o caso do detetive agonizante

A senhora Hudson, senhoria de Sherlock Holmes, era uma mulher paciente. Seu apartamento do primeiro andar não só era invadido a toda hora por hordas de pessoas esquisitas e muitas vezes indesejáveis, como também seu notável inquilino tinha uma vida excêntrica e irregular, o que deve ter posto à prova a paciência dela. O incrível desmazelo dele, sua mania de tocar música nas horas mais impróprias, suas constantes práticas de tiro ao alvo dentro do quarto, as experimentações científicas estranhas e fedorentas, a atmosfera de violência e perigo que o cercava constantemente, tudo isso provavelmente fazia dele o pior inquilino de Londres. Por outro lado, o aluguel que pagava era nababesco. Não tenho dúvida de que a casa poderia ter sido comprada com o que Holmes pagou de aluguel pelos aposentos durante os anos em que morei com ele.

A senhoria o respeitava muitíssimo e jamais ousou intrometer-se na vida dele,

por mais estranhas que pudessem ser suas atitudes. Também gostava muito dele, pois ele demonstrava excepcional gentileza no trato com as mulheres. Sherlock não admirava as mulheres e desconfiava delas, mas sempre foi um adversário cavalheiresco. Sabendo como era sincera sua preocupação com ele, ouvi atentamente a história que ela me contou, quando veio me ver em minha casa, no segundo ano de meu casamento, falando-me da triste situação a que meu velho amigo estava reduzido.

– Ele está morrendo, dr. Watson – ela disse. – Faz três dias que está se afundando e temo que ele não viva um dia mais. Ele não me deixa chamar um médico. Hoje de manhã, quando vi os ossos quase furando a pele do seu rosto, os olhos grandes e brilhantes me fitando, não agüentei mais. “Com sua permissão ou sem ela, vou chamar um médico agora mesmo”, eu lhe disse. “Então, que seja o Watson”, ele respondeu. Eu não perderia um minuto, ou poderá encontrá-lo morto.

Fiquei horrorizado, porque eu não sabia da doença dele. Não preciso dizer que corri para pegar meu paletó e o chapéu. Enquanto estávamos indo para Baker Street, pedi-lhe mais detalhes.

– Posso lhe contar pouca coisa, senhor. Ele andou trabalhando num caso em Rotherhithe, numa ruazinha perto do rio, e voltou com essa doença. Deitou-se na quarta-feira à tarde e não se levantou mais. Durante estes últimos três dias não bebeu nem comeu.

– Deus do céu! Por que a senhora não chamou um médico?

– Ele não quer. O senhor bem sabe como ele é autoritário. Não ousei desobedecê-lo. Mas ele não ficará muito tempo neste mundo, como o senhor mesmo vai ver quando puser os olhos nele.

Era, de fato, um espetáculo deplorável. Na luz baça de um dia enevoado de novembro, o quarto do doente era um lugar triste, mas o que me gelou o coração foi aquele rosto lívido e descarnado, olhando-me da cama. Seus olhos tinham aquele brilho de febre, havia um vermelho doentio em ambas as faces e crostas escuras nos lábios; as mãos magras se contorciam incessantemente sobre o cobertor, a voz estava áspera e convulsiva. Quando entrei no quarto, ele continuou deitado, apático, mas ao me ver, seus olhos brilharam como sinal de reconhecimento da minha presença.

– Bem, Watson, parece que o negócio vai mal – ele disse numa voz débil, mas com um pouco do seu velho jeito despreocupado.

– Meu caro amigo! – exclamei, aproximando-me dele.

– Não se aproxime! Fique afastado! – disse num tom autoritário que eu só ouvia nos momentos de crise. – Se você se aproximar de mim, Watson, vou ser obrigado a lhe pedir que saia desta casa.

– Mas... por quê?

– Porque eu quero assim. Não lhe basta isso?

A senhora Hudson tinha razão. Ele estava mais autoritário do que nunca. Mas era lamentável ver seu esgotamento.

– Eu só queria ajudar – expliquei.

– Exatamente! Mas a melhor ajuda será fazer o que estou dizendo!

– Certamente, Holmes.

Ele abrandou sua atitude austera.

– Não ficou zangado? – perguntou, ofegante.

Pobre sujeito! Como eu podia ficar zangado vendo-o naquela situação angustiante na minha frente?

– É para o seu próprio bem, Watson – disse, numa voz rouca.

– Para o meu bem?...

– Eu sei o que está acontecendo comigo. É uma doença dos cules de Sumatra – uma doença que os holandeses conhecem mais do que nós, embora lhe tenham dado pouca importância até hoje. Só uma coisa é certa – é infalivelmente mortal e tremendamente contagiosa.

Falava, agora, com uma energia febril, com as mãos magras se contorcendo e se agitando na tentativa de me manter afastado.

– Contagiosa pelo contato, Watson... sim, pelo contato. Fique longe e tudo estará bem.

– Por Deus, Holmes! Você acha que o que disse significa alguma coisa para mim, por um instante sequer? Não me afetaria se se tratasse de um estranho. Imagine se vai me impedir de cumprir meu dever para com um velho amigo.

Aproximei-me de novo, mas ele me repeliu com um olhar furioso.

– Se você ficar ali, eu falo. Do contrário, pode ir embora.

Tenho um respeito tão grande pelas qualidades excepcionais de Holmes que sempre me sujeitei às suas vontades, mesmo quando eu não conseguia entendê-las. Mas agora todos os meus instintos profissionais estavam alertas. Ele podia ser meu mestre em qualquer outro lugar, mas aqui eu estava no quarto de um doente.

– Holmes, você está perturbado. Um homem doente não passa de uma criança, e é assim que eu vou tratá-lo. Quer você goste ou não, vou examinar seus sintomas e medicá-lo.

– Se eu for obrigado a ter um médico, querendo ou não – ele disse, olhando-me com rancor –, deixe-me, pelo menos, ter um em que eu possa confiar...

– Então não confia em mim?

– Na sua amizade, sem dúvida. Mas fatos são fatos, Watson, e, afinal de contas, você é apenas um clínico geral com experiência limitada e dotes medíocres. É doloroso ter de lhe dizer estas coisas, mas você não me deixa escolha.

Fiquei profundamente magoado.

– Esta observação é indigna de você, Holmes. Ela me mostra claramente o estado de seus nervos. Mas, já que não confia em mim, não vou impor meus préstimos. Deixe-me trazer sir Jasper Meek, ou Penrose Fisher, ou qualquer um dos melhores médicos de Londres. Você precisa de um médico, e isto é definitivo. Se acha que vou ficar aqui e vê-lo morrer sem que eu o ajude ou traga algum outro médico para socorrê-lo, então você realmente não me conhece.

– Sei que quer o meu bem, Watson – disse o doente, numa voz mista de soluço e gemido. – Quer que lhe mostre sua ignorância? O que você sabe, por exemplo, sobre a febre de Tapanuli? O que sabe sobre a peste negra de Formosa?

– Nunca ouvi falar em nenhuma delas.

– Há muitas doenças desconhecidas e muitas complicações patológicas estranhas no Oriente, Watson.

Ele fazia uma pausa depois de cada frase para juntar as forças que lhe restavam.

– Aprendi muito durante algumas pesquisas que fiz recentemente, pesquisas de caráter médico-legal. Foi durante uma delas que contraí esta moléstia. Não há nada que você possa fazer.

– Pode ser que não. Mas acontece que eu conheço o dr. Ainstree, a maior autoridade viva em doenças tropicais, e ele está na cidade no momento. Não adianta fazer objeções, Holmes; vou agora mesmo buscá-lo.

Virei-me decidido a sair. Nunca experimentei tamanho choque! Num instante, com um pulo de tigre, o homem agonizante me interceptou. Escutei o estalido seco da chave trancando a porta. Em seguida, cambaleando, ele voltou para a cama, exausto e ofegante, depois do tremendo dispêndio de energia.

– Não vai tirar a chave de mim à força, Watson. Eu o prendi, amigo. Você está aqui e aqui vai ficar até quando eu quiser. Mas vou satisfazer sua vontade.

Dizia isso em rápidos arrancos, esforçando-se tremendamente para respirar entre uma palavra e outra.

– Você quer apenas o meu bem. Claro que sei disso. Você vai fazê-lo, mas dê-me tempo para recuperar minhas forças. Agora não, Watson, agora não! São quatro horas agora. Às seis poderá ir.

– Mas isto é loucura, Holmes.

– Apenas duas horas, Watson. Eu lhe prometo que poderá sair às seis. Pode esperar?

– Não tenho outra alternativa.

– E não tem mesmo, Watson. Obrigado, não preciso de ajuda para arrumar as cobertas. Mantenha distância, por favor. E agora, Watson, há uma outra condição que vou impor. Você vai procurar ajuda, mas não do médico que mencionou; será daquele que eu indicar.

– Está bem, então.

– Estas são as três primeiras palavras sensatas que você diz desde que entrou neste quarto, Watson. Ali na estante você vai encontrar alguns livros. Eu estou exausto; fico imaginando como uma bateria se sente quando joga eletricidade num mau condutor. Às seis horas, Watson, continuaremos nossa conversa.

Mas a conversa estava destinada a ser retomada muito antes da hora combinada, e em circunstâncias que me provocaram um tremendo susto, igual ao que levei quando ele trancou a porta. Eu havia ficado de pé durante algum tempo olhando a figura silenciosa na cama. O rosto estava quase todo coberto e ele parecia dormir. Incapaz de me concentrar em leituras, eu fiquei andando lentamente pelo quarto, olhando os retratos de criminosos famosos que adornavam as paredes. Finalmente, nessa minha perambulação, aproximei-me do consolo da lareira. Vários cachimbos, bolsas de fumo, seringas, canivetes, cartuchos de revólver e outros objetos estavam espalhados ali em cima. No meio de tudo isso havia uma caixinha branca e preta de marfim, com uma tampa móvel. Era um objeto bonito e eu estendi a mão para pegá-lo e examiná-lo mais de perto quando... Ele deu um grito horrível, um berro que deve ter sido ouvido na rua inteira. Quando me virei, vi um rosto convulso e olhos desvairados. Fiquei paralisado, com a caixinha na mão.

– Largue isso aí! Agora, Watson, agora!

Quando recoloquei o objeto no lugar, ele afundou de novo a cabeça no travesseiro e deu um suspiro de alívio.

– Detesto que mexam nas minhas coisas, Watson. Você sabe disso. Pare de me atormentar. Você, um médico, é capaz de mandar uma pessoa para o hospício... Sente-se, homem, e deixe-me descansar!

O incidente deixou em mim uma impressão extremamente desagradável. A excitação, violenta e injustificada, seguida pela brutalidade das palavras, normalmente gentis, tudo me demonstrou sua profunda desorganização mental. De todas as desgraças, a ruína de um cérebro privilegiado é a mais deplorável. Fiquei sentado, numa silenciosa mortificação, até chegar a hora marcada.

Ele parecia ter ficado de olho no relógio, como eu, porque eram quase 18 horas quando começou a falar com a mesma animação febril de antes.

– Agora, Watson – disse. – Tem dinheiro trocado?

– Tenho.

– Moedas?

– Bastante.

– Quantas meias-coroas?

– Cinco.

– Oh, muito pouco! Muito pouco! Que azar, Watson! Mas você pode colocá-las no bolsinho do relógio. Ponha o resto do seu dinheiro no bolso da calça. Obrigado. Isso vai ajudá-lo a manter seu equilíbrio.

Estava delirando! Estremeceu e novamente fez um som meio tosse, meio soluço.

– Acenda o bico de gás, Watson, mas tenha todo o cuidado para que ele não passe, nem por um momento, da metade de sua potência. Excelente. Não, não precisa fechar as cortinas. Agora, por favor, ponha algumas cartas e jornais nesta mesa, aqui perto. Obrigado. Agora, um pouco do material do consolo da lareira. Excelente, Watson. Ali está uma pinça para os tabletes de açúcar. Pegue com ela a caixinha de marfim. Coloque aqui entre os jornais. Está ótimo! Agora pode ir e trazer o sr. Culverton Smith, que mora em Lower Burke Street, no 13.

Para dizer a verdade, minha vontade de ir buscar um médico tinha diminuído, porque o pobre Holmes estava delirando e me pareceu perigoso deixá-lo sozinho. Entretanto, agora ele estava tão ansioso para consultar aquela pessoa como estivera obstinado em não aceitar antes.

– Nunca ouvi falar neste nome – eu disse.

– Possivelmente não, meu bom Watson. Talvez fique surpreso ao saber que o homem que mais entende dessa doença no mundo não é um médico, mas um agricultor. O sr. Culverton Smith é um conhecido fazendeiro residente em Sumatra, agora em visita a Londres. Um surto desta moléstia em sua plantação, distante de qualquer assistência médica, obrigou-o a estudá-la profundamente, com resultados impressionantes. É uma pessoa muito metódica e eu não queria que você fosse buscá-lo antes das seis horas porque sei que não o encontraria em casa. Se você puder convencê-lo a vir aqui, com sua excepcional experiência da doença – assunto que se tornou seu passatempo predileto –, tenho certeza de que ele poderá me ajudar.

Transcrevo as palavras de Holmes sem quebrar a seqüência, não mostrando como eram interrompidas pela falta de ar, e as mãos crispadas que indicavam a dor que estava sofrendo. A aparência dele havia piorado nas poucas horas em que eu estivera ali no quarto. As manchas vermelhas no rosto estavam maiores, os olhos mais brilhantes nas cavidades ainda mais escuras e um suor frio surgira na testa. Mas ainda mantinha o tom imperioso ao falar. Até o último suspiro ele seria sempre o mestre.

– Conte-lhe exatamente como me deixou. Transmita a impressão que você tem de mim... um homem agonizante... em delírios... Para falar a verdade, não consigo entender por que o leito do mar não é uma massa sólida feita de ostras, já que elas parecem proliferar tanto. Oh, estou delirando de novo... É estranho como o cérebro controla o cérebro! O que eu estava dizendo, Watson?

– Instruções para minha conversa com o sr. Culverton Smith.

– Ah, sim, eu me lembro agora. Minha vida depende disso. Insista com ele, Watson. Não estamos em boas relações. Seu sobrinho... eu desconfiei de algo irregular... e fiz com que ele visse isso. O rapaz teve uma morte horrível. Ele tem mágoa de mim. Você vai convencê-lo, Watson. Implore, suplique, traga-o aqui de qualquer maneira. Ele pode me salvar – só ele!

– Eu o trarei num carro, mesmo que tenha de arrastá-lo!

– Nem pense em fazer uma coisa assim! Você tem de convencê-lo a vir. E volte sozinho, antes dele. Dê uma desculpa qualquer, mas não venha com ele. Não se esqueça, Watson. Não me decepcione. Você nunca me falhou antes. Não há dúvida de que existem inimigos naturais que limitam o aumento das criaturas. Você e eu, Watson, fizemos a nossa parte. O mundo deve, então, ser invadido por ostras? Não, não, é horrível! Você vai transmitir tudo o que está na sua mente!

Deixei-o e saí com a imagem de um intelecto magnífico tagarelando como uma criança retardada. Levei a chave, com medo de ele se trancar no quarto. A sra. Hudson, trêmula e chorosa, me aguardava no corredor. Quando passei por ela, ainda ouvi a voz aguda e penetrante de Holmes numa cantoria delirante. Na rua, enquanto chamava um carro, um homem aproximou-se de mim em meio à neblina.

– Como está o sr. Holmes? – perguntou.

Era um velho conhecido, o inspetor Morton, da Scotland Yard.

– Ele está muito doente – respondi.

Ele me fitou de um modo estranho. Se não fosse perverso demais, eu diria ter visto em seu rosto, à luz do lampião, uma espécie de alegria...

– Ouvi falar – ele comentou.

O cabriolé se aproximou e eu fui embora. Lower Burke Street era uma fila de belas casas, situadas num trecho entre Notting Hill e Kensington. A casa, diante da qual o cocheiro parou, tinha um aspecto de sóbria respeitabilidade, com grades de ferro de estilo antigo, porta maciça de folha dupla, ornatos de bronze reluzente. Tudo combinava com o solene mordomo que apareceu, enquadrado numa claridade rósea de uma lâmpada atrás dele.

– Sim, o sr. Culverton Smith está. Dr. Watson? Muito bem, senhor, vou levar-lhe o seu cartão.

Meu nome e meu título humildes pareceram não impressionar o sr. Culverton Smith. Pela porta entreaberta ouvi uma voz alta, petulante, penetrante.

– Quem é ele? O que quer? Ora, Staples, quantas vezes eu tenho de lhe dizer que não quero ser incomodado nas minhas horas de estudo?

Seguiu-se uma série de desculpas do mordomo.

– Bem, não vou recebê-lo, Staples. Não posso interromper meu trabalho desta forma. Não estou em casa. Diga-lhe isso. Diga-lhe para voltar amanhã de manhã, se realmente precisa falar comigo.

Novamente ouvi o murmúrio respeitoso.

– Bem, bem, diga-lhe isso. Ele pode vir de manhã, ou não vir. Meu trabalho não pode ser interrompido.

Pensei em Holmes, se contorcendo doente na cama e talvez contando os minutos até eu poder levar-lhe ajuda. Não era hora para cerimônias. A vida dele dependia de minha presteza. Antes que o mordomo constrangido me desse o recado, eu o empurrei e entrei na sala.

Com um grito estridente de raiva, um homem levantou-se da espreguiçadeira ao lado da lareira. Vi um rosto amarelo e grande, grosseiro e gorduroso, com uma papada acentuada e os olhos ameaçadores sob as sobrancelhas espessas e grisalhas fixos em mim. A cabeça pontuda e calva tinha um pequeno barrete de veludo inclinado sobre um dos lados do crânio rosado. A cabeça era grande, mas quando olhei para ele, vi, com espanto, que o corpo do homem era pequeno e frágil, curvado nos ombros e nas costas, como alguém que tivesse sofrido de raquitismo na infância.

– O que significa isso? – perguntou numa voz alta e estridente. – O que significa esta intromissão? Não mandei lhe dizer que só o receberia amanhã cedo?

– Lamento muito – eu disse –, mas o assunto não pode ser adiado. Sherlock Holmes...

A menção ao nome do meu amigo produziu um efeito extraordinário no homenzinho. A raiva estampada no rosto sumiu de repente. Sua expressão ficou tensa e alerta.

– Você vem da parte de Holmes?

– Acabei de deixá-lo.

– E Holmes, como está?

– Terrivelmente doente. Vim por causa disso.

Ele indicou-me uma cadeira e voltou para o seu lugar. Quando eu estava para me sentar, vi o rosto dele refletido no espelho sobre a lareira. Podia jurar que vi um sorriso malicioso e diabólico. Mesmo assim tentei convencer-me de que se tratava de algum tique nervoso, porque logo em seguida ele se virou para mim com uma expressão de verdadeira preocupação no rosto.

– Sinto muito ouvi-lo dizer isso. Só conheço o sr. Holmes por causa de uns negócios que mantivemos, mas tenho grande respeito pelo seu talento e caráter. Ele é um estudioso do crime como eu o sou das doenças. Para ele, o criminoso, para mim, o micróbio. Lá estão minhas prisões.

Ao dizer isso, apontou para uma fila de frascos e tubos de ensaio que estavam sobre uma mesa.

– No meio daquelas culturas gelatinosas estão cumprindo pena alguns dos piores malfeitores do mundo.

– É por causa do seu conhecimento especial que Sherlock deseja vê-lo. Ele o tem em alta conta e acha que é o único homem em Londres que pode salvá-lo.

O homenzinho estremeceu e o elegante barrete caiu no chão.

– Por quê? – perguntou. – Por que o sr. Holmes acha que eu poderia ajudá-lo agora?

– Por causa de seus conhecimentos sobre doenças orientais.

– Mas por que ele acha que a doença que contraiu seja oriental?

– Ele trabalhou recentemente entre marinheiros chineses, nas docas, num caso qualquer.

O sr. Culverton sorriu com satisfação e pegou o barrete do chão.

– Oh, é isso então, hein? Acho que o caso pode não ser tão grave quanto o senhor supõe. Há quanto tempo ele está doente?

– Faz uns três dias.

– Tem tido delírios?

– De vez em quando.

– Ora, ora, isto me parece grave. Seria desumano não atender ao seu pedido de socorro. Não gosto de interromper os meus estudos, dr. Watson, mas este caso é, de fato, excepcional. Irei imediatamente com o senhor.

Lembrei-me da recomendação de Holmes.

– Tenho outro compromisso – desculpei-me.

– Muito bem, irei sozinho, então. Tenho seu endereço anotado. Prometo que estarei lá dentro de meia hora, no máximo.

Com o coração apreensivo, voltei ao quarto de Holmes. Temia que o pior tivesse acontecido na minha ausência. Para meu grande alívio, porém, ele tinha melhorado bastante desde que eu saíra. Sua aparência ainda era horrível, mas não estava mais delirando e falava com uma voz fraca, é verdade, porém com mais lucidez e vivacidade do que o normal.

– E então, esteve com ele, Watson?

– Sim, ele está a caminho.

– Formidável, Watson! Formidável! Você é o melhor dos mensageiros!

– Ele queria vir comigo.

– Mas de maneira alguma. Isto não poderia ser. Ele lhe perguntou o que tenho?

– Eu falei dos chineses no East End...

– Ótimo! Bem, Watson, você fez tudo o que um bom amigo podia fazer. Pode sair de cena agora.

– Tenho de esperar para ouvir o diagnóstico dele, Holmes.

– Claro que sim. Mas tenho motivos para supor que a opinião dele será muito mais franca e valiosa se ele pensar que estamos sozinhos. Há espaço suficiente para você se esconder atrás da cabeceira da cama, Watson.

– Holmes!...

– Receio que não haja alternativa, meu amigo. O lugar não despertará suspeita, pois não é próprio para servir de esconderijo. Creio que é o único lugar em que você poderá ficar.

Sentou-se de repente, com uma expressão rígida no rosto descarnado.

– Aí está ele, Watson. Depressa, homem, se gosta de mim! E não se mexa, aconteça o que acontecer, seja lá o que for, ouviu bem? Não diga uma palavra! Não faça um movimento! Apenas fique atento.

Logo em seguida, seu repentino acesso de energia sumiu, e sua fala, autoritária e dominadora, transformou-se no murmúrio vago e baixo de uma pessoa delirante.

Do esconderijo onde me instalei rapidamente, ouvi passos subindo a escada, a porta do quarto sendo aberta e fechada. Então, para minha surpresa, houve um longo silêncio, quebrado apenas pela respiração pesada e ofegante do doente. Eu podia imaginar o visitante de pé ao lado da cama, olhando para o meu amigo sofredor. Finalmente, o estranho silêncio foi rompido.

– Holmes! Holmes! – chamou o visitante, no tom insistente de alguém que acorda um dorminhoco. – Pode me ouvir, Holmes?

Ouvi em seguida um farfalhar de panos, como se ele estivesse sacudindo o doente vigorosamente pelos ombros.

– É o sr. Smith? – murmurou Holmes. – Duvidava que viesse.

O outro riu.

– Eu já sabia – respondeu. – E mesmo assim, como vê, aqui estou. Retribuição! Retribuição!

– Foi muita bondade... muito nobre de sua parte. Eu respeito os seus conhecimentos especiais.

O visitante riu, sarcástico.

– Verdade? Felizmente, você é o único homem em Londres que o aprecia. Sabe o que há com você?

– A mesma doença – murmurou Holmes.

– Ah, então você reconhece os sintomas?

– Demais... demais...

– Bem, eu não deveria ficar surpreso, Holmes. Eu não deveria ficar surpreso se fosse a mesma doença. Pior para você, se for ela. O pobre Victor morreu no quarto dia – um jovem forte e saudável. Como você disse, na verdade foi surpreendente que ele tivesse contraído uma remota doença asiática, em pleno coração de Londres – doença sobre a qual fiz um estudo especial. Estranha coincidência, Holmes. Você foi muito esperto em tê-la notado mas foi falta de caridade sugerir que entre os dois fatos existia relação de causa e efeito...

– Eu sabia que você a havia provocado.

– Oh, sabia, não? Bem, não podia provar, de qualquer modo. Mas o que acha de ficar me difamando e depois vir rastejando aos meus pés na hora em que está com problemas? Que tipo de jogo é esse, hein?

Ouvi a respiração difícil e entrecortada do doente.

– Quero água! – ele arquejou.

– Você está no fim, meu caro, mas não quero que morra sem escutar algumas coisas que tenho para lhe dizer. É por isso que vou dar-lhe a água. Aí está... não a beba de uma vez... está bom. Está entendendo o que eu digo?

– Faça o que puder por mim – Sherlock murmurou. – Águas passadas não movem moinho. Vou tirar da cabeça o que eu sei, juro que vou. Apenas me cure... e eu esquecerei o que sei...

– Esquecer o quê?

– Ora, sobre a morte de Victor Savage. Acabou de admitir que o matou... Eu vou esquecer isso...

– Faça como quiser, pode esquecer ou não. Não o vejo no banco de testemunhas. Vejo-o dentro de um caixão, meu caro Holmes, isso eu lhe garanto. Pouco me importa que você saiba como meu sobrinho morreu. Não estamos falando sobre ele. Estamos falando sobre você.

– Sim... sim...

– O sujeito que me procurou – esqueci seu nome – disse-me que você contraiu a doença trabalhando no East End, no meio de marinheiros.

– Só posso achar que foi isso...

– Você se orgulha da sua inteligência, não é? Acha que é esperto, hein? Agora você encontrou alguém que é mais esperto do que você. Tente lembrar-se, Holmes. Não acha que pode ter sido contaminado de outra forma?

– Não consigo pensar... a lembrança sumiu... Pelo amor de Deus, me ajude!

– Sim, vou ajudá-lo. Vou ajudá-lo a se lembrar de onde e como você pegou a peste. Gostaria que você soubesse disso, antes de morrer.

– Dê-me alguma coisa para aliviar a dor...

– Está doendo, hein? Sim, os cules berravam de dor quando estavam perto do fim. É uma espécie de câimbra, imagino.

– Sim... sim... câimbras...

– Bem, de qualquer modo, pode escutar o que tenho a lhe dizer. Escute, então! Você se lembra de algum incidente incomum na sua vida, pouco antes de os sintomas aparecerem?

– Não, não, nada...

– Pense de novo!

– Estou muito doente para pensar...

– Bem, então eu vou ajudá-lo. Chegou alguma coisa pelo correio?...

– Pelo correio?

– Uma caixinha, por acaso?

– Estou desmaiando... vou morrer...

– Ouça, Holmes!

Escutei um ruído, como se ele estivesse sacudindo o homem agonizante, e eu só podia ficar quieto no meu esconderijo.

– Você tem de me ouvir! – continuou ele. – Você vai me ouvir! Você se lembra de uma caixinha... uma caixinha de marfim? Veio no correio de quarta-feira. Você a abriu, lembra-se?

– Sim... sim, eu a abri. Havia uma agulha movida por mola... alguma brincadeira...

– Não era nenhuma brincadeira, como vai descobrir à própria custa. Idiota, você procurou e achou! Quem lhe pediu para ficar no meu caminho? Se me tivesse deixado em paz, eu não o prejudicaria.

– Eu me lembro – Holmes sussurrou. – A mola! Tirou sangue. Aquela caixinha... aquela caixinha na mesa...

– Esta mesmo, é claro! E vou levá-la comigo, no meu bolso, quando sair. Lá se vai sua última possibilidade de prova. Mas você acabou de ouvir a verdade agora, Holmes, e pode morrer com a certeza de que eu o matei. Você sabia demais a respeito do destino de Victor Savage; de modo que resolvi que você devia ter o mesmo destino. Você está no fim, Holmes. Vou me sentar aqui e vê-lo morrer.

A voz de Sherlock Holmes tinha se transformado num murmúrio quase inaudível.

– Como? – perguntou Culverton Smith. – Aumentar a luz do gás? Ah, as sombras começam a cair, não é? Sim, eu vou aumentá-la para poder vê-lo melhor.

Ele atravessou o quarto e a luz brilhou de repente.

– Mais alguma coisinha que eu possa fazer, amigo?

– Fósforo e cigarro.

Quase gritei de alegria e espanto. Ele estava falando com sua voz normal – um pouco fraca, talvez, mas aquela voz que eu conhecia. Houve um longo silêncio e eu senti que Culverton Smith estava parado, em silêncio, olhando espantado para o meu amigo.

– O que significa isso?... – eu o ouvi perguntar finalmente, num tom seco e áspero.

– A melhor maneira de se representar com sucesso é identificar-se com o papel – respondeu Holmes. – Dou-lhe minha palavra de que nos últimos três dias não toquei em comida nem em bebida até que você teve a bondade de me dar aquele copo d’água. Mas eu senti mais falta foi do fumo. Ah, aqui estão alguns cigarros!...

Ouvi quando ele riscou um fósforo.

– Assim é muito melhor. Ora, ora, estarei escutando os passos de um amigo?

De fato, ouvi passos do lado de fora, a porta foi aberta e apareceu o inspetor Morton.

– Está tudo bem e este é o seu homem – disse Sherlock Holmes.

O policial fez as advertências habituais e concluiu:

– Eu o prendo pelo assassinato de Victor Savage.

– E pode acrescentar a tentativa de assassinato de Sherlock Holmes – comentou meu amigo com um risinho. – Para poupar trabalho a um inválido, o sr. Culverton teve a bondade de fazer o nosso sinal, inspetor, aumentando a luz do gás. A propósito, o seu prisioneiro tem uma caixinha no bolso direito do paletó que seria melhor retirar. Se eu fosse você, teria mais cuidado ao mexer nela. Ponha-a aqui. Vai ser muito importante no julgamento.

Ouvi uma corrida repentina e barulho de luta, e em seguida um tilintar de metais e um grito de dor.

– Vai apenas se machucar – disse o inspetor. – Fique quieto, está bem?

Escutei o ruído de algemas se fechando.

– Uma bela armadilha! – gritou o prisioneiro num tom estridente e ríspido. – Isso levará você à cadeia, Holmes, e não eu. Ele me pediu para vir aqui curá-lo. Senti pena e vim. Agora, sem dúvida vai alegar que eu disse alguma coisa que pode inventar, e que vai confirmar suas suspeitas doentias. Pode mentir à vontade, Holmes. Minha palavra sempre vai valer tanto quanto a sua.

– Meu Deus! – exclamou Holmes. – Esqueci-me totalmente dele! Meu caro Watson, devo-lhe mil desculpas. E pensar que eu me esqueci de você! Não é necessário que eu o apresente ao sr. Culverton Smith, porque eu sei que se conheceram há pouco. O carro está lá embaixo? Vou acompanhá-lo, inspetor, depois de me vestir, porque posso ser útil na delegacia.

– Nunca precisei tanto disso – disse Holmes, se reabastecendo com um copo de vinho e bolachas enquanto tirava a maquiagem. – Você bem sabe como meus hábitos são irregulares, e fazer o que fiz foi bem mais fácil para mim do que para a maioria das pessoas. Era indispensável que a sra. Hudson ficasse impressionada com o meu estado, já que ela transmitiria a impressão a você, e você a transmitiria a Culverton Smith. Você não vai ficar zangado, não é, Watson? Você vai perceber que, entre os seus muitos talentos, não há lugar para a dissimulação, e que, se soubesse do meu segredo, não conseguiria convencer o sr. Smith da necessidade imperiosa de sua presença, ponto vital de todo o esquema. Conhecendo a natureza vingativa dele, eu tinha certeza de que ele viria conferir o seu próprio trabalho...

– Mas, e sua aparência, Holmes, seu rosto cadavérico?...

– Três dias de jejum total não ajudam a embelezar ninguém, Watson. Quanto ao resto, não existe nada que uma boa esponja não consiga curar... Com vaselina na testa, beladona nos olhos e crostas de cera nos lábios a gente consegue produzir um bom efeito. Disfarce é um assunto sobre o qual eu já pensei em escrever uma monografia. Uma conversinha de vez em quando sobre meias-coroas, ostras ou qualquer outro assunto esquisito pode produzir um efeito convincente de delírio.

– Mas por que não deixou que eu me aproximasse de você quando, na verdade, não havia perigo de infecção?

– Você ainda pergunta, meu caro Watson? Acredita que eu não tenha respeito pelos seus dotes médicos? Eu podia imaginar que, com seu julgamento perspicaz, você iria acreditar que um homem agonizante, embora fraco, não apresentasse aumento de temperatura nem pulso? Eu conseguiria enganar você a uns 3 metros de distância. Se não conseguisse, quem traria o sr. Smith ao alcance? Não, Watson, eu não mexeria naquela caixinha. Você mesmo pode ver, se olhar de lado, por onde a lâmina afiada pula como um dente de víbora quando a abrimos. Eu diria que o pobre Savage, que se interpôs entre o monstro e a herança, foi morto de forma semelhante. Mas minha correspondência é muito variada, como você sabe, e eu fico sempre em guarda com relação aos pacotes que me chegam. Mas ficou claro para mim que somente fingindo que ele tivera êxito na sua tentativa é que eu poderia conseguir uma confissão de culpa. Representei o papel com a perfeição de verdadeiro artista. Obrigado, Watson, ajude-me a vestir o casaco. Assim que terminarmos tudo na delegacia, creio que alguma coisa bem nutritiva no Simpson não seria inconveniente.


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