoiado numa barra e um charuto enfiado no canto da boca, estava um homem alto, forte e musculoso que só podia ser o próprio McGinty. Ele era um gigante de bastos cabelos negros, com a barba cerrada e uma mecha de cabelo caindo sobre o colarinho. Tinha a cor morena dos italianos, e seus olhos negros eram estranhamente sem brilho, e, combinados com um ligeiro estrabismo, davam-lhe uma aparência sinistra. Tudo o mais – suas proporções perfeitas, feições finas e seu modo franco – combinava com o jeito jovial que forjava. Aqui está, alguém poderia dizer, um sujeito honesto e fanfarrão, que tem um coração magnânimo apesar das palavras rudes que diz. Somente quando aqueles olhos negros sem brilho, profundos e impiedosos, voltavam-se para alguém é que a pessoa se encolhia toda, sentindo que estava frente a frente com uma infinita possibilidade de um demônio latente, com uma força, uma coragem e uma astúcia por trás que o tornavam mil vezes mais mortal.

Depois de olhar bem para esse homem, McMurdo abriu caminho de modo rude, com sua audácia descuidada, e chegou até o pequeno grupo de bajuladores que cercava servilmente seu chefe poderoso, rindo de maneira estrondosa ao menor gracejo que ele fizesse. Os atrevidos olhos acinzentados do jovem estranho encararam sem medo, através dos óculos, aqueles olhos negros sem brilho que se voltaram bruscamente para ele.

– Bem, rapaz, não consigo me lembrar de você.

– Sou novo aqui, sr. McGinty.

– Não é tão novo que não possa chamar um cavalheiro pelo seu título.

– Ele é o Conselheiro McGinty, rapaz – disse alguém do grupo.

– Desculpe, conselheiro. Não conheço bem os costumes do lugar. Mas fui aconselhado a procurá-lo.

– Bem, aqui estou. Isso aqui é tudo. O que acha de mim?

– Ainda é cedo. Se seu coração for tão grande quanto o seu corpo, e sua alma tão boa quanto seu rosto, então não pediria mais nada – disse McMurdo.

– Puxa, você tem um forte sotaque escocês – disse o dono do saloon, sem saber se deveria brincar com aquele visitante audacioso ou corresponder à sua dignidade. – Então você se acha capaz de dar opinião sobre a minha aparência?

– Claro.

– E lhe disseram para me procurar?

– Sim.

– E quem lhe disse isso?

– O Irmão Scanlan, da Loja 341, Vermissa. Bebo à sua saúde, conselheiro, e ao nosso encontro. – Ele ergueu o copo que lhe haviam servido e bebeu, erguendo o dedo mínimo enquanto bebia.

McGinty, que o observava atentamente, ergueu suas grossas sobrancelhas negras.

– Oh, então é isso? – disse ele. – Terei de examinar isso melhor, sr. ...

– McMurdo.

– Um pouco melhor, sr. McMurdo, porque não confiamos nas pessoas por aqui, e nem acreditamos em tudo que nos dizem. Venha um minuto até aqui, atrás do bar.

Havia uma sala pequena cheia de barris. McGinty fechou a porta com todo o cuidado e então sentou-se num dos barris, mordendo o charuto pensativamente, e examinando o outro com os olhos inquietantes. Durante alguns minutos ele ficou em absoluto silêncio.

McMurdo suportou a inspeção de modo descontraído, com uma das mãos no bolso do casaco e a outra retorcendo o bigode castanho.

De repente McGinty inclinou-se para a frente e mostrou um revólver de aparência aterradora.

– Olhe aqui, brincalhão – disse ele. – Se eu achasse que estava querendo pregar alguma peça em nós, você teria bem pouco tempo.

– Que recepção estranha – McMurdo respondeu com certa dignidade – para o chefe de uma Loja dar a um novo irmão.

– Sim, e é justamente isso que você tem de provar – disse McGinty –, e que Deus o ajude se você falhar. Onde você foi iniciado?

– Loja 29, Chicago.

– Quando?

– Vinte e quatro de junho de 1872.

– Qual o chefe?

– James H. Scott.

– Quem é o seu chefe de distrito?

– Bartholomew Wilson.

– Hum! Você me parece bem fluente no seu teste. O que você faz aqui?

– Trabalho, como o senhor, mas num trabalho mais modesto.

– Você tem as respostas na ponta da língua.

– Sim, sempre tive facilidade para me expressar.

– Você é rápido para agir?

– É essa a opinião dos que me conhecem melhor.

– Bem, podemos testá-lo antes do que você imagina. Você já ouviu falar alguma coisa da Loja por aqui?

– Ouvi que é preciso acertar um homem para se tornar irmão.

– Isso é verdade para você, McMurdo. Por que saiu de Chicago?

– O diabo me carregue se eu lhe disser isso.

McGinty arregalou os olhos. Não estava acostumado a ouvir respostas desse tipo e isso o divertiu.

– Por que não vai me contar?

– Porque um irmão não pode mentir para outro.

– Então a verdade é muito ruim?

– Pode dizer assim, se prefere.

– Olhe aqui. Você não pode esperar que eu, como chefe, admita na Loja alguém por cujo passado ele não pode responder.

McMurdo pareceu embaraçado. Então tirou do bolso do casaco um recorte de jornal desbotado.

– O senhor não denunciaria um companheiro? – ele perguntou.

– Eu lhe meto a mão na cara se você disser essas coisas para mim! – McGinty gritou, furioso.

– O senhor está certo, conselheiro – disse McMurdo humildemente. – Devo me desculpar. Falei sem pensar. Sei que estou seguro em suas mãos. Olhe esse recorte.

McGinty passou os olhos pela notícia sobre o assassinato de Jonas Pinto, no Lake Saloon, Market Street, em Chicago, na semana do Ano-novo de 1874.

– Coisa sua? – ele perguntou ao devolver o recorte.

McMurdo assentiu.

– Por que você o matou?

– Eu estava ajudando o Tio Sam a fazer dólares. Talvez o meu ouro não fosse tão bom quanto o dele, mas tinham a mesma aparência e era mais barato. Esse tal de Pinto ajudou-me a fazer o derrame...

– Fazer o quê?

– Isso significa pôr os dólares em circulação. Depois disse que ia deixar o negócio. Talvez fosse mesmo. Não esperei para ver. Eu simplesmente o matei e fugi para as minas de carvão.

– Por que as minas de carvão?

– Porque li nos jornais que por lá o pessoal não era muito exigente. – McGinty riu.

– Primeiro você foi um falsificador de dinheiro e depois se tornou assassino, e vem para cá achando que seria bem-vindo?

– Bem, foi isso que aconteceu – McMurdo respondeu.

– Acho que você irá longe. Diga, você ainda pode fazer esse dinheiro?

McMurdo pegou algumas moedas no bolso.

– Essas nunca passaram pela Casa da Moeda.

– Não diga! – McGinty levou-as até a luz nas suas mãos enormes e tão cabeludas quanto as de um gorila. – Não consigo ver nenhuma diferença! Puxa, você será um irmão muito útil, é o que eu acho. Temos de agir assim com um homem mau, ou quando são dois contra nós, pois às vezes precisamos salvar nossa pele, amigo McMurdo. Logo ficaríamos em dificuldades se não empurrássemos para trás quem estava nos empurrando.

– Acho que vou empurrar os outros com o resto dos rapazes.

– Você me parece ter bastante coragem. Você não se sobressaltou quando eu apontei a pistola para você.

– Não era eu que estava correndo perigo.

– E quem estava?

– O senhor, conselheiro. – McMurdo tirou do bolso lateral do casaco uma pistola engatilhada. – Eu estava apontando para o senhor o tempo todo. Acho que o meu tiro seria tão rápido quanto o seu.

McGinty ficou vermelho de raiva e depois explodiu numa gargalhada.

– Puxa! – disse ele. – Há muito tempo que não temos nenhum perigo assim tão perto. Suponho que a Loja saberá se orgulhar de você. Bem, que diabo você quer? Não posso falar em particular com um cavalheiro durante cinco minutos sem vocês me interromperem?

O bartender ficou embaraçado.

– Sinto muito, conselheiro, mas é o sr. Ted Baldwin. Ele disse que precisa falar com o senhor agora.

O recado era desnecessário, pois o rosto rígido e cruel do outro estava olhando por cima do ombro do empregado. Ele empurrou o bartender para fora e fechou a porta.

– Então – disse ele com um olhar furioso para McMurdo – você chegou aqui antes, não é? Tenho algo a lhe falar, conselheiro, sobre este homem.

– Então diga aqui e agora, na minha frente! – gritou McMurdo.

– Vou falar na hora que eu quiser, do jeito que eu quiser.

– Silêncio, silêncio! – disse McGinty levantando-se do barril onde estava sentado. – Isso não adianta nada. Temos um novo irmão aqui, Baldwin, e não devemos recebê-lo assim. Aperte a mão dele, homem, e dê o caso por encerrado.

– Nunca! – gritou Baldwin, furioso.

– Eu me ofereci para lutar com ele, se ele acha que eu agi mal – disse McMurdo. – Eu lutarei com as mãos, ou, se isso não lhe agradar, lutarei com ele da maneira que escolher. Agora deixarei que o senhor, conselheiro, julgue, como deve fazer um chefe.

– Qual é o caso?

– Uma jovem. Ela é livre para se decidir.

– É? – gritou Baldwin.

– Entre dois irmãos da Loja eu diria que ela é livre – disse o chefe.

– Oh, essa é a sua decisão?

– Sim, é, Ted Baldwin – disse McGinty, com um olhar duro. – É você que vai disputar isso?

– O senhor vai preterir alguém que esteve a seu lado durante anos em favor de um homem que o senhor nunca viu antes? O senhor não é chefe para sempre, Jack McGinty, e quando chegar a hora de votar...

O conselheiro partiu para cima dele como um tigre. Suas mãos se fecharam em torno do pescoço do outro e ele caiu sobre um dos barris. No seu acesso de fúria ele teria acabado com a vida do outro se McMurdo não tivesse interferido.

– Calma, conselheiro! Pelo amor de Deus, tenha calma! – ele gritou enquanto o puxava para trás.

McGinty afrouxou as mãos e Baldwin, assustado, atordoado e arquejante, com o corpo todo tremendo como alguém que tivesse chegado à fronteira da morte, sentou-se no barril sobre o qual fora jogado.

– Você está querendo isso há muitos dias, Ted Baldwin. Agora você conseguiu! – gritou McGinty, com o peito largo arfando. – Talvez você pense que se eu for derrotado na votação para chefe você pegará o meu lugar. A Loja é que decidirá. Mas enquanto eu for chefe, nenhum homem levantará a voz para mim ou desacatará minhas decisões.

– Não tenho nada contra o senhor – murmurou Baldwin, esfregando a garganta.

– Muito bem, então! – gritou o outro, adotando uma falsa jovialidade. – Todos nós somos bons amigos e está tudo encerrado.

Ele apanhou uma garrafa de champanha na prateleira e começou a torcer a rolha.

– Veja bem – ele continuou, enquanto enchia três copos –, vamos beber em nome da Loja. Depois disso, como vocês sabem, não pode correr sangue entre nós. Agora, então, a mão esquerda na minha garganta. Eu lhe pergunto, Ted Baldwin, qual o problema, senhor?

– As nuvens estão carregadas – respondeu Baldwin.

– Mas o sol brilhará para sempre.

– Juro que sim.

Os homens beberam e a mesma cerimônia foi repetida entre Baldwin e McMurdo.

– Pronto – gritou McGinty, esfregando as mãos. – Este é o fim da desavença. Você se submeterá à disciplina da Loja, se tudo der certo, e por aqui a palmatória é pesada, como bem sabe o Irmão Baldwin, e como você descobrirá logo, Irmão McMurdo, se arranjar alguma confusão.

– Acredite, não pretendo fazer isso – disse McMurdo. Ele estendeu a mão para Baldwin. – Sou rápido para brigar e rápido para perdoar. É o meu sangue quente escocês, segundo dizem. Mas pra mim está tudo terminado, e não guardo rancor. Baldwin teve de pegar a mão estendida, pois os terríveis olhos do chefe estavam sobre ele. Mas seu rosto carrancudo mostrava que as palavras do outro não convenceram.

McGinty bateu nos ombros dos dois.

– Hum! Essas moças! Essas moças! – ele disse. – E pensar que a mesma mulher agrada a dois de meus rapazes. Coisas do diabo. É que a moça vai resolver a questão, porque está fora da jurisdição do chefe, e Deus seja louvado por isso. Já temos muitas encrencas por aqui sem as mulheres. Você tem de se filiar à Loja 341, Irmão McMurdo. Temos nossos próprios meios e métodos, muito diferentes de Chicago. Nossa reunião é sábado à noite, e se você vier, nós o livraremos para sempre do Vale Vermissa.


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