A solução é tão deliciosamente simples, ela disse a si própria, alegremente. Assassinar Gorth. Mandar assassiná-lo de uma maneira que ninguém suspeite que os assassinos não passam de assaltantes ou piratas. Se assim for feito, clandestinamente, um perigo para o meu Tai-Pan será afastado; Culum ficará protegido de um óbvio risco futuro; e o pai Brock nada poderá fazer, porque ainda está preso pela espantosa e inacreditável determinação que os bárbaros atribuem a um tal juramento “sagrado”. Tão simples. Mas cheio de perigo. Preciso ser muito cuidadosa. Se meu Tai-Pan chegar a descobrir, ele me levará perante um dos juizes bárbaros — aquele revoltante Mauss, provavelmente! Meu Tai-Pan me acusaria — até a mim, sua adorada concubina. E eu seria enforcada. Que ridículo!
Depois desse tempo todo, e com todos os meus estudos — aprendendo a língua deles, e tentando continuamente compreendê-los — certas atitudes dos bárbaros ainda estão absolutamente além do meu alcance. Como é ridículo ter a mesma lei para todos — ricos e pobres. De que adianta trabalhar e suar, para se tornar rico e poderoso?
Qual será a melhor maneira?, perguntou a si mesma. Sei muito pouco a respeito de assassinatos. Como fazer isso? Onde? Quando?
May-may ficou acordada a noite inteira. Ao amanhecer, decidiu a respeito do melhor procedimento. Então, dormiu suavemente.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Quando chegou o Festival de Verão, o Vale Feliz estava em completo desespero. A malária continuara a se disseminar, mas não havia nenhum padrão estabelecido para a epidemia. Nem todos na mesma casa eram contaminados. Nem todas as casas na mesma área era atingidas.
Os cules não iam para o Vale Feliz até o sol estar alto e voltavam ao Tai Ping Shan antes do anoitecer. Struan, Brock e todos os negociantes estavam quase loucos. Não havia nada que pudessem fazer — a não ser se mudar, e mudar-se representava uma calamidade. Ficar poderia significar um desastre pior. E, embora houvesse muitos que insistiam não ser possível responsabilizar pela malária ao solo envenenado e ao ar noturno poluído, só aqueles que dormiam no vale eram afetados. Os tementes a Deus acreditavam, como Culum, que a febre era a vontade divina, e redobraram suas súplicas ao Todo-Poderoso para protegê-los; os ateus davam de ombros, embora igualmente assustados, e diziam: Pagode. A fuga das famílias de volta para os navios tornava-se cada vez mais numerosa, e a Cidade da Rainha se transformou numa cidade-fantasma.
***
Mas este desespero não atingiu Longstaff. Ele voltara de Cantão na véspera, à noite, na nau capitania, embriagado com o sucesso, e vivia a bordo do navio, sem a menor intenção de residir no Vale Feliz, assim sabendo que se encontrava fora do alcance dos venenosos gases noturnos.
Conquistara tudo que estava decidido a conquistar — e ainda mais.
No dia seguinte ao início da investida a Cantão, os seis milhões de taéis de resgate que pedira foram plenamente pagos, e cancelara o ataque. Mas determinara imediatos preparativos para uma guerra ao norte, em escala completa. E, desta vez, não haveria interrupção — até o tratado ser ratificado. Dentro de poucas semanas, chegariam os prometidos reforços da índia. E então a armada navegaria para o norte, mais uma vez, para o Pei Ho — para Pequim — e o Oriente se abriria, de maneira definitiva.
— Sim, com toda certeza — Longstaff deu uma risadinha. Estava sozinho em seus aposentos no H.M.S. Vengeance, admirando a si próprio no espelho. — Você é realmente muito inteligente, meu querido amigo — disse a si mesmo, em voz alta. — Sim, realmente. Muito mais inteligente do que o Tai-Pan, e ele é a personificação da inteligência. — Depôs o espelho e esfregou água-de-colônia no rosto, olhando em seguida para o seu relógio de bolso. Struan deveria chegar dentro de poucos minutos. — Mesmo assim, não é preciso deixar sua mão direita saber o que a esquerda está fazendo, hein? — ele riu.
Longstaff mal podia acreditar que tivesse conseguido acertar a aquisição das sementes de chá com tanta facilidade. Pelo menos, lembrou a si próprio, satisfeito, Horatio conseguira. Fico imaginando por que o homem está tão perturbado com o desejo de sua irmã de casar com Glessing. Eu teria pensado que era um excelente casamento. Afinal de contas, ela é bastante mal-vestida e insignificante — embora estivesse lindíssima, no baile. Mas é uma sorte grande que ele deteste Glessing, não? E uma sorte grande que sempre tenha detestado o comércio de ópio. E foi muito inteligente a maneira como eu pus a idéia em sua cabeça — com a isca da remoção de Glessing.
— Puxa vida, Horatio — ele dissera, há uma semana, em Cantão — é um maldito negócio, esse comércio de ópio, não? E tudo porque temos de pagar barras de prata pelo chá. É uma pena que a índia Britânica não o cultive, não? Assim, não haveria necessidade de ópio. Simplesmente o proibiríamos, pouparíamos os pagãos para coisas melhores, não? Plantar sementes de bondade entre eles, em vez daquela droga maldita. Então, a frota poderia voltar para a Inglaterra e viveríamos em paz e tranqüilidade para sempre.
Dentro de dois dias Horatio o puxara de lado e, excitadamente, expusera a idéia de obter sementes de chá dos chineses e mandá-las para a índia. Ele ficara adequadamente espantado, mas permitira a Horatio convencê-lo das potencialidades da idéia.— Mas, por Deus, Horatio — dissera — como poderemos obter as sementes de chá?
— Este é meu plano: falarei em particular com o Vice-Rei Ching-so, Excelência. Direi que o senhor é um amante da jardinagem e teve a idéia de transformar Hong Kong num jardim. Pedirei cinqüenta libras de cada semente: de amora, algodão, arroz camélias e outras flores, bem como chás variados. Isto desviará sua atenção do chá, especificamente.
— Mas, Horatio, ele é um homem muito inteligente. Deve saber que poucas ou nenhuma dessas plantas crescerão em Hong Kong. Claro. Ele simplesmente vai achar que é uma estupidez dos bárbaros.
Horatio estava fora de si, de excitação.
— Mas, como você conseguiria fazer com que ele guardasse segredo sobre isso? Ching-so contaria aos mandarins, ou à Co-hong, e eles, certamente, contariam aos comerciantes. Você sabe que esses malditos piratas moveriam céus e terras para impedir o que você propõe. Com certeza adivinhariam quais as suas intenções. E o Tai-Pan? Você percebe, claro, que sua proposta iria colocá-lo fora do negócio.
— Ele é suficientemente rico agora, Excelência. Temos de acabar com o mal do ópio. É nosso dever.
— Sim, mas tanto chineses como europeus ficariam implacavelmente contra o plano. E, se Ching-so perceber o que você tem realmente em mente, como pode acontecer... então, bom, você nunca vai conseguir as sementes.
Horatio ficou pensando por um momento. Depois, disse:
— Sim. Mas se eu fosse prometer isso em troca do favor feito a mim... e eu só quero que o senhor, meu patrão, fique satisfeito com o presente-surpresa, então eu, que tenho de contar os caixotes de prata e assinar os papéis por eles, poderia deixar passar um caixote, e então ele, com certeza, guardaria esse segredo.
— Quanto vale um caixote?
— Quarenta mil taéis de prata.
— Mas a prata pertence ao Governo de Sua Majestade, Horatio.
— Claro. Em suas negociações, o senhor poderia “privadamente” garantir que haja um caixote extra, não oficial, e, assim, a Coroa não teria prejuízo. As sementes serão seu presente para o Governo de Sua Majestade, senhor. Eu ficaria honrado se dissesse que a idéia foi sua. Tenho certeza de que foi. Algo que me disse deflagrou-a em minha mente. E, com justiça, o senhor deverá receber o crédito. Afinal de contas, é o plenipotenciário.
— Mas, se seu plano for bem-sucedido, então você não apenas estará destruindo os negociantes na China, mas também a si próprio. Não faz sentido.
— O ópio é um vício terrível, senhor. Qualquer risco que corrermos é justificável. Mas meu emprego depende de seu sucesso, não do ópio.
— Se este plano for bem-sucedido, você está minando os próprios alicerces de Hong Kong.
— Mas demorará muitos anos para o chá vicejar em outro lugar. Hong Kong estará segura durante seu tempo, senhor. Hong Kong será ainda o empório do comércio asiático. Quem sabe o que acontecerá, no curso dos anos?
— Então, quer que eu investigue as possibilidades do cultivo do chá junto ao Vice-Rei da índia?
— Quem, senão o senhor, Excelência, poderia levar a idéia, a sua idéia, a uma execução perfeita? Relutantemente, deixara-se persuadir, e advertira a Horatio sobre a necessidade de
extremo segredo. Já no dia seguinte, Horatio informara, cheio de alegria:
— Ching-so concordou! Ele disse que, dentro de seis semanas a dois meses, os caixotes de sementes serão entregues em Hong Kong, Excelência. Agora, tudo que falta para tornar as coisas todas perfeitas, para mim, é o envio imediato de Glessing para nosso país. Creio que Mary está apenas totalmente apaixonada. É uma pena que ela não possa dispor de um ano, ou um pouco mais, para ter certeza absoluta quanto ao que está fazendo, fora do alcance da influência diária...
Longstaff dera outra risadinha, diante da transparente tentativa do jovem, de ser sutil. Escovou o cabelo, abriu a porta da cabina e foi para a casa de navegação. Procurou em meio aos papéis de seu cofre e descobriu a carta que Horatio traduzira, há semanas.
— Isto não é mais necessário — disse, alto. Rasgou o papel, debruçou-se por uma vigia e atirou os pedaços ao mar, observando-os enquanto se afastavam, a flutuar.
Talvez Glessing fosse enviado para a Inglaterra. A moça é menor e Horatio está numa posição muito difícil. Bom, vou pensar a respeito. Depois que as sementes estiveram em viagem para a índia.
Viu a chalupa de Struan, que se aproximava. Struan estava sentado, desconsoladamente, no meio da embarcação. A gravidade do Tai-Pan fez Longstaff lembrar a malária. Que diabo você vai fazer com relação a isso, hein? Arruína toda a estratégia de Hong Kong, não é?
***
Struan espiava através das vigias da popa, esperando pacientemente que Longstaff terminasse.
— Puxa vida, Dirk, era quase como se Ching-so soubesse que íamos pedir seis milhões de taéis. O resgate foi posto imediatamente à disposição. Até o último centavo. Ele quase pediu desculpas pelo saque da Colônia. Disse que foram aqueles malditos anarquistas, os Tríades. Já ordenou que seja feita uma investigação completa e espera poder destruí-los, de uma vez por todas. Parece que um dos líderes caiu-lhe nas mãos. Se ele não conseguir extrair alguma coisa do homem, é porque ninguém mais poderia. Prometeu dizer-me imediatamente os nomes dos Tríades aqui.
Struan afastou-se das vigias e se sentou numa poltrona funda, de couro.
— Muito bem, Will. Eu diria que você fez um trabalho notável.
Longstaff sentiu-se muito satisfeito.
— Devo dizer que as coisas saíram de acordo com o plano. Ah, a propósito. A informação que você mandou a respeito do pirata Wu Kwok. Eu teria preferido que você liderasse a flotilha, mas o almirante mostrou-se inflexível. E foi ele próprio.
— É privilégio dele. Vamos esperar que faça um bom serviço esta noite. Vou descansar um pouco mais, sabendo que aquele demônio naufragou.
— Muito bem.
— Agora, tudo que você tem de fazer é salvar Hong Kong, Will. Só você pode fazer isso — disse Struan rezando para que, mais uma vez, conseguisse fazer Longstaff executar o plano que afinal traçara, como único jeito para salvar todos eles. — Acho aconselhável que você ordene uma saída imediata do Vale Feliz.
— Deus do céu, Dirk — exclamou Longstaff — se eu fizer isso, bom... Será o equivalente a sair de Hong Kong!
— A Cidade da Rainha tem malária. Pelo menos, o Vale Feliz tem. Então, precisa ser abandonado. Longstaff, abalado, aspirou um pouco de rapé.
— Não posso ordenar a retirada. Isto me tornaria responsável por todas as perdas.
— Sim. Você decidiu usar os seis milhões de taéis para reembolsar a todos. — Meu Deus, não posso fazer isso! — Longstaff explodiu. — A prata pertence à Coroa. A Coroa, só a Coroa, pode decidir o que fazer com ela!
— Você decidiu que Hong Kong é valiosa demais para ser posta em risco. Sabe que precisamos nos mudar, depressa. É um gesto digno de um governador.
— Não posso absolutamente, Dirk! De maneira alguma. É impossível!
Struan aproximou-se do aparador e encheu dois copos de xerez.
— Todo seu futuro depende disso.
— Hein? Será? Como?
Struan deu-lhe um copo.
— Sua reputação na corte está ligada a Hong Kong. Toda sua política na Ásia, e isto significa a política da Coroa na Ásia, focaliza-se em Hong Kong. Com razão. Sem segurança para Hong Kong, o governador, que representa Sua Majestade, não poderá dominar a Ásia, como deveria. Sem uma cidade construída, não haverá segurança para você e nem para a Coroa. O Vale Feliz está morto. Então, uma nova cidade deverá ser construída, e depressa. — Struan bebeu o xerez, saboreando-o. — Se reembolsar imediatamente aqueles que construíram, restaurará imediatamente a confiança. Todos os negociantes se unirão em seu apoio... de que precisará, no futuro. Não esqueça, Will, muitos têm considerável influência na corte. É um gesto grandioso, digno de você. Além disso, o reembolso realmente estará sendo pago pelos chineses.
— Não entendo.
— Dentro de três meses, você estará nos portões de Pequim, comandante-chefe de uma força invencível. O custo da expedição será, digamos, de quatro milhões. Acrescente seis milhões pelos danos à Colônia. Dez milhões. Mas peça catorze milhões, que serão uma indenização justa. Os quatro milhões extras serão a base para o tesouro de seu governo em Hong Kong... um dos tesouros coloniais mais ricos do Império. Na realidade, em vez de catorze, você pedirá vinte milhões; os seis extras pagarão os seis que você, com sua astúcia, “investiu” em Hong Kong, em nome da Coroa. Não se esqueça, sem uma base segura, você não pode ousar fazer o ataque ao norte. Sem Hong Kong segura, a Inglaterra está morta na Ásia. Você estará pensando em todo o futuro da Inglaterra, Will. Os termos são esses!
Struan podia sentir a mente de Longstaff repassando as possibilidades. Esta era a única solução possível. O único caminho pelo qual todos poderiam salvar seu prestígio e salvar a ilha. E, no instante em que viu Longstaff abrir a boca para falar, disse:— Uma última coisa, Will. Você receberá o dinheiro de volta imediatamente, a maior parte dele.
— Hein?
— Faça logo uma venda de terras. Os lances pelos novos lotes serão frenéticos. Para onde vai o dinheiro? De volta ao seu tesouro governamental. Você ganha, de todas as maneiras. A terra que está vendendo não lhe custa nada. Você sabe como precisa desesperadamente de dinheiro, para todos os problemas do governo: salários, polícia, o palácio governamental, estradas, tribunais, instalações portuárias e mil outras coisas e, certamente, não pode usar o resgate para isso. Eu diria que seria a pincelada de gênio de um estadista. Você tem de tomar a decisão agora, porque é impossível para você esperar seis meses até um despacho chegar à Inglaterra e sua óbvia aprovação voltar para cá. Você salva Hong Kong, a preço de nada. Mas, acima de tudo, mostrará a Zergeyev, de maneira muito positiva, que a Inglaterra planeja ficar na Ásia, permanentemente. Eu acho, Will, que sua astúcia impressionaria todo o Gabinete. E, certamente, a Sua Majestade a Rainha. E honrarias permanentes resultariam dessa aprovação.
Soaram os oito toques de sino. Longstaff pegou seu relógio de pulso. Estava atrasado, e ele virou os ponteiros para o meio-dia, enquanto sua mente tentava encontrar uma falha no raciocínio de Struan. Não havia nenhuma, disse a si próprio. Sentiu-se contra-feito ao perceber que, se não fosse o Tai-Pan, nada teria feito, com relação à febre. A não ser ficar fora do vale, esperando que a cura chegasse. Ele também ficara perturbado com a epidemia, mas, bom, era mais importante ganhar a guerra em Cantão, primeiro.
Sim. Não há nenhuma falha. Diabo, você quase colocou em risco um futuro brilhante. Decerto, será ir além das instruções, mas os governadores e plenipotenciários têm poderes não escritos. Não podemos esperar até o próximo ano para implantar a vontade de Sua Majestade sobre os pagãos. Absolutamente, não. O esquema relativo às sementes de chá se enquadra muito bem no plano, e mostra um sentido de previsão em escala que até ultrapassa a do Tai-Pan.
Longstaff teve um fortíssimo impulso de contar a Struan a respeito das sementes. Mas se controlou.
— Acho que tem razão. Vou fazer uma comunicação, imediatamente.
— Por que não convoca uma reunião de tai-pans para amanhã? Dê-lhes dois dias para apresentar as contas da construção e da terra ao seu tesoureiro. Marque a nova venda de terras para daqui a uma semana. Isto lhe dará tempo para mandar demarcar os lotes. Suponho que desejará o novo local da cidade próximo ao Cabo Glessing
— Sim. É exatamente o que eu penso. Aquele será o melhor lugar. Afinal, nós o consideramos há muito tempo. — Longstaff ergueu-se e se serviu de mais xerez, depois puxou o cordão do sino. — Como sempre, estou satisfeito por ouvir os seus conselhos, Dirk. Vai ficar para o almoço, não?
— É melhor eu ir embora. Sarah está partindo para a Inglaterra com a maré de amanhã, a bordo do Calcutta Mahrajah, e há muita coisa a ser feita.
— Foi muita má sorte. O caso de Robb e sua sobrinha.
A porta se abriu.
— Sim, senhorrr? — perguntou o mestre-d’armas.
— Pergunte ao general se vem almoçar comigo.
— Sim, senhorrr. Desculpe, senhorrr, mas a Sra. Quance está esperando para vê-lo. E o Sr. Quance. E há todas essas pessoas — ele deu a Longstaff uma longa lista de nomes
— que vieram marcar encontros. Devo dizer que está ocupado à Sra. Quance?
— Não. É melhor eu vê-la agora. Por favor, não vá ainda, Dirk. Acho que vou precisar de apoio moral.
Maureen Quance entrou. Aristotle Quance seguiu-a. Havia círculos negros sob seus olhos sem vida. Agora, ele era simplesmente um homenzinho desmazelado. Pois até suas roupas estavam sujas e sem graça.
— Bom-dia, Sra. Quance — disse Longstaff.
— Que os santos protejam Sua Excelência.
— Bom-dia, Excelência — disse Aristotle, com a voz mal audível, os olhos fixos no chão da cabina.
— Bom-dia, Tai-Pan — disse Maureen. — Sua conta será paga, com a graça de São Patrício, dentro de alguns dias.
— Não há pressa. Bom-dia, Aristotle.
Aristotle Quance, devagar, ergueu os olhos para Struan. Eles se encheram de lágrimas, quando percebeu o afeto no rosto de Struan.
— Ela quebrou todos os meus pincéis, Dirk — desabafou. — Hoje de manhã. Todos, E ela... ela atirou minhas tintas ao mar.
— É a respeito disso que viemos ver o senhor, Excelência — disse Maureen, com voz rouca. — O Sr. Quance decidiu desistir de toda essa tolice de pintura, afinal. Ele quer se ajeitar num bom emprego fixo. E foi a respeito do emprego que viemos falar a Sua Excelência. — Olhou para o marido e seu rosto demonstrou aborrecimento. — Qualquer coisa. Desde que seja fixa e dê um bom salário. — Tornou a se virar para Longstaff. — Talvez um bom emprego de escritório. O pobre Sr. Quance não tem muita experiência.
— Ah... é o que quer, Aristotle?
— Ela quebrou meus pincéis — disse Quance, desamparadamente. — Era tudo que eu possuía. Meus pincéis e tintas.
— Nós entramos em acordo, não foi meu caro? Em nome de tudo que é. sagrado? Hein? Parar com a pintura? Um bom emprego fixo e assumir suas responsabilidades para com a família, nada mais de vagabundagem.
— Sim — disse Aristotle, entorpecidamente.
— Eu ficaria satisfeito de oferecer um emprego, Sra. Quance — interveio Struan. — Preciso de um funcionário. O salário é de quinze xelins por semana. Oferecerei, de quebra, suas instalações no pontão, por um ano. Depois disso, ficarão por conta própria.
— Que os santos o protejam, Tai-Pan. Feito. Agora, agradeça ao Tai-Pan — disse Maureen.
— Obrigado, Tai-Pan.
— Esteja no escritório às sete, amanhã de manhã, Aristotle. Pontualmente.
— Ele estará lá, Tai-Pan, não se preocupe. Que as bênçãos de São Patrício lhe caiam sobre a cabeça, nesses tempos perturbados, por cuidar de uma pobre esposa e de seus filhos famintos. Bom-dia para ambos.
E foram embora. Longstaff serviu-se de uma dose dupla.
— Meu Deus! Eu nunca teria acreditado. Pobre, pobre Aristotle. Você realmente vai fazer de Aristotle Quance um funcionário de escritório?
— Sim. É melhor eu do que outra pessoa qualquer. Preciso de pessoal — Struan pôs
o chapéu na cabeça, muito satisfeito consigo mesmo. — Não me meto em briga de marido e mulher. Mas qualquer pessoa que faz isso com o velho Aristotle não tem direito ao título de “mulher”, por Deus!
Longstaff sorriu, de repente.
— Destaco uma nau capitania, se isto ajudar. E todos os recursos do Governo de Sua Majestade estão à sua disposição.
***
Struan correu para a praia. Fez sinal para uma liteira fechada e orientou os cules.
— Esperem, está bem? — disse, ao chegarem ao destino.
— Está bem, senhor.
Passou pelo surpreendido porteiro, na sala da casa. O aposento era atapetado — grandes sofás, cortinas de chintz, espelhos e bricabraque. Houve um farfalhar nos fundos, e depois, ruído de passos que se aproximavam. Uma pequena senhora idosa atravessou as cortinas de contas. Era limpa, engomada, com cabelos grisalhos, olhos grandes e óculos.
— Olá, Sra. Fortheringill — disse Struan, cortesmente.
— Olá, Tai-Pan, quanto prazer em vê-lo — disse ela. — Não tínhamos o prazer de sua companhia há muitos anos. É um pouco cedo para visitas, mas as moças estão se aprontando. — Ela sorriu e mostrou os dentes postiços, amarelos.
— Bom, sabe, Sra. Fortheringill...
— Compreendo perfeitamente, Tai-Pan — ela disse, com ar sábio. — Chega uma hora, na vida de todo homem, em que ele...
— Vim falar de um amigo meu.
— Não se preocupe, Tai-Pan, o sigilo é norma neste estabelecimento. Não precisa se preocupar. Num momentinho, será atendido. — Ela se levantou às pressas. — Moças! — gritou.
— Sente-se e escute! Vim falar de Aristotle!
— Ah, aquele pobre coitado se meteu numa tremenda confusão.
Struan lhe disse o que queria, e as moças ficaram tristes ao vê-lo ir embora.
Logo que ele chegou em casa, May-may disse:
— Por que você foi a um puteiro, hein?
Ele suspirou e lhe contou.
— Acha que acredito nisso, hein? — Os olhos dela estavam cheios de desprezo.
— Sim. É melhor acreditar.
— Acredito em você, Tai-Pan.
— Então pare de fazer essa cara de dragão! — ele entrou em seu quarto.
— Muito bem — disse May-may, fechando a porta atrás de ambos. — Agora vamos ver se você disse a verdade. Faça amor imediatamente. Estou desejando você loucamente, Tai-Pan.
— Obrigado, mas estou ocupado — ele disse, achando difícil não rir.
— Ayeeee yah que você está ocupado! — ela disse, começando a desabotoar seu pijama cor-de-mel. — Vamos fazer amor imediatamente. Logo verei se alguma puta tirou sua força, por Deus! E, então, sua velha mãe vai cuidar de você, por Deus!
— Você também está ocupada — disse Struan.
— Estou muito ocupada. — Ela saiu de dentro das calças de seda. Seus brincos tiniam como sinos. — E é melhor você se ocupar logo.
Ele a examinou e não deixou transparecer nem um pouco de sua felicidade. O estômago de May-may estava com uma bela curva, com a criança de quatro meses no útero. Ele a tomou depressa nos braços e beijou-a violentamente, deitando-se na cama e deixando que seu peso a esmagasse um pouco.
— Cuidado, Tai-Pan — ela disse, sem fôlego — não sou nenhuma de suas ossudas
gigantes bárbaras! Beijar não prova nada. Tire as roupas e então veremos a verdade. Ele a beijou de novo. Então ela disse, com voz diferente:
— Tire a roupa.
Ele se apoiou nos cotovelos, olhou para ela e, depois, esfregou o nariz contra o de May-may, sem a pressionar mais.
— Não há tempo, agora. Preciso ir a uma festa de noivado, e você tem de fazer as malas.
— Fazer as malas para quê? — ela perguntou, espantada.
— Vamos nos mudar para o Resting Cloud.
— Por quê?
— Nosso feng-shui está ruim aqui, garota.
— Ah, ótimo, que maravilha! — ela atirou os braços em torno do pescoço dele. — Ir mesmo embora daqui? Para sempre?
— Sim.
Ela o beijou, deslizou rapidamente para fora de seus braços e começou a se vestir.
— Pensei que você queria fazer amor — ele disse.
— Ora! Para que serve essa prova? Conheço você muito bem. Mesmo que tivesse andado com uma puta há uma hora, você é macho bastante para fingir e enganar sua pobre velha mãe. — Ela riu e atirou outra vez os braços em tomo do pescoço dele. — Ah, que bom deixar um feng-shui ruim. Vou fazer as malas correndo.
Ela correu à porta e gritou:
— Ah Sam-ahhhhhhh!
Ah Sam chegou às pressas, ansiosa, seguida por Lim Din e, depois de um tumulto, gritos e tagarelice, Ah Sam e Lim Din saíram a toda, invocando os deuses, com enorme e barulhenta excitação. May-may voltou, sentou-se na cama e se abanou com o leque.
— Já estou fazendo as malas — disse alegremente. — Agora, vou ajudar você a se vestir.
— Obrigado, eu mesmo posso fazer isso.
— Então, vou ficar espiando. Esfregue bem as costas. O banho está à espera. Estou muito alegre e cheia de benevolência, porque você decidiu ir embora.
Conversava animadamente, enquanto ele tirava a roupa. Após ele se banhar, ela gritou, pedindo toalhas quentes e, ao chegarem, enxugou-lhe as costas. O tempo todo, pensava se ele estivera com uma prostituta, após combinar as coisas referentes ao artistazinho engraçado que pintara um retrato seu tão lindo. Não que eu me incomode, disse a si mesma, esfregando-o vigorosamente. Só que ele não deveria ir a um desses lugares. Absolutamente não. Prejudica seu prestígio. E prejudica o meu. Muito ruim. Logo esses miseráveis criados vão começar a espalhar boatos de que eu não posso cuidar do meu homem. Ah, deuses, dai-me proteção contra os sujos boatos e a ele contra as sujas putas de todos os tipos.
Anoiteceu antes que ela, Ah Sam e Lim Din estivessem prontos e todos ficaram exaustos com o drama e a excitação da partida. Cules levaram a bagagem. Outros esperaram pacientemente, ao lado da liteira que a conduziria ao escaler.
May-may usava pesados véus. Ela ficou por um momento no portão do jardim, com Struan, e olhou para trás, para sua primeira casa em Hong Kong. Se não fosse o feng-shui ruim — e a febre era parte do feng-shui — teria detestado partir.
O crepúsculo estava agradável. Alguns mosquitos zumbiam em torno deles. Um se instalou em seu tornozelo, mas ela não notou.
O mosquito bebeu sangue até se fartar, e depois saiu voando.
***
Struan entrou na grande cabina do Withe Witch. Os Brocks estavam todos esperando por ele, exceto Lillibet, que já fora para a cama. Culum se encontrava ao lado de Tess.
— Boa-noite — disse Struan. — Sarah manda pedir desculpas. Ela não se sente bem.
— Bem-vindo a bordo — disse Brock, com voz rouca e carregada de preocupação, o rosto melancólico.
— Bom — disse Struan com uma risada — isto não é maneira de iniciar um evento feliz.
— Não é a ocasião, por Deus, como sabe muito bem. Estamos todos em bancarrota... pelo menos terrivelmente prejudicados pela maldita malária.
— Sim — disse Struan. Sorriu para Culum e Tess e, notando a inquietação dos dois, decidiu dar-lhes logo a boa notícia. — Segundo ouvi dizer, Longstaff vai ordenar que a Cidade da Rainha seja abandonada — comentou, despreocupadamente.
— Pelo sangue de Cristo! — explodiu Gorth. — Não podemos abandoná-la. Colocamos dinheiro demais na terra e nas construções. Não podemos abandonar aquilo. Se não fosse a maldita escolha que fez, daquele vale amaldiçoado, nós não...
— Cale a boca — disse Brock. Virou-se para Struan. — Você vai perder mais do que nós, por Deus, mas está com um sorriso nos lábios. Por quê?
— Papai — disse Tess, aterrorizada com a possibilidade de que a raiva estragasse a noite, e a inacreditável aceitação de Culum por seu pai — vamos beber alguma coisa? O champanha está fresco e pronto.
— Sim, claro, Tess, amor — disse Brock. — Mas não entende o que Dirk disse? Vamos perder uma quantidade terrível de dinheiro. Se tivermos de abandonar o local, então nosso futuro vai ser negro como breu. E o dele também, por Deus!
— O futuro da Casa Nobre será branco como os rochedos de Dover — disse Struan, tranqüilamente. — E não só o nosso, como o de vocês também. Longstaff vai reembolsar a todos nós do dinheiro que gastamos no Vale Feliz. Cada tostão. À vista.
— Não é possível! — exclamou Brock.
— É uma mentira, por Deus! — disse Gorth. Struan virou-se para ele. — Ouça um conselho, Gorth. Não me chame de mentiroso pela segunda vez. — Então, disse-lhe o que Longstaff pretendia fazer.
Culum ficou maravilhado com a perfeição do acerto. Viu claramente que, embora seu pai em nenhum momento insinuasse que influenciara a decisão de Longstaff, deveria ter colaborado para tudo ser ajeitado de maneira tão sutil. Lembrou-se de seu primeiro encontro com Longstaff, e de como seu pai manipulara o homem, como a um fantoche. A fé de Culum em si mesmo ficou abalada. Percebeu que as palavras de Gorth não eram completamente verdadeiras, ele nunca poderia dominar Longstaff como seu pai fizera — para salvá-los outra vez.
— É quase um milagre — disse, e segurou a mão de Tess.
— Por tudo que é sagrado, Tai-Pan — falou Gorth — retiro o que disse. Desculpe... eu estava sob o efeito do choque. Sim... eu lhe dou os parabéns.
— Dirk — começou Brock, com um sombrio bom humor — estou satisfeito... muito satisfeito, por ter você como parente. Você salvou nossa situação, Deus é testemunha.
— Não fiz nada. Foi idéia de Longstaff.
— Muito bem — disse Brock, sardonicamente.— Mais poder para ele. Liza, bebidas, por Deus! Dirk, você nos deu uma grande razão para comemorar esta noite. Você fez a noite, por Deus! Então, vamos beber e festejar. — Pegou uma taça de champanha, e depois de todos apanharem suas taças, ergueu a dele, num brinde. — Para Tess e Culum, que tenham sempre em sua vida mar calmo e porto seguro.
Todos beberam. Então Brock apertou a mão de Culum, Struan abraçou Tess e houve amizade entre todos.
Mas só temporariamente. Todos sabiam disso. Mas aquela noite estavam preparados para esquecer. Só Tess e Culum se sentiam seguros.
Todos se sentaram para jantar. Tess usava um vestido que favorecia sua silhueta juvenil, e Culum estava quase louco de adoração. Mais vinho foi servido, e houve novas risadas e brindes. Num momento de calma, Struan pegou um envelope grosso e entregou o a Culum. -Um pequeno presente para os dois.
— O que é? — perguntou Culum.
Abriu o envelope. Tess espichou o pescoço para ver também. O envelope continha um maço de papéis, um deles cheio de caracteres chineses.
— É a escritura de um lote de terra, logo acima do Cabo Glessing.
— Mas nunca houve venda de terras ali — disse Brock, com suspeita.
— Sua Excelência aprovou certos títulos de chineses da vila que possuíam terras antes de nos apoderarmos de Hong Kong. Este é um deles. Culum, agora você e Tess têm um acre juntos. A vista é muito bonita. Ah, sim, e junto com a escritura, há material de construção suficiente para uma casa com sete quartos, um jardim e um alpendre.
— Ah, Tai-Pan — disse Tess, com um sorriso cheio de felicidade — obrigada! Obrigada!
— Nossa própria terra? E nossa própria casa? É mesmo verdade? — perguntou Culum, tonto com a magnanimidade do pai.
— Sim, rapaz. Pensei que gostaria de começar a construir imediatamente. Marquei um encontro para ambos com nosso arquiteto amanhã, ao meio-dia. Para começar o projeto.
— Vamos partir para Macau amanhã — disse Gorth, com azedume.
— Mas, Gorth, você não se importaria de adiar a viagem por um ou dois dias, não é? — disse Culum. — Afinal, isto é muito importante...
— Ah, sim — disse Tess.
— ... e com a solução para o caso da Cidade da Rainha e a venda de terras... — Culum parou e se virou, cheio de excitação, para sua noiva. — Sousa é o melhor arquiteto do Oriente.
— Nosso arquiteto, Remédios, é melhor, eu acho — disse Brock, furioso consigo mesmo por não ter pensado em deixá-los construir sozinhos uma casa. Planejara dar-lhes uma das casas da companhia em Macau, como presente de casamento, bem longe da influência de Struan.
— Ah, sim, ele é muito bom, Sr. Brock — disse Culum, depressa, percebendo o ciúme. — Se não ficarmos satisfeitos com Sousa, então poderemos procurá-lo. — Depois, para Tess: — Você concorda? — e, em seguida, para Struan: — Não posso agradecer a você o bastante.
— Não agradeça, Culum. Os jovens devem ter um bom começo na vida e casa própria para morar. — Struan estava encantado com a maneira como provocara Gorth e Brock.
— Sim — disse Liza, com indulgência. — Por Deus, é uma grande verdade. Brock pegou o título e examinou-o.
— Tem certeza de que este documento é legal? — perguntou.
— Não é regular.
— Sim. — Longstaff confirmou-o. Oficialmente. Seu carimbo está na última página.
Brock franziu a testa para Gorth, e suas sobrancelhas cerradas formaram uma barra negra no rosto curtido.
— Andei pensando que talvez seja bom examinarmos esses títulos de propriedade nativos.
— Sim — disse Gorth. Ele olhou diretamente para Struan.
— Talvez não haja mais nenhum à venda, papai.
— Creio que há outros, Gorth — disse Struan, descontraidamente — se você estiver preparado para descobri-los. A propósito, Tyler, logo que os novos lotes de terra tiverem sido demarcados, talvez seja melhor discutirmos nossa posição.
— Também acho — disse Brock. — Como antes, Dirk. Mas você escolhe primeiro, desta vez. — Passou outra vez a escritura a Tess, que a acariciou.
— Culum, você ainda é vice-secretário colonial?
— Acho que sim. — Culum riu. — Embora meus deveres jamais tenham sido especificados. Por quê?
— Por nada.Struan terminou de beber seu vinho e decidiu que era hora.
— Agora que o Vale Feliz será abandonado e o problema resolvido, com a nova cidade a ser erguida na costa da Coroa, o futuro de Hong Kong está garantido.
— Sim — disse Brock, expansivamente, com um pouco de seu bom humor voltando. Agora que a Coroa se arrisca, junto conosco.
— Então, acho que não há necessidade de adiar o casamento. Proponho que Tess e
Culum se casem nó próximo mês.
Houve um silêncio impressionante.
O tempo pareceu parar, para todos eles. Culum ficou imaginando o que havia por trás do sorriso que Gorth ostentava com tanta dificuldade e por que o Tai-Pan escolhera o próximo mês — Ó Deus, permiti que seja no próximo mês.
Gorth sabia que o próximo mês eliminaria seu poder sobre Culum e que, por Deus, isto não deveria ser aceito. Diga papai o que disser, jurou, não haverá casamento rápido. No próximo ano, talvez. Sim, talvez. O que haverá na mente desse demônio?
Brock também tentava adivinhar o objetivo de Struan — porque deveria haver um objetivo, e não augurava nada de bom para ele e nem para Gorth. Seu instinto lhe disse, imediatamente, para retardar o casamento. Mas ele jurara diante de Deus dar aos dois um porto seguro — como também Struan — e sabia que um juramento assim seria cumprido por Struan, como por ele.
— Poderíamos mandar ler os primeiros proclamas no próximo domingo — disse Struan, rompendo deliberadamente a tensão. — Acho que o próximo domingo seria ótimo. — Sorriu para Tess: — Hein, garota?
— Ah, sim. Sim — ela disse, e segurou a mão de Culum.
— Não — disse Brock.
— É rápido demais — retrucou Gorth.
— Por quê? — perguntou Culum.
— Eu estava justamente pensando em você, Culum — disse Gorth apaziguadoramente — e na triste perda de seu tio. Seria uma pressa inconveniente, muito inconveniente.
— Liza, amor — disse Brock com voz rouca — damos licença a você e Tess. Iremos encontrar as duas depois do vinho do Porto.
Tess atirou os braços em torno de seu pescoço e sussurrou:
— Ah, por favor, papai — e os quatro homens foram deixados a sós.
Brock levantou-se, pesadamente, e pegou a garrafa de Porto. Encheu quatro copos e os entregou a todos. Struan bebeu o vinho, apreciativamente.
— Muito bom Porto, Tyler. — É do ano de 31.
— Um grande ano para o Porto. Fez-se outro silêncio.
— Não será conveniente adiar sua partida por alguns dias, Sr. Brock? — perguntou Culum, constrangido. — Quero dizer, se for possível... mas eu, decerto, gostaria que Tess visse a terra e conversasse com o arquiteto.
— Com o abandono do vale, a venda de terras e todo o resto, não vamos partir agora. Pelo menos — disse Brock — Gorth e eu não iremos. Liza e Tess e Lillibet deverão ir, logo que possível.Macau é mais saudável neste período do ano. E mais fresco, não é, Dirk?
— Sim. Macau está ótima agora — disse Struan, acendendo um charuto. — Ouvi dizer que o inquérito sobre o acidente sofrido pelo arquiduque será na próxima semana.
— Olhou inquisitiva-mente para Gorth.
— Foi mau pagode — disse Brock.
— Sim — repetiu Gorth. — Armas estavam sendo disparadas por toda parte.
— Sim — disse Struan. — Logo depois que ele foi atingido alguém disparou no cabeça da multidão.
— Fui eu — disse Brock.
— Obrigado, Tyler — disse Struan. — Você também estava na luta Gorth?
— Eu estava lá na frente, cuidando da navegação.
— Sim — disse Brock. Tentou lembrar se vira alguém disparando. Só recordou ter mandado Gorth para a frente. — Mau pagode. Essas multidões desenfreadas são uma coisa terrível, numa ocasião dessas ninguém sabe o que pode acontecer.
— Sim — disse Struan. Sabia que, se a bala fora disparada intencionalmente, Gorth era o culpado. E não Brock. — Uma dessas coisas que acontecem.
As lâmpadas a óleo pendentes do caibro do telhado oscilaram suavemente para bombordo do navio, enquanto o vento mudava um pouco de posição. Os homens do mar, Gorth, Brock e Struan, ficaram repentinamente alertas. Brock abriu uma vigia e cheirou a brisa. Gorth foi espiar o mar pelas vigias da popa e Struan se pós à escuta dos ruídos do navio.
— Não é nada — disse Brock. — O vento mudou de posição alguns graus, nada mais.
Struan foi até o passadiço, onde estava pendurado um barômetro. Marcava 29.8 firme. A pressão do ar só variara uma fração, em semanas.
— Está bastante firme — disse.
— Sim — replicou Brock. — Mas logo não estará mais firme e, então, teremos de usar reforços. Já reparei que você colocou bóias de tempestade ao largo do seu ancoradouro, em águas profundas.
— Sim. — Struan serviu-se de mais Porto e ofereceu a garrafa a Gorth. — Quer um pouco mais?
— Obrigado — disse Gorth.
— Está farejando tempestade para breve, Dirk?
— Não, Tyler. Mas gosto de ter algumas bóias prontas, para qualquer eventualidade. Glessing ordenou que sejam postas as da frota.
— Sim.
— Ouvi boatos de que ele vai casar com a jovem irmã de Sinclair.
— Parece que o casamento está no ar.
— Acho que serão muito felizes — disse Culum. — George a idolatra.
— Vai ser muito duro para Horatio — disse Gorth — ela deixá-lo assim de repente. É a única parente que ele tem. E ela é jovem, não tem a idade mínima para o consentimento.
— Quantos anos ela tem? — perguntou Culum.
— Dezenove — respondeu Struan. A tensão aumentou na cabina.
— Tess é muito jovem — disse Culum, com a voz angustiada. — Eu não queria magoá-la de nenhuma maneira. Muito embora... bom, será que podemos... O que acha, Sr. Brock? A respeito do casamento? No próximo mês? O que for melhor para Tess está bom para mim.
— Ela é muito jovem, rapaz — disse Brock, tonto, com o vinho — mas estou satisfeito por você dizer isso.
Gorth manteve a voz em tom gentil e firme. — Alguns poucos meses não vão perturbar vocês dois, hein, Culum? O próximo ano está a menos de seis meses de distância.
— Janeiro é daqui a sete meses, Gorth — disse Culum, com impaciência.
— Não cabe a mim decidir. O que for bom para vocês dois é bom para mim, eu digo. — Gorth esvaziou seu copo e se serviu de um pouco mais. — O que você diz, papai? — perguntou ele, deliberadamente colocando Brock em evidência.
— Vou pensar a respeito — disse Brock, examinando seu copo com cuidado. — Ela é muito menina. A pressa seria imprópria. Vocês se conheceram há menos de três meses e...
— Mas eu a amo, Sr. Brock — insistiu Culum. — Três meses ou três anos não fariam nenhuma diferença.
— Eu sei, rapaz — disse Brock, com benevolência. Ele se lembrou da alegria que tomara conta de Tess, quando lhe disse que aceitaria Culum. — Só estou pensando em seu bem, no bem dela. Preciso de tempo para decidir. — Para descobrir o que você tem em mente, Dirk, disse a si mesmo.
— Acho que seria muito bom para eles e para nós. — Struan sentia a felicidade que irradiava de Culum. — Tess é jovem, sim. Mas Liza era jovem também e, igualmente, a mãe de Culum. Casar jovem é bom. Eles têm dinheiro bastante. E um futuro de riqueza. Com pagode. Então eu digo que vai ser bom. Brock esfregou a testa com as costas da mão.
— Vou pensar. Depois lhe digo, Culum. É uma idéia inesperada, por isso preciso de tempo.
Culum sorriu, tocado pela sinceridade que havia na voz de Brock. Pela primeira vez, gostava dele, confiava nele.
— Claro — disse.
— De quanto tempo você acha que precisará, Tyler? — perguntou Struan, abruptamente. “Viu que Culum estava amolecendo, diante da falsa amabilidade deles, e sentiu que uma pressão os faria mostrar as verdadeiras intenções. — Não devemos manter os jovens como peixes no anzol, e haverá muita coisa a planejar. Temos de fazer deste casamento o maior que a Ásia já viu.
— Pelo que me lembro — disse Brock, rispidamente — é o pai da noiva quem a dá em casamento. E eu tenho plena competência para saber o que está certo e o que não está. — Sabia que Struan o tinha no anzol, e brincava com ele. — Então, qualquer plano para o casamento será nosso.
— Claro — disse Struan. — Quando dará a notícia a Culum?
— Breve. — Brock se levantou. — Vamos para a companhia das senhoras.
— Breve, mas quando, Tyler?
— Você ouviu o que papai disse — falou Gorth, acaloradamente. — Por que o irritar, hein?
Mas Struan ignorou-o, e continuou a olhar para Tyler.
Culum teve medo de que houvesse uma briga e isto mudasse completamente a
maneira de pensar de Brock, em relação a seu casamento. Ao mesmo tempo, queria saber quanto teria de esperar e ficou satisfeito por Struan estar pressionando Brock.
— Por favor — disse. — Tenho certeza de que o Sr. Brock não... de que ele considerará a idéia com cuidado. Vamos esquecer o assunto, por enquanto.
— O que você quer fazer é com você, Culum! — disse Struan, com fingida raiva. — Mas eu quero saber agora. Quero saber se você está sendo usado, ou se estão brincando de gato e rato com você, por Deus!
— Você disse uma coisa terrível — comentou Culum.
— Sim. Mas não tenho mais nada para tratar com você, no momento, então fique calado. — Struan tornou a se virar para Brock, sabendo que, ao repreender Culum, satisfizera tanto Brock como Gorth. — Quanto tempo, Tyler?
— Uma semana. Uma semana, nem mais, nem menos. — Brock olhou para Culum e, outra vez, sua voz era benevolente.— Não há mal em pedir tempo, rapaz, e nem mal em pedir uma resposta de homem para homem. Isto é correto. Uma semana, Dirk. Será que o prazo acalmará seus maus modos?
— Sim. Obrigado, Tyler. — Struan caminhou para a porta e abriu-a, amplamente.
— Passe primeiro, Dirk.
***
Seguro, no recolhimento de seus alojamentos a bordo do Resting Cloud, Struan disse a May-may tudo que acontecera. Ela ouviu com atenção, deliciada.
— Ah, bom, Tai-Pan. Muito bom. Ele tirou o casaco e ela o pendurou no armário. Um pergaminho enrolado caiu da manga de sua túnica. Ele o apanhou e olhou-o.
O pergaminho tinha uma delicada pintura chinesa, uma aquarela, com muitos caracteres. Era uma bela paisagem marinha e havia um homenzinho a se curvar diante de uma mulherzinha, abaixo de grandes montanhas enevoadas. Uma sampana flutuava ao largo da praia pedregosa.
— De onde veio isso?
— Ah Sam trouxe do Tai Ping Shan — disse ela.
— É bonito — ele disse.
— Sim — disse May-may, calmamente, de novo maravilhada com a sutileza de seu avô.
Ele enviara o pergaminho para um de seus agentes no Tai Ping Shan, de quem May-may comprava jade, às vezes. Ah Sam aceitara-o sem suspeitas, como um presente casual para sua patroa. E, embora May-may tivesse certeza de que Ah Sam e Lim Din haviam examinado a pintura e os caracteres muito cuidadosamente, sabia que jamais descobririam a existência de uma mensagem secreta. Estava muito bem oculta. Mesmo o carimbo particular, da família de seu avô, estava inteligentemente coberto com outro. E o verso — Seis ninhos sorriem para as águias, o verde fogo faz parte do amanhecer. E a flecha prenuncia filhotes de esperança — era tão simples e tão belo. Quem iria saber que ele lhe agradecia pela informação referente aos seis milhões de taéis; que “fogo verde” significava o Tai-Pan; e que ele lhe enviaria um mensageiro levando alguma forma de flecha como identificação, para ajudá-la de todas as maneiras possíveis.
— O que significam os caracteres? — perguntou Struan.
— É difícil traduzir, Tai-Pan. Não sei todas as palavras, mas está escrito — Seis ninhos de passarinhos sorriem para grandes Pássaros, o fogo verde está no amanhecer, flecha traz — ela franziu a testa, procurando a palavra em inglês — traz pequenos pássaros de esperança.
— Isto não faz sentido, por Deus! — Struan riu. Ela suspirou, toda feliz.
— Adoro você, Tai-Pan.
— E eu adoro você, May-may.
— Da próxima vez em que construir uma casa para nós, quer fazer o favor de chamar primeiro um cavalheiro do feng shui?
CAPÍTULO TRINTA
Ao amanhecer, Struan foi a bordo do Calcutta Mahrajah, o navio mercante que ia levar Sarah para a Inglaterra. A embarcação pertencia à Companhia das Índias Orientais. Deveria partir com a maré, dentro de três horas, e os marinheiros faziam os preparativos finais.
Struan desceu e bateu à porta do camarote particular de Sarah.
— Entre — ele a ouviu dizer.
— Bom-dia, Sarah.
Ele fechou a porta. A cabina era grande e confortável. Brinquedos, roupas, malas e sapatos estavam espalhados por toda parte. Lochlin encontrava-se lamentosamente semiadormecido, num pequeno berço perto da vigia.
— Você já aprontou tudo, Sarah?
— Sim.
Ele pegou um envelope.
— É uma ordem de pagamento de cinco mil guinéus. Você receberá outro igual a cada dois meses.
— Você é muito generoso.
— O dinheiro é seu... pelo menos, é dinheiro de Robb, não meu. — Ele colocou o envelope sobre a mesa de carvalho. — Estou apenas cumprindo seu testamento. Já escrevi para que seja organizado o fundo de crédito que ele queria, e você receberá os papéis referentes a isso. Também pedi a papai para ir esperar o navio. Você gostaria de ocupar minha casa em Glasgow, até encontrar outra parecida?
— Não quero nada seu.
— Escrevi aos nossos banqueiros para aceitarem sua assinatura, mais uma vez seguindo as instruções de Robb, para a retirada de até cinco mil guinéus uma vez por ano, além do seu quinhão. Deve ter consciência de que é uma herdeira, e eu devo aconselhá-la a ser cuidadosa, pois muitos tentarão tomar-lhe a fortuna. Você é jovem e tem a vida pela frente...
— Não quero nenhum conselho seu, Dirk — disse Sarah em tom fulminante. — Quanto a tomarem o que é meu, sei cuidar de mim mesma. Sempre cuidei. E, a respeito de minha juventude, a olhei no espelho. Estou velha e feia. Sei disso, e você também. Estou gasta! E você fica sentado em seu maldito pedestal, jogando homem contra homem, mulher contra mulher. Está satisfeito por Ronalda ter morrido... ela deu tudo que podia, e ainda mais. E isto abre caminho maravilhosamente, para a próxima. Quem será? Shevaun? Mary Sinclair? Quem sabe a filha de um duque? Você sempre teve objetivos ambiciosos. Mas, quem quer que seja, será jovem e rica, e você a sugará até o bagaço, como fez com todos. Você se alimenta dos outros e nada dá em troca. Eu o amaldiçôo diante de Deus, e rezo para viver até cuspir em seu túmulo.
A criança começou a chorar, pateticamente, mas nenhum dos dois ouviu os gritos, enquanto olhavam um para o outro.
— Você se esquece de uma verdade, Sarah. Toda sua amargura vem de você achar que escolheu o irmão errado. E você tornou a vida de Robb um inferno, por causa disso. Struan abriu a porta e foi embora.
— Odeio a verdade — Sarah chorava para o vazio em torno dela.
***
Struan estava afundado, soturnamente, atrás de sua escrivaninha, no escritório da feitoria, odiando Sarah, mas compreendendo-a, e atormentado com a maldição dela.
— Será que me alimento dos outros? — disse alto, inadvertidamente. Olhou para o retrato de May-may. — Sim, suponho que sim. Será que é um erro? Eles não se alimentam de mim? O tempo todo? Quem está errado, May-may? Quem está certo?
Lembrou-se de Aristotle Quance.
— Vargas!
— Sim, senhor.
— Como vai o Sr. Quance?
— Está muito triste, senhor. Muito triste.
— Mande ele vir aqui, por favor.
Dentro em pouco, Quance aparecia à porta.
— Entre, Aristotle — disse Struan. — Feche a porta.
Quance fez como lhe fora ordenado e, depois, ficou em pé com um jeito infeliz, diante da escrivaninha. Struan falou, rapidamente.
— Aristotle, você não tem tempo a perder. Saia escondido da feitoria e vá até o cais. Há uma sampana esperando você. Embarque no Calcutta Mahrajah... vai partir dentro de uns poucos minutos.
— O que, Tai-Pan?
— A ajuda está aí, rapaz. Faça uma grande cena quando embarcar no Calcutta Mahrajah... acene, grite, enquanto estiver afastando-se do porto. Deixe todos saberem que você está a bordo.
— Deus lhe abençoe, Tai-Pan. — Um bruxuleio de luz voltou-lhe aos olhos. — Mas não quero partir da Ásia. Não posso ir embora.
— Há roupas de cule na sampana. Você pode passar para a lorcha do piloto, quando estiver fora do porto. Subornei a tripulação, mas não o piloto, então mantenha-se longe da vista dele.
— Com mil demônios! — Quance parecia ter crescido polegadas. — Mas... onde poderei esconder-me no Tai Ping Shan?
— A Sra. Fortheringill está à sua espera. Acertei uma permanência de dois meses. Mas você me deve o dinheiro que gastei, por Deus!
Quance atirou os braços em torno de Struan e soltou um berro, que Struan interrompeu.
— Pelo sangue de Cristo, tenha cuidado. Se Maureen tiver qualquer suspeita, vai tornar as nossas vidas um inferno e nunca irá embora.
— Tem toda razão — disse Quance, num sussurro gutural, e correu para a porta.
Parou logo. — Dinheiro! Vou precisar de dinheiro. Pode me emprestar algum, Tai-Pan? Struan já segurava uma pequena bolsa de ouro.
— Aqui tem cem guinéus. Vou acrescentar na sua conta.
A bolsa desapareceu no bolso de Quance. Aristotle abraçou Struan outra vez e atirou um beijo para o retrato sobre a lareira.
— Dez retratos da lindíssima May-may. Dez guinéus abaixo do meu preço normal,
por Deus. Ah, imortal Quance, eu o adoro! Livre! Livre, por Deus! Dançou uma Kankana e, depois, deu um grande salto e desapareceu.
***
May-may olhou para o bracelete de jade. Ela o levou para mais perto da luz do sol, que jorrava através da vigia, aberta, e examinou-o meticulosamente. Não se enganara quanto à seta que estava delicadamente entalhada nele, e nem quanto aos caracteres, que diziam: “Filhotes de esperança.”
— É um belo jade — ela disse, em mandarim.
— Obrigado, Suprema entre as Supremas — respondeu Gordon Chen, no mesmo idioma.
— Sim, muito lindo — respondeu May-may e devolveu-o a ele.
Gordon pegou o bracelete e gozou seu contato, por um momento, mas não tornou a colocá-lo em seu pulso. Em vez disso, atirou-o habilmente pela portinhola e ficou a observá-lo até desaparecer no mar.
— Eu ficaria honrado se o tivesse aceitado como presente, Suprema Senhora. Mas certos presentes pertencem à escuridão do mar.
— Você é muito sábio, meu filho — disse ela. — Mas não sou uma Suprema Senhora. Apenas uma concubina.
— Meu pai não tem esposa. Portanto, é a Suprema das Supremas.
May-may não respodeu. Ela ficara desconcertada, ao verificar que o mensageiro era Gordon Chen. E, não obstante o bracelete, decidiu ser muito cautelosa e falar através de enigmas, para o caso de ele ter interceptado o bracelete — como sabia também que Gordon Chen seria igualmente cauteloso e falaria através de enigmas.
— Quer chá?
— Seria muito trabalho, Mãe.
— Nenhum trabalho, meu filho — ela disse.
Foi para a cabina contígua. Gordon Chen seguiu-a e ficou maravilhado com a beleza de seu andar e com seus pequenos pés, a cabeça tonta com a delicadeza de seu perfume. Você a amou desde o primeiro momento em que a viu, disse para si próprio. Ela é uma criação sua, de certa maneira, pois foi você quem lhe deu a língua bárbara e pensamentos bárbaros.
Ele abençoou seu pagode por o Tai-Pan ser seu pai e seu respeito por ele ser imenso. Sabia que, sem este respeito, seu amor por May-may não poderia permanecer filial. O chá foi trazido e May-may dispensou Lim Din. Mas, por uma questão de decoro, permitiu a Ah Sam que ficasse. Sabia que Ah Sam não poderia entender o dialeto de Soochow, no qual recomeçou sua conversa com Gordon.
— Uma seta pode ser muito perigosa.
— Sim, Suprema Senhora, se estiver em mãos erradas. Está interessada na arte de atirar com o arco?
— Quando eu era muito pequena, costumávamos empinar papagaios, meus irmãos e eu. Uma vez, usei um arco, mas me assustou. Porém, suponho que, algumas vezes, o arco seja um presente dos deuses, e não represente perigo.
Gordon Chen pensou por um momento.
— Sim. Se estivéssemos nas mãos de um homem faminto, e ele quisesse caçar e atingir sua presa.
O leque de May-may movimentava-se graciosamente. Estava satisfeita por ele saber a maneira como sua mente funcionava; isto tornava a transferência de informações mais fácil e mais excitante.
— Um homem assim precisaria ser muito cuidadoso, se só tivesse uma possibilidade de atingir o alvo.
— É verdade, Suprema Senhora. Mas um caçador esperto tem muitas setas em sua aljava. — Que caça tinha de ser perseguida?, ele perguntou a si mesmo.
— Uma pobre mulher jamais poderá experimentar as alegrias masculinas da caça — ela disse, calmamente.
— O homem é o princípio yang... ele é o caçador, por escolha dos deuses. A mulher é o princípio yin... aquela para quem o caçador traz a comida a ser preparada.
— Os deuses são muito sábios. Muito. Ensinam ao caçador a caça que serve para alimentar e a que não serve.
Gordon Chen bebeu seu chá, delicadamente. Quererá ela dizer que deseja que alguém seja encontrado? Ou alguém seja caçado e morto? Quem será que ela quer encontrar? Quem sabe a última amante do tio Robb e sua filha? Provavelmente não, pois não haveria necessidade de tal sigilo — e, certamente, Jin-qua jamais me envolveria. Por todos os deuses, que poder tem esta mulher sobre a cabeça de Jin-qua? O que lhe fez, para forçá-lo a me ordenar — e, através de mim, todo o poder dos Tríades — a fazer o que ela quiser?
Então, um boato que ouvira assumiu seu sentido: o boato de que Jin-qua sabia, antes de todos os outros, que a frota voltaria imediatamente a Cantão, e não iria para o norte, como todos haviam suposto que faria. Ela deveria ter mandado a informação em particular a Jin-qua, e assim o colocara em posição de seu devedor! Ayeee yah, e que dívida! Saber antecipadamente de uma coisa dessas certamente poupara a Jin-qua três ou quatro milhões de taéis.
Seu respeito por May-may aumentou.
— Algumas vezes, o caçador tem de usar suas armas para se proteger contra os animais selvagens da floresta — disse, oferecendo-lhe uma abertura diferente. — É verdade, meu filho. — Seu leque se fechou abruptamente e ela estremeceu. — Que os deuses protejam uma pobre mulher contra esses males.
Então, ela quer que alguém seja morto, pensou Gordon. Examinou a xícara de porcelana e ficou imaginando quem.
— O pagode determina que o mal caminhe em muitos lugares. Elevados e baixos. No continente, nesta ilha.
— Sim, meu filho — disse May-may, e seu leque adejava, os lábios tremiam ligeiramente. — Até mesmo no mar. Até entre aqueles de nobre estirpe e os muito ricos. Terríveis são os caminhos dos deuses.
Gordon Chen quase deixou a xícara cair. Ele se virou de costas para May-may e tentou recompor seu espírito abalado. “Mar” e “de nobre estirpe” só poderiam significar duas pessoas. Longstaff ou o próprio Tai-Pan. Dragões da morte, ir de encontro a qualquer um dos dois precipitaria um holocausto! Seu estômago deu voltas. Mas por quê?
E seria o Tai-Pan? Não o meu pai, ó deuses. Não permiti que seja meu pai.
— Sim, Suprema Senhora — disse ele, com um traço de melancolia, pois sabia que seu juramento o comprometia a fazer qualquer coisa que ela ordenasse. — Os deuses têm caminhos terríveis.
May-may observara a repentina mudança em Gordon Chen e não conseguia entender
o motivo. Hesitou, desconcertada. Depois, levantou-se e caminhou para as vigias da popa.
A nau capitania estava tranqüilamente ancorada no porto, com sampanas a cercá-la, no mar cintilante. O China Cloud encontrava-se mais além, com âncoras de tempestade, tendo próximo o White Witch.
— Os navios são tão lindos — ela disse. — Qual você acha mais interessante?
Ele se aproximou das vigias. Não pensou que poderia ser Longstaff. Não haveria nenhum objetivo nisso, não para ela. Para Jin-qua, talvez, mas não para ela.
— Acho que é aquele — disse ele, gravemente, fazendo um aceno de cabeça em
direção ao China Cloud. May-may arquejou e deixou cair o leque.
— Pelo sangue de Cristo — disse, em inglês. Ah Sam ergueu os olhos, por um momento, e May-may recuperou instantaneamente o controle. Gordon Chen pegou o leque e fez uma profunda curvatura ao devolvê-lo a ela.
— Obrigada — ela continuou, em dialeto Soochow. — Mas prefiro aquele navio. — Apontou com o leque para o White Witch. Ainda estava abalada por perceber, horrorizada, que Gordon Chen pensava ser seu desejo a morte do adorado Tai-Pan. — O outro é jade valiosíssimo. De valor incalculável, entende? Inviolável, por todos os deuses. Como ousa ter a impertinência de pensar de outra maneira?
O alívio dele foi palpável.
— Perdoe-me, Suprema Senhora. Eu me prosternaria mil vezes, em abjeto pedido de desculpas, aqui e agora, mas sua escrava poderia achar curioso — disse, numa apressada mistura de palavras em Soochow e Mandarim, deliberadamente misturadas. — Por um momento, um demônio entrou em minha tola cabeça e não a entendi claramente. Claro que jamais, jamais consideraria uma comparação entre esses navios, um contra o outro.
— Sim — ela disse. — Se um fio de corda de cânhamo, se uma lasca de madeira fossem tocados no outro, eu seguiria quem tivesse ousado desafiar uma coisa tão preciosa até às profundezas do inferno, e ali dilaceraria seus testículos e lhe arrancaria os olhos e o faria comer as próprias entranhas!
Gordon Chen piscou, mas manteve a voz em tom casual.
— Não tema, Suprema Senhora. Não tema, de maneira alguma. Eu me prosternarei cem vezes, em penitência, por não ter entendido a diferença entre jade e madeira. Eu não quero jamais sugerir... eu não quero que pense que não entendo.
— Ótimo.
— Se me dá licença agora, Suprema Senhora, vou cuidar dos meus negócios.
— Seu negócio não terminou — ela disse, rudemente. — E a boa educação sugere que tomemos mais chá. — Bateu palmas majestosamente para Ah Sam, e mandou-a trazer chá novo. E toalhas quentes. Quando Ah Sam voltou, May-may falou em cantonês:
— Ouvi dizer que muitos navios estarão partindo para Macau muito em breve — disse ela, e Gordon Chen, imediatamente, entendeu que Brock deveria ser liquidado em Macau, e imediatamente.
Ah Sam se animou.
— Acha que iremos? Ah, adoraria ver Macau outra vez. — Ela sorriu, timidamente, para Gordon Chen. — Conhece Macau, nobre senhor?
— Claro — ele disse.
Normalmente, uma escrava não teria ousado dirigir-se a ele. Mas sabia que Ah Sam era a confidente pessoal de May-may e sua escrava particular e, como tal, tinha múltiplos privilégios. Também a achou muito bonita — para uma barqueira Hoklo. Tornou a olhar para May-may.
— Infelizmente, não poderei ir este ano. Embora muitos de meus amigos naveguem sempre de cá para lá.
May-may fez um sinal afirmativo com a cabeça.— Ouvi dizer que a noite passada o filho bárbaro de Papai ficou noivo? Pode imaginar uma coisa dessas? Com a filha de seu inimigo. Gente extraordinária, esses bárbaros.
— Sim — disse Gordon, surpreso por May-may achar necessário tornar mais clara a remoção de Brock. Não iria ela querer a destruição de toda família, não? — Inacreditável.
— Não que eu me preocupe com o pai... ele é velho e, se os deuses forem— justos, seu pagode acabará em breve. — May-may atirou a cabeça para trás e fez tilintarem seus ornamentos de jade e prata. — Quanto à moça, suponho que fará bons filhos... embora, realmente, eu não possa imaginar o que qualquer homem possa apreciar naquela coisa de pernas grossas e peito de vaca.
— Sim — disse Gordon Chen, em tom amável.
Então, não é Brock quem deve ser morto. E nem a filha. Isto deixa de fora a mãe e o irmão. A mãe é bastante improvável; portanto, deverá ser o irmão. Gorth. Mas por que só
o irmão, por que só Gorth Brock? Por que não pai e filho? Obviamente, ambos são um perigo para o Tai-Pan. O respeito de Gordon por seu pai aumentou imensamente. Como era sutil fazer parecer que May-may era a instigadora do estratagema! Que sinuosidade deixar escapar uma sugestão a May-may, que foi a Jin-qua, que veio a mim! Que sutileza! Claro, disse a si próprio, isto significa que o Tai-Pan sabia que May-may passava informações secretas — deveria ter, deliberadamente, dado a ela informação, para colocar Jin-qua como seu devedor. Mas será que ele, conseqüentemente, sabe a respeito dos Tríades? E de mim? Claro que não.
Sentiu-se muito cansado. Sua mente estava esgotada de tanta excitação e perigo. E ele estava muito preocupado com a pressão crescente que os mandarins exerciam contra os Tríades em Kwangtung. E os Tríades de Macau. E até no Tai Ping Shan. Os mandarins contavam com muitos agentes entre os habitantes do morro e, embora a maior parte deles fosse conhecida e quatro já tivessem sido liquidados, a ansiedade provocada por sua presença pesava muito sobre ele. Se chegassem a saber que era o líder da Tríade de Hong Kong, jamais poderia voltar a Cantão, e sua vida aqui não valeria as fezes do proprietário de uma sampana.
Além disso, seus sentidos estavam dominados pelo sutil perfume de May-may e pela clamorosa sexualidade de Ah Sam. Gostaria de levar a criada para a cama, pensou. Mas isto não é aconselhável, e é perigoso. A não ser que a Mãe sugira. É melhor voltar correndo para o Tai Ping Shan, para os braços da concubina mais valiosa do morro. Por todos os deuses, ela quase vale os mil taéis que custou. Faremos amor dez vezes esta noite, de dez maneiras diferentes. Sorriu para si mesmo. Seja honesto Gordon, serão apenas três vezes. E três com pagode — mas como será maravilhoso!
— Sinto muito não poder ir para Macau — ele disse. — Suponho que todos os parentes de Papai, através do casamento, estarão indo, não? Particularmente o filho?
— Sim — disse May-may, com um doce suspiro, percebendo que sua mensagem agora estava clara — suponho que sim.
— Ah! — disse Ah Sam, com desprezo. — Haverá grande felicidade quando o filho partir de Hong Kong.
— Por quê? — perguntou May-may, com atenção, e Gordon Chen ficou igualmente alerta, sua fadiga desaparecendo. Ah Sam guardara a informação rara para uma ocasião importante como aquela.
— Esse filho é um verdadeiro demônio bárbaro. Ele vai para um dos bordéis bárbaros duas ou três vezes por semana. — Ela parou e serviu mais chá.
— Bom, continue, Ah Sam — disse ela, com impaciência.
— Ele as espanca — disse, em tom de importância.
— Talvez desagradem a ele — disse May-may. — Um bom espancamento jamais poderia magoar uma daquelas putas bárbaras.
— Sim. Mas ele as açoita e espezinha antes de se deitar com elas.
— Você quer dizer, todas as vezes? — perguntou May-may, com incredulidade.
— Todas as vezes — disse Ah Sam. — Ele paga pelo espancamento e depois pela... pela... bom, pela manipulação... pois o resto é apenas isso. Pffff! E então tudo acaba — estalou o dedo — assim!
— Ah! E como você sabe de tudo isso, hein? — perguntou May-may. — Acho que você merece um bom beliscão. Acho que você está inventando isso tudo, sua faladora!
— Claro que não, Mãe. Aquela madame bárbara... a velha feiticeira, com um nome incrível? A que tem olhos de vidro e os incríveis dentes que se deslocam?
— Fortheringill? — perguntou Gordon Chen.
— Exatamente, nobre senhor. Fortheringill. Bom, aquela madame tem a maior casa da Cidade da Rainha. Recentemente, ela comprou seis moças Hoklo e uma cantonesa. Uma das...
— Foram cinco moças Hoklo — disse Gordon Chen.
— Também está nesse negócio? — perguntou May-may, polidamente.
— Ah, sim — ele respondeu. — Tornou-se muito lucrativo.
— Continue, Ah Sam minha bonequinha.
— Bom, Mamãe, como eu estava dizendo, uma das moças Hoklo é parente de Ah Tat que, como sabe, é parente de minha mãe, e essa moça foi destacada para ser a parceira dele, por uma noite. Uma vez foi o bastante! — Ah Sam baixou a voz, ainda mais. — Ele quase a matou. Bateu-lhe na barriga e nas nádegas até sair sangue e, depois, forçou-a a fazer coisas esquisitas com o sexo. Depois...
— Que coisas esquisitas? — perguntou Gordon Chen, em igual sussurro, inclinando-se para mais perto.
— Sim — disse May-may — que coisas?
— Certamente não cabe a mim contar práticas tão estranhas e obscenas, ah, meu Deus, não, mas ela teve de usar todas as partes de seu corpo para satisfazer a ele.
— Todas?
— Todas, Mamãe. E com os terríveis espancamentos e a maneira como ele a mordeu e chutou e maltratou, a pobre moça quase morreu.
— Que extraordinário! — Depois, May-may disse a ela, rudemente: — Ainda acho que você está inventando, Ah Sam. Não tinha dito que isto era tudo — estalou os dedos, imperiosamente — pfff! e só isso, para ele?
— É isso mesmo. E ele sempre culpa, horrivelmente, a moça, embora não seja nunca por causa dela. Esse é o problema principal. Isso, e o fato de ser tão pequeno e mole. — Ah Sam ergueu as mãos para o céu e começou a se lamentar: — Que eu nunca tenha filhos, se menti! Que meus ancestrais sejam consumidos pelos vermes, se menti! Que meus ancestrais jamais descansem em paz, e nunca renasçam, se menti! Que...
— Ah, está bem, Ah Sam — disse May-may, irritada. — Acredito em você. Ah Sam, melindrosamente, voltou a tomar seu chá.
— Como ousaria mentir para minha soberba mãe, e seu nobre parente? Mas acho que os deuses, com certeza, irão punir uma fera bárbara como aquela!
— Sim — disse Gordon Chen.
E May-may sorriu para si mesma.
LIVRO V
Aquela tarde, Struan embarcou no China Cloud. Enviou o Capitão Orlov para uma das lorchas e Zergeyev para alojamentos espaçosos no Resting Cloud. Mandou desfraldar todas as velas e soltar as amarras e saiu do porto, dirigindo-se a águas profundas.
Durante três dias, arremessou o China Cloud, como uma flecha, em direção a sudoeste, com as vergas rangendo, devido ao pano estar todo inflado.
Foi para o mar a fim de se purificar. Limpar as impurezas e as palavras de Sarah e a perda de Robb e Karen.
E abençoar May-may pela alegria que ela representava.
Foi para o seio do oceano como um amante afastado há uma eternidade, e o oceano lhe deu as boas-vindas com ventos e tempestade, mas controlados, jamais colocando em risco o navio e nem a ele, que o dirigia. O mar lhe ofertou generosamente sua riqueza, fortalecendo-o outra vez, dando-lhe vida, dando-lhe dignidade e abençoando-o como só o mar pode abençoar um homem, purificando-o como só o oceano pode purificar um homem.
Arremessava a si próprio como ao navio, sem dormir, testando os limites de sua força. E os turnos dos marinheiros se sucediam, com ele sempre a caminhar pelo tombadilho: de sol a sol, cantando baixinho para si mesmo, quase sem se alimentar. E sem falar jamais, exceto para exigir mais velocidade, ou ordenar que fosse substituído um jovem roto ou desfraldada outra vela. Arremessou-se para as profundezas do Pacífico, para o infinito.
No quarto dia, deu a volta e impeliu o navio, durante a metade do dia, em direção a noroeste. Depois, colocou-o à capa e desceu, fez a barba, tomou banho, dormiu durante um dia e uma noite e, na madrugada seguinte, comeu uma refeição completa. Em seguida, foi para o convés.
— Bom-dia, senhorrrr — disse Cudahy.
— Tome o curso de Hong Kong.
— Sim, senhorrrr.
Ficou no tombadilho o dia inteiro e parte da noite e, mais uma vez, dormiu. Ao amanhecer, observou o sol e fez uma marca no mapa, determinando outra vez que o navio fosse colocado à capa. Então mergulhou por sobre a amurada e nadou nu no mar. Os marinheiros fizeram o sinal-da-cruz, supersticiosamente. Havia tubarões nadando em torno.
Mas os tubarões se mantiveram à distância:
Tornou a subir a bordo e ordenou que o imaculado navio fosse lavado e os conveses esfregados — com areia, escova e água — o cordame substituído, as velas cuidadas, embornais e canhões limpos. Sua própria roupa e a dos homens ele atirou por sobre a amurada. Entregou novos trajes aos marinheiros e pegou roupas de marinheiro para si mesmo.
Foi servida a todos uma dose dupla de rum.
Ao amanhecer do sétimo dia, Hong Kong apareceu no horizonte, bem em frente. O Cume estava amortalhado em neblina. Havia cirros no alto e nuvens gordas mais embaixo.
Ele ficou em pé no gurupés, com a espuma encapelando-se logo abaixo. — Distribua seus malefícios, Ilha! — gritou, e o vento leste lhe levou a voz. — Estou em casa!
CAPÍTULO TRINTA E UM
O China Cloud voltou para o porto, através do canal oeste. O sol que se levantava era forte, o vento, vindo do leste, firme e úmido.
Struan estava no tombadilho, nu até à cintura, com a pele muito bronzeada e o cabelo vermelho-dourado clareado pelo sol. Focalizou seu binóculo nos navios no porto. Primeiro o Resting Cloud. Bandeiras de código drapejavam na mezena: “Zenith” — o proprietário deve vir imediatamente a bordo. Já era de se esperar, pensou. Lembrou-se da última vez — há uma eternidade — em que lera “Zenith” no Thunder Cloud e isto prenunciava a notícia de tantas mortes e a chegada de Culum.
No porto, havia mais navios para transporte de soldados do que antes. Todos tinham bandeiras da Companhia das índias Orientais. Ótimo. Os primeiros reforços. Viu um grande bergantim perto da nau capitania. A bandeira russa drapejava à popa e a bandeirola tzarista estava acima do mastro principal.
Havia muito mais sampanas e juncos do que o habitual, cortando as ondas.
Depois de examinar meticulosamente o resto da frota, virou-se para a praia, enquanto o cheiro do mar se misturava, agradavelmente, com o da terra. Podia ver atividade perto do Cabo Glessing e muitos europeus e grupos de mendigos caminhando pela Estrada da Rainha. O Tai Ping Shan parecia ter crescido apreciavelmente.
O Leão e o Dragão adejavam sobre a feitoria abandonada da Casa Nobre e o vazio Vale Feliz.
— Quatro pontos a estibordo!
— Sim, sim, senhorrrr — cantou o timoneiro.
Struan, habilmente, pilotou a lorcha para colocá-la ao lado do Resting Cloud. Vestiu uma camisa e subiu para bordo.
— Bom-dia — disse o Capitão Orlov. Conhecia o Tai-Pan bastante bem e não lhe perguntou onde estivera.
— Bom-dia. Estão com o sinal “Zenith”. Por quê?
— Ordens de seu filho.
— Onde está ele?
— Em terra.
— Por favor, traga-o para bordo.
— Chamaram-no, quando seu navio entrou no porto.
— Então, por que não se encontra aqui?
— Posso receber meu navio de volta, agora? Por Thor, Olhos Verdes, estou mortalmente cansado de ser um capitão-lacaio. Deixe-me ser um capitão do chá, ou um capitão do ópio, deixe-me levar o navio para águas do Ártico. Conheço cinqüenta lugares onde posso pegar uma carga de peles... mais prata para cevar seus cofres. Não é pedir demais.
— Preciso de você aqui. — Struan riu, e remoçou anos.
— Pode rir, pelo prepúcio de Odin! — O rosto de Orlov se retorceu, com o seu próprio sorriso. — Foi para o mar, enquanto eu estava preso num pontão ancorado. Você parece um deus, Olhos Verdes. Pegou tempestade? Tufão? E por que minha vela grande está mudada, como também a sobre de proa, e de mezena, a giba? Há novas adriças, estais e estingues por toda parte. Por que, hein? Você arrancou o coração de meu lindo navio, só para limpar sua alma?
— Que tipos de pele, Capitão?
— De foca, zibelina, vison... dê o nome de qualquer pele e lhe direi que há, desde que eu possa dizer a qualquer um: “Saia do meu navio e vá para o inferno”, até a você.
— Em outubro, você viaja para o norte. Sozinho. Será que isso o satisfaz? Peles para a China, hein?
Orlov deu uma espiada em Struan e percebeu, imediatamente, que não navegaria para o norte em outubro. Um calafrio o percorreu e ele detestou o dom da profecia, que o atormentava. O que irá acontecer comigo entre junho e outubro?
— Posso pegar meu navio agora? Sim ou não, por Deus? Outubro é um mês ruim e está muito longe. Posso pegar meu navio agora, sim ou não?
— Sim.
Orlov marinhou por sobre a amurada e caiu ruidosamente em pé no tombadilho.
— Soltem a amarra dianteira — gritou.
Depois, acenou para Struan e riu, estrepitosamente. O China Cloud afastou-se da nave-mãe e serpenteou, elegantemente, em direção à sua amarração de tempestade, ao largo do Vale Feliz.
Struan desceu para os alojamentos de May-may. Ela estava profundamente adormecida. Ele disse a Ah Sam para não acordá-la; voltaria mais tarde. Depois, foi para o convés acima, para seus próprios alojamentos particulares, tomou banho, fez a barba e vestiu roupas limpas. Lim Din trouxe-lhe ovos, frutas e chá. A porta da cabina se abriu e Culum entrou às pressas.
— Onde esteve? — começou, num ímpeto. — Há mil coisas que precisam ser feitas e a venda de terras é hoje à tarde. Você poderia ter me avisado, antes de desaparecer. Isso aqui está um verdadeiro torvelinho e...
— Você não bate nas portas, Culum?
— Claro, mas estava com pressa. Desculpe.
— Sente-se. Que mil coisas são essas? — perguntou Struan. — Pensei que você pudesse resolver tudo.
— Você é o Tai-Pan, eu não sou — disse Culum.
— Sim. Mas diga o que teria feito, se eu não voltasse hoje. Culum hesitou.
— Teria ido para a venda de terras. Comprado terras.
— Fez algum acordo com Brock sobre os lotes pelos quais não faríamos lances um contra o outro? Culum ficou constrangido com o olhar de seu— pai.
— Bom, de certa forma, sim. Fiz um acerto provisório. Sujeito à sua aprovação.
Puxou um mapa e estendeu-o sobre a escrivaninha. O local da nova cidade cercava o Cabo Glessing, duas milhas a oeste do Vale Feliz. O lugar plano para construção era restrito pelas montanhas que o cercavam, e tinha pouco menos de meia milha de largura, ficando afastado da praia apenas meia milha. O Tai Ping Shan elevava-se acima do local e bloqueava a expansão para leste.
— Esses são todos os lotes. Escolhi o oito e o nove. Gorth disse que eles queriam o catorze e o vinte e um.
— Você confirmou isso com Tyler?
— Sim.
Struan deu uma olhada no mapa.
— Por que escolher dois lotes um junto do outro?
— Bom, nada sei a respeito de terra e nem de feitorias ou ancoradouros, então fiz perguntas a George Glessing. E a Vargas. E depois, em particular, a Gordon Chen. E...
— Por que Gordon?
— Não sei. Pensei que era uma boa idéia. Ele parece ser muito inteligente.
— Continue.
— Bom, todos concordaram que os melhores lotes marinhos eram o oitavo, o nono, o décimo, o décimo quarto e o vigésima primeiro. Gordon sugeriu que os dois fossem juntos para o caso de querermos nos expandir e, então, um cais serviria para as duas feitorias. Por sugestão de Glessing, mandei o Capitão Orlov medir a profundidade ao largo da praia. Ele disse que há um bom fundo de rochedos, mas a plataforma é rasa. Teremos de aterrar e colocar nosso cais bem afastado.
— Que lotes suburbanos você escolheu? Culum, nervosamente, apontou-os.
— Gordon achou que deveríamos fazer lances para aquela propriedade ali. É... bom, é um morro, e... bom, acho que seria um lugar ótimo para a Grande Casa.
Struan levantou-se, foi até às vigias da popa e olhou o morro pelo binóculo. Ficava a oeste do Tai Ping Shan, em frente ao local.
— Teremos de construir uma estrada para lá, hein?
— Vargas disse que, se pudermos comprar os lotes suburbanos 9A e 15B, teremos ahn... acho que ele chamou de “uma servidão”, ou algo parecido, e isto protegeria nossa propriedade. Mais tarde, poderíamos construir no local e alugar os prédios se quiséssemos. Ou os revenderíamos, em outra ocasião.
— Discutiu isso com Brock?
— Não.
— Com Gorth?
— Não.
— Com Tess?
— Sim.
— Por quê?
— Sem nenhuma razão especial. Gosto de conversar com ela. Conversamos a respeito de uma porção de coisas.
— É perigoso conversar com ela a respeito de um assunto desses. Queira você ou não, submeteu-a a um teste.
— O quê?
— Se Gorth ou Brock fizerem lances para o 9A e o 15B, você saberá que ela não é digna de confiança. Sem os lotes menores, o morro fica arriscado.
— Ela nunca diria nada — afirmou Culum, beligerantemente. — Foi em particular, entre nós. Talvez os Brocks tenham a mesma idéia. Não provará nada, se eles fizerem lances contra nós.
Struan examinou-o. Depois, disse:
— Quer um drinque, ou chá?
— Chá, obrigado. — As palmas das mãos de Culum estavam pegajosas. Ele ficou imaginando se Tess realmente conversara com Brock, ou com Gorth. — Para onde você foi?
— Que outras coisas precisam de decisões? Culum se concentrou, com um esforço.
— Há uma porção de correspondência, tanto para você como para o tio Robb. Não sabia o que fazer com ela e então coloquei tudo no cofre. Vargas e Chen Sheng calcularam nossas despesas no Vale Feliz e eu... bom... eu assinei pela prata. Longstaff pagou a todos, como você disse. Assinei pela prata e contei as barras. Ontem, um homem chegou da Inglaterra no navio de Zergeyev. Roger Blore. Disse que pegou a embarcação em Cingapura. Quer ver você com urgência. Não me falou o que deseja mas, bom... de qualquer jeito eu o instalei no pontão pequeno, Quem é ele?
— Não sei, rapaz — disse Struan, pensativamente.
Tocou a campainha na escrivaninha e o camaroteiro entrou. Struan mandou que um escaler fosse buscar Blore.
— Que mais, rapaz?
— As encomendas para a compra de materiais e abastecimentos de navios se amontoam. Temos de encomendar novos estoques de ópio... mil coisas. Struan brincou com seu caneco de chá.
— Brock já lhe deu resposta?
— Hoje é o último dia. Ele me convidou para ir a bordo do White Witch esta noite.
— Tess não deu indicação a respeito de qual será a decisão do pai?
— Não.
— E Gorth?
Outra vez, Culum abanou a cabeça.
— Vão partir para Macau amanhã. Exceto Brock. Fui convidado a ir com eles.
— E vai?
— Agora que você voltou, eu gostaria. Por uma semana... ; disser que poderemos casar-nos logo. — Culum bebeu um pouco de chá. — Vai ser preciso comprar mobília e... bom, esse tipo de coisa.
— Você se encontrou com Sousa?
— Sim, encontramos. A terra é maravilhosa, e o projeto já está traçado. Jamais poderemos agradecer-lhe o suficiente. Estarmos pensando... bom, Sousa nos contou a respeito do quarto separado para o banho e toalete que você mandou projetar para sua casa. Nós... bom... nós pedimos a ele para construir a mesma coisa para nós.
Struan ofereceu um charuto e acendeu-o.
— Por quanto tempo você teria esperado, Culum?
— Não entendo.
— Que eu voltasse. O mar poderia ter-me engolido.
— Ah, não você, Tai-Pan.
— Um dia poderá engolir... engolirá. — Struan soprou uma baforada de fumaça e olhou-a flutuar. — Se eu, algum dia, for embora outra vez sem lhe dizer para onde, espere quarenta dias. Não mais. Ou estou morto ou não tornarei a voltar.
— Está bem. — Culum ficou imaginando onde seu pai queria chegar. — Por que você partiu assim?
— Por que você conversa com Tess?
— Isso não é resposta.
— O que mais aconteceu desde que eu fui embora?
Culum estava desesperadamente tentando entender, mas não conseguia. Ele tinha pelo pai um respeito ainda maior do que antes, mas não sentia nenhum amor filial. Conversara durante horas com Tess e descobrira nela uma fantástica profundidade. E haviam discutido seus pais, tentando avaliar aqueles dois que eles amavam, temiam, e, algumas vezes, odiavam mais do que qualquer outra coisa na terra, mas para quem corriam, ao primeiro sinal de Perigo.
— As fragatas voltaram de Quemoy.
— E?...
— Destruíram entre cinqüenta e cem juncos. Grandes e pequenos. E três ninhos de piratas na costa. Talvez tenham afundado Wu Kwok, talvez não.
— Acho que logo saberemos.
— Anteontem, eu visitei sua casa no Vale Feliz. Os vigias... ah, você sabe que ninguém quer ficar ali à noite... acho que a casa foi invadida e muito saqueada. Struan ficou pensando se o cofre secreto havia sido violado.
— Não há nenhuma notícia boa?
— Aristotle Quance fugiu de Hong Kong.
— Hein?
— Sim. A Sra. Quance não acredita, mas todos, pelo menos quase todos, o viram no navio, o mesmo que levou a tia Sarah para a Inglaterra. A pobre mulher acredita que ele ainda está em Hong Kong. Você sabia a respeito de George e Mary Sinclair? Eles vão casar. Isto é bom, embora Horatio esteja terrivelmente aborrecido. Mas, também, nem tudo está bem. Acabamos de saber que Mary está muito doente.
— Malária?
— Não, uma enfermidade qualquer, contraída em Macau. É muito estranho. George recebeu uma carta, ontem, da madre superiora da Ordem Católica de Enfermeiras. O pobre coitado está mortalmente preocupado! Não se pode confiar nesses papistas.
— O que disse a madre superiora?
— Só que achava seu dever informar a respeito de Mary ao parente mais próximo. E que Mary dissera para escrever a George. Struan franziu a testa.
— Por que diabo ela não foi para o Hospital Missionário? E por que não informou Horatio?
— Não sei.
— Você contou a Horatio?
— Não.
— Será que Glessing disse a ele?
— Duvido. Eles parecem se odiar agora.
— É melhor você ir com os Brocks, e ver como ela está.
— Achei que você ia querer notícias em primeira mão, por isso enviei o sobrinho de Vargas, Jesus, de lorcha, ontem. O pobre George não conseguiu uma licença, por parte de Longstaff e eu também queria ajudá-lo.
Struan se serviu de mais chá e, depois, olhou para Culum com um respeito novo.
— Muito bem.
— Bom, eu sei que ela é quase como uma tutela sua.
— Sim.
— A única coisa além disso é que o inquérito sobre o acidente com o arquiduque foi arquivado, há alguns dias. O júri achou que fora apenas um acidente mesmo.
— Você acha que foi?
— Claro. Não acha?
— Visitou Zergeyev?
— No mínimo uma vez por dia. Ele esteve no inquérito, claro, e... disse muitas coisas lisonjeiras a seu respeito. Como você o ajudou, salvou-lhe a vida, coisas assim. Zergeyev não pôs a culpa em ninguém e disse que já informara o tzar, neste sentido. Disse, abertamente, que acreditava dever sua vida a você. Skinner tirou uma edição especial do Oriental Times, dando cobertura ao inquérito. Eu a guardei para você. — Culum entregou-lhe o jornal. — Não ficaria surpreso se você receber uma comenda real do tzar, pessoalmente..
— Como vai Zergeyev?
— Está caminhando, agora, mas seu quadril ficou muito rígido. Acho que sente muitas dores, embora jamais fale disso. Diz que nunca cavalgará outra vez.
— Mas está bem?
— Tão bem quanto é possível a um homem que vive para cavalgar.
Struan foi até o aparador e serviu xerez para dois. O rapaz mudou, pensou. Sim, mudou muito. Estou orgulhoso de meu filho. Culum aceitou o copo e ficou a olhá-lo. — À sua saúde, Culum. Você se saiu muito bem.
— À sua, .papai. — Culum escolheu a palavra intencionalmente.
— Obrigado.
— Não me agradeça. Quero ser Tai-Pan da Casa Nobre. E muito. Mas não quero esperar por uma herança.
— Nunca pensei que você fosse esperar por herança — replicou Struan.
— Sim, mas considerei o assunto. E sei que, na verdade, não gosto da idéia.
Struan perguntou a si mesmo como seu filho podia dizer uma coisa dessas tão calmamente.
— Você mudou muito nas últimas semanas.
— Estou aprendendo a respeito de mim mesmo, talvez. Por causa de Tess, principalmente... e por ter ficado sozinho por sete dias. Descobri que não estou preparado ainda para ficar sozinho.
— Gorth tem a mesma opinião que você, sobre a questão da herança?
— Não posso responder por Gorth, Tai-Pan. Só por mim mesmo. Sei que você tem razão na maioria das coisas, que eu amo Tess, que você está indo contra tudo em que acredita para me ajudar.
Outra vez, Struan lembrou as palavras de Sarah.
Bebeu seu xerez, contemplativamente.
***
Roger Blore tinha vinte e poucos anos, e um rosto tão tenso quanto seus olhos. Suas roupas eram caras, mas surradas, e seu físico de pequenas dimensões, enxuto e destituído de gordura. Tinha cabelo louro-escuro e seus olhos azuis estavam profundamente fatigados.
— Por favor, sente-se, Sr. Blore — disse Struan. — E agora, por que todo esse mistério? E por que precisava ver-me a sós? Blore continuou em pé.
— O senhor é Dirk Lochlin Struan?
Struan ficou surpreendido. Muito poucas pessoas sabiam de seu nome intermediário.
— Sim. E quem poderá ser o senhor?
Nem o rosto do homem e nem o seu nome significavam nada para Struan. Mas seu sotaque era de pessoa bem-educada — Eton, Harrow ou Charter House.
— Posso ver o seu pé esquerdo, senhor? — pediu o jovem, cortesmente.
— Pela morte de Cristo! Mas que sujeitinho insolente! Diga o que quer e saia!
— Tem toda razão em se irritar, Sr. Struan. As possibilidades de que o senhor seja o Tai-Pan são de cinqüenta contra uma. Cem contra uma. Mas preciso ter certeza de que o senhor é quem diz ser.
— Por quê?
— Porque tenho uma informação para Dirk Lochlin Struan, o Tai-Pan da Casa Nobre, cujo pé esquerdo foi meio arrancado por um tiro... uma informação da maior importância.
— Da parte de quem?
— Do meu pai.
— Não me lembro do seu nome e nem do seu pai, e tenho uma boa memória para nomes, por Deus!
— Meu nome não é Roger Blore, senhor. Trata-se apenas de um pseudônimo... por uma questão de segurança. Meu pai é membro do Parlamento. Tenho quase certeza de que o senhor é o Tai-Pan. Mas, antes de dar a informação, preciso ter absoluta certeza. Struan tirou o punhal de sua bota direita e levantou a bota esquerda.
— Pode puxar — disse, com um tom perigoso. — E se a informação não for “da maior importância”, vou gravar minhas iniciais em sua testa.
— Então suponho que estou arriscando a minha vida. Uma vida pela outra. Ele arrancou a bota, suspirou de alívio e se sentou, debilmente.
— Meu nome é Richard Crosse. Meu pai é Sir Charles Crosse, membro do parlamento de Chalfont, St. Giles.
Struan encontrara Sir Charles duas vezes, há alguns anos. Naquele tempo, Sir Charles era um pequeno proprietário rural sem recursos, um veemente defensor do livre comércio e da importância do comércio asiático, bem-visto no Parlamento. Ao longo dos anos, Struan dera-lhe apoio financeiro e nunca lamentara o investimento. Devia ser a respeito da ratificação, pensou, com ansiedade.
— Por que não disse logo isso?
Crosse esfregou os olhos, cansado.
— Posso beber alguma coisa, por favor?
— Grogue, conhaque, xerez... sirva-se.
— Obrigado, senhor. — Crosse se serviu de um pouco de conhaque. — Obrigado. Desculpe, mas... bom, estou um pouco cansado. Papai me disse para ter muito cuidado... para usar um pseudônimo. E falar só com o senhor... ou, se estivesse morto, com Robb Struan. — Desabotoou a camisa e abriu uma bolsa que tinha amarrado em torno da cintura. — Ele lhe mandou isto. — Entregou a Struan um envelope sujo, com muitos selos, e se sentou.
Struan pegou o envelope. Estava endereçado a ele, datado de Londres. 29 de abril. Abruptamente, ele ergueu os olhos e sua voz desafinou.
— Você é um mentiroso! É impossível que tenha chegado aqui tão depressa. A carta é de apenas sessenta dias atrás!
— Sim, é, senhor — disse Crosse, alegremente — fiz o impossível. — Riu, nervosamente. — Papai jamais me perdoará.
— Ninguém fez nunca a viagem em sessenta dias. Qual o seu jogo?
— Parti numa terça-feira, 29 de abril. Diligência de Londres a Dover. Peguei o paquete para Calais no último minuto. Uma diligência para Paris e outra para Marselha. O paquete francês para Alexandria, faltando um segundo para a partida. Por terra para Suez, através dos bons ofícios de Mehemet Ali... a quem papai encontrou certa vez, e, depois, o paquete de Bombaim, por um átomo de segundo. Apodreci em Bombaim durante três dias e, então, tive um golpe fabuloso de sorte. Comprei passagem num clíper de ópio para Calcutá. Então...
— Que clíper?
— O Flying Witch, pertencente a Brock e Filhos.
— Continue — disse Struan, erguendo as sobrancelhas.— E, depois, um navio mercante de carreira indiana para Cingapura. O Bombay Prince. Então, que falta de sorte, não havia nenhum navio programado para Hong Kong por semanas. Mas tive sorte. Consegui convencer o pessoal de um navio russo, aquele e embarquei — disse Crosse, apontando pelas vigias da popa. — Era o jogo mais arriscado de todos, mas era minha última chance. Dei ao capitão os últimos guinéus que tinha. Antecipadamente! Pensei que eles, com certeza, iriam cortar a minha garganta e me atirar no mar, logo que partíssemos, mas era minha última chance. Cinqüenta e nove dias, na verdade, senhor... de Londres a Hong Kong.
Struan levantou-se e serviu outra dose a Crosse e uma dupla para si mesmo. Sim, é possível, pensou. Não é provável, mas é possível.
— Sabe o conteúdo da carta?
— Não, senhor. Pelo menos, sei apenas a parte que se refere a mim.
— E qual é?
— Papai diz que sou gastador, trapalhão, jogador e louco por cavalos — disse Crosse, com franqueza cândida. — E há um mandado de prisão por dívida contra mim, na prisão de Newgate. Que ele me confia à sua generosidade, e espera que seja capaz de encontrar um uso para meus “talentos”... qualquer coisa que me mantenha fora da Inglaterra, e distante dele pelo resto de sua vida. E expõe as paradas da aposta.
— Que aposta?
— Cheguei ontem, senhor. 28 de junho. Seu filho e muitos outros são testemunhas. Talvez deva ler a carta, senhor. Posso garantir-lhe que meu pai jamais aposta comigo, a não ser em questões da “máxima importância”.
Struan reexaminou os selos e os rompeu. A carta dizia: “Westminster, 11 horas da noite de 28 de abril de 41. Meu caro Sr. Struan: acabo de me inteirar, secretamente, de um despacho do Ministro de Relações Exteriores, Lord Cunnington, enviado ontem para o Ilustre William Longstaff, plenipotenciário de Sua Majestade na Ásia. O despacho diz, num trecho: ‘O senhor desobedeceu e negligenciou minhas ordens e parece considerá-las inúteis. Obviamente, parece decidido a resolver os negócios do Governo de Sua Majestade de acordo com seus caprichos. De maneira impertinente desconsiderou as instruções no sentido de que cinco ou seis portos chineses no continente se tornassem acessíveis aos interesses comerciais britânicos, e plenos canais diplomáticos permanentemente estabelecidos, nesse particular; de que isto fosse feito prontamente, de preferência através de negociações, mas, se as negociações fossem impossíveis, através do uso da força enviada para este explícito propósito e com despesas consideráveis. Em vez disso, o senhor procura um miserável rochedo, que mal tem nele uma só casa, e isto através de um tratado inteiramente inaceitável, e, ao mesmo tempo, a se dar crédito aos despachos navais e militares, continuamente vem empregando mal as Forças de Sua Majestade que estão sob seu comando. De maneira alguma pode Hong Kong se tornar, um dia, o empório comercial na Ásia — como Macau não se tornou. O Tratado de Chuenpi é totalmente repudiado. Seu sucessor, Sir Clyde Whalen, chegará aí a qualquer momento, meu caro senhor. Talvez possa ter a gentileza de transmitir seu cargo ao vice, Sr. C. Monsey, ao receber este despacho, e partir da Ásia imediatamente, numa fragata para tanto destacada, pela presente. Apresente-se no meu escritório logo que puder...”
“Estou sem saber que...”
Impossível! Impossível que tenha podido cometer um erro tão estúpido, louco e absurdo!, pensou Struan. Continuou a ler: “Estou sem saber que atitude tomar. Não há nada que possa fazer até a informação ser dada oficialmente na Casa. Não ouso usar abertamente esta informação secreta. Cunnington pediria minha cabeça e eu seria afastado da política. Mesmo colocar isto no papel, para si, desta maneira, é dar aos meus inimigos
— e quem, em política, só tem poucos? — uma oportunidade para me destruir e, comigo, todos aqueles que defendem o livre comércio e a posição pela qual o senhor vem lutando durante todos esses anos. Peço a Deus que meu filho coloque isto só em suas mãos.
“(A propósito, ele nada sabe a respeito do conteúdo particular desta carta.)
“Como sabe, o Ministro de Relações Exteriores é um homem autoritário, guia-se por seus próprios princípios, é o baluarte do nosso partido Whig. Sua atitude, no despacho, é perfeitamente clara. Temo que Hong Kong seja uma questão vencida. E, a menos que o Governo seja derrotado e os Conservadores de Sir Robert Peel subam ao poder — uma impossibilidade, eu diria, em futuro previsível — Hong Kong, provavelmente, permanecerá uma causa vencida.
“A notícia da falência do seu banco espalhou-se nos círculos internos na City — muito ajudada por seus rivais, liderados pelo jovem Morgan Brock. ‘Em grande confiança’, Morgan Brock, judiciosamente, lançou as sementes da desconfiança, juntamente com a informação de que os Brocks agora possuem a maioria — senão todas — das suas ações importantes, e isto prejudicou incomensuravelmente sua influência aqui. Além disso, uma carta do Sr. Tyler Brock e de certos outros negociantes chegou, quase simultaneamente com o despacho do Tratado de Chuenpi, de Longstaff, em violenta oposição ao estabelecimento em Hong Kong e à conduta de Longstaff, durante as hostilidades. A carta era endereçada ao Primeiro-Ministro, ao Ministro de Relações Exteriores, e cópias foram enviadas aos seus inimigos — que, como sabe, são muitos.
“Sabendo que pode ter posto o remanescente de seus recursos, se ainda tem alguns, em sua querida ilha, escrevo para lhe dar uma oportunidade de se desemaranhar e salvar alguma coisa do desastre. Talvez tenha entrado em algum tipo de acordo com Brock — rezo para que sim — embora, a se acreditar no arrogante Morgan Brock, o único acordo que agradaria a eles seria a eliminação de sua Casa. (Tenho boas razões para acreditar que Morgan Brock e um grupo de interesses bancários continentais — franceses e russos, segundo outros boatos — iniciaram a repentina corrida ao banco. O grupo continental propôs a manobra quando, de alguma maneira, transpirou a notícia da planejada estrutura internacional do Sr. Robb Struan. Eles quebraram seu banco, em troca de cinqüenta por cento num plano similar que Morgan Brock está, agora, tentando executar.)
“Sinto muito dar notícias tão más. Faço isso com boa fé, esperando que, de alguma maneira, a informação seja útil e o senhor possa sobreviver à luta, mais uma vez. Ainda acredito que seu plano para Hong Kong seja o correto. E pretendo continuar a tentar executá-lo.
“Sei pouco a respeito de Sir Clyde Whalen, o novo Capitão-Superintendente do Comércio. Ele serviu com distinção na Índia e tem uma excelente reputação como soldado. Não é administrador, segundo creio. Ouvi dizer que parte amanhã para a Ásia; assim, sua chegada deve estar iminente.
“Para finalizar: confio meu filho mais moço ao senhor. Ele é um gastador, uma ovelha negra, um trapalhão cujo único propósito na vida é jogar, preferivelmente em cavalos. Há um mandado por dívidas contra ele, da prisão de Newgate. Eu lhe disse que — pela última vez — pagaria seus débitos aqui, se ele, imediatamente, empreendesse esta perigosa viagem. Ele concordou, apostando que, se realizasse o feito impossível de chegar a Hong Kong em menos de sessenta e cinco dias — metade do tempo normal — eu lhe daria mil guinéus, como despedida.
“Para garantir que a entrega fosse a mais rápida possível, eu estipulei mil guinéus para menos de sessenta e cinco dias; quinhentos a menos para cada dia que ultrapassasse o período determinado; desde que ele permanecesse fora da Inglaterra pelo resto de minha vida — e o dinheiro seria pago na proporção de cem guinéus por ano, até se esgotar. Anexo está o primeiro pagamento. por favor, avise-me pela volta do correio da data em que ele chegou.
“Se houver alguma maneira pela qual possa usar seus ‘talentos’ e controlá-lo, conquistará a imorredoura gratidão de um pai. Tentei, que Deus me perdoe, e a ele também, e fracassei. Muito embora eu o ame profundamente.
“Por favor, aceite o meu pesar, por sua má sorte. Meus cumprimentos para o Sr. Robb, e concluo com a esperança de que terei o prazer de encontrá-lo pessoalmente, em circunstâncias mais favoráveis. Tenho a honra de ser, senhor, seu mais obediente criado, Charles Crosse.”
Struan fitou o porto, lá fora, e a ilha. Lembrou-se da cruz que queimara no primeiro dia. E dos vinte guinéus de ouro de Brock. E das três moedas restantes de Jin-qua. E dos loques de prata que deveriam ser investidos em alguém que, um dia, viria com um certo carimbo. Agora, todo suor e todo trabalho e todos os planos e todas as mortes estariam desperdiçados. Devido à estúpida arrogância de um homem — Lord Cunnington. Bom e doce Cristo, o que farei, agora?
Struan superou o choque da notícia e forçou a si próprio a pensar. O Ministro de Relações Exteriores é um homem brilhante. Ele não repudiaria Hong Kong impensadamente. Deve haver uma razão. Qual será? E como controlarei Whalen? Como encaixar um “soldado e não administrador” no futuro?
Talvez eu devesse parar de comprar a terra hoje. Vamos deixar o resto dos negociantes comprar e que vão para o inferno. Brock será liquidado, junto com os outros, porque Whalen e a notícia não chegarão antes de um mês, ou mais. Nessa ocasião, estarão mergulhados numa frenética atividade de construção. Sim, esta é uma saída e, quando a notícia for do conhecimento geral, nós nos retiraremos todos para Macau — ou para um dos portos obtidos por Whalen através de tratado — e os demais serão liquidados. Ou quase. Sim. Mas se eu posso obter essa informação, Brock também pode. Então, talvez ele não seja destruído. Talvez.
Sim. Mas dessa maneira você perde a chave para a Ásia: este miserável rochedo gasto, sem o qual todos os portos abertos e o futuro não terão sentido.
A alternativa é comprar, construir e apostar no fato de que, como Longstaff, Whalen pode ser persuadido a ir além das determinações, que o próprio Cunnington pode ser envolvido. Para derramar a riqueza da Casa Nobre na nova cidade. Um jogo. Fazer Hong Kong florescer. De modo que o governo seja forçado a aceitar a colônia.
É mortalmente perigoso. Você não pode forçar a Coroa a fazer isso. Os riscos são terríveis, terríveis. Mesmo assim, você não tem escolha. Tem de jogar.
Pensar em jogo fez com que lembrasse o jovem Crosse. Ora, é um rapaz de méritos. Como posso usá-lo? Como posso fazer que fique de boca calada com relação à sua fantástica viagem? Sim, e como posso dar a Whalen uma impressão favorável de Hong Kong? E me aproximar de Cunnington? Como posso manter o tratado do jeito que eu quero?
— Bom, Sr. Crosse, fez uma viagem notável. Quem sabe quanto tempo o senhor levou?
— Só o senhor.
— Então fique calado a respeito. — Struan escreveu alguma coisa num bloco de papel. — Entregue isto ao chefe dos meus funcionários. Crosse leu a nota.
— Vai me dar o total dos cinco mil guinéus?
— Coloquei no nome de Roger Blore. Acho melhor que conserve este nome... por enquanto, pelo menos.
— Sim, senhor. Agora, eu sou Roger Blore. — Ele se levantou. — Ainda precisa de mim agora, Sr. Struan?
— Quer um emprego, Sr. Blore?
— Temo que... bom, Sr. Struan, tentei dúzias de coisas, mas nunca funciona. Papai tentou tudo e, bom... eu me aceito... talvez seja uma fatalidade... eu me aceito como sou. Sinto muito, mas o senhor está desperdiçando suas boas intenções.
— Aposto com você cinco mil guinéus que aceitará o emprego que vou lhe oferecer. O rapaz sabia que ganharia a aposta. Não havia nenhum emprego que o Tai-Pan pudesse oferecer-lhe e ele aceitasse.
Mas espere. Este não é um homem para se brincar, e nem para se apostar assim sem mais nem menos. Esses olhos calmos e diabólicos são impassíveis. Detestaria vê-los do outro lado de uma mesa de pôquer. Ou no bacará. Tenha cuidado, Richard Crosse Roger Blore. E este é o homem que cobraria uma dívida.
— Bom, senhor Blore? Onde está a sua coragem? Ou não é o jogador que finge ser?
— Os cinco mil guinéus são minha vida, senhor. A última parada que posso ganhar.
— Então aposte sua vida, por Deus!
— Não está arriscando a sua, senhor. Então a aposta é desigual. Essa soma é desprezível para o senhor. Então me dê vantagens. Cem a um. Struan admirou o atrevimento do rapaz.
— Muito bem... a verdade, Sr. Blore. Diante de Deus. — Lhe estendeu a mão e Blore teve uma tontura, porque contara que pedir tais vantagens iria acabar com a aposta. Não faça isso, seu louco, ele disse a si mesmo. Quinhentos mil guinéus! Apertou a mão de Struan.
— Secretário do Jóquei Clube de Hong Kong — disse Struan.
— O quê?
— Acabamos de formar um Jóquei Clube. Você é secretário, a tarefa é conseguir os cavalos. Traçar uma pista de corridas. Uma sede de clube. Começar a mais rica e a mais fina estrebaria da Ásia. Tão boa quanto Aintree, ou qualquer outra no mundo. Quem ganha, rapaz?
Blore procurou, desesperadamente, desafogar-se. Pelo amor de Deus, concentre-se, gritou, para si mesmo.
— Uma pista de corridas?
— Sim. Você vai iniciá-la, administrá-la... cavalos, o jogo, arquibancadas, apostas, prêmios, tudo. Comece hoje.
— Mas, por Jesus Cristo, onde vai conseguir os cavalos?
— Onde o senhor conseguirá os cavalos?
— Na Austrália, por Deus! — exclamou Blore. — Ouvi dizer que eles têm cavalos de sobra, por lá! — Tornou a entregar a ordem de pagamento a Struan e deu um berro de êxtase. — Sr. Struan, jamais se arrependerá disso. — Deu a volta e correu para a porta.
— Aonde vai? — perguntou Struan.
— Para a Austrália, claro.
— Por que não vai ver o general primeiro?
— Hein?
— Pelo que me lembro, eles têm alguma cavalaria. Peça emprestados alguns cavalos. Eu acho que o senhor pode fazer a primeira corrida no próximo sábado.
— Será?
— Sim. Sábado é um bom dia para corridas. E a Índia é mais próxima do que a Austrália. Eu o enviarei para lá, pelo primeiro navio disponível.
— Enviará?
Struan sorriu.
— Sim. — Ele entregou de volta o papel. — Os quinhentos são um bônus sobre seu primeiro ano de salário, Sr. Blore, quinhentos por ano. O restante é o dinheiro para o prêmio das primeiras quatro ou cinco corridas. Vamos dizer oito corridas, com cinco cavalos cada, sábado sim, sábado não.
— Que Deus o abençoe, Sr. Struan.
Então, Struan ficou sozinho. Acendeu um fósforo e ficou olhando a carta arder. Misturou as cinzas à poeira do chão e depois desceu. May-may ainda estava na cama, mas trocara de roupa e estava linda.
— Olá, Tai-Pan — disse May-may. Ela o beijou, rapidamente, e depois continuou a se abanar. — Estou muito satisfeita por você ter voltado. Quero que compre para mim um
pequeno lote de terra, porque decidi me tornar negociante.
— Que tipo de negociante? — ele perguntou, ligeiramente agastado com a brusca recepção, mas satisfeito por ela aceitar suas idas e vindas sem perguntas e sem brigas.
— Você verá, não se preocupe. Mas quero alguns taéis para começar. Pago dez por cento de juros, o que é muito bom. Cem taéis. Você será um sócio inativo. Ele estendeu o braço e colocou a mão sobre o seio dela.
— Por falar em inatividade, eu acho... Ela tirou a mão dele.
— Os negócios antes do repouso. Você compra a terra para mim e me empresta os taéis?
— Repouso antes dos negócios?
— Ayeeee yah, com esse calor? — ela disse, com uma risada. — Muito bem. É péssimo fazer qualquer esforço com esse calor... sua camisa já está grudando nas costas. Mas venha, não se preocupe. — Ela, obedientemente, caminhou em direção à porta do quarto de dormir, mas ele a agarrou.
— Só estava brincando. Como vai você? O bebê lhe deu algum problema?
— Claro que não. Sou uma mãe muito cuidadosa e só como alimentos muito especiais, para construir um belo filho. E fico pensando coisas bem agressivas, para que ele se torne um bravo Tai-Pan.
— Quantos taéis você quer?
— Cem. Eu já disse. Não tem ouvidos? Você está estranhíssimo hoje, Tai-Pan. Sim. Seguramente muito estranho. Não está doente, não é? Recebeu más notícias? Ou apenas se sente cansado?
— Só cansado. Cem taéis, pode contar com isso. E qual é o “negócio”?
Ela bateu palmas, toda excitada e tornou a se sentar à mesa.
— Ah, você verá. Pensei muito, desde que você foi embora. O que faço por você? Faço amor, oriento você... são coisas excelentes, claro, mas não é o bastante. Então, agora quero ganhar taéis para você também e para a minha velhice. — Ela riu outra vez, e ele ficou deliciado com sua risada. — Mas só com os bárbaros. Ganharei fortunas... ah, você vai achar que eu sou genteintelíssima.
— Não existe essa palavra.
— Você sabe muito bem o que eu quero dizer. — Ela o abraçou. — Quer fazer amor agora?
— Há uma venda de terras dentro de uma hora.
— É verdade. Então é melhor você trocar de roupa e voltar correndo. Um pequeno lote na Estrada da Rainha. Mas não pago mais do que dez taéis de aluguel por ano! Você trouxe presente para mim?
— O quê?
— Bom, é um bom hábito — ela disse, com os olhos inocentes — quando o homem deixa a mulher traz presente para ela. Jades. Coisas assim.
— Não trouxe jades. Mas da próxima vez, serei mais atencioso.
Ela deu de ombros.
— É um bom hábito. Sua pobre velha mãe é muito pobre. Comemos mais tarde, hein?
— Sim. — Struan foi para seu camarote particular, no convés logo acima, Lim Din fez uma curvatura.
— O banho está bem frio, senhor. Quer assim?
— Sim.
Struan tirou as roupas amassadas e ficou deitado na banheira, deixando a mente considerar as implicações da notícia dada por Sir Charles, sua fúria com a estupidez de Cunnington quase a esmagá-lo. Ele se enxugou e vestiu roupas limpas, mas em poucos minutos sua camisa estava úmida de suor outra vez.
É melhor eu me sentar para pensar no assunto, ele pensou. Deixar Culum se encarregar da terra. Aposto minha vida que Tess contou ao pai sobre o plano dele com relação ao morro. Talvez Culum seja acuado e forçado a fazer lances altos demais. O rapaz fez tudo bem; devo confiar isso a ele.
Então, mandou recado a Culum para fazer os lances em nome da Casa Nobre, e também lhe disse para comprar um lote pequeno, porém bom, na Estrada da Rainha. E mandou recado a Horatio de que Mary não estava bem e determinou que uma lorcha o levasse imediatamente a Macau.
Depois, sentou-se numa funda poltrona de couro e ficou olhando para a ilha, através de uma vigia, deixando a mente vaguear.
***
Culum comprou os lotes marinhos e suburbanos, orgulhoso de estar fazendo os lances pela Casa Nobre e ganhando mais prestígio. Muitos lhe perguntaram onde estava o Tai-Pan — onde ele estivera — mas respondeu laconicamente que não tinha idéia e continuou a deixar implícita a hostilidade não mais sentida.
Comprou o morro — e os lotes que o tornavam seguro – e ficou aliviado ao ver que os Brocks não faziam lances contra ele, provando ser Tess digna de confiança. Mesmo assim, decidiu ser mais cauteloso, no futuro, e não a colocar em tal posição outra vez. Era perigoso ser aberto demais com relação a certos assuntos, pensou. Perigoso para ela e perigoso para ele próprio. Por exemplo, o fato de que pensar nela, ou seu mais leve toque o deixavam quase louco de desejo. Fato que ele não poderia jamais discutir com ela e nem com seu pai, mas só com Gorth, que o compreendia: “Sim, Culum, rapaz. Sei disso muito bem. É uma dor terrível, terrível. A pessoa fica quase sem poder caminhar. Sim... e é terrivelmente difícil de controlar. Mas não se preocupe rapaz. Somos amigos e eu entendo. É bom sermos francos, eu e você. É terrivelmente perigoso para você viver como um monge. Sim. Pior do que isso, é acumular problemas para o futuro... e ainda pior, ouvi dizer que, com isso, os filhos nascem doentes. A dor em suas entranhas pode ser uma advertência de Deus. Sim, essa dor deixa um homem doente pelo resto da vida, esta é a verdade absoluta e então, que Deus me perdoe! Não se preocupe, conheço um lugar em Macau. Não se preocupe, meu velho.
E, embora Culum não acreditasse realmente nas superstições que Gorth enumerou, as dores que suportava noite e dia minaram sua vontade de resistir. Queria alívio. Mesmo assim, jurou, se Brock concordar que nos casemos no próximo mês, então não irei a um bordel. Não irei!
***
Ao anoitecer, Culum e Struan foram para bordo do White Witch. Brock os esperava no tombadilho, com Gorth a seu lado. A noite estava fresca e agradável.
— Decidi a respeito do seu casamento, Culum — disse Brock. — No próximo mês seria impróprio. No próximo ano, provavelmente melhor. Mas, daqui a três meses Tess estará fazendo dezessete anos e então, nesse dia, dia dez, você pode casar.
— Obrigado, Sr. Brock — disse Culum. — Obrigado.
Brock sorriu para Struan.
— Isso convém a você, Dirk?
— É sua decisão, Tyler, não minha. Mas acho que três meses ou dois não fazem muita diferença de um mês. Ainda digo que seria bom no próximo mês.
— Setembro convém a você, Culum? Como eu disse? Seja honesto, rapaz.
— Sim. Naturalmente. Eu esperei, mas... bom, sim Sr. Brock. — Culum jurou que esperaria os três meses. Mas lá dentro dele mesmo, sabia que não poderia.
— Então isto será acertado convenientemente.
— Sim — Struan replicou. — Serão três meses, então. Sim, ele disse a si mesmo, três meses. Você assinou uma sentença de morte, Tyler. Talvez duas.
— E, Dirk, talvez possa me dar um pouco do seu tempo amanhã? — Podemos fixar
o dote.
— Ao meio-dia?
— Sim. Ao meio-dia. E agora acho que podemos nos reunir às senhoras, lá embaixo. Vai ficar para a ceia, Dirk?
— Obrigado, mas tenho de resolver algumas coisas.
— Como as corridas, hein? Tenho de lhe dar os parabéns. Foi uma ótima idéia trazer aquele sujeito, o Blore, lá da Inglaterra. É mesmo um jovem galã. A última corrida de cada rodada será a Parada Brock. Nós daremos o dinheiro do prêmio.
— Sim. Ouvi dizer. É conveniente que a melhor pista da Ásia fique aqui.
Blore fizera o anúncio durante a venda de terras. Longstaff concordara em ser o primeiro presidente do Jóquei Clube. A taxa anual para se ser sócio foi estipulada em dez guinéus, e todo europeu na ilha entrou imediatamente. Blore foi assediado por voluntários para montar os animais que o general concordara em fornecer.
— Sabe montar, Dirk?
— Sim. Mas nunca corri a cavalo.
— Estou no mesmo caso. Mas talvez nós devêssemos praticar um pouco, hein? Você monta, Culum?
— Sim. Mas não sou um perito. Gorth deu-lhe uma palmada nas costas.
— Podemos conseguir montadas em Macau e Culum praticará um pouco. Talvez a gente possa vencer nossos pais, hein? Culum sorriu, com constrangimento.
— Sim, podemos ver isso, Gorth — disse Struan. — Bom, boa-noite. Verei você ao meio-dia, Tyler.
— Sim. Boa-noite. Dirk.Struan partiu. Durante o jantar, Culum tentou amenizar o antagonismo que existia entre Gorth e Brock. Achou estranho que gostasse de ambos, pudesse entender os dois — porque Gorth queria ser Tai-Pan, e Brock não passaria o controle, por algum tempo. E, estranho, porque ele se sentia mais sensato com relação a isso do que Gorth. Não é tão estranho, realmente, pensou. Gorth não tinha sido deixado de repente sozinho por sete longos dias, com toda a responsabilidade. No dia em que eu me casar com Tess, vou jogar fora as vinte moedas de Brock. Não é direito guardá-las, agora. Aconteça o que acontecer, vamos começar da estaca zero. Só três meses. Ah, meu Deus, obrigado.
Depois do jantar, Culum e Tess foram para o convés sozinhos. Ambos estavam sem fôlego sob as estrelas, segurando as mãos um do outro e sentindo uma dor. Culum roçoulhe os lábios, numa primeira tentativa de beijo, e Tess se lembrou da aspereza do beijo de Nagrek e do fogo que suas mãos lhe despertaram e a dor por ele causada — não uma dor, realmente, mas uma agonia-prazer cuja lembrança sempre a fazia arder outra vez. Ela estava satisfeita de logo poder apagar o fogo que havia dentro dela. Só três meses e, depois, a paz.
Eles voltaram para a fétida cabina abaixo, e depois que Culum partiu ela ficou deitada em seu beliche. Seu anseio lhe doía e ela chorou. Porque sabia que Nagrek a tocara de uma maneira como só Culum deveria tê-la tocado, e sabendo que este fato deveria ser mantido secreto para ele, por toda a eternidade. Mas como? Ah, meu amor, meu amor.
***
— Eu lhe digo, papai, foi um erro — dizia Gorth, na cabina grande, mantendo a voz baixa. — Um erro terrível!
Brock bateu o canecão sobre a mesa e a cerveja se espalhou, chegando a cair no chão.
— Foi minha decisão, Gorth, e o assunto está encerrado. O casamento deles será em setembro.
— E foi outro erro não fazer lances para o morro. Aquele demônio nos passou para trás outra vez, por Deus.
— Use seu cérebro, Gorth — sibilou Brock. — Se tivéssemos feito isso, então o jovem Culum saberia com certeza que Tess andava contando a mim, inocentemente, coisas que não deveria contar. O morro não tem importância. Talvez chegue uma ocasião em que ela diga algo importante, que vá destruir Dirk, e é isso que eu quero saber, nada além disso. Brock desprezou a si mesmo por ouvir a conversa de Tess, por usá-la, sem ela saber, para espionar Culum e como um instrumento contra Dirk Struan. Mas detestou Gorth mais do que nunca, e confiou nele ainda menos. Porque sabia que Gorth tinha razão. Mas desejava a felicidade de Tess acima de qualquer outra coisa e saber disso fazia com que ele se tornasse perigoso. Agora o descendente do maldito Struan ia unir-se a sua adorada Tess.
— Juro por Cristo que matarei Culum, se ele lhe arrancar um fio de cabelo — disse, com voz terrível.
— Então, por que deixar que Culum se case com ela tão depressa, por tudo que é sagrado? Claro que ele vai magoá-la, e vai usá-la contra nós, agora.
— E o que fez você mudar de idéia, hein? — exclamou Brock. — Você era a favor, entusiasticamente, do casamento.
— Ainda sou, mas não dentro de três meses, por Deus! Isto vai arruinar tudo.
— Por quê?
— Claro que vai arruinar tudo — ele disse. — Quando eu era a favor, Robb estava vivo, hein? E o Tai-Pan ia partir este verão para sempre e passar seu cargo de Tai-Pan para Robb... e depois para Culum, em um ano. É verdade. Se eles se casassem no próximo ano, seria perfeito. Mas agora o Tai-Pan vai ficar. E agora você concorda que eles se casem em três meses, e o Tai-Pan vai tirá-la de você e vai exercitar Culum contra nós, e agora eu acho que ele nunca irá embora. Com certeza jamais, enquanto você for Tai-Pan de Brock e Filhos!
— Ele nunca iria sair da Ásia, dissesse o que dissesse a Culum. Ou a Robb. Eu conheço Dirk.
— E eu conheço você!
— Quando ele partir, ou morrer, então eu estarei partindo.
— Então, é melhor que ele morra logo.
— É melhor você se munir de paciência.
— Sou paciente, papai.
Estava na ponta da língua de Gorth contar a Brock a vingança que ele planejara para Struan — através de Culum — em Macau. Mas não contou. Seu pai estava mais preocupado com a felicidade de Tess do que em se tornar Tai-Pan da Casa Nobre. Seu pai não tinha mais a necessária inflexibilidade devoradora que Struan possuía numa medida capaz de lhe possibilitar ser o Tai-Pan.
— Lembre-se, papai, ele enganou você com a prata, com a casa dos dois, o casamento, e até no baile. Tess é a sua fraqueza — ele vociferou. — Ele sabia disso e você está agindo com ela como se ela fosse o guia para o seu carrasco, e marcha para um desastre!
— Não é verdade! Não é verdade! Sei o que estou fazendo — disse Brock, tentando manter a voz baixa, com as veias de suas têmporas grossas como os nós de um chicote. — E eu avisei você antes. Não vá atrás daquele demônio. Ele vai lhe cortar os colhões e se alimentar com eles. Eu conheço aquele demônio!
— É, conhece mesmo, papai! — Gorth farejava a idade de seu pai e sabia que, na verdade, pela primeira vez poderia esmagá-lo, de homem para homem. — Então saia do caminho e deixe um homem cumprir sua tarefa de homem, por Deus!
Brock ficou em pé de um pulo e a cadeira caiu. Gorth também ficou em pé, esperando que o pai pegasse sua faca, sabendo que agora, e para sempre, já podia esperar, porque sabia a medida do outro.
Brock viu claramente que aquela era sua última chance de dominar Gorth. Se não pegasse a faca, estava perdido. Se pegasse a faca, teria de matar Gorth. Sabia que poderia — mas só com esperteza, não mais apenas usando a força. Gorth é seu filho, seu filho mais velho. Não é um inimigo, ele disse a si mesmo.
— Não é direito — ele disse, sufocando seu desejo de matar.
— Não é direito para você, nem para você e nem para mim, agir assim. Não, por Deus! Eu lhe digo pela última vez vá, vá atrás dele e encontrará seu Criador. Gorth sentiu a emoção da vitória.
— Só com pagode nós vamos sair dessa confusão. — Deu um chute em sua cadeira, tirando-a do caminho. — Vou para terra.
Brock ficou sozinho. Terminou o canecão, mais outro e ainda outro. Liza abriu a porta, mas ele não a notou e ela o deixou bebendo, foi para a cama e rezou pela felicidade do casamento. E pelo seu homem.
Gorth foi para terra. Para a casa da Sra. Fortheringill.
— Não quero saber de suas coisas, Sr. Brock — disse ela. — A última moça foi brutalmente ferida.
— O que significa uma macaca para você, feiticeira velha? Aqui está! — Gorth atirou vinte soberanos de ouro sobre a mesa.
— E aqui está a mesma coisa para você manter a boca fechada.
Ela lhe deu uma jovem Hakka e um quarto no porão, nos fundos da casa. Gorth abusou da moça, açoitou-a brutalmente e deixou-a agonizante. No dia seguinte, partiu no White Witch para Macau, a quarenta milhas sudoeste.
Todos os Brocks estavam a bordo, exceto o próprio Brock. Culum também se encontrava no tombadilho, de braços dados com Tess.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
Cinco dias mais tarde era a data da corrida.
E, durante esse período, os alicerces da nova cidade haviam sido construídos. Liderados pela Casa Nobre, os comerciantes utilizaram todos os labores e habilidades do Tai Ping Shan para cavar, carregar e construir. Os negociantes despejavam de volta na terra toda a prata que Longstaff lhes dera. Os fabricantes de tijolos em Macau e os cortadores de madeira em Kwangtung — e todos aqueles ligados à construção de casas, feitorias, ancoradouros — começaram a trabalhar dia e noite para satisfazer o zelo frenético dos comerciantes na substituição àquilo que haviam abandonado. Os salários subiram. Os cules começaram a faltar — só a Casa Nobre empregava três mil pedreiros, construtores e artesãos de todos os tipos — muito embora cada nova maré trouxesse mais trabalhadores. Estes logo encontravam tarefas bem pagas. O Tai Ping Shan crescia ainda mais. A praia em torno ao Cabo Glessing pulsava de energia.
E o dia da corrida era o décimo quarto, desde que Struan e May-may haviam partido de sua casa, no Vale Feliz, para se instalarem a bordo do Resting Cloud.
— Você não está com bom aspecto, garota — disse Struan. — É melhor ficar na cama, hoje.
— Acho que vou ficar — disse ela. Permanecera inquieta durante toda a noite e sua cabeça, pescoço e costas começaram a doer. — Não é nada, não se preocupe. Você está com excelente aspecto.
— Obrigado.
Struan usava roupas novas que mandara fazer em homenagem à corrida. Um casaco de montaria verde-escuro da mais fina e leve lã. Calças de tecido grosso de algodão, pregueadas, metidas sob suas botas de cano curto, colete de primorosa casimira, gravata verde.
May-may aliviou a dor nos ombros e Ah Sam colocou o travesseiro de maneira mais confortável para ela.
— É apenas um demônio do verão. Mandei buscar um médico. Você vai em terra, agora?
— Sim. A corrida começa dentro de uma hora. Acho que vou chamar nosso médico, garota. Ele...
— Eu mandarei buscar um médico. Médico chinês. E não quero mais falar sobre este assunto. Agora, não se esqueça, vinte taéis no cavalo número quatro, na quarta volta. O astrólogo disse que tem todas as condições para ganhar.
— Não vou esquecer. — Struan lhe deu palmadinhas nas faces. — Descanse.
— Quando eu ganhar, vou me sentir fantasticamente melhor, hein? Agora, vá embora. Ele a ajeitou na cama e mandou buscar chá novo e uma garrafa de cerâmica cheia de água quente, para suas costas. Depois, foi para terra.
A pista de corridas fora demarcada a oeste do Cabo Glessing, e estava cheia de gente. Parte da praia, perto do poste que marcava tanto as linhas de partida como de chegada, havia sido isolada com corda, para os europeus, a fim de impedir a entrada das hordas de chineses curiosos, que se apinhavam no local. Tendas haviam sido armadas aqui e acolá. Um padoque e barracas para apostas foram construídos. Bandeiras sobre varas de bambu marcavam a pista oval.
As apostas eram pesadas e Henry Hardy Hibbs tinha o livro mais grosso.
— Façam suas escolhas, cavalheiros — ele gritava, com voz sonora, batendo em seu quadro-negro, no qual estavam anotadas as paradas. — Major Trent, no garanhão Satã, o favorito da primeira. Pago à vista. Três contra um!
— Maldito seja, Hibbs — disse Glessing, cheio de irritação, suando com o calor do dia. — Com três contra um, você vai ganhar. Quero seis contra um na égua cinzenta. Um guinéu!
Hibbs deu uma olhada para o quadro-negro e sussurrou com voz rouca:
— Para o senhor, Capitão, cinco. Um guinéu. Em Mary Jane Glessing deu meiavolta. Estava furioso por não se encontrar em Macau e porque a prometida carta de Culum não chegara Ó Deus, ele pensou, frenético de preocupação, eu já deveria ter notícias dele, a essa altura. Que diabo o estará retardando? O que estará fazendo aquele patife do Horatio? Será que a está apoquentando, outra vez?
Caminhou melancolicamente em direção ao padoque e viu Struan e Zergeyev juntos, mas Longstaff se uniu aos dois e então ele não parou.
— Qual a sua escolha, Alteza? — Longstaff dizia, jovialmente
— O capão — respondeu Zergeyev, apoiando-se numa bengala. A excitação e o cheiro dos cavalos o animavam e diminuíam muito sua dor constante. Queria poder cavalgar, mas abençoava sua sorte por ter sobrevivido ao ferimento. E bendizia Struan Sabia que, sem a operação realizada por Struan, teria morrido.
— Olá, Alteza — disse Shevaun, ao se aproximar, de braços dados com Jeff Cooper. Estava vestida de verde brilhante e protegia-se do sol com uma sombrinha laranja. — Tem algum palpite para mim? — Gratificou a todos com um sorriso. Particularmente a Struan.
— O capão é o melhor cavalo, mas não sei quem é o melhor jóquei, Shevaun — disse Zergeyev. Shevaun deu uma olhada no grande cavalo marrom, com a. pelagem lustrosa e os olhos saltados.
— Ora — disse ela, com um brilho malicioso no olhar. — Pobre cavalo! Se eu fosse um cavalo e isto tivesse sido feito comigo, eu jamais correria nem um metro. Para ninguém! Que barbaridade!
Todos riram com ela.
— Vai apostar no capão, Tai-Pan?
— Não sei — disse ele, preocupado com May-may. — De certo modo, minha favorita é a potranca. Mas acho que farei minha escolha final quando estiverem no portão de partida.
Ela o observou por um instante, imaginando se ele falava através de parábolas.
— Vamos dar uma olhada com mais cuidado na potranca — disse Jeff, forçando uma risada.
— Por que não vai você, Jeff, meu caro? Vou ficar aqui à sua espera.
— Vou junto — disse Longstaff, sem perceber a repentina irritação de Cooper. Este hesitou e, depois, eles se afastaram juntos.
Brock tirou o chapéu, cortesmente, ao passar por Shevaun, Struan e Zergeyev, mas não se deteve. Estava alegre por Struan ter decidido não montar um dos cavalos, pois não gostava de montar e sua alfinetada em Struan fora involuntária. Maldito seja, pensou.
— Como vai o seu ferimento, Alteza? — perguntou Shevaun.
— Muito bem. Estou quase bom outra vez, graças ao Tai-Pan. — Eu não fiz nada — disse Struan, embaraçado com o elogio de Zergeyev. Notou Blore lá no padoque, em conversa particular com Skinner. Fico imaginando se apostei corretamente no rapaz, pensou.
— Como é modesto, senhor — disse Shevaun a Struan, e fez uma graciosa mesura.
— Não dizem que noblesse oblige? Struan notou a aberta admiração de Zergeyev pela moça.
— Tem um belo navio, Alteza. — A embarcação russa, tinha quatro mastros e uma capacidade de carga de oito toneladas. Muitos canhões.
— Seria uma honra mandar o capitão mostrar-lhe o navio — disse Zergeyev. — Talvez nós possamos falar-lhe de assuntos específicos. Quando estiver preparado.— Obrigado, eu gostaria de fazer isso. — Struan teria continuado, mas Blore se aproximou às pressas, sujo de poeira e exausto.
— Quase pronto para começar, Tai-Pan... está muito bonita, Srta. Tillman, boa-tarde, Alteza — disse ele, correndo. — Todos apostaram no número quarto na quarta, e eu decidi cavalgá-la eu mesmo... ah, sim, Tai-Pan. Examinei o garanhão, a noite passada, Ele aceitou a brida e então poderemos usá-lo na próxima corrida. Alteza, deixe que eu o conduza para sua posição, vai dar partida à primeira volta.
— Ah, é?
— Sua Excelência não lhe falou nisso? Diabo!. .. quero dizer, será que faria esse favor? — Jamais Blore trabalhara com tanto afinco e nem se excitara tanto. — Quer me acompanhar, por favor? Guiou Zergeyev apressadamente, através da multidão.
— Blore é um rapaz simpático — disse Shevaun, satisfeita por estar, afinal, a sós com Struan. — Onde o encontrou?
— Ele me encontrou — disse Struan. — E estou satisfeito com isso.
Sua atenção foi distraída por uma discussão perto de uma das tendas. Um grupo de soldados-guardas estava expulsando um chinês do cercado. O chapéu do cule caiu e, com ele, o longo rabicho. O homem era Aristotle Quance.
— Desculpe-me por um segundo — disse Struan. — Ele foi até lá correndo e ficou diante do homenzinho, protegendo-o com seu corpo. — Está tudo bem, rapazes, ele é um amigo meu! — disse.
Os soldados deram de ombros e se afastaram.
— Com todos os raios, Tai-Pan — desabafou Quance, ajeitando suas roupas sujas.
— Salvo no último minuto. Que Deus o abençoe!
Struan empurrou o chapéu de cule outra vez na cabeça de Quance e o puxou para baixo de uma das abas da tenda.
— Que diabo está você fazendo aqui? — sussurrou.
— Eu tinha de ver as corridas, por Deus! — disse Quance, ajeitando o chapéu de modo que o rabicho caísse às suas costas. .. e queria falar com você.
— Isso não é hora! Maureen está em meio à multidão, em algum lugar.
Quance empalideceu.
— Que Deus me proteja!
— Sim, muito embora eu não saiba por que Ele iria fazer isso. Suma, enquanto ainda está salvo. Ouvi dizer que ela comprou passagem para a Inglaterra, na próxima semana. Se suspeitar... bom, você pode imaginar por si mesmo!
— Só a primeira corrida, Tai-Pan? — implorou Quance. — Por favor. E tenho uma informação para você.
— O quê?
Para choque de Struan, Quance lhe contou a respeito do que Gorth fizera com a prostituta.
— Que horror! A pobre moça está quase morta. Gorth é louco, Tai-Pan. Louco.
— Mande informar-me, se a moça morrer. E então... bom, terei de pensar a respeito do que fazer. Obrigado, Aristotle. Mas suma, enquanto é tempo.
— Só a primeira corrida? Por favor, pelo amor de Deus! Não sabe o que isso significa para um pobre velho!
Struan deu uma olhada em torno. Shevaun, deliberadamente, ignorava-os. Depois, notou Glessing, que passava por perto.
— Capitão!
Quando Glessing reconheceu Quance, seus olhos se reviraram para o céu.
— Por Júpiter! Pensei que já se encontrasse em alto-mar!
— Faça-me um favor, sim? — disse Struan, depressa. — A Sra. Quance está junto ao poste de partida. Quer livrar Aristotle de problemas e afastá-lo do caminho dela? Melhor ainda, leve-o para lá. — Struan apontou para o local onde os chineses estavam dando voltas. — Deixe-o olhar a primeira corrida e, depois, leve-o para casa.
— Pois não. Bom Deus, Aristotle, estou satisfeito de vê-lo — disse Glessing e, depois, dirigindo-se a Struan: — Teve notícias de Culum? Estou terrivelmente preocupado com a Srta. Sinclair.
— Não. Mas eu disse a Culum que fosse vê-la logo ao chegar. Deveremos ter notícias a qualquer momento. Tenho certeza de que ela está bem.
— Espero que sim. Ah, onde devo levar Aristotle depois da corrida?
— Para a casa da Sra. Fortheringill.
— Por Júpiter! Como é aquilo lá, Aristotle? — perguntou Glessing, deixando a curiosidade dominar o que havia de melhor nele.
— É aterrorizante, meu rapaz, aterrorizante. — Quance agarrou-lhe o braço e sua voz ficou rouca. — Não se pode dormir um minuto e a comida é horrível. Só tem quentão para o desjejum, almoço, chá, jantar e ceia. Pode me emprestar alguns guinéus, Tai-Pan?
Struan resmungou e se afastou.
— O que é quentão, Aristotle?
— É, ah... uma espécie de mingau.
Struan tornou a se unir a Shevaun.
— Um amigo seu, Tai-Pan?
— Não é boa política notar alguns amigos, Shevaun.
Ela lhe bateu de leve no braço, com seu leque.
— Não é preciso nunca me advertir a respeito de política, Dirk. Senti sua falta — ela acrescentou, gentilmente.
— Sim — disse ele, percebendo que seria fácil e sensato casar com Shevaun. Mas não é possível. Por causa de May-may, — Por que você quer ser pintada nua? — ele perguntou de repente, e percebeu, pelo relâmpago nos olhos dela, que seu palpite era correto.
— Aristotle disse isso? — a voz dela era neutra.
— Bom Deus, não! Ele jamais faria isso. Mas, há alguns meses, estava a nos atormentar. Disse que tinha uma nova encomenda. Para um nu. Por quê? Ela corou e se abanou, rindo.
— Goya pintou a Duquesa de Alba. Duas vezes, eu acho. Ela se tornou famosa no mundo inteiro. Os olhos dele se enrugaram, de divertimento.
— Você é um demônio, Shevaun. Você realmente o deixou... bom, ver o tema?
— Foi licença poética da parte dele. Discutimos a idéia de dois retratos. Você não aprova?
— Acho que seu tio e seu pai iriam subir pelos ares, se ouvissem falar disso, ou se os retratos caíssem em mãos erradas.
— Você os compraria, Tai-Pan?
— Para esconder?
— Para apreciar.
— Você é uma moça estranha, Shevaun.
— Talvez eu despreze hipocrisia. — Ela o olhou inquisitivamente. — Como você.
— Sim. Mas você é uma moça, num mundo dominado pelos homens, e certas coisas você não pode fazer.
— Há uma porção de “certas coisas” que eu gostaria de fazer.
— Houve vivas e os cavalos começaram a desfilar. Shevaun tomou uma decisão final. — Acho que deixarei a Ásia. Dentro de dois meses.
— Isso soa como uma ameaça.
— Não, Tai-Pan. É apenas porque estou apaixonada... e também apaixonada pela vida. E concordo com você. Que a hora de escolher o vencedor é quando eles estão no portão de partida.
— Ela se abanou, rezando para que seu jogo justificasse o risco.
— Qual você escolhe?
Ele não olhou para os cavalos.
— A potranca, Shevaun — disse, tranqüilamente.
— Qual é o nome dela? — ela perguntou.
— May-may — disse ele, com uma suave luz nos olhos.
O leque de Shevaun hesitou e, depois, continuou como antes.
— Uma corrida jamais está perdida até o vencedor ser julgado e engrinaldado. — Ela sorriu e se afastou, com a cabeça erguida, mais bonita do que nunca. A potranca perdeu a corrida. Só por uma cabeça. Mas perdeu.
***
— De volta, tão cedo, Tai-Pan? — perguntou May-may, com voz fraca.
— Sim. Cansei da corrida, e estava preocupado com você.
— Eu ganhei?
Ele abanou a cabeça. Ela sorriu e suspirou.
— Ah, está bem, não tem importância. — O branco de seus olhos estava cor-de-rosa e seu rosto pálido sob o dourado.
— O médico esteve aqui? — perguntou Struan.
— Ainda não. — May-may deitou-se de lado, e se encolheu, mas isto não aliviou seu desconforto. Ela afastou o travesseiro, mas também não ajudou, e então recolocou-o no lugar. — Sua pobre velha mãe está mesmo velha demais — disse, com uma tristeza desesperançada.
— Onde dói?
— Em lugar nenhum, em toda parte. Um bom sono vai curar tudo, não se preocupe.
Ele lhe massageou o pescoço e as costas e não quis permitir-se pensar o impensável. Mandou vir chá novo e comida leve e tentou convencê-la a comer, mas ela não tinha apetite algum.
Ao anoitecer, Ah Sam entrou e falou rapidamente com May-may.
— O médico chegou. E Gordon Chen — disse May-may a Struan.
— Ótimo! — Struan se levantou e se espreguiçou.
Ah Sam aproximou-se de uma caixa de jóias e tirou uma pequena estátua de marfim, uma mulher nua deitada de lado. Para pasmo de Struan, May-may apontou para partes da estatueta e falou demoradamente com Ah Sam. Esta fez um aceno afirmativo com a cabeça e saiu, seguida por Struan, completamente confuso.
O médico era um ancião, com um longo rabicho bem oleoso, usando uma roupa negra antiga e surrada. Seus olhos eram claros e alguns cabelos compridos cresciam numa verruga em sua face.Ele tinha dedos longos e finos e as costas de suas mãos magras eram cheias de veias azuis.
— Sinto muito, Tai-Pan — disse Gordon, e fez uma curvatura, juntamente com o médico. — Este é Kee Fa Tan, o melhor médico do Tai Ping Shan. Viemos tão rápido quanto pudemos.
— Obrigado. É melhor virem por... — Ele parou. Ah Sam se aproximara do médico, fizera uma profunda curvatura e lhe mostrara a estátua, indicando partes dela, da mesma maneira que May-may. E agora respondia a perguntas, loquazmente.
— Que diabo ele está fazendo?
— Dando um diagnóstico — disse Gordon Chen, ouvindo atentamente Ah Sam e o médico.
— Com a estátua?
— Sim. Pareceria impróprio para ele ver a Senhora sem necessidade, Tai-Pan. Ah Sam está explicando onde são as dores. Por favor, tenha paciência, tenho certeza de que não é grave.
O médico contemplou a estátua em silêncio. Finalmente, ergueu os olhos para Gordon e disse alguma coisa, com brandura.
— Ele diz que o diagnóstico não é fácil. Com sua permissão, gostaria de examinar a Senhora. Fervendo de impaciência, Struan mostrou o caminho até o quarto. May-may deixara cair as cortinas que rodeavam a cama. Era apenas uma discreta sombra, por trás delas.
O médico foi à cabeceira de May-may e, outra vez, ficou em silêncio. Depois de alguns minutos, falou tranqüilamente. Obedientemente, a mão esquerda de May-may saiu de debaixo das cortinas. O médico tomou-lhe a mão e examinou-a com muita atenção. Depois, colocou os dedos em seu pulso e fechou os olhos. Seus dedos começaram a bater suavemente na pele.
Os minutos se passaram. Os dedos batiam devagar, como se procurassem algo impossível de achar.
— O que ele está fazendo agora? — perguntou Struan.
— Auscultando-lhe o pulso, senhor — sussurrou Gordon. — Precisamos ficar muito silenciosos. Há nove pulsos em cada punho. Três na superfície, três um pouco mais abaixo e mais três muito profundos. Estes lhe dirão a causa da doença. Por favor, Tai-Pan, seja paciente. É muito difícil escutar com os dedos.
As batidas de dedos continuaram. Era o único som na cabina. Ah Sam e Gordon Chen olhavam fascinados. Struan mexeu-se, desajeitadamente, mas não fez nenhum som. O médico parecia estar num devaneio místico. Depois, de repente — como se encontrassem uma presa fugidia — as batidas pararam e o médico fez uma forte pressão. Por um minuto, ficou como uma estátua. Depois, deixou o pulso cair sobre a colcha da cama, e May-may, silenciosamente, deu-lhe o pulso direito, e ele repetiu o procedimento.
E, outra vez, após muitos minutos, as batidas cessaram, abruptamente. O médico abriu os olhos, suspirou e colocou o pulso de May-may sobre a colcha. Fez sinal para Gordon Chen e para Struan. Gordon Chen fechou a porta atrás deles. O médico riu suavemente, com nervosismo, e começou a falar de maneira tranqüila e rápida. Os olhos de Gordon se arregalaram.
— O que há? — disse Struan, asperamente.
— Eu não sabia que a Mãe estava grávida, Tai-Pan. — Gordon virou-se outra vez para o médico e fez uma pergunta e o médico respondeu longamente. Depois, houve um silêncio.
— Bom, que diabo ele disse?
Gordon olhou para ele e tentou, sem conseguir, aparentar calma.
— Ele diz que Mãe está muito doente, Tai-Pan. Que um veneno lhe entrou no sangue, através dos membros inferiores. Este veneno centralizou-se em seu fígado e o fígado está agora — ele procurou a palavra — mal-ajustado. Logo haverá febre, muita febre. Uma febre alta. E depois de três ou quatro dias, novamente febre. Repetidas vezes.
— Malária? A febre do Vale Feliz?
Gordon se virou e fez a pergunta.
— Ele diz que sim.
— Todos sabem que são os gases noturnos... e não um veneno através da pele, por Deus — ele gritou para Gordon. — Há semanas que ela não vai lá! Gordon encolheu os ombros.
— Só estou dizendo o que ele diz, Tai-Pan. Não sou médico. Mas eu confiaria neste médico... acho que deve confiar.
— Qual é a cura?
Gordon perguntou ao médico.
— Ele diz, Tai-Pan: “Tratei de alguns daqueles que sofriam do veneno do Vale Feliz. As recuperações bem-sucedidas foram de homens fortes, que tomaram um certo remédio antes do terceiro ataque da febre. Mas esta paciente é uma mulher, e embora tenha vinte e um anos e seja forte, com um espírito de fogo, toda sua força está indo para o filho que está com quatro meses em seu útero”. — Gordon parou, constrangido. — Ele teme pela vida da Senhora e da criança.
— Diga-lhe que traga o remédio e trate dela agora. Não depois de nenhum ataque.
— Esse é o problema. Ele não pode, senhor. Não sobrou nenhum remédio.
— Então lhe diga para conseguir algum, por Deus!
— Não existe nenhum em Hong Kong, Tai-Pan. Ele tem certeza.
O rosto de Struan se ensombreceu.
— Deve haver algum. Diga-lhe para conseguir... custe o que custar.
— Mas, Tai-Pan, ele...
— Pelo sangue de Deus, diga a ele! Outra vez, houve uma conversa.
— Ele diz que não existe nenhum em Hong Kong, não haverá nenhum em Macau e nem em Cantão. Que o remédio é feito com a casca de uma árvore muito rara, que cresce em alguma parte nos Mares do Sul, ou em terras do outro lado do oceano. A pequena quantidade que ele tinha veio de seu pai que também era médico, e que a recebeu de seu pai. — Gordon acrescentou, desamparadamente: — Ele diz que tem completa certeza de que não há mais.
— Vinte mil taéis de prata, se ela for curada.
Os olhos de Gordon se arregalaram. Ele pensou um momento e depois falou rapidamente com o médico. Ambos fizeram curvaturas e saíram correndo. Struan tirou seu lenço, enxugou o suor do rosto e caminhou de volta para o quarto.
— Olá, Tai-Pan — disse May-may, com voz ainda mais fraca. — Qual o meu pagode?
— Eles foram pegar um remédio especial que a curará. Não precisa se preocupar.
Ele a ajeitou o melhor que pôde, com a mente atormentada. Depois, correu para a nau capitania e perguntou ao médico-chefe da Marinha a respeito da casca de árvore.
— Sinto muito, meu caro Sr. Struan, mas esta é uma história da carochinha. Existe uma lenda a respeito da Condessa Cinchón, mulher do vice-rei espanhol no Peru, que introduziu na Europa uma casca de árvore vinda da América do Sul, no século dezessete.
Era conhecida como “casca de árvore dos jesuítas” e, algumas vezes, como “casca de árvore cinchona”. Transformada em pó e tomada com água, segundo se supunha curava a febre. Mas, quando foi tentada na índia, falhou completamente. Era inútil! Os malditos papistas dizem qualquer coisa para conseguir convertidos.
— Onde diabo posso obter um pouco dessa casca?
— Realmente não sei, meu caro senhor, no Peru, suponho. Mas, por que sua ansiedade? A Cidade da Rainha está abandonada, agora. Não precisa se preocupar, se não está respirando o gás noturno.
— Um amigo acaba de adoecer com malária.
— Ah! Então é bom dar um forte purgativo calomelo. Logo que possível. Não posso prometer nada, naturalmente. Faremos sangrias, imediatamente.
Struan tentou, em seguida, o médico-chefe do Exército e, sucessivamente, à medida que o tempo passava, todos os médicos de menor importância — tanto militares como civis — e todos lhe disseram a mesma coisa.
Então, Struan lembrou-se de que Wilf Tillman estava vivo. Foi apressadamente para o pontão de transporte de ópio de Cooper-Tillman.
E todo esse tempo, enquanto Struan questionava os médicos, Gordon Chen voltara ao Tai Ping Shan e mandara chamar os dez líderes da Tríade que estavam sob seu comando. Depois, eles foram para seus quartéis-generais e mandaram chamar os dez líderes sob o comando de cada um deles. Espalhou-se a notícia, com incrível rapidez, de que uma certa casca, de uma certa árvore, deveria ser encontrada. Por sampana, por junco, a notícia se filtrou, através do porto, até Kowloon, logo chegando a povoados e vilas, burgos e cidades. Em toda extensão da costa, no continente. Logo todos os chineses de Hong Kong — pertencentes ou não à Tríade — sabiam que estava sendo procurada uma rara casca de árvore. Não sabia por quem, e nem qual a razão: só que uma grande recompensa era oferecida. E a história caiu nos ouvidos dos agentes anti-Tríade dos mandarins. Eles começaram a procurar a casca de árvore, e não só por causa da recompensa; sabiam que uma porção da casca poderia, talvez, ser usada como isca para desmascarar os líderes da Tríade.
***
— Desculpe chegar sem ser convidado, Wilf. Eu — Struan parou, alarmado com a visão de Tillman.
Tillman estava enterrado num travesseiro, encharcado de suor, com o rosto esquelético — cor de linho antigo não lavado — os brancos dos alhos de um amarelo sujo.
— Entre — disse ele, com voz mal audível. E então Struan viu que Tillman, cujos dentes eram bonitos, fortes e brancos, estava agora desdentado.
— O que aconteceu com seus dentes?
— Calomelo. Afeta algumas pessoas... — À voz de Tillman se arrastava, monotonamente. E seus olhos ganharam um brilho curioso. — Eu estava esperando por você. A resposta é não!
— O quê?
— Não. Um simples não. — A voz de Tillman ficou mais forte. — Sou o tutor dela, e ela jamais se casará com você.
— Não vim aqui pedir a mão dela. Só vim ver como você estava e como a malária...
— Não acredito em você. — A voz de Tillman se elevou, histericamente. — Você está, simplesmente, esperando que eu morra!
— Isso é ridículo! Por que eu iria querer que você morresse? Tillman, fracamente, ergueu a campainha que estava na fétida colcha da cama e a tocou. A porta se abriu e um negro alto, escravo de Tillman, entrou descalço.
— Jebidiah, peça ao Sr. Cooper e à senhorita para virem aqui imediatamente. Jebidiah fez um aceno afirmativo com a cabeça e fechou a porta.
— Ainda vendendo seres humanos. Wilf?
— Jebidiah está contente de ser quem é, vá para o inferno! Você tem sua maneira de ser e nós temos a nossa, seu porco maldito!
— Maldita seja sua maneira de ser, maldito traficante de escravos!
O segundo navio em que Struan trabalhara estava gravado em sua memória e, vez por outra, ele tinha pesadelos de que estava a bordo, outra vez. Com sua parte do dinheiro do prêmio de Trafalgar, comprara sua saída da Marinha e se empregara como cabineiro num navio mercante inglês que fazia a travessia do Atlântico. Só em alto-mar descobriu que se tratava de uma embarcação ilícita, dedicada ao comércio de escravos, que ia buscálos em Dacar e, depois, cruzava o Atlântico Sul, enfrentando as calmarias, até Savannah, com os homens, mulheres e crianças comprimidos no porão como animais. Seus gritos e gemidos agonizantes encheram-lhe os ouvidos e o fedor o sufocou, semana após semana. Ele era um menino de oito anos, desprotegido. Desertou em Savannah. Foi o único navio de que desertou, em toda sua vida.
— Você é pior do que os traficantes de escravos — disse, com voz dura. — Compra a carne, põe em bloco e pega o lucro. Já yi um mercado de escravos.
— Nós os tratamos bem! — gritou Tillman. — São apenas selvagens e nós lhes damos uma boa vida. É verdade! — Seu rosto se contorceu, enquanto jazia deitado, lutando para ganhar forças, desesperado de inveja da vitalidade e da saúde de Struan, sentindo-se perto da morte. — Você não vai se beneficiar com a minha morte, que Deus o amaldiçoe pela eternidade!
Struan virou-se para a porta.
— É melhor você esperar. O que tenho para dizer lhe interessa.
— Nada que você possa dizer me interessa!
— Você me chama de vendedor de escravos? Como você conseguiu sua amante, maldito hipócrita? A porta se abriu com violência e Cooper entrou às pressas.
— Ah, olá, Tai-Pan! Não sabia que estava a bordo.
— Olá, Jeff — disse Struan, mal conseguindo controlar sua raiva.
Cooper olhou para Tillman.
— O que há, Wilf?
— Nada. Queria ver você e minha sobrinha. Shevaun entrou e parou, surpreendida.
— Olá, Tai-Pan. Está bem, tio?
— Não, filha. Eu me sinto muito mal.
— O que há, Wilf? — perguntou Cooper.
Tillman tossiu, fracamente.
— O Tai-Pan veio fazer uma “visita”. Pensei que esta é uma ocasião perfeita para resolver um assunto importante. Devo ter outro ataque de febre amanhã e acho... bom — os olhos sem vida voltaram-se para Shevaun. — Estou orgulhoso de lhe dizer que Jeff pediu formalmente sua mão em casamento e aceitei com alegria.
Shevaun empalideceu.
— Não quero me casar ainda.
— Considerei tudo com muito cuidado e...
— Não vou casar!
Tillman se apoiou num cotovelo, com grande esforço.
— Agora, você escute! — ele gritou, fortalecido pela raiva. — Sou seu tutor legal. Durante meses, tenho mantido correspondência com seu pai. Meu irmão aprovou formalmente a união, se eu decidisse que era vantajosa para você. E eu decidi que é. Portanto...
— Mas eu não decidi, tio. Estamos no século dezenove, e não na Idade Média. Não quero casar ainda.
— Não estou preocupado com seus desejos, e você tem toda razão, estamos no século dezenove. Você está prometida. Você vai se casar. A esperança de seu pai e a minha era de que, durante sua visita aqui, Jeff gostasse de você. Ele gostou. — Tillman se deixou cair de costas, exausto. — É um casamento muito bom. E não há mais nada a discutir.Cooper aproximou-se de Shevaun.
— Shevaun, querida, você sabe como eu me sinto. Eu não tinha nenhuma idéia de que Wilf estava... Esperei que, bom... Ela se afastou dele, num recuo, e seus olhos encontraram os de Struan.
— Tai-Pan! Diga a meu tio. Diga-lhe que ele não pode fazer isso... ele não pode prometer minha mão... diga a ele que não pode!
— Quantos anos você tem, Shevaun? — perguntou Struan.
— Dezenove.
— Se seu pai aprovar e seu tio também, você não tem escolha. — Olhou para Tillman. — Suponho que você pôs isso por escrito? Tillman fez um sinal em direção à escrivaninha.
— A carta está ali. Embora você não tenha nada a ver com isso.
— É a lei, Shevaun. Você é menor, portanto obrigada a fazer o que seu pai quiser.
— Struan, tristemente, virou-se para a porta, mas Shevaun o deteve.
— Sabe por que eu estou sendo vendida? — ela exclamou.
— Cale a boca, menina! — gritou Tillman. — Você não me trouxe outra coisa senão problemas, desde que chegou aqui, e é tempo de aprender boas maneiras e respeito pelos mais velhos e por seus superiores.
— Estou sendo vendida por ações — ela disse, com amargura. — Da Cooper-Tillman.
— ‘Não é verdade! — disse Tillman, com o rosto cadavérico.
— Shevaun, você está superexcitada — começou Cooper, todo infeliz. — Foi tudo muito repentino e... Struan começou a se afastar, mas ela o deteve.
— Espere, Tai-Pan. É um trato. Sei como funciona a mente de um político. A política é um negócio caro.
— Cale a boca! — gritou Tillman, e depois gemeu de dor e tornou a cair na cama.
— Sem a renda vinda daqui — ela continuou, depressa, trêmula — papai não pode custear sua campanha como senador. O tio é o irmão mais velho e, se o tio morrer, Jeff pode comprar os interesses de Tillman por uma soma nominativa, e então...
— Ora, Shevaun — interrompeu bruscamente Cooper. — Isto nada tem a ver com meu amor por você. Quem você pensa que eu sou?
— Seja honesto, Jeff. É verdade, não. Sobre a soma nominativa?
— Sim — disse Cooper, depois de uma pausa sombria. — Posso comprar os interesses de Tillman nessas circunstâncias. Mas não fiz esse acordo. Não estou comprando uma escrava. Eu amo você. Quero que seja minha mulher.
— E se eu não for, você não comprará os interesses do tio?
— Não sei. Decidirei quando chegar a hora. Seu tio poderia comprar minhas ações, se eu morresse antes dele. Shevaun virou-se para Struan.
— Por favor, compre-me, Tai-Pan.
— Não posso, garota. Mas também não acho que Jeff esteja comprando você. Eu sei que ele está apaixonado por você.
— Por favor, compre-me — ela disse, com voz trêmula.
— Não posso, garota. É contra a lei.
— Não é. Não é. — Ela chorava incontidamente. Cooper abraçou-a, atormentado. Quando Struan voltou para o Resting Cloud, May-may ainda estava dormindo, tranqüilamente.
Enquanto a vigiava, ele ficou imaginando, obtusamente, o que fazer com relação a Gorth e Culum. Sabia que deveria ir para Macau, imediatamente. Mas não até May-may estar curada — ah, Deus, fazei com que ela se cure. Devo mandar o China Cloud, com Orlov? Talvez Mauss? Ou esperar? Eu disse a Culum para se proteger — mas será que ele fará isso? Ah, Jesus Cristo, ajudai May-may.
À meia-noite, houve uma batida na porta.
— Sim?
Lim Din entrou maciamente. Ele olhou para May-may e suspirou.
— Senhor gordo veio ver Tai-Pan, pode?
As costas e o pescoço de Struan doíam e ele tinha a cabeça pesada, enquanto subia o passadiço até seus alojamentos, no próximo convés.
— Desculpe chegar sem ser convidado e tão tarde, Tai-Pan — disse Morley Skinner, erguendo de uma cadeira seu corpanzil gorduroso e suado. — É, um tanto importante.
— Sempre fico satisfeito de me encontrar com a imprensa, Sr. Skinner. Sente-se. Quer uma bebida? — tentou desviar seus pensamentos de May-may e se forçou a concentrar-se, sabendo que aquela não era uma visita casual.
— Obrigado. Uísque.
Skinner deu uma olhada no rico interior da grande cabina: tapetes chineses verdes sobre os conveses bem esfregados; cadeiras e sofás e o odor de couro limpo e oleado, sal e alcatrão; e o fraco e doce e oleoso cheiro de ópio, vindo dos porões abaixo. Lâmpadas a óleo bem-arrumadas forneciam uma luz pura e cálida e lançavam sombras às vigas do convés principal. Comparava tudo com o galpão que tinha em Hong Kong — um quarto miserável, sujo e fedorento, sobre o grande cômodo que abrigava a impressora.
— É uma gentileza sua me ver, tão tarde — disse ele. Struan ergueu seu copo.
— Saúde!
— Sim, “saúde”. É um bom brinde, nesses dias ruins. Com malária e tudo mais. — Os olhinhos de porco se estreitaram. — Ouvi dizer que tem um amigo com malária.
— Sabe onde encontrar cinchona?
Skinner abanou a cabeça.
— Não, Tai-Pan. Tudo que já li a respeito diz que isso é uma história fantástica. Lenda. — Puxou a prova de um exemplar do semanário Oriental Times e entregou-a a Struan. — Achei que gostaria de ver o editorial a respeito das corridas de hoje. Vou tirar uma edição especial amanhã.
— Obrigado. Foi por isso que veio me ver?
— Não, senhor — Skinner deu goles sedentos no uísque e olhou para o copo vazio.
— Sirva-se, se quiser outro.
— Obrigado — Skinner se arrastou até o garrafão, com as nádegas elefantinas meneando-se. — Queria ter a sua forma, Sr. Struan.
— Então, não coma tanto.
Skinner riu.
— Comer nada tem a ver com a gordura. A pessoa é gorda ou não é. Uma dessas coisas que o Senhor Deus estabelece, quando se nasce. Sempre fui corpulento. — Encheu
o copo e voltou. — Uma informação me chegou às mãos, a noite passada. Não posso revelar a fonte, mas queria discuti-la com o senhor, antes de publicá-la.
Que podre você farejou, meu bom amigo?, pensou Struan. Há tantos para escolher. Só espero que seja o certo.
— É verdade que sou proprietário do Oriental Times, sim. Pelo que sei, só nós dois temos conhecimento disso. Mas, eu nunca lhe disse o que publicar ou não. Você é o diretor e o editor. É totalmente responsável e, se publicar ataques a alguém, é quem será processado. Por quem quer que seja o ofendido.
— Sim, Sr. Struan. E aprecio a liberdade que me dá. — Os olhos pareceram afundar mais, nos rolos de geléia. — A liberdade exige responsabilidade... perante si próprio, o jornal, a sociedade. Não necessariamente nesta ordem. Mas isto é diferente, as...como direi?... “potencialidades” são de longo alcance. — Puxou um pedaço de papel. Estava coberto com hieróglifos escritos às pressas que só ele poderia ler. Ergueu os olhos. — O Tratado de Chuenpi foi repudiado pela Coroa e Hong Kong junto com ele.
— Isso é uma piada, Sr. Skinner? — Struan ficou imaginando quão convincente fora Blore. Será que você apostou corretamente, meu rapaz?, perguntou a si mesmo. O jovem tem um excelente senso de humor: O garanhão aceitou a brida. Cavalos de caneta seriam mais aptos.
— Não, senhor — disse Skinner. — Talvez seja melhor eu ler.
E leu tudo, quase palavra por palavra, que Sir Charles Crosse escrevera, e que Struan dissera a Blore para soprar secretamente nos ouvidos de Skinner. Struan decidira que Skinner era a pessoa indicada para agitar os negociantes até um estado de fúria que os levasse todos, cada qual à sua maneira, a se recusar a deixar Hong Kong perecer; a fazerem agitação, como haviam feito há tantos anos e, afinal, dominado a Companhia das Índias Orientais.
— Não acredito nisso.
— Acho que talvez devesse acreditar, Tai-Pan. — Skinner esvaziou o copo. — Posso?
— Claro. Traga o garrafão para cá. Vai evitar suas idas e vindas. Quem lhe deu a informação?
— Não posso dizer-lhe.
— E, se eu insistir?
— Ainda assim, não lhe direi. Isto destruiria meu futuro como jornalista. Há questões éticas muito importantes envolvidas. Struan testou-o.
— Um jornalista precisa ter um jornal — ele disse, bruscamente.
— É verdade. Esse é o risco que estou correndo ao falar com o senhor. Mas, se quer pôr as coisas nesses termos, ainda assim não lhe contarei.
— Tem certeza de que é verdade?
— Não. Mas acredito que seja.
— Qual a data do despacho? — perguntou Struan.
— 27 de abril.
— E acredita, seriamente, que possa ter chegado aqui tão depressa? Ridículo!
— Eu disse a mesma coisa. Mas ainda acho que a informação é verdadeira.
— Se for verdadeira, então estamos todos arruinados.
— Provavelmente — disse Skinner.
— Não provavelmente... com toda certeza.
— O senhor se esquece do poder da imprensa e do poder coletivo dos negociantes.
— Não temos nenhum poder contra o Ministro de Relações Exteriores. E o tempo age contra nós. Vai publicar isso?
— Sim. Na ocasião certa. Struan movimentou o copo e ficou a observar as lanternas bruxuleando, com suas bordas chanfradas.
— Acho que, quando fizer isso, haverá um pânico monumental. E Longstaff o repreenderá, imediatamente.
— Não estou preocupado com isso, Sr. Struan.
Skinner estava perplexo; Struan não reagia como ele esperava. A menos que o Tai-Pan já soubesse, disse a si próprio, pela centésima vez. Mas não faz sentido ele ter mandado Blore a mim. Blore chegou há uma semana — e, esta semana, o Tai-Pan investiu muitos milhares de taéis em Hong Kong. Seria ação de um louco. Então Blore serviu de correio para quem? Brock? É pouco provável. Porque ele está gastando tão grandes somas quanto Struan. Deve ser o almirante — ou o general — ou Monsey. Monsey! Quem, senão Monsey tem essas ligações de alto nível? Quem, senão Monsey, detesta Longstaff e quer o seu lugar? Quem, senão Monsey, está vitalmente interessado em que Hong Kong seja bem-sucedida? Porque, sem este sucesso, Monsey não tem nenhum futuro no Corpo Diplomático.
— Parece que Hong Kong está morta. Todo dinheiro e esforço que dispendeu nela... que todos dispendemos... será jogado fora.
— Hong Kong não pode acabar. Sem a ilha, todos os futuros portos continentais que tivermos serão lixo.
— Eu sei, senhor. Todos sabemos.
— Sim. Mas o Ministro de Relações Exteriores pensa de outra maneira. Por quê? Eu fico imaginando por quê. E o que, possivelmente, poderíamos fazer? Como convencê-lo, hein? Como?
Skinner era tão favorável a Hong Kong como Struan. Sem Hong Kong, não haveria Casa Nobre. E, sem Casa Nobre não haveria nenhum semanário Oriental Times e nem emprego algum.
— Talvez não seja preciso nós convencermos aquele patife — disse ele, bruscamente, com os olhos gelados.
— Hein?
— Aquele patife nem sempre estará no poder.
O interesse de Struan aumentou. Esta era uma nova perspectiva, e inesperada. Skinner era um leitor voraz de todos os jornais e periódicos e um homem muito bem informado a respeito de questões parlamentares “publicadas”. Ao mesmo tempo – com uma memória extraordinária e um profundo interesse pelas pessoas — Skinner tinha múltiplas fontes de informação.
— Acha que existe uma chance de mudança de governo?
— Aposto dinheiro que Sir Robert Peel e os Conservadores vão derrubar os Whigs este ano.
— É um jogo diabolicamente perigoso. Eu próprio poria dinheiro contra você.
— Apostaria o Oriental Times contra a queda dos Whigs dentro de um ano... e que Hong Kong será mantida pela Coroa?
Struan estava cônscio de que uma aposta assim colocaria Skinner completamente de seu lado e o jornal seria um preço pequeno a pagar. Mas uma rápida concordância mostraria suas intenções.
— Você não tem a menor possibilidade no mundo de ganhar essa aposta.
— É muito boa, Sr. Struan. O inverno na Inglaterra, ano passado, foi um dos piores que já houve... do ponto de vista econômico e industrial. O desemprego é incrível. As colheitas foram terríveis. Sabe que o preço do pão subiu até um xelim e dois penies por unidade, segundo a correspondência da semana passada? O torrão de açúcar está custando oito penies por libra; o chá sete xelins e oito penies; o sabão nove penies cada; os ovos estão a quatro xelins a dúzia. As batatas um xelim a libra. O bacon três xelins e seis penies a libra. Vejamos, agora, os salários; artesãos de todos os tipos, pedreiros, bombeiros, carpinteiros... na maioria ganham dezessete xelins e seis penies por semana, por sessenta e quatro horas de trabalho; os trabalhadores rurais, nove xelins por semana, por Deus sabe quantas horas; operários de fábricas cerca de quinze xelins... isto, se conseguirem encontrar trabalho. Bom Deus, Sr. Struan, o senhor vive no alto da montanha, com uma incrível riqueza que lhe permite dar mil guinéus a uma moça, só porque tem um vestido bonito, e então não sabe, não pode saber que uma pessoa em cada nove, na Inglaterra, é indigente. Em Stockton, quase dez mil pessoas ganharam menos de dois xelins por semana, o ano passado. Trinta mil, em Leeds, menos de um xelim. Quase todos estão passando fome, e somos a nação mais rica da terra. Os Whigs estão com a cabeça na forca e não querem encarar o que todos percebem ser absurdamente injusto. Nada fizeram com relação aos Cartistas, a não ser fingir que são anarquistas. Não querem enfrentar as terríveis condições existentes nos moinhos e fábricas. Bom Cristo, crianças de seis ou sete anos estão trabalhando em jornada de doze horas, e as mulheres também, e representam trabalho barato, então põem os homens na rua. Por que deveriam os Whigs fazer alguma coisa? Possuem a maior parte das fábricas e moinhos. E o dinheiro é o deus deles... cada vez mais, sempre mais, e o resto das pessoas que vá para o inferno. Os Whigs não querem enfrentar o problema irlandês. Meu Deus, houve inanição no ano passado, e de novo este ano, toda Irlanda estará em rebelião outra vez, e já era tempo. E os Whigs não moveram um dedo para reformar o sistema bancário. Por que iriam fazer isso... também possuem os bancos! Veja sua própria falta de sorte! Se tivéssemos uma lei adequada para proteger os depositantes contra as malditas maquinações, contra os malditos Whigs... — ele parou, com um esforço, as mandíbulas tremendo e o rosto corado. — Desculpe, eu não pretendia fazer um discurso. Claro que os Whigs têm de cair. Eu diria que, se não caírem nos próximos seis meses, haverá um banho de sangue na Inglaterra que fará a Revolução Francesa parecer um piquenique. O único homem que pode nos salvar é Sir Robert Peel, por tudo que é sagrado!
Struan lembrou-se do que Culum dissera a respeito da situação na Inglaterra. Ele e Robb haviam dado pouca atenção, considerando suas palavras como divagações de um estudante universitário. E ele não levara muito em conta as coisas que seu próprio pai escrevera, considerando-as desimportantes.
— Se Lord Cunnington cair, quem será o próximo Ministro de Relações Exteriores?
— O próprio Sir Robert. Se não for ele, Lord Aberdeen.
— Mas ambos são contra o livre comércio.
— Sim, mas os dois são liberais e pacíficos. E, uma vez no poder, terão de mudar. Sempre que a oposição ganha o poder e a responsabilidade, muda. O livre comércio é a única maneira pela qual a Inglaterra poderá sobreviver, sabe disso, e, então, terão de apoiá-lo. E precisarão de todo apoio que puderem, dos poderosos e dos ricos.
— Está dizendo que eu deveria apoiá-los?
— O Oriental Times, com a chave, o estoque e a impressora, contra uma queda dos Whigs este ano.
— Acha que pode contribuir para isso?
— Quanto a Hong Kong, ah, sim, sim.
Struan ajeitou sua bota esquerda, para ficar mais confortável, e se recostou na cadeira, outra vez. Deixou que se fizesse um silêncio.
— Cinqüenta por cento das ações, e faço um acordo — disse.
— Tudo ou nada.
— Talvez eu devesse pô-lo para fora e acabar com tudo.
— Talvez devesse. Tem riqueza mais do que suficiente para durar sempre, para si e os seus. Estou lhe perguntando quanto quer Hong Kong... e o futuro da Inglaterra. Acho que tenho uma solução.
Struan se serviu de mais uísque e encheu outra vez o copo de Skinner.
— Feito. Tudo ou nada. Quer cear comigo? Sinto-me um tanto faminto.
— Sim, aceito. Obrigado. Falar dá fome. Muito obrigado. Struan tocou a campainha e abençoou seu pagode por ter arriscado. Lim Din veio e ele pediu comida.
Skinner bebia sofregamente seu uísque e agradecia a Deus por ter julgado o Tai-Pan corretamente.
— Não lamentará isso, Tai-Pan. Ouça um momento. A perda de Longstaff... sei que ele é um amigo seu, mas estou falando de um ponto de vista político... é uma grande sorte para Hong Kong. Em primeiro lugar, ele é de alta estirpe, em segundo é um Whig e, em terceiro, um tolo. Sir Clyle Whalen é filho de um proprietário rural, em segundo lugar não é nenhum tolo e, em terceiro, trata-se de um homem de ação. Em quarto lugar, conhece a índia... passou trinta anos a serviço da Companhia das Índias Orientais. Antes disso, pertencia à Marinha Real. Finalmente, o que é o mais importante de tudo, embora seja, externamente, um Whig, tenho certeza de que deve, em segredo, odiar Cunnington e o atual governo, e tudo faria para provocar sua derrubada.
— Por quê?
— Ele é irlandês. Cunnington tem sido a ponta de lança da maior parte da legislação referente à Irlanda, no curso dos últimos quinze anos, e é diretamente responsável... todos os irlandeses sentem isso... pela desastrosa política que a Inglaterra tem adotado com relação à Irlanda. Esta é a chave para chegar a Whalen, se descobrirmos uma maneira de explorá-la. — Skinner mastigava a unha do polegar manchada de tinta.
Lim Din e outro criado voltaram com pratos de carnes frias, salsichas em salmoura, carnes doces, pastéis frios, tortas frias e grandes canecões de cerveja fresca, além de champanha, num balde de gelo.
Skinner sorriu, cobiçosamente.
— Um festim próprio para um dono de fábrica!
— Próprio para um dono de jornal! Sirva-se.
A mente de Struan fervia. Como dobrar Whalen? Será que os Whigs cairão? Devo colocar meu poder a serviço dos Conservadores, agora? Parar de apoiar homens como Crosse? Já agora circularão na Inglaterra notícias de que a Casa Nobre ainda é a Casa Nobre e mais forte do que nunca. Devo apostar em Sir Robert Peel?— Quando publicar o seu despacho, todos serão tomados de pânico — ele disse, aproximando-se da caça.
— Sim, senhor Struan. Mas sou profundamente contrário à perda de Hong Kong, e penso também no futuro do meu jornal. — Skinner enfiou mais comida na boca, e conversava enquanto mastigava. — Mas há maneiras e maneiras de apresentar uma notícia. É isso que torna o trabalho em jornal tão excitante. — Riu, e um pouco da comida escorreu-lhe pelo queixo. — Ah, sim, tenho o futuro do meu jornal para pensar. — Voltou toda sua atenção para a comida e comeu, monstruosamente.
Struan comeu pouco, perdido em seus pensamentos. Afinal, quando até mesmo Skinner já estava farto, ele ficou em pé e lhe agradeceu pela informação e pelos conselhos.
— Eu lhe informarei em particular, antes de publicar o despacho — disse Skinner, inchado. — Será dentro de uns poucos dias, mas preciso de tempo para planejar. Obrigado, Tai-Pan. — Ele foi embora.
Struan desceu. May-may ainda estava desassossegada, em seu sono. Ele mandou fazer uma tarimba no quarto dela e se deixou mergulhar num meio-sono. Ao amanhecer, May-may começou a tremer. Havia gelo em suas veias, em sua cabeça e em seu útero. Era o décimo quinto dia.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
May-may se encontrava deitada, frágil e desamparada como um bebê, sob o peso de doze cobertores. Seu rosto estava cinzento, os olhos horríveis. Por quatro horas, seus dentes bateram. Depois, abruptamente, os calafrios se transformaram em febre. Struan banhou-lhe o rosto com água gelada, mas isto não trouxe nenhum alívio. May-may entrou em delírio. Agitava-se na cama, resmungando e gritando, numa mistura incoerente de chinês e inglês, consumida pelo fogo terrível. Struan a segurava e tentava confortá-la, mas ela não o reconhecia, não o escutava.
A febre desapareceu tão depressa como viera. O suor escorria de May-may, encharcando-lhe as roupas e os lençóis. Seus lábios se partiram ligeiramente e ela proferiu um gemido extático de alívio. Seus olhos se abriram e, aos poucos, começaram a focalizar as coisas.
— Sinto-me tão bem, tão cansada — ela disse, fracamente. Struan ajudou Ah Sam a mudar os travesseiros, lençóis é roupas ensopados.
Então May-may dormiu — como dormem os mortos, inerte. Struan sentou-se numa cadeira e ficou a observá-la. Ela acordou após seis horas, serena mas esgotada.
— Olá, Tai-Pan. Estou com a febre do Vale Feliz?
— Sim. Mas o seu médico tem um remédio que pode curá-la. Ele vai consegui-lo dentro de um ou dois dias.
— Bom. Muito bom. Não se preocupe, não tem importância.
— Por que está sorrindo, garota?
— Ah — ela disse, e fechou os olhos, satisfeita, enfiando-se mais entre os lençóis e travesseiros limpos. — De que outra maneira se pode dominar o pagode? Se a pessoa sorri quando perde, então ganha na vida.
— Você vai ficar boa — disse ele. — Completamente boa. Não se preocupe.
— Não tenho preocupações por mim. Só por você.
— O que você quer dizer? — Struan estava exausto com sua vigília, e angustiado com o fato de que ela parecia mais magra do que antes, fantasmagórica, com os olhos cercados por sombras profundas. E envelhecida.
— Nada. Gostaria de tomar um pouco de sopa. Um pouco de sopa de frango.
— O médico mandou alguns remédios para você. A fim de que se sinta mais forte.
— Ótimo. Eu me sinto fantasticamente fraca. Tomarei o remédio, depois da sopa. Ele mandou vir a sopa e May-may bebeu um pouquinho, depois se deitou outra vez.
— Agora descanse, Tai-Pan — disse ela. Franziu a testa. — Quantos dias antes da próxima febre?
— Três ou quatro — ele disse, muito infeliz.
— Não se preocupe, Tai-Pan. Quatro dias são uma eternidade, não se preocupe. Vá descansar, por favor, e, mais tarde, conversaremos.
Ele foi para sua própria cabina e dormiu mal, acordando a intervalos de poucos momentos, depois tornando a dormir e sonhando que estava acordado, ou permanecendo num meio-sono que não lhe trazia nenhum descanso.
O sol crepuscular estava baixo no horizonte, quando ele despertou. Tomou banho e fez a barba, com o cérebro confuso e anuviado. Olhou para seu rosto no espelho e não gostou do que viu. Pois seus olhos lhe diziam que May-may jamais sobreviveria a três embates daqueles. Doze dias de vida era o que lhe restava, no máximo.
Houve uma batida na porta.
— Sim?
— Tai-Pan?
— Ah, olá, Gordon. Quais são as notícias?
— Nenhuma, eu lamento. Estou fazendo tudo que posso. Como vai a Senhora?
— O primeiro ataque veio e passou. Não foi nada bom, rapaz.
— Está sendo feito todo possível. O médico mandou alguns remédios para manter a força dela, e alguns alimentos especiais. Ah Sam sabe o que fazer.
— Obrigado.
Gordon partiu e Struan voltou outra vez para suas reflexões. Procurava desesperadamente uma solução. Onde conseguirei cinchona? Devia haver alguma, em qualquer parte. Onde haveria casca de árvore peruana na Ásia? Não era casca de árvore peruana, mas casca de árvore dos jesuítas.
Então seus pensamentos vagueantes explodiram numa idéia.
— Pelo amor de Deus! — ele gritou, com uma irrupção de esperança. — Se quer mutucas, procure um cavalo. Se quer casca de árvore dos jesuítas... em que outra parte poderá procurá-la, seu idiota!?
***
Dentro de duas horas, o China Cloud corria como uma Valquíria no porto colorido pelo crepúsculo, com todas as velas levantadas, mas bem rizadas, como proteção contra a monção, que se tornava mais forte. Quando cruzou o canal oeste e alcançou a plena força das ondas e do vento do Pacífico, o navio cambou e o cordame cantou, com exultação.
— A sudeste! — rugiu Struan, no meio do vento.
— Sudeste será, senhorrr — ecoou o timoneiro.
Struan olhou para os ovéns, lá no alto, desenhados contra a noite que chegava implacavelmente, e ficou aborrecido de ver tanta lona rizada. Mas sabia que, com aquele vento leste e aquele mar, as rizes teriam de permanecer.
O China Cloud entrou no novo curso e abriu caminho em meio à noite, mas ainda lutava contra o mar e o vento. Logo iria dar a volta outra vez e então o vento ficaria à sua popa, permitindo-lhe correr livremente.
Depois de uma hora, Struan gritou:
— Todos os homens ao convés... preparar para cuidar do navio!Os homens correram do castelo de proa e ficaram em pé, de prontidão, no escuro, sobre as cordas, amarras e adriças.
— Oeste para sudeste — ele ordenou.
O timoneiro virou a roda do leme para o novo curso, fazendo o clíper virar com o vento. As vergas rangeram e se esticaram a sotavento, as adriças gemeram e se espicharam e o navio entrou no novo curso, enquanto Struan gritava:
— Soltem as rizes da vela principal e da gávea!
O navio rompia as ondas, com o vento bem para a ré do trais, as ondas cascateando à proa.
— Firme para a frente — ordenou Struan.
— Sim, sim, senhorrr — disse o timoneiro, forçando a vista para ver a tremeluzente luz da bitácula e manter um curso firme, enquanto o leme lutava contra ele.
— Assuma, Capitão Orlov!
— Estava na hora, Olhos Verdes.
— Talvez você consiga uma velocidade maior — disse Struan. — Gostaria de chegar imediatamente a Macau! — ele desceu.
Orlov agradeceu a Deus por estar preparado, como sempre, para uma partida imediata. Soube, no momento em que viu o rosto do Tai-Pan, que era melhor o China Cloud sair do porto em tempo recorde, do contrário ficaria sem o navio. E embora sua cautela de homem do mar lhe dissesse que era perigoso tanto pano à noite, em mares cheios de recifes e rochedos, ele exclamou, exultante: “Soltem as rizes do sobre de proa e da gávea superior”, e festejou a alegria de estar no mar e no comando outra vez, após tantos dias ancorado. Impeliu o navio um ponto a estibordo e soltou novas rizes, fazendo
o ganhar cada vez mais velocidade.
— Apronte o escaler dianteiro, Sr. Cudahy! Deus sabe que é melhor estar pronto, quando ele chegar ao convés, e erga a lanterna do timoneiro!
— Sim, sim, senhorrr.
— Baixe a lanterna do timoneiro! Não vamos conseguir nenhum a essa hora da noite! — disse Orlov, corrigindo a si mesmo. — Não vou esperar pelo amanhecer e nem por nenhum maldito timoneiro. Eu mesmo cuidarei do navio. Temos carga urgente a bordo.
Cudahy se curvou, abaixando-se, e aproximou os lábios da orelha de Orlov.
— Será ela, senhor? Aquela que ele estava procurando, comprando seu peso em ouro? Viu o rosto dela?
— Vá lá para a frente, senão eu mando estripar você! E fique com a boca calada, e mande os outros ficarem, pelo sangue de Cristo! Todos devem permanecer confinados ao navio, quando chegarmos a Macau!
— Sim, sim, meu Capitão, senhorrr — disse Cudahy, com uma risada, e ficou em pé, com toda sua altura, dominando o homenzinho de quem gostava e a quem admirava.
— Nossas bocas são conchas de ostras, pelas barbas de São Patrício. Não tema! — Deu um pulo para o passadiço do tombadilho abaixo, e seguiu em frente.
Orlov caminhou pelo tombadilho, imaginando que mistério todo seria aquele, e o que havia de errado com a pequena moça envolta em lençóis que o Tai-Pan trouxera para bordo em seus braços. Viu o atarracado chinês Fong seguindo Cudahy como um cão paciente e imaginou também por que o homem fora enviado a bordo a fim de ser treinado como capitão, e o motivo de ter o Tai-Pan posto um pagão a bordo de cada um dos clíperes.
Gostaria de ter visto o rosto da moça, disse a si próprio. Seu peso em ouro, sim, é o que diz o boato. Eu queria... ah, como eu queria não ser como sou, para poder olhar para o rosto de um homem ou de uma mulher e não ver repulsa e não precisar provar que sou um homem como todos os outros, e melhor do que qualquer outro, nesses mares. Estou cansado de ser Orlov, o Corcunda. Terá sido por isso que senti medo, quando o Tai-Pan disse: “Em outubro, você irá para o norte, sozinho”?
Olhou melancolicamente por sobre a amurada, para as ondas negras que passavam velozmente. Você é o que é, e o mar está esperando. E você é capitão do mais belo navio do mundo. E, uma vez na vida, você olhou para um rosto e viu os olhos verdes examinando-o, simplesmente, como a um homem. Ah, Olhos Verdes, pensou, a infelicidade desaparecendo, eu iria para o inferno em troca do momento que você me ofereceu.
— Alto aí, seus idiotas! Dobrem imediatamente os sobrejoanetes! — gritou.
Para obedecer a sua ordem, os homens correram para o alto outra vez, a fim de aproveitar mais a potência do vento. E então, quando viu as luzes de Macau no horizonte, ele ordenou que as velas fossem rizadas e diminuiu cautelosamente a velocidade do navio. — Mas sempre com a máxima força possível — ao entrar no raso porto de Macau, com o prumador a gritar as profundidades.
— Belo serviço, Capitão — disse Struan. Orlov deu a volta, espantado.
— Ah, não vi você. Aparece de repente, como um fantasma. O escaler está pronto para ser baixado. — Depois, acrescentou, despreocupadamente: — Achei que podia dar conta, sem esperar pelo amanhecer e por um piloto.
— Você lê os pensamentos, Capitão. — Struan olhou para as luzes e para a cidade invisível, perdida na água, mas se erguendo numa crista de montanha. — Ancore em nossa bóia costumeira, proteja pessoalmente minha cabina. Não deve entrar... e nem ninguém mais. Todos estão confinados a bordo. Com a boca fechada.
— Já dei essas ordens.
— Quando as autoridades portuguesas subirem a bordo, peça desculpas por não ter esperado o piloto e pague as taxas costumeiras. E o imposto para os chineses. Diga que estou em terra.
Orlov sabia muito bem que não adiantava perguntar por quanto tempo ele demoraria.
***
O amanhecer clareava o horizonte, quando o China Cloud ancorou a meia milha do cais ainda não discernível no porto a sudoeste. ira o mais próximo que o navio podia chegar, em segurança; a baía era perigosamente rasa e, portanto, quase inútil — outra razão pela qual Hong Kong era uma necessidade econômica. Ao encaminhar depressa para a praia, no escaler, Struan notou as luzes em movimento de outro clíper, que se dirigia para o sul — o White Witch. Alguns navios europeus de menores dimensões estavam ancorados e centenas de sampanas e juncos seguiam seu curso silencioso.
Struan correu ao longo do desembarcadouro ainda alugado pela Casa Nobre. Viu que não havia luz alguma na grande residência da companhia, também alugada aos portugueses. Era uma mansão com colunas, quatro andares, na extremidade mais afastada da praia marginada de árvores. Ele se virou para o norte e caminhou ao longo da praia, contornando a alfândega chinesa. Cruzou uma rua larga e começou a subir a ladeira suave que levava à Igreja de São Francisco.
Estava satisfeito por se encontrar de volta a Macau, de volta à civilização, pisando em ruas pavimentadas, em meio a majestosas catedrais e graciosas casas no estilo mediterrâneo, praças com fontes e amplos jardins, docemente perfumados devido à abundância de flores.
Hong Kong, um dia, será assim, disse a si próprio... com pagode. Depois lembrou-se de Skinner, e Whalen e a malária e de May-may a bordo do China Cloud, tão frágil e tão fraca e da febre que voltaria, em dois ou três dias. E o Blue Cloud? Deveria, em breve, estar de volta à Inglaterra. Será que derrotará o Gray Witch? Ou se encontrará mil milhas atrás, no fundo do mar? E todos os outros clíperes? Quantos perco, nesta temporada? Que
o Blue Cloud chegue primeiro! E como estará Winifred? Será que Culum está bem, onde se encontrará Gorth, e o ajuste de contas acontecerá hoje? A cidade ainda estava adormecida, ao amanhecer. Mas ele sentia olhares de chineses a observá-lo. Subiu o morro e cruzou a bela Praça de São Francisco.
Além da praça, em direção ao norte, no ponto mais elevado do istmo, ficavam as ameias do antigo forte de São Paulo do Monte. E, por trás, o setor chinês de Macau: ruelas e casebres, construídos por sobre casebres, incrustando-se na encosta norte do morro e ali descendo, até sumir.
Por mais meia milha, havia terra plana, e o istmo se estreitava até menos de cento e cinqüenta jardas. Havia jardins, passeios. o verde-esmeralda da pequena pista de corridas de cavalos e o campo de críquete que os ingleses haviam instalado e mantido, ao longo de séculos. Os portugueses não aprovavam as corridas e não jogavam críquete.
A uma centena de jardas além do campo de críquete, estava a muralha onde Macau terminava e começava a China.
A muralha tinha vinte pés de altura, dez de espessura e se estendia de uma praia à outra. Só após ter sido construída, há três séculos, o imperador concordara em arrendar o istmo aos portugueses e permitir-lhes que se instalassem na terra.
No centro da extensão da muralha, havia uma torre de guarda com um portal e um único portão majestoso. O portão para a China estava sempre aberto, mas nenhum europeu o atravessava.
As botas de Struan faziam um ruído alto, enquanto ele corria através da praça e abria os altos portões de ferro lavrado do palácio do bispo, caminhando em seguida pelos jardins cultivados há três séculos. Um dia, terei um jardim como este, prometeu a si mesmo.
Cruzou o pátio dianteiro pavimentado, com as botas batendo forte, e subiu até a grande porta. Puxou o sino e ouviu-o ecoar, lá dentro, puxou-o repetidamente, com insistência.
Afinal, uma lanterna bruxuleou ao longo das janelas do piso térreo e ele ouviu passos aproximando-se e uma torrente de reclamações em português. A porta se abriu.
— Bom-dia. Quero ver o bispo.
O criado meio vestido e meio adormecido olhou para ele sem o reconhecer e sem compreender, depois soltou outra torrente de palavras em português e começou a fechar a porta. Mas Struan empurrou o pé na porta, abriu-a e caminhou para dentro da casa.Entrou no primeiro cômodo — um belo gabinete com estantes — e se sentou numa cadeira com encosto entalhado— Então deixou os olhos caírem sobre o criado boquiaberto.
— O bispo — repetiu.
***
Meia hora mais tarde, Flarian Guineppa, Bispo de Macau, General da Igreja de Roma, entrou caminhando imperiosamente no aposento de que Struan se apoderara. Era um aristocrata de elevada estatura, que carregava com jovialidade seus cinqüenta anos. Seu nariz era romano e adunco, a testa alta, os traços gastos. Usava um barrete magenta e manto da mesma cor, e em torno de seu pescoço tenso estava pendurado um crucifixo cravejado de jóias. Seus olhos negros estavam cheios de sono e eram hostis. Mas, quando deram com Struan, a raiva causada pelo sono desapareceu. O bispo ficou parado no umbral, com todas as fibras do corpo alertas.
Struan levantou-se,
— Bom-dia, Reverendíssimo. Desculpe vir sem ser convidado, e tão cedo.
— Seja bem-vindo, em nome de Deus, senhor — disse o bispo, amavelmente. Fez sinal em direção a uma cadeira. — Vou tomar um pequeno desjejum. Quer acompanharme?
— Obrigado.
O bispo falou laconicamente em português com o criado, que fez uma curvatura e saiu às pressas. Depois, caminhou devagar até a janela, com os dedos sobre seu crucifixo, e olhou para o sol que nascia. Viu o China Cloud ancorado na baía, bem em frente, e os grupos de sampanas que o cercavam. Que emergência, ficou imaginando, traz a mim o Tai-Pan da Casa Nobre? O inimigo que conheço tão bem, mas jamais encontrei?
— Obrigado por ter-me despertado. O amanhecer está muito lindo.
— Sim.
Os dois homens fingiam uma cortesia que nenhum dos dois sentia.
Para o bispo, Struan representava os ingleses protestantes, materialistas, maus, fanáticos, que infringiram as leis de Deus e para sua danação eterna — negaram o Papa, como os judeus haviam negado Cristo; o homem que era o líder deles, quase sozinho destruíra Macau e, com Macau, a dominação católica sobre os pagãos asiáticos.
Para Struan, o bispo representava tudo que ele desprezava nos católicos — o fanatismo dogmático de homens autocastrados que buscavam o poder, homens que sugavam gota a gota dinheiro dos pobres, em nome de um Deus católico, e com essas gotas de dinheiro construíam majestosas catedrais, para a glória de sua versão da divindade, e que, de maneira idolatra, haviam instalado um homem em Roma, como Papa, e tornando este homem árbitro infalível de outros homens.
Criados de libré, obsequiosamente, trouxeram bandejas de prata, chocolate quente e levíssimos croissants, manteiga fresca e a doce geléia de kumquat por causa da qual o mosteiro era famoso.
O bispo fez uma ação de graças e o latim aumentou o constrangimento de Struan, mas ele nada disse. Os dois homens comeram em silêncio. Os sinos das inúmeras igrejas badalavam matinas e a fraca e gutural litania dos coros de monges na catedral enchiam o silêncio. Depois do chocolate, veio o café, proveniente do Brasil, colônia portuguesa: quente, doce, forte, delicioso. A um sinal da mão do bispo, um criado abriu uma cigarreira cravejada de jóias e ofereceu-a a Struan.
— São de Havana, se lhe agradam. Depois do desjejum, aprecio a “dádiva” de Sir Walter Raleigh à humanidade.
— Obrigado. — Struan escolheu um. Os criados acenderam os charutos e, a um sinal do bispo, foram embora.
O bispo observava as espirais de fumaça.
— Por que o Tai-Pan da Casa Nobre viria procurar minha ajuda? Ajuda papista? — acrescentou, com um sorriso irônico.
— Pode apostar com segurança, Reverendíssimo, que não está sendo procurado de maneira impensada. Já ouviu falar na casca de árvore chamada cinchona? A casca dos jesuítas?
— Ah, é isso. Está com malária. A febre do Vale Feliz — ele disse, suavemente.
— Sinto desapontá-lo. Não, não tenho malária. Mas uma pessoa a quem quero, sim. A cinchona cura a malária?
Os dedos do bispo brincaram com o grande anel em seu dedo médio, e depois tocaram seu crucifixo.
— Sim. Se a malária do Vale Feliz for a mesma malária existente na América do Sul. — Os olhos dele eram penetrantes. Struan sentiu-lhes o poder, mas devolveu a mirada com a mesma firmeza. — Há muito anos, eu era missionário no Brasil. Contraí a malária ali existente. Mas a cinchona me curou.