o homem de lábio torcido
Isa Whitney, irmão do finado elias Whitnesy, D.D., reitor do Colégio Teológico de St. George, era viciado em ópio. Adquirira o hábito, pelo que eu soube, a partir de um incidente tolo, quando estava na universidade; tendo lido a descrição de De Quincey de seus sonhos e sensações, misturara o tabaco com láudano, numa tentativa de produzir os mesmos efeitos. Descobriu, como muitos outros, que era um hábito fácil de adquirir e difícil de abandonar, e por muitos anos continuou escravizado à droga, despertando um misto de horror e compaixão em seus amigos e parentes. Ainda posso vê-lo agora, com o rosto amarelado e pastoso, pálpebras caídas e pupilas reduzidas a pequenos pontos, todo encolhido em uma cadeira, destroços e ruínas de um homem nobre.
Uma noite – foi em junho de 1889 –, minha campainha tocou naquela hora em que o homem dá seu primeiro bocejo e olha para o relógio. Empertiguei-me na
cadeira e minha esposa deixou cair o bordado no colo e fez uma careta de desapontamento.
– Um cliente! – disse. – Você vai ter de sair.
Gemi, pois acabara de voltar depois de um dia estafante.
Ouvimos a porta se abrir, algumas palavras apressadas, e depois passos rápidos no linóleo. A porta da sala onde estávamos foi aberta bruscamente e uma senhora, vestida com uma roupa escura e coberta com um véu, entrou rapidamente.
– Peço desculpas por vir tão tarde – começou, e então, perdendo de repente todo o controle, correu e atirou os braços em volta do pescoço de minha esposa, soluçando em seu ombro. – Oh! Estou tão aflita! – exclamou. – Preciso tanto de ajuda.
– Oh – disse minha esposa, erguendo o véu que cobria seu rosto –, é Kate Whitney. Como você me assustou, Kate! Não tinha a menor idéia de que era você quando entrou.
– Não sabia o que fazer, por isso vim direto aqui.
Era sempre assim. As pessoas em dificuldades vinham correndo para minha esposa como pássaros para um farol.
– Foi muito bom você ter vindo. Agora precisa tomar um pouco de vinho com água, sentar-se aqui confortavelmente e nos contar tudo. Ou prefere que mande James para a cama?
– Oh, não, não. Quero que o doutor me aconselhe e me ajude também. É a respeito de Isa. Há dois dias ele não aparece em casa. Estou com tanto medo!
Não era a primeira vez que falava do problema do marido, a mim, como médico; à minha esposa, como velha amiga e companheira de colégio. Procuramos acalmá-la e confortá-la, buscando palavras apropriadas. Sabia onde estava o marido? Será que conseguiríamos trazê-lo de volta?
Parecia que sim. Tinha uma informação segura de que ultimamente, quando sentia necessidade, ele usava uma casa de ópio no extremo leste da cidade. Até então suas orgias haviam sido limitadas a um dia, e voltava sempre, contorcendo-se em espasmos e totalmente alquebrado, à noite. Mas agora esse episódio estava durando 48 horas e estava, certamente, em meio à escória das docas, aspirando o veneno ou dormindo sob seu efeito. Era ali que seria encontrado, tinha certeza, no Bar de Ouro, em Upper Swandam Lane. Mas o que devia fazer? Como podia ela, uma mulher jovem e tímida, entrar num lugar desses e arrancar o marido dos desordeiros que o cercavam?
Aí estava a questão, e naturalmente só havia uma saída. Será que eu não poderia acompanhá-la até esse lugar? E, pensando bem, por que era preciso que ela fosse até lá? Eu era médico de Whitney e, como tal, tinha certa influência sobre ele. Seria melhor que eu fosse sozinho. Dei-lhe minha palavra de que o mandaria para casa em um carro de aluguel dentro de duas horas se ele estivesse realmente no endereço que me dera. E assim, em dez minutos, deixei minha poltrona confortável e minha sala alegre e me vi em um carro de aluguel, numa missão estranha, como me pareceu na ocasião, embora só o futuro pudesse demonstrar como seria estranha.
Não encontrei nenhuma dificuldade na primeira etapa de minha aventura. Upper Swandam Lane é um beco sórdido, escondido atrás dos armazéns das docas que se alinham ao longo da margem norte do rio, a leste da Ponte de Londres. Entre uma loja de roupas baratas e uma taberna, descendo degraus íngremes que desapareciam num vão negro como a boca de uma caverna, encontrei o antro que procurava. Mandei o carro me esperar, desci os degraus, gastos no meio pelo tráfego contínuo de pés bêbados, e à luz de uma lâmpada a óleo colocada sobre a porta, achei a fechadura e entrei em um quarto de teto baixo, longo e estreito, cheio da fumaça parda e espessa do ópio, e com beliches de madeira junto às paredes, como o castelo de proa de um navio de emigrantes.
Através da penumbra podia-se vislumbrar com dificuldade corpos deitados em poses fantasticamente estranhas, ombros encolhidos, joelhos dobrados, cabeças jogadas para trás e queixos apontando para o teto e, aqui e ali, um olho escuro e embaçado virado para o recém-chegado. Dentro das negras sombras brilhavam pequenos círculos vermelhos, ora vivos, ora fracos, à medida que o veneno ardia ou ia se apagando no bojo dos cachimbos de metal. A maioria estava silenciosa, mas alguns resmungavam para si mesmos e outros falavam entre si em voz baixa e monótona, a conversa vindo em rojões e subitamente terminando em silêncio, cada um balbuciando seus próprios pensamentos e não prestando atenção às palavras do vizinho. Lá no fundo havia um fogareiro com carvão em brasa junto ao qual estava sentado um velho alto e magro em um banquinho de três pés, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos descansando nos joelhos, contemplando o fogo.
Quando entrei, um empregado malaio de tez escura correu para mim com um cachimbo e uma dose da droga, apontando para uma cama vazia.
– Obrigado, não vim para ficar – disse. – Há um amigo meu aqui, o sr. Isa Whitney, e quero falar com ele.
Houve um movimento e uma exclamação à minha direita e, tentando vencer a penumbra, vi Whitney, pálido, abatido e sujo, olhando fixamente para mim.
– Meu Deus! É Watson – disse. – Estava em petição de miséria, com todos os nervos em espasmo. – Diga-me, Watson, que horas são?
– Quase 23 horas.
– De que dia?
– Sexta-feira, 19 de junho.
– Céus! Pensei que fosse quarta-feira. É quarta-feira, eu sei. Por que está me assustando assim? – Escondeu o rosto nos braços e começou a soluçar.
– Estou lhe dizendo que é sexta-feira, homem. Sua mulher está à sua espera há dois dias. Devia estar envergonhado de si mesmo!
– E estou. Mas você está errado, Watson, estou aqui há apenas algumas horas, três cachimbos, quatro... não me lembro quantos. Mas vou para casa com você. Não quero amedrontar Kate... pobre Kate. Dê-me a mão! Você está de carro?
– Sim, tenho um à espera.
– Então vou nele. Mas devo alguma coisa aqui. Veja quanto devo, Watson. Não estou bem. Não posso fazer nada sozinho.
Desci a passagem estreita entre as duas fileiras de sonhadores, prendendo a respiração para não inspirar os vapores nocivos da droga, procurando o gerente. Ao passar pelo homem alto que estava sentado junto ao fogareiro, senti que puxavam minha manga e uma voz baixa murmurou: “Passe por mim e depois olhe para trás”. As palavras soaram bem distintas em meus ouvidos. Olhei para baixo. Só podiam ter vindo do velho ao meu lado, mas ele estava sentado como antes, completamente absorto, muito magro, muito enrugado, curvo pela idade, com um cachimbo de ópio pendurado nos joelhos, como se tivesse caído dos dedos subitamente frouxos. Dei dois passos à frente e virei. Foi preciso todo meu autocontrole para evitar que desse um grito de espanto. Virara de costas de modo que ninguém podia vê-lo, a não ser eu. Sua forma se enchera, as rugas haviam desaparecido, os olhos embaçados haviam recuperado seu brilho e lá, sentado junto ao fogo e rindo da minha surpresa, estava ninguém menos que Sherlock Holmes. Fez um discreto sinal para que me aproximasse e imediatamente, ao virar o rosto para os outros novamente, voltou a ser um velho senil.
– Holmes! – exclamei. – O que está fazendo neste antro?
– Fale o mais baixo possível – respondeu. – Tenho ouvidos excelentes. Se quiser ter a bondade de se livrar de seu amigo dopado, eu ficaria muito contente de ter uma conversa com você.
– Tenho um cabriolé lá fora.
– Então, por favor, mande-o para casa nesse carro. Pode confiar nele, pois parece arrasado demais para se meter em encrencas. Vou também aconselhar que mande pelo cocheiro um bilhete para sua esposa, explicando que está comigo. Espere lá fora, sairei em cinco minutos.
Era muito difícil recusar qualquer coisa a Sherlock Holmes, pois seus pedidos eram sempre muito precisos e apresentados com um ar tranqüilo de domínio. Mas achei que, depois que Whitney estivesse dentro do carro, minha missão estaria praticamente cumprida. Quanto ao resto, não poderia querer coisa melhor que me associar a meu amigo em uma dessas aventuras singulares que eram a condição normal de sua existência. Em poucos minutos escrevi meu bilhete, paguei a conta de Whitney, levei-o até o carro, que vi desaparecer na escuridão. Em pouco tempo, uma figura decrépita saiu do antro de ópio e eu descia a rua ao lado de Sherlock Holmes. Por duas ruas ele arrastou os pés, com as costas curvadas e cambaleando. Então, olhando rapidamente em volta, endireitou-se e deu uma boa gargalhada.
– Suponho, Watson – disse – que está imaginando que acrescentei o vício de fumar ópio às injeções de cocaína e a todas as outras fraquezas sobre as quais você me vive dando sua opinião médica.
– Realmente fiquei espantado de encontrar você ali.
– Não mais espantado do que eu de ver você.
– Vim procurar um amigo.
– E eu, um inimigo!
– Um inimigo?
– Sim, um de meus inimigos naturais, ou, devo dizer, minha presa natural. Em resumo, Watson, estou no meio de uma investigação realmente notável, e esperava encontrar algum indício nas digressões incoerentes desses bêbados, como já fiz antes. Se fosse reconhecido naquele antro, minha vida não valeria um tostão, pois usei-o muitas vezes para meus próprios objetivos, e o bandido do eurasiano, que é o gerente, jurou vingar-se de mim. Há um alçapão nos fundos do prédio, perto da esquina da Paul’s Warf, que poderia contar estranhas histórias do que passou por ele em noites sem lua.
– O quê! Quer dizer corpos?
– Sim, corpos, Watson. Seríamos homens ricos se tivéssemos 1.000 libras para cada pobre-diabo que foi liquidado naquele antro. É a armadilha assassina mais sórdida de toda a margem do rio e temo que Neville St. Clair tenha entrado lá para não sair mais. Nosso cabriolé deveria estar aqui! – Pôs os dois dedos indicadores entre os dentes e deu um assobio agudo, um sinal que foi respondido por um assobio semelhante a distância, seguido em poucos instantes pelo ruído de rodas e de cascos de cavalo.
– Bem, Watson – disse Holmes, quando a pequena carruagem surgiu da escuridão, com dois focos dourados de luz amarela das lanternas laterais –, você vem comigo, não?
– Se é que posso ajudá-lo.
– Ora, um companheiro de confiança é sempre útil. E um historiador mais ainda. Meu quarto no Cedars tem duas camas.
– Cedars?
– Sim. É a casa do sr. St. Clair. Estou hospedado lá enquanto faço essa investigação.
– Onde é essa casa?
– Em Kent, perto de Lee. Temos uma viagem de 11 quilômetros à nossa frente.
– Mas estou completamente no escuro.
– Claro que está. Vai saber de tudo daqui a pouco. Suba aqui! Está bem, John, não vamos precisar de você. Aqui está meia coroa. Fique à minha espera amanhã, por volta das 11 horas. Solte o cavalo! Até logo mais, então!
Fustigou o cavalo com o chicote e lá fomos nós, correndo por uma série infinita de ruas sombrias e desertas, que gradativamente se alargaram, até que voamos por uma ponte larga sobre o rio enlameado que corria preguiçosamente lá embaixo. Diante de nós estendia-se outra selva de cimento e tijolos, cujo silêncio era quebrado somente pelos passos regulares e pesados do policial de guarda, ou as canções e gritos de algum grupo tardio de pândegos. Nuvens altas levadas pelo vento deslizavam lentamente pelo céu e uma ou duas estrelas brilhavam suavemente aqui e ali nas brechas das nuvens. Holmes conduzia a carruagem em silêncio, com o queixo encostado no peito e a aparência de um homem imerso em seus pensamentos, enquanto eu estava sentado a seu lado, curioso para saber o que seria essa nova busca que parecia exigir tanto de seus poderes, mas temendo interromper a corrente de seus pensamentos. Já havíamos percorrido vários quilômetros, e chegávamos à orla da faixa de casas suburbanas quando ele se sacudiu, encolheu os ombros e acendeu o cachimbo com ar de quem se convenceu de que estava fazendo o melhor que podia.
– Você tem o grande dom do silêncio, Watson – comentou. – Isso faz de você um companheiro precioso. Eu que o diga, é maravilhoso para mim ter alguém com quem falar, pois meus pensamentos não são nada agradáveis. Estava pensando no que vou dizer para essa boa mulher hoje à noite, quando for me receber à porta.
– Está esquecendo que não sei nada sobre o assunto.
– Só vou ter tempo de lhe contar os fatos antes de chegarmos a Lee. Parece absurdamente simples, mas, não sei por quê, não consigo nada em que me basear. O fio é muito longo, sem dúvida nenhuma, mas não consigo pegar a ponta em minha mão. Agora vou relatar o caso clara e concisamente para você, Watson, e talvez você possa ver uma luz onde tudo é escuro para mim.
– Prossiga, então.
– Há alguns anos, mais exatamente em maio de 1884, surgiu em Lee um cavalheiro de nome Neville St. Clair, que parecia ter bastante dinheiro. Comprou uma casa grande, arrumou maravilhosamente o terreno e, de modo geral, vivia em grande estilo. Pouco a pouco fez amizades na vizinhança e, em 1887, casou-se com a filha de um cervejeiro do local, com a qual teve dois filhos. Não tinha nenhuma ocupação, mas tinha interesses em várias companhias, e ia à cidade, geralmente pela manhã, voltando no trem das 5:14h da tarde, da rua Carinon. O sr. St. Clair tem atualmente 37 anos de idade, é um homem de hábitos moderados, um bom marido, pai muito afetuoso, e popular com todos que o conhecem. Devo acrescentar que suas dívidas totais no momento somam 88 libras, e tem 220 libras depositadas no Banco Capital and Counties. Portanto, não há nenhuma razão para se pensar que possa ter qualquer preocupação com dinheiro.
– Na segunda-feira passada, o sr. Neville St. Clair foi à cidade mais cedo do que de costume, comentando, antes de partir, que tinha duas missões importantes a cumprir, e que traria para seu filhinho um brinquedo ao voltar. Por mero acaso, sua esposa recebeu um telegrama nessa mesma segunda-feira, pouco depois da saída dele, dizendo que um pacote de grande valor que ela estava aguardando acabara de chegar e estava à sua espera nos escritórios da Companhia Marítima Aberdeen. Se você conhece bem Londres, deve saber que os escritórios da companhia estão localizados na rua Fresno, que sai de Upper Swandam Lane, onde me encontrou esta noite. A sra. St. Clair almoçou, foi à cidade, fez algumas compras, foi até os escritórios da companhia, pegou seu pacote e, exatamente às 4:35h, seguia por Swandam Lane a caminho da estação. Está me acompanhando até agora?
– Está tudo muito claro.
– Se é que você se lembra, segunda-feira foi um dia excepcionalmente quente, e a sra. St. Clair andava devagar, olhando em volta na esperança de ver um carro de aluguel, pois não gostava do lugar em que estava. Enquanto andava assim por Swandam Lane, ouviu de repente uma exclamação ou um grito, e ficou estupefata ao ver o marido olhando para ela e, parecendo fazer-lhe sinal de uma janela de um segundo andar. A janela estava aberta e ela viu nitidamente seu rosto, que descreveu como terrivelmente agitado. Ele acenou freneticamente e depois desapareceu da janela tão repentinamente que parecia ter sido puxado para trás por alguma força irresistível. Um detalhe esquisito que ficou registrado em seu vivo olho feminino foi que, embora ele estivesse com um casaco escuro, como o que usava quando saíra de casa, não tinha nem colarinho nem gravata.
– Convencida de que havia alguma coisa errada com ele, desceu os degraus correndo, pois a casa era exatamente o antro de ópio onde você me encontrou hoje e, irrompendo pela porta, tentou subir as escadas que levam ao primeiro andar. Ao pé das escadas, entretanto, encontrou esse bandido eurasiano de quem falei, que a empurrou para trás e, ajudado por um dinamarquês, que é seu assistente, jogou-a na rua. Cheia de dúvidas e receios enlouquecedores, saiu correndo pela rua e, por sorte, encontrou na rua Fresno vários policiais com um inspetor, todos a caminho de suas rondas. O inspetor e dois policiais a acompanharam de volta e, apesar da resistência do proprietário, foram até o quarto onde o sr. St. Clair havia sido visto pela última vez. Não havia sinal dele. Na verdade, em todo o andar não havia ninguém, exceto um desgraçado aleijado, de aspecto horrível, que, aparentemente, morava lá. Tanto ele quanto o eurasiano juraram que ninguém estivera no quarto da frente aquela tarde. Suas negativas foram tão enfáticas que o inspetor ficou desconcertado e chegou a acreditar que a sra. St. Clair se tivesse enganado quando, com um grito, ela se atirou sobre uma pequena caixa de madeira que estava sobre a mesa e arrancou a tampa. Dentro estava o brinquedo que seu marido havia prometido ao filho.
– Essa descoberta e a confusão evidente do aleijado fizeram o inspetor compreender que o assunto era grave. Os quartos foram examinados cuidadosamente e os resultados apontavam para um crime abominável. O quarto da frente estava mobiliado com simplicidade, como uma sala de estar, e se comunicava com um pequeno quarto de dormir, que dava para os fundos de uma das docas. Entre a doca e a janela do quarto de dormir havia uma faixa de terra estreita que fica seca quando a maré está baixa, mas é coberta na maré alta por um mínimo de 1,50 metro de água. A janela do quarto era larga e abria por baixo. Fazendo um exame, encontraram vestígios de sangue no peitoril da janela e várias gotas espalhadas no chão de madeira do quarto. Jogadas atrás de uma cortina no quarto da frente estavam todas as roupas do sr. Neville St. Clair, com exceção do casaco. As botas, as meias, o chapéu e o relógio... estava tudo lá. Não havia sinal de violência em nenhuma das peças de roupa e não havia vestígio do sr. Neville St. Clair. Aparentemente, só poderia ter escapado pela janela, pois não descobriram outra saída do quarto, e as manchas de sangue no peitoril não eram muito promissoras, caso tivesse tentado se salvar a nado, pois a maré estava no auge no momento da tragédia.
– E agora vamos aos vilões que pareciam estar envolvidos no assunto desde o início. O nativo das Índias Orientais, o eurasiano, era homem de péssimos antecedentes, mas como, pela narrativa da sra. St. Clair, sabia-se que ele estava ao pé da escada poucos segundos depois de seu marido ter aparecido à janela, não poderia ter sido mais que um simples cúmplice. Defendeu-se afirmando completa ignorância e garantindo que nada sabia sobre os atos de Hugh Boone, seu inquilino, e que não podia explicar de maneira nenhuma a presença das roupas do cavalheiro desaparecido.
– E nada mais sobre o gerente oriental. Agora vamos ao aleijado sinistro que mora no segundo andar do antro de ópio e que certamente foi a última pessoa a ver Neville St. Clair. Seu nome é Hugh Boone e seu rosto medonho é conhecido por todos que freqüentam a cidade. É mendigo profissional, embora finja ser vendedor de fósforos de cera a fim de evitar os regulamentos da polícia. A certa altura da rua Threadneedle, do lado esquerdo, há, como talvez você tenha observado, um pequeno ângulo na parede. É ali que a criatura se senta todos os dias, de pernas cruzadas, com o pequeno estoque de fósforos no colo, e como é um espetáculo digno de pena, uma pequena chuva de moedas cai no boné de couro sujo que fica no chão à sua frente. Já observei esse camarada mais de uma vez, antes de imaginar sequer conhecê-lo profissionalmente, e sempre fiquei surpreso com o que consegue acumular em pouco tempo. Sua aparência é tão extraordinária que ninguém pode passar por ele sem olhá-lo. Uma cabeleira cor-de-laranja, um rosto pálido desfigurado por uma medonha cicatriz que, ao se contrair, repuxou o lábio superior, um queixo de buldogue e um par de olhos escuros muito penetrantes, que fazem um contraste singular com a cor dos cabelos; tudo isso o destaca da multidão comum de mendigos, como também seu espírito humorístico, pois está sempre pronto a responder a qualquer brincadeira que algum transeunte faça com ele. É esse o homem que agora sabemos que morava no antro de ópio e que foi a última pessoa a ver o cavalheiro que estamos procurando.
– Mas um aleijado! – comentei. – O que poderia fazer sozinho contra um homem na flor da idade?
– É aleijado somente porque manca quando anda. Mas em geral parece ser um homem forte e bem-nutrido. Certamente seus conhecimentos de medicina, Watson, provam que a fraqueza de um membro muitas vezes é compensada por uma força excepcional nos outros membros.
– Por favor, continue a história.
– A sra. St. Clair desmaiou quando viu o sangue no peitoril da janela, e foi levada até sua casa de carro pela polícia, já que sua presença em nada ajudaria as investigações. O inspetor Barton, encarregado do caso, examinou cuidadosamente o prédio, mas não encontrou nada que esclarecesse o mistério. Tinha sido um erro não prender Boone imediatamente, pois teve alguns minutos em que podia se ter comunicado com seu amigo, o eurasiano, mas essa falha foi logo remediada; eles o apanharam e revistaram, mas sem encontrar nada que o incriminasse. Havia, é verdade, umas manchas de sangue na manga direita, mas ele mostrou o dedo anular, onde havia um corte perto da unha, e explicou que era daí que vinha o sangue, acrescentando que fora até a janela pouco antes e que as manchas no peitoril sem dúvida vinham também de seu dedo. Disse enfaticamente que jamais tinha visto o sr. Neville St. Clair e jurou que a presença das roupas em seu quarto era um mistério tanto para ele como para a polícia. Quanto à declaração da sra. St. Clair de que tinha visto o marido na janela, declarou que ela devia estar louca ou sonhando. Foi retirado, protestando em alta voz, e levado para a delegacia, enquanto o inspetor permaneceu no prédio, na esperança de que a maré baixa revelasse algum novo indício.
– E assim foi, embora não encontrassem na lama o que temiam. Era o casaco do sr. Neville St. Clair, e não Neville St. Clair, que foi descoberto quando a maré baixou. E o que pensa que encontraram nos bolsos?
– Não tenho a menor idéia.
– É, você não pode adivinhar. Todos os bolsos estavam cheios de moedas, 421 pennies e 270 em moedas de meio penny. Não era de admirar que a corrente não o tivesse arrastado. Mas um corpo humano é diferente. Há um redemoinho violento entre as docas e a casa. Era bem provável que o casaco, com todo o peso, ficasse na lama enquanto o corpo nu era sugado pelo rio.
– Mas você disse que todas as outras roupas foram encontradas escondidas no quarto. Então o corpo estava vestido somente com um casaco?
– Não, mas há outras maneiras de encarar os fatos. Vamos supor que esse tal Boone tenha jogado Neville St. Clair pela janela, sem ser visto por ninguém. O que faria então? A primeira idéia que lhe ocorreria seria livrar-se das roupas que o incriminariam. Então pegaria o casaco e na hora de jogá-lo pela janela se lembraria de que ia flutuar e não afundar. Não tem muito tempo, pois já ouvira o barulho lá embaixo, quando a sra. St. Clair tentava subir as escadas, e talvez já tivesse sabido pelo seu cúmplice, o eurasiano, que a polícia vinha correndo pela rua. Não há um minuto a perder. Corre para o esconderijo onde acumulou os frutos de sua atitude de mendigo e enche os bolsos do casaco com todas as moedas que consegue pegar para garantir que afunde. Atira-o pela janela e teria feito o mesmo com as outras roupas se não tivesse ouvido os passos subindo a escada. Só teve tempo de fechar a janela quando a polícia chegou.
– Parece bem possível.
– Vamos aceitar como uma hipótese, já que não temos coisa melhor. Boone, como lhe disse, foi preso e levado para a delegacia, mas não conseguiram descobrir nada em seu passado que depusesse contra ele. Era conhecido há anos como mendigo profissional, mas sua vida tinha sido sempre muito tranqüila e inocente. Assim estão as coisas no momento, e as perguntas que têm de ser respondidas, o que Neville St. Clair estava fazendo em um antro de ópio, o que aconteceu com ele enquanto estava lá, onde está agora e o que Hugh Boone tem a ver com seu desaparecimento, continuam longe de ser esclarecidas. Confesso que não me lembro de nenhum caso que tenha tido no passado que parecesse tão simples de início e que apresentasse tantas dificuldades.
Enquanto Sherlock Holmes relatava essa série estranha de acontecimentos, tínhamos percorrido velozmente os subúrbios da grande cidade e deixado para trás as últimas habitações isoladas, e corríamos agora por uma estrada ladeada de arbustos. Quando ele estava terminando, entretanto, passamos por duas aldeias onde algumas luzes ainda brilhavam nas janelas.
– Estamos nos arredores de Lee – disse meu companheiro. – Atravessamos três condados nessa curta viagem, começando por Middlesex, cortando Surrey em ângulo e terminando em Kent. Está vendo aquela luz entre as árvores? Ali é Cedars, e ao lado daquela luz está uma mulher cujos ouvidos ansiosos, não tenho a menor dúvida, já perceberam o ruído dos cascos do nosso cavalo.
– Mas por que você não está conduzindo essa investigação de Baker Street? – perguntei.
– Porque há muitas perguntas que têm de ser feitas aqui mesmo. A sra. St. Clair muito gentilmente pôs à minha disposição dois quartos, e pode ter certeza de que ela receberá muito bem meu amigo e colega. Detesto encontrá-la, Watson, sem ter nenhuma notícia do marido. Aqui estamos.
Paramos diante de uma casa grande no centro de um amplo terreno. Um rapaz da cocheira viera correndo segurar o cavalo e, saltando do carro, segui Holmes pelocaminho estreito e curvo que ia até a casa. Quando nos aproximamos, a porta se abriu e uma mulher pequena e loura, com um vestido claro de debruado de gaze rosa nos punhos e na gola, surgiu na abertura. De pé, delineada pela luz que jorrava de dentro, uma das mãos na porta, a outra meio levantada, o corpo ligeiramente inclinado para a frente; o rosto de olhos ansiosos e lábios entreabertos, ela toda era uma pergunta.
– Então? – exclamou. – Então?
Aí, percebendo que éramos dois, deu um grito de esperança que se transformou em gemido quando viu meu companheiro sacudir a cabeça e encolher os ombros.
– Nenhuma notícia boa?
– Nenhuma.
– Mas nenhuma notícia má?
– Não.
– Graças a Deus. Mas entrem. O senhor deve estar cansado, pois foi um dia muito longo.
– Este é meu amigo, dr. Watson. Tem sido de importância fundamental para mim em muitos dos meus casos, e por sorte pude trazê-lo comigo para me ajudar nessa investigação.
– Muito prazer em conhecê-lo – disse, apertando minha mão cordialmente. – Por favor, desculpe qualquer falha em minha hospitalidade, mas o senhor compreende que sofri um golpe terrível.
– Minha cara senhora – respondi –, sou um velho veterano, mas mesmo que não fosse, estou vendo que não há necessidade de pedir desculpas. Se puder ser útil à senhora ou a meu amigo, ficarei realmente muito feliz.
– Agora, sr. Sherlock Holmes – disse a mulher quando entramos em uma sala de jantar bem iluminada, onde uma ceia fria estava arrumada sobre a mesa –, gostaria de lhe fazer uma ou duas perguntas e pedir-lhe que responda com franqueza.
– Certamente, minha senhora.
– Não se preocupe comigo. Não sou histérica nem dada a desmaios. Só quero ouvir sua opinião sincera.
– Sobre o quê?
– No fundo, no fundo mesmo, o senhor acredita que Neville esteja vivo?
Sherlock Holmes pareceu ficar constrangido com a pergunta.
– Com franqueza! – ela repetiu, ainda de pé e olhando penetrantemente para ele, que estava recostado em uma cadeira confortável.
– Com franqueza, minha senhora, não.
– Acha que ele está morto?
– Sim.
– Assassinado?
– Não sei. Talvez.
– E em que dia ele faleceu?
– Na segunda-feira.
– Então, sr. Holmes, tenha a bondade de explicar como é que acabei de receber esta carta dele hoje?
Sherlock Holmes deu um salto da cadeira como se tivesse recebido um choque elétrico.
– O quê! – exclamou.
– Sim, hoje. – Ela sorriu, segurando um papel que agitava no ar.
– Posso vê-la?
– Certamente.
Tirou-a da mão dela ansiosamente e alisou-a sobre a mesa, puxando a lâmpada para perto e examinando-a com atenção. Ergui-me e fui olhar por cima do ombro dele. O envelope era de papel barato e tinha o carimbo de Gravesend, datado daquele mesmo dia, ou melhor, do dia anterior, pois já passava da meia-noite.
– Que caligrafia grosseira! – murmurou Holmes. – Claro que essa não é a letra de seu marido.
– Não, mas o que está dentro é.
– Noto também que, quem quer que tenha endereçado o envelope, teve de parar e ir descobrir o endereço.
– Como pode saber disso?
– Pode ver que o nome está escrito com tinta preta, que secou sozinha, e o resto está acinzentado, o que prova que foi usado um mata-borrão. Se tudo tivesse sido escrito ao mesmo tempo e secado com mata-borrão, ficaria do mesmo tom cinzento. Esse homem escreveu o nome e depois houve uma pausa até escrever o endereço, o que significa que não sabia o endereço de cor. É apenas um detalhe, mas os detalhes são muito importantes. Vamos ver a carta agora! Ah! Havia alguma coisa aqui dentro.
– Sim, um anel. Seu anel com sinete.
– E a senhora tem certeza de que é a letra de seu marido?
– Uma delas.
– O que quer dizer com isso?
– É a letra dele quando escrevia com pressa. É bem diferente de sua letra normal, mas eu a conheço bem.
Minha querida, não fique com medo. Tudo vai dar certo. Há um enorme engano que pode demorar a ser corrigido. Tenha paciência.
Neville.
Escrito a lápis em uma folha de caderno, in-oitavo, nenhuma marca no papel. Posta no correio hoje em Gravesend por um homem com o polegar sujo. Ah! A aba foi colada, se não me engano, por alguém que estava mascando fumo. Não tem dúvida nenhuma de que é a letra de seu marido?
– Nenhuma. Neville escreveu esse bilhete.
– E foi posto no correio hoje em Gravesend. Bem, sra. St. Clair, as nuvens estão mais leves, embora não ouse dizer que tenha passado o perigo.
– Mas ele tem de estar vivo, sr. Holmes.
– A não ser que tenham falsificado sua letra para nos botar na pista errada. O anel, afinal de contas, não prova nada. Pode ter sido tirado dele.
– Não, não, é a letra dele, tenho certeza!
– Muito bem. Mas o bilhete pode ter sido escrito na segunda-feira e posto no correio só hoje.
– Isso pode ser.
– Se for assim, muita coisa pode ter acontecido de lá para cá.
– Oh, o senhor não deve me desanimar, sr. Holmes. Sei que está tudo bem com ele. Há uma compreensão tão grande entre nós que eu saberia se algum mal tivesse acontecido. No mesmo dia em que o vi pela última vez ele se cortou no quarto e, embora eu estivesse na sala de jantar, fui correndo lá para cima, pois tive certeza de que havia acontecido alguma coisa. Então acha que eu teria essa reação por uma coisa tão insignificante e iria ignorar sua morte?
– Minha experiência é grande demais para negar que a impressão de uma mulher pode ser mais valiosa que as conclusões de um raciocinador analítico. E esse bilhete realmente é uma prova muito forte para sustentar sua opinião. Mas se seu marido está vivo e pode escrever cartas, por que tem de ficar longe da senhora?
– Não posso imaginar o motivo.
– E na segunda-feira não disse nada antes de sair?
– Não.
– E a senhora ficou surpresa de vê-lo em Swandam Lane?
– Muito.
– A janela estava aberta?
– Sim.
– Então ele podia ter chamado a senhora?
– Podia.
– No entanto, pelo que entendi, só deu um grito indistinto?
– Sim.
– Um pedido de socorro, foi o que a senhora pensou?
– Sim. E acenou com as mãos.
– Mas poderia ter sido um grito de espanto. A surpresa de ver a senhora inesperadamente poderia tê-lo feito erguer as mãos.
– É possível.
– E a senhora acha que ele foi puxado para trás?
– Ele desapareceu tão de repente.
– Poderia ter saltado para trás. A senhora não viu mais ninguém no quarto?
– Não, mas aquele homem horrível confessou que estava lá, e o eurasiano estava ao pé da escada.
– Exatamente. Seu marido, pelo que pôde ver, vestia suas roupas comuns?
– Sim, mas sem o colarinho e a gravata. Vi nitidamente a camisa aberta no pescoço.
– Ele já havia falado algum dia em Swandam Lane?
– Nunca.
– Mostrou alguma vez sinais de ter tomado ópio?
– Nunca.
– Muito obrigado, sra. St. Clair. Eram estes os pontos principais que eu queria esclarecer. Vamos agora comer alguma coisa e depois nos recolher, porque amanhã poderemos ter um dia muito ocupado.
Um quarto amplo e confortável com duas camas havia sido posto à nossa disposição e fui logo para a cama, pois estava cansado depois dessa noite de aventuras. Sherlock Holmes, entretanto, era um homem que, quando tinha um problema a resolver, podia passar dias, até uma semana, sem descansar, pensando, analisando e reordenando os fatos, examinando-os sob todos os aspectos, até chegar a uma solução ou convencer-se de que não tinha dados suficientes. Era evidente que estava se preparando para ficar sentado a noite inteira. Tirou o casaco e o colete, vestiu um roupão azul e ficou andando pelo quarto, recolhendo os travesseiros da cama e as almofadas do sofá e das poltronas. Com eles, construiu uma espécie de divã oriental, no qual se sentou de pernas cruzadas, com uma bolsa de fumo e uma caixa de fósforos na sua frente. À luz mortiça da lâmpada, eu o vi sentado, com um velho cachimbo na boca, os olhos fixos no canto do teto, a fumaça azul subindo no ar, silencioso, imóvel, com a luz se refletindo em suas feições aquilinas. Ficou sentado ali enquanto eu adormecia e continuava sentado ali quando uma exclamação súbita me acordou e vi o sol de verão invadindo o aposento. O cachimbo ainda estava na sua boca, a fumaça ainda subia em espirais e o quarto estava cheio de fumaça, mas não restava um fiapo do fumo que enchia a bolsa na noite anterior.
– Acordado, Watson? – ele perguntou.
– Sim.
– Está disposto a dar um passeio?
– Certamente.
– Então vista-se. Ninguém acordou ainda, mas sei onde dorme o rapaz da cocheira e logo o cabriolé estará pronto. – Sorria para si mesmo enquanto falava, os olhos brilhavam, e parecia um homem diferente do sombrio pensador da noite anterior.
Enquanto me vestia, olhei o relógio. Não era de estranhar que estivesse todo mundo dormindo. Eram 4:25h. Mal terminara quando Holmes voltou com a informação de que o rapaz estava atrelando o cavalo.
– Quero testar uma teoria minha – disse, calçando as botas. – Acho, Watson, que você está diante de um dos maiores idiotas de toda a Europa. Mereço ser chutado daqui até Charing Cross. Mas acho que encontrei a chave do caso agora.
– E onde está? – perguntei, sorrindo.
– No banheiro – respondeu. – Oh, não, não estou brincando – continuou, vendo meu ar incrédulo. – Acabo de sair de lá, tirei-a de lá e coloquei-a nesta maleta. Vamos, meu rapaz, vamos ver se serve na fechadura.
Descemos o mais depressa possível e saímos para o sol que brilhava lá fora. Nosso carro e o cavalo estavam à espera na estrada, com o rapaz da cocheira, semivestido, segurando as rédeas. Pulamos para dentro do carro e fomos a toda a velocidade pela estrada de Londres. Algumas carroças levando hortaliças para a metrópole estavam na estrada, mas as casas dos dois lados estavam silenciosas e adormecidas, como em uma cidade fantasmagórica.
– Em alguns pontos, este caso é muito singular – disse Holmes, chicoteando o cavalo. – Confesso que estava completamente cego, mas é melhor ser sábio tarde do que nunca.
Na cidade, os madrugadores já começavam a aparecer sonolentos nas janelas quando passamos pelas ruas de Surrey. Percorrendo a ponte de Waterloo, atravessamos o rio, seguimos a Wellington Street, viramos à direita e chegamos à Bow Street. Sherlock Holmes era muito conhecido na polícia e os dois guardas que estavam na porta o cumprimentaram. Um deles segurou o cavalo enquanto o outro nos fez entrar.
– Quem está de serviço? – perguntou Holmes.
– O inspetor Bradstreet, senhor.
– Ah, Bradstreet, como vai? – Um policial alto e gordo se aproximara pelo corredor de pedra, com o boné e a jaqueta do uniforme. – Gostaria de falar com você, Bradstreet.
– Claro, sr. Holmes. Venha aqui em minha sala.
Era uma sala pequena, mobiliada como escritório, com um enorme livro de registros sobre a mesa e um telefone na parede. O inspetor sentou-se atrás da mesa.
– Em que posso ajudá-lo, sr. Holmes?
– É sobre aquele mendigo, Boone. O que foi acusado de estar ligado ao desaparecimento do sr. Neville St. Clair, de Lee.
– Sim. Ele foi detido para interrogatório.
– Foi o que ouvi. Ele está aqui?
– Está em uma das celas.
– Está quieto?
– Ah, não dá trabalho nenhum. Mas é um sujeito muito sujo.
– Sujo?
– Sim, é uma luta para conseguir que lave as mãos, e a cara parece a de um carvoeiro. Bem, quando seu caso for decidido, vai tomar um banho desinfetante, e acho que se o senhor o visse, ia concordar comigo que ele está mesmo precisando.
– Gostaria muito de vê-lo.
– É muito fácil. Venha comigo. Pode deixar a maleta aqui.
– Não, prefiro levá-la comigo.
– Muito bem. Venha por aqui, por favor. – Levou-nos por um corredor, abriu uma porta gradeada, desceu umas escadas e depois seguimos por outro corredor caiado de branco, com portas dos dois lados.
– É a terceira à direita – disse o inspetor. – Aqui está! – Abriu um painel na parte superior da porta e espiou para dentro.
– Está dormindo – disse. – Pode vê-lo muito bem.
Nós dois olhamos pela grade. O prisioneiro estava deitado com o rosto virado para nós, dormindo um sono pesado, respirando lenta e profundamente. Era um homem de estatura média, vestido com roupas grosseiras, como convinha à sua profissão, com uma camisa colorida saindo pelo rasgão do casaco esfarrapado. Estava, como dissera o inspetor, imundo, mas a sujeira que cobria o rosto não ocultava sua feiúra repulsiva. Um largo vergão de uma velha cicatriz cortava o rosto do olho até o queixo e, ao se contrair, repuxara um lado do lábio superior, de modo que três dentes ficavam expostos numa careta permanente. Os cabelos ruivos desciam pela testa, encobrindo os olhos.
– É uma beleza, não? – comentou o inspetor.
– Bem que está precisando de um banho – disse Holmes. – Imaginei isso, e vim preparado. – Abriu a maleta enquanto falava e, para minha surpresa, tirou uma esponja enorme.
– Ha, ha! O senhor é muito engraçado! – riu o inspetor.
– Agora, se tiver a bondade de abrir a porta sem fazer barulho, em poucos instantes ele será uma figura muito mais apresentável.
– Não vejo por que não – disse o inspetor. – Assim ele não merece as celas da rua Bow, não é mesmo? – Enfiou a chave na fechadura e entramos todos silenciosamente. O homem adormecido mexeu-se na cama, mas continuou em sono profundo. Holmes aproximou-se da jarra de água, molhou a esponja e depois esfregou-a vigorosamente no rosto do prisioneiro.
– Deixem-me apresentar-lhes – exclamou – o sr. Neville St. Clair, de Lee, no Condado de Kent.
Nunca em minha vida tinha visto um espetáculo assim. O rosto do homem descascou sob a esponja como se fosse uma casca de árvore. A cor parda desapareceu como por mágica. Sumiram, também, a horrível cicatriz que cruzava o rosto de alto a baixo e o lábio torcido que dera aquele aspecto repulsivo à sua fisionomia. Um puxão arrancou a cabeleira ruiva e ali, sentado na cama, estava um homem pálido, de expressão triste e aspecto refinado, com cabelos pretos e pele clara, esfregando os olhos e olhando em volta com espanto sonolento. Então, percebendo de repente que fora descoberto, deu um grito e atirou-se na cama, escondendo o rosto no travesseiro.
– Meu Deus! – exclamou o inspetor. – É realmente o homem desaparecido. Eu o reconheci pela fotografia.
O prisioneiro virou-se com a expressão conformada de um homem que se entrega a seu destino. – Que assim seja – disse. – Por favor, diga-me, de que sou acusado?
– De ter eliminado o sr. Neville St.... Ora, vamos lá, não pode ser acusado disso, a não ser que o acusem de tentativa de suicídio – disse o inspetor, sorrindo. – Vinte e sete anos servindo na polícia e nunca vi coisa igual.
– Se eu sou o sr. Neville St. Clair, então é óbvio que não houve crime nenhum e, portanto, estou detido ilegalmente.
– Nenhum crime, mas um grande erro foi cometido – interrompeu Holmes. – Teria sido melhor se tivesse confiado em sua esposa.
– Não era minha esposa, eram as crianças – gemeu o prisioneiro. – Deus me perdoe, não queria que se envergonhassem do pai. Meu Deus! Que vergonha! O que posso fazer?
Sherlock Holmes sentou-se ao lado dele na cama e deu-lhe uma pancadinha amigável no ombro.
– Se deixar que o assunto seja esclarecido no tribunal – disse –, claro que não poderá evitar a publicidade. Por outro lado, se conseguir convencer as autoridades policiais de que não há realmente motivo para acusá-lo de coisa alguma, não vejo por que será necessário que os detalhes saiam nos jornais. Estou certo de que o inspetor Bradstreet tomaria nota de tudo que quiser nos contar e apresentaria o relato às autoridades competentes. Assim o caso não precisaria chegar ao tribunal.
– Deus o abençoe! – exclamou o prisioneiro, emocionado. – Encararia a prisão, até mesmo a execução, para não deixar que meu miserável segredo fosse uma mácula de família para meus filhos.
– Vocês são os primeiros a ouvir a minha história. Meu pai era professor em Chesterfield, onde recebi excelente educação. Viajei quando jovem, ingressei no palco e finalmente me tornei repórter de um jornal vespertino de Londres. Um dia meu editor quis uma série de artigos sobre os mendigos da metrópole, e me prontifiquei a escrevê-los. Foi aí que começaram todas as minhas aventuras. Só mesmo me tornando um mendigo amador é que eu poderia coletar os fatos em que se baseariam os artigos. Quando era ator, aprendi, é claro, todos os truques de maquiagem e fiquei famoso nos camarins pela minha perícia. Tirei partido agora dessa habilidade. Pintei o rosto e, para adquirir um aspecto ainda mais miserável, fiz uma cicatriz horrorosa e repuxei o lábio com um pedaço de esparadrapo cor-de-pele. Então, com uma cabeleira ruiva e roupas apropriadas, assumi meu posto na parte mais movimentada da cidade, ostensivamente como vendedor de fósforos, mas, na verdade, como mendigo. Durante sete horas exerci minha profissão, e quando voltei para casa à noite, vi, para minha surpresa, que recebera 26 xelins e 4 pence.
– Escrevi os artigos e não pensei mais no assunto até que, algum tempo depois, avalizei um título para um amigo que não pôde pagá-lo e fui intimado a saldar uma dívida de 25 libras. Fiquei desesperado, sem saber onde conseguir o dinheiro, mas tive uma idéia. Pedi ao credor um prazo de 15 dias para pagar, pedi férias ao meu patrão e passei esses dias mendigando na cidade com meu disfarce. Em dez dias consegui o dinheiro e paguei a dívida.
– Vocês podem imaginar como foi difícil voltar a trabalhar duramente por duas libras por semana quando sabia que podia ganhar o mesmo em um dia, bastando manchar o rosto com um pouco de tinta, deixar o boné no chão e ficar parado. Foi uma briga longa entre meu orgulho e o dinheiro, mas este ganhou no final e abandonei a reportagem para ficar dia após dia na esquina que escolhera no início, inspirando piedade com meu rosto horrendo e enchendo os bolsos de moedas. Só um homem sabia o meu segredo. Era o gerente de um antro em que me hospedava em Swandam Lane, de onde eu saía todas as manhãs como mendigo esquálido e à tarde me transformava em homem elegante. Esse sujeito, um eurasiano, era muito bem pago pelos quartos que me alugava, de modo que eu sabia que meu segredo seria bem guardado.
– Bem, em pouco tempo vi que estava economizando quantias consideráveis. Não quero dizer que qualquer mendigo nas ruas de Londres possa fazer setecentas libras por ano, o que é menos do que faço, em média, mas eu tinha vantagens excepcionais pela minha habilidade em me maquiar e pela facilidade com que dava respostas rápidas e espirituosas aos ditos que me lançavam, e isso foi melhorando com a prática até que me tornei um personagem conhecido na cidade. O dia todo jogavam moedas em meu boné, algumas até de prata, e era muito raro não fazer pelo menos duas libras por dia.
– À medida que enriquecia, ficava mais ambicioso, comprei uma casa nos subúrbios e finalmente me casei, sem que ninguém suspeitasse qual era a minha verdadeira profissão. Minha querida esposa sabia que eu tinha negócios na cidade. Mas não sabia qual era o tipo de negócio.
– Segunda-feira passada eu terminara meu trabalho e estava me vestindo em meu quarto, no segundo andar do antro de ópio, quando olhei pela janela e vi, para minha surpresa e horror, minha esposa na rua, olhando para mim. Dei um grito de espanto, ergui os braços para esconder o rosto e, correndo para meu confidente, o eurasiano, supliquei que não deixasse ninguém subir até o quarto. Ouvi a voz dela lá embaixo, mas sabia que não poderia subir. Rapidamente, arranquei as roupas, vesti o traje de mendigo, pintei o rosto e coloquei a cabeleira. Nem mesmo os olhos de uma esposa poderiam perceber que era um disfarce. Mas então me ocorreu que poderia haver uma busca no quarto e as roupas iriam me trair. Escancarei a janela e com o movimento reabri um pequeno corte que dera na mão aquela manhã. Agarrei o casaco, pesado por causa das moedas que tirara da sacola de couro onde as carregava e colocara nos bolsos. Atirei-o pela janela, e o vi desaparecer no rio. Ia jogar as outras roupas, mas naquele instante os policiais subiram as escadas correndo e pouco depois, para meu grande alívio, devo confessar, em vez de ser identificado como o sr. Neville St. Clair, estava sendo preso como seu assassino.
– Acho que não há mais nada a explicar. Estava decidido a preservar meu disfarce o máximo possível, e por isso preferi ficar com o rosto sujo. Sabendo que minha esposa ia ficar tremendamente ansiosa, tirei meu anel de sinete e o entreguei ao eurasiano numa hora em que nenhum policial estava olhando, e também um bilhete apressado, dizendo a ela que não tivesse medo.
– Esse bilhete só chegou às mãos dela hoje – disse Holmes.
– Meu Deus! Que semana ela deve ter passado!
– A polícia vem observando esse eurasiano – disse o inspetor Bradstreet – e ele deve ter achado difícil pôr uma carta no correio sem ser visto. Provavelmente entregou-a a algum marinheiro seu freguês, que esqueceu completamente por alguns dias.
– Foi isso que aconteceu – disse Holmes, balançando a cabeça em sinal de aprovação. – Não tenho dúvida nenhuma. Mas nunca foi processado por mendigar?
– Muitas vezes. Mas o que era uma multa para mim!
– Tem de parar com isso agora – disse Bradstreet. – Se quer que a polícia abafe esse caso, Hugh Boone deve deixar de existir.
– Juro por tudo que há de mais valioso para um homem.
– Nesse caso, acho provável que não se tome nenhuma medida. Mas se for encontrado mendigando novamente, tudo virá à tona. Na verdade, sr. Holmes, estamos todos muito gratos ao senhor por ter esclarecido este assunto. Gostaria de saber como chega às suas conclusões.
– Cheguei a essa conclusão – respondeu meu amigo – sentado em cinco almofadas e consumindo uma bolsa cheia de fumo de cachimbo. Eu acho, Watson, que se formos para a Baker Street vamos chegar a tempo de tomar o café-da-manhã.