a aventura da priory school

Tivemos algumas entradas e saídas dramáticas em nosso pequeno palco da Baker Street, mas não me lembro de nada mais repentino e surpreendente que a primeira aparição de Thorneycroft Huxtable, M. A., PhD, etc. Seu cartão, que parecia pequeno demais para carregar o peso de suas distinções acadêmicas, chegou alguns segundos antes dele, e então ele mesmo entrou – tão forte, pomposo e sério que era a própria personificação do autocontrole e da solidez. Mesmo assim, a primeira coisa que fez depois que a porta se fechou atrás dele foi cambalear até a mesa e dali escorregou para o chão – e lá estava aquela figura majestosa prostrada e inconsciente sobre nosso tapete de pele de urso.

Nós nos levantamos, e por alguns instantes olhamos com silenciosa surpresa para aquele pesado monte de ruínas que revelava alguma tempestade repentina e fatal lá longe, no oceano da vida. Então Holmes veio com uma almofada para a sua cabeça

e eu com brandy para os seus lábios. O rosto branco e abatido estava marcado por linhas de preocupação, as bolsas salientes sob os olhos fechados eram cor de chumbo, os cantos da boca estavam caídos, o queixo roliço por barbear. O colarinho e a camisa mostravam a sujeira de uma viagem longa, e o cabelo eriçava-se despenteado na cabeça bem formada. Era um homem cruelmente ferido que jazia à nossa frente.

– O que é isso, Watson? – perguntou Holmes.

– Absoluta exaustão; possivelmente apenas fadiga e fome – eu disse, com o dedo no pulso delgado, onde a corrente da vida fluía lenta e frágil.

– Passagem de volta de Mackleton, no norte da Inglaterra – disse Holmes, tirando-a do bolso do relógio. – Ainda não é meio-dia. Com certeza ele gosta de chegar mais cedo.

As pálpebras franzidas começaram a tremer, e agora um par de olhos cinzentos inexpressivos estava olhando para nós. Um momento depois o homem se levantou com dificuldade, o rosto rubro de vergonha.

– Perdoe-me esta fraqueza, sr. Holmes, tenho estado um pouco sobrecarregado. Agradeceria se me dessem um copo de leite e biscoitos, não tenho dúvida de que vou melhorar. Vim pessoalmente, sr. Holmes, para garantir que voltaria comigo. Receava que nenhum telegrama o convenceria da absoluta urgência do caso.

– Quando estiver completamente recuperado...

– Já estou bem de novo. Não posso entender como fiquei tão fraco. Gostaria, sr. Holmes, que viesse comigo a Mackleton no próximo trem.

Meu amigo balançou a cabeça.

– Meu colega, dr. Watson, poderia lhe dizer que estamos muito ocupados no momento. Estou trabalhando neste caso dos Documentos Ferrers, e o assassinato de Abergavenny está indo a julgamento. Somente algo muito importante me tiraria de Londres no momento.

– Importante! – Nosso visitante jogou as mãos para o alto. – Não ouviu nada sobre o rapto do filho único do duque de Holdernesse?

– O quê!, o ex-ministro do gabinete?

– Exatamente. Tentamos manter isso fora dos jornais, mas houve alguns rumores no Globe da noite passada. Pensei que pudessem ter chegado aos seus ouvidos.

Holmes estendeu o braço magro e longo e pegou o volume “H” em sua enciclopédia de referências.

– “Holdernesse, sexto duque, K.G., P.C.”, metade do alfabeto! “barão Beverley, conde de Carston”. Meu Deus, que lista! “Governador do condado de Hallamshire desde 1900. Casou-se com Edith, filha de sir Charles Appledore, em 1888. Herdeiro e filho único, lorde Saltire; proprietário de cerca de 250 acres. Minérios em Lancashire e Gales. Endereços: Carlton House Terrace; Holdernesse Hall, Hallamshire; Castelo Carston, Bangor, Gales. Ministro da Marinha em 1872; secretário-geral de Estado por...” Ora, ora, este homem é com certeza um dos grandes da Coroa!

– O maior e talvez o mais rico. Estou sabendo, sr. Holmes, que o senhor mantém um nível muito elevado em assuntos profissionais, e que está preparado para trabalhar apenas pelo amor ao trabalho. Entretanto, posso lhe dizer que Sua Graça já me notificou que um cheque de 5 mil libras será dado à pessoa que puder dizer-lhe onde está seu filho, e outras 1.000 a quem puder lhe informar o nome do homem ou homens que o pegaram.

– É uma oferta principesca – disse Holmes. – Watson, creio que devemos acompanhar o dr. Huxtable de volta ao norte da Inglaterra. E agora, dr. Huxtable, depois que tiver tomado aquele leite, vai me dizer, por gentileza, o que aconteceu, quando, como e, finalmente, o que o dr. Huxtable, da Priory School, perto de Mackleton, tem a ver com o caso, e por que só vem três dias depois do acontecimento – o estado de seu queixo mostra a data – para pedir meus humildes serviços.

Nosso visitante tomara o leite com biscoitos. A luz voltara aos seus olhos e a cor à sua face, enquanto se sentava com grande vigor e lucidez para explicar a situação.

– Devo informá-los, cavalheiros, que a Priory é uma escola preparatória da qual sou fundador e diretor. Huxtable’s Sidelights on Horace talvez possa lembrar-lhes o meu nome. Sem exceção, a Priory é a melhor e a mais seleta escola preparatória da Inglaterra. Lorde Leverstoke, o conde de Blackwater, sir Cathcart Soames – todos me confiaram seus filhos. Mas eu senti que minha escola atingira o seu auge quando, há três semanas, o duque de Holdernesse enviou o sr. James Wilder, seu secretário, para me comunicar que o jovem lorde Saltire, de 10 anos, seu único filho e herdeiro, ia ser confiado aos meus cuidados. Eu estava longe de pensar que isto seria o prelúdio da mais arrasadora desgraça da minha vida.

– O rapaz chegou no dia 1o de maio, o começo do período de verão. Era um jovem encantador, e logo conquistou nossas boas graças. Devo dizer-lhe – acho que não estou sendo indiscreto, mas meias confidências são absurdas num caso assim – que ele não era inteiramente feliz em casa. Não é segredo que a vida de casado do duque não era pacífica, e terminou numa separação por consentimento mútuo, e a duquesa fixou residência no sul da França. Isto havia ocorrido pouco tempo antes, e sabe-se que o garoto ficou muito solidário com a mãe. Depois da saída dela de Holdernesse Hall ficou abatido, e foi por esse motivo que o duque o mandou para o meu estabelecimento. Em duas semanas o rapaz sentia-se em casa conosco e, aparentemente, estava muito feliz.

– Ele foi visto pela última vez na noite de 13 de maio, ou seja, na noite da última segunda-feira. Seu quarto era no segundo andar e chegava-se lá por um outro aposento grande, onde dois garotos dormiam. Esses garotos não viram nem ouviram nada, de modo que é certo que o jovem Saltire não saiu por esse caminho. Sua janela estava aberta, e há uma hera resistente que vai até o chão. Não podia deixar pegadas lá embaixo, mas com certeza é a única saída possível.

– Seu desaparecimento foi descoberto às sete horas de terça-feira. A cama estava desarrumada. Tinha se vestido, antes de se ir, com o uniforme habitual do colégio, de jaqueta preta do Eton e calças cinza-escuro. Não havia sinais de que alguém tivesse entrado no quarto, e é certo que nada como gritos ou luta foi ouvido, já que Caunter, o rapaz mais velho do quarto ao lado, tem um sono muito leve.

– Quando o desaparecimento de lorde Saltire foi descoberto, imediatamente convoquei todo mundo do colégio – rapazes, professores e empregados. Foi então que constatamos que lorde Saltire não fugira sozinho. Heidegger, o professor alemão, sumira. Seu quarto ficava no segundo andar, na extremidade mais afastada da casa, do mesmo lado que o do lorde. Sua cama também estava desarrumada, mas aparentemente foi embora só meio vestido, porque sua camisa e suas meias estavam no chão. Sem dúvida desceu pela hera, já que podíamos ver suas pegadas no ponto em que chegou ao canteiro. Sua bicicleta estava guardada num pequeno depósito perto desse canteiro, e também desaparecera.

– Estava comigo há dois anos e veio com as melhores referências, mas era um homem silencioso, fechado, não muito popular entre professores ou alunos. Não se conseguiu achar nenhum vestígio dos fugitivos, e agora, na manhã de quinta-feira, não sabemos mais do que na terça. É claro que foi feita logo uma investigação em Holdernesse Hall. Fica a apenas alguns quilômetros, e pensamos que, num súbito ataque de saudades de casa, ele voltara para seu pai, mas ninguém sabia dele. O duque está muito agitado e, quanto a mim, vocês viram por si mesmos o estado de esgotamento nervoso a que o suspense e a responsabilidade me reduziram. Sr. Holmes, se ainda não usou todos os seus talentos, imploro-lhe que o faça agora, pois nunca em sua vida teve um caso que merecesse tanto sua utilização.

Sherlock Holmes ouvira com o maior interesse o relato do infeliz diretor de escola. Suas sobrancelhas contraídas e a profunda ruga entre elas demonstravam que não precisava de nenhuma exortação para se concentrar num problema que, além dos grandes interesses envolvidos, apelava tão diretamente para seu amor às coisas complexas e incomuns. Ele puxou seu caderno de notas e escreveu um ou dois lembretes.

– O senhor foi muito negligente por não ter vindo me procurar mais cedo – ele disse com seriedade. – Recorreu à minha investigação com uma desvantagem muito grave. É inconcebível, por exemplo, que essa hera e o canteiro não tivessem fornecido nada a um observador experiente.

– Não pode me censurar, sr. Holmes. Sua Graça queria muito evitar qualquer escândalo público. Receava que a infelicidade de sua família fosse mostrada ao mundo. Tem um horror profundo de qualquer coisa desse tipo.

– Mas houve alguma investigação oficial?

– Sim, senhor, e foi decepcionante. Uma pista provável foi obtida, já que soubemos que um garoto e um homem jovem foram vistos saindo de uma estação vizinha pelo trem da manhã. Somente na noite passada tivemos a notícia de que a dupla foi encontrada em Liverpool, e ficou provado que não tinham nenhuma ligação com o caso. Foi então, em meu desespero e desapontamento, após uma noite em claro, que vim direto ao senhor, no primeiro trem da manhã.

– Suponho que a investigação local foi relaxada enquanto se seguia essa pista falsa?

– Foi abandonada por completo.

– De modo que perdemos três dias. O caso foi conduzido da maneira mais deplorável.

– Também acho e concordo.

– Ainda assim o problema deve ter uma solução definitiva. Ficaria muito feliz em poder encontrá-la. Pode fazer alguma ligação entre o rapaz e esse professor alemão?

– Nenhuma.

– Ele estava na turma desse professor?

– Não, nunca trocou uma palavra com ele, pelo que sei.

– Isso certamente é muito estranho. O garoto tinha uma bicicleta?

– Não.

– Alguma outra bicicleta estava faltando?

– Não.

– Tem certeza?

– Absoluta.

– Bem, não sugere seriamente que o alemão foi embora na calada da noite com sua bicicleta, levando o garoto nos braços?

– Claro que não.

– Então qual é a sua teoria a respeito?

– A bicicleta pode ter sido uma simulação. Pode ter sido escondida em algum outro lugar, e os dois foram embora a pé.

– Pode ser, mas parece uma simulação um tanto absurda, não? Existem outras bicicletas no depósito?

– Muitas.

– Ele não teria escondido um par, se desejasse dar a impressão de que foram embora com elas?

– Suponho que esconderia.

– Claro que esconderia. A teoria da simulação não funciona. Mas o incidente é um excelente ponto de partida para uma investigação. Afinal, uma bicicleta não

é uma coisa fácil de se esconder ou destruir. Uma outra pergunta. Ninguém veio visitar o rapaz no dia anterior ao seu desaparecimento?

– Não.

– Recebeu alguma carta?

– Sim, uma carta.

– De quem?

– De seu pai.

– O senhor abre as cartas dos garotos?

– Não.

– Como sabe que era do pai dele?

– O brasão estava no envelope, sobrescritado na caligrafia firme e característica do duque. Além disso, o duque se lembra de tê-la escrito.

– Quando recebeu outra carta antes dessa?

– Nenhuma durante vários dias.

– Ele recebeu alguma vez carta da França?

– Não, nunca.

– O senhor vê o objetivo das minhas perguntas, é claro. Ou o garoto foi levado à força ou fugiu por vontade própria. Neste último caso, espera-se que algum estímulo vindo de fora seja necessário para que um rapaz tão jovem faça uma coisa assim. Se não recebeu nenhuma visita, então esse estímulo deve ter vindo por carta, e por isso estou tentando descobrir com quem ele se correspondia.

– Receio não poder ajudá-lo muito. Pelo que sei, a única pessoa que escrevia para ele era o próprio pai.

– Que escreveu para ele no mesmo dia de seu desaparecimento. As relações entre pai e filho eram amigáveis?

– Sua Graça nunca é muito simpático com ninguém. Está completamente envolvido em grandes questões públicas, e é inacessível a todas as emoções comuns. Mas era sempre carinhoso com o menino, à sua maneira.

– Mas o garoto não estava solidário com a mãe?

– Sim.

– Ele disse isso?

– Não.

– O duque, então?

– Meu Deus, não!

– Então como o senhor podia saber?

– Tive algumas conversas confidenciais com o sr. James Wilder, secretário de Sua Graça. Foi ele quem me deu informações sobre os sentimentos de lorde Saltire.

– Sei. Falando nisso, essa última carta do duque – foi encontrada no quarto do rapaz, depois que ele foi embora?

– Não, ele a levou consigo. Creio, sr. Holmes, que já é hora de irmos para Euston.

– Vou chamar uma carruagem. Em 15 minutos estaremos à sua disposição. Se está telegrafando para casa, sr. Huxtable, seria melhor deixar que as pessoas na sua vizinhança pensem que a investigação ainda continua sendo feita em Liverpool ou qualquer outro lugar que imaginar. Enquanto isso, farei um trabalhinho discreto em sua própria casa, e talvez a pista não esteja tão fria que dois velhos perdigueiros como eu e Watson não possamos segui-la.

Aquela noite nos encontrou na atmosfera fria e envolvente da região do Peak, onde ficava o famoso colégio do dr. Huxtable. Já estava escuro quando chegamos lá. Havia um cartão na mesa do saguão, e o mordomo sussurrou alguma coisa para o seu patrão, que se virou para nós bastante agitado.

– O duque está aqui – disse. – Ele e o sr. Wilder estão no escritório. Venham, cavalheiros, e os apresentarei.

Eu já estava, é claro, familiarizado com as fotografias do famoso homem de estado, mas em pessoa ele era muito diferente do seu retrato. Era um indivíduo alto e solene, vestido com capricho, com um rosto magro e bem desenhado, e um nariz grotescamente curvo e longo. A pele era de uma palidez mortal, contrastando com a barba longa e afilada, de um vermelho vivo, que descia pelo colete branco, com a corrente do relógio brilhando pela abertura. Essa era a figura majestosa que nos olhava com firmeza do centro do tapete de pele do dr. Huxtable. A seu lado estava um homem muito jovem, que imaginei tratar-se de Wilder, o secretário particular. Era baixo, nervoso e alerta, com olhos azuis inteligentes e traços expressivos. Foi ele quem começou logo a conversa, num tom incisivo e positivo.

– Cheguei esta manhã, dr. Huxtable, tarde demais para impedi-lo de partir para Londres. Soube que o seu objetivo era convidar o sr. Sherlock Holmes a assumir a condução deste caso. Sua Graça está surpreso, dr. Huxtable, com o fato de o senhor ter tomado tal atitude sem consultá-lo.

– Quando soube que a polícia havia falhado...

– Sua Graça não está convencido de que a polícia falhou.

– Mas certamente, sr. Wilder...

– Está ciente, dr. Huxtable, de que Sua Graça está particularmente ansioso para evitar qualquer escândalo público. Prefere ter o menor número possível de pessoas sabendo do seu segredo.

– Isso pode ser facilmente remediado – disse o intimidado doutor –; o sr. Sherlock Holmes pode voltar a Londres pelo primeiro trem da manhã.

– Dificilmente, doutor, dificilmente – disse Holmes, com sua voz mais suave. – Este ar do norte é agradável e revigorante, de modo que proponho passar alguns dias em seu território, e ocupar minha mente da melhor maneira possível. Se me hospedarei sob o seu teto ou no hotel da vila, certamente é o senhor quem vai decidir.

Eu podia perceber que o infeliz doutor estava no último grau de indecisão, do qual foi arrancado pela voz sonora e profunda do duque de barba vermelha, que soou como um gongo.

– Concordo com o sr. Wilder, dr. Huxtable, que seria melhor ter me consultado. Mas já que o sr. Holmes é de sua confiança, seria absurdo não nos beneficiarmos de seus serviços. Longe de ir para o hotel, sr. Holmes, seria um prazer se viesse se hospedar comigo em Holdernesse Hall.

– Agradeço a Sua Graça. Para o objetivo da minha investigação, creio que é melhor para mim ficar no local do mistério.

– Como queira, sr. Holmes. Qualquer informação que eu ou o sr. Wilder possamos lhe fornecer está, é claro, à sua disposição.

– Talvez seja necessário visitá-lo no Hall – disse Holmes. – Gostaria apenas de lhe perguntar agora, senhor, se chegou a pensar em alguma explicação para o misterioso desaparecimento do seu filho?

– Não, senhor, nenhuma.

– Desculpe-me por aludir a algo tão doloroso para o senhor, mas não tenho alternativa. Acha que a duquesa tem alguma coisa a ver com o caso?

O grande ministro mostrou uma hesitação perceptível.

– Não creio – disse por fim.

– A outra explicação óbvia é que o garoto foi raptado com o objetivo de se pedir resgate. Não recebeu nenhum pedido deste tipo?

– Não, senhor.

– Mais uma pergunta, Sua Graça. Soube que o senhor escreveu a seu filho no dia em que esse incidente ocorreu.

– Não, escrevi um dia antes.

– Exato. Mas ele a recebeu no dia seguinte?

– Sim.

– Havia algo em sua carta que poderia tê-lo abalado ou induzido a tomar essa atitude?

– Não, senhor, certamente que não.

– O senhor mesmo pôs a carta no correio?

A resposta do nobre foi interrompida pelo seu secretário, que falou com certa irritação.

– Sua Graça não tem o hábito de mandar as cartas pessoalmente – disse. – Essa carta foi deixada com outras em cima da escrivaninha, e eu mesmo as coloquei na mala postal.

– Tem certeza de que ela estava entre as outras?

– Sim, observei isso.

– Quantas cartas Sua Graça escreveu naquele dia?

– Vinte ou trinta. Tenho um grande volume de correspondência. Mas isso certamente é irrelevante.

– Não inteiramente – disse Holmes.

– De minha parte – continuou o duque – aconselhei a polícia a desviar sua atenção para o sul da França. Já disse que não creio que a duquesa incentivasse um ato tão monstruoso, mas o rapaz tinha umas opiniões muito erradas, e é possível que tenha fugido para ela, ajudado e instigado por esse alemão. Acho, dr. Huxtable, que podemos voltar agora para o Hall.

Eu podia perceber que Holmes ainda queria fazer outras perguntas, mas os modos ríspidos do nobre mostravam que a entrevista estava no fim. Era evidente que, para a sua natureza aristocrática, essa discussão sobre assuntos familiares íntimos com um estranho era muito desagradável e que ele temia que qualquer nova pergunta lançasse uma luz mais intensa nos recantos discretamente sombrios de sua história ducal.

Depois que o nobre e seu secretário saíram, meu amigo lançou-se com sua energia típica à investigação.

Os aposentos do garoto foram examinados com cuidado, o que não levou a nada, a não ser à absoluta convicção de que a única saída era pela janela. O quarto e os bens do professor alemão não forneceram outras pistas. No caso dele, a trilha na hera foi provocada pelo seu peso, e vimos, à luz de uma lanterna, a marca no canteiro onde seus pés tocaram o chão. Esta marca na grama verde e curta era a única testemunha material deixada nesta inexplicável fuga noturna.

Sherlock Holmes saiu da casa sozinho e só voltou depois das 23 horas. Obtivera um grande mapa topográfico da área, e o levou ao meu quarto, onde o abriu em cima da cama, e, depois de colocar a luz do abajur diretamente sobre seu centro, começou a examiná-lo, apontando de vez em quando para algum lugar de interesse com a parte fumegante, cor de âmbar, do seu cachimbo.

– Este caso me interessa cada vez mais, Watson – disse. – Decididamente existem pontos interessantes ligados a ele. Neste estágio inicial, quero que veja estas características geográficas que podem ter muito a ver com nossa investigação.

– Olhe este mapa. Este quadro escuro é a Priory School. Colocarei um ponto sobre ele. Agora, esta linha é a estrada principal. Veja que depois do colégio ela vai para leste e para oeste, e também que não existem estradas secundárias por mais de 1 quilômetro, nos dois sentidos. Se esses dois foram embora pela estrada, foi por esta estrada.

– Exatamente.

– Por um acaso feliz e singular, podemos verificar até certo ponto o que passou por esta estrada na noite em questão. Neste lugar, onde está agora meu cachimbo, um policial estava de guarda da meia-noite às seis horas. É, como vê, o primeiro cruzamento para leste. Este homem diz que não se ausentou do posto por um instante sequer, e garante que nem o garoto nem o homem poderiam ter passado por ali sem serem vistos. Falei com o policial esta noite, e me pareceu ser uma pessoa confiável. Isso fecha esta saída. Temos agora que lidar com a outra. Há uma hospedaria aqui, a Red Bull, cuja proprietária está doente. Ela chamou um médico em Mackleton, mas ele só chegou pela manhã, pois estava fora, num outro caso. O pessoal do hotel ficou alerta a noite toda, esperando a chegada dele, e um ou outro estava sempre de olho na estrada. Afirmaram que ninguém passou. Se o depoimento deles é verdadeiro, então podemos bloquear o oeste, e também estamos em condições de afirmar que os fugitivos não usaram a estrada de maneira nenhuma.

– Mas, e a bicicleta? – objetei.

– Perfeitamente. Chegaremos já na bicicleta. Continuando nosso raciocínio: se estas pessoas não foram pela estrada, devem ter cruzado o campo para o norte ou para o sul da casa. Isso é certo. Vamos comparar um e outro. Ao sul da casa, como vê, há um terreno grande de terra arável, cortado em campos pequenos, com muros de pedra entre eles. Aqui, admito que uma bicicleta é impossível. Podemos descartar a idéia. Vejamos o norte do terreno. Aqui há um bosque, chamado Ragged Shaw, e do lado mais distante há um pântano grande e ondulado, Lower Gill Moor, que se estende por 10 quilômetros e se eleva gradualmente. Aqui, num lado dessa região isolada, está Holdernesse Hall, a pouco mais de 10 quilômetros pela estrada, mas a apenas 6 pelo pântano. É uma planície particularmente desolada. Alguns fazendeiros têm pequenos terrenos, onde criam ovelhas e gado bovino. À exceção destes, as aves e os maçaricos são os únicos habitantes até que se chegue à estrada principal de Chesterfield. Há uma igreja ali, alguns chalés e um hotel. Depois dali os precipícios tornam-se mais íngremes. Com certeza é aqui para o norte que a nossa busca deve seguir.

– Mas e a bicicleta? – insisti.

– Ora, ora! – disse Holmes com impaciência. – Um bom ciclista não precisa de uma auto-estrada. A planície é cortada por trilhas e era lua cheia. Ei, o que é isso?

Houve uma batida nervosa na porta e logo depois o dr. Huxtable estava dentro do quarto. Segurava um boné de críquete azul com um distintivo branco no alto.

– Afinal temos uma pista! – exclamou. – Graças a Deus! Finalmente estamos na trilha do pobre garoto! Este é o seu boné.

– Onde foi encontrado?

– Numa carroça de ciganos que acamparam na planície. Foram embora na terça-feira. Hoje a polícia os alcançou e examinou a caravana. Encontrou isto.

– Como explicam isso?

– Esquivaram-se e mentiram: disseram que o encontraram no campo na terça de manhã. Eles sabem onde ele está, os patifes! Graças a Deus estão todos trancafiados. O medo da lei ou o dinheiro do duque certamente arrancarão deles tudo o que sabem.

– Até aqui tudo bem – disse Holmes quando o doutor finalmente saiu do quarto. – Pelo menos confirma a teoria de que é para o lado de Lower Gill Moor que devemos esperar resultados. A polícia não fez nada realmente no local, a não ser a prisão desses ciganos. Olhe aqui, Watson! Há um rio que corta o campo. Você o vê marcado aqui no mapa. Em alguns trechos se alarga num brejo. Está exatamente na região entre Holdernesse Hall e o colégio. É inútil procurar pegadas em outro lugar neste tempo seco, mas naquele ponto certamente há uma possibilidade de ter sido deixada alguma marca. Eu o chamarei amanhã bem cedo e tentaremos esclarecer alguma coisa desse mistério.

O dia estava começando a clarear quando acordei e vi a figura alta e magra de Holmes à minha cabeceira. Já estava todo vestido e, aparentemente, havia saído antes.

– Dei uma olhada no canteiro e no depósito das bicicletas – disse. – Também dei uma voltinha por Ragged Shaw. Agora, Watson, há chocolate pronto no quarto ao lado. Devo pedir-lhe que se apresse, pois temos um grande dia pela frente.

Seus olhos brilhavam e seu rosto estava corado com a satisfação do mestre-de-obras que vê o trabalho pronto à sua frente. Um Holmes muito diferente, este homem ativo e alerta, do sonhador introspectivo e pálido de Baker Street. Ao olhar para aquela figura ágil, sustentado por uma energia nervosa, senti que era um dia realmente ativo o que nos esperava.

Mas tivemos a maior decepção. Com grandes esperanças, andamos pelo campo avermelhado e turfoso, cortado por milhares de trilhas de ovelhas até que chegamos no trecho verde-claro e largo que assinalava o pântano entre nós e Holdernesse. Se o menino tivesse ido para casa, certamente teria de passar por ali, e não podia passar sem deixar vestígios. Mas nenhum sinal dele ou do alemão podia ser visto. Com o rosto sombrio, meu amigo vasculhava a margem observando atentamente cada mancha na superfície musgosa. Havia pegadas de ovelhas em profusão, e num ponto, alguns quilômetros abaixo, vacas deixaram suas marcas. Nada mais.

– Verificação número 1 – disse Holmes, olhando com tristeza para a extensão ondulante do campo. – Há um outro brejo mais abaixo e uma passagem estreita no meio. Ora viva! O que temos aqui?

Tínhamos chegado a uma pequena faixa preta de trilha. No meio dela, claramente marcada no solo fofo, estavam as marcas de uma bicicleta.

– Hurrah! – exclamei. – Conseguimos.

Mas Holmes estava balançando a cabeça e seu rosto mostrava mais confusão e expectativa do que alegria.

– Uma bicicleta, certamente, mas não a bicicleta – disse. – Conheço 42 impressões diferentes deixadas por pneus. Este, como vê, é um Dunlop, com um remendo na parte externa. Os pneus de Heidegger eram Palmer, que deixam listras longitudinais. Aveling, o professor de matemática, estava certo sobre isso. Portanto, não é o rastro de Heidegger.

– Do garoto, então?

– Possivelmente, se pudermos provar que ele estava com uma bicicleta. Mas falhamos completamente nisso. Esta trilha, como se percebe, foi feita por alguém que vinha da direção da escola.

– Ou na direção dela?

– Não, não, meu caro Watson. A marca mais profunda é claramente a da roda traseira, sobre a qual todo o peso se apóia. Percebemos vários pontos onde ela cruzou e modificou a marca menos funda da roda dianteira. Sem dúvida estava se afastando do colégio. Pode ou não ter alguma ligação com a nossa busca, mas nós a seguiremos para trás, antes de irmos mais adiante.

Fizemos isso, e após algumas centenas de metros perdemos as pistas, quando saímos da porção pantanosa do campo. Seguindo a trilha para trás, chegamos em outro local, cortado por um curso d’água. Aqui, mais uma vez, estava a marca da bicicleta, embora quase apagada pelos cascos de vacas. Depois disso, não havia mais sinal, mas a trilha ia direto para Ragged Shaw, o bosque que dava nos fundos do colégio. A bicicleta deve ter saído deste bosque. Holmes sentou-se numa pedra e apoiou o queixo nas mãos. Fumei dois cigarros antes que ele se movesse.

– Ora, ora – disse ele por fim. – É possível, claro, que um homem esperto tenha trocado os pneus de sua bicicleta para não deixar marcas conhecidas. O criminoso que for capaz de um raciocínio desses é o homem com o qual eu ficaria orgulhoso de trabalhar. Deixaremos esta questão em suspenso e voltaremos para o nosso brejo, pois há muita coisa para ser explorada.

Continuamos nossa pesquisa sistemática da borda da parte encharcada do pântano e logo nossa perseverança foi gloriosamente recompensada. Do outro lado da parte mais baixa do lodaçal havia uma trilha pantanosa. Holmes deu um grito de satisfação ao chegar mais perto. Uma impressão igual a uma fina tira de telégrafo passava bem no centro dela. Eram os pneus Palmer.

– Aqui está Herr Heidegger, com certeza! – exclamou Holmes, exultante. – Meu raciocínio parece ter sido correto, Watson.

– Dou-lhe meus parabéns.

– Mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Ande com cuidado fora da trilha. Agora vamos seguir as marcas. Creio que não nos levarão muito longe.

Mas descobrimos, enquanto avançávamos, que esta parte do pântano é intercalada de partes macias e, embora perdêssemos com freqüência a trilha de vista, sempre conseguíamos encontrá-la de novo.

– Está notando – disse Holmes – que o ciclista está agora aumentando o ritmo? Não há dúvida. Olhe esta marca, em que temos os dois pneus nítidos. Um está tão fundo quanto o outro. Isso só pode significar que o ciclista está jogando todo o peso sobre o guidom, como um homem faz quando está correndo. Por Deus! Ele caiu.

Havia um borrão largo e irregular cobrindo alguns metros da trilha. Então havia algumas pegadas, e o reaparecimento dos pneus.

– Uma derrapagem – sugeri.

Holmes segurou um galho esmagado de tojo em flor. Vi com horror que as flores amarelas estavam todas manchadas de vermelho. Na trilha, e também entre as urzes, havia manchas escuras de sangue coagulado.

– Mau! – disse Holmes. – Mau! Olhe bem, Watson! Nem uma passada desnecessária! O que vemos aqui? Ele caiu ferido, levantou-se, montou de novo e continuou. Mas não existem outras marcas. Gado nesta outra trilha. Não terá sido atingido por um touro? Impossível! Mas não vejo pegadas de mais ninguém. Devemos continuar, Watson. Certamente com manchas, além da trilha, para nos guiar, ele não pode nos escapar agora.

Nossa busca não foi muito longa. As marcas dos pneus começaram a fazer curvas fantásticas na trilha molhada e brilhante. De repente, ao olhar para diante, vi o brilho de metal por entre os tufos de tojo. De lá tiramos uma bicicleta, com pneus Palmer, um dos pedais amassado, e toda a parte dianteira horrivelmente lambuzada e babada de sangue. Do outro lado dos arbustos, aparecia um sapato. Demos a volta, e lá estava o infeliz ciclista. Era um homem alto, com uma barba grande e óculos, sem uma das lentes que devia ter caído. A causa de sua morte era um horrível golpe na cabeça, que partiu o crânio. O fato de ele ter conseguido continuar depois de receber um golpe assim revelava sua vitalidade e coragem. Estava de sapatos, mas sem meias, e seu casaco aberto mostrava uma camiseta de dormir por baixo. Era sem dúvida o professor alemão.

Holmes desvirou o corpo com cuidado e o examinou com muita atenção. Depois sentou-se pensativo por algum tempo, e eu podia ver pelas sobrancelhas franzidas que, na sua opinião, esta descoberta sinistra não fora um grande progresso na nossa investigação.

– É um pouco difícil saber o que fazer, Watson – disse por fim. – Minha disposição é no sentido de continuar esta investigação, pois já perdemos muito tempo e não podemos desperdiçar mais uma hora. Por outro lado, devemos informar a polícia a respeito da descoberta, e providenciar para que tomem conta do corpo deste pobre sujeito.

– Eu poderia levar um bilhete.

– Mas preciso da sua companhia e ajuda. Espere um momento! Tem alguém ali cortando turfa. Traga-o aqui, e ele guiará a polícia.

Trouxe o camponês e Holmes despachou o homem assustado com o bilhete para o dr. Huxtable.

– Agora, Watson – disse –, descobrimos duas pistas esta manhã. Uma é a bicicleta com os pneus Palmer, e vemos onde isto acabou. A outra é a bicicleta com o Dunlop remendado. Antes de iniciarmos esta investigação, vamos tentar entender o que sabemos realmente, para tirar o máximo disto e separar o essencial do acidental.

– Antes de tudo, quero lhe dizer que o garoto com certeza saiu por vontade própria. Ele desceu pela janela e foi embora, sozinho ou com mais alguém. Isto é certo.

Assenti.

– Bem, agora, voltemos ao infeliz professor alemão. O garoto estava completamente vestido quando fugiu. Portanto, já sabia o que ia fazer. Mas o alemão saiu sem as meias. Com certeza agiu às pressas.

– Sem dúvida.

– Por que saiu? Porque, da janela do seu quarto, viu a fuga do garoto; porque quis ir atrás dele e trazê-lo de volta. Pegou sua bicicleta, perseguiu o rapaz, e nessa perseguição encontrou a morte.

– Assim parece.

– Agora chego à parte decisiva do meu raciocínio. A atitude natural de um homem ao perseguir um garoto seria a de correr atrás dele. Ele saberia que conseguiria alcançá-lo. Mas o alemão não faz isso. Vai pegar sua bicicleta. Soube que era um ciclista excelente. Não faria isso, se não visse que o garoto tinha algum meio rápido de fuga.

– A outra bicicleta.

– Continuemos nossa reconstituição. Ele foi morto a 7 quilômetros do colégio – não por uma bala, o que até mesmo um garoto poderia disparar, mas por um golpe violento, desferido por um braço vigoroso. O garoto, portanto, teve um companheiro na sua fuga. E foi uma fuga rápida, pois andaram 7 quilômetros antes que um ótimo ciclista os alcançasse. E ainda pesquisamos o chão em volta do local da tragédia. O que encontramos? Alguns rastros de gado, nada mais. Dei uma grande volta por aí, e não existem trilhas a menos de 50 metros. Um outro ciclista poderia não ter tido nada com o assassinato, e lá também não havia pegadas humanas.

– Holmes! – exclamei –, isto é impossível!

– Admirável! – disse ele. – Uma observação esclarecedora. É impossível do modo como falei, entretanto posso, em algum aspecto, ter falado de modo equivocado. Pois você viu por si mesmo. Pode sugerir alguma falha?

– Ele não poderia ter fraturado o crânio numa queda?

– Num lodaçal, Watson?

– Estou desorientado.

– Tsc, tsc, já resolvemos problemas piores. Pelo menos temos muito material; se ao menos pudéssemos usá-lo. Venha então e, depois do Palmer, vamos ver o que o Dunlop com a parte remendada tem a nos oferecer.

Pegamos a trilha e a seguimos por algum tempo, mas o pântano logo se elevava numa curva longa cheia de tufos de urze, e deixamos o riacho para trás. Não se podia mais esperar ajuda alguma de trilhas. Do lugar onde vimos pela última vez o pneu Dunlop, podíamos ter ido também para Holdernesse Hall, cujas torres majestosas apareciam alguns quilômetros à nossa esquerda, ou para uma vila pequena e pardacenta que ficava à nossa frente, e indicava a posição da estrada principal de Chesterfield.

Quando nos aproximamos do hotel repugnante e miserável, com o símbolo de um galo de briga sobre a porta, Holmes deu um súbito gemido, e agarrou meu ombro para não cair. Tivera um desses estiramentos violentos que deixam um homem desamparado. Com dificuldade foi até a porta, onde um homem idoso e moreno estava acocorado, fumando um cachimbo preto de barro.

– Como vai, sr. Reuben Hayes? – perguntou Holmes.

– Quem são vocês e como descobriram tão depressa o meu nome? Disse o camponês com um brilho de desconfiança nos olhos espertos.

– Ora, ele está impresso na placa acima de sua cabeça. E fácil reconhecer um homem que é o dono da própria casa. Suponho que não tenha algo como uma carroça nos seus estábulos.

– Não, não tenho.

– Mal posso apoiar meu pé no chão.

– Não o ponha no chão.

– Mas não posso andar.

– Bem, então pule.

A atitude do sr. Reuben Hayes estava longe de ser amável, mas Holmes a encarou com um bom humor admirável.

– Olhe aqui, meu amigo – disse. – Isto é realmente um dilema muito desagradável para mim. Não vejo como continuar.

– Nem eu – disse o estalajadeiro mal-humorado.

– O assunto é muito importante. Eu lhe ofereceria 1 libra pelo uso de uma bicicleta.

O homem prestou mais atenção.

– Aonde querem ir?

– Para Holdernesse Hall.

– Amigos do duque, suponho? – disse o proprietário, observando nossas roupas manchadas de lama com olhos irônicos.

Holmes sorriu, complacente.

– De qualquer maneira, ele ficará contente em nos ver.

– Por quê?

– Porque lhe trazemos notícias de seu filho desaparecido.

O estalajadeiro teve um sobressalto visível.

– O quê, vocês estão na pista dele?

– Ele foi visto em Liverpool. Esperam encontrá-lo a qualquer hora.

De novo uma mudança perceptível passou pelo rosto forte e barbado. Ele ficou amável de repente.

– Tenho menos motivos para desejar o bem do duque do que muitos homens – disse – porque uma vez fui o cocheiro-chefe, e ele me tratou de modo cruel. Foi ele quem me pôs na rua sem explicações, por causa da palavra de um negociante de milho mentiroso. Mas fico contente em saber que o jovem lorde foi visto em Liverpool, e vou ajudá-los a levar a notícia até o Hall.

– Obrigado – disse Holmes. – Vamos comer algo primeiro. Depois pode trazer a bicicleta.

– Eu não tenho uma bicicleta.

Holmes mostrou uma libra.

– Já lhe disse, homem, que não tenho. Deixarei que levem dois cavalos até o Hall.

– Bem, bem – disse Holmes –, falaremos sobre isso depois que tivermos comido alguma coisa.

Quando ficamos sozinhos na cozinha de paredes de pedras, foi espantoso como o tornozelo estirado se recuperou depressa. Já era quase noite e não havíamos comido nada desde a manhã, de modo que gastamos um bom tempo em nossa refeição. Holmes estava perdido em seus pensamentos e uma ou duas vezes foi até a janela e olhou para fora, sério. Ela dava para um pátio miserável. No canto mais afastado havia uma forja, onde um rapaz sujo estava trabalhando. Do outro lado ficavam os estábulos. Holmes estava sentado após uma dessas excursões, quando de repente pulou de sua cadeira com uma exclamação.

– Por Deus, Watson, creio que conseguimos! – gritou. – Sim, sim, deve ser isso. Watson, lembra-se de ter visto alguma trilha de vacas hoje?

– Sim, várias.

– Onde?

– Ora, por todo lado. No brejo, e também na trilha, e perto do lugar onde o pobre Heidegger morreu.

– Exato. Agora, Watson, quantas vacas você viu no campo?

– Não me lembro de ter visto nenhuma.

– É estranho, Watson, que víssemos rastros durante todo o nosso trajeto, mas nem uma vaca. Muito estranho, Watson, hein?

– Sim, é estranho.

– Agora, Watson, faça um esforço de memória. Pode ver aqueles rastros na trilha?

– Sim, posso.

– Recorda-se de que os rastros eram algumas vezes assim, Watson – dispôs algumas bolinhas de pão deste modo – : : : : : – e outras assim – : . : . : . : . – e ocasionalmente deste jeito . . . . . . . Pode se lembrar disso?

– Não, não posso.

– Mas eu posso. Posso jurar que é assim. Mas voltaremos lá para verificar isso. Como fui cego, não confirmando minha conclusão.

– E qual é a sua conclusão?

– Apenas que existe uma vaca notável que anda, trota e galopa. Por Deus! Watson, não foi nenhum cérebro de taberneiro do interior que imaginou um como esse. A costa parece estar livre, a não ser por aquele rapaz na forja. Vamos dar uma escapada e ver o que pudermos.

Havia dois cavalos maltratados no estábulo em ruínas. Holmes levantou a pata traseira de um deles e riu.

– Ferraduras velhas, mas ferrado recentemente; ferraduras velhas, mas cravos novos. Este caso promete ser um clássico. Vamos passar por fora.

O rapaz continuava seu trabalho sem ligar para nós. Notei os olhos de Holmes virarem-se para a esquerda e para a direita, por entre os restos de ferro e madeira que se espalhavam pelo chão. Mas, de repente escutamos passos atrás de nós, e lá estava o dono da hospedaria, o cenho franzido sobre os olhos selvagens, as feições contorcidas pela raiva. Segurava uma pequena bengala de cabo metálico, e avançou de modo tão ameaçador que me senti confortado por ter meu revólver no bolso.

– Seus espiões do inferno! – gritou o homem. – O que estão fazendo aí?

– Ora, sr. Reuben Hayes – disse Holmes friamente –, alguém poderia pensar que o senhor está com medo de que descubramos alguma coisa.

O homem controlou-se com um esforço violento, e sua boca cruel abriu-se num sorriso falso, que era mais ameaçador que o seu olhar carrancudo.

– Vocês podem descobrir tudo o que quiserem em minha oficina – disse. – Mas olhe aqui, senhor, não gosto de sujeitos que ficam bisbilhotando na minha casa sem minha permissão; portanto, quanto mais cedo pagarem sua conta e saírem daqui, mais agradecido eu ficaria.

– Tudo bem, sr. Hayes, não fizemos por mal – disse Holmes. – Estivemos dando uma olhada em seus cavalos, mas creio que irei a pé, afinal. Não é longe, eu acho.

– Não mais de 3 quilômetros até os portões do Hall. É pela estrada da esquerda. – Ficou nos observando com olhos sombrios até que saímos de sua propriedade.

Não fomos muito longe pela estrada, pois Holmes parou assim que a curva fez com que saíssemos do campo de visão daquele homem.

– Estivemos quentes naquela hospedaria, como dizem as crianças – comentou. – Parece que fica mais frio à medida que me afasto. Não, não, não posso deixar isso.

– Estou convencido – eu disse – que esse Reuben Hayes sabe de tudo. Nunca vi um vilão tão óbvio.

– Oh! ele o impressionou tanto assim? Há os cavalos, a forja. Sim, é um lugar interessante, esse Galo de Briga. Acho que devemos dar uma outra olhada nele, de modo mais discreto.

Uma colina suave, longa, pontilhada de pedras calcárias, estendia-se atrás de nós. Havíamos saído da estrada e estávamos subindo a colina quando, ao olhar na direção de Holdernesse Hall, vi um ciclista pedalando rapidamente.

– Abaixe-se, Watson! – exclamou Holmes, batendo no meu ombro. Mal havíamos sumido de vista quando o homem passou rapidamente por nós, na estrada. Por entre as nuvens de poeira, vislumbrei um rosto pálido e agitado – um rosto com o horror estampado em cada traço, a boca aberta, os olhos vidrados. Era como uma estranha caricatura do esperto James Wilder que víramos na noite anterior.

– O secretário do duque! – exclamou Holmes. – Venha Watson, vamos ver o que ele vai fazer.

Escalamos de pedra em pedra, até que minutos depois chegamos a um ponto do qual podíamos ver a porta da frente do hotel. A bicicleta de Wilder estava encostada na parede lateral. Ninguém se movia pela casa, nem conseguimos ver alguém nas janelas. Devagar o crepúsculo chegou, enquanto o sol mergulhava atrás das torres de Holdernesse Hall. Então, na escuridão, vimos as duas lanternas laterais acesas de uma carruagem no pátio do estábulo do hotel, e logo depois ouvimos o barulho de cascos chegando à estrada e partindo em grande velocidade na direção de Chesterfield.

– O que acha disso, Watson? – sussurrou Holmes.

– Parece uma fuga.

– Só havia um homem na carruagem, pelo que pude ver. Bem, certamente não era o sr. James Wilder, pois ele está ali, em frente à porta.

Um quadrado vermelho de luz se acendera na escuridão. No meio dele estava o vulto negro do secretário, a cabeça inclinada para a frente, espreitando a noite. Era evidente que esperava alguém. Por fim, passos na estrada, uma outra figura ficou visível por um instante contra a luz, a porta bateu e tudo ficou escuro novamente. Cinco minutos depois uma lâmpada foi acesa num quarto do primeiro andar.

– Parece ser uma categoria curiosa de fregueses essa do Galo de Briga – disse Holmes.

– O bar fica do outro lado.

– Exato. Estes são o que podemos chamar de convidados particulares. Agora, que diabo está o sr. James Wilder fazendo naquela espelunca a essa hora da noite, e quem é o sujeito que vem para encontrá-lo ali? Vamos, Watson, precisamos realmente nos arriscar e tentar investigar isto um pouco mais de perto.

Descemos juntos até a estrada e nos aproximamos silenciosamente da porta do hotel. A bicicleta ainda estava encostada na parede. Holmes acendeu um fósforo para examinar o pneu traseiro, e eu o ouvi rir baixinho quando a luz incidiu sobre um pneu Dunlop remendado. Bem acima de nós estava a janela iluminada.

– Preciso dar uma olhada lá, Watson. Se você inclinar as costas e se apoiar na parede, acho que conseguirei.

Logo depois, seus pés estavam nos meus ombros; porém mal chegou lá em cima e já estava embaixo de novo.

– Venha, meu amigo – disse –, nosso dia de trabalho foi bastante longo. Creio que já conseguimos tudo o que podíamos. É uma longa caminhada até o colégio, e quanto mais cedo começarmos, melhor.

Ele mal abriu a boca durante aquela caminhada cansativa através do campo, e não entramos no colégio quando chegamos lá, mas fomos para a estação de Mackleton, de onde ele enviou alguns telegramas. Tarde da noite eu o ouvi consolando o dr. Huxtable, prostrado pela tragédia da morte do seu professor, e mais tarde ainda entrou no meu quarto, tão alerta e vigoroso como estivera quando começamos naquela manhã. – Está tudo indo bem, meu amigo – disse ele. – Prometo que antes de amanhã à noite teremos encontrado a solução do mistério.

Às 11 horas seguinte meu amigo e eu estávamos andando pela famosa alameda de teixos de Holdernesse Hall. Entramos pela magnífica porta elisabetana e fomos levados ao escritório de Sua Graça. Lá encontramos o sr. James Wilder, sério e cortês, mas com alguns vestígios daquele terror selvagem da noite ainda visíveis em seus olhos furtivos e na expressão crispada.

– Veio ver Sua Graça? Desculpe, mas o fato é que o duque não está lá muito bem. Ficou muito abalado com as notícias trágicas. Recebemos um telegrama do dr. Huxtable ontem à tarde, que nos informou da descoberta de vocês.

– Preciso ver o duque, sr. Wilder.

– Mas ele está no quarto dele.

– Então preciso ir ao quarto dele.

– Creio que ele está na cama.

– Vou vê-lo lá.

O jeito frio e implacável de Holmes mostrou ao secretário que era inútil discutir com ele.

– Muito bem, sr. Holmes, eu direi a ele que está aqui.

Depois de uma demora de uma hora, o grande nobre apareceu. Seu rosto estava mais cadavérico do que nunca, seus ombros estavam curvados e parecia ser um homem muito mais velho que na manhã anterior. Cumprimentou-nos com uma cortesia solene e sentou-se à sua escrivaninha, a barba vermelha caindo em ondas na mesa.

– E então, sr. Holmes? – disse.

Mas os olhos de meu amigo estavam fixos no secretário, que estava de pé atrás da cadeira do patrão.

– Creio, Sua Graça, que eu poderia falar mais francamente sem a presença do sr. Wilder.

O homem ficou pálido como um fantasma e lançou um olhar malévolo para Holmes.

– Se Sua Graça desejar...

– Sim, sim, seria melhor você ir. Agora, sr. Holmes, o que tem para dizer?

Meu amigo esperou até que a porta se fechasse atrás do secretário relutante.

– O fato, Sua Graça – disse –, é que o meu colega, dr. Watson, e eu temos a garantia do dr. Huxtable de que foi oferecida uma recompensa neste caso. Gostaria de ouvir a confirmação de seus próprios lábios.

– Certamente, sr. Holmes.

– Se fui informado corretamente, ela é de 5 mil libras para quem lhe disser onde está seu filho?

– Exatamente.

– E outras 1.000 para quem disser o nome da pessoa ou pessoas que o mantêm preso?

– Exatamente.

– Neste último estão incluídos, sem dúvida, não somente aqueles que o levaram, mas também aqueles que conspiram para que ele continue na situação atual?

– Sim, sim – exclamou o duque, impaciente. – Se fizer bem o seu trabalho, sr. Sherlock Holmes, não terá motivo para reclamar de um tratamento mesquinho.

Meu amigo esfregou as mãos magras com uma expressão de avidez que me surpreendeu, pois conhecia seus hábitos frugais.

– Creio que vejo o talão de cheques de Sua Graça sobre a mesa – ele disse. – Ficaria contente se fizesse um cheque de 6 mil libras. Talvez fosse melhor cruzá-lo. O Capital and Counties Bank, filial da Oxford Street, é o meu agente.

Sua Graça sentou-se austera e rigidamente na sua cadeira e olhou de modo severo para meu amigo.

– Isto é uma brincadeira, sr. Holmes? Não é nem de longe um assunto para divertimento.

– De modo algum, Sua Graça. Nunca fui tão sério em minha vida.

– O que significa, então?

– Quero dizer que ganhei a recompensa. Sei onde está seu filho e conheço pelo menos alguns daqueles que o mantêm preso.

A barba do duque ficou mais agressivamente vermelha do que nunca contra sua face branca, pálida.

– Onde ele está? – gaguejou.

– Está, ou estava na noite passada, no hotel Galo de Briga, a cerca de 3 quilômetros dos seus portões.

O duque recostou-se na sua cadeira.

– E quem o senhor acusa?

A resposta de Sherlock Holmes foi estarrecedora. Deu rapidamente um passo à frente e tocou o duque no ombro.

– Eu acuso o senhor – disse. – E agora, Sua Graça, eu lhe peço aquele cheque.

Nunca me esquecerei do aspecto do duque ao pular e jogar as mãos como alguém que está afundando num abismo. Depois, com um extraordinário esforço de autocontrole aristocrático, sentou-se e afundou o rosto nas mãos. Passaram-se alguns minutos antes que falasse.

– O que é que sabe? – perguntou afinal, sem levantar a cabeça.

– Eu os vi juntos ontem a noite.

– Alguém mais sabe, além do seu amigo?

– Não falei com mais ninguém.

O duque pegou uma caneta com a mão trêmula e abriu o talão de cheques.

– Vou honrar minha palavra, sr. Holmes. Farei o seu cheque, por mais inconveniente que seja para mim, a informação que conseguiu. Quando o oferecimento foi feito pela primeira vez, mal sabia do rumo que os acontecimentos poderiam tomar. Mas o senhor e seu amigo são homens discretos, não, sr. Holmes?

– Mal posso compreendê-lo, Sua Graça.

– Devo esclarecer tudo, sr. Holmes. Se apenas os senhores sabem desse incidente, não há motivo para que isso vá mais longe. Creio que 12 mil libras é a soma que lhe devo, não é?

Mas Holmes sorriu e sacudiu a cabeça.

– Temo, Sua Graça, que as coisas talvez não possam ser resolvidas tão facilmente. A morte do professor do colégio tem de ser explicada.

– Mas James não sabia nada daquilo. Não pode responsabilizá-lo por isso. Foi trabalho desse valentão brutal que ele teve o azar de empregar.

– Tenho a opinião, Sua Graça, de que quando um homem se envolve num crime, é moralmente culpado de qualquer outro crime que venha a ocorrer em conseqüência do primeiro.

– Moralmente, sr. Holmes. Sem dúvida está certo. Mas provavelmente não aos olhos da lei. Um homem não pode ser condenado por um assassinato a que não esteve presente, e ao qual abomina e detesta tanto quanto o senhor. Assim que soube do fato, ele me fez uma confissão completa, de tanto remorso e horror que sentia. Não perdeu uma hora para despedir o assassino. Oh, sr. Holmes, o senhor tem de salvá-lo – tem de salvá-lo! Peço-lhe que o salve! – O duque abandonara um último esforço de autocontrole e estava andando de um lado para o outro no quarto com o rosto transtornado e as mãos crispadas no ar. Finalmente controlou-se e sentou-se novamente à escrivaninha. – Aprecio sua conduta, por ter vindo aqui antes de falar com mais alguém – disse. – Pelo menos, podemos discutir como minimizar este escândalo terrível.

– Exato – disse Holmes. – Creio, Sua Graça, que isso só pode ser feito com absoluta franqueza entre nós. Estou disposto a ajudar Sua Graça com o máximo de minha habilidade, mas, para fazer isso, preciso entender todo o caso até o último detalhe. Percebi que as suas palavras se referiam ao sr. James Wilder, e que ele não é o assassino.

– Não, o assassino fugiu.

Sherlock Holmes sorriu discretamente.

– Sua Graça não deve ter ouvido praticamente nada sobre minha reputação, ou não imaginaria que seja tão fácil fugir de mim. O sr. Reuben Hayes foi preso em Chesterfield, com base na minha informação, às 23 horas da noite passada. Recebi um telegrama do chefe da polícia local antes de sair do colégio esta manhã.

O duque recostou-se em sua cadeira e olhou assombrado para o meu amigo.

– Parece ter poderes sobre-humanos – disse. – Então Reuben Hayes foi preso? Fico contente em ouvir isso, se não afetar o destino de James.

– Seu secretário?

– Não, senhor, meu filho.

Foi a vez de Holmes olhar espantado.

– Confesso que isso é inteiramente novo para mim, Sua Graça. Peço-lhe que seja mais explícito.

– Não esconderei nada do senhor. Concordo com o senhor que a franqueza absoluta, por mais dolorosa que seja para mim, é a melhor política nesta situação desesperada à qual a tolice e o zelo de James nos deixaram. Quando eu era mais jovem, sr. Holmes, amei com um amor que só ocorre uma vez na vida. Pedi a dama em casamento, mas ela recusou, alegando que essa união arruinaria minha carreira. Se ela tivesse vivido, eu com certeza nunca teria me casado com outra pessoa. Ela morreu e deixou esse filho único que, por ela, abriguei, e dei a ele carinho e cuidados. Não pude assumir a paternidade dele diante do mundo, mas lhe dei a melhor educação, e desde que se tornou adulto eu o mantenho perto de mim. Ele descobriu meu segredo, e presumiu desde então que tem direitos sobre mim e julgou-se com poder de provocar um escândalo que seria desastroso para mim. Sua presença tem relação com o desfecho infeliz do meu casamento. Acima de tudo, odiava meu jovem herdeiro legítimo desde o início, com um ódio persistente. Pode perguntar por que, nestas circunstâncias, ainda conservo James sob o meu teto. Respondo que foi porque posso ver o rosto de sua mãe no dele, e que em consideração a ela não há fim para o meu longo sofrimento. Todos os seus bonitos gestos também – não há um só gesto dele que não sugira nem me traga à lembrança. Não pude mandá-lo embora. Mas temia tanto que ele pudesse fazer mal a Arthur – isto é, lorde Saltire –, que o despachei por segurança para o colégio do dr. Huxtable.

– James entrou em contato com esse sujeito, Hayes, porque ele era um arrendatário meu, e James agia como cobrador. O sujeito foi um patife desde o começo mas, de algum modo extraordinário, James ficou íntimo dele. Teve sempre uma queda por companhias de baixo nível. Quando James decidiu raptar lorde Saltire, foi dos serviços deste homem que se serviu. Lembra-se que escrevi a Arthur no último dia. Bem, James abriu a carta e incluiu uma nota pedindo a Arthur que o encontrasse num pequeno bosque chamado Ragged Shaw, que fica perto do colégio. Usou o nome da duquesa, e desse modo conseguiu que o rapaz viesse. Naquela noite James foi de bicicleta – estou lhe contando o que ele mesmo me confessou – e disse a Arthur, que encontrou no bosque, que a mãe dele queria vê-lo, que ela o estava esperando no campo e que se voltasse ao bosque à meia-noite encontraria um homem com um cavalo, que o levaria até ela. O pobre Arthur caiu na armadilha. Foi ao encontro marcado e topou com esse Hayes, que trazia um pônei. Arthur montou, e foram juntos. Parece – embora James só tenha sabido ontem – que eles foram perseguidos, que Hayes abateu seu perseguidor com sua bengala, e que o homem morreu devido aos ferimentos. Hayes levou Arthur para a sua hospedaria, o Galo de Briga, onde foi confinado num quarto do andar superior, aos cuidados da sra. Hayes, uma mulher bondosa, mas inteiramente dominada pelo marido violento.

– Bem, sr. Holmes, era esta a situação quando o vi pela primeira vez, dois dias atrás. Não tinha a menor idéia da verdade, tanto quanto o senhor. O senhor me perguntará qual foi o motivo que levou James a praticar tal ato. Respondo que havia muito de irracional e fanático no ódio que nutria por meu herdeiro. Do seu ponto de vista, ele próprio deveria ser o herdeiro de todas as minhas propriedades, e se ressentia profundamente das leis sociais que tornavam isto impossível. Ao mesmo tempo, tinha também uma razão definitiva. Estava ansioso para que eu rompesse o vínculo, e achava que tinha poder para isso. Queria fazer uma barganha comigo – devolver Arthur se eu rompesse o vínculo, e assim deixar-lhe os meus bens por meio de testamento. Ele sabia que eu não pediria de boa vontade a ajuda da polícia. Digo que ele iria me propor essa barganha; mas, na verdade, não fez isso, porque os acontecimentos se precipitaram e ele não teve tempo de pôr em prática os seus planos.

– O que arruinou todo este plano perverso foi a sua descoberta do corpo desse tal Heidegger. James ficou horrorizado com a notícia. Soubemos ontem, quando estávamos juntos neste escritório. O dr. Huxtable mandou um telegrama. James foi dominado por tanto remorso e agitação que as minhas suspeitas, que nunca estiveram inteiramente ausentes, transformaram-se no mesmo instante em certeza, e eu o acusei do ato. Fez uma confissão completa e voluntária. Depois me implorou que eu guardasse seu segredo por três dias, a fim de dar ao seu desventurado cúmplice uma chance de salvar a vida cheia de culpa. Concordei – como sempre – às suas súplicas e imediatamente James correu até o Galo de Briga para avisar Hayes e lhe proporcionar um meio de fuga. Não podia ir lá de dia sem provocar comentários, mas, assim que a noite caiu, fui correndo ver meu querido Arthur. Encontrei-o a salvo e bem, mas horrorizado pelo terrível ato que testemunhara. De acordo com minha promessa, e contra a minha vontade, consenti em deixá-lo lá por três dias, sob os cuidados da sra. Hayes, já que era evidente a impossibilidade de informar à polícia onde ele estava sem lhes dizer também quem era o assassino, e eu não conseguia imaginar como aquele assassino poderia ser punido sem arruinar o meu infeliz James. Pediu franqueza, sr. Holmes, e cumpri a palavra, pois agora contei-lhe tudo, sem apelar para rodeios ou subterfúgios. Use da mesma franqueza comigo.

– Eu o farei – disse Holmes. – Em primeiro lugar, Sua Graça, devo dizer-lhe que se colocou numa posição muito séria aos olhos da lei. O senhor foi conivente com um delito grave e ajudou a fuga de um assassino, pois não duvido que qualquer dinheiro levado por James Wilder para ajudar seu cúmplice na fuga veio do bolso de Sua Graça.

O duque se mexeu na cadeira.

– Esta é, realmente, uma questão muito grave. Ainda mais condenável, na minha opinião, Sua Graça, é a sua atitude em relação ao seu filho mais novo. O senhor o deixou nesse antro por três dias.

– Sob promessas solenes...

– O que são promessas para pessoas como essas? O senhor não tem garantias de que ele não será levado embora novamente. Em favor do seu filho mais velho culpado, expôs seu inocente filho mais novo a um perigo iminente e desnecessário. Foi uma atitude injustificável.

O orgulho do senhor de Holdernesse não estava acostumado a ser tão ferido em sua própria residência ducal. O sangue avermelhou a sua testa alta, mas sua consciência o fez ficar mudo.

– Eu o ajudarei, mas sob uma condição. Que chame o lacaio e deixe-me dar-lhe as ordens que quiser.

Sem uma palavra, o duque pressionou a campainha. Um criado entrou.

– Ficará feliz em saber – disse Holmes – que o seu jovem patrão foi encontrado. É desejo do duque que a carruagem vá imediatamente ao hotel Galo de Briga para trazer lorde Saltire para casa.

– Agora – disse Holmes, depois que o lacaio saiu alegre –, tendo assegurado o futuro, podemos ser mais clementes com o passado. Não estou em missão oficial, e não há motivo, desde que os fins da justiça sejam cumpridos, para revelar tudo o que sei. Quanto a Hayes, não digo nada. A forca o espera e não faria nada para salvá-lo. O que ele contará não posso saber, mas não tenho dúvida de que Sua Graça poderia fazê-lo entender que é do interesse dele ficar calado. Do ponto de vista da polícia, ele teria raptado o garoto com o objetivo de pedir um resgate. Se eles não descobrirem por si mesmos, não vejo motivo para que eu os ajude a ter uma visão mais ampla. Contudo, devo avisar Sua Graça que a permanência do sr. James Wilder em sua casa só pode resultar em infortúnio.

– Sei disso, sr. Holmes, e já está acertado que ele irá embora para sempre, e tentará fazer fortuna na Austrália.

– Nesse caso, Sua Graça, desde que o senhor mesmo percebeu que toda a infelicidade do seu casamento foi causada pela presença dele, sugeriria que fizesse as correções que pudesse em relação à duquesa, e que tentasse reatar as relações que foram interrompidas de modo tão inconveniente.

– Isso também já foi resolvido, sr. Holmes. Escrevi à duquesa esta manhã.

– Então – disse Holmes, levantando-se – creio que meu amigo e eu podemos nos congratular pelos vários resultados felizes de nossa visitinha ao norte. Há um outro ponto sobre o qual desejo um esclarecimento. Esse sujeito, Hayes, ferrara seus cavalos com ferraduras que imitavam pegadas de vacas. Foi com o sr. Wilder que aprendeu este ardil tão extraordinário?

O duque ficou pensativo por um instante, com uma expressão de surpresa no rosto. Depois abriu uma porta e nos levou até um aposento amplo, decorado como um museu. Foi até uma caixa de vidro num canto, e apontou para a inscrição.

– Estas ferraduras – lia-se – foram desencavadas do fosso de Holdernesse Hall. São para o uso de cavalos, mas são moldadas embaixo com uma placa de aço, fendida, a fim de despistar perseguidores. Supõe-se que pertenceram a alguns dos barões saqueadores de Holdernesse, na Idade Média.

Holmes abriu a caixa e, umedecendo o dedo, passou-o pela ferradura. Uma fina camada de lama recente ficou em sua pele.

– Obrigado – disse, enquanto recolocava o vidro. – É a segunda coisa mais interessante que vi no norte.

– E a primeira?

Holmes dobrou seu cheque e o colocou com cuidado em seu caderno. – Sou um homem pobre – disse, enquanto o acariciava e o jogava no fundo do seu bolso interno.


Загрузка...