a aventura da ciclista solitária

Entre os anos de 1894 e 1901, o sr. Sherlock holmes foi um homem muito ocupado. Pode-se dizer com certeza que não houve nenhum caso público de alguma dificuldade em que ele não tenha sido consultado durante esses oito anos, e houve centenas de casos particulares, alguns deles extremamente intrincados e extraordinários, nos quais teve uma participação importante. Muitos êxitos surpreendentes e algumas derrotas inevitáveis foram o resultado desse longo período de trabalho contínuo. Como guardei muitas anotações detalhadas de todos esses casos, e eu mesmo participei de muitos deles, pode-se imaginar que não é uma tarefa muito fácil saber qual selecionar para apresentar ao público. Mas devo manter minha regra básica, e dar preferência aos casos cujo interesse decorre da engenhosidade e da qualidade dramática da solução, e não tanto da brutalidade do crime. Por este motivo vou apresentar ao leitor os fatos ligados à

srta. Violet Smith, a ciclista solitária de Charlington, e a seqüência curiosa de nossa investigação, que culminou numa tragédia inesperada. É verdade que a situação não admitiu nenhuma demonstração notável dos poderes pelos quais meu amigo era famoso, mas havia alguns detalhes a respeito do caso que o fizeram se destacar naqueles longos registros de crimes, dos quais recolhi material para estas pequenas narrativas.

Procurando no meu caderno, descobri que foi num sábado, dia 23 de abril de 1895, que ouvimos falar pela primeira vez da srta. Violet Smith. Sua visita foi, lembro-me, extremamente inconveniente para Holmes, porque naquele momento ele estava imerso num problema complicado e obscuro, relativo à estranha perseguição que John Vincent Harden, o conhecido milionário do tabaco, vinha sofrendo. Meu amigo, que amava acima de tudo a precisão e a concentração de pensamento, se ressentia de tudo que distraísse sua atenção do assunto em que estivesse envolvido. Mesmo assim, sem a aspereza que era estranha a seu temperamento, era impossível recusar-se a ouvir a história da bela jovem, alta, graciosa e majestosa, que se apresentou na Baker Street tarde da noite e implorou sua ajuda e conselho. Foi inútil dizer que seu tempo já estava todo tomado, pois a jovem viera determinada a contar sua história, e era evidente que nenhum tipo de pressão a faria sair da sala antes que o fizesse. Com ar resignado e um sorriso um tanto cansado, Holmes pediu à bela intrusa que se sentasse e nos contasse o que a estava afligindo.

– Pelo menos não pode ser sua saúde – disse, enquanto seus olhos penetrantes a examinavam –; ciclista tão ardorosa, deve estar cheia de energia.

Ela olhou surpresa para os próprios pés, e eu notei um ligeiro arranhado do lado da sola, causado pela fricção da ponta do pedal.

– Sim, eu ando muito de bicicleta, sr. Holmes, e isto tem algo a ver com a minha visita de hoje.

Meu amigo pegou a mão nua da dama e a examinou com tanta atenção e tão pouca emoção quanto um cientista demonstraria em relação a um espécime.

– Vai me desculpar, tenho certeza. É o meu negócio – disse, enquanto a soltava. – Quase caí no erro de supor que você praticava datilografia. É claro, é óbvio que é música. Você notou as pontas dos dedos espatuladas, Watson, comuns às duas profissões? Mas existe uma espiritualidade no rosto – ela gentilmente o virou para a luz – que uma datilógrafa não tem. Esta dama é uma musicista.

– Sim, sr. Holmes, eu ensino música.

– No campo, presumo, pela sua compleição.

– Sim, senhor, perto de Farnham, nos limites de Surrey.

– Uma bela região, e cheia das associações mais interessantes. Você deve se lembrar, Watson, foi lá perto que pegamos Archie Stamford, o falsificador. Agora, srta. Violet, o que lhe aconteceu perto de Farnham, nos limites de Surrey?

A jovem, com grande clareza e calma, fez o seguinte relato:

– Meu pai já morreu, sr. Holmes. Era James Smith, que regia a orquestra no velho Teatro Imperial. Minha mãe e eu ficamos sem um parente no mundo, a não ser um tio, Ralph Smith, que foi para a África há 25 anos e desde então nunca mais ouvimos falar dele. Quando meu pai morreu, ficamos muito pobres, mas um dia nos disseram que havia um anúncio no Times pedindo o nosso endereço. Pode imaginar como ficamos alegres, pois pensamos que alguém nos deixara uma fortuna. Fomos procurar o advogado, cujo nome estava no jornal. Lá encontramos dois cavalheiros, o sr. Carruthers e o sr. Woodley, que voltavam de uma visita à África do Sul. Disseram que o meu tio era amigo deles, que ele falecera alguns meses antes na maior miséria, em Joanesburgo, e que lhes solicitara, como último pedido, que procurassem seus parentes para ver se não passavam necessidades. Achamos estranho que o tio Ralph, que não ligara para nós enquanto estava vivo, se preocupasse conosco depois de morto, mas o sr. Carruthers explicou que o motivo era que meu tio acabara de saber da morte de seu irmão, e se sentiu responsável pelo nosso destino.

– Com licença – disse Holmes. – Quando foi essa entrevista?

– Em dezembro, quatro meses atrás.

– Por favor, prossiga.

– O sr. Woodley me pareceu ser uma pessoa abominável. Estava sempre olhando para mim – um homem ordinário, de barba vermelha e rosto gordo, com o cabelo grudado nos dois lados da testa. Achei-o detestável – e tenho certeza de que Cyril não gostaria que eu conhecesse uma pessoa assim.

– Oh, Cyril é o nome dele! – disse Holmes, sorrindo.

A jovem ficou vermelha e riu.

– Sim, sr. Holmes, Cyril Morton, um engenheiro eletricista, e esperamos nos casar no fim do verão. Meu Deus, como consegui começar a falar sobre ele? O que quis dizer é que o sr. Woodley era absolutamente odioso, mas o sr. Carruthers, que era um homem muito mais velho, era mais agradável. Era uma pessoa silenciosa, pálida e sem barba, tinha maneiras polidas e um sorriso amável. Perguntou em que situação tínhamos sido deixadas e, ao saber que éramos pobres, sugeriu que eu fosse dar aulas de música para sua filha única, de 10 anos. Eu disse que não gostaria de deixar minha mãe, e ele sugeriu então que eu fosse para casa todo fim de semana, e me ofereceu 100 libras por ano, o que certamente era um esplêndido pagamento. Então acabei aceitando, e fui para a Granja Chiltern, a cerca de 10 quilômetros de Farnham. O sr. Carruthers era viúvo, mas empregara uma governanta, uma pessoa idosa muito respeitável, chamada sra. Dixon, para tomar conta de sua casa. A criança era um amor e tudo parecia promissor. O sr. Carruthers era muito gentil e musical, e passamos noites muito agradáveis juntos. Todo fim de semana eu ia para casa, ficar com minha mãe na cidade.

– A primeira brecha na minha felicidade foi a chegada do sr. Woodley, do bigode vermelho. Veio para uma visita de uma semana, e oh! pareceram três meses para mim. Era uma pessoa desagradável – arrogante com todos, mas para mim infinitamente pior. Apaixonou-se por mim, e manifestava o seu amor de modo abominável, vangloriava-se de sua riqueza, disse que se me casasse com ele, poderia ter os melhores diamantes de Londres, e finalmente, quando viu que eu não teria nada com ele, agarrou-me um dia depois do jantar – ele era terrivelmente forte – e jurou que não me deixaria sair até que o beijasse. O sr. Carruthers entrou e o afastou de mim, e ele então agrediu seu anfitrião, dando-lhe um soco e cortando o seu rosto. Esse foi o final da visita dele, como pode imaginar. O sr. Carruthers me pediu desculpas no dia seguinte e me garantiu que eu não ficaria exposta novamente a um insulto desses. Desde então não vi mais o sr. Woodley.

– E agora, sr. Holmes, cheguei afinal ao motivo especial que me fez vir pedir o seu conselho hoje. Deve saber que todo sábado de manhã vou de bicicleta até a estação Farnham, para pegar o trem das 12:22h para a cidade. A estrada da Granja Chiltern é muito deserta, principalmente num certo ponto, pois fica a mais de 1 quilômetro entre Charlington Heath, de um lado, e os bosques que circundam Charlington Hall, de outro. Não existe um trecho de estrada mais ermo, e é muito raro encontrar-se pelo menos uma carroça ou um camponês, até que se chegue à estrada principal, perto de Crooksbury Hill. Duas semanas atrás eu estava passando por esse lugar, quando olhei por acaso por cima do ombro e vi, a cerca de 200 metros atrás de mim, um homem também de bicicleta. Parecia ser de meia-idade, com uma barba curta e escura. Antes de chegar a Farnham, olhei para trás, mas o homem tinha sumido, e não pensei mais nisso. Mas pode imaginar como fiquei surpresa, sr. Holmes, quando, na minha volta na segunda-feira, vi o mesmo homem no mesmo trecho da estrada. Meu assombro aumentou quando o incidente ocorreu de novo, exatamente como antes, no sábado e na segunda-feira seguintes. Ele sempre mantinha distância e não me molestava de modo nenhum, mas ainda assim era muito estranho. Comentei o fato com o sr. Carruthers, que pareceu interessado e me disse que havia pedido um cavalo e uma carruagem, para que no futuro eu não tivesse de passar sozinha por essas estradas desertas.

– O cavalo e a carruagem deviam ter vindo esta semana, mas por algum motivo não foram entregues, e novamente tive de pedalar até a estação. Isso foi esta manhã. Pode pensar que olhei em volta quando cheguei a Charlington Heath, e lá, com certeza, estava o homem, exatamente como estivera nas duas últimas semanas. Ficava sempre tão longe de mim que não podia ver direito seu rosto, mas era com certeza alguém que eu não conhecia. Estava vestido com um terno escuro e um boné de pano. A única coisa em seu rosto que podia ver claramente era a sua barba escura. Hoje não fiquei alarmada, mas cheia de curiosidade, e determinada a descobrir quem ele era e o que queria. Desacelerei minha bicicleta, mas ele também o fez. Então parei de repente, mas ele também parou. Resolvi preparar uma armadilha para ele. Há uma curva fechada na estrada, e pedalei muito depressa nela, e então parei e esperei. Esperava que ele fizesse a curva e passasse por mim antes de conseguir parar. Mas ele não apareceu. Voltei e olhei pela curva. Podia ver 1 quilômetro de estrada, mas ele não estava ali. Para tornar a coisa ainda mais incrível, não existe nenhuma estrada secundária neste ponto, por onde ele pudesse ter entrado.

Holmes exultou e esfregou as mãos. – Este caso com certeza apresenta algumas características específicas – disse. – Quanto tempo decorreu entre o momento em que você fez a curva e a sua descoberta de que a estrada estava vazia?

– Dois ou três minutos.

– Então ele não poderia ter voltado pela estrada, e você diz que não existe nenhuma estrada secundária?

– Nenhuma.

– Então ele com certeza tomou uma trilha de um lado ou do outro.

– Não poderia ter sido do lado da mata, porque eu o teria visto!

– Então, pelo processo de exclusão, chegamos ao fato de que ele foi na direção de Charlington Hall, que, como entendi, fica isolada num dos lados da estrada. Algo mais?

– Nada, sr. Holmes, a não ser que fiquei tão perplexa que achei que não ficaria satisfeita até vê-lo e obter seu conselho.

Holmes ficou em silêncio por um momento.

– Onde está o cavalheiro de quem é noiva? – perguntou por fim.

– Está na Companhia Elétrica Midland, em Coventry.

– Ele não faria uma visita surpresa a você?

– Oh, sr. Holmes! Como se eu não o conhecesse!

– Você teve outros admiradores?

– Vários, antes de conhecer Cyril.

– E depois disso?

– Houve esse homem horrível, Woodley, se puder considerá-lo um admirador.

– Ninguém mais?

Nossa bela cliente pareceu um tanto confusa.

– Quem era ele? – perguntou Holmes.

– Oh, pode ser uma mera fantasia de minha parte; mas me pareceu algumas vezes que o meu patrão, sr. Carruthers, se interessa muito por mim. Convivemos com alguma intimidade. Tenho a sua companhia à noite. Ele nunca disse nada. É um perfeito cavalheiro. Mas uma garota sempre sabe.

– Ah! – Holmes parecia sério. – Do que ele vive?

– É um homem rico.

– Sem carruagem nem cavalos?

– Bem, pelo menos está bem de vida. Mas vai à cidade duas ou três vezes por semana. Está profundamente interessado no negócio de ouro da África do Sul.

– Você nos avisará de qualquer fato novo, srta. Smith. Estou muito ocupado agora, mas arranjarei tempo para fazer algumas investigações sobre o seu caso. Enquanto isso, não faça nada antes de me avisar. Adeus, e creio que só teremos boas notícias de você.

– É parte da ordem da natureza que uma garota como essa tenha seguidores – disse Holmes, enquanto fumava, pensativo, o seu cachimbo –, mas não em bicicletas em estradas desertas do campo. Algum apaixonado secreto, sem dúvida. Mas há detalhes curiosos e sugestivos nesse caso, Watson.

– Que ele só apareça naquele trecho?

– Exatamente. Nossa primeira providência será descobrir quem são os donos de Charlington Hall. E sobre a ligação entre Carruthers e Woodley, já que parecem ser homens de tipos tão diferentes. Por que ambos estavam tão interessados em procurar os parentes de Ralph Smith? Mais um detalhe. Que espécie de família é esta que paga o dobro do preço normal a uma governanta mas não tem um cavalo, embora more a 10 quilômetros da estação? Estranho, Watson – muito estranho!

– Irá até lá?

– Não, meu caro amigo, você irá até lá. Isto pode ser alguma intriga sem importância, e eu não posso parar minha outra pesquisa importante por causa desta. Na segunda-feira, você chegará bem cedo em Farnham; irá esconder-se perto de Charlington Heath; observará os fatos por si mesmo e agirá segundo o seu próprio julgamento. Então, depois de obter informações sobre os ocupantes do Hall, voltará e me contará tudo. E agora, Watson, nem uma palavra sobre o assunto até que tenhamos algumas rochas sólidas onde possamos pisar para encontrar uma solução.

Verificamos com a moça que ela tomava, na segunda-feira, o trem que saía de Waterloo às 9:50h; então, saí cedo e peguei o de 9:13h. Em Farnham, não tive dificuldade para saber onde ficava Charlington Heath. Era impossível errar o local da aventura da jovem, pois a estrada passa entre o campo aberto de um lado e um velho bosque de teixos do outro, circundando um parque cheio de árvores magníficas. Havia um portão principal de pedras cobertas de musgo, cada pilar lateral encimado por emblemas heráldicos emoldurados, mas além dessa passagem central para carruagens, observei muitos pontos onde havia falhas na sebe e trilhas que passavam por elas. A casa era invisível da estrada, mas os arredores mostravam tristeza e decadência.

O campo tinha moitas douradas de tojos floridos, brilhando magnificamente sob a luz do sol da primavera. Fiquei atrás de uma dessas moitas, a fim de poder ver tanto o portão da casa como um bom pedaço da estrada de cada lado. Estava deserta quando saí dela, mas agora eu via um ciclista vindo na direção oposta daquela por onde eu havia chegado. Estava vestido com um terno escuro, e notei que tinha uma barba negra. Chegando ao final do terreno de Charlington, pulou da bicicleta e entrou por uma abertura na sebe, desaparecendo de minha vista.

Quinze minutos depois um segundo ciclista apareceu. Desta vez era a jovem, que vinha da estação. Eu a vi olhar em volta ao chegar à sebe de Charlington. Um instante depois o homem surgiu de seu esconderijo, pulou na sua bicicleta e a seguiu. Em todo o vasto campo, estas eram as únicas figuras móveis, a graciosa garota sentada bem reta em seu veículo, e o homem atrás dela, curvando-se sobre o guidom com um traço curiosamente furtivo em cada movimento. Ela olhou para trás e diminuiu a velocidade. Ele diminuiu também. Ela parou. Ele também parou na mesma hora, mantendo a distância de 200 metros atrás dela. O movimento seguinte dela foi tão inesperado quanto inteligente. De repente, ela fez a volta e correu na direção dele. Mas ele foi tão rápido quanto ela e saiu correndo numa fuga desesperada. Então ela voltou à estrada, sua cabeça altiva no ar, não se dignando a tomar conhecimento de seu admirador silencioso. Ele também se virara, e ainda mantinha a mesma distância até que a curva da estrada os escondeu de minha vista.

Continuei no meu esconderijo, e foi bom ter feito isso, pois logo depois o homem reapareceu, pedalando de volta, lentamente. Entrou no portão do Hall e desmontou da bicicleta. Durante alguns minutos pude vê-lo de pé entre as árvores. Suas mãos estavam erguidas e ele dava a impressão de estar ajeitando a gravata. Depois montou na bicicleta e se afastou de onde eu estava, pelo caminho que ia na direção do Hall. Corri pelo campo e olhei por entre as árvores. Lá longe eu podia vislumbrar o velho prédio cinzento, com suas chaminés Tudor, mas o caminho passava por entre uns arbustos densos, e não vi mais o ciclista.

Entretanto, achei que já tinha feito um bom trabalho naquela manhã, e voltei contente para Farnham. O corretor de imóveis local não pôde me dizer nada sobre Charlington Hall, e me recomendou uma firma conhecida em Pall Mall. Parei ali quando voltava para casa, e esbarrei na polidez do representante. Não, não poderia ter Charlington Hall para o verão. Eu chegara atrasado. Fora alugada um mês atrás. Sr. Williamson era o nome do locatário. Era um cavalheiro idoso e respeitável. O agente, muito gentil, lamentava não poder dizer mais nada, porque os negócios dos clientes eram assuntos que ele não podia comentar.

Sherlock Holmes ouviu com atenção o longo relato que lhe apresentei naquela noite, mas não fez o elogio que eu esperava e merecia. Ao contrário, seu rosto austero estava mais severo que de costume enquanto comentava as coisas que eu fizera e as que eu não havia feito.

– Seu esconderijo, meu caro Watson, era muito impróprio. Deveria ter ficado atrás da sebe, de onde poderia ter uma visão melhor desta pessoa interessante. Mas ficou a algumas centenas de metros, e pôde me contar menos ainda que a srta. Smith. Ela acha que não conhece o homem; estou convencido de que sim. Do contrário, por que ele estaria tão ansioso para que ela não chegasse suficientemente perto para que visse suas feições? Você o descreveu como curvado sobre o guidom. Disfarce novamente, como vê. Você se saiu incrivelmente mal. Ele volta à casa e você quer descobrir quem ele é. Vai, então, a um corretor de imóveis em Londres!

– O que eu deveria ter feito? – exclamei, um tanto exasperado.

– Ido ao bar mais próximo. É o centro dos mexericos no campo. Eles lhe teriam dito todos os nomes, do patrão à cozinheira. Williamson? Não me diz nada. Se é um homem idoso, não pode ser este ciclista ágil que foge tão depressa da perseguição atlética da jovem. O que conseguimos com a sua expedição? A confirmação de que a história da garota é verdadeira. Nunca duvidei disso. Que existe uma ligação entre o ciclista e o Hall. Nunca duvidei disso também. Que o Hall é alugado por Williamson. De que adianta isso? Ora, ora, meu caro, não se sinta tão deprimido. Poderemos descobrir um pouco mais até o próximo sábado, e enquanto isso farei uma ou duas pesquisas por minha conta.

Na manhã seguinte, recebemos um bilhete da srta. Smith, recontando resumida e detalhadamente os incidentes que eu vira, mas a essência da carta estava no pós-escrito:


Tenho certeza de que respeitará minha confidência, sr. Holmes, quando lhe contar que a minha situação aqui ficou difícil, devido ao fato de que meu empregador me propôs casamento. Estou convencida de que seus sentimentos são os mais profundos e nobres. Ao mesmo tempo, é claro, estou comprometida. Encarou minha recusa com seriedade, mas também muito gentilmente. Entretanto, pode compreender que a situação está um pouco tensa.


– Parece que nossa jovem amiga está se metendo em dificuldades – disse Holmes, pensativo, ao terminar a carta. O caso apresenta mais ângulos de interesse e mais possibilidades de desenvolvimento do que eu havia pensado a princípio. Não me faria mal nenhum um dia calmo e pacífico no campo, e estou disposto a ir lá esta tarde e testar uma ou duas teorias que formulei.

O dia calmo de Holmes no campo teve um final singular, pois voltou a Baker Street tarde da noite, com o lábio cortado e um galo na testa, além de um ar de dispersão geral que faria dele um objeto de estudo adequado a uma investigação da Scotland Yard. Estava deliciado com suas próprias aventuras e ria com gosto ao recontá-las.

– Faço tão pouco exercício, que é sempre uma ameaça – disse. – Você sabe que tenho alguma habilidade no velho e bom esporte inglês do boxe. Ocasionalmente, é útil; hoje, por exemplo, eu teria chegado a um humilhante malogro se não fosse ele.

Implorei-lhe que me contasse o que acontecera.

– Descobri o tal bar no campo que recomendara a você, e lá fiz algumas perguntas discretas. Eu estava no bar, e o dono tagarela ia me contando tudo o que eu queria. Williamson é um homem de barbas brancas, e vive sozinho com poucos criados no Hall. Dizem que é ou foi um clérigo, mas um ou dois incidentes em sua curta estada no Hall me impressionaram por serem tipicamente não-eclesiásticos. Já fiz algumas perguntas numa agência clerical, e me disseram que havia um homem com esse nome na classe, cuja carreira tinha sido especialmente sombria. O taberneiro também me informou que geralmente há visitas nos fins de semana – “um bando de ricos, senhor” – no Hall, e especialmente um cavalheiro com bigode vermelho, chamado sr. Woodley, que estava sempre lá. Tínhamos chegado neste ponto quando entra ninguém menos que o próprio cavalheiro, que estivera bebendo sua cerveja no salão do bar e ouvira toda a nossa conversa. Quem era eu? O que eu queria? Por que estava fazendo perguntas? Sua conversa era bem fluente e seus adjetivos, bem fortes. Terminou a série de desaforos com uma bofetada traiçoeira, que não consegui evitar totalmente. Os minutos seguintes foram deliciosos. Foi um direto de esquerda contra um valentão forte. Saí dessa como me vê. O sr. Woodley foi para casa de carroça. Assim terminou minha viagem pelo campo, e devo confessar que, embora agradável, meu dia às margens de Surrey não foi muito mais proveitoso que o seu.

A quinta-feira nos trouxe outra carta de nossa cliente.


Não se surpreenderá, sr. Holmes [dizia ela], ao saber que estou deixando o emprego do sr. Carruthers. Nem mesmo o salário alto pode amenizar o desconforto da minha situação. No sábado vim para

a cidade e não pretendo voltar. O sr. Carruthers comprou uma charrete, e agora os perigos da estrada deserta, se é que havia algum perigo, se acabaram.

A causa principal da minha saída não é apenas a situação tensa com o sr. Carruthers, mas o reaparecimento daquele homem abominável, o sr. Woodley. Sempre foi horrível, mas parece mais medonho do que nunca, pois dá a impressão de ter sofrido um acidente e está muito desfigurado. Eu o vi pela janela, mas alegro-me em dizer que não estive com ele. Teve uma longa conversa com o sr. Carruthers, que parecia estar muito nervoso depois. Woodley deve estar nas vizinhanças, pois não dormiu aqui, e ainda assim o vi de relance esta manhã, andando furtivamente entre os arbustos. Eu preferia que houvesse um animal selvagem solto por aqui. Eu o odeio e tenho mais medo dele do que consigo dizer. Como o sr. Carruthers pode agüentar essa criatura por um momento sequer? Mas todos os meus problemas irão terminar sábado.


– Assim espero, Watson, assim espero – disse Holmes gravemente. – Há uma grande intriga rondando essa mulher, e é nosso dever cuidar para que ninguém a moleste até a sua última viagem. Acho, Watson, que devemos ir até lá juntos no sábado de manhã para nos certificarmos de que esta investigação curiosa não tenha um final desagradável.

Confesso que até então eu não achava que o caso me parecera mais grotesco e bizarro do que perigoso. Que um homem ficasse à espreita e seguisse uma mulher muito bonita não é uma coisa inédita, e se ele tinha tão pouca audácia que não ousava se dirigir a ela, mas até fugia dela, não seria um atacante muito terrível. O valentão Woodley era uma pessoa muito diferente, mas, exceto em uma ocasião, não molestara nossa cliente, e agora visitara a casa de Carruthers sem incomodá-la. O homem na bicicleta era, sem dúvida, um integrante dos grupos de fim de semana no Hall, dos quais o taberneiro falara, mas quem era ele ou o que seria, isto continuava a ser um mistério. Foi a severidade da atitude de Holmes e o fato de que enfiara um revólver no bolso antes de sairmos de casa que me impressionaram, com a sensação de que poderia haver uma tragédia por trás desta curiosa seqüência de acontecimentos.

A noite chuvosa foi seguida de uma manhã límpida, e o campo coberto de grama, com os exuberantes tufos de tojo em flor, parecia ainda mais bonito aos olhos de quem estava cansado das tonalidades cinzentas de Londres. Holmes e eu caminhamos pela estrada larga e poeirenta aspirando o ar fresco da manhã

e nos deleitamos com o canto dos pássaros e com a brisa fresca da primavera. De um lugar mais elevado da estrada perto de Croksbury Hill, podíamos ver o Hall sombrio aparecendo em meio aos velhos carvalhos, que, mesmo velhos, ainda eram mais novos que a construção que circundavam. Holmes apontou para o longo trecho da estrada que serpenteava, uma faixa amarelo-avermelhada, entre o marrom do campo e o verde que brotava nos bosques. Ao longe, um ponto negro, podíamos ver um veículo se movendo em nossa direção. Holmes soltou uma exclamação de impaciência.

– Eu dei uma margem de meia hora – disse. – Se aquela é a sua charrete, ela deve estar indo tomar o trem mais cedo. Receio, Watson, que passe por Charlington antes de podermos nos encontrar com ela.

A partir do instante em que passamos deste ponto elevado, não conseguíamos mais ver a charrete, mas andamos tão depressa que a minha vida sedentária começou a se revelar, e eu fui obrigado a ficar para trás. Mas Holmes estava sempre em forma, pois tinha estoques inesgotáveis de energia nervosa aos quais recorrer. Seu passo elástico nunca diminuía até que de repente, quando estava a uns 100 metros à minha frente, parou, e eu o vi erguer a mão num gesto de dor e desespero. No mesmo instante uma carruagem vazia, com o cavalo a meio galope, as rédeas caídas, apareceu na curva da estrada, avançando ruidosa e rapidamente na nossa direção.

– Tarde demais, Watson, tarde demais! – exclamou Holmes, enquanto eu corria ofegante para o seu lado. – Como eu fui idiota por não ter pensado no primeiro trem da manhã! Isto é rapto, Watson, rapto! Assassinato! Os céus sabem disso! Bloqueie a estrada! Pare o cavalo! Isso mesmo. Agora, pule para dentro e vamos ver se posso reparar as conseqüências do meu erro.

Tínhamos pulado para dentro da carruagem, e Holmes, depois de fazer virar o cavalo, deu-lhe uma chicotada e voamos de volta pela estrada. Ao fazermos a curva, todo o trecho da estrada entre o Hall e o campo estava vazio. Segurei o braço de Holmes.

– Aquele é o homem! – exclamei.

Um ciclista solitário vinha vindo em nossa direção. Sua cabeça estava abaixada e os ombros curvados, enquanto punha toda a sua energia nos pedais. Corria como um atleta. De repente, ergueu o rosto barbado, viu que estávamos bem perto e pulou fora do veículo. A barba negra contrastava estranhamente com a palidez do rosto, e seus olhos estavam brilhantes como se estivesse com febre. Olhou para nós e para a charrete. Então seu rosto mostrou uma expressão de espanto.

– Ei! Pare aí! – gritou ele, segurando sua bicicleta para bloquear nosso caminho. – Onde conseguiram essa charrete? Salte, homem! – gritou, tirando uma pistola de um bolso lateral. – Salte, já disse, ou meterei uma bala no seu cavalo.

Holmes jogou as rédeas no meu colo e pulou da charrete.

– Você é o homem que queríamos ver. Onde está a srta. Violet Smith? – disse com sua maneira rápida e clara.

– É o que pergunto a você. Está na charrete dela. Deve saber onde ela está.

– Encontramos a charrete na estrada. Não havia ninguém nela. Voltamos para ajudar a jovem.

– Bom Deus! Bom Deus! O que farei? – exclamou o estranho num acesso de desespero. – Eles a capturaram, aquele cão maldito Woodley e o vigário indecente. Venha, homem, venha, se é amigo dela de verdade. Siga-me e a salvaremos, mesmo que tenha de deixar minha carcaça na floresta de Charlington.

Correu enfurecido, de pistola na mão, para uma abertura na sebe. Holmes o seguiu, e eu, depois de deixar o cavalo pastando ao lado da estrada, fui atrás de Holmes.

– Foi por aqui que eles passaram – disse ele, apontando para as marcas de vários pés na trilha cheia de lama – Ei! Parem um instante! Quem é este na moita?

Era um garoto de cerca de 17 anos, vestido como moço de estrebaria, com tiras de couro e galochas. Estava deitado de costas, os joelhos para cima e um corte horrível na cabeça. Inconsciente, mas vivo. Uma olhada no ferimento me deu a certeza de que não havia penetrado o osso.

– Este é Peter, o rapaz da estrebaria! – exclamou o estranho. – Era ele que levava a moça. Os monstros o jogaram para fora e lhe deram pauladas. Deixem-no aí; não podemos ajudá-lo, mas podemos salvá-la do pior destino que uma mulher pode ter.

Corremos como loucos pela trilha, que passava por entre as árvores. Tínhamos chegado ao bosque que cercava a casa quando Holmes parou.

– Não foram para a casa. Aqui estão suas marcas para a esquerda – aqui, ao lado das moitas de louro. Ah! Exatamente como eu disse.

Quando falou, ouvimos um grito agudo de mulher – um grito que vibrava com um frenesi de horror – que vinha do amontoado de arbustos verdes e densos à nossa frente. Terminou repentinamente em sua nota mais alta, com um engasgo e um gorgolejo.

– Por aqui! Por aqui! Estão no campo de boliche! – exclamou o estranho, correndo por entre os arbustos. – Ah, cães covardes! Sigam-me, cavalheiros! Tarde demais! Tarde demais! Pelo amor de Deus!

Chegamos de repente a uma bonita clareira gramada circundada por árvores antigas. Na outra extremidade, sob a sombra de um enorme carvalho, estava um grupo de três pessoas. Uma delas era uma mulher, nossa cliente, curvada e pálida, um lenço tapando sua boca. Diante dela estava um jovem de bigode vermelho, brutal e de rosto cruel, as pernas com perneiras bem separadas, uma mão no quadril, a outra balançando o cabo de um chicote, e toda a sua atitude sugeria uma fanfarronice triunfante. Entre eles, um velho de barba cinza, vestindo uma sobrepeliz curta sobre um terno claro de tweed, tinha, evidentemente, celebrado a cerimônia de casamento, porque colocou no bolso o seu missal quando aparecemos, e dera um tapinha de congratulações nas costas do noivo sinistro.

– Estão casados? – gaguejei.

– Venham! – exclamou nosso guia; – venham! – Ele correu pela clareira, Holmes e eu atrás dele. Quando nos aproximamos, a mulher cambaleou até o tronco da árvore para se apoiar. Williamson, o ex-clérigo, inclinou a cabeça para nós com uma polidez irônica, e o pulha, Woodley, avançou para nós com uma sonora gargalhada, brutal e exultante.

– Pode tirar sua barba, Bob – disse. – Eu o conheço muito bem. Ora, você e seus amigos chegaram bem a tempo de apresentá-los à sra. Woodley.

A resposta do nosso guia foi singular. Tirou a barba escura que servia de disfarce e a jogou no chão, descobrindo um rosto comprido, moreno e barbeado. Então ergueu seu revólver e o apontou para o jovem valentão, que avançava para ele com o perigoso chicote balançando na mão.

– Sim – disse nosso aliado –, eu sou Bob Carruthers, e verei esta mulher livre mesmo que tenha de lutar por isso. Eu lhe disse o que faria se você a molestasse, e, por Deus!, cumprirei minha palavra.

– Está atrasado. Ela é minha esposa.

– Não, ela é sua viúva.

Seu revólver disparou, e vi o sangue jorrar da frente do colete de Woodley, que girou com um grito e caiu de costas; seu horrível rosto vermelho mudando repentinamente para uma manchada palidez mortal. O velho, ainda usando sua sobrepeliz, explodiu numa série de blasfêmias sórdidas como jamais ouvira, e puxou seu próprio revólver, mas antes que pudesse levantá-lo, estava olhando para o cano da arma de Holmes.

– Basta – disse meu amigo com frieza. – Largue essa pistola! Watson, pegue-a! Aponte-a para a cabeça dele! Obrigado. Você, Carruthers, dê-me esse revólver. Não teremos mais violência. Vamos, largue-o.

– Mas, quem são vocês?

– Meu nome é Sherlock Holmes.

– Meu Deus!

– Já ouviu falar de mim, pelo que vejo. Representarei a polícia oficial até que ela chegue. Aqui, você! – gritou para um amedrontado rapaz de estrebaria

que aparecera na extremidade da clareira. – Venha aqui. Leve este bilhete o mais depressa possível a Farnham. – Rabiscou algumas palavras numa folha de seu caderno. – Entregue-a ao superintendente na delegacia. Até que ele venha, devo deter todos vocês sob minha custódia pessoal.

A personalidade forte e imperiosa de Holmes dominou a trágica cena, e todos eram fantoches nas suas mãos. Williamson e Carruthers carregaram Woodley ferido até a casa, e dei o braço à moça amedrontada. O homem ferido foi deitado em sua cama, e eu o examinei a pedido de Holmes. Levei meu relatório até o lugar onde ele estava sentado, na velha sala de jantar decorada com tapeçarias, com os dois prisioneiros diante dele.

– Ele viverá – eu disse.

– O quê! – exclamou Carruthers, pulando da cadeira. – Vou até lá em cima acabar de vez com ele. Poderia me dizer se aquela garota, aquele anjo, ficará ligada a Jack Woodley para sempre?

– Não precisa se preocupar com isso – disse Holmes. – Existem duas boas razões para que ela não seja, sob quaisquer circunstâncias, esposa dele. Em primeiro lugar, podemos questionar o direito do sr. Williamson de realizar um casamento.

– Eu fui ordenado! – exclamou o velho patife.

– E também destituído.

– Uma vez sacerdote, sempre um sacerdote.

– Não acho. E sobre a licença?

– Nós tínhamos uma licença para o casamento. Está aqui, no meu bolso.

– Então a conseguiu por meio de trapaça. Mas, de qualquer modo, um casamento forçado não é um casamento, mas sim um delito muito grave, como descobrirá antes de haver terminado. Vai ter tempo para pensar no assunto nos próximos dez anos ou mais, se não me engano. E você, Carruthers, faria melhor se deixasse a sua pistola no bolso.

– Começo a achar que sim, sr. Holmes, mas quando penso em toda a preocupação que tive para protegê-la – pois eu a amava, sr. Holmes, e foi só aí que soube o que era o amor –, quase fico louco ao pensar que ela estava em poder do maior bruto e tirano da África do Sul – um homem cujo nome inspira um terror sagrado de Kimberley a Joanesburgo. Sr. Holmes, pode não acreditar, mas desde que aquela garota é minha empregada nunca deixei que ela passasse por esta casa, onde sabia que os patifes se escondiam, sem segui-la na minha bicicleta, só para ver que não lhe acontecia nada de mal. Mantive distância dela, usei uma barba para que não me reconhecesse, pois é uma menina bondosa e cheia de brio e não ficaria mais a meu serviço se soubesse que a estava seguindo pelas estradas do campo.

– Por que não lhe falou do perigo?

– Porque então, de novo, ela me deixaria e eu não agüentaria isso. Mesmo que não pudesse me amar, já era muito para mim apenas ver sua graciosa forma pela casa, e ouvir o som da sua voz.

– Bem – eu disse –, chama isso de amor, sr. Carruthers, mas eu o chamaria de egoísmo.

– Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. De qualquer modo, não podia deixá-la ir embora. Além disso, com essa turma por aí, era bom que ela tivesse alguém por perto para protegê-la. Então, quando o cabograma chegou, soube que eles estavam para fazer uma jogada.

– Que cabograma?

Carruthers tirou um papel do bolso.

– Aqui está – disse.

Era curto e conciso:


O velho está morto


–Hum! – disse Holmes. – Acho que sei como as coisas aconteceram, e posso entender como esta mensagem, como disse, os deixou loucos. Mas, enquanto espera, deve me contar o que puder.

O velho miserável de sobrepeliz explodiu numa enxurrada de termos ofensivos.

– Por Deus! – disse – se nos delatar, Bob Carruthers, farei com você o que fez com Jack Woodley. Você pode choramingar pela garota para satisfazer seu coração, isso é problema seu, mas se denunciar seus companheiros para esse detetive à paisana, vai ser a pior coisa que já fez.

– Vossa Reverência não precisa ficar excitado – disse Holmes acendendo um cigarro. – O caso está suficientemente claro contra você e tudo o que peço são alguns detalhes para satisfazer minha própria curiosidade. Contudo, se tiver dificuldade para me contar, eu falarei, e então verá quanta possibilidade tem de me esconder seus segredos. Em primeiro lugar, três de vocês vieram da África do Sul nesse jogo: você, Williamson, você, Carruthers, e Woodley.

– Mentira número um – disse o velho; – nunca vi nenhum deles até dois meses atrás e nunca estive na África na minha vida; portanto, ponha isso em seu cachimbo e fume-o, sr. Abelhudo Holmes!

– O que ele diz é verdade – observou Carruthers.

– Ora, ora, dois de vocês vieram. O Reverendíssimo é artigo caseiro. Vocês conheceram Ralph Smith na África do Sul. Tinham motivo para acreditar que ele não viveria por muito tempo. Descobriram que sua sobrinha herdaria a fortuna dele. Que tal, hein?

Carruthers assentiu com a cabeça e Williamson praguejou.

– Ela era parente próxima, sem dúvida, e vocês sabiam que o velho não faria nenhum testamento.

– Não podia ler nem escrever – disse Carruthers.

– De modo que vocês vieram, dois de vocês, e procuraram a garota. A idéia era que um se casaria com ela e o outro teria uma parte da pilhagem. Por algum motivo, Woodley foi escolhido como marido. Por que foi?

– Ela foi disputada num jogo de cartas durante a viagem. Ele ganhou.

– Certo. Você contratou a garota e lá na sua casa Woodley faria a corte. Ela percebeu o bruto bêbado que ele era, e nunca se interessaria por ele. Enquanto isso, a combinação foi atrapalhada pelo fato de que você se apaixonara pela moça. Não podia mais suportar a idéia de que esse valentão a conquistasse?

– Não, por Deus, não podia.

– Houve uma discussão entre vocês dois. Ele ficou furioso e começou a fazer os seus próprios planos.

– Fico impressionado, Williamson, porque não há muita coisa para contarmos a este cavalheiro – exclamou Carruthers com uma risada amarga. – Sim, discutimos e ele me bateu. Mas nisso estou no mesmo nível que ele. Depois, eu o perdi de vista. Foi quando se juntou a este padre renegado aqui. Descobri que se instalaram neste lugar, bem no caminho da garota para a estação. Fiquei de olho nela depois disso, pois havia maldade no ar. Eu os via de vez em quando, porque estava ansioso para saber o que tramavam. Dois dias atrás, Woodley foi à minha casa com este telegrama, que me fez ver que Ralph Smith estava morto. Perguntou se eu continuaria com o negócio. Eu disse que não. Perguntou se eu queria me casar com a garota e lhe dar uma parte do dinheiro. Respondi que o faria com prazer mas que ela não me queria. Ele disse: “Deixe-nos casar primeiro, e depois de uma semana ou duas ela estará vendo as coisas de um modo diferente.” Eu disse que não queria saber de violência. Então ele foi embora praguejando, como o cafajeste de boca suja que era, e jurando que ainda a possuiria. Ela ia embora neste fim de semana, e consegui uma charrete para levá-la à estação, mas estava tão inquieto que a segui de bicicleta. Mas ela já partira e, antes de conseguir alcançá-la, o mal já havia sido feito. O primeiro sinal que tive sobre isso foi quando vi os dois cavalheiros de volta com sua carruagem.

Holmes levantou-se e jogou a ponta do cigarro na lareira.

– Fui muito estúpido, Watson – disse. – Quando, no seu relatório, você disse que vira um ciclista, e o vira ajeitando a gravata nas moitas, só isto deveria ter sido suficiente para mim. Contudo, podemos nos congratular por um caso curioso e, em alguns aspectos, único. Vejo três dos policiais no caminho, e fico contente de saber que o rapazinho da estrebaria está apto a acompanhá-los; portanto, é provável que nem ele nem o interessante noivo estejam prejudicados para sempre por suas aventuras desta manhã. Creio, Watson, que na sua qualidade de médico, deve ir ver a srta. Smith e lhe dizer que, se estiver suficientemente recuperada, teremos prazer em escoltá-la até a casa de sua mãe. Se não, descobrirá que a insinuação de que estamos para telegrafar para um jovem eletricista em Midlands completará a cura. E o senhor, Carruthers, creio que fez o que podia para redimir-se da sua participação numa trama perversa. Aqui está o meu cartão, senhor, e se o meu depoimento puder ajudá-lo no julgamento, estará à sua disposição.

No tumulto de nossa atividade incessante, tem sido em geral difícil para mim, como o leitor provavelmente observou, rematar minhas narrativas, e dar aqueles detalhes finais que um curioso esperaria. Cada caso tem sido o prelúdio de outro, e depois de acabada a crise, seus atores saem para sempre de nossas vidas atribuladas. Entretanto, descobri uma nota curta no final de meu manuscrito sobre este caso, na qual registrei que a srta. Violet Smith herdou realmente uma grande fortuna, e que ela é agora a esposa de Cyril Morton, sócio principal de Morton & Kennedy, os famosos eletricistas de Westminster. Williamson e Woodley foram condenados por rapto e tentativa de agressão, o primeiro pegando sete anos e o outro, dez. Sobre o destino de Carruthers não tenho registro, mas estou certo de que sua agressão não foi considerada muito grave pelo tribunal, já que era Woodley quem tinha fama de ser um valentão muito perigoso, e acho que alguns meses foram suficientes para satisfazer a necessidade de justiça.

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