LIVRO IICAPÍTULO NOVE
Quatro dias depois, o China Cloud estava secretamente ancorado na Baía Deepwater, na extremidade sul da Ilha de Hong Kong. Era uma manhã fria, com um céu coberto de nuvens e mar acinzentado.
Struan estava em pé junto às janelas em forma de diamante da cabina principal, olhando para a ilha. As montanhas áridas desciam abruptamente até o mar, em torno da baía, com os cumes envoltos em nuvens. Havia uma pequena praia de areia no vértice da baía e depois a terra se erguia rapidamente mais uma vez, até as nuvens, agreste e solitária. Gaivotas grasnavam. As ondas lambiam suavemente o casco do navio e a sineta de bordo soou seis vezes.
— Sim? — disse Struan, em resposta a uma batida na porta.
— O cúter voltou — disse o Capitão Orlov, cansadamente. Era um corcunda musculoso e cabeça grande. Um chicote de ferro estava amarrado ao seu pulso, pela correia de couro. Desde que as barras de prata haviam chegado a bordo, ele usava o chicote de ferro dia e noite, e até dormia com ele.
— Pelas barbas de Odin, nossa carga é pior do que a peste negra.
— Mais problemas?
— Problemas, diz? Jamais num navio meu, pela cabeça da mãe de Jesus Cristo! — O homenzinho deformado riu com alegria malévola. Pelo menos, não enquanto eu estiver acordado, hein, Olhos Verdes?
Struan encontrava Orlov vagueando pelas docas de Glasgow, há muitos anos. Era um norueguês que sofrerá um naufrágio nas perigosas Orkneys, e não conseguia encontrar um novo navio. Embora os marinheiros não fizessem distinção entre nacionalidades, nenhum proprietário confiaria um navio a um homem tão estranho, que não chamava ninguém de “sir” e nem de “mister” e servia só como capitão — nenhum escalão inferior a este.
— Sou o melhor do mundo — Orlov gritava, com seu rosto sarapintado, de nariz comprido, tremendo de fúria. — Já cumpri meu período de marinheiro... não volto mais! Faça um teste comigo e vou provar isso, pelo sangue de Thor!
Struan testara os conhecimentos de Orlov quanto ao mar e ao vento, e testara sua força e sua coragem, nada encontrando que deixasse a desejar. Orlov falava inglês, francês, russo, finlandês e norueguês. Sua mente era brilhante e sua memória espantosa. E, embora parecesse um diabrete e fosse capaz de matar como um tubarão, se necessário, era justo e completamente digno de confiança. Struan dera-lhe um navio pequeno, e depois um maior. Em seguida, um clíper. Ano passado, fizera-o capitão do China Cloud e sabia que Orlov correspondia a tudo que esperava.
Struan despejou mais chá, quente e doce, e temperou com rum.
— Logo que o Sr. Robb e Culum chegarem a bordo, parta para o porto de Hong Kong.
— Quanto antes melhor, hein?
— Onde está Wolfgang?
— Em sua cabina. Quer falar com ele?
— Não. E providencie para não sermos perturbados. Orlov ajeitou, irritado, suas roupas úmidas do mar, ao sair.
— Quanto antes nos livrarmos dessa carga empesteada, melhor. É a mais terrível que já transportei.
Struan não respondeu. Embora exausto, seu cérebro se mantinha alerta. Quase em casa, disse a si próprio. Mais algumas horas e você estará a salvo no porto. Graças a Deus existe a Marinha Real. Junto de uma das fragatas, você pode descansar.
A cabina central era luxuosa e ampla. Mas agora se encontrava repleta de mosquetes, facas, chicotes de ferro, espadas e punhais. Ele desarmara toda sua tripulação, antes de levar as barras de prata para bordo. Agora, só ele e o Capitão Orlov portavam armas. Struan podia sentir a violenta tensão que invadia o navio. As barras de prata haviam contagiado a todos. Sim, pensou, não deixarão nenhum homem intocado. Nem mesmo Robb. Nem mesmo Culum. Talvez nem mesmo Orlov.
***
Após a partida do Pagode de Mármore, Ah Gip entrara em coma e morrera. Struan desejara enterrá-la no mar, mas May-may pedira-lhe que não.
— Ah Gip era uma escrava fiel — dissera ela. — Seria mau pagode não devolvê-la a seus pais, e nem enterrá-la como chinesa, ah, seria uma coisa terrível, Tai-Pan.
Então, Struan mudara de curso e seguira para Macau. Ali, com a ajuda de Mauss, comprara para Ah Gip um belo esquife e o entregara a seus pais. Também lhes dera dez taéis de prata para seu funeral. Os pais eram gente Hoklo, moradores em barcos, e lhe agradeceram. Insistiram também para que levasse a irmã mais moça de Ah Gip, Ah Sam, no lugar dela. Ah Sam tinha quinze anos, uma mocinha alegre, de rosto redondo, que também falava pidgin e, o que não era costumeiro para uma Hoklo, tinha os pés atados.
May-may conhecera Ah Sam e a aprovara, e então Struan concordara. Os pais pediram três mil taéis de prata por Ah Sam. Struan lhes teria dado o dinheiro, mas May-may dissera que ele e ela perderiam grande prestígio se pagassem o primeiro preço pedido. Então, barganhou com os pais e diminuiu o preço para cento e dezesseis taéis.
Struan enfrentara a formalidade da compra da moça, porque era o costume. Mas depois, quando a venda estava concluída e ele, segundo a lei chinesa, possuía uma escrava, rasgou o documento diante de Ah Sam e lhe disse que ela não era uma escrava, mas uma criada. Ah Sam não entendera. Struan sabia que, mais tarde, ela perguntaria a May-may por que ele rasgara o papel e May-may diria que era uma das esquisitices dos bárbaros. Ah Sam concordaria com ela, e o medo que sentia dele iria aumentar.
Enquanto o China Cloud estava em Macau, Struan confinou sua tripulação a bordo
— com exceção de Wolfgang Mauss. Ele temia que a notícia da existência das barras já se houvesse espalhado e, embora habitualmente confiasse em sua tripulação, não confiava quando havia tanto dinheiro pronto para ser apanhado. Esperava ser alvo de pirataria, tanto interna como externa. Em Macau, houve quase um motim e, pela primeira vez, ele e seus oficiais tiveram de usar o chicote indiscriminadamente, colocar guardas no tombadilho e ancorar num ponto afastado do porto raso. Todas as sampanas foram proibidas de chegar à distância de cem metros do China Cloud.
Ele enviara seu primeiro imediato, Cudahy, a Hong Kong na frente, para levar Robb e Culum ao local de encontro secreto, em Deepwater Bay, com instruções estritas para nada dizer a respeito das barras de prata. Sabia que isto aumentava o perigo, mas tinha de correr o risco. Com as barras de prata a salvo no China Cloud, teria tempo para pensar a respeito de Jin-qua e da Casa Nobre, de Robb e de Culum, e do que faria no futuro. Sabia que agora era o momento de determinar os moldes futuros da companhia. Com ou sem Robb e Culum. Custasse o que custasse.
Deixara May-may em Macau, na casa que lhe havia dado. Antes de embarcar, ele e May-may foram à casa de Chen Sheng.
Duncan, seu filho de três anos, começara a se prosternar, encostando a cabeça no chão, mas ele o erguera e lhe dissera que não devia jamais fazer aquilo outra vez, diante de homem nenhum. Duncan dissera: “Sim, Tai-Pan”, e o abraçara, bem como a May-may.
Kate, o bebê, fora tão acariciado quanto Duncan, e Chen Sheng se agitava como uma galinha velha. Foram trazidos alimento e chá e, depois, Chen Sheng pedira a Struan permissão para apresentar Kai-sung, que queria prosternar-se diante do Tai-Pan.
Kai-sung tinha agora trinta e seis anos. Estava lindamente trajada, com vestes em dourado e vermelho, tendo alfinetes de jade e prata no cabelo esticado. Era quase como se aqueles dezessete anos não houvessem passado. Seu rosto era como alabastro e os olhos tão penetrantes quanto em sua juventude.
Mas havia lágrimas escorrendo pelo seu rosto, e ela sussurrou algo em cantonês, que May-may traduziu, alegremente.
— A Irmã Mais Velha está triste porque sua Tai-tai morreu, Tai-Pan. A Irmã Mais Velha diz que sempre, quando quiser que as crianças venham para cá, serão como se fossem dela. E lhe agradece por ter sido generoso para com ela e seu filho.
— Diga-lhe que está muito bonita e lhe agradeça. May-may fez isso e, depois, chorou um pouco com Kai-sung, mas em seguida ficaram felizes. Kai-sung ajoelhou-se novamente e partiu. Chen Sheng afastara Struan para um lado.
— Ouvi dizer que talvez você tenha tido bom pagode, Tai-Pan. — Seu rosto grande abria-se num sorriso total.
— Talvez.
— Compro homens construir Hong Kong muito balato, se tem bom pagode! — Chen Sheng segurou seu grande estômago e estourou de rir. — Ei, Tai-Pan! Tenho escrava virgem. Quer? Compro para você, hein? Balato, balato.
— Ayeeee yah, que virgem! Já tenho problemas demais!
Struan e May-may pegaram seus filhos e voltaram para casa. O dinheiro que May-may perdera para ele era superior ao valor da casa. Ela, formalmente, entregou-lhe a escritura, com grande cerimônia e, simultaneamente, ofereceu-lhe um baralho.
— O dobro ou nada, Tai-Pan, no que se refere a dívidas. Ele tirou um valete e ela gemeu e arrancou o cabelo.
— Que horror, que horror! Sou uma louca, uma idiota! Para que fui abrir a droga da minha boca?
Em profunda agonia, ela fechou os olhos, pegou uma carta, encolheu-se e abriu os olhos pela metade. Era uma rainha e ela gritou de felicidade e se atirou nos braços dele. Ele combinou com May-may que voltaria depressa de Hong Kong ou enviaria o China Cloud para buscá-la, e depois navegou para a Baía Deepwater.
***
A porta da cabina se abriu.
— Olá, papai — disse Culum.
— Olá, Dirk — disse Robb.
— Bem-vindos a bordo. Fizeram boa viagem?
— Bastante boa. — Robb deixou-se cair numa cadeira. Havia círculos escuros sob seus olhos.
— Você parece exausto, Robb.
— Estou. Tentei tudo, tudo. — Afrouxou seu pesado e quente sobretudo. — Ninguém quer dar-nos crédito. Estamos perdidos. Que boas notícias poderia você trazer, Dirk? — Apalpou o bolso de seu jaquetão e tirou de lá uma carta. — Temo também não trazer boas notícias. Isto chegou para você no pacote de correspondência de ontem. É de papai.
Toda a excitação e a felicidade de Struan com o que ele conseguira desapareceu. Winifred, pensou ele, deve ser a respeito dela. Pegou a carta. O selo estava intacto. Reconheceu a elaborada caligrafia de seu pai.
— Quais são as notícias de casa? — perguntou ele, tentando manter a voz sem alteração.
— Isso foi tudo que chegou, Dirk. Nada recebi. Sinto muito. Como está você? O que aconteceu com seu rosto? Você o queimou? Sinto muito ter ajudado tão pouco. Struan pôs a carta sobre a escrivaninha.
— Você comprou a terra?
— Não. A venda de terras foi adiada. — Robb tentou manter os olhos afastados da carta.
— Será amanhã, papai. Não houve tempo suficiente para examinar os lotes. Então, foi adiada. — Culum cambaleou, enquanto o navio adernava a uma pressão das velas. Ele se segurou na escrivaninha. — Posso abrir a carta para você?
— Não, obrigado. Você viu Brock?
—O White Witch voltou de Whampoa há dois dias — disse Robb. — Mas eu ainda não o vi. Estamos realmente em guerra outra vez?
— Sim — disse Struan. — A frota ainda está em Hong Kong?
— Sim. Mas quando Eliksen chegou com a notícia, os navios fizeram manobras de guerra. Patrulhas foram enviadas para proteger as entradas a leste e oeste. Será que atacarão Hong Kong?
— Não seja ridículo, Robbie. Robb ficou espiando a esteira do navio. Dirk parece diferente, pensou. Depois, notou a barafunda da cabina.
— Por que há tantas armas aqui, Dirk? O que está errado?
— O que Longstaff andou fazendo, Culum? — perguntou Struan.
— Não sei — disse Culum. — Eu o vi só uma vez, e foi para conseguir sua aprovação para o adiamento.
— Também não o vi, Dirk. Depois da matéria a nosso respeito no jornal tive grande dificuldade para ver uma porção de pessoas. Especialmente Longstaff.
— Ah, é? O que aconteceu?
— Eu o encontrei no dia seguinte. Ele disse: “Puxa vida, é verdade?” E, quando eu lhe respondi “Sim”, tomou uma pitada de rape e disse “Que pena. Bom, estou muito ocupado, Robb. Bom-dia”, e tomou outro cálice de Porto.
— O que você esperava?
— Não sei, Dirk. Suponho que esperava simpatia. Ou alguma ajuda.
— Longstaff não demitiu Culum. Isto está a seu favor.
— Ele me quis de volta só porque não havia nenhuma outra pessoa disponível, no momento, para fazer isto — disse Culum. Começara a engordar, nas duas últimas semanas, e estava perdendo a palidez provocada pela peste. — Acho que ele gosta do fato de estarmos falidos. — Quero dizer — acrescentou Culum, depressa — não que eu tenha alguma importância. Refiro-me ao fato de a Casa Nobre estar falida.
— Se não existirmos nós, existirá uma outra companhia, Culum.
— Sim, eu sei, papai. Queria dizer que... bom, eu acho que você foi muito especial para Longstaff. Ele se ajoelhava diante de seu conhecimento por causa de sua riqueza. Mas, sem riqueza, você não tem nenhum cultivo. Sem cultivo, não pode ser igual. Sem igualdade, você não pode ter conhecimento. Nenhum. Acho isso bastante triste.
— Onde você aprendeu essa de se “ajoelhar”?
— Espere até ver Hong Kong.
— O que isso significa, rapaz?
— Estaremos lá dentro de poucas horas. Você poderá verificar por si mesmo. -— Depois, a voz de Culum se endureceu. — Por favor, abra a carta, papai.
— A notícia pode esperar. Winifred estava combalida, quando você partiu. Espera um milagre?
— Espero, sim. Rezei, sim para que acontecesse.
— Vamos para baixo — disse Struan.
As pilhas bem-arrumadas de tijolos de prata reluziam fantasmagoricamente, sob a lanterna vacilante do porão. O ar estava abafado e penetrado pelo cheiro enjoativamente doce de ópio cru. Baratas pululavam.
— É impossível — sussurrou Robb, tocando as barras de prata.
— Não sabia que existia tanta prata assim num só lugar da terra — disse Culum, também estarrecido.
— Está aqui, bem aqui — disse Struan.
Para se convencer, Robb pegou um dos tijolos, com a mão trêmula.
— É inacreditável.
Struan contou-lhe como obtivera as barras de prata. Contou tudo que Jin-qua dissera, exceto a respeito da barganha das quatro moedas, dos cinco laques a serem postos na terra de Hong Kong e os cinco laques a serem mantidos seguros e um laque para Gordon Chen. Descreveu a batalha naval com Brock. Mas não fez nenhuma menção a May-may.
— Aquele maldito pirata! — bradou Culum. — Longstaff vai mandar enforcar Brock e Gorth, quando ouvir falar disso.
— Por quê? — perguntou Struan. — Brock não fez mais do que eu fiz. Simplesmente, colidiu comigo.
— Mas isso é uma mentira. Você pode provar que ele...
— Não posso provar, e nada provarei. Brock tentou e falhou, foi tudo. É problema nosso, de mais ninguém.
— Não gosto disso — disse Culum. — Não é uma maneira legal de encarar um ato de deliberada pirataria.
— Haverá um ajuste de contas. Quando eu achar que chegou a hora.
— Por Deus, estamos salvos — disse Robb, com voz fraca. — Agora, todos os planos internacionais referentes a dinheiro serão executados. Seremos a mais rica companhia do Oriente. Deus o abençoe, Dirk. Você é incrível.
Agora, o futuro está garantido, exultou Robb, interiormente. Agora, haverá o suficiente até para os gastos extravagantes de Sarah. Agora, eu posso ir para casa imediatamente. Talvez Dirk mude de idéia e nunca parta, nunca vá para nosso país, esqueça o Parlamento. Não haverá mais preocupações. Posso comprar um castelo e viver como um proprietário de terras, em paz. As crianças se casarão e viverão bem e haverá o suficiente para os filhos de seus filhos. Roddy pode terminar a universidade, ingressar no setor bancário e jamais se preocupará com o Oriente.
— Deus o abençoe, Dirk! Culum também ficou extasiado. Sua mente gritava. Isto não é prata, é poder. Poder para comprar armas ou para comprar votos, a fim de dominar o Parlamento. Aqui está a resposta para a Carta e para os cartistas. Como Tai-Pan, posso usar o poder de toda essa riqueza — e mais — com finalidades positivas. Agradeço-lhe, ó Senhor, ele rezava ardorosamente, por nos ajudar em nosso momento de necessidade.
Culum via o pai de maneira muito diferente, agora. Nas últimas semanas, pensara muito a respeito do que seu pai dissera a respeito da riqueza, do poder, e de seus usos. Ficando próximo de Glessing e à beira do poder de Longstaff, e sentindo os sorrisos escondidos e o divertimento evidente com a morte da Casa Nobre, ele percebera que um homem sozinho, sem nascimento nobre e nem poder, estava indefeso.
Struan podia sentir a avareza de Robb e de Culum. Sim, ele disse a si próprio. Mas sejam honestos. Isto é o que a prata causaria a qualquer pessoa. Examine a si próprio. Você matou oito, dez homens para protegê-la. Sim, e mataria mais cem. Veja lá o que ela está forçando você a fazer com seu filho e seu irmão.
— Existe uma coisa que quero deixar bem clara a vocês dois — disse ele. — Esta prata foi emprestada a mim. Dei a minha palavra, como garantia. Sou responsável por ela perante Jin-qua. Eu sou. Não a Casa Nobre.
— Não compreendo, Dirk — disse Robb.
— O que disse, papai? Struan pegou uma Bíblia.
— Primeiro, jurem sobre o Livro Sagrado que minhas palavras serão um segredo entre nós três.
— Será necessário jurar? — perguntou Robb. — Claro que eu jamais contarei a ninguém.
— Você vai jurar, Robb?
— Claro.Ele e Culum juraram segredo. Struan colocou a Bíblia sobre a prata.
— Estas barras serão usadas para salvar a Casa Nobre apenas com a condição de que, quando algum de vocês se tornar Tai-Pan, se isto acontecer, concordará, em primeiro lugar, em comprometer a companhia totalmente no apoio ao comércio com Hong Kong e com a China; em segundo lugar, o quartel-general da companhia será permanentemente em Hong Kong; em terceiro, deverão assumir minha responsabilidade e minha palavra para com Jin-qua e seus sucessores; em quarto, garantirão que o sucessor que escolherem para Tai-Pan fará o mesmo; finalmente — Struan apontou a Bíblia — concordarão que só um cristão, um parente, poderá algum dia ser Tai-Pan. Jurem sobre o Livro Sagrado, e concordem em fazer seu sucessor jurar sobre o Livro Sagrado, com relação às mesmas condições, antes de lhe passarem o controle.
Houve um silêncio. Depois Robb disse, sabendo como funcionava a mente de seu irmão.
— Podemos saber todas as condições que Jin-qua impôs?
— Não.
— Quais são as outras?
— Direi, depois que jurarem. Podem confiar em mim ou não, como preferirem.
— Isso não é lá muito correto.
— A prata não é lá muito correta, Robb. Preciso ter certeza. Não se trata de nenhuma brincadeira para crianças. E não estou pensando em nenhum de vocês dois como parente, neste momento. Lidamos agora com centenas de anos. Com duzentos anos. — Os olhos de Struan estavam de um verde luminoso, à meia-luz da lanterna balouçante. — Estou comprometendo a Casa Nobre com uma medida de tempo chinesa. E isto será feito com ou sem algum de vocês dois.
A atmosfera tornou-se perceptivamente mais carregada. Robb sentiu que seus ombros e o pescoço estavam úmidos. Culum olhou para o pai, espantado. Robb disse:
— O que significa para você “comprometer a companhia totalmente no apoio a Hong Kong”?
— Defendê-la, protegê-la, torná-la uma base permanente para o comércio. E o comércio significa abrir a China. Toda a China. Trazer a China para a família das nações.
— Isso é impossível — disse Robb. — Impossível!
— Sim, talvez. Mas é o que a Casa Nobre vai tentar fazer.
— Você quer dizer, ajudar a China a se tornar uma potência mundial? — perguntou Culum.
— Sim.
— Isso é perigoso! — replicou Robb. — É loucura! Já existem problemas suficientes na terra sem se ajudar a essa massa paga da humanidade! Eles vão nos engolir. Todos nós. A Europa inteira!
— Uma entre quatro pessoas na terra é chinesa, Robb. Temos a maior chance de ajudá-los, agora. A aprender nosso estilo de vida. O estilo de vida inglês. Lei, ordem, justiça. Cristianismo. Eles vão sair aos bandos um dia, por conta própria. Acho que precisamos mostrar-lhes nossa maneira de ser.
— É impossível. Você jamais conseguirá modificá-los, É inútil.
— São essas as condições. Dentro de cinco meses, você será Tai-Pan. Culum irá substituí-lo no devido tempo... se for digno disso.
— Deus do céu! — Robb explodiu. — Foi para isso que você lutou, todos esses anos?
— Sim.
— Eu sempre soube que você tinha sonhos, Dirk. Mas esse ... é demais. Não sei se é monstruoso, ou maravilhoso. Está além de mim.
— Talvez — disse Struan, com voz severa. — Mas é uma condição para sua sobrevivência, Robbie, e de sua família, e o futuro deles. Você será Tai-Pan dentro de cinco meses. Durante um ano, pelo menos.
— Eu já lhe disse antes, acho que essa é outra decisão pouco aconselhável — explodiu Robb, com o rosto contorcido. — Eu não tenho o conhecimento e nem a astúcia para lidar com Longstaff, ou manter a Casa Nobre na dianteira de toda essa intriga, de guerra. E nem para tratar com os chineses.
— Eu sei. E sei o risco que estou assumindo. Mas Hong Kong é nossa, agora. A guerra vai terminar tão depressa quanto a última. — Struan fez um aceno de mão em direção às barras de prata. — Tudo isso é uma defesa que não pode ser dissipada facilmente. De agora em diante, é uma questão de comércio. E você é um bom comerciante.
— Não é apenas comércio. Há navios para navegarem, piratas a serem combatidos, Brock para ser enfrentado e milhares de outras coisas.
— Cinco meses vão limpar as importantes. O resto é problema seu.
— Será?
— Sim. Porque, de toda essa prata, você terá mais de três milhões. Quando eu sair, pegarei um. E vinte por cento do lucro para o resto de minha vida. Você fará o mesmo. — Olhou para Culum. — No fim de seu período, estaremos merecendo dez milhões, porque vou proteger você e a Casa Nobre, no Parlamento, e torná-la mais rica do que você jamais sonhou. Não vamos mais precisar depender de Sir Charles Crosse, Donald MacDonald, McFee, Smythe, Ross, ou de todos os outros que apoiamos, para os nossos lances... eu vou fazer isso pessoalmente. E ficarei indo e vindo para Hong Kong, de maneira que vocês dois não vão precisar se preocupar.
— Quero apenas o dinheiro suficiente para sonhar tranqüilamente e acordar em paz
— disse Robb. — Na Escócia. Não no Oriente. Não quero morrer aqui. Vou embora no navio seguinte.
— Um ano e cinco meses não é tanto tempo assim para se pedir.
— É uma exigência, não um pedido, Dirk.
— Não estou obrigando você a nada. Há um mês, Robb, você estava disposto a aceitar cinqüenta mil e partir. Muito bem. Essa oferta ainda está de pé. Se você desejar o que é seu de direito, mais de um milhão, você conseguirá, dentro de dois anos. — Struan virou-se para Culum — De você, rapaz, quero dois anos de sua vida. Se você se tornar Tai-Pan, mais três anos. Cinco anos, no total.
— Se eu não concordar com as condições, então terei de partir? — perguntou Culum, com a boca seca, o coração doendo.
— Não. Você ainda é sócio, embora subordinado. Mas você não será mais Tai-Pan. Nunca. Terei de encontrar e treinar uma outra pessoa. Um ano é o período justo a pedir... exigir, de Robb. Ele já passou onze anos trabalhando. — Pegou um dos tijolos. — Você terá de provar seu próprio valor, Culum, mesmo se concordar agora. Será herdeiro aparente, é tudo. Não vai se aproveitar do meu suor, e nem de Robb. É a lei do clã, e uma boa lei para a vida. Todo homem tem de caminhar com os próprios pés. Claro que vou ajudar você, o quanto puder, enquanto estiver vivo, mas cabe a você provar o seu valor. Só um verdadeiro homem tem o direito de ficar em pé no pináculo.
Culum corou.
Robb estava olhando para Struan, detestando-o.
— Você não quer um Tai-Pan dentro de cinco meses, Dirk. Apenas uma ama-seca por um ano, não é isso?
— Garanta que assumirá por cinco anos e você escolherá a quem quiser.
— Posso eliminar Culum agora, em troca de uma promessa de cinco anos?
— Sim — disse Struan, imediatamente. — Acho que seria um desperdício, mas cabe a você decidir. Sim.
— Vê o que o poder faz a um homem, Culum? — disse Robb, com a voz tensa.
— A atual forma da Casa Nobre estaria morta, sem esta prata — disse Struan, sem rancor. — Eu já lhe dei minhas condições. Decida.
— Compreendo por que você é odiado nesses mares — disse Culum.
— É mesmo, rapaz?
— Sim.
— Você jamais saberá, verdadeiramente, até concluir seus cinco anos.
— Então, não tenho escolha, papai? São cinco anos, ou nada?
— É tudo ou nada, Culum. Se você está preparado para ser o segundo lugar, assuma o poder agora. O que estou tentando fazer você entender é que, para ser o Tai-Pan da Casa Nobre, você precisa estar preparado para existir sozinho, para ser odiado, para ter algum objetivo de valor imortal e para sacrificar qualquer pessoa que não lhe inspirar completa confiança. Devido ao fato de ser meu filho, estou oferecendo a você hoje, sem experimentá-lo, a chance de ter o supremo poder na Ásia. Ou seja, um poder de fazer quase tudo nesta terra. Eu não ofereci isto impensadamente. Sei o que significa ser o Tai-Pan. Escolha, por Deus!
Os olhos de Culum estavam presos à Bíblia. E à prata. Não quero ficar em segundo lugar, disse a si próprio. Sei isto agora. O segundo lugar não permitirá que sejam feitas coisas que valem a pena. Haverá todo tempo do mundo para se preocupar com as condições, com Jin-qua, com os chineses e com os problemas do mundo. Talvez eu não vá ter de me preocupar em ser Tai-Pan; talvez Robb não ache que eu sou suficientemente bom. Ó Deus, deixai que eu mostre ser capaz de me tornar Tai-Pan, para poder usar esse poder para o bem. Deixai que isto seja um meio para Vossos fins. A Carta deve ser aprovada. É o único meio.
O suor brotava-lhe da testa. Ele pegou a Bíblia.
— Juro por Deus obedecer a essas condições. Se eu me tornar Tai-Pan, e quando isto acontecer. Então, que Deus me ajude. — Seus dedos tremiam, quando ele recolocou a Bíblia no lugar.
— Robb? — disse Struan, sem levantar os olhos.
— Cinco anos como Tai-Pan e posso mandar Culum de volta para a Escócia? Agora? Mudar tudo que eu quiser?
— Sim, por Deus. Terei de repetir tudo? Dentro de cinco meses, você fará o que quiser. Se concordar com as outras condições. Sim.
Fez-se um silêncio no porão, só quebrado pelas constantes corridas dos ratos, na escuridão.
— Por que você iria querer que eu saísse do negócio, tio? — perguntou Culum.
— Para magoar seu pai. Você é o último descendente.
— Sim, Robb. Ele é.
— Isso é uma coisa terrível para se dizer! Terrível. — Culum estava horrorizado.
— Somos parentes. Parentes.
— Sim — disse Robb, angustiado. — Mas estivemos falando verdades. Seu pai me sacrificaria, a você e a meus filhos, pelos objetivos dele. Por que eu não deveria fazer a mesma coisa?
— Talvez você faça, Robb. Talvez você faça — disse Struan.
— Você sabe que eu não faria nada para ferir você. Ó, meu Deus do céu, o que está acontecendo conosco? Adquirimos alguma prata e, de repente, estamos podres de cobiça e Deus sabe de que mais. Por favor, deixe que eu vá embora. Dentro de cinco meses. Por favor, Dirk.
— Eu preciso partir. Só no Parlamento posso realmente controlar Longstaff e seus sucessores... como você fará, quando deixar a Ásia. É assim que poderemos colocar o plano em execução. Mas Culum precisa ser treinado. Um ano como Tai-Pan e você partirá.
— Como pode ele ser treinado, num período tão curto?
— Eu saberei, dentro de cinco meses, se ele pode ser Tai-Pan. Se não puder, farei outros acertos.
— Que acertos?
— Você está pronto a concordar com as condições, Robb? Se estiver, jure sobre o Livro e vamos para cima.
— Que acertos?
— Cristo crucificado! Concorda, Robb, ou não? Será um ano, serão cinco? Ou nada?
Robb mexeu-se, mudando o apoio de uma perna para outra, enquanto o navio jogava, sob o vento mais forte. Todo seu ser o advertia a não fazer o juramento. Mas precisava fazer. Por causa de sua família, precisava. Pegou a Bíblia, que era pesada.
1.— Embora eu odeie o Oriente, e tudo que ele representa, juro por Deus obedecer às condições com o melhor das minhas capacidades, e que Deus me ajude a fazer isto. — Entregou a Bíblia a Struan. — Acho que você vai lamentar fazer-me Tai-Pan, por um ano.
— Talvez. Hong Kong não.
Struan abriu a Bíblia e lhes mostrou as quatro moedas pela metade que prendera na parte interna da capa, com cera de carimbar. Enumerou todas as condições de Jin-qua, com exceção do laque destinado a Gordon Chen. Esse é um negócio meu, disse Struan a si próprio, e ficou imaginando, rapidamente, o que Culum pensaria de seu meio-irmão — e de May-may — quando ouvisse falar deles. Robb sabia a respeito de May-may, embora jamais a tivesse encontrado. Struan ficou imaginando se seus inimigos já teriam contado a Culum a respeito de Gordon e de May-may.— Acho que você tinha razão em nos fazer jurar, Dirk — disse Robb. — Sabe Deus que horror significarão essas moedas.
***
Quando voltaram para a cabina, Struan foi até a escrivaninha e rompeu o selo da carta. Leu o primeiro parágrafo e gritou de alegria.
— Ela está viva! Winifred está viva, por Deus. Ela ficou boa!
Robb agarrou a carta. Struan estava fora de si e abraçou Culum e começou a dançar uma giga, e a giga se transformou em escocesa, e Struan juntou os braços aos de Culum e puxaram consigo Robb e, imediatamente, desvaneceram-se o ódio e a desconfiança entre eles.
Depois, Struan manteve-os quietos, com a enormidade de sua força.
— Agora, juntos! Um, dois, três — e deram o grito de guerra do clã, o mais alto que podiam.
— Feri! Golpe certeiro!
Depois se abraçaram novamente e gritaram:
— Camaroteiro!Um marinheiro apareceu correndo.
— Sim, sim, sinhô!
— Um duplo para todos. Ordene ao tocador de gaita que vá para o tombadilho!
Traga uma garrafa de champanha e outro bule de chá, por Deus!
— Sim, sim, senhorrr!
Então os três homens fizeram as pazes. Mas todos sabiam, nas secretas profundezas de suas mentes, que tudo mudara entre eles. Tinham sido ditas coisas demais. Logo eles seguiriam caminhos separados. Sozinhos.
— Graças a Deus você abriu a carta em seguida, Dirk — disse Robb. — Graças a Deus pela carta. Eu estava me sentindo terrível. Terrível.
— E eu — disse Culum. — Leia a carta, papai. Struan se instalou na funda poltrona de couro e leu a carta para eles. Era em gaélico e datada de quatro meses antes, um mês depois de Culum partir de Glasgow.
Parlan Struan escrevia que a vida de Winifred estivera em perigo durante duas semanas e, depois, ela começara a se recuperar. Os médicos não conseguiram explicar o motivo, e apenas encolheram os ombros e disseram: “É a vontade de Deus.” Ela estava morando com ele, no pequeno sítio que Struan lhe dera há muitos anos.— Ela vai ficar feliz ali — disse Culum. — Mas há apenas os criados e as cabras para conversar. Onde ela vai freqüentar a escola?
— Primeiro, vamos deixar que se recupere bem. Depois, poderemos nos preocupar com isso — disse Robb. — Continue, Dirk.
Em seguida, a carta dava notícia da família. Parlan Struan tivera dois irmãos e três irmãs, e todos eles se casaram e agora seus filhos estavam casados, e tinham filhos. E também seus próprios filhos, Dirk e Flora, de seu primeiro casamento, e Robb, Uthenia e Susan, do segundo, formaram suas famílias.
Muitos de seus descendentes haviam emigrado: para as colônias canadenses, para os Estados Unidos da América. Alguns poucos estavam espalhados nas índias e na América do Sul espanhola.
Parlan Struan escrevia que Alastair McCloud, que se casara com a irmã de Robb, Susan, voltara de Londres com seu filho Hector, para viver outra vez na Escócia — a perda de Susan e de sua filha, Clair, com a cólera, lhe pesara muito, e quase o destruíra; ele recebera uma carta dos Kerns — Flora, irmã de Dirk, casara-se com Farran Kern, e, no ano passado, eles viajaram para Norfolk, Virgínia, de navio. Chegaram bem, a viagem fora boa e eles, e seus três filhos, estavam com boa saúde e felizes.
A carta continuava: “Conte a Robb que Roddy foi para a universidade ontem. Eu o coloquei na diligência para Edimburgo com seis xelins no bolso e comida para quatro dias. Seu primo, Dougall Struan, escreveu que vai ficar com ele nas férias e será seu guardião, até Robb voltar para casa. Tomei a liberdade de enviar uma ordem de pagamento à vista em nome de Robb, de cinqüenta guinéus, para pagar quarto e pensão por um ano, e um xelim por semana para os pequenos gastos. Também lhe dei uma Bíblia e o adverti contra as mulheres fáceis, a bebedeira e o jogo, e li para ele um trecho do Hamlet de Will Shakespeare, a respeito de ‘não ser devedor e nem fazer empréstimos’, e fiz o rapaz escrever isto e pregar na capa do Livro Sagrado. Ele tem boa caligrafia.
“Sua querida Ronalda e as crianças estão enterradas numa das covas destinadas às vítimas da peste. Sinto muito, Dirk, meu filho, mas a lei dizia que todos os que morriam tinham de ser enterrados assim, e cremados e cobertos com cal, para a segurança dos vivos. Mas o enterro foi consagrado de acordo com nossa fé, e a terra isolada como terreno bendito. Que suas almas repousem em Deus”. Não se preocupe com Winnie. A garota está verdadeiramente linda, e aqui em Loch Lomond, onde Deus pousou seu pé, ela crescerá e se transformará numa bela mulher, temente a Deus. Ouça bem, agora: não deixe os bárbaros pagãos da Cathay indiana dominarem sua alma e tranque sua porta cuidadosamente contra o mal que prolifera nessas terras diabólicas. Será que você não vai voltar logo para casa? Minha saúde está muito boa e o Senhor Deus me abençoou. Já tenho idade e poucos conseguem escapar, nesses dias terríveis, mas eu estou muito bem. Houve grandes tumultos em Glasgow e em Birmingham e Edimburgo, segundo dizem os jornais. Novos levantes cartistas. Os operários das fábricas pedem mais dinheiro, em troca de seus serviços. Houve um bom enforcamento há dois dias, em Glasgow, por roubo de carneiros. Malditos ingleses! Em que mundo estamos vivendo, quando um escocês é enforcado apenas por roubar um carneiro inglês, condenado por um juiz escocês. Terrível. Na mesma sessão do tribunal, centenas foram deportados para a terra australiana de Van Diemen, como punição por tumultos e greves e por queimarem fábricas. O amigo de Culum, Bartholomew Angus, foi condenado ao exílio por dez anos, em Nova Gales do Sul, por liderar uma manifestação cartista em Edimburgo. Ainda chegam pessoas...”
— Ah, meu Deus! — disse Culum.
— Quem é Bartholomew, Culum? — perguntou Struan.
— Morávamos no mesmo quarto, na universidade. Pobre Bart!
Struan disse, com voz dura:
— Você sabia que ele era um cartista?
— Claro. — Culum foi até à janela e ficou olhando para a esteira do navio.
— Você é cartista, Culum?
— Você próprio disse que a Carta era boa.
— Sim. Mas também lhe falei dos meus pontos de vista a respeito de insurreição. Você é cartista militante?
— Se estivesse em meu país, seria. A maioria dos estudantes universitários é a favor da Carta.
— Então é bom que você esteja por aqui, por Deus! Bartholomew liderou uma manifestação e pegou dez anos. Temos boas leis e o melhor sistema parlamentar do mundo. Insurreição, tumultos e greves não são a maneira certa de alcançar as modificações.
— O que mais diz a carta, papai?
Struan ficou olhando para as costas do filho, por um momento, ouvindo um eco do tom de voz de Ronalda. Ele fez uma anotação mental no sentido de examinar com mais cuidado, no futuro, a movimentação cartista. Depois, começou a ler novamente: “Ainda chegam pessoas diariamente a Glasgow, vindas dos Highlands, onde os proprietários rurais ainda cercam as terras dos clãs e mandam embora os membros do clã que teriam direito a elas, por nascimento. Aquele demônio de coração negro, o Conde de Struan, que Deus o faça cair morto, está formando um regimento para combater nas colônias indianas. Os homens correm para sua bandeira, atraídos por promessas de pilhagem e terras. Há um boato de que ele vai ter de entrar em guerra outra vez com os malditos americanos, pelas colônias canadenses, e circulam rumores de que a guerra eclodiu entre aqueles demônios e os franceses e russos, por causa dos turcos otomanos.. Aqueles malditos franceses! Como se não já tivéssemos sofrido bastante com aquele satanás Bonaparte.
“Vivemos uma situação lamentável, meu filho. Ah, esqueci de mencionar que foram feitos planos para a construção de uma ferrovia unindo Glasgow e Edimburgo, dentro de cinco anos. Não será ótimo? Então, talvez, nós escoceses poderemos nos unir e derrubar os demônios ingleses e ter o nosso próprio rei. Beijo você e seu irmão, e abrace Culum por mim. Seu pai respeitoso, Parlan Struan.”
Struan ergueu os olhos, com um sorriso seco.
— Tão sanguinário como sempre.
— Se o conde forma um regimento para ir à Índia, poderá aparecer por aqui — disse Robb.
— Sim. Tive o mesmo pensamento. Bom, rapaz, se chegar algum dia aos domínios da Casa Nobre, esse regimento voltará para casa sem líder, com a ajuda de Deus.
— Com a ajuda de Deus — ecoou Culum.
Houve uma batida na porta e o camaroteiro entrou às pressas com o champanha, copos e chá.
— O Capitão Orlov lhe agradece em nome da tripulação, senhorrr.
— Convide-o, e também a Wolfgang, para virem ter conosco depois da vigília.
— Sim, sim, senhorrr!Depois de terem sido servidos o vinho e o chá, Struan ergueu o copo.— Um brinde. Para Winifred, que retornou de entre os mortos!Beberam, e Robb disse:— Outro brinde. Este é para a Casa Nobre. Que nunca mais tornemos a pensar mal ou fazer mal um ao outro.
— Sim.
Beberam outra vez.
— Robb, quando chegarmos a Hong Kong escreva aos nossos agentes. Diga-lhes para descobrirem quem eram os dirigentes do nosso banco e quem foi responsável pelo abuso na concessão de créditos.
— Está bem, Dirk.
— E então, papai? — perguntou Culum,
— Então vamos destruir esses responsáveis — disse Struan. E as suas famílias. Culum sentiu um arrepio, diante da determinação implacável da sentença.
— Por que suas famílias?
— O que a cobiça deles fez com a nossa família? Conosco? Com nosso futuro? Teremos de pagar durante anos a sua cobiça. Então, eles terão de pagar em igual medida. Todos eles.
Culum levantou-se e caminhou para a porta.
— O que você quer, rapazinho?
— A latrina. Quero dizer, o “toalete”. A porta fechou-se atrás dele.
— Desculpe ter dito tudo aquilo — suspirou Struan. — Tinha de ser feito daquela maneira.
— Eu sei. Também sinto muito. Mas você tem razão, quanto ao Parlamento. Mais e mais poder passará para o Parlamento, e ali vão ser resolvidas as grandes transações de negócios. Eu supervisionarei o financiamento, e ambos poderemos supervisionar Culum e ajudá-lo. Não foi maravilhoso o que aconteceu com Winifred?
— Sim.
— Culum tem idéias muito próprias a respeito de algumas coisas, não é?
— Ele é muito novo. Ronalda os criou... bem, ela tomou as Escrituras ao pé da letra, como você sabe muito bem. Culum terá de amadurecer, algum dia.
— O que você vai fazer com relação a Gordon Chen?
— Você quer dizer, com relação a ele e Culum? — Struan observou as gaivotas grasnando. — Isto vai ter de ser pensado logo que voltarmos a Hong Kong.
— Pobre Culum. Amadurecer não é fácil. Struan abanou a cabeça.
— Nunca é fácil.
Depois de um momento, Robb disse:
— Lembra-se de minha mulher Ming Soo?
— Sim.— Muitas vezes ficou imaginando o que aconteceu com ela e com a criança.
— O dinheiro que você lhe entregou daria para se instalar como uma princesa e encontrar um ótimo marido, Robb. Ela deve ser a mulher de um mandarim, em alguma parte. Não precisa se preocupar com elas.
— A pequena Isabel deve ter dez anos, agora.
Robb se deixou mergulhar outra vez na lembrança sempre agradável de sua risada e da gratificação que lhe dava Ming Soo. Tanta, pensou ele. Ela lhe dava mais amor e bondade, gentileza e compaixão num só dia do que Sarah lhe dera durante todo o casamento dos dois.
— Você deveria casar-se outra vez, Dirk.
— Há tempo para pensar a respeito disso. — Struan disse, distraidamente, examinando o barômetro. Marcava 30.1, bom tempo. — Trate Culum de maneira bastante dura, quando você for Tai-Pan, Robb.
— Vou fazer isso — disse Robb.
***
Quando Culum chegou ao convés, o China Cloud deu a volta e saiu do canal que a pequena ilha de Tung Ku Chau, em alto-mar, formava com Hong Kong. O navio saiu velozmente do estreito, na via dominada pelas montanhas, e entrou em mar aberto, dobrando em direção sudoeste. Outra ilha maior, Pokliu Chau, ficava duas milhas a bombordo. Uma forte monção nordeste mosqueava as ondas, e acima havia um opaco lençol de nuvens.
Culum seguiu em frente, evitando cuidadosamente os círculos de cordas e amarras bem-arrumados. Caminhou ao longo das reluzentes fileiras de canhões, maravilhando-se com a limpeza de tudo. Estivera a bordo de outros navios mercantes no porto de Hong Kong e eram todos imundos.
O trecho da proa até estibordo estava ocupado por dois marinheiros, então ele passou por sobre a amurada e se instalou a estibordo. Segurou-se nas cordas dos salvavidas e, com grande dificuldade, tirou as calças e se acocorou precariamente na rede.
Um jovem marinheiro ruivo aproximou-se, pulou por sobre o passadiço e entrou na proa, tirando as calças. Ele estava descalço e não se segurou nas cordas, ao se acocorar.
— Bom-dia, senhorrr — disse o marinheiro.
— Para você também — disse Culum, segurando-se sombriamente nas cordas.
O marinheiro terminou depressa. Inclinou-se para a frente, em direção ao passadiço, e tirou um quadrado de papel de uma caixa, limpando-se em seguida. Depois, cuidadosamente, atirou o papel para baixo e ajeitou as calças em tomo da cintura.
— O que você está fazendo? — perguntou Culum.
— Hein? Ah, o papel, senhorrr! Que um raio me parta se eu sei, senhorrr. São ordens do Tai-Pan. Limpe a bunda com papel, ou então perca dois meses de pagamento e passe dez dias na maldita casa da guarda. — O marinheiro riu. — O Tai-Pan é muito correto, com seu perdão. Este é seu navio, então é bom limpar a maldita bunda. — Pulou para bordo, com facilidade, e mergulhou as mãos num balde de água do mar, atirando-a em seguida sobre os pés. — Lave também as malditas mãos, por Deus, e depois os pés, senão vai para a maldita prisão! É muito estranho. É um disparate completo... com seu perdão, senhorrr. Mas, com essa coisa de lavar as malditas mãos, e limpar a maldita bunda, e tomar banho uma vez toda maldita semana, e roupas limpas uma vez a cada maldita semana, a vida é mesmo uma merda.
— Merda total — disse outro marinheiro, debruçando-se no passadiço, a mastigar um naco de fumo. — O pagamento é em boa prata? Quando chegar o dia, por Deus! Comer como um maldito príncipe? Dinheiro da presa, além disso. Que mais você quer, Charlie? — Depois, para Culum: — Não sei como o Tai-Pan consegue isso, senhorrr, mas nos navio dele tem menos sífilis e menos escorbuto do que em qualquer outro, por esses mares. — Ele cuspiu em direção a estibordo o sumo do tabaco. — Então eu limpo a bunda e faço isso com gosto. Com seu perdão, senhorrr, se fosse o senhorrr eu fazia a mesma coisa. O Tai-Pan gosta muito que obedeçam às orde dele!
— Rizar a gávea e mastaréu de sobrejoanete — gritou o Capitão Orlov do tombadilho, com um vozeirão, para um homem tão pequeno. Os marinheiros bateram continência para Culum e uniram-se aos homens que estavam escalando os cabos.
Culum usou o papel e lavou as mãos, desceu e esperou uma oportunidade para intervir na conversa.
— De que adianta usar papel?
— Hein? — perguntou Struan.
— Na proa. Usar papel, ou dez dias de prisão na casa da guarda.
— Ah, eu esqueci de lhe dizer, menino. Os chineses acham que existe alguma ligação entre as fezes e as doenças.
— É ridículo — zombou Culum.
— Os chineses não pensam assim. Nem eu. — Struan virou-se para Robb. — Experimentei o sistema por três meses no China Cloud. O número de casos de doença diminuiu.
— Mesmo em comparação com o Thunder Cloud? — perguntou Robb.
— Sim.
— É uma coincidência — disse Culum.
Robb grunhiu.
— Você vai encontrar uma porção de coincidências em nossos navios, Culum. Faz apenas um pouco mais de cinqüenta anos desde que o Capitão Cook descobriu que limões e verduras frescas curavam o escorbuto. Talvez as fezes tenham alguma coisa a ver com as doenças.
— Quando você tomou banho pela última vez, Culum? — perguntou Struan.
— Não sei... um mês... não, eu me lembro. O Capitão Perry insistia para que eu tomasse banho junto com a tripulação uma vez por semana no Thunder Cloud. Quase morri de frio. Por quê?
— Quando você lavou suas roupas, pela última vez? Culum piscou para o pai e olhou para suas grossas calças de lã marrom e casaco de marinheiro.
— Nunca foram lavadas! Por que deveriam ser lavadas? Os olhos de Struan brilharam.
— De agora em diante, em terra ou a bordo, você banha seu corpo inteiro uma vez por semana. Use papel e lave as mãos. Mande lavar as roupas uma vez por semana. Não beba água, apenas chá. E escove os dentes todos os dias.
— Por quê? Não beber água? Isto é loucura. Lavar minhas roupas? Ora, elas vão encolher, perder o corte e Deus sabe o quê!
— É isto que você vai fazer. Assim é o Oriente. Quero você vivo. E bem. E saudável.
— Não vou fazer nada disso. Não sou uma criança e nem um de seus marinheiros.
— É melhor você fazer o que seu pai diz — falou Robb. — Eu lutei contra ele, também. Contra todas as idéias novas que ele pôs em prática. Até ele provar que essas coisas funcionavam. Por que, ninguém sabe. Mas, em locais onde morria gente feito mosca, nós escapamos.
— Você, nem tanto assim — disse Culum. — Você me disse que está doente o tempo todo.
— Sim, mas isso vem de anos. Nunca acreditei no que seu pai dizia a respeito da água, e então continuei a bebê-la. Agora, minhas tripas sangram e sangrarão sempre. É tarde demais para mim, mas, por Deus, eu gostaria de ter experimentado. Talvez estivesse sem esse problema. Dirk jamais bebe água. Só chá.
— É o que os chineses fazem, rapaz.
— Não acredito nisso.
— Bom, enquanto você está descobrindo se é verdade ou não, — replicou Struan — obedecerá a essas ordens. São ordens. Culum fechou a cara.
— Só por causa de alguns costumes chineses pagãos, tenho de mudar todo meu estilo de vida. É isso que você está dizendo?
— Estou preparado para aprender com eles. Sim. Tentarei tudo para manter minha saúde, e você vai fazer a mesma coisa, por Deus. — Struan deu um grito. — Camaroteiro! A porta se abriu.
— Sim, sim, senhorrr.
— Prepare um banho para o Sr. Culum. Em minha cabina. E roupas limpas.
— Sim, sim, senhorrr.
Struan atravessou a cabina, e se debruçou sobre Culum. Examinou a cabeça do filho.
— Você tem piolhos no cabelo.
— Eu não entendo você, de maneira nenhuma! — explodiu Culum. — Todo mundo tem piolhos. Os piolhos nos acompanham, gostemos ou não. A pessoa se coca um pouco, e é tudo.
— Eu não tenho piolhos, e nem Robb.
— Então vocês são esquisitos. Únicos. — Culum tomou um gole de champanha, cheio de irritação. — Tomar banho é um risco estúpido para a saúde, como todo mundo sabe.
— Você está fedendo, Culum.
— Como todo mundo — disse Culum, cheio de impaciência. — Não é por isso que sempre usamos pomadas? Feder também é um estilo de vida. Os piolhos são uma maldição que acompanha as pessoas, e daí?
— Eu não fedo, e nem Robb, e nem a família dele, e nem os meus homens, e nossa saúde é a melhor do Oriente. Você vai fazer o que eu lhe disser. Os piolhos não são necessários, e nem tampouco feder.
— É melhor você ir para Londres, papai. É o maior fedor do mundo. Se as pessoas ouvirem você falar a respeito de piolhos e de feder, vão pensar que está louco.
Pai e filho olharam um para o outro.
— Você vai obedecer às ordens. Vai se limpar, por Deus, ou então mandarei o
mestre fazer isto por você. Para o convés!
— Faça isso, Culum — intercedeu Robb. Ele sentia o ressentimento de Culum e a inflexibilidade de Struan. — Que importa? Um acordo. Experimente durante cinco meses, hein? Se não se sentir melhor até então, volte para o estilo habitual.
— E se eu me recusar?
Struan olhou-o implacavelmente.
— Eu mimo você, Culum, como nunca fiz com ninguém. Mas algumas coisas você vai fazer. Senão, vou tratá-lo como a um marinheiro desobediente.
— O que, quer dizer isso?
— Levo você a reboque atrás do navio por dez minutos e assim você fica lavado.
— Em vez de dar ordens — Culum bradou, indignado — por que você não diz simplesmente “por favor”, de vez em quando? Struan deu uma boa risada.
— Por Deus, você tem razão, rapaz. — Bateu nas costas de Culum. — Quer, por favor, fazer o que eu digo? Por Deus, você tem razão. Vou dizer “por favor” com mais freqüência. E não se preocupe com as roupas. Vamos contratar para você o melhor alfaiate da Ásia. Você precisa de mais roupas, de qualquer jeito. — Struan olhou para Robb. — Seu alfaiate, Robb?
— Sim. — Logo que nos instalarmos em Hong Kong.
— Vamos mandar chamá-lo amanhã, para que venha de Macau, com seus ajudantes. A menos que já esteja em Hong Kong. Por cinco meses, rapaz?
— Está bem. Mas ainda acho esquisito.
Struan tornou a encher os copos.
— Agora, acho que deveríamos comemorar o renascimento da Casa Nobre.
— Como, Dirk? — perguntou Robb.
— Daremos uma festa.
— O quê? — Culum ergueu os olhos, excitadíssimo, com a indignação esquecida.
— Sim. Um baile. Para toda população européia. Em estilo principesco. Daqui a um mês.
— Isso vai causar o maior corre-corre! — disse Robb.
— O que quer dizer, tio?
— Haverá o maior pânico entre as senhoras. Todas competirão pela honra de ser a mais bem-vestida... segundo a última moda! Vão dar em cima dos maridos e tentar roubar os costureiros das outras! Meu Deus, um baile é uma idéia maravilhosa. Fico imaginando o que Shevaun vai usar.
— Nada... se isto lhe agradar! — Os olhos de Struan brilharam. — Sim, um baile. Daremos um prêmio para a senhora que estiver mais bem-vestida. Acho que o prêmio...
— Não ouviu falar do julgamento de Paris? — perguntou Robb, horrorizado.
— Sim, mas Aristotle será o juiz.
— Ele é inteligente demais para aceitar um encargo desses.
— Veremos. — Struan refletiu por um momento. — O prêmio tem de ser valioso. Mil guinéus.
— Você deve estar brincando! — disse Culum.
— Mil guinéus.
Culum ficou acabrunhado com a idéia de tal extravagância. Era obsceno. Criminoso. Mil guinéus na Inglaterra, hoje, e a pessoa poderia viver como um rei por cinco ou dez anos. O salário de um operário de fábrica, que trabalhava do amanhecer até o entardecer, e continuando pela noite adentro, seis dias por semana, durante todas as semanas do ano, era entre quinze e vinte libras anuais — e com isso tinha um lar e os filhos eram criados e mantida sua mulher, com pagamento de aluguel, comida, roupas, carvão. Meu pai está louco, pensou ele, embriagado pelo dinheiro. Pense nos vinte mil guinéus que arriscou na estúpida aposta com Brock e Gorth. Mas aquilo foi um jogo para se livrar de Brock. Um jogo que valeria a pena, se desse certo, e, de certo modo, deu — as barras de prata encontram-se no China Cloud e estamos ricos outra vez. Ricos.
Agora, Culum sabia que ser rico significava não ser mais pobre. Sabia que seu pai estava certo — não era o dinheiro que importava. Só a falta dele.
— É demais, demais — disse Robb, chocado.
— Sim. De certa maneira, é. — Struan acendeu um charuto. — Mas é dever da Casa Nobre ser principesca. A notícia vai se espalhar como nenhuma outra antes. E os
relatos a respeito circularão por cem anos. — Pôs a mão no ombro de Culum. — Jamais esqueça outra regra, rapazinho: quando você está fazendo apostas altas, tem de assumir grandes riscos. Se não está preparado para arriscar muito, não faz parte do jogo.
— Uma soma tão grande pode fazer, digamos, algumas pessoas arriscarem mais dinheiro do que poderiam gastar. Isso não é bom, verdade?
— Dinheiro é para ser gasto. Eu diria que este vai ser um dinheiro bem gasto.
— Mas o que você está disputando?
— Prestígio, rapaz. — Struan virou-se para Robb. — Quem será a vencedora? Robb balançou a cabeça, atarantado.
— Não sei. Beleza... Shevaun. Mas a melhor vestida? Algumas arriscariam uma fortuna para conseguir essa honra, quanto mais o prêmio.
— Você já conhece Shevaun, Culum?
— Não, papai. Eu a vi uma vez passeando na estrada que George... George Glessing, construiu, do Cabo Glessing ao Vale Feliz. A Srta. Tillman é linda. Mas acho a Srta. Sinclair muito mais atraente. Tão encantadora... George e eu passamos algum tempo em sua companhia.
— É verdade? — Struan reprimiu seu repentino interesse.
— Sim — replicou Culum, ingenuamente. — Tivemos um jantar de despedida com a Srta. Sinclair e Horatio, no navio de George. O pobre George teve seu navio tomado. Ele estava muito aborrecido. Vamos realmente ter um baile?
— Por que Glessing perdeu o navio?
— Longstaff nomeou-o chefe e superintendente principal do porto, e o almirante ordenou-lhe que aceitasse. A Srta. Sinclair concordou comigo que era uma boa oportunidade para ele... mas ele não pensa assim.
— Você gosta dele?
— Ah, sim. Foi muito gentil comigo. — Culum quase acrescentou: mesmo sendo eu o filho do Tai-Pan. Ele agradecia sua sorte por Glessing e ele terem um interesse em comum. Ambos eram ótimos jogadores de críquete — Culum fora o capitão do time na universidade e, no ano anterior, jogara por seu condado.
— Por Júpiter — dissera Glessing — você deve ser ótimo. Eu só joguei pela marinha. Que posição você ocupava?
— Defesa da meta, primeira posição.
— Por Deus... eu só consegui até agora ficar em segunda. Diabo, Culum, meu velho, talvez devêssemos separar um lugar para um campo de críquete, hein? Praticar um pouco, não é?
Culum sorriu para si mesmo, muito alegre por ser um jogador de críquete. Sem isso, ele sabia que Glessing o teria afastado, e então não teria tido o prazer de estar perto de Mary. Ficou imaginando se não poderia acompanhá-la ao baile.
— A Srta. Sinclair e Horatio gostam muito de você, papai.
— Pensei que Mary estivesse em Macau.
— Ela estava, papai. Mas voltou a Hong Kong há alguns dias, uma semana, mais ou menos. Ela é linda, não é? Houve um repentino soar de sino do navio e ruído de pés correndo e o grito:
“Todos os homens ao convés!” Struan saiu como um raio da cabina.
Robb começou a segui-lo, mas parou à porta da cabina.
— Duas coisas, rapidamente, enquanto estamos sozinhos, Culum. Primeiro, faça o
que o seu pai diz e seja paciente com ele. Ele é um homem estranho, com idéias estranhas, mas a maior parte delas funciona. Em segundo lugar, eu o ajudarei em tudo o que puder a se tornar Tai-Pan. — Depois, saiu correndo da cabina, com Culum atrás dele.
Quando Struan irrompeu no tombadilho, a tripulação já estava em posições de ação e abrindo as janelas de tiro e, lá em cima, os homens subiam pelo cordame.
Bem em frente, espalhado contra o horizonte, estava uma ameaçadora frota de juncos de guerra.
— Pela bunda de Thor, é uma maldita frota! — disse o Capitão Orlov. — Contei mais de cem, Tai-Pan. Viramos e fugimos?
— Mantenha seu curso, Capitão. Temos a velocidade deles, Desocupar o convés! Vamos nos aproximar e dar uma olhada. Içar velas no mastaréu e sobre a proa! Orlov berrou para cima:
— Içar velas no mastaréu e na proa! A todo pano! — Os oficiais escutaram os gritos e os marinheiros correram para os ovéns e desdobraram as velas, fazendo o China Cloud ganhar velocidade e cortar as águas.
O navio se encontrava no canal entre a grande Ilha de Pokliu Chau, duas milhas a bombordo e a Ilha de Ap Li Chau, de menores dimensões, meia milha a estibordo. Ap Li Chau ficava a um quarto de milha ao lago da costa da Ilha de Hong Kong e formava uma bela baía que fora designada Aberdeen. Na costa de Aberdeen, havia uma pequena vila de pescadores. Struan observou mais sampanas e juncos de pesca do que existiam ali há um mês.
Robb e Culum subiram ao tombadilho. Robb viu os juncos e seu couro cabeludo formigou.
— Quem são eles, Dirk?
— Não sei. Saiam daí!
Culum e Robb se afastaram com um pulo, quando um grupo de marinheiros desceu pelo cordame e deu nós mais fortes nas amarras, correndo em seguida à popa, para posições de ação. Struan passou os binóculos para Mauss, que se arrastara a seu lado.
— Consegue distinguir a bandeira, Wolfgang?
— Não, ainda não, Tai-Pan. — Wolfgang, com a boca seca, espiava um grande e pesado junco de guerra, à frente dos outros, um dos maiores que já vira, mais de duzentos pés de comprimento e cerca de quinhentas toneladas, com a proa dominadora adernando lentamente, sob a pressão de três imensas velas. — Gott im Himmel, o número deles é grande demais para ser uma frota de piratas. Serão uma armada invasora? Com certeza, não ousariam atacar Hong Kong, estando tão próxima a nossa frota.
— Logo descobriremos — disse Struan. — Dois pontos a estibordo!
— Dois pontos a estibordo — bradou o timoneiro.
— Manter o curso! — Struan verificou a posição das velas. O palpitar do vento e o cordame esticado enchiam-no de excitação.
— Vejam! — Capitão Orlov gritou, apontando em direção à popa.
Outra flotilha de juncos arremeda, saindo de trás da extremidade sul de Pokliu Chau, preparando-se para cortar a retirada deles.
— É uma emboscada! Preparar para virar de bordo...
— Alto, Capitão! Eu estou no tombadilho!
O Capitão Orlov se aproximou mal-humorado do timoneiro, e ficou junto à bitácula, maldizendo a regra segundo a qual quando o Tai-Pan estava no tombadilho de qualquer navio da Casa Nobre, ele era o capitão.
Bom, pensou Orlov, boa sorte, Tai-Pan. Se não dermos a volta e corrermos, aqueles juncos emboscados vão cortar nosso curso e os outros, adiante, nos farão afundar, acabando com meu belo navio. Ah, não acabam, não! Vamos fazer trinta deles voarem para as covas em chamas do Valhala, e passaremos navegando entre eles, como uma Valquíria.
E, pela primeira vez, em quatro dias, esqueceu-se das barras de prata e, cheio de júbilo, pensou apenas na luta que ia começar.
A sineta do navio tocou oito vezes.
— Permissão para descer, Capitão! — disse Orlov.
— Sim. Leve o Sr. Culum e lhe mostre o que fazer. Orlov seguiu adiante de Culum, agilmente, até as profundezas do navio.
— Aos oito toques de sineta, na vigília da manhã, isto significa meio-dia, na contagem do tempo feita em terra, é dever do capitão dar corda no cronômetro — disse ele, aliviado de estar afastado do tombadilho, agora que Struan usurpara o comando. Mas também, ele disse a si próprio, se você fosse o Tai-Pan, faria o mesmo. Jamais permitiria que qualquer outra pessoa executasse a tarefa mais bela do mundo, enquanto você se encontrava ali.
Seus pequenos olhos azuis examinavam Culum. Ele vira o imediato desagrado de Culum e seus olhares disfarçados para suas costas e as pequenas pernas. Mesmo depois de quarenta anos suportando olhares assim, ele ainda detestava que o considerassem uma monstruosidade.
— Nasci durante uma tempestade de neve, num bloco de gelo flutuante. Minha mãe disse que era tão bonito que o espírito do mal, Vorg, esmagou-me com seus cascos, uma hora depois do meu nascimento.
Culum se mexeu, desajeitado, na semi-obscuridade.
— Ah?
— Vorg tem cascos fendidos. — Orlov deu uma risadinha. — Você acredita em espíritos?
— Não. Acho que não.
— Mas acredita no Demônio? Como todos os bons cristãos?
— Sim. — Culum tentava não demonstrar medo em sua expressão facial. — O que precisa ser feito com o cronômetro?
— É preciso dar corda nele. — Outra vez, Orlov deu uma risadinha. — Se você tivesse nascido como eu, talvez fosse Culum, o Corcunda, em vez de Culum, o Alto e Louro, hein? Então olharia as coisas de maneira diferente.
— Sinto muito... deve ter sido duro para você.
— Não foi duro... o Shakespeare de vocês teve palavras mais expressivas. Mas não se preocupe, Culum, o Forte. Posso matar um homem duas vezes maior do que eu com a maior facilidade. Gostaria que lhe ensinasse a matar? Não poderia ter melhor professor do que eu, a não ser o Tai-Pan.
— Não. Não, obrigado.
— É bom aprender. Muito bom. Pergunte a seu pai. Um dia, você vai precisar saber isso. Sim, muito breve. Sabia que eu tenho o dom da profecia? Culum estremeceu.
— Não.
Os olhos de Orlov brilharam e seu sorriso fez que se parecesse ainda mais com um duende maléfico.
— Você tem uma porção de coisas para aprender. Quer ser Tai-Pan, não é?
— Sim. Espero ser. Um dia.
— Haverá sangue em suas mãos, nesse dia.
Culum tentou controlar seu repentino sobressalto.— O que quer dizer com isso?
— Você ouviu. Terá sangue nas mãos, nesse dia. Sim. E logo vai precisar de alguém em quem possa confiar por muito tempo. Enquanto Norstedt Stride Orlov, o corcunda, for capitão de um de seus navios, você pode confiar nele.
— Eu me lembrarei disso, Capitão Orlov — disse Culum, e prometeu a si mesmo que, quando realmente se tornasse Tai-Pan, Orlov jamais seria um de seus capitães. Depois, ao tornar a olhar para o rosto do homem, teve a sensação esquisita de que Orlov adivinhara seus pensamentos.
— O que há, Capitão?
— Pergunte isso a você mesmo. — Orlov destrancou a caixa do cronômetro. Para fazer isso, precisava ficar em pé num degrau da escada. Em seguida, começou a dar corda no relógio, cuidadosamente, com uma grande chave. — É preciso dar trinta e três voltas.
— Por que você faz isso? E não um dos oficiais? — perguntou Culum, sem dar realmente muita importância àquilo.
— É dever do capitão. Um dos deveres. A pilotagem é uma das coisas secretas. Se todos a bordo soubessem pilotar, haveria um motim atrás do outro. É melhor que só o capitão e uns poucos oficiais saibam. Então, sem eles, os marinheiros estariam perdidos e indefesos. Mantemos o cronômetro trancado, neste local, por uma questão de segurança. Não é bonita? A feitura? Feito por bons cérebros ingleses e boas mãos inglesas. Marca com exatidão a hora de Londres.
Culum sentiu a proximidade do passadiço e a náusea crescendo dentro dele — sobrecarregada pelo medo de Orlov e da batalha que ia começar. Mas se controlou e decidiu que não permitiria a Orlov irritá-lo, até lhe fazer perder a cabeça, e tentou fechar as narinas para não sentir o cheiro ácido e penetrante da água suja do fundo do casco. Mais tarde, haverá um ajuste de contas, jurou.
— O cronômetro é tão importante assim?
— Esteve na universidade e pergunta isso? Sem essa beleza, estaríamos perdidos. Já ouviu falar no Capitão Cook? Ele usou o primeiro cronômetro, e o testou, há sessenta anos. Até aquela data, não tínhamos nenhum meio de descobrir em que longitude nos encontrávamos. Mas agora, com a hora exata de Londres e o sextante, sabemos onde estamos, milha por milha. — Orlov tornou a fechar a caixa e lançou um olhar abrupto para Culum. — Sabe usar um sextante?
— Não.
— Quando tivermos afundado os juncos, eu vou lhe mostrar. Acha que pode ser Tai-Pan da Casa Nobre em terra? Hein?
Houve um ruído de pés correndo no convés, e eles sentiram o China Cloud pular ainda mais rápido, através das ondas. Ali embaixo, todo o navio parecia pulsar, cheio de vida.
Culum lambeu os lábios secos.
— Poderemos afundar tantas embarcações e escapar?
— Se não, nós nadaremos. — O homenzinho olhou radiante para Culum. — Já naufragou, ou afundou?
— Não. E não sei nadar.
— Se é marinheiro, melhor não saber nadar. Nadar só prolonga o inevitável... se o mar quer você, e se sua hora chegou. — Orlov puxou a corrente, para se certificar de que
o cadeado estava seguro. — Há trinta anos que estou no mar e não sei nadar. Já naufraguei mais de dez vezes, dos mares da China ao Estreito de Bhering, mas sempre encontrei algum pedaço de mastro ou bote. Um dia, o mar vai me pegar. Quando chegar a hora. — Afrouxou o chicote de ferro, no pulso. — Vou ficar satisfeito de voltar ao porto.
Culum, cheio de reconhecimento, seguiu-o pelo passadiço acima.
— Você não confia nos homens que estão a bordo?
— Um capitão confia em seu navio, só em seu navio. E em si mesmo, apenas.
— Você confia em meu pai?
— Ele é o capitão.
— Não entendo.
Orlov não respondeu. Ao chegar ao tombadilho, observou as velas e franziu a testa. Pano demais, muito perto da costa. Um número excessivo de recifes desconhecidos e um cheiro de borrasca, em alguma parte. A linha invasora de juncos encontrava-se duas milhas à frente: implacável, silenciosa, aproximando-se deles.
O navio estava a todo pano, as velas principais ainda rizadas, toda a embarcação pulsando de alegria. Esta alegria tomava conta da tripulação. Quando Struan ordenou que as rizes fossem soltas, eles pularam para o cordame, cantaram enquanto colocavam as velas nos lugares e esqueceram as barras de prata que os contaminavam. O vento se tornou mais forte e as velas estalejaram. O navio adernou e ganhou velocidade, com a água do mar espumando como fermento nos embornais.
— Sr. Cudahy! Dê uma olhada lá embaixo e traga as armas para cima!
— Sim, sim, senhorrr — Cudahy, o primeiro-imediato, era um irlandês de cabelos negros, com olhos que dançavam, e usava um brinco de ouro.
— Manter o rumo! Vigia nos convés! Preparar canhão! Carregar a metralha!
Os homens se atiraram aos canhões, fizeram-nos girar para fora das portinholas das canhoneiras, carregaram-nos com a metralha e, outra vez girando-os, recolocaram-nos em seus lugares.
— Grupo de tiro número três, dose dupla extra de rum! Número dezoito, limpar o fundo do casco!
Houve vivas e pragas.
Era um hábito que Struan iniciara há muitos anos. Quando ia haver uma luta, o primeiro grupo de tiro da tripulação era recompensado e o último incumbido de executar a tarefa mais suja do navio.
Struan examinou o céu e o esticamento das velas e virou o binóculo em direção ao grande junco de guerra. Tinha muitas portinholas de canhoneiras, um dragão como figura de proa e uma bandeira que, àquela distância, ainda era indistinta. Struan via dúzias de chineses no convés e tochas acesas.
— Aprontem os barris de água! — gritou Orlov.
— Para que são os barris de água, papai? — perguntou Culum.
— Para apagar incêndios, rapaz. Os juncos têm tochas ardendo. Devem ter um bom estoque de foguetes acesos e bombas de mau cheiro. As bombas de mau cheiro são feitas de piche e enxofre. Podem causar devastação num clíper, quando não se está preparado. — Olhou em direção à popa. A outra flotilha de juncos entrava no canal, atrás deles.
— Estamos cercados, não? — perguntou Culum, “com o estômago dando voltas.”
— Sim. Mas só um louco iria por aquele caminho. Olhe para o vento, rapaz. Por aquele caminho teríamos de navegar contra ele, e algo me diz que ele logo vai mudar contra nós. Mas, para a frente, temos o vento e a velocidade de qualquer junco. Veja como são pesados, rapazinho! Como cavalos de carreta contra nós... um navio veloz. Temos dez vezes mais poder de disparo, navio contra navio.
Uma das adriças no alto do mastro principal se partiu abruptamente e a verga rangeu, batendo contra o mastro e deixando a vela solta a adejar.
— Vigia de bombordo para cima! — berrou Struan. — Mandem subir a corda de sustentação do sobrejoanete!
Culum observou os marinheiros agarrarem-se à verga, quase no alto do mastro principal, com o vento açoitando-os, a se segurarem com unhas e dentes, sabendo que ele jamais faria aquilo. Sentiu a bílis do medo em seu estômago. Não conseguiu esquecer o que Orlov dissera: sangue em suas mãos. Sangue de quem? Cambaleou até a amurada e vomitou.
— Toma aqui, rapazinho — disse Struan, oferecendo a bolsa de água que estava pendurada numa malagueta. Culum empurrou-a, detestando o pai por ter notado que ele estava enjoado.
— Limpe a boca, pelo amor de Deus! — a voz de Struan era áspera.
Culum obedeceu, desconsoladamente, e não notou que a água, na verdade, era chá frio. Bebeu um pouco e se sentiu enjoado outra vez. Então, lavou a boca e sorveu um pouquinho do líquido, sentindo-se péssimo.
— A primeira vez em que entrei em combate, estava enjoado como um criado bêbado... mais enjoado do que você pode imaginar. E mortalmente assustado.
— Não acredito — respondeu Culum, com voz fraca. — Você nunca esteve amedrontado e nem enjoado em sua vida. Struan resmungou:
— Bom, você pode crer. Foi em Trafalgar.
— Eu não sabia que você tinha estado lá! — De tão pasmado, Culum, por um momento, esqueceu seu enjôo.
— Eu era carregador de pólvora. A Marinha usa crianças nas naus capitânias para levar pólvora do depósito até o convés de tiro. A passagem tinha de ser tão pequena quanto possível, para diminuir as chances de ser atingida por um disparo, fazendo todo o navio explodir.
Struan lembrava-se das armas que rugiam, dos gritos dos feridos, dos membros humanos espalhados pelo convés, escorregadios com o sangue — do fedor do sangue e de como os embornais estavam vermelhos. O cheiro de vômito no pequeno túnel negro que jamais terminava, viscoso de vômitos. Era preciso subir às apalpadelas até os canhões que explodiam, levando barriletes de pólvora e, depois, descer às cegas, mais uma vez, para a horrível escuridão, com os pulmões em fogo, o coração transformado numa máquina violenta, lágrimas de terror escorrendo — hora após hora.
— Eu estava mortalmente assustado.
— Você esteve realmente em Trafalgar?
— Sim. Eu tinha sete anos. Não era o mais velho do meu grupo, mas o mais assustado. — Struan deu palmadas calorosas no ombro do filho. — Então, não se preocupe. Não tem nada errado nisso.
— Não estou com medo agora, papai. É apenas o fedor do porão.
— Não se iluda. É o fedor do sangue que você acha que cheira... e o medo de que seja seu.
Culum, depressa, debruçou-se sobre a amurada do navio, vomitando outra vez. Embora o vento estivesse forte, não varria, de sua cabeça, o enjoativo cheiro doce, e nem, de sua mente, as palavras de Orlov. Struan foi até o barril de conhaque, bebeu uma dose dupla e entregou outra a Culum, ficando a observá-lo enquanto ele bebia.
— Com sua licença, senhorrr — disse o camaroteiro. — O banho que foi pedido está pronto, senhorrr.
— Obrigado. — Struan esperou até o camaroteiro se unir ao seu grupo de tiro e então disse a Culum: — Desça, rapaz. Culum se sentiu cheio de humilhação.
— Não. Estou bem aqui.
— Desça! — Embora fosse uma ordem, foi dada com gentileza, e Culum sabia que lhe estava sendo oferecida a oportunidade de descer e fugir à vergonha.
— Por favor, papai — disse ele, quase em prantos. — Deixe que eu fique. Sinto muito.
— Não precisa se desculpar. Já enfrentei este tipo de perigo mil vezes, e então é fácil para mim. Sei o que esperar. Desça, rapaz. Haverá tempo suficiente para tomar banho e voltar para o convés. E participar de um combate, se houver combate. Por favor, desça.
Desconsoladamente, Culum obedeceu.
Struan passou a prestar atenção em Robb, que estava inclinado por sobre a amurada, pálido feito cera. Struan ficou pensando, por um momento, depois se aproximou dele.
— Quer me prestar um favor, Robb? Fazer companhia ao rapaz? Ele não está se sentindo bem, de jeito nenhum. Robb forçou um sorriso.
— Obrigado, Dirk. Mas, desta vez, eu preciso ficar, enjoado ou não. Será uma armada invasora?
— Não, rapaz. Mas não se preocupe. Podemos abrir caminho entre eles a tiro, se for preciso.
— Eu sei. Eu sei.
— Como vai Sarah? Ela está bem perto de ter criança, não? Desculpe, eu esqueci de perguntar.
— Ela está bem, como a maioria das mulheres quando faltam poucas semanas. Eu vou ficar satisfeito, quando a espera acabar.
— Sim. — Struan virou-se e ajustou ligeiramente o curso do navio.
Robb forçou sua mente a se desligar dos juncos, que pareciam encher o mar, adiante. Espero que seja outra menina, pensou ele. As meninas são muito mais fáceis de criar do que os meninos. Espero que ela seja como Karen. Minha querida Karen!
Robb detestou a si mesmo outra vez por ter gritado com ela aquela manhã — tinha sido ainda aquela manhã, que todos estavam juntos no Thunder Cloud. Karen desaparecera, e Sarah e ele pensaram que tivesse caído por sobre a amurada. Ficaram frenéticos e, quando começou a busca, Karen chegou alegremente ao convés, vinda do porão, onde estava brincando. E Robb ficara tão aliviado que gritara com ela, e Karen se refugiara soluçando nos braços da mãe. Robb amaldiçoara sua mulher por não tomar conta de Karen com mais cuidado, sabendo que não era culpa de Karen, mas sem conseguir se conter. Então, dentro de alguns minutos, a pequena Karen estava como qualquer outra criança, rindo com facilidade, tudo esquecido. E ele e Sarah como quaisquer outros pais, ainda perturbados com a raiva mútua, sem esquecer nada...
Pela frente e por trás, as frotas de juncos bloqueavam as vias de escape do China Cloud. Robb viu o irmão inclinado contra a bitácula, acendendo descontraidamente um charuto num pavio em chamas de um canhão, e desejou ser tão calmo.
Ó Deus, dai-me forças para suportar cinco meses e mais doze meses e a viagem para casa e, por favor, tornai mais fácil o parto de Sarah. Ele se debruçou por sobre a balaustrada e se sentiu muito enjoado.
— Dois pontos a bombordo — disse Struan, observando a costa de Hong Kong, com cuidado.
Ele estava quase suficientemente perto dos rochedos proeminentes ao largo da proa, a estibordo, e bem a barlavento da linha dos juncos. Alguns minutos mais e iria virar e investir contra o junco que já marcara para a morte, e atravessaria a linha com segurança
— se não houvesse navios de tiro, e se o vento não diminuísse, e se nenhum recife ou baixio escondido danificasse o navio.
O céu escurecia ao norte. A monção se mantinha forte, mas Struan sabia que, naquelas águas, o vento poderia mudar um quarto ou mais com alarmante rapidez, ou uma violenta borrasca era capaz de varrer os mares. Com o navio a tanto pano, poderia ficar em grande perigo, pois o vento rasgaria suas velas antes de poder-se rizá-las, ou quebraria os mastros. Então, além disso, poderia haver também muitos recifes e escolhos esperando para rasgar o bojo da embarcação. Não havia mapas daquelas águas. Mas Struan sabia que só usando a velocidade eles poderiam escapar. E com pagode.
— Gott im Himmel! — Mauss estava espiando pelo binóculo — É o Lótus! O Lótus de Prata!
Struan agarrou o binóculo e focalizou a bandeira que drapejava no alto do grande junco: um lótus de prata com o fundo vermelho. Não havia erro. Era o Lótus de Prata, a bandeira de Wu Fang Choi, o rei dos piratas, cujo sadismo era lendário, cujas incontáveis frotas pilhavam e dominavam as costas de todo sul da China, extorquindo tributos num raio de mil milhas, de norte a sul. Pelo que se supunha, sua base era em Formosa.
— O que estará Wu Fang Choi fazendo nessas águas? — perguntou Mauss. Outra vez, sentiu uma estranha mistura de medo e esperança crescendo dentro dele. Sua vontade será feita, ó Senhor.
— As barras de prata — disse Struan. — Devem ser as barras de prata. De outra maneira, Wu Fang Choi jamais se arriscaria a vir aqui, com nossa frota tão próxima.
Durante anos, os portugueses e todos os negociantes pagavam tributos a Wu Fang Choi pelo salvo-conduto de seus navios. Os tributos saíam mais baratos do que a perda dos navios mercantes, e seus juncos mantinham os mares do sul da China livres de outros piratas — a maior parte do tempo. Mas, com a chegada da força expedicionária, no ano passado, os negociantes ingleses haviam parado de pagar por sua passagem livre, e uma das frotas piratas de Wu Fang Choi começara a saquear as vias marítimas e a costa perto de Macau. Quatro fragatas da Marinha Real saíram à caça e destruíram a maioria dos juncos piratas, seguindo aqueles que fugiram para a Baía Bias — um reduto dos piratas na costa, quarenta milhas ao norte de Hong Kong. Ali, as fragatas destroçaram os juncos e sampanas piratas e investiram contra duas vilas dos piratas. Desde aquele tempo, a bandeira de Wu Fang Choi não se aventurara por perto.
Um canhão estrondeou na nau capitania dos piratas e, espantosamente, todos os juncos, com exceção de um, viraram com o vento e abaixaram as velas principais, deixando apenas as velas curtas à popa para ficar à deriva. Um pequeno junco destacou-se da frota e se encaminhou para o China Cloud.
— Virar o timão! — Struan ordenou, e o China Cloud mudou de posição com relação ao vento. As velas adejaram ansiosamente e o navio perdeu velocidade e quase parou. — Mantenha a proa em direção ao vento!
— Sim, sim, senhorrr!
Struan olhou através do binóculo para o pequeno junco. No mastro principal drapejava uma bandeira branca.
— Pela morte de Cristo! Que brincadeira é essa? Os chineses jamais usam uma bandeira de trégua!
A embarcação se aproximou e Struan ficou ainda mais assombrado ao ver um europeu alto de barba negra, vestido com pesadas roupas marítimas, espada à cinta, timoneando o junco. Ao lado do homem, estava um rapaz chinês, ricamente trajado, com túnica e calças de brocado verde e botas negras macias. Struan viu o europeu apontar seu longo telescópio para o China Cloud. Depois de um momento, o homem depôs o telescópio, riu ruidosamente e acenou.
Struan passou o binóculo para Mauss.
— O que pensa daquele homem? — Ele se inclinou para o Capitão Orlov, que tinha um telescópio apontado para o junco. — Capitão?
— Pirata, com certeza — Orlov entregou seu telescópio a Robb. — Outro boato está confirmado... de que Wu Fang Choi tem europeus em sua frota.
— Mas por que todos iriam abaixar as velas, Dirk? — perguntou Robb, com incredulidade.
— O emissário vai dizer-nos. — Struan caminhou para a ponta do tombadilho. — Senhor — ele bradou para Cudahy — está pronto para dar um tiro de advertência?
— Sim, sim. — Cudahy pulou para o primeiro canhão e o apontou.
— Capitão Orlov! Apronte a chalupa. Você lidera o grupo de abordagem. Se não afundarmos aquele barco primeiro.
— Por que abordar, Dirk? — perguntou Robb, aproximando-se de Struan.
— Nenhum junco pirata vai chegar a menos de cinqüenta jardas. Pode ser um aviso de tiro ou estar cheio de pólvora. Em tempos como os de agora, é bom estar preparado para armadilhas.
Culum, desajeitado, apareceu na gaiúta, vestido com roupas de marinheiro — camisa grossa de lã, casaco, lã e calças boca de sino e sapatos de corda.
— Olá, rapaz — disse Struan.
— O que está acontecendo?
Struan lhe contou e acrescentou:
— As roupas ficaram bem em você, rapaz. Está com aspecto melhor.
— Estou muito melhor — disse Culum, sentindo-se desajeitado e estranho. Quando o junco pirata estava a uma distância de cem jardas, o China Cloud deu um tiro de advertência por cima da proa do outro e Struan pegou uma trompa.
— Parem! — ele gritou. — Senão vou fazer vocês explodirem. Obedientemente, o junco virou na direção do vento e deixou cair as velas, começando a derivar com a força da maré.
— Ó de bordo, China Cloud. Permissão para embarcar — gritou o homem de barba negra.
— Por que, e quem é você?
— Capitão Scragger, da cidade de Londres — gritou o homem, em resposta, e gargalhou. — Quero dar uma palavrinha com o senhor, Lorde Struan, em particular!
— Venha a bordo sozinho. E desarmado!
— Bandeira branca, camarada?
— Sim! — Struan caminhou para a grade do tombadilho. — Mantenha o junco sob cobertura, Sr. Cudahy!
— Ficará coberto, senhorrr.
Um pequeno escaler foi baixado por sobre a amurada do junco e Scragger entrou nele, agilmente, e começou a remar em direção ao China Cloud. Ao se aproximar, começou a cantar com voz forte e cadenciada. Era uma canção marítima, Derrubem o Homem.
— Sujeitinho atrevido — disse Struan, divertido, contra a vontade.
— Scragger é um nome incomum — disse Robb. — Nossa tia-avó Ethel não se casou com um Scragger, de Londres?
— Sim. Pensei na mesma coisa, rapaz. — Struan sorriu. — Talvez nós tenhamos um parente pirata.
— Não somos todos piratas? O sorriso de Struan se alargou.
— A Casa Nobre estará segura em suas mãos, Robb. Você é um homem sábio... mais sábio do que você próprio pensa. — Ele olhou outra vez para o bote. — Sujeitinho petulante.
Scragger parecia ter uns trinta e tantos anos. Seu cabelo comprido e despenteado e a barba eram negríssimos. Os olhos azuis-claros e pequenos e as mãos pareciam presuntos. Argolas de ouro pendiam de suas orelhas e uma cicatriz irregular enrugava a metade esquerda de seu rosto.
Ele amarrou seu bote e subiu pela rede de embarque com a facilidade de quem tem prática. Ao pular sobre o convés, tocou a testa com fingida deferência em direção ao tombadilho e fez uma curvatura elaborada.
— Bom-dia, Excelências! — Depois, para os marinheiros que o olhavam, boquiabertos: — Bom-dia, camaradas! Meu patrão, Wu Fang Choi, lhes deseja uma boa viagem para casa! — Ele riu e mostrou os dentes estragados, e depois foi até o tombadilho e parou diante de Struan. Era mais baixo do que Struan, porém mais corpulento. — Vamos descer!
— Sr. Cudahy, reviste-o!
— Ora, estamos com bandeira branca e eu não estou armado, pode ter certeza. Tem minha palavra! — disse Scragger, com a cara mais inocente do mundo.
— Será revistado, de qualquer maneira! Scragger se submeteu à revista.
— Está satisfeito, Tai-Pan?
— Por enquanto, sim.
— Então, vamos descer. Sozinhos. Como eu pedi.
Struan verificou a escorva de sua pistola e fez sinal a Scragger para descer pelo passadiço.
— O resto de vocês fica no convés.
Para espanto de Struan, Scragger seguia pelo navio com a familiaridade de quem já estivera a bordo. Ao chegar à cabina, deixou-se cair na poltrona e estirou as pernas, satisfeito.
— Gostaria de molhar a garganta, antes de começarmos, por favor. Remar dá sede.
— Rum?
— Conhaque. Ah, conhaque! E, se tiver um barrilete disponível, eu estaria bem inclinado.
— A quê?
— A ser paciente. — Os olhos de Scragger eram de aço. — Você é exatamente como eu pensei.
— Disse que veio da cidade de Londres?
— Sim, é verdade. Há muito tempo. Ah, obrigado — disse Scragger, aceitando o canecão de ótimo conhaque. Ele o cheirou com amor, depois engoliu-o, suspirou e acariciou as suíças engorduradas. — Ah, conhaque, conhaque! A única coisa errada na minha atual função é a falta de conhaque. Faz bem ao meu coração.
Struan tornou a encher o canecão.
1.— Obrigado, Tai-Pan.
2.Struan brincava com sua pistola.
3.— De que parte de Londres você é?
4.— Shoreditch, camarada. Foi lá que me criei.
5.— Qual o seu nome de batismo?
— Dick. Por quê?
Struan deu de ombros.
— Agora, diga por que veio — falou. Planejava escrever, pelo próximo correio, para descobrir se Dick Scragger era o nome de um descendente de sua tia-avó.
— Vou dizer, Tai-Pan, vou dizer. Wu Fang Choi quer falar com você. A sós. Agora.
— A respeito de quê?
— Eu não lhe perguntei, e nem ele me disse. “Vá buscar o Tai-Pan”, foi o que falou. Então, eu estou aqui. — Esvaziou o canecão e depois sorriu, com afetação. — Vocês têm barras de prata a bordo, é o que dizem os boatos. Hein?
— Diga a ele que eu o verei aqui. Ele pode vir a bordo sozinho e desarmado. Scragger estourou de rir e, inconscientemente, coçou os piolhos que o infestavam.
— Ora, você sabe que ele não ia fazer isso, Tai-Pan, como você também não iria a bordo do navio dele sozinho e sem proteção. Viu o menino a bordo do meu junco?
— Sim.
— É o filho mais novo dele. Será o refém. Você vai a bordo, armado, se quiser, e o menino fica aqui.
— E se o menino não for mais do que o filho de um cule, com aquelas roupas, e eu for liquidado?
— Ah, não — disse Scragger, magoado. — Tem o meu juramento, por Deus, e é verdade. Não somos um bando velhaco de piratas. Temos três mil navios em nossas frotas e dominamos essas costas, como bem sabe. Tem o meu juramento, por Deus. E o dele.
Struan notou as cicatrizes brancas nos pulsos de Scragger e teve certeza de que havia outras em seus tornozelos.
— Por que você, um inglês, está com ele?
— Ora, e por que, camarada? E por que mesmo? — Scragger replicou, erguendose. — Posso me servir de mais bebida? Obrigado, muito obrigado. — Trouxe outra vez a garrafa para a escrivaninha, e se instalou novamente. — Tem mais de cinqüenta marinheiros ingleses, na frota dele. E quinze, ou mais, americanos, e um francês. Capitães, fabricantes de canhões, atiradores, imediatos. Por ofício, eu era imediato de contramestre — ele continuou, expansivamente, inspirado pelo conhaque. — Há dez anos ou mais, naufraguei em algumas ilhas, ao norte. Os filhos da mãe dos pagãos que me pegaram para ser escravo eram do Japão. E me venderam para outros filhos da mãe pagãos, mas escapei e encontrei Wu Fang. Ele me ofereceu colocação, quando soube que eu era imediato de contramestre e sabia fazer a maior parte das coisas de bordo. — Esvaziou o canecão, arrotou e tornou a enchê-lo. — Agora, o que vamos nós fazer?
— Por que não fica a bordo, agora? Posso abrir caminho e passar por Wu Fang muito bem.
— Obrigado, camarada, mas gosto do meu emprego.
— Por quanto tempo você ficou preso?
O canecão de Scragger parou no meio do caminho e sua expressão se tornou defensiva.
— Por bastante tempo, camarada. — Ele olhou para as cicatrizes em seus pulsos.
— As marcas dos ferros, hein? Sim, elas continuam aí, depois de doze anos.
— De onde você fugiu, da Baía Botany?
— Sim, foi da Baía Botany — disse Scragger, outra vez amistoso. — Peguei quinze anos de degredo, quando era ainda rapaz ou, pelo menos, quando era mais jovem. Mais ou menos com vinte e cinco anos. Quantos anos tem você?
— Sou bastante velho.
— Eu nunca soube minha idade com certeza. Talvez tenha trinta e cinco ou quarenta e cinco. Sim, quinze anos, por matar um imediato nojento, numa nojenta fragata.
— Teve sorte de não ser enforcado.
— Ah, isso tive. — Scragger, todo feliz, arrotou outra vez.
— Gosto de conversar com você, Tai-Pan. Mudo um pouco, dos meus imediatos.
Sim, fui deportado de Blighty. Nove meses no mar, acorrentado com mais quatrocentos outros pobres-diabos e mais ou menos a mesma quantidade de mulheres. Acorrentados no porão, pois é. Nove meses, ou mais. Passando a água e bolacha, nada de carne. Isso não é maneira de se tratar um homem, de jeito nenhum. Cem entre nós viveram até chegar em terra. Fizemos um motim no porto de Sidney e rompemos as correntes. Matamos todos os nojentos carcereiros. Depois, ficamos no mato por um ano, e então eu achei emprego num navio. Um navio mercante. — Scragger deu uma risadinha malévola. — Pelo menos, nos alimentávamos dos navios mercantes. — Ele olhou para as profundezas de seu canecão, e seu sorriso desapareceu. — Sim, malfeitores, é o que todos somos, que Deus amaldiçoe todos os bundas-moles dos policiais — ele rosnou. Durante um momento, ficou silencioso, perdido em suas recordações. — Mas naufraguei, como já disse, e daí todo o resto.
Struan acendeu um charuto.
— Por que servir a um maldito pirata como Wu Fang?
— Eu lhe digo, camarada. Sou livre como o vento. Tenho três mulheres e toda a comida que posso comer, e pagamento, e sou capitão de um navio. Ele me trata melhor do que meus malditos aparentados. Malditos parentes! Sim. Para eles sou malfeitor. Mas, para Wu Fang, não sou, e em que outro lugar e como eu ia poder ter mulheres e comida e o produto do saque sem guarda e sem força, hein? Claro que vou ficar com ele... ou com qualquer outro que me ofereça a mesma coisa. — Levantou-se.
— Agora, virá, como ele lhe pediu, ou vamos ter de levá-lo para bordo?
— Leve-me para bordo, Capitão Scragger. Mas, primeiro, acabe seu conhaque. Será o último que vai provar neste mundo.
— Temos mais de uma centena de navios contra você.
— Deve pensar que eu sou mesmo um idiota. Wu Fang jamais se aventuraria a vir pessoalmente para essas águas. Nunca. Com nossos navios de guerra ali do outro lado de Hong Kong. Wu Fang não está na frota com vocês.
— Você é muito inteligente, Tai-Pan — riu Scragger. — Fui avisado. Sim. Wu Fang não está conosco, mas seu principal almirante, sim. Wu Kwok, seu filho mais velho. E o menino é filho dele, Esta é a verdade.
— A verdade tem muitas faces, Scragger — disse Struan. — Agora, saia do meu navio e vá para o inferno. A bandeira branca é só para sua embarcação. Vou lhe mostrar o que penso de sua maldita frota pirata.
— Você faria isso, Tai-Pan, se tivesse uma chance. Ah, eu esqueci — disse ele, e puxou uma pequena bolsa de couro que estava amarrada em torno de seu pescoço. Tirou um pedaço de papel dobrado e empurrou-o através da escrivaninha. — Disseram-me para lhe entregar isso — ele falou, com o rosto ironicamente retorcido.
Struan desdobrou o papel. Tinha o carimbo de Jin-qua. E continha uma das metades de moeda.
CAPÍTULO DEZ
Struan estava de pé, descontraidamente, na proa de sua chalupa, com as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos de seu grosso casaco de marinheiro, um chicote de ferro amarrado ao pulso, pistolas à cinta. Seus homens remavam tensos, muito armados. Scragger permanecia sentado no meio da embarcação, cantando com voz de bêbado uma cançoneta marítima. Cem jardas adiante estava a nau capitânia dos piratas. De acordo com uma combinação prévia feita com Scragger — por insistência de Struan — a nau capitânia se afastara de sua frota protetora de juncos e se deslocara para mais perto da praia, algumas poucas jardas a sotavento do China Cloud. Ali, com apenas a pequena vela de popa erguida, para deixá-la à deriva, a nau capitania estava sob a mira dos canhões do China Cloud e à mercê deste. Mas o restante da armada de juncos ainda se encontrava em posição de bloqueio, cercando as duas embarcações.
Struan sabia que era perigoso ir a bordo de uma nau pirata sozinho, mas a moeda partida não lhe deixara nenhuma escolha. Ele queria levar Mauss consigo — um intérprete era necessário e Mauss também lutava como um demônio. Mas Scragger recusara:
— Sozinho, Tai-Pan. Tem gente a bordo que fala como pagão, e tem gente que fala inglês. Sozinho. Armado, se quiser, mas sozinho. Isto foi pedido. Antes de sair do China Cloud, Struan dera ordens finais, diante de Scragger.
— Se a nau capitania levantar velas, podem destruí-la. Se eu não tiver saído de lá dentro de uma hora, façam-na explodir.
— Ora, Tai-Pan — disse Scragger constrangido, forçando uma risada — isto não é maneira de aceitar um convite. De jeito nenhum. Lembre-se da bandeira branca, camarada.
— Façam o navio explodir. Mas, primeiro, enforquem o menino, no laís de verga.
— Não se preocupe — disse Orlov, malevolamente. — O menino estará morto e, pelo sangue de Jesus Cristo, jamais sairei destas águas enquanto existir um junco flutuando.
— Comecem a remar!
Struan ordenou, enquanto o cúter se colocava ao lado do junco. Uma centena de piratas chineses enfileiravam-se junto à amurada, conversando, zombando. Struan observou as portinholas de tiro. Quarenta canhões.
Subiu a escada de embarque e, ao chegar ao convés, viu que os canhões estavam em boas condições; barriletes de pólvora se encontravam espalhados, descuidadamente, e havia numerosas bombas de fedor e incendiárias; o navio pirata estava bem tripulado. Havia sujeira por toda parte, mas nenhum sinal de doença ou de escorbuto. As velas em boas condições, o cordame teso. Difícil — ou impossível — de tomar, em termos de equilíbrio de forças. Mas não havia possibilidade de o China Cloud afundar — com pagode.
Ele seguiu Scragger para baixo, até a cabina principal, sob o convés da popa, observando automaticamente os passadiços e avaliando possíveis riscos, para o caso de ser necessária uma retirada. Chegaram a uma suja ante-sala, apinhada de homens. Scragger abriu caminho através deles, até uma porta na extremidade do aposento, guardada por um truculento chinês, que apontou para as armas de Struan e injuriou Scragger. Mas Scragger respondeu-lhe aos gritos, em cantonês e, com desprezo, afastou o guarda com uma mão e abriu a porta.
A cabina era enorme. Almofadas sujas enchiam um estrado elevado, dominado por uma mesa baixa, laqueada em vermelho. O aposento, como toda a embarcação, fedia a suor, peixe apodrecido e sangue. Atrás da parte posterior do estrado havia uma parede de treliça, que ia do convés à antepara. Era elaboradamente entalhada e tinha cortinas do lado oposto, onde dormia o comandante. Impossível ver através dessa parede, do lado de cá, pensou Struan, mas fácil de fazer passar uma espada por ela. Notou que havia quatro vigias gradeadas e seis lanternas a óleo pendentes das traves do teto.
Abriu-se uma porta na parede de treliça.
Wu Kwok era baixo, corpulento e de meia-idade. Seu rosto era redondo e cruel, seu rabicho comprido e gorduroso. A rica túnica de seda verde, amarrada em torno da barriga proeminente, estava manchada de gordura. Usava belas botas navais de couro e seus pulsos estavam rodeados por muitas pulseiras de jade, de valor incalculável.
Ficou observando Struan por algum tempo e, depois, fez sinal para que subisse ao estrado e se sentasse a um dos lados da mesa. Struan sentou-se diante dele. Scragger recostou-se na porta fechada, coçando-se distraidamente, com um sorriso sardônico no rosto.
Struan e Wu Kwok fitaram-se impassíveis, imóveis. Afinal, Wu Kwok ergueu a mão ligeiramente e um criado trouxe pauzinhos, xícaras, chá e bolinhos — pequenos e delicados bolinhos de farinha de arroz recheados com creme de amêndoas — e um prato de dim sum variados.
Dim sum eram pequenos e delicados pastéis, com recheio de camarão, porco frito, galinha, verduras ou peixe. Alguns eram cozidos, outros bem fritos.
O criado serviu o chá.
Wu Kwok ergueu sua xícara e fez sinal a Struan para fazer a mesma coisa. Beberam silenciosamente, com os olhos fixos um no outro. Depois, o pirata pegou seus pauzinhos e escolheu um dim sum. Colocou-o no pequeno prato diante de Struan e fez sinal a ele para comer. Struan sabia que, embora lhe tivessem sido fornecidos pauzinhos, Wu Kwok esperava que ele comesse com as mãos, como um bárbaro, assim perdendo prestígio.
Filho da mãe, pensou, e agradeceu a seu pagode por ter May-may. Pegou habilmente os pauzinhos, levou o dim sum à boca e recolocou os pauzinhos em seu recipiente de porcelana, mastigando em seguida com gosto, ainda mais satisfeito por sentir o espanto do pirata — de que um bárbaro pudesse comer como uma pessoa civilizada!
Struan pegou seus pauzinhos outra vez e, meticulosamente, escolheu outro dim sum do prato: o menor e o mais delicado, o mais difícil de sustentar. Era um pastel cozido, com recheio de camarão, com a massa tão fina ao ponto de ser quase transparente. Ele o ergueu depressa e sem esforço, rezando para não o deixar cair. Segurou-o com o braço estendido, oferecendo-o a Wu Kwok.
Os pauzinhos de Wu Kwok deram um bote e ele pegou o dim sum e o carregou para seu pratinho. Mas um pequeno pedaço de camarão caiu na mesa. Embora Wu Kwok permanecesse impassível, Struan sabia que ele estava enraivecido, pois perdera prestígio.
Struan deu o coup de grâce. Inclinando-se, pegou o fragmento de camarão e o colocou em seu prato, escolhendo em seguida outro pequeno dim sum. Outra vez ele ofereceu. Wu Kwok pegou-o. Não deixou cair nenhum pedaço.
Ele ofereceu um a Struan e Struan pegou-o, casualmente, no meio do ar, comendo
o com gosto, mas recusou o próximo oferecido. Era o cúmulo da etiqueta chinesa fingir para o anfitrião que a comida era tão boa a ponto de não se poder comer mais, mesmo que ambos, anfitrião e convidado, soubessem que poderiam continuar a comer, vorazmente.
— Pegue mais grude, camarada! Tem muitos mais desses — disse repentinamente Wu Kwok, insistindo como um anfitrião faria.
O choque ao ouvir o áspero sotaque cockney vindo de Wu Kwok diminuiu o prazer de Struan com o prestígio que ganhara, ao fazer o outro falar primeiro.
— Obrigado. Estou satisfeito de que fale inglês. Isto torna as coisas mais fáceis — disse Struan. — Muito mais fáceis.
— Sim, é verdade. — Wu Kwok estava muito orgulhoso de saber falar o idioma bárbaro.
— Onde aprendeu inglês? — Struan inclinou-se e coçou o tornozelo. O estrado e as almofadas estavam infestados de pulgas.
— Onde aprendeu a comer como um chinês, hein?
Struan escolheu outro pastel.
— Tentei aprender cantonês, muitas vezes. Mas não sou bom estudante e minha língua não pode reproduzir os sons direito. — Ele comeu o pastel, delicadamente, e bebeu um pouco de chá. — O chá é excelente. De Soochow?
Wu Kwok abanou a cabeça.
— Lin Tin. Gosta do chá de Soochow?
— O de Lin Tin é melhor.
— Aprendi inglês com Scragger e outros. Durante anos. — Ele comeu por um momento e outra vez insistiu para Struan se servir de uma nova porção da deliciosa comida. — Coma mais grude, camarada. Você é estranho. Fico satisfeito de conhecer um homem como você. Você não é comum, aposto. Seria capaz de matar muitos por dia, muitos.
Os olhos de Struan tornaram-se mais verdes e mais luminosos.
— Você morreria muito depressa. Meus métodos são diferentes dos seus. Num momento, vivo, no outro, morto. — Estalou os dedos. — É melhor... para amigo ou inimigo. Ou para um cão danado!
— Por que você fala tão estranho, hein? — Wu Kwok perguntou, depois de uma pausa perigosa.
— O quê?
— Você não fala como eu. É difícil entender você. O sotaque é diferente.
— Há muitos dialetos... tipos... de inglês — disse Struan calmamente, dando prestígio a Wu Kwok.
— Ele é grãfino, Wu Kwok, como eu disse — explicou Scragger. — Grã-finos falam, diferente. Eles vão pra escola, como eu lhe disse.
— Esse puto malfeitor Scragger está falando a verdade, camarada? Meu inglês né correto?
— Quem fala cantonês mais correto... um camponês ou um professor? O camponês é correto para os campos, e o professor para a escola. WU Kwok recostou-se nas almofadas e bebeu seu chá. Ele rompeu o silêncio.
— Ouvimos dizer que você tem barras de prata a bordo. Quarenta laques.
— Como conseguiu isto? — Struan abriu o punho e colocou a metade da moeda sobre a mesa.
— Cada metade de moeda um favor, certo, camarada?
— Sim — disse Struan, furioso consigo mesmo, por cair na armadilha de Jin-qua.
— Como conseguiu?
— Com meu pai.
— Como ele conseguiu?
— Como acha que aquele velho salteador de estrada, Jin-qua, conseguiu meter as mãozinhas sujas em quarenta laques em barras de prata, camarada? Hein? De seus antigos companheiros de bordo, é claro. Você tem dez laques de meu pai a bordo. — A barriga de Wu Kwok tremeu, de tanto riso. — Sirva Sua Excelência de um pouco de grogue, Scragger. Ele tá precisando.
— Wu Fang Choi e Jin-qua são companheiros de bordo? — perguntou Struan, abalado.
— É maneira de falar, camarada. Estamos protegendo o comércio marítimo dele dos nojentos piratas. Nós somos os guardiães do mar. É justo pagar por serviços, hein? E o homem sábio investe seu dinheiro para lucrar, né? Então investimos com ele, de vez em quando. Chá, seda, ópio. Empréstimos. — Wu Kwok segurou a barriga, e lágrimas de riso escorreram de seus olhos oblíquos. — Então, agora nós somos sócios, nós e a Casa Nobre. Que investimento seria melhor, hein, camarada?
— Qual é o seu “favor”, Wu Kwok?
— Vamos beber às barras de prata e ao seu pagode, Tai-Pan. Depois falamos.
— Ele mandou enforcar o menino, se ficasse a bordo mais de uma hora — disse Scragger, enchendo seu canecão com rum.
— E, se você mandasse levantar a vela, mandou explodirem nosso barco e enforcarem o rapaz.
— Qual é a duração de uma hora, camarada?
— É tempo bastante.
Wu Kwok comeu por um momento.
— Você mandaria enforcar o menino? — Você não mandaria? — Struan tirou seu relógio e colocou-o sobre a mesa. — Você já usou metade de seu tempo.
Wu Kwok aceitou um canecão dado por Scragger e bebeu lentamente. Struan sentiu o cabelo de seu pescoço eriçar-se, com a tensão. Ouvia os ruídos abafados de conversas em chinês, amarras esticadas e madeiras que rangiam.
Houve um fraco tamborilar de chuva no convés acima. Wu Kwok pegou um palito e limpou os dentes, com uma mão polidamente cobrindo a boca. A chuva se intensificou.
— O favor de Wu Fang Choi... — começou Wu Kwok.
— Sua frota tem vinte clíperes, não é?
— Dezenove.
— Dezenove. Em cada um deles, nós colocaremos um dos nossos rapazes. Vocês treinam eles como capitães. Oficiais. Dezenove homens. Vocês treinam eles bem. Tudo que vocês acharem preciso e quiserem para fazer deles bons capitães. Podem meter o chicote, passar por baixo da quilha, como castigo... o que quiserem, se eles não estiverem obedecendo... mas nada de mortes. Durante cinco anos, eles ficam com vocês, depois voltam pra casa. Outra coisa: dentro de um ano e um dia, nós queremos um clíper. Como o China Cloud. Pagamos o que custar, em barras de prata. Com canhões, cordames e velas como o China Cloud. Dez de nossos homens vão para Blighty ver como é construído, depois voltam pra casa com ele. Onde e como pegamos o navio, isso se combina depois... certo, Scragger?
— Sim.
— Por fim, nós damos a vocês um menino... três meninos ... para treinar. Três rapazes para treinar como grã-finos. Melhor escola de Londres — disse Wu Kwok. — Custe o preço que custar.
— Melhores roupas, carruagens, casa e comida — Scragger acrescentou. — Devem ser criados como malditos grã-finos. Tratados da melhor maneira. Universidade de Oxford ou Cambridge. Sim. Quando completarem a universidade, então voltam pra casa.
— Isso não é um favor... são muitos — disse Struan.
— Muitos... poucos... são favor — disse Wu Kwok, maldosamente. — É esse o pedido. Talvez eu tome os dez laques e também os trinta. Depois compro navio. Dinheiro compra tudo, né, camarada? Sim, eu tomo laques talvez e faço trato com Demônio de Um Olho Só, como é o nome dele?
— Brock — disse Scragger.
— Sim, Brock. Faço trato com Brock, ou algum outro. Trato é trato. Só treinar homens. Um navio. Pedido justo. Você diz sim ou não.
— Vou fazer um novo acordo com você. Leve de volta a moeda e, estando eu ou não a bordo do China Cloud, experimente só pegar todas as barras de prata, por Deus.
— Tem duzentos navios no horizonte. Eu perco cem, mas são duzentos navios, veja bem. Levo laques, Tai-Pan, levo laques. Struan pegou sua metade da moeda e se levantou.
— Está certo?
— Não está certo. Favor... você concorda com favor. Será que o Tai-Pan da Casa Nobre não tem palavra, hein? Sim, não?
— Dentro de um mês, traga cem homens, nenhum deles procurado pelos mandarins por qualquer crime, todos sabendo ler e escrever. Entre eles, escolherei dezenove para ser capitães. E dez homens para observar a construção. Traga os três meninos depois.
— É muito perigoso, camarada — disse Wu Kwok — tantos homens. — Certo, Scragger?
— Não, se forem levados, vamos dizer... para Aberdeen. Para ir à feira, não tem perigo nisso. Hein? Secretamente? Wu Kwok ficou pensando, um momento.
— Trato feito. Dentro de um mês. Aberdeen.
— Eu só entregarei o clíper a você, pessoalmente... ou a Wu Fang Choi — disse Struan. — A ninguém mais.
— A qualquer pessoa que eu mandar.
— Não.
— Ou a mim, camarada? — perguntou Scragger.
— Não. A Wu Kwok ou a Wu Fang Choi. Em mar aberto.
— Por quê? — perguntou Wu Kwok. — Hein, por quê? Qual é a malandragem que está em sua cabeça, camarada?
— Vai ser navio seu. Não vou entregar uma beleza dessas a qualquer outra pessoa. Onde está o seu prestígio, hein?
— Trato feito — disse afinal Wu Kwok. — Sem traição, por Deus, porque senão você vai pagar.
Struan, cheio de desdém, começou a caminhar para a porta, mas Scragger lhe barrou a passagem.
— Seu juramento sagrado, Tai-Pan?
— Já jurei a Jin-qua, Scragger. Você sabe o valor do meu juramento, por Deus! Scragger fez um sinal afirmativo com a cabeça a Wu Kwok e se afastou.
— Obrigado, Tai-Pan.
— Vendo como você concorda, de maneira tão gentil e amistosa, Tai-Pan — disse Wu Kwok — meu pai mandou um presente para você e uma mensagem. — Ele fez um aceno de mão para Scragger, que abriu uma arca, tirou e trouxe uma trouxa e entregou-a a Struan.
A trouxa continha uma bandeira — O Leão e o Dragão entrelaçados. E o diário de bordo de um navio: o diário de bordo do perdido Scarlet Cloud.
Struan abriu o livro e procurou a última página: “16 de novembro. Meio dia. N 11° 23' 11” E 114° 9' 22”. Tempestades continuam, forte ventania. Aos três toques da sineta, no turno intermediário da noite passada, as velas para tempestades foram arrancadas, com os mastros. Nosso navio foi atirado, desprotegido, aqui nos Recifes Tizzard onde, pela graça de Deus, veio a repousar, com a quilha arrancada e o casco esburacado.
18 de novembro. Quatro horas. Quatro juncos avistados entre nordeste e leste. Feitos preparativos finais para abandonar o navio.
18 de novembro. Cinco horas. Os quatro juncos mudaram de curso e se encaminham para nós. Distribuí mosquetes. Tentei preparar um canhão, mas fui impedido pelo adernamento do navio. Nós nos preparamos da melhor maneira possível. Para a possibilidade de serem piratas.
18 de novembro. Oito horas. Fomos invadidos. Piratas. Matamos o primeiro grupo, mas eles estão aí.”
Struan fechou o livro.
— Vocês mataram todos?
— Os juncos não faziam parte de nossas frotas regulares, camarada. Pelo menos a maioria, não.
— Vocês mataram todos?
— Eles se mataram, Tai-Pan. Eu não estava lá.
— Você sabe como alguns deles eram tratantes. Tai-Pan — disse Scragger. — Se os homens fossem de Wu Fang Choi... por que ele lhe daria o diário de bordo, hein? A notícia foi dada a Wu Fang Choi. Ele me mandou dar uma olhada. Não havia homem nenhum a bordo, quando cheguei lá. E nem corpos. Nada.
— Você saqueou o navio?
— Você conhece as leis do mar, Tai-Pan. O navio estava naufragado e abandonado. Metade da carga foi recuperada. Dezesseis canhões e uma porção de pólvora e balas.
— Onde está o cronômetro?
As sobrancelhas de Scragger se ergueram.
— Ora, a bordo do meu junco, claro, embora eu não saiba como usá-lo. Mas, quem acha, guarda, hein? É justo, hein? Mas, sabe, Tai-Pan, sabe o que os malditos malfeitores fizeram? Deixaram o cronômetro parar. Imagine isso! Juro por Deus. Deixaram ficar sem corda. Foi preciso semanas até achar um navio mercante com a hora de Londres. Um americano, o Boston Skylark. — Ele gargalhou, ao se lembrar, e depois, acrescentou — quatro dos tripulantes foram escolhidos para vir conosco.
— E o resto?
— Foram deixados à deriva, ao largo das Filipinas. Perto da praia. Juro a você. Foi há três ou quatro semanas. Wu Kwok mudou de lugar sobre as almofadas, coçando-se preguiçosamente.
— Por fim, Tai-Pan, meu pai costuma dizer “Dez taéis por navio não é muito, por uma viagem segura. Dez taéis por navio e a bandeira inglesa será protegida por Wu Fang Choi.” Você tem um novo ancoradouro agora, aqui em Hong Kong, pelo que ouvimos dizer. Cobre do seu mandarim.
— Vou cobrar a ele um tael.
— Seis é o mais barato. O mais barato. Isso é o que meu pai diz, sabendo que você é um negociante duro. Seis.
— Um.
— Sente-se. Bebemos mais grogue e aí vem mais grude — disse Wu Kwok.
— Dentro de cinco minutos, este navio explodirá e o refém será enforcado. Wu Kwok arrotou:
— Você não vai enforcar meu filho, camarada.
— Claro — disse Struan com desdém — que é algum pobre rapaz todo enfeitado. Wu Kwok riu e bebeu um grande gole.
— Você é mesmo esperto, Tai-Pan. Dois taéis por navio, o preço é esse. Cobre do seu mandarim, hein? E lhe digo mais, fique com o menino... pode enforcá-lo, se quiser, ou atirar ao mar... ele é todo seu. Traga-o para bordo e nós o enforcaremos para você.
— O quê? — explodiu Scragger. — O menino não é seu filho?
— Claro que não, Scragger. Você acha que sou idiota? — disse Struan, com dureza. — Sei o valor do juramento de um patife. — Caminhou para fora, altivamente.
— Mas você jurou e eu também — disse Scragger, horrorizado, a Wu Kwok. — Nós fizemos a ele o nosso juramento. Você disse que era seu filho. Você me disse, por Deus.
— O Tai-Pan nunca poria seu filho a bordo do nosso navio... por que ia pôr o meu no navio dele?
— Mas eu fiz a ele um juramento, por Deus. Isto é logro! Wu Kwok se levantou, muito devagar.
— Você está me chamando de trapaceiro, camarada?
— Não, patrão, não — disse Scragger, depressa, afastando do rosto sua raiva cega.
— Foi só por causa do meu juramento. Vamos manter os nossos juramentos. Não ficou bem para nós o que foi feito, não ficou bem. Isto é só o que tenho a dizer. Wu Kwok abanou a cabeça, cansadamente, ao se retirar para seu quarto de dormir.
— Os bárbaros são gente muito estranha, camarada. Muito estranha, na verdade.
— A porta de treliças se fechou.
Scragger foi para o convés. Por Deus, pensou ele, quase chorando de raiva, por Deus, isto foi demais. Eu vou dar um jeito naquele maldito pagão sujo, por Deus, juro que vou. Mas só depois que os homens forem escolhidos. Ah, só então. Antes disso, não, por Deus, porque iria estragar tudo.
Mas depois disso, por Deus, depois disso...
CAPÍTULO ONZE
O China Cloud atravessava a forte chuva, dirigindo-se à costa sul da Ilha de Hong Kong, ao porto principal do lado norte.
Os Struans jantavam na cabina principal: ostras cozidas, lingüiças, arenques, repolho cozido com bacon, frango assado frio, biscoitos, pratos com torta de maçã e torta de fruta em conserva. Vinho seco branco, à temperatura do mar, e champanha. E chá.
— Quarenta laques... quatro moedas — disse Robb, brincando com sua comida. — Uma para Wu Fang Choi. Quem terá as outras três?
— Jin-qua guardou uma, com certeza. Talvez duas — disse Struan. Estendeu o braço até o outro lado da mesa e se serviu de outro arenque frito defumado.
— Estamos comprometidos a um imenso favor — disse Robb. — Vale dez laques para aqueles demônios. Com um clíper como o China Cloud nas mãos, ora, até fragatas podem ser destruídas. As vias marítimas asiáticas de todo o império poderão ser cortadas. Um navio... e dez homens treinados para construir mais. Dezenove homens treinados como capitães... para treinar mais! Estamos numa armadilha, e nosso futuro está numa armadilha. Terrível.
— Jin-qua enganou você. Ele enganou você — disse Culum.
— Não. Ele foi mais esperto do que eu, sim, mas mesmo isto não está correto. Eu não fui suficientemente esperto. Eu, rapaz! Não ele. Quando alguém se senta numa mesa para fazer um acordo, cada lado está obrigado a fazer o melhor acordo possível. É muito simples. Sim, eu fui mais fraco do que ele. Mas, mesmo se eu tivesse pensado que as moedas serias divididas com outros... ainda assim eu faria o acordo como ele queria. Não tínhamos opção, nenhuma opção.
— Se ele foi mais esperto do que você, Dirk, que chance tenho eu? E Culum?
— Nenhuma. A não ser se estiverem preparados a pensar por si próprios e aprender com os erros dos outros. E não tratarem os chineses como se fossem iguais a nós. Eles são diferentes.
— Sim, são — disse Culum. — Feios, repulsivos, pagãos. E impossíveis de diferenciar um do outro.
— Não concordo. Só quis dizer que eles pensam diferente — disse Struan.
— Então, qual a resposta para eles, papai?
— Se eu soubesse, acertaria todas as vezes. Eles têm cinco mil anos de prática, é isso. Agora, passe o cozido, por favor. Ah, muito bem. Culum entregou-lhe o prato e Struan se serviu de uma terceira porção.
— Você não parece perturbado, Dirk — disse Robb. — Isto poderá nos arruinar. Arruinar o comércio asiático.
— Você não está comendo, Robb. E nem você, Culum. Comam. — Struan partiu uma perna de frango e colocou-a em seu prato. — A situação não é assim tão terrível. Em primeiro lugar, os dezenove homens: sim, serão espiões de Wu Fang Choi, e de sua malta. Mas, para nós ensinarmos alguma coisa a eles, terão de aprender inglês, hein? E se pudermos falar com eles, por que não poderemos mudá-los? De piratas a cidadãos úteis?
Talvez até cristãos, hein? Dezenove chances de trazê-los para nosso lado. Boas possibilidades, eu diria. E, se estiverem do nosso lado... mesmo que só um, entre eles... então saberemos onde estão os covis dos piratas. Então nós os controlaremos e destruiremos à vontade. Em segundo lugar, o clíper: dentro de um ano e um dia, terei de enfrentar uma batalha naval, é isso. Entregarei o navio, e depois o afundarei. Não prometi não afundá-lo.
— Por que não o entregar com barris de pólvora no porão e, preso a eles, um pavio, ardendo lentamente? — perguntou Robb.
— Wu Kwok é esperto demais para isso.
— Não há nenhuma maneira de você pendurar minas do lado de fora do casco, abaixo do nível do mar?
— Talvez fosse possível, sim. Isto poderia passar despercebido, no exame que eles farão. Mas, mesmo quando a pessoa está numa armadilha, tem de tentar abrir caminho, não se pode fugir a um juramento sagrado. Nenhum truque, Robb. Nós perderíamos prestígio por um século. Eu vou matar Wu Kwok.
— Por quê?
— Para lhe ensinar o valor de um juramento. E para nos proteger durante a próxima geração. Houve um silêncio.
— Pensei que você ia para a Inglaterra dentro de cinco meses — disse Robb.
— E vou. Viajarei de volta no novo navio, quando estiver pronto. Nós vamos chamá-lo Lotus Cloud. — Struan limpou a boca com um guardanapo. — Os homens e o navio, eu posso entender. Mas por que educar três meninos como “grã-finos”? Não entendo isso. Os meninos me preocupam, e eu não sei por quê.
— Não serão filhos de Wu Kwok?
— Filhos ou sobrinhos sim, certamente. Mas por quê? O que ganharão com isso?
— Tudo que é inglês. Todos os nossos segredos — disse Culum.
— Não, rapaz. Aos meninos se aplica o mesmo que aos homens. E ainda mais. Os meninos serão convertidos com mais facilidade ao nosso estilo de vida. Wu Fang e Wu Kwok devem ter pensado nisso. Por que estariam preparados para perder três filhos? Por que serem criados como “grã-finos”, e não capitães, soldados, construtores de navios ou armeiros, alguma coisa útil? Por que “grã-finos”?
Eles não conseguiram encontrar a resposta.
Quando o China Cloud atravessou o canal oeste e entrou no porto de Hong Kong, Struan chegava ao tombadilho, para se unir a Culum e Robb. A chuva parara e o vento estava forte. A noite começava a cair. Struan se sentia reanimado e sereno. Mas, logo ao pisar no convés, sua serenidade acabou.
— Meu Deus do céu! O porto estava apinhado com os navios mercantes da Ásia e da Frota Naval Real. E a praia cheia de tendas, que abrigavam os quatro mil soldados da força expedicionária.
O que realmente abalou Struan, entretanto, foram as centenas de sampanas chinesas agrupadas ao norte do Cabo Glessing. Verdadeiros enxames de juncos e sampanas partiam e chegavam. Milhares de pequenos casebres haviam brotado como obscenos cogumelos na encosta de uma das montanhas.
— Os chineses têm chegado aos montes, desde que voltei de Cantão — disse Culum. — Só Deus sabe quantos. Pelo menos quatro ou cinco mil. Estão nos engolindo. Chegam de sampana ou enchem os juncos e se espalham pela praia. Depois, misturam-se com essa confusão. À noite, esses demônios se esgueiram e roubam tudo que podem carregar.
— Meu Deus do céu!
— Primeiro, eles se espalhavam por toda a ilha. Depois, fiz Longstaff fixá-los naquela encosta, temporariamente. Eles chamam o lugar de Tai Ping Shan, ou algo parecido.
— Por que você não me disse?
— Queríamos que você visse pessoalmente. O tio e eu. Algumas horas não fariam diferença. A população européia, deixando de parte os soldados, é de cerca de cento e cinqüenta pessoas. Longstaff está arrancando o que lhe sobra do cabelo. Já recolhemos dez ou quinze cadáveres de chineses numa só noite, no porto. Assassinados ou afogados.
— Só vendo, para você acreditar na miséria que existe ali — disse Robb. — De que jeito vivem! Havia espaço suficiente, mas eles vieram sem parar.
— Bom — disse Struan — não sofreremos com a falta de cules e de ajuda. — Virou-se para Orlov. — Faça uma salva para a nau capitânia e transmita um sinal, em seu nome: “Permissão para ancorar à distância de oito amarras.” Todos os homens ao convés, e que se reúnam na popa!
Orlov fez um sinal afirmativo com a cabeça.
***
Os canhões do China Cloud estrondearam e houve um disparo em resposta. A permissão foi dada. A tripulação reuniu-se. Então, Struan caminhou para a balaustrada do tombadilho.
— Todos estão confinados ao navio até o meio-dia de amanhã. Nenhuma palavra sobre nossa carga. E nem digam que estou a bordo. Farei passar embaixo da quilha, como castigo, qualquer um que disser uma só palavra. Amanhã, ao entardecer, terão pagamento dobrado correspondente a um mês, em prata, entregue a todos. Oficiais montarão guarda armada por turnos, no tombadilho. Estão dispensados.
Houve três vivas para o Tai-Pan, e os homens se dispersaram.
— A que horas é a venda de terras, Culum?
— Às três, papai, amanhã. No Vale Feliz.
— Robb, certifique-se de que tem os números corretos dos lotes, antecipadamente.
— Sim. Trouxemos uma lista. Compraremos o outeiro?
— Claro.
Robb pensou, por um momento.
— Se Brock for tão inflexível quanto você, talvez nós vamos ter de colocar todo nosso futuro naquele maldito morro.
— Sim. — Struan fez sinal para Orlov. — Aos dois toques do sino, durante o turno da manhã, transmita um sinal a Brock, em nome de Robb, pedindo-lhe para vir a bordo aos quatro toques. Acorde-me aos dois toques. Até essa hora, não devo ser perturbado. Você está no comando, agora.
— Bom — disse Orlov.
— Vou dormir um pouco. Robb, você e Culum façam a mesma coisa. Temos um longo dia pela frente, amanhã. Ah, sim, Culum, talvez você possa ir planejando o baile. Onde e como. Dentro de trinta dias. Ele foi para baixo.
Quando o China Cloud se aproximava da nau capitânia, Culum se dirigiu a Orlov.
— Por favor, mande colocar de prontidão a chalupa, logo que ancorarmos.
— O Tai-Pan disse que todos estão confinados a bordo. Não haverá chalupa pronta, sem sua permissão.
— Isso, obviamente, não se aplica a nós, ao Sr. Struan e a mim — disse Culum, asperamente. Orlov deu uma risadinha.
— Você não conhece seu pai, Culum, o Forte. Ele disse “todos”. E assim será.
Culum virou-se para a portinhola, mas Orlov o deteve, com o chicote de ferro descontraidamente em sua mão.
— Ele não deve ser perturbado. Foram suas ordens.
— Saia da minha frente!
— Ele jamais dá uma ordem sem querer que seja realmente cumprida. Pergunte a seu tio. Ninguém vai à praia, enquanto eu for capitão do China Cloud. Se ele quisesse que você fosse à praia, teria dito isso.
— Ficaremos a bordo até o meio-dia, Culum — disse Robb. No meio de toda sua fúria, Culum perguntou a si mesmo se seria obedecido com tal determinação, quando fosse Tai-Pan. Sabia que uma obediência assim não era prestada automaticamente ao título. Tinha de ser conquistada.
— Muito bem, Capitão. — Ele foi ficar ao lado de Robb, na amurada. Em silêncio, observaram a ilha se aproximar. Logo podiam ver o outeiro.
— Isso vai nos deixar falidos — disse Robb.
— Agora, temos a prata. Brock não vai competir.
— Ele fará ofertas sucessivas, sabendo que Dirk irá comprá-lo a qualquer preço.
Brock só vai parar de fazer seus lances quando o preço for astronômico. Dirk está comprometido com aquele outeiro, como nós estamos comprometidos com a Casa Nobre. É uma questão de prestígio, maldito prestígio! O maldito ódio dos dois um pelo outro acabará destruindo finalmente a ambos.
— Papai disse que cuidará dele dentro de cinco meses, não disse?
— Sim, rapaz. Tem de cuidar. Eu não posso. E nem você. Culum fixava os olhos no outeiro e em Hong Kong. Goste ou não, disse a si próprio, com o estômago dando voltas, aquele é o seu reinado. Se você tiver força bastante. E nervos para assumi-lo.
De repente, ficou muito assustado.
***
Ao amanhecer, Orlov chamou todos os homens e mandou polir e limpar o imaculado navio. Aos dois toques do sino, ele transmitiu o sinal e foi para baixo.
— Bom-dia. Dois toques — disse Orlov, junto à porta trancada.
— Bom-dia, Capitão — disse Struan, abrindo a porta. — Entre. — Usava uma túnica de brocado verde e nada embaixo. Com frio ou calor, Struan dormia nu. — Mande trazer o desjejum para mim. E peça ao Sr. Robb e a Culum para virem me ver dentro de meia hora.
— As ordens serão compridas.
— Onde está Wolfgang?
— Lá em cima.
— E o rapaz chinês?
— Está com ele. Seguindo-o por aí, como um cachorro. — Orlov entregou a Struan uma lista bem escrita. — Essas embarcações se aproximaram de nós, a noite passada ou hoje de manhã, e seus ocupantes perguntaram por si. A mulher de seu irmão mandou um barco procurá-lo, com o recado de que fosse para bordo o mais rápido possível. Capitão Glessing perguntou por seu filho. Sinclair e sua irmã também perguntaram por ele. Ela perguntou por si, e então está na sua lista. Houve um sinal da nau capitânia. “Seu filho deve ir para bordo o mais rápido possível.” O Capitão Glessing praguejava como um malandro, quando eu o mandei embora.
— Obrigado.
Houve uma batida à porta.
— Sim?
— Bom-dia, senhorrr. — disse o marinheiro. — Sinal do White Witch: “Com prazer.”
— Obrigado, sinaleiro.
O homem saiu às pressas. Struan entregou a Orlov um cheque de mil guinéus.
— Com nossos cumprimentos, Capitão. Orlov leu a soma. Piscou e leu outra vez.
— É principesco. Principesco. — Entregou de volta. — Eu estava apenas cumprindo meu dever.
— Com essa quantidade de prata, não. Pegue. Você mereceu.
Orlov hesitou e depois colocou o cheque no bolso. Desamarrou o chicote de ferro e, pensativamente, colocou-o no cabide de armas, junto com os outros.
— Seu filho — disse ele, afinal — é melhor vigiá-lo. Ele vai enfrentar uma situação difícil.
— Hein? — os olhos de Struan desviaram-se depressa da lista.
— Sim. — Orlov esfregou o restolho da barba.
— Que quer dizer com isso? Mais uma de suas bruxarias?
— Sim, mais uma das minhas premonições.
— Que situação difícil? — Struan sabia, por experiência própria, que Orlov não fazia predições impensadamente. Por um número excessivo de vezes, o estranho homenzinho mostrara estar certo.
— Não sei. — Um repentino sorriso iluminou-lhe o rosto. — Quando for Tai-Pan, ele acha que vai tomar meu navio.
— Então, você vai ter de ganhar seu respeito, fazer com que mude sua maneira de pensar, senão perde mesmo.
Orlov sorriu. — Sim, vou, não tenha medo. — Depois, seu sorriso desapareceu, — Mas ele vai assumir num dia ruim. Haverá sangue em mãos. Depois de uma pausa, Struan disse:
— De quem? Meu?
Orlov deu de ombros.
— Não sei. Ele vai criar muitos problemas para você. Disso tenho certeza.
— Que filho não cria?
— Tem razão. — Orlov pensou em sua família, em Narvik. seus dois filhos, belos homens robustos, de vinte anos. Ambos o odiavam, desprezavam-no, embora ele os adorasse, e adorasse sua mulher, Leka, uma lapona. Eles eram felizes até os filhos fazerem com que ela se voltasse contra ele. — Sim — disse ele, sentindo-se muito cansado — tem razão. Como sempre.
— É melhor dormir um pouco — disse Struan. — Vou precisar de você aos oito
toques do sino.
Orlov saiu.
Durante muito tempo, Struan ficou olhando para o espaço. Que problema? Que
sangue? Por que um “dia ruim”? Depois, afastou de sua mente essas questões irrespondíveis, contente em pensar apenas no dia de hoje, talvez no de amanhã. “Você está se tornando cada dia mais chinês”, disse, em voz alta. Sorriu e examinou a lista outra vez. Gorth Brock. A Srta. Tillman. Quance. Gordon Chen. Skinner. Mestre McKay. McKay?
— Camaroteiro! — gritou ele.
— Sim, senhorrr. — O camaroteiro colocou água quente no vasilhame ao lado de seu material para fazer a barba.
— Dê um recado ao Sr. Cudahy. Se o Mestre McKay aparecer, traga-o para bordo.
— Sim, senhorrr. — O camaroteiro sumiu,
Struan ficou de pé junto às janelas da cabina. Via a massa pulsante que era a povoação chinesa do Tai Ping Shan. Mas sua mente estava em outra parte: por que Shevaun Tillman aparecera? Uma rainha enlameada, sem dúvida. Fico imaginando se é virgem. Claro que é! Tem de ser. Você iria para a cama com ela, se soubesse que era? Sem se casar com ela? Nessa situação eu não ria para a cama com ela. O homem só precisa de virgindade duas vezes na vida. Uma vez com sua esposa e a outra vez na primavera da vida, com uma jovem amante escolhida a dedo. Quando homem aprendeu a sabedoria da paciência, da compaixão, e pode sem esforço transformar uma menina em mulher.
Claro que Shevaun é virgem; você está imaginando tolices. Mas o brilho atrás de seus olhos e o menear de suas nádegas prometem muito para seu marido, hein? Ela seria uma amante interessante. Quer casar com Shevaun? Ou apenas ir para a cama com ela?
Se você fosse chinês, poderia ter muitas esposas, abertamente, E todas viveriam em paz, debaixo do mesmo teto. Struan deu uma risadinha. Eu gostaria de ver Shevaun e May-may juntas, sob o mesmo teto. Quem ganharia esse combate? Pois combate iria ser, em se tratando de duas pequenas feras.
— Olá, papai. — Culum estava à porta.
— Dormiu bem, rapazinho?
— Muito bem, obrigado. — Culum tivera pesadelos: Orlov misturado com o outeiro, profetizando pobreza outra vez. Ah, Deus, não permiti que nós percamos outra vez. Ajudai-me a fazer o que devo. — Por falar nisso, se tivermos de ser anfitriões no baile, vamos convidar uma parceira?
— Mary Sinclair? Culum tentou, sem sucesso, parecer espontâneo.
— Sim.
Struan disse a si mesmo que melhor faria se encontrasse uma garota para seu filho, e depressa.
— Talvez, como somos anfitriões, seja melhor, simplesmente, recebermos todas, sem favor. Haverá mais de vinte jovens para você namorar.
— Orlov disse que havia uma mensagem da nau capitânia. Para eu ir a bordo. Posso partir agora? Quero ver Longstaff, a fim de discutir os detalhes finais da venda de terras. Gostaria que esse serviço fosse bem-feito.
— Sim — disse Struan, após uma pausa. — Eu não despediria Orlov, se fosse você. Culum corou.
— Ah, ele lhe disse, não é? Não gosto dele. Me dá arrepios.
— Aceite-o como o melhor capitão em atuação. Seja paciente com ele. Pode ser um valioso aliado.
— Ele diz que tem o dom da profecia.
— E tem. Algumas vezes. Muita gente tem. “Sangue em suas mãos” pode significar tudo ou nada. Não se preocupe, rapazinho.
— Não vou me preocupar, papai. Posso ir para a nau capitânia, agora?
— Sim. Logo que Brock sair.
— Você não acredita que eu consiga guardar um segredo?
— Alguns homens têm o dom de extrair informações simplesmente olhando para um rosto. Orlov, por exemplo. Brock também. Você mudou, desde que viu as barras de prata.
— Não é verdade.
Struan pegou seu pincel de barbear.
— O desjejum vai ser servido dentro de mais ou menos vinte minutos.
— Como foi que eu mudei?
— Existe uma grande diferença entre um rapaz que sabe que está na bancarrota e um rapaz que sabe que não está. Dá logo para farejar alguma coisa em você, basta chegar perto, — Struan começou a passar espuma de sabão no rosto. — Você tem uma amante, Culum?
— Não. — Culum respondeu, sem jeito. — Estive num bordel, se é isso que você quer dizer. Por quê?
— A maioria dos homens aqui tem amantes.
— Chinas?
— Chinesas. Ou eurasianas.
— Você tem?
— Claro. — Struan pegou sua navalha. — Há bordéis em Macau. Orientais e europeus. Mas pouquíssimos são seguros, na maioria deles pode-se pegar doenças. Esse é o costume... você sabe a respeito da “doença de mulher”, a sífilis francesa, a sífilis espanhola, seja lá como a chamar?
— Sim. Claro. Sim.
Struan começou a se barbear.— Dizem que foi inicialmente introduzida na Europa por Colombo e seus marujos, que a pegaram nas índias Ocidentais americanas. É irônico que nós a chamemos sífilis francesa ou espanhola, os franceses a chamem de sífilis espanhola ou inglesa, e os espanhóis de sífilis francesa. Quando todos somos culpados. Soube que sempre houve a doença na índia e na Ásia. Você sabe que não tem cura?
— Sim.
— Então sabe que a única maneira de pegar é com uma mulher?
— Sim.
— Sabe alguma coisa a respeito de “proteções”?
— Sim... sim, claro.
— Não precisa sentir nenhuma timidez por causa disso. Lamento ter ficado distante por tanto tempo. Teria gostado de lhe falar eu próprio a respeito dos fatos da vida. Talvez você saiba, talvez seja simplesmente tímido. Então eu vou lhe dizer, de qualquer maneira. É absolutamente necessário usar um preservativo. Os melhores são feitos de seda... vêm da França. Há um novo tipo, feito de uma espécie de pele de peixe. Vou providenciar um estoque para você.
— Não creio que eu vá precisar...
— Concordo — interrompeu Struan. — Mas não há mal nenhum em tê-los. Para uma necessidade. Não estou tentando interferir em sua vida e nem sugerindo que você se torne um devasso. Simplesmente, quero ter certeza de que você sabe de algumas coisas comuns... e de que você está protegido. Um preservativo o protegerá contra a sífilis. E impedirá que a moça engravide, assim evitando problemas para ela e embaraços para você.
— É contra as leis de Deus, não é? Quero dizer, usar... “bom, é pecado, não é? Não destrói todo o sentido do ato de amor? O objetivo é ter filhos.
— Os católicos pensam assim, é verdade, e também os protestantes muito devotos, sim.
— Você questiona o Livro Sagrado? — Culum estava horrorizado.
— Não, rapaz. Só algumas das... qual é mesmo a palavra?... interpretações.
— Pensei que eu tivesse idéias avançadas, mas você, bem... o que você diz é heresia.
— Para alguns homens. Mas a Casa de Deus é muito importante para mim, tem precedência face a mim, a você, a todos, até mesmo a Casa Nobre. — Struan continuou a se barbear. — É costume aqui se ter uma garota própria. Só para a pessoa. Você a mantém, paga suas contas, dá-lhe comida e roupa, uma criada, etc. Quando não a deseja mais, entrega-lhe algum dinheiro e a manda embora.
— Não é uma coisa bastante desumana?
— Sim... quando feita de maneira indigna. Em geral, o pouco dinheiro, segundo nossos padrões, que a pessoa lhe dá, é mais do que suficiente para servir à moça como dote e lhe garantir um bom marido. A escolha da garota é feita de maneira muito diplomática. O trato se realiza através de um “corretor”, um casamenteiro, e tudo se passa de acordo com o antigo costume chinês.
— Não é escravidão? Do pior tipo?
— Se sua idéia é comprar uma escrava, sim, e você a tratará como uma escrava. O que faz uma pessoa quando contrata um escravo? Paga algum dinheiro, e ele é comprado por alguns anos. É a mesma coisa. — Struan apalpou o queixo e depois começou a
ensaboar outra vez as partes em que ainda estava áspero. — Iremos para Macau. Eu vou acertar tudo para você, se você quiser.
— Obrigado, pai, mas... — ele ia dizer, mas comprar uma mulher, prostituta, escrava ou amante, é uma coisa desagradável e um pecado... Eu, bom, obrigado, mas não é necessário.
— Se mudar de idéia me diga, rapaz. Não sinta timidez com isso. Acho que é muito normal ter “apetites”, e não um pecado, apenas tenha cuidado com bordéis. Jamais vá a um deles bêbado, nunca vá para a cama com uma moça sem se proteger. Jamais! E meta com a mulher ou a filha de um europeu... particularmente os portugueses, porque senão você acaba morto e bem morto, muito depressa, e com razão. Nunca chame um homem de filho da puta, a não ser que estiver preparado para sustentar essas palavras com arma branca ou bala. E jamais, jamais vá a um bordel que não seja recomendado por um homem em quem você possa confiar. Se não quiser perguntar a mim ou a Robb, pergunte a Aristotle. Você pode confiar nele.
Muito perturbado, Culum observava o pai, enquanto ele terminava de se barbear, com movimentos firmes e definidos. Parece tão seguro em tudo, pensou Culum. Mas está errado — a respeito de muitas coisas. Errado. As Escrituras são muito claras — a luxúria da carne é inspirada pelo demônio. O amor é inspirado por Deus, e fazer amor sem querer ter filhos é luxúria. E é pecado. Eu queria ter uma esposa. E poder esquecer a luxúria. Ou uma amante. Mas isto é ilegal e contra a Palavra Santa.
— Você comprou sua amante? — ele perguntou.
— Sim.
— Quanto pagou por ela?
— Bom, isso não é de sua conta, rapaz — respondeu Struan, gentilmente.
— Desculpe. Eu não queria ser rude... nem inquisitivo nem... — Culum corou.
— Eu sei. Mas isto não é pergunta para se fazer a outro homem.
— Sim. Quero dizer, o que custa uma mulher? Para comprar?
— Depende do seu gosto. A partir de um tael até tudo. — Struan não estava arrependido de ter iniciado uma conversa desse tipo. É melhor fazer você mesmo, do que deixar os outros fazerem em seu lugar. — A propósito; Culum, nós nunca fixamos seu salário. Você começa com cinqüenta guinéus por mês. Serão quase apenas para gastos miúdos, porque você terá tudo pago.
— É muito, muito generoso — exclamou Culum. — Obrigado.
— Dentro de cinco meses, aumentaremos muito essa soma. Logo que tivermos a terra, vamos começar a construir. Armazéns, a Grande Casa... e uma casa para você.
— Será maravilhoso. Eu nunca tive uma casa... quero dizer, nem mesmo quartos meus. Nem mesmo na universidade.— Um homem deve ter um lugar seu, por menor que seja. Privacidade é importante para manter a cabeça no lugar...
— Cinqüenta guinéus por mês é uma porção de dinheiro — disse Culum.
— Vai ser ganho por você.
É o bastante para casar, Culum estava pensando. Facilmente. Nada de bordéis e nem nativas fedorentas para ele. Lembrou-se com repugnância das três ocasiões em que fora para o bordel de que gostavam os estudantes da universidade e onde tinham dinheiro suficiente para pagar. Ele tivera de ficar meio bêbado para agir como um homem e entrar no quarto malcheiroso. Um xelim para se espojar numa cama com ranço de suor, com uma megera parecendo uma vaca, com o dobro de sua idade. Para se livrar dos incômodos enviados pelo demônio que atacam um homem. E sempre as semanas de terror, em seguida, esperando ser acometido pela sífilis. Deus me proteja de tornar a pecar, pensou ele.
— Você está se sentindo bem, Culum?
— Sim, obrigado. Bom, acho que vou me barbear antes do desjejum. Desculpe. Eu não queria, bem... eu não queria ser rude.
— Eu sei.
***
— Brock está aí ao lado, senhorrr — disse o marinheiro.
— Conduza-o para baixo — disse Struan. Ele não ergueu os olhos do catálogo de lotes de terreno que Robb lhe dera. Culum e Robb sentiram a tensão crescer na cabina, enquanto esperavam. Brock entrou, pisando forte. Sorria largamente.
— Ah, você está aí mesmo, Dirk. Bem pensei que se encontrava a bordo!
— Quer uma bebida?
— Obrigado. Bom-dia, Robb. Bom-dia, Culum.
— Bom-dia — disse Culum, detestando o medo que tomava conta dele.
— Essas roupas estão muito bem em você. Vai se tornar homem do mar, agora? Como seu papai?
— Não.
Brock sentou-se numa poltrona.
— A última vez que vi seu papai, Culum, ele estava adernando terrivelmente. Estava mesmo naufragando. Terrível mesmo. Foi um acontecimento horroroso... o acidente. — Ele aceitou um caneco de rum das mãos de Struan. — Obrigado. Quando eu consegui apagar aquele maldito incêndio que veio da noite, como um raio das profundezas, e estava pronto para ajudá-lo, ora, ele já tinha sumido. Passei a noite toda, e a maior parte do dia seguinte, procurando-o.
— Foi muita gentileza sua, Tyler — disse Struan.
— Mandei Gorth a noite passada procurar por você. Muito estranho, hein, Culum?
— O que é estranho, Sr. Brock?
— Ora, aquele demônio de anão não saber que seu papai estava a bordo. E ninguém ter permissão de vir a bordo até o meio-dia, pelo que eu soube. E ancorar sob as armas da nau capitânia... muito estranho mesmo.
— Gorth tocou o pau da bandeira? — perguntou Struan.
— Sim. Ele ficou triste de verdade. Disse que era como colocar outro prego no seu caixão. Ficou sem saber o que fazer. Struan entregou-lhe uma ordem bancária — vinte mil guinéus.
— Obrigado, Dirk — disse Brock, sem tocar no papel e nem olhá-lo. — Mas não é meu. Talvez seja melhor dar a Gorth. Ou mandar para bordo. Não é pagamento para mim.
— Como quiser, Tyler. Ele irá à venda de terras?
— Ah, sim.Struan pegou o catálogo.
— Os lotes marinhos escolhidos são 7 e 8 a oeste do vale, 16 e 17 no centro, 22 e 23 a leste. O que você quer?
— Vai nos dar livre escolha, Dirk?
— Há suficiente para nós dois. Você escolhe o que quiser. Não faremos lances contra você. Nem você contra nós.
— Pensei a mesma coisa. É justo. E sábio. 16 e 17 dos lotes marinhos e 6 e 7 dos suburbanos.
— Pegaremos os lotes marinhos 7 e 8. Lotes suburbanos 3 e 4.
— Feito. E deixe o outeiro. Está planejando fazer lances, hein?
— Sim.
Brock engoliu um pouco de rum. Ele podia sentir o constrangimento de Culum.
— A frota está partindo amanhã, Dirk. Ouviu falar nisso?
— Não. Partindo para onde?
— Para o norte. A fim de combater — disse Brock, sardonicamente.
— Tinha esquecido a guerra — disse Struan, com uma risada curta. — Atacar Pequim outra vez? No inverno?
— Sim. Nossos líderes mandaram-nos para o norte. Seu lacaio tem balas de canhão na cabeça. Ouvi dizer que o almirante berrou, mas Longstaff só fez dizer, alto e bom som: “Norte, por Deus, terão ordem de ir para o norte! Vamos ensinar a esses patifes pagãos, que não respeitam tratados! Vamos ensinar a eles a lição que merecem!”
— Não irão para o norte.
— Com a sua volta, talvez não. É uma tristeza quando a vontade de Longstaff prevalece, Tai-Pan. Ridículo. E quando suas vontades chegam ao maldito ouvido dele. Quando temos de confiar em você, para salvar nossa frota. — Pigarreou ruidosamente, e depois farejou o ar. — Há um cheiro bem estranho a bordo.
— Hein?
— Cheiro de barras de prata. Sim, claro, barras de prata. — Brock deu uma olhada em Culum. — Então você não está em bancarrota, não é mesmo, rapaz? Culum nada disse, mas o sangue lhe subiu ao rosto. Brock grunhiu.
— Senti o cheiro quando você ancorou, Dirk. Ora, até mesmo quando você chegou ao porto. Então, você não afundou e tem dinheiro para pagar, e eu estou derrotado outra vez.
— Quando vencem as promissórias?
— Hoje, como você bem sabe.
— Quer prorrogar o prazo?
— Se não fosse pelo prestígio do rapaz e de todos a bordo, eu ia perguntar a mim mesmo se você estava blefando. E pensar que talvez as barras de prata não estivessem em seu porão. Mas eu sei muito bem. Está escrito em todos os rostos a bordo, menos no seu. E no de Robb. Vou aceitar o cheque de seu banqueiro hoje. Nenhum crédito.
— Depois da venda de terras, acertaremos tudo.
— Antes. Sim, antes. É melhor se livrar das dívidas antes de fazer os lances — disse ele, com os olhos brilhando, seu ódio bem à flor da pele. — Você me derrotou outra vez, maldito seja! Mas o outeiro será meu. É meu.
— Pertence à Casa Nobre. Não ao segundo lugar. Brock levantou-se, com os punhos fechados.
— Ainda vou cuspir em seu túmulo, por Deus.
— Vou cuspir em sua casa, lá do meu outeiro, por Deus, antes do anoitecer.
— Talvez não haja tesouro suficiente na Ásia para pagar o preço, por Deus! Bom dia para vocês.
Brock saiu apressadamente, com as botas batendo forte no passadiço.
Culum enxugou o suor das mãos.— Esse outeiro pegou você numa armadilha, Dirk. Ele vai parar de fazer ofertas e nos arruinará — disse Robb.
— Sim, papai. Eu sei que ele vai fazer isso. Struan abriu a porta da cabina.
— Camaroteiro!
— Sim, senhorrr.
— Chame o Sr. Cudahy!
— Sim, senhorrr.
— Escute, Dirk — disse Robb. — Aqui está sua oportunidade. Faça com ele que diabo ele fizer com você. Pare seus lances, de repente. Deixe a confusão para ele. Então, ele ficará arruinado. Ele! Não nós!
Struan não disse nada. Houve uma batida na porta e Cudahy entrou, apressadamente.
— Sim, senhorrr.
— Ponha o cúter ao lado. Diga ao mestre para levar o Sr. Robb e o Sr. Culum ao Thunder Cloud. Espere pelo Sr. Culum e o leve à nau capitânia. Depois, torne a se apresentar aqui. Todos os homens no convés e na popa!
Cudahy fechou a porta outra vez.
— Papai, o tio tem razão. Pelo amor de Deus, não vê que aquele maldito pirata colocou você numa armadilha?
— Então, vamos ter de ver se o amor de Deus nos tira da armadilha. É uma questão de prestígio!
— Dirk — Robb implorou. — Não quer ser razoável?
— Sarah quer que você vá para bordo. Não fale ainda sobre as barras de prata. E, Culum, meu rapaz, se Longstaff perguntar a você a meu respeito, diga apenas que estou a bordo. Nada mais.
— Dirk, esta é sua única chance...
— É melhor se apressar, Robb. Apresente meus cumprimentos a Sarah e às crianças. — Ele voltou para a pilha de papéis que estava sobre sua escrivaninha.
Robb sabia que era inútil discutir mais e partiu sem dar mais nenhuma palavra. Culum seguiu-o, com o coração doendo. Sabia que nada iria mudar seu pai — e nem Brock; que a Casa Nobre estava comprometida com um morrinho sem valor, um rochedo sem valor. É estúpido, ele gritou para si próprio. Por que papai é tão estúpido assim?
CAPÍTULO DOZE
Aquela tarde, Struan permaneceu de pé diante da grande tenda que armara na praia, no Vale Feliz. Observava o Capitão Orlov supervisionar os marinheiros, enquanto eles transportavam barriletes da chalupa para dentro da tenda, onde os empilhavam bem certinhos. Estava tão absorto que não viu Mary Sinclair aproximar-se, por trás dele.
O rosto dela estava emoldurado por um boné amarrado sob o queixo. Seu vestido de lã marrom varria a areia e, bem ajustado à sua cintura, tornava-lhe a figura elegantemente parecida com uma ampulheta. Mas o tecido não era de boa qualidade e o corte era antiquado. Ela carregava um regalo felpudo e, em torno dos ombros, tinha um xale cinzento que combinava com seus olhos. Parecia limpa, simples e pobre, recatada, uma dama.
— Olá, Tai-Pan — disse ela. Struan saiu de seu devaneio.
— Ah, olá, Mary. Você está muito bonita.
— Obrigada, gentil senhor — disse Mary, com um sorriso fugidio. Ela fez uma graciosa mesura. — É um grande elogio.
A praia e o vale começavam a se encher com os negociantes, suas mulheres e crianças, todos com ares festivos, em suas melhores roupas, cumprimentando uns aos outros e conversando loquazmente. Havia, espalhados ali e acolá, grupos de soldados e marinheiros, com seus oficiais em trajes resplandecentes. Chalupas traziam para a praia outras famílias, e oficiais. Perto da praia, havia massas de sampanas pescando e, a oeste, uma multidão de barulhentos e curiosos chineses, isolados do vale pelos soldados.
O estrado do leiloeiro fora colocado numa pequena elevação, a cinqüenta jardas de distância, e Struan notou Gordon Chen, em pé nas proximidades. Seu filho fez, imediatamente, uma curvatura. Era óbvio para Struan que o jovem queria falar com ele e devia ter esperado, pacientemente, por uma oportunidade adequada.
— Boa-tarde, Gordon. Vou conversar com você dentro de um minuto — ele gritou.
— Obrigado, senhor — respondeu Gordon, e fez outra curvatura.
Struan viu Robb caminhando com Sarah, que estava com a barriga muito grande, o rosto tenso. Karen corria ao lado deles. Struan procurou Culum com o olhar, mas não conseguiu descobri-lo e supôs que ainda estivesse na nau capitânia; então o viu, conversando animadamente com Glessing. Achou estranho que Culum não tivesse procurado por ele, logo ao desembarcar.
— Com licença, Tai-Pan, Srta. Sinclair — disse Orlov. — Estão todos aí.
— Espero que sim, Capitão Orlov — disse Mary, em tom de brincadeira. — Ouvi dizer que está trazendo barris para a praia há duas horas. Quer embriagar toda a população européia, Sr. Struan?
Struan deu uma risada curta.
— Não. Obrigado, Capitão.
Orlov fez uma continência para Mary e entrou na tenda, com alguns dos marinheiros. Outros se reuniram em torno dele, enquanto uns poucos se sentaram na praia e começaram a jogar dados.
— Você chegou cedo, Mary. O leilão ainda vai demorar uma hora para começar.
— O Capitão Glessing teve a gentileza de me oferecer sua companhia. — Vamos dar uma caminhada?
— Claro — respondeu Struan, detectando uma insinuação na voz dela. Começaram a caminhar em direção ao interior da ilha.
O leito do vale estava úmido e a chuva da véspera formava poças paradas. A água caía placidamente da pequena cachoeira. Moscas e libélulas, abelhas e mosquitos formavam com seu canto uma espécie de corrente subterrânea ao ruído da água. O sol tinha uma promessa de primavera.
Quando estavam bem afastados da multidão, Mary parou.
— Em primeiro lugar, queria dizer-lhe como fiquei sentida pela perda que sofreu.
— Obrigado, Mary.
— Tentei vê-lo antes de você partir para Cantão.
— Eu me lembro. Foi muita gentileza sua.
— A noite passada, tentei ir a bordo. Queria ver como você estava. Um mau pagode.
— Sim, mas acabou. Pertence ao passado.
— Sim, mas posso ver a dor em seu rosto. Outros não verão, mas eu posso ver.
— Como vão as coisas com você? — ele perguntou, desconcertado, como sempre, porque Mary parecia tão comum, doce, gentil, tudo que deveria ser, mas não era. Eu não devia gostar dela, pensou, mas gosto.
— A vida me diverte. Por algum tempo. — Mary olhou para trás, em direção à praia. Brock, Gorth e Nagrek Thumb, Eliza Brock e suas filhas saíam de uma chalupa. — Estou satisfeita por você ter derrotado Brock outra vez. Muito satisfeita.
— Será que derrotei?
Os olhos de Mary se enrugaram.
— Quarenta laques em barras de prata? Quatro moedas?
— Como sabe disso?
— Já se esqueceu, Tai-Pan? Tenho amigos bem situados. — Ela disse, em tom trivial. Mas, quando estava com o Tai-Pan, desprezava esses “amigos”.
— Quem tem... quem tem as outras quatro metades de moedas?
— Quer que eu descubra?
— Talvez eu ache que você já sabe.
— Ah, Tai-Pan, você é um homem muito especial. — Seu tom se tornou mais caloroso. — Sei onde estão duas. Quando souber a respeito das outras duas, eu lhe direi.
— Quem tem as duas?
— Se você arranjou um empréstimo tão grande, quantos favores cumprirá?
— Todos. Sim, por Deus, todos. Jin-qua tem duas?
— Uma. — Ela brincou com o xale, e o ajeitou melhor. — Há quatro mil bandeireiros em Cantão, agora. E uma grande armada com navios de tiro. Deverá atacar nossa frota, se esta tentar forçar os fortes Bogue. Outra frota está à espera, cinqüenta milhas ao norte. O nome Wu Kwok significa alguma coisa?
Struan fingiu pensar mas, por dentro, estava fervendo. Antes do encontro com Scragger, ele jamais ouvira falar de Wu Kwok — de Wu Fang Choi, o pai, é claro, mas não do filho. Mauss não fora informado do que transpirara no junco ou do que Scragger dissera. Só Robb e Culum sabiam. Era impossível para Mary ter ouvido falar de Wu Kwok por eles. Então deveria ter vindo de Wu Kwok — ou de Jin-qua. Mas como?
— Ê um nome bastante comum — disse ele. — Por quê?
— Ele é o filho mais velho de Wu Fang Choi.
— O rei dos piratas? O Lótus Branco? — Struan fingiu espanto.
— Adoro chocar você — disse ela, alegremente. — Bom, o imperador ofereceu secretamente mandarinatos a Wu Kwok e a Wu Fang Choi, através do Hoppo em Cantão. E os governos-generalatos da província de Fukien, e Formosa, em troca de um ataque aos navios que estão no porto de Hong Kong. Toda a frota.
— Quando será o ataque? — seu choque era autêntico.
— Eles não aceitaram ainda. Como dizem os chineses “negociações estão em marcha”.
Seriam os favores de Wu Kwok um subterfúgio? Struan perguntou a si mesmo. Uma brincadeira diabólica para colocá-lo à vontade e prendê-lo numa armadilha? Por que, então, a moeda? Será que eles arriscariam toda sua frota? Quatro mil juncos tripulados por aqueles malditos piratas poderiam acabar conosco — talvez!
— Você saberá se eles aceitarem... se deverá ser feito o ataque?
— Não tenho certeza... mas acho que sim. Mas isso não é tudo, Tai-Pan. Você deve saber que a recompensa por sua cabeça dobrou. Há uma recompensa por Culum agora, também. Dez mil dólares. Para todos os ingleses. George Glessing, Longstaff, Brock. — A voz dela se tornou impessoal. — E para May-may, Duncan e Kate. Se forem seqüestrados vivos.
— O quê?
— Ouvi falar nisso há três dias. Você não estava aqui, assim eu tomei o primeiro barco para Macau, mas você já partira. Então, fui ver May-may. Eu lhe disse que fora enviada por você, pois você ouvira dizer que ela e as crianças estavam em perigo. Depois, fui ao seu compradore, e lhe disse, em seu nome, que levasse May-may e as crianças para a casa dele; se algo acontecesse com eles, antes de você voltar, você o enforcaria, e a seus filhos, e aos filhos destes.
— O que disse Chen Sheng?
— Ele disse para lhe comunicar que você não precisava ter medo. Acompanhei May-may e as crianças até à casa dele, e depois voltei para Hong Kong. Acho que estão salvos, por enquanto.
— Ele sabe, a respeito das barras de prata?
— Claro. Uma parte, uma pequena parte do dinheiro é dele. Que melhor investimento poderia ele fazer?
— Quem mais juntou a prata?
— Sei a respeito de Chen Sheng, Jin-qua, os mercadores da Co-hong... todos têm uma parcela. Isto corresponde a uma soma de quinze laques. Quanto ao resto, não tenho certeza. Provavelmente, os mandarins manchus.
— Ti-sen?
— Não. Ele está em completa desgraça. Toda sua riqueza foi confiscada. A Co-hong estima que sejam cerca de dois mil laques. Em ouro.
— Chen Sheng disse que cuidaria deles?
— Sim. Agora, com você rico outra vez, ele os protegerá com o mesmo empenho com que defenderia a vida de sua mãe. Por enquanto, pelo menos.
— Espere aqui, Mary. — Struan virou-se para a praia. Descobriu Wolfgang e gritou para ele, fazendo acenos. Correu, em seguida, em sua direção. — Wolfgang, chame Orlov e leve o China Cloud para Macau. Pegue May-may e as crianças e traga-os de volta, com a ama. A todo pano. Deixe Cudahy encarregado da tenda.
— Trazê-los para cá?
— Sim. Volte amanhã. Estão em casa de Chen Sheng.
— Trazê-los para cá? Abertamente?
— Sim, por Deus. Parta imediatamente.
— Não vou fazer isso, Tai-Pan. Não assim, abertamente. Você vai destruir a si mesmo. Sabe que será posto no ostracismo.
— Os mandarins colocaram a cabeça deles a prêmio. Vá depressa!
— Gott im Himmel — Mauss puxava sua barba, nervosamente. — Vou trazê-los a bordo secretamente e fazer Orlov jurar segredo. Gott im Himmel, perdoai este pobre pecador.
Struan caminhou de volta, em direção a Mary.
— Quem lhe contou a respeito do seqüestro, Mary?
— Você não conhece.
— Você se coloca em grande perigo, garota. Conseguindo informações e depois agindo por conta própria.
— Sou muito cuidadosa.
— Vá embora de Macau para sempre. Saia dessa vida, enquanto tem vida. Seu pagode não durará para sempre.
— Vamos falar a seu respeito, Tai-Pan. Você não pode exibir por aqui sua amante chinesa.
— Ela e as crianças estarão salvas a bordo, e isto é o que importa.
— Não em nossa sociedade, por Deus, e você sabe disso. Eles vão destruir você, Tai-Pan, até você, caso viole seu maldito código. Eles precisam. Ela é chinesa.
— Malditos sejam!
— Sim. Mas será um caminho solitário, e você tem sua casa para pensar. Enquanto May-may for mantida em segredo, não os ameaça... o que não é visto, não existe. Não me cabe aconselhar você... você sabe de tudo isso melhor do que ninguém, mas eu lhe peço, mantenha-a em segredo.
— Eu faço isso, e continuarei a fazer... a menos que estejam em perigo. Devo um favor a você, Mary.
— Sim. — Uma chama curiosa brilhou nos olhos dela. — Eu quero um favor.
— Diga qual é.
— Tudo que eu pedir?
— É só dizer.
— Agora não. Quando eu quiser meu favor, eu pedirei. Sim. Um dia eu vou querer um favor. — Depois ela acrescentou, em tom de brincadeira — você devia ser mais cuidadoso, Tai-Pan. Sou uma mulher, e a mente de uma mulher funciona de maneira bem diferente da mente masculina.
— Sim — ele disse, e sorriu.
— Você tem um sorriso tão simpático, Tai-Pan.
— Obrigado, gentil senhora — disse ele. Fez uma elegante curvatura. — É um elogio muito grande! — Deu-lhe o braço e começaram a caminhar de volta para a praia.
— Quem lhe contou a respeito de May-may e das crianças?
— Nós combinamos, há dois anos, que as fontes de minhas informações seriam sacrossantas.
— Quer fazer o favor de não usar essas palavras complicadas?
— Estou satisfeita de ter conhecido May-may, afinal. Ela é tão linda. E as crianças.
— Ela se sentia cálida, ao contato dele.
— Existe alguma possibilidade de ser incorreta a informação?
— Não. O seqüestro em troca de resgate é uma antiga arte Chinesa.
— É sórdido. Envolver mulheres e crianças. — Struan ficou silencioso, por um momento. — Por quanto tempo você vai ficar aqui?
— Alguns dias. Horatio... Horatio fica um pouco perdido, quando está sozinho. Por falar nisso, Chen Sheng sabe que eu falo cantonês, é claro. Agora, May-may sabe. Pedilhe para manter segredo quanto a isso. Ela manterá, não?
— Sim. Não tenha medo, quanto a isso. Mas lembrarei a ela. — Ele forçou a mente a se afastar de May-may e das crianças, de Wu Kwok e dos navios de guerra e das restantes três moedas pela metade. — Um segredo merece outro. A Casa Nobre vai dar um baile dentro de pouco mais de trinta dias. Claro que você está convidada.
— Que idéia maravilhosa!
— Vamos dar um prêmio. Mil guinéus para a senhora mais bem-vestida.
— Meu Deus, Tai-Pan, vão-lhe arrancar os olhos!
— Aristotle será o juiz.
— Mesmo assim, vão-lhe arrancar os olhos. — Os olhos dela pareceram mudar de cor. — É bom eu lhe lembrar. Agora, você é o melhor partido da Ásia.
— O quê?A risada dela era um tanto zombeteira.
— É bom escolher uma esposa, enquanto tem tempo. Haverá muitas prostitutas se oferecendo a você e muitas mães empurrando as filhas para sua cama.
— Não diga tolices!
— Ora, e não diga que não foi avisado, meu rapaz. Mil guinéus? Ah, eu gostaria muito de ganhar esse prêmio. — Repentinamente, o estado de espírito dela mudou. — Tenho o dinheiro para comprar um vestido assim, como você sabe muito bem... mas, se comprar, bom, isto iria estragar a Mary Sinclair que as pessoas conhecem. Todos sabem que somos pobres como cules.
— Mas não existe nada contra eu lhe dar um vestido. Pelo menos, que me impeça de fazer a oferta através de Horatio. Não é?
— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, você faria isso? Eu lhe devolverei o dinheiro.
— Se você parar de praguejar, sim. Mas um presente é um presente. — Ele a examinou, pensativamente. — Já pensou em sua tia-avó Wilhelmina?
— Quem?
— A prima em segundo grau de sua mãe, que se mudou. Para a Holanda.
— Quem?
— A herdeira... que poderia deixar um bocado de dinheiro para você.
— Não tenho parentes na Holanda.
— Talvez sua mãe tenha esquecido de lhe contar. Talvez um advogado em Amsterdã possa escrever que você se tornou herdeira. — Ele acendeu um charuto. — Como herdeira, você poderia gastar dinheiro abertamente. Não é?
— Mas... mas... — a voz dela ficou insegura. — E Horatio?
— Tia Wilhelmina poderia deixar para ele dois mil guinéus. E a maior parte do dinheiro para você. Ela realmente só gostava dos descendentes do sexo feminino. Sua mãe era sua favorita... é estranho que ninguém tenha contado nada a você e nem a Horatio, a respeito dela. Pobre tia Wilhelmina. Morreu ontem.
Os olhos de Mary estavam arregalados de excitação.
— Será que você poderia, Tai-Pan? Será?
— Demora três meses para uma carta chegar a Londres. Um mês para fazer os acertos na Holanda. Três meses para voltar. Dentro de sete meses, você será herdeira. Mas é melhor desempenhar o papel de rato de igreja, enquanto isso. E ficar surpreendida, quando acontecer.
— Sim. Desculpe, eu... Estou desnorteada com... Não se preocupe. Não se preocupe. Se eu ficar meio doida e começar a chorar, ou gritar... adoro você, Tai-Pan. O sorriso dele desapareceu.
— Não diga uma coisa dessas!
— Nunca disse antes; e talvez jamais torne a dizer. Mas, para mim, você é Deus.
— Ela se virou, e se afastou sozinha.
Struan observou-a por um momento e, depois, dirigiu-se para Gordon Chen. Ele parece cada dia mais chinês, pensou Struan. Lá no mar, a chalupa com Orlov e Mauss a bordo ainda estava bem distante do China Cloud. Vão depressa, por Deus!
Skinner interceptou-o, ansiosamente.
— Boa-tarde, Sr. Struan.
— Ah, olá, Sr. Skinner.
— Um grande dia para o Oriente, não?
— Sim, com licença, eu preciso...
— Só vai demorar um minuto, Sr. Struan. Tentei vê-lo, a noite passada. — Skinner baixou a voz. Estava suando mais do que de costume e cheirando mal, como sempre. — As notas da Casa Nobre vencem hoje, pelo que me lembro.
— Ah, é?
— Vão ser pagas?
— Chegou a ter alguma dúvida, Sr. Skinner?
— Há boatos. A respeito das barras de prata.
— É, ouvi dizer.
— Espero que sejam verdadeiros. Eu não gostaria que houvesse uma mudança de proprietário no Oriental Times.
— E nem eu. Esta tarde, eu lhe darei uma matéria interessante. Agora, quer me dar licença? Skinner observou Struan aproximar-se de Gordon Chen e desejou inteirar-se daquela conversa. Depois, notou Brock e sua família conversando com Nagrek Thumb. Este é um grande dia, pensou, alegremente, enquanto se arrastava em direção a eles. Quem ficará com o outeiro?
— Fiquei sentido ao saber de sua perda, senhor — dizia Gordon Chen. — Tentei vê-lo, mas não consegui. Ofereci uma prece.
— Obrigado.
— Minha mãe me pediu para lhe dizer que observará os habituais cem dias de luto.
— Por favor, diga-lhe que não é necessário — disse Struan, sabendo que ela faria isso, de qualquer jeito. — E agora me conte o que tem acontecido com você, desde a última vez em que o vi.
— Nada especial. Tentei ajudar Chen Sheng a conseguir para a casa algum crédito, senhor, mas acho que não tivemos muito sucesso. — O vento puxou seu rabicho, fazendo-o balançar.
— É muito difícil conseguir crédito — disse Struan.
— Sim, realmente. Sinto muito.
Gordon Chen pensou na grande quantidade de prata no porão do China Cloud e ficou cheio de admiração pelo pai. Ouvira os boatos esta manhã e estes confirmavam outros, que já se haviam filtrado em Tai Ping Shan: de que o Tai-Pan contrabandeara a prata de Cantão, debaixo dos narizes dos odiados manchus. Mas nada disse sobre o renascimento da Casa Nobre, porque isto não seria cortês.
— Talvez tenha chegado a hora de você ter um pouco de crédito. Eu poderei consegui-lo. Vamos dizer, um laque de prata. Os olhos de Gordon Chen piscaram e ele arquejou:
— É uma grande quantidade de crédito, senhor.
— Você fica com um quarto do lucro e eu com três.
— Seria muito generoso, senhor — disse Gordon Chen, recompondo depressa seu raciocínio perplexo— Generoso. Em tempos difíceis como esses, é bastante justo. Mas, se eu tivesse dois terços e o senhor um terço, caberia a mim aumentar seus lucros consideravelmente. Muito consideravelmente.
— Espero que o lucro seja considerável — Struan jogou fora seu charuto. — Seremos sócios. Você fica com metade e eu com a outra metade. Este é um acerto particular, entre nós. Deve ser mantido em segredo. Mensalmente, você fará a escrituração e a contabilidade. Está combinado?
— Combinado. O senhor é muito generoso, senhor. Obrigado.
— Vá me visitar esta tarde, e eu lhe darei os papéis necessários. Estarei a bordo do Resting Cloud.
Gordon Chen ficou tão feliz que teve vontade de pular e gritar de alegria. Não conseguia adivinhar por que seu pai se mostrava tão generoso. Mas sabia que um laque era garantido, e aumentaria mil vezes. Com pagode, acrescentou ele, depressa. Depois, lembrou-se da Hung Mun Tong e ficou imaginando se sua lealdade à Tong entraria em conflito com a lealdade a seu pai. E, se isto acontecesse, qual das duas prevaleceria.
— Não posso lhe agradecer o suficiente, senhor. Este acordo poderá começar imediatamente?
— Sim. Suponho que você vai querer comprar alguma terra. . — Eu tinha pensado... — Gordon Chen parou. Culum se aproximava deles, com o rosto sério.
— Olá, Culum — disse Struan.
— Olá, papai.
— Este é Gordon Chen. Meu filho, Culum — disse Struan, consciente dos olhares e do silêncio da multidão na praia. Gordon Chen fez uma curvatura.
— É muita honra conhecê-lo, senhor.
— Gordon é seu meio-irmão, Culum — disse Struan.
— Eu sei. — Culum estendeu a mão. — Tenho muito prazer em conhecê-lo.
Ainda assombrado por ouvir Struan reconhecê-lo como filho, Gordon apertou frouxamente sua mão.
— Obrigado. Muito obrigado.
— Quantos anos você tem, Gordon? — perguntou Culum.
— Vinte, senhor.
— Meio-irmãos devem chamar um ao outro pelos seus nomes de batismo, não é?
— Se lhe agradar.
— Precisamos conhecer melhor um ao outro. — Culum virou-se para Struan, que estava abalado pelo reconhecimento de seu filho a Gordon. — Desculpe perturbá-lo, papai. Só queria conhecer Gordon — disse ele, e partiu.
Struan sentiu o silêncio se romper e a praia imóvel ganhar vida outra vez. E ficou espantado de ver lágrimas escorrendo pelo rosto de Gordon.
— Desculpe... eu... eu esperei minha vida inteira, Sr. Struan. Obrigado. Obrigado
— disse Gordon, com voz trêmula.
— A maioria das pessoas me chama “Tai-Pan”, rapaz. Vamos esquecer o “Sr. Struan”.
— Sim, Tai-Pan. — Gordon Chen fez uma curvatura e se afastou.
Quando Struan começou a procurar Culum, viu o cúter de Longstaff chegar à praia. O almirante e um grupo de oficiais de marinha estavam com ele. Horatio também. Bom, pensou Struan. Agora, Brock. Acenou para Robb e fez sinal a Brock. Robb fez um aceno afirmativo de cabeça e alcançou Culum. Juntos, eles se uniram a Struan.
— Tem os papéis, Robb?
— Sim.
— Vamos, então. Vamos pegar de volta as nossas promissórias. — Struan deu uma olhada em Culum.— Não há motivo algum para ficar nervoso, rapaz.
— Sim.Caminharam um pouco e Struan disse:
— Estou satisfeito por você ter conhecido Gordon, Culum. Obrigado.
— Eu... eu queria encontrá-lo hoje. Com você. Bom... publicamente.
— Por quê?
— Isso não lhe dará o prestígio que você diz ser tão importante?
— Quem lhe falou a respeito de Gordon?
— Ouvi rumores, quando voltei de Cantão. As pessoas estão sempre prontas a espalhar más notícias.
Ele se lembrou do divertimento sardônico da maior parte dos negociantes e suas esposas a quem encontrara. “Pena, rapaz, que você tenha vindo numa ocasião tão ruim. É uma pena que a casa esteja morta. Nada será a mesma coisa, sem a Casa Nobre”, diziam. Mas Culum sabia que estavam todos exultantes, satisfeitos de ver a casa humilhada. Tia Sarah fora quem realmente lhe abrira os olhos para sua ingenuidade. Caminhavam pela Estrada da Rainha e passaram por alguns eurasianos, os primeiros que ele vira, um menino e uma menina, e ele lhe perguntara de que nacionalidade eram, e de onde tinham vindo.
— Daqui — disse ela. — São mestiços, metade ingleses, metade pagãos. Muitos negociantes têm filhos bastardos, de amantes pagas. É tudo muito secreto, claro, mas todo mundo sabe. Seu tio Robb tem uma.
— O quê?
— Eu a mandei embora, com sua cria, há anos. Não seria tão ruim, suponho, se a mulher fosse cristã, e bonita. Eu teria entendido isso. Mas ela... não.
— Meu pai... tem... outros filhos pequenos?
— Filhos pequenos eu não sei, Culum. Ele tem um filho homem que trabalha para o compradore dele, e se chama Gordon Chen. Curioso senso de humor, o do seu pai, ao dar a ele um nome cristão do clã. Ouvi dizer que foi batizado como cristão. Suponho que isto vale alguma coisa. Talvez eu não devesse ser dito a você, Culum. Mas alguém tinha de dizer, e quem sabe não é melhor para você conhecer a verdade através de seus parentes, e não escutar cochichos por trás das costas. Ah, sim, você tem pelo menos um meio-irmão na Ásia.
Aquela noite, ele não conseguira dormir. No dia seguinte, foi para terra, em desespero. Alguns oficiais de marinha, entre os quais Glessing, estavam jogando críquete, e ele fora convidado para integrar a equipe. Quando foi sua vez de rebater, ele despejou toda sua raiva na bola, atingindo-a com toda força, desejoso de destruí-la e, com ela, à sua vergonha. Jogara com brilhantismo, mas sem tirar nenhum prazer do jogo. Mais tarde, Glessing puxara-o de parte e lhe perguntara o que havia. Ele vomitou tudo.
— Não aprovo o que seu pai fez... como sabe, sem dúvida — dissera Glessing. — Mas isso nada tem a ver com sua vida particular. Eu próprio tenho o mesmo problema que você. Sei que meu pai tem uma amante em Maida Vale. Dois filhos e uma filha. Ele jamais mencionou o fato a mim, embora eu espere que saiba que eu sei. É muito difícil, mas o que um homem pode fazer? Provavelmente, quando eu tiver a idade dele, farei a mesma coisa. Tenho de esperar para ver. Claro, concordo que é muito desagradável saber que se tem um irmão mestiço.
— Você o conhece?
— Já o vi. Nunca falei Com ele, embora tenha ouvido dizer que é um bom sujeito. Eu lhe daria um conselho... não se preocupe com o que o seu pai fizer em sua vida particular. Ele é o único pai que você terá.
— Você não o aprova, mas fala em seu favor. Por quê? Glessing encolheu os ombros.
— Talvez porque eu tenha aprendido que os “pecados” do pai são problema do pai e não do filho. Talvez porque o Tai-Pan seja melhor marinheiro do que eu jamais serei, e pilote a melhor frota dos mais belos navios da terra... e trate seus marujos como devem ser tratados, com boa comida, pagamento e alojamentos bons, quando nós temos de trabalhar com o que o maldito Parlamento nos dá, nenhum maldito dinheiro, homens sob pressão e malfeitores como tripulantes. Talvez por causa do Cabo Glessing... ou porque ele é o Tai-Pan. Talvez porque os Sinclairs o admirem. Não sei. Não me incomodo de lhe dizer que, se algum dia tiver ordem para caçá-lo, eu me limitarei aos estritos termos da lei. Mesmo assim, espero em Deus que ele consiga lograr aquele miserável patife Brock, outra vez. Eu não conseguiria suportar aquele tipo sujo como o Tai-Pan.
Daquele dia em diante, Culum vira Glessing constantemente. Entre eles, amadurecera uma amizade.
— Hoje — Culum continuou a dizer a Struan, muito desajeitadamente — bom, quando vi você e Gordon Chen juntos, perguntei a George Glessing. Ele foi suficientemente honesto para me dizer.
Struan parou.
— Quer dizer que foi desonestidade de minha parte não ter contado a você?
— Não. Você não precisa justificar nada do que fez. A mim. Um pai não precisa justificar nada a um filho, não é?
— Gordon é um bom rapaz — disse Robb, desconcertado.
— Por que você queria saber qual é a idade dele? — perguntou Struan.
— Ele tem a mesma idade que eu, não é?
— E daí?
— Não tem importância, papai.
— Tem. Para você. Por quê?
— Eu preferia não...
— Por quê?
— Uma questão de ética, eu acho. Se somos da mesma idade, a mãe dele foi “concorrente”... será essa a palavra... da minha?
— Sim, concorrente é a palavra certa.
— “Adultério” seria outra palavra certa, não?
— Uma das verdades do homem é que o adultério é tão inevitável quanto a morte ou o pôr-do-sol.
— Isto não está de acordo com os Dez Mandamentos. — Culum evitou o olhar do pai. — A venda deve começar... agora que Longstaff está aqui — disse ele.
— É por isso que está tão nervoso? Encontrar Gordon e aplicar a mim os Mandamentos?
— Você não precisa de mim, não é, papai, para falar com Brock? Acho que eu... se você não se importa... vou ver se tudo está pronto.
— Fique à vontade, rapaz. Eu acho que você deveria estar conosco. Esta é uma ocasião rara. Mas fique à vontade. — Struan recomeçou a caminhar pela estrada. Culum hesitou e, depois, alcançou-o.
A Estrada da Rainha saía diretamente do vale, a oeste, e marginava a praia. Uma milha atrás, passava pelas tendas dos fuzileiros navais que guardavam o número crescente de depósitos da Marinha. Uma milha adiante, estavam as tendas enfileiradas dos soldados, perto do Cabo Glessing, que era o ponto terminal da Estrada da Rainha.
E, acima do Cabo Glessing, ficava o Tai Ping Shan, ligado à praia por uma fila palpitante e interminável de chineses curvados ao peso de seus pertences. A fila permanecia em perpétuo movimento e era alimentada, constantemente, pela incessante chegada de juncos e de sampanas.
— Bom-dia, Excelência — disse Struan, tirando o chapéu, quando encontraram Longstaff e seu grupo.
— Ah, boa-tarde, Dirk. Bom-dia, Robb — Longstaff não parou. — Não está pronto para começar, Culum?
— Dentro de um momento, Excelência.
— Bom, apresse-se. Tenho de ir para bordo, sabe? — E ele acrescentou, para Struan, um insultante comentário tardio: — É bom ver você de volta, Dirk. — Continuou sua caminhada, cumprimentando outros.
— Ele vai mudar dentro de cerca de três minutos — disse Struan.
— Maldito idiota, estúpido e desprezível — a voz de Culum era áspera e baixa. — Graças a Deus, este é o último dia em que o servirei. Struan abanou a cabeça.
— Se eu fosse você, usaria o cargo de “Vice-Secretário Colonial” em vantagem própria.
— Como?
— Recuperamos o nosso poder. Mas é ainda a mão dele que assina os papéis, transformando-os em leis. E sua mão ainda tem de ser guiada, hein?
Suponho... suponho que sim. — respondeu Culum. Quando os Struans se aproximaram dos Brocks, um silêncio caiu sobre a praia e a excitação aumentou. Gorth e Nagrek Thumb estavam enfileirados ao lado de Brock, Liza e as meninas. Skinner começou a assobiar baixinho e se aproximou. Aristotle Quance hesitou, no meio de uma pincelada. Só os muitos jovens não sentiram a excitação, e não estavam espiando e nem escutando.
Boa-tarde, senhoras e cavalheiros — disse Struan, tirando o chapéu.
— Bom-dia, Sr. Struan — disse Liza Brock, com doçura. — Já conhecia Tess e Lillibet, não é mesmo?
— Claro. Bom-dia, senhoras — disse Struan, enquanto as meninas faziam mesuras, notando que Tess crescera consideravelmente, desde a última vez em que a vira. — Podemos acertar o nosso negócio? — disse a Brock.
— O momento é ótimo. Liza, você e as meninas voltem para o navio. E Lillibet, vê se não mete essas mãos no mar, senão você acaba morrendo. E não vá cair na água por cima da amurada. E você, Tess, amor, cuide de si e de Lillibet. Vão embora, agora, e façam o que sua mãe disser a vocês.
Elas fizeram mesuras rápidas e correram adiante da mãe, satisfeitas de serem mandadas embora.
— Crianças e a vida no mar não combinam, não é? — disse Brock. — Não se pode vigiar o tempo todo para onde estão indo. A pessoa fica louca.
— Sim. — Struan entregou a ordem de pagamento do banco-a Gorth. — Estamos quites agora, Gorth.
— Obrigado — disse Gorth. Examinou o papel, deliberadamente.
— Talvez você gostasse de dobrar a soma.
— Como?
— Mais vinte mil, digamos, se um de nossos navios derrotar você, na volta para nosso país.
— Obrigado. Mas dizem que o dinheiro do idiota acaba depressa. Eu não sou idiota... e nem gosto de apostar. — Olhou para a ordem de pagamento. — Chegou bem na hora. Talvez eu possa comprar um pedacinho do outeiro, do meu pai. A cor dos olhos de Struan ficou mais escura.
— Vamos até a tenda — disse ele, e seguiu adiante. Robb e Culum foram atrás, e Robb se sentia muito satisfeito por seu irmão ser o Tai-Pan da Casa Nobre. Seu velho medo voltou. Como é que vou lidar com Brock? Como?
Struan parou diante da tenda e fez um sinal com a cabeça para Cudahy.
— Vamos, rapazes — disse Cudahy a um pequeno grupo de marinheiros, à espera.
— Depressa. Para espanto de todos, os homens derrubaram a tenda.
— Nossas ordens de pagamento, por favor, Tyler. Brock cautelosamente, tirou as notas promissórias do bolso.
— Oitocentos e vinte e quatro mil libras.Struan deu as notas a Robb, que as conferiu cuidadosamente com as duplicatas.
— Obrigado — disse Struan. Quer assinar isto?
— Que é isso?
— Um recibo.
— E onde está a ordem de pagamento do seu banco? — perguntou Brock, suspeitosamente.
— Decidimos pagar à vista — disse Struan.
Os marinheiros arrastaram a tenda caída. Quase escondendo a massa dos barris vazios, estavam pilhas bem-arrumadas de tijolos de prata. Centenas e centenas de tijolos de prata, brilhando ao sol pálido. Brock olhou para eles, petrificado, e houve um silêncio monstruoso em Hong Kong.
— A Casa Nobre decidiu pagar à vista — disse Struan, descontraidamente.
Acendeu um fósforo e o encostou ao rolo de ordens de pagamento. Tirou três charutos, ofereceu um a Robb e outro a Culum e acendeu-os com o papel em chamas.
— Foi tudo bem pesado. Mas há uma balança, se você quiser verificar o total. O sangue subiu ao rosto de Brock.
— Vão para o inferno!Struan deixou cair o papel, queimado, que ficou na areia.
— Obrigado, Sr. Cudahy. Leve os homens para bordo do Thunder Cloud.
— Sim, sim, senhorrr — disse Cudahy, e os homens deram uma última e suada olhada para as barras de prata, correndo em seguida para seus botes.— Bom, este assunto está encerrado — disse Struan a Robb e a Culum. — Agora, podemos tratar da terra.
— Uma ocasião rara, na verdade, Dirk — disse Robb. — Foi uma idéia genial.
Culum examinou a praia. Viu a cobiça e a inveja, e os olhos que os examinavam disfarçadamente.
Obrigado, meu Deus, disse ele, silenciosamente, por me deixar fazer parte da Casa Nobre. Obrigado por me deixar ser Vosso instrumento.
Brock recuperou-se do choque.
— Gorth, mande seus guarda-costas para terra, e bem depressa.
— O quê?
— A toda pressa, maldição! — disse ele, com a voz baixa a violenta. — Armados. Dentro de alguns minutos, teremos atrás de nós todos os piratas pagãos da Ásia. Gorth saiu correndo. Brock puxou suas pistolas e as entregou a Nagrek.
— Se alguém chegar a uma distância de cinco jardas, acerte na cabeça. — Ele se aproximou depressa de Longstaff. — Posso pedir emprestados seus soldados, Excelência? Senão vamos ter muitos problemas.
— Hein? Soldados? Soldados? — Longstaff piscava diante das barras de prata. — Deus do céu, tudo isso é prata de verdade? Tudo? Nossa, vale oitocentas mil libras, você disse?
— Um pouco mais — disse Brock, com impaciência. — Os soldados. Fuzileiros, marinheiros. Todos os que estiverem armados. Para guardar a prata, por Deus.
— Ah, armados! Claro. Almirante, quer fazer o favor de tratar disso?
— Venham cá! — gritou o almirante, furioso com a cobiça que se mostrava em todos os rostos, inclusive dos oficiais da Marinha Real. Fuzileiros, soldados e marinheiros vieram às pressas. — Formem um círculo a cinqüenta passos de distância desse tesouro. Ninguém tem permissão para se aproximar. Entendem? — Ele olhou para Brock. — Serei o responsável pela segurança da prata por uma hora. Depois, eu a deixarei onde está.
— Muito obrigado, Almirante — disse Brock, contendo-se para não soltar uma praga.
Ele olhou em direção ao mar. O cúter de Gorth seguia rapidamente para o White Witch. Uma hora será suficiente, pensou ele, maldizendo Struan e as barras de prata. Como, em nome de Deus, poderei desfazer-me de tanta prata? Que papel ousarei receber? Com a guerra começando e talvez nenhum comércio, hein? Se houver comércio, então isto pagará o chá de toda a temporada. Mas, a menos que o comércio esteja garantido, ora, então todo o papel das companhias será sem valor. Exceto da maldita Casa Nobre.
Não tem banco e nem cofre ou segurança para garantir isso, até sair de suas mãos. Sua vida será um tormento. Você devia ter pensado, por Deus. Você devia ter pensado que era isso que aquele amaldiçoado iria fazer. Ele pegaria você numa armadilha.
Brock afastou seus pensamentos da prata, e olhou para Struan. Viu seu sorriso zombeteiro e a raiva cresceu dentro dele.
— O dia não acabou ainda, por Deus.
— Está certo, Struan. — Ainda falta uma coisa para acertar.
— Sim, por Deus — Brock abriu caminho entre a multidão silenciosa e se aproximou do estrado. Repentinamente, a ansiedade de Culum voltou, mais aguda do que antes.
— Escute, papai — disse ele, num ímpeto, com a voz baixa.
— Tio Robb tem razão. Brock só vai deixar você em paz quando os lances chegarem a...
— Não fale nisso outra vez, rapaz, por Deus. O outeiro pertence à Casa Nobre. Culum olhou para o pai, desamparadamente. Depois, afastou-se.
— Que diabo há com ele? — Struan perguntou a Robb.
— Não sei. Está nervoso como uma cadela no cio. Depois, Struan notou Sarah, em pé à frente da multidão — com Karen a seu lado — pálida, como uma estátua. Pegou no braço de Robb e começou a guiá-lo em direção a elas.
— Você não disse a Sarah ainda, não é Robb? A respeito de sua permanência aqui?
— Não.
— Este é um bom momento. Agora que você está rico outra vez. Chegaram perto de Sarah, mas ela não os notou.
— Olá, tio Dirk — disse Karen. — Posso brincar com seus lindos tijolos?
— São mesmo verdadeiros, Dirk? — perguntou Sarah.
— Sim, Sarah — respondeu Robb.
— Só Deus sabe como você conseguiu, Dirk, mas obrigada.
— Ela piscou, enquanto o bebê dava chutes em seu útero, e pegou os sais odoríferos. — Isto significa... isto significa que estamos salvos, não é?
— Sim — disse Struan.— Posso brincar com um daqueles, mãezinha? — disse Karen, com voz estridente.
— Não, querida, vá brincar por aí — disse Sarah. Ela se aproximou de Struan e o beijou, com as lágrimas escorrendo. — Obrigada.
— Não me agradeça, Sarah. O preço de tanto metal é alto. — Struan tocou no chapéu e se afastou deles.
— O que quis ele dizer, Robb? Robb contou-lhe.
— Eu vou embora, de qualquer maneira — disse ela. — Logo que puder. Logo que o bebê nascer.
— Sim. É melhor.
— Estarei rezando para você nunca encontrar com ela.
— Ah, não comece com isso outra vez, Sarah. O dia está lindo. Somos ricos, outra vez. Você pode ter tudo o que quiser no mundo.
— Talvez eu queira apenas um homem para ser meu marido. — Sarah caminhou pesadamente para a chalupa e, quando Robb começou a segui-la, disse: — Obrigada, mas posso chegar a bordo sozinha. Vamos, Karen, querida.
— Como quiser — disse Robb, e voltou à praia. Por alguns momentos, não conseguiu enxergar Struan, no meio da multidão. Depois, ao se aproximar do estrado, descobriu-o conversando com Aristotle Quance. Uniu-se a eles.
— Olá, Robb, meu caro amigo — disse Quance, expansivamente. — Gesto maravilhoso, eu estava dizendo ao Tai-Pan. Maravilhoso. Digno da Casa Nobre. — Depois, a Struan, com o rosto feio dançando de alegria: — Por falar nisso, você me deve cinqüenta guinéus.
— Não é verdade!
— O retrato de Culum. Está pronto para a entrega. Espero que não tenha esquecido.
— Eram trinta guinéus e lhe dei dez adiantados, por Deus!
— Ah, sim? Ora só! Tem certeza?
— Onde está Shevaun?
— Está gripada, pelo que ouvi dizer, pobre senhora. — Quance tomou um pouco de rapé. — Principesco, é o que você é, meu rapaz. Pode me emprestar algum dinheiro? É para uma boa causa.
— Gripada, como?Quance olhou em torno e baixou a voz.
— Na verdade, são problemas amorosos.
— Quem é o felizardo? Quance hesitou.
— Você, rapaz.
— Ah, vá para o inferno, Aristotle! — disse Struan, coro irritação.
— Acredite se quiser. Eu estou lhe dizendo. Ela perguntou por você várias vezes.
— Durante as poses?
— Que poses? — perguntou Quance, inocentemente.
— Você sabe que poses.
— Apaixonada, meu rapaz. — O homenzinho riu. — E agora que você está rico outra vez, pronto para ser arrastado para a cama! Imortais testículos de Júpiter! Ela, com certeza, será magnífica. Só cinqüenta guinéus, e não o incomodarei por um mês.
— Qual é a “boa causa”?
— Meu caro rapaz, eu preciso de uma cura. Tenho andado ruim.
— Sim, eu sei qual é seu problema. Ainda não criou juízo. É lamentável, num homem de sua idade!
— Você devia estar satisfeito, querido rapaz. Deve admitir que eu sou maravilhoso. Cinqüenta não é muito, para um pobre mortal.
— Você vai receber seus vinte guinéus quando eu tiver o quadro em minhas mãos.
— Struan se curvou e sussurrou de maneira significativa: — Aristotle, quer uma comissão? Digamos, cem libras? Em ouro? Imediatamente, Quance estirou a mão.
— Sou seu empregado. Aqui está minha mão. Quem tenho de matar?
Struan riu e lhe contou a respeito do baile e do julgamento.
— Com mil raios, por Deus! — explodiu Quance. — Sou um louco idiota? Quer que me cortem os testículos? Que morra antes do tempo? Caçado por todas as putas da Ásia? No ostracismo? Nunca!
— Só um homem com seu conhecimento, com sua estatura, seu...
— Nunca, por Deus! Você, meu ex-amigo... por umas miseráveis cem libras, você me coloca em perigo mortal. Sim, por Deus! Perigo mortal! Serei atormentado, odiado, arruinado, morto antes do tempo... Se ainda fossem duzentas!
— Feito! — disse Struan.
Quance atirou o chapéu para o alto e dançou uma giga, abraçando o estômago. Depois, ajustou seu colete de seda carmezim e pegou o chapéu, enfiando-o garbosamente na cabeça.
— Tai-Pan, você é um príncipe. Quem, senão eu, Aristotle Quance, ousaria fazer uma coisa dessas? Quem, senão eu, faria a escolha perfeita? Perfeita! Ah, maravilhoso Quance! Príncipe dos pintores! Duzeritas. Adiantadas.
— Depois do julgamento.
— Não confia em mim?
— Não. Você pode ir embora. Ou beber.
— Sairei do meu leito de morte para julgar esse concurso. Na realidade, eu teria me apresentado como voluntário. Sim, pelo sangue de Rembrandt... pagaria cem guinéus, nem que tivesse de me arrastar até Brock para pedir emprestado, a fim de ter esse privilégio.
— O quê? Quance atirou seu chapéu para o ar outra vez.
— Ah, dia feliz, muito feliz! Ah, perfeito Quance, imortal Quance. Você conseguiu seu lugar na história. Imortal, perfeito Quance.
— Não entendo você, absolutamente, Aristotle — disse Robb. — Quer realmente julgar? Quance pegou seu chapéu, limpou a areia, com os olhos reluzindo.
— Já considerou as vantagens que uma tarefa dessas me dará? Hein? Ora, todas as putas da Ásia estarão... como direi?... estarão prontas para comprar o juiz, hein? Antecipadamente.
— E você estará pronto para ser comprado! — disse Struan.
— Claro. Mas será uma escolha honesta. A escolha perfeita. Sei agora quem será a vencedora.
— Quem?
— Mais cem libras? Hoje?
— O que você fará com todo o dinheiro, hein? Cá entre Robb, Cooper e eu, estamos dando a você uma fortuna!
— Dar? Ora! Dar? É um privilégio seu apoiar a imortalidade. Privilégio, pela bunda de Lúcifer! Por falar nisso, haverá algum conhaque naqueles barris? Tenho uma sede imortal.
— Não tem nenhum. Absolutamente nenhum.
— Que falta de educação! É lamentável. — Quance cheirou um pouco mais de rapé e viu Longstaff, que se aproximava. — Bom, estou de saída. Bom-dia, rapazes. — Afastou-se assobiando e, ao passar por Longstaff, tirou o chapéu, cerimoniosamente.
— Olá, Dirk — disse Longstaff, com um largo sorriso no rosto. — Por que Aristotle está assim tão bem-humorado?
— Ele está apenas satisfeito, como você, pelo fato de sermos ainda a Casa Nobre.
— Com todo direito, não é mesmo? — Longstaff estava jovial e cheio de respeito.
— Não sabia que havia tantas barras de preta na Ásia. Magnífico pagar assim. Por falar nisso, quer jantar comigo esta noite? Gostaria de saber sua opinião sobre algumas questões.
— Sinto muito, mas estou ocupado esta noite, Will. Que tal amanhã? E por que não vem a bordo do nosso quartel-general, o Resting Cloud? Ao meio-dia.
— Ao meio-dia será perfeito. Perfeito. Estou tão satisfeito..
— Por falar nisso, Will, por que não cancela a ordem mandando a frota para o norte? Longstaff franziu a testa.
— Mas aqueles demônios repudiaram nosso tratado, não foi?
— O Imperador Manchu sim. Mas o tempo está sujeito a tufões. É melhor manter a frota unida. E sob suas ordens diretas.
Longstaff tomou uma pitada de rapé e limpou as pregas de seu resplandecente colete.
— O almirante não está preocupado com o tempo. Mas, se você diz isso — ele espirrou. — Se não formos para o norte, o que vamos fazer, hein?