A Solução
Na manhã seguinte, após o café, encontramos o inspetor MacDonald e o sr. White Mason sentados no saguão da delegacia e conversando de maneira reservada. Na mesa diante deles havia algumas cartas e telegramas, que separavam e anotavam cuidadosamente. Havia três cartas separadas.
– Ainda na pista do ciclista misterioso? – Holmes perguntou jovialmente. – Quais as últimas sobre o malandro?
MacDonald apontou com pesar para a pilha de correspondência.
– No momento ele está sendo procurado em Leicester, Nottinghan, Southampton, Derby, East Ham, Richmond e em outros 14 lugares. Em três deles, East Ham, Leicester e Liverpool, há uma acusação formal contra ele e, na verdade, ele já foi preso. Parece que o país está cheio de fugitivos com sobretudos amarelos.
– Puxa! – disse Holmes, de modo simpático. – Agora, sr. Mac e sr. White Mason,
eu gostaria de lhes dar um conselho muito sério. Quando entrei nesse caso com os senhores, disse, como devem se lembrar, que eu não lhes apresentaria teorias que não estivessem totalmente provadas. Ao contrário, eu iria guardando tudo e trabalhando por minha conta até me convencer de que minhas teorias estavam certas. Por esse motivo não estou lhes dizendo agora tudo que tenho em mente. Por outro lado, eu disse que os ajudaria e não acho que seja ajudá-los permitir que os senhores desperdicem suas energias num trabalho inútil. Por isso vim aqui para aconselhá-los. E meu conselho se resume nestas palavras: abandonem o caso.
MacDonald e White Mason olharam com perplexidade para o colega famoso.
– O senhor o considera sem solução? – exclamou o inspetor.
– Acho que este caso que os senhores estão tentando resolver é sem solução. Não considero sem solução chegar à verdade.
– Mas esse ciclista. Ele não é uma invenção. Temos a descrição dele, sua valise, sua bicicleta. Esse sujeito deve estar em algum lugar. Por que não haveríamos de pegá-lo?
– Sim, sim. Não há dúvida de que ele está em algum lugar, e não há dúvida de que vamos pegá-lo. Mas não acho que os senhores devam perder seu tempo em East Ham ou Liverpool. Tenho certeza de que podemos chegar ao resultado final de um modo mais direto.
– O senhor está escondendo alguma coisa. Não é justo da sua parte, sr. Holmes. – O inspetor estava aborrecido.
– O senhor conhece os meus métodos de trabalho, sr. Mac. Mas vou esconder essas coisas pelo menor tempo possível. Quero apenas verificar certos detalhes, o que pode ser feito prontamente, depois me despeço e volto para Londres, deixando minhas condenações inteiramente à sua disposição. Eu tenho muita consideração pelo senhor para agir de outro modo, pois em toda a minha experiência não me lembro de nenhum caso mais estranho e interessante.
– Não entendo, sr. Holmes. Nós o encontramos ontem à noite quando voltamos de Tunbridge Wells, e o senhor concordou com os resultados a que chegamos. O que aconteceu desde então para que o senhor tenha uma idéia completamente diferente sobre o caso?
– Já que o senhor me pergunta, eu passei algumas horas, como disse que ia fazer, na Casa Senhorial ontem à noite.
– Sim, e o que aconteceu?
– Ah, só posso lhe responder de um modo bastante genérico por enquanto. A propósito, estive lendo uma história curta, mas muito clara e interessante, sobre aquela velha construção, vendida pela modesta soma de 1 pêni pelo negociante de fumo local. – Holmes puxou do bolso do colete um pequeno pedaço de papel com um esboço da Casa Senhorial. – O interesse por uma investigação aumenta, meu caro sr. Mac, quando se tem afinidade com a ambientação histórica do lugar. Não fique tão impaciente, pois lhe garanto que mesmo uma descrição tão resumida como esta lança um pouco de luz sobre o passado. Permita-me dar-lhe uma prova disso. “Mandada erigir no quinto ano do reinado de James I, e localizada no sítio de uma construção muito mais antiga, a Casa Senhorial de Birlstone apresenta um dos melhores exemplos ainda existentes de residência com fosso da época daquele governante...”
– O senhor está nos fazendo de bobos, sr. Holmes.
– Ora, sr. Mac! É a primeira demonstração da irritação que percebo no senhor. Bem, não vou ler isso aqui na íntegra, já que o senhor reagiu desse modo. Mas quando eu lhe disser que há um relato da tomada do lugar por um coronel do Parlamento, em 1644, do fato de Charles ter se escondido lá durante vários dias durante a Guerra Civil e, finalmente, da visita que o segundo George fez à casa, o senhor irá admitir que há várias associações de interesse ligadas a esta casa antiga.
– Não duvido, sr. Holmes. Mas isso não é assunto nosso.
– Não é? Não é? Mente aberta, meu caro sr. Mac, é uma das coisas essenciais em nossa profissão. A integração de idéias e os usos indiretos do conhecimento são de grande interesse. Desculpe essas observações de alguém que, embora um simples conhecedor do crime, é mais velho e talvez mais experiente que o senhor.
– Sou o primeiro a admitir isso – disse o detetive com veemência.
– Bem, bem. Vou deixar a História de lado e voltar aos fatos atuais. Estive ontem à noite, como já disse, na Casa Senhorial. Não vi nem o sr. Barker nem a sra. Douglas. Não vi necessidade de perturbá-los, mas gostei de saber que a senhora aparentemente não estava abatida e que havia jantado muito bem. Minha visita foi especialmente ao bondoso sr. Ames, com quem troquei algumas amabilidades, que culminaram com a permissão dele, sem consultar ninguém mais, para que eu ficasse sozinho no escritório durante algum tempo.
– O quê! Puxa! – eu exclamei.
– Não, não. Está tudo em ordem agora. O senhor havia dado permissão para isso, sr. Mac, segundo fui informado. O lugar estava com sua arrumação normal e ali passei um quarto de hora que valeu a pena.
– O que o senhor fez?
– Bem, para não fazer mistério de algo tão simples, eu estava à procura do halter que desapareceu. Isso sempre significou muito para mim na avaliação do caso. Acabei encontrando.
– Onde?
– Ah! Aqui chegamos ao limiar do inexplorado. Deixe-me avançar um pouco mais, só um pouco mais, e prometo que contarei tudo que sei.
– Bem, somos obrigados a aceitar suas condições – disse o inspetor. – Mas nos dizer para abandonar o caso... Por quê, em nome de Deus, deveríamos abandonar o caso?
– Pelo simples motivo, meu caro sr. MacDonald, de que o senhor ainda não tem a menor idéia do que está investigando.
– Estamos investigando o assassinato do sr. John Douglas, de Birlstone.
– Sim, sim. Está bem. Mas não se preocupe em seguir o misterioso cavalheiro da bicicleta. Eu lhe garanto que isso não o ajudará.
– Então o que o senhor nos sugere fazer?
– Eu lhe direi exatamente o que fazer, se o senhor fizer o que eu disser.
– Bem, tenho de admitir que sempre achei que o senhor tinha razão, mesmo com suas maneiras estranhas de trabalhar. Farei o que o senhor disser.
– E o sr. White Mason?
O detetive do interior olhou desalentadamente de um para o outro. Holmes e seus métodos eram novos para ele.
– Bem, se é bom para o inspetor, é bom para mim – ele disse finalmente.
– Ótimo! – disse Holmes. – Bem, então recomendo que os dois façam uma bela caminhada pelo campo. Dizem que a vista de Birlstone Ridge sobre Weald é notável. Poderiam almoçar em alguma estalagem agradável. Mas como não conheço nada por aqui, não vou fazer nenhuma indicação. À noite, cansados mas felizes...
– Olha, isso está virando piada! – exclamou MacDonald, levantando-se furioso de sua cadeira.
– Está bem. Passem o dia como quiserem – disse Holmes, batendo-lhe no ombro. – Façam o que quiserem e vão aonde desejarem, mas encontrem-se comigo aqui antes de escurecer, sem falta. Sem falta, sr. MacDonald.
– Isso parece mais sensato.
– Era excelente a idéia que eu dei, mas não insisto, desde que o senhor esteja aqui quando eu precisar. Mas agora, antes de nos separarmos, quero que o senhor escreva um bilhete para o sr. Barker.
– Sim.
– Vou ditar, se o senhor preferir. Pronto?
– “Prezado Senhor, lamento que tenhamos de esvaziar o fosso, na esperança de encontrar algo...”
– É impossível – disse o inspetor. – Eu investiguei.
– Ora, meu caro senhor! Por favor, faça o que lhe peço.
– “... na esperança de encontrar algo que possa ajudar em nossas investigações. Acertei tudo e os operários chegarão aí amanhã cedo...”
– Impossível!
– “... amanhã cedo, de modo que achei melhor explicar ao senhor com antecedência.”
– Agora assine e mande por um portador por volta das 16 horas. A essa hora devemos nos encontrar novamente aqui. Até lá, podemos fazer o que bem entendermos, pois posso lhes garantir que esta investigação chegou ao ponto final.
Já começava a escurecer quando voltamos a nos encontrar. Holmes estava muito sério, eu me sentia curioso, e os detetives, obviamente, com um ar de censura e aborrecimento ao mesmo tempo.
– Bem, cavalheiros – disse meu amigo em tom grave –, pedi que viessem agora para que testem junto comigo as minhas teorias, e os senhores julgarão se as observações que eu fiz justificam as minhas conclusões. Será uma noite fria e não sei quanto tempo nossa expedição irá demorar, de modo que lhes peço que vistam seus agasalhos mais quentes. É da máxima importância que estejamos no lugar certo antes que escureça, de modo que, com sua permissão, começaremos imediatamente.
Fomos em direção aos limites do parque da Casa Senhorial até chegarmos a um lugar onde havia uma abertura na cerca que o rodeava. Foi por aí que entramos e então, em meio à semi-escuridão daquela hora, todos nós seguimos Holmes até chegarmos a um local cheio de moitas e que fica quase em frente à porta de entrada principal e à ponte. Esta ainda não tinha sido suspensa. Holmes se abaixou atrás dos loureiros e nós três fizemos o mesmo.
– Bem, o que vamos fazer agora? – perguntou MacDonald, um tanto ríspido.
– Manter nosso espírito sossegado e fazer o mínimo de barulho – respondeu Holmes.
– Para quê viemos até aqui? Eu realmente acho que o senhor deveria nos tratar com maior franqueza.
Holmes riu.
– Watson insiste em que eu sou um dramaturgo na vida real – disse ele. – Tenho mesmo um quê de artista e gosto de uma encenação bem ensaiada. Com certeza nossa profissão seria insípida e sórdida se às vezes não fizéssemos um pouco de encenação a fim de exaltar os resultados a que chegamos. Uma acusação brusca, um tapa brutal nos ombros – o que se pode fazer com um dénouement assim? Mas a dedução rápida, a armadilha sutil, uma certa precisão do que está para ocorrer, a defesa de teorias aparentemente ousadas – não é tudo isso que constitui o orgulho e a justificativa do nosso trabalho? No momento os senhores vibram com a fascinação da situação e com a intuição do caçador. Onde estaria essa fascinação se eu tivesse sido preciso como uma tabela de horários? Só peço um pouco de paciência, sr. Mac, e tudo se esclarecerá.
– Espero que o orgulho, a justificativa e todo o resto venham antes que a gente morra de frio – disse o detetive londrino com uma resignação divertida.
Todos nós tínhamos bons motivos para compartilhar desse desejo, pois nossa vigília era demorada e difícil. Lentamente as sombras foram caindo por sobre a comprida fachada da velha casa. Um mau cheiro carregado de umidade vinha do fosso, fazendo-nos tremer e bater os queixos. Havia uma única lâmpada no portão de entrada e um ponto de luz no escritório onde ocorrera o crime. Todo o resto estava escuro e silencioso.
– Quanto tempo isso vai durar? – perguntou o inspetor de repente. – E o que estamos esperando?
– Sei tanto quanto o senhor o tempo que isso vai demorar – Holmes respondeu com certa aspereza. – Se os criminosos programassem a hora dos seus movimentos como as ferrovias fazem, seria muito melhor para todos nós. Quanto ao que nós... Bem, isso é o que estamos esperando.
Quando ele acabou de responder, a luz amarelada do escritório foi ofuscada por alguém que passava na frente dela de um lado para outro, para lá e para cá. Os loureiros atrás dos quais nos encontrávamos ficavam bem em frente à janela e a poucos metros de distância. Ela foi aberta, fazendo ranger as dobradiças, e pudemos ver a silhueta da cabeça e dos ombros de um homem que se debruçava no peitoril e olhava a escuridão. Durante alguns minutos ele observou tudo atentamente, de modo furtivo, dissimulado, como alguém que deseja se certificar de que não há ninguém observando. Então ele se inclinou para a frente e, no absoluto silêncio, percebemos o discreto ruído de água sendo agitada. Parecia que ele estava mexendo na água com algo que tinha na mão. Então, de repente, ele puxou qualquer coisa como um pescador faz depois de fisgar um peixe: um objeto grande, redondo, que obscureceu a luz no momento em que passou pela esquadria da janela.
– Agora! – gritou Holmes. – Agora!
Ficamos todos de pé, com nossos membros entorpecidos, enquanto ele, com aquela explosão de energia que podia fazer dele em certas ocasiões o homem mais ágil e mais forte que eu já conhecera, corria pela ponte e tocava violentamente o sino. Ouviu-se o ruído de pinos sendo destravados do outro lado e o atônito Ames apareceu na porta. Holmes empurrou-o para o lado sem dizer nada, seguido por todos nós, e irrompeu no cômodo onde entrara o homem que estávamos observando.
A lamparina sobre a mesa era a origem da claridade que havíamos visto lá de fora. Estava agora na mão de Cecil Barker, que a levantou na nossa direção quando entramos no cômodo. A luz fazia brilhar seu rosto forte, resoluto, escanhoado, e seus olhos ameaçadores.
– Com os diabos, o que significa tudo isso? – ele gritou. – O que estão procurando?
Holmes deu uma rápida olhada pelo escritório e então dirigiu-se rapidamente para um pacote encharcado amarrado com cordas que estava no lugar onde havia sido jogado, debaixo da escrivaninha.
– Foi atrás disso que viemos, sr. Barker. Desse pacote que contém um halter, e que o senhor acabou de apanhar no fundo do fosso.
Barker olhou para Holmes mostrando surpresa em seu olhar.
– Que raios! Como o senhor ficou sabendo? – ele perguntou.
– Simplesmente porque eu coloquei isso lá no fundo.
– O senhor colocou lá! O senhor!
– Talvez eu devesse dizer “recoloquei lá no fundo” – disse Holmes. – O senhor deve se lembrar, inspetor MacDonald, de que eu estava estranhando a falta de um halter. Chamei sua atenção para isso, mas, devido à pressão de outras ocorrências, o senhor não teve muito tempo para examinar o assunto, o que lhe permitiria tirar conclusões sobre isso. Quando há água por perto e some alguma coisa pesada, não é muito difícil supor que esse objeto foi jogado na água. A idéia merecia pelo menos ser verificada. Então, com a ajuda de Ames, que me fez entrar até o escritório, e com o cabo do guarda-chuva do dr. Watson, consegui, ontem à noite, içar este pacote e inspecioná-lo. Mas era da maior importância que pudéssemos provar quem o havia colocado ali. Isso nós conseguimos por meio do simples artifício de avisar que o fosso seria esvaziado amanhã, o que faria com que a pessoa que escondeu o pacote fosse certamente retirá-lo de lá quando a noite caísse e a escuridão lhe permitisse fazer isso. Temos quatro testemunhas que viram quem se aproveitou dessa oportunidade e, portanto, sr. Barker, acho que o senhor agora tem a palavra.
Sherlock Holmes colocou o pacote molhado em cima da mesa, ao lado da lamparina, e desamarrou a corda que o prendia. Do embrulho ele retirou o halter, que colocou no chão perto do outro halter, no canto do escritório. Depois retirou um par de botas.
– Americanas, como podem ver – ele comentou, apontando para a parte da frente do calçado. Depois ele colocou sobre a mesa uma faca comprida, dentro da bainha. Finalmente ele desamarrou uma trouxa de roupas, contendo uma muda completa de roupas de baixo, meias, um terno cinza de tweed e um sobretudo amarelo e curto.
– As roupas são comuns – comentou Holmes – exceto o sobretudo, que tem detalhes bem sugestivos. – Ele o colocou contra a luz, enquanto seus dedos finos e compridos percorriam o casaco. – Aqui, como podem perceber, é o bolso interno, aumentado para dentro do forro de modo a dar espaço para a espingarda serrada. A etiqueta do alfaiate está no colarinho: Neale, Outfitter, Vermissa, EUA. Eu passei uma tarde muito proveitosa na biblioteca do pároco e aumentei meus conhecimentos ao saber que Vermissa é uma próspera cidadezinha perto de um dos mais conhecidos vales de carvão e ferro dos Estados Unidos. Lembro-me, sr. Barker, de que o senhor associou os distritos de carvão à primeira esposa do
sr. Douglas, e não seria uma dedução muito absurda dizer que as letras V.V. no cartão deixado ao lado do cadáver possam significar Vale Vermissa, ou que esse vale, que manda emissários para cometer assassinatos, possa ser o Vale do Medo de que ouvimos falar. Isso me parece razoavelmente claro. E agora, sr. Barker, acho que podemos ouvir sua explicação.
Foi um espetáculo observar o rosto expressivo de Barker durante a exposição do grande detetive. Raiva, surpresa, consternação e indecisão se alternavam. Finalmente ele se refugiou numa ironia um tanto mordaz.
– O senhor sabe tanto, sr. Holmes. Talvez fosse melhor nos contar mais – ele disse em tom de escárnio.
– Não tenho dúvida de que eu poderia contar muito mais, sr. Barker, mas teria muito mais graça vindo do senhor.
– Oh, o senhor pensa assim, é? Bem, tudo que posso dizer é que, se existe algum segredo aqui, não é meu, e não sou a pessoa que deve revelá-lo.
– Bem, se o senhor vai por esse caminho, sr. Barker – disse o inspetor calmamente –, então devemos mantê-lo sob vigilância até que tenhamos a autorização para prendê-lo.
– Podem fazer o que bem entenderem – disse Barker de modo desafiador.
Pelo que tudo indicava, a conversa estava encerrada, pois bastava olhar para aquele rosto de pedra para perceber que nenhuma peine forte et dure o forçaria a falar contra a vontade. Mas o silêncio foi quebrado por uma voz de mulher.
A sra. Douglas estivera ouvindo tudo pela porta entreaberta, e agora entrava no escritório.
– Você fez muito, Cecil – disse ela. – Não importa o que aconteça depois, mas você fez bastante por nós.
– E fez muito mesmo – comentou Sherlock Holmes em tom sério. – Desde o início eu tive muita simpatia pela senhora e devo pedir-lhe que tenha confiança em nosso bom senso e que confie plenamente na polícia. Talvez eu tenha errado ao não atender ao pedido que me fez por intermédio de meu amigo, dr. Watson, mas àquela altura eu tinha bons motivos para acreditar que a senhora estivesse diretamente envolvida no crime. Agora garanto-lhe que já não penso assim. Ao mesmo tempo, há muita coisa ainda sem explicação e solicito encarecidamente que a senhora peça ao sr. Douglas para nos contar a história dele.
A sra. Douglas deu um grito de espanto ao ouvir as palavras de Holmes. Os detetives e eu certamente repetimos esse grito quando percebemos a presença de um homem que parecia ter saído da parede e que agora avançava, saindo da escuridão do canto do escritório de onde viera. A sra. Douglas virou-se e o abraçou. Barker apertou sua mão estendida.
– É melhor assim, Jack – sua esposa repetia. – Tenho certeza de que assim é melhor.
– Realmente é, sr. Douglas – disse Sherlock Holmes. – O senhor mesmo achará melhor.
O homem piscava enquanto nos olhava ainda meio confuso, pois saíra da escuridão para um ambiente iluminado. Era um rosto extraordinário – olhos acinzentados penetrantes, um bigode grisalho cheio e bem aparado, queixo retilíneo e saliente, e a boca com uma expressão irônica. Ele olhou detidamente para todos nós e então, para surpresa minha, avançou em minha direção e me entregou um maço de papéis.
– Ouvi falar no senhor – ele disse com um sotaque que não era propriamente inglês nem americano, mas que era suave e agradável. O senhor é o historiador dessa papelada. Bem, dr. Watson, o senhor nunca teve uma história como essa em suas mãos e eu gastei meu último centavo com ela. Conte essa história do seu jeito. Mas há fatos, e o senhor não pode esconder do público. Fiquei confinado dois dias e passava as manhãs e as tardes, embora não houvesse muita claridade naquela ratoeira, pondo tudo em palavras nesses papéis. É um prazer entregá-los ao senhor; ao senhor e ao seu público. Aí está a história do Vale do Medo.
– Isso pertence ao passado, sr. Douglas – disse Sherlock Holmes com serenidade. – O que desejamos agora é ouvir sua história sobre o presente.
– Eu contarei, senhor – disse Douglas. – Posso fumar enquanto falo? Bem, obrigado, sr. Holmes. O senhor também é fumante, se me lembro bem, e pode imaginar o que é ficar sentado durante dois dias com tabaco no bolso e com medo de que o cheiro do fumo nos denuncie. – Ele se apoiou no consolo da lareira e tragou o charuto que Holmes lhe dera.
– Ouvi falar no senhor. Nunca imaginei que fosse encontrá-lo. Mas antes de o senhor acabar de ler tudo isso – e ele apontou para os papéis – concordará que lhe trouxe algo bem diferente.
O inspetor MacDonald estivera o tempo todo olhando para aquele homem com uma expressão de assombro.
– Bem, não consigo entender isso! – ele finalmente gritou. – Se o senhor é John Douglas, de Birlstone, a morte de quem estamos investigando há dois dias, e de onde, afinal, o senhor apareceu agora? O senhor parece ter saído de uma cartola de mágico.
– Ah, sr. Mac – disse Holmes, sacudindo o dedo com ar de censura – o senhor não entenderia esta nova versão do esconderijo do rei Charles. Naquele tempo as pessoas só se escondiam em lugares seguros. E um lugar que já foi usado uma vez pode ser usado de novo. Eu me convenci de que tínhamos de encontrar o sr. Douglas debaixo desse teto.
– E por quanto tempo o senhor pregou esta peça em nós, sr. Holmes? – perguntou o inspetor, furioso. – Quanto tempo o senhor deixou que perdêssemos numa busca que o senhor sabia que era ridícula?
– Nem um minuto, meu caro sr. Mac. Só ontem à noite cheguei a uma opinião sobre o caso. Como minha teoria só poderia ser provada hoje à noite, disse ao senhor e ao seu colega para tirarem uma folga durante o dia. Diga, o que mais eu poderia ter feito? Quando encontrei as roupas no fosso, imediatamente ficou claro para mim que o corpo que achamos aqui não poderia ser o do sr. John Douglas, e sim o do ciclista de Tunbridge Wells. Não era possível outra conclusão. Portanto eu tinha de descobrir onde o sr. Douglas poderia estar, e entre as várias possibilidades estava a de que, com a conivência da esposa e do amigo, ele havia se escondido nesta casa mesmo, que tem lugares adequados para abrigar um fugitivo esperando uma oportunidade melhor para fugir de vez.
– O senhor descreveu tudo muito bem – disse o sr. Douglas de modo aprovador. – Eu pensei que escaparia da legislação inglesa, pois não tinha muita certeza a respeito da minha situação em relação a ela, e além disso vi a oportunidade de afastar, de uma vez por todas, esses perdigueiros do meu rastro. Veja bem, do início ao fim não fiz nada de que tivesse de me envergonhar, e nada que não faria de novo, mas os senhores farão o seu próprio julgamento quando eu lhes contar minha história. Não se preocupe em me advertir, inspetor. Estou disposto a encarar a verdade.
– Não vou começar do princípio. Está tudo ali – ele indicou meu maço de folhas – e os senhores acharão que é uma história muito estranha. Tudo se resume no seguinte: há alguns homens que têm bom motivo para me odiar e que gastarão até o último centavo para saber que me apanharam. Enquanto eu estiver vivo e eles também, não há segurança no mundo para mim. Eles me caçaram de Chicago à Califórnia. Depois me fizeram fugir da América. Mas quando me casei e me estabeleci aqui neste lugar, pensei que meus últimos anos seriam tranqüilos. Nunca falei à minha mulher sobre isso. Como eu poderia incluí-la numa coisa dessas? Ela jamais teria um momento de sossego. Ficaria sempre imaginando desgraças. Acho que ela sabe de alguma coisa, pois posso ter deixado escapar um comentário aqui, outro ali: mas até ontem, depois que os senhores a viram, ela jamais soube de nada. Ela lhes contou tudo que sabia, e o mesmo fez Barker, pois, na noite em que tudo aconteceu, não houve muito tempo para explicações. Agora ela sabe tudo, e teria sido mais prudente se eu tivesse contado tudo a ela antes. Mas era um assunto tão desagradável, querida... – Ele segurou a mão dela por um instante – ... e procurei fazer o melhor.
– Bem, senhores, no dia anterior ao desses acontecimentos eu fui a Tunbridge Wells e vi de relance um homem na rua. Minha mente é rápida para essas coisas e não tive dúvida sobre quem seria ele. Era o pior inimigo que eu tinha entre todos os outros, o que ficara atrás de mim como um lobo faminto perseguindo uma rena todos esses anos. Eu vi logo que teria problema, e então vim para casa e me preparei para ele. Achei que podia enfrentá-lo sozinho. Houve um tempo em que a minha sorte era conhecida nos Estados Unidos. Nunca duvidei de que essa sorte ainda estivesse do meu lado.
– Fiquei alerta durante todo o dia seguinte e não saí em momento algum. Isso foi bom, pois do contrário ele teria me acertado com aquela espingarda antes mesmo que eu chegasse perto dele. Depois que a ponte foi suspensa (eu ficava mais tranqüilo quando a ponte era suspensa, à noitinha) eu analisei bem o problema. Nunca imaginei que ele entraria na casa e ficaria esperando por mim. Mas quando fiz minha ronda de roupão, como era meu costume, tão logo entrei no escritório pressenti o perigo. Acho que quando um homem já passou por perigos na vida (e passei por perigos a maior parte da minha), há uma espécie de sexto sentido que acena a bandeira vermelha. Eu vi o sinal de maneira bem nítida e mesmo assim não sei lhes dizer por quê. Logo depois vi a ponta de uma bota aparecendo por baixo da cortina da janela, e então entendi tudo.
– Eu tinha apenas uma vela na mão, mas entrava luz suficiente do hall pela porta, que estava aberta. Eu coloquei a vela na mesa e corri para apanhar o martelo que eu deixara sobre o consolo da lareira. Nesse instante ele saltou em cima de mim. Vi o brilho da lâmina de uma faca e parti para ele com o martelo. Eu o atingi em algum lugar, pois a faca fez barulho ao cair no chão. Ele fugiu para trás da mesa ligeiro como uma enguia e logo depois puxou a arma de dentro do casaco. Eu o ouvi engatilhá-la, mas eu a segurei antes que ele pudesse fazer o disparo. Eu a segurei pelo cano e lutamos durante um minuto mais ou menos. O fato de tê-la largado significou a morte para ele. Ele jamais deixara acontecer algo assim, mas deixou que a coronha ficasse para baixo durante muito tempo. Talvez tenha sido eu quem puxou o gatilho. Talvez tenha sido nossa luta que provocou o disparo. De qualquer modo, ele levou os dois tiros no rosto, e ali estava eu, olhando para o que restara de Ted Baldwin. Eu o reconhecera na cidade aquele dia e novamente quando veio para cima de mim. Mas sua própria mãe não o reconheceria do modo que eu o vi naquela noite. Estou acostumado com coisas desagradáveis, mas ver aquilo realmente me fez mal.
– Eu estava apoiado na mesa quando Barker desceu correndo. Ouvi minha esposa vindo também, e então corri para a porta e a detive. Não era cena para uma mulher ver. Eu prometi que logo iria para perto dela. Falei alguma coisa com Barker (ele entendeu tudo num relance e esperamos que os outros chegassem). Mas não apareceu ninguém. Então percebemos que eles não haviam escutado nada, e que só nós sabíamos o que acontecera.
– Foi nessa hora que tive a idéia. Fiquei encantado com a genialidade da idéia. A manga do homem estava levantada e havia a marca da Loja* feita a fogo. Veja aqui.
O homem que conhecíamos como Douglas suspendeu a manga do seu próprio casaco e o punho da camisa para nos mostrar um triângulo marrom dentro de um círculo, exatamente como a marca que tínhamos visto no braço do morto.
– Foi ao ver essa marca que comecei a reparar no resto. Tudo me parecia perfeito. A altura, o cabelo e o corpo se pareciam com os meus. Ninguém poderia ver o rosto dele, pobre-diabo! Eu trouxe essas roupas aqui para baixo, e em 15 minutos Barker e eu vestimos o roupão nele, e ele estava como os senhores o encontraram. Amarramos tudo num embrulho, coloquei no meio a única coisa pesada que consegui encontrar, e atirei pela janela. O cartão que ele pretendia deixar sobre o meu corpo ficou caído ao lado do dele. Meus anéis foram colocados nos dedos dele, mas na hora da aliança – ele levantou a mão musculosa – os senhores mesmos podem ver que eu passei dos limites. Eu nunca a tirei desde o dia em que nos casamos e iria demorar uma eternidade para arrancá-la do meu dedo. De qualquer modo, não sei se alguma vez eu quis tirá-la, mas se quis, não consegui. Então tivemos de abandonar esse detalhe. Por outro lado, eu apanhei um curativo e o coloquei no lugar onde eu estou usando um. Isto, sr. Holmes, escapou até ao senhor, que é muito esperto. Pois se o senhor, por acaso, tivesse retirado o curativo, não encontraria nenhum corte por baixo dele.
– Esta era a situação. Se eu pudesse ficar escondido por algum tempo e depois fugir para um lugar onde pudesse reencontrar minha “viúva”, nós finalmente teríamos a oportunidade de viver em paz pelo resto de nossas vidas. Esses demônios não me dariam descanso até que eu estivesse debaixo da terra, mas se vissem nos jornais que Baldwin pegara o homem que queriam, isso seria o fim de todos os meus problemas. Eu não tinha muito tempo para dar explicações a Barker e a minha mulher, mas eles compreenderam o suficiente para que pudessem me ajudar. Eu sabia tudo sobre esse esconderijo e Ames também, mas nunca passou pela sua cabeça ligá-lo ao crime. Eu fui para lá e Barker ficou encarregado de cuidar do resto.
– Acho que os senhores podem deduzir o que aconteceu. Ele abriu a janela e fez a marca sobre o parapeito para dar idéia de como o assassino tinha fugido. Era uma coisa extravagante, já que a ponte estava suspensa, mas não havia outra saída. Então, depois que estava tudo arrumado, ele tocou o sino com força. O que aconteceu depois os senhores sabem. E agora, podem fazer o que acharem melhor. Eu lhes contei a verdade, toda a verdade, portanto, que Deus me ajude! O que eu lhes pergunto agora é: como eu fico perante a legislação inglesa?
O silêncio foi quebrado por Sherlock Holmes.
– A legislação inglesa é, em princípio, uma legislação justa. O senhor não receberá dela um castigo pior do que o que merece. Mas eu gostaria de esclarecer como esse homem sabia que o senhor morava aqui, ou como entrou em sua casa, ou onde se escondeu.
– Não sei nada sobre isso.
O rosto de Holmes estava lívido e sério.
– A história não acabou ainda. Receio que não – disse ele. – O senhor pode encontrar perigos piores do que a legislação inglesa, ou piores mesmo que seus inimigos americanos. Acho que o senhor ainda corre perigo, sr. Douglas. Aceite meu conselho e continue alerta.
E agora, leitores pacientes, vou pedir-lhes que venham comigo até um lugar bem distante da Casa Senhorial, de Birlstone, e distante também do ano da graça no qual fizemos nossa movimentada viagem, que terminou com a estranha história do homem conhecido como John Douglas. Desejo que vocês recuem uns vinte anos no tempo, e alguns quilômetros para o oeste, pois assim poderei apresentar-lhes uma narrativa estranha e terrível – tão estranha e tão terrível que vocês podem achar difícil acreditar que tenha acontecido do modo como vou contar. Não pensem que vou começar uma história sem terminar a outra. À medida que vocês lerem, perceberão que não é isso. E quando eu tiver descrito esses fatos tão distantes no tempo e no espaço e vocês tiverem esclarecido esse mistério do passado, vamos nos encontrar novamente em Baker Street, onde tudo isso, assim como muitos outros acontecimentos extraordinários, chegará ao seu final.