LIVRO I
Dirk Struan subiu ao tombadilho da nau capitânia H.M.S. Vengeance e caminhou em direção ao passadiço. O navio de linha, com seus 74 canhões, estava ancorado a meia milha de distância da praia. Em torno, encontrava-se o restante das belonaves da frota, embarcações para o transporte de tropas e clíperes de ópio dos negociantes chineses.
Amanhecia, naquela cinzenta e fria terça-feira, 26 de janeiro de 1841.
Enquanto Struan caminhava pelo convés principal, deu uma olhada em direção à costa e ficou todo excitado. A guerra com a China fora como ele planejara. A vitória havia sido alcançada de acordo com suas previsões. E o prêmio da vitória — a ilha — era algo que ele cobiçava há vinte anos. Agora, ia desembarcar para presenciar a cerimônia de posse, ver uma ilha chinesa tornar-se uma jóia na coroa de Sua Majestade, a Rainha Vitória da Grã-Bretanha.
A ilha era Hong Kong. Trinta milhas quadradas de pedra montanhosa, ao norte da embocadura do grande Rio Pérola, ao sul da China. A mil jardas de distância do continente. Inóspita. Árida. Desabitada, tendo apenas ao sul uma pequena vila de pescadores. Varrida pelas monstruosas tempestades que explodiam todo ano, originadas no Pacífico. Marginada a leste e oeste por perigosos baixios e recifes. Sem utilidade para o mandarim — nome dado a qualquer oficial do imperador chinês — em cujos domínios se situa.
Mas Hong Kong continha o maior porto da terra. E era o degrau de acesso de Struan à China.
— Amarrar os cabos! — bradou o jovem oficial de vigia para o fuzileiro de capote vermelho. — A chalupa do Sr. Struan no passadiço a meia-nau!
— Sim, senhor! — O fuzileiro inclinou-se por sobre a amurada e repetiu a ordem.
— Não vai demorar nem um minuto, senhor — disse o oficial, tentando conter seu pavor do príncipe dos mercadores, que era uma lenda nos mares da China.
— Não tem pressa, rapaz.
Struan era um homem gigantesco, com o rosto castigado por mil tempestades. Seu casaco azul de marinheiro tinha botões prateados e as calças brancas e apertadas estavam enfiadas, descuidadamente, em botinas navais. Estava armado da maneira usual — uma faca na prega às costas e outra na bota direita. Tinha quarenta e três anos, cabelos ruivos, olhos verdes-esmeralda.
— Está um dia lindo hoje — disse.
— Sim, senhor.
Struan desceu o passadiço, entrou na proa de sua chalupa e sorriu para seu meioirmão mais moço, Robb, sentado a meia-nau.
— Estamos atrasados — disse Robb, sorrindo.
— Sim. Sua Excelência e o almirante falaram demais. — Struan olhou a ilha, por um momento. Depois, virou-se para o mestre. — Ao mar. Vamos até à praia, Sr. McKay!
— Sim, sim, senhorrr!
— Afinal, depois de tanto tempo, hein, Tai-Pan? — disse Robb. “Tai-Pan”, em chinês, significava “líder supremo”. Numa empresa, exército, armada ou nação só há um homem desses, o que exerce o poder absoluto.
— Sim — disse Struan.
— Ele era o Tai-Pan da Casa Nobre.
CAPÍTULO UM
— Esta ilha horrorosa que se dane — disse Brock, cujo olhar percorria a praia e se elevava pelas montanhas. — A China toda a nossos pés, e tudo que conseguimos é este rochedo estéril e inútil.
Ele estava na praia, acompanhado de dois de seus colegas negociantes na China. Espalhados em torno deles, havia outros grupos de negociantes e oficiais da força expedicionária. Estavam todos à espera de que o oficial da Marinha Real começasse a cerimônia. Uma guarda de honra de vinte fuzileiros encontrava-se formada em duas linhas bem arrumadas, junto ao mastro, o escarlate de seus uniformes como um repentino salpico de cor. Perto deles, havia grupos desarrumados de marinheiros que haviam acabado de lutar para trazer aquele mastro e sua bandeira até o solo pedregoso.
— As oito badaladas marcaram a hora de içar a bandeira — disse Brock, com a voz rouca de impaciência. — Já se passou uma hora. Por que diabo essa demora?
— É mau pagode praguejar na terça-feira, Sr. Brock — disse Jeff Cooper. Era um americano magro de Boston, com nariz adunco, e usava casaco negro e cartola de feltro, inclinada num ângulo elegante. — Muito mau!
O sócio de Cooper, Wilf Tillman, empertigou-se ligeiramente, sentindo as ocultas arestas da voz anasalada do companheiro mais jovem. Ele era baixote e corado, e vinha do Alabama.
— Digo-lhe com toda certeza, toda essa merda é um mau pagode! — disse Brock. Pagode era uma palavra chinesa significando sorte, destino, bom e mau, tudo junto. — Mau como diabo.
— Melhor que não seja, senhor — disse Tillman. — O futuro do comércio na China está aqui, agora... mau pagode ou bom pagode. Brock olhou-o com firmeza.
— Hong Kong não tem futuro nenhum. É de portos abertos no continente chinês que precisamos, e você sabe disse, por Deus!
— O porto é o melhor que há nessas águas — disse Cooper. — Há espaço de sobra para querenar e reparar todos os nossos navios. Espaço de sobra para construir nossas casas e armazéns. E sem qualquer interferência chinesa, afinal.
— Uma colônia precisa ter terra arável e camponeses para trabalhar a terra, Sr. Cooper. E renda — disse Brock, com impaciência. — Já caminhei por aí tudo, e o senhor também. Não é possível cultivar nada aqui. Não há prados e nem rios, tampouco pastagens. Então, não haverá carne e nem colheita. Tudo aquilo que for necessário terá de vir por mar. Pense no preço. Ora, até os peixes apodrecerão. E quem vai pagar a manutenção de Hong Kong, hein? Nós e o nosso comércio, por Deus!
— Ah, é esse o tipo de colônia que deseja, Sr. Brock? — disse Cooper. — Pensei que o Império Britânico — ele cuspiu habilmente, na direção do vento — já tinha bastantes colônias desse tipo.
A mão de Brock aproximou-se de sua faca.
— Está cuspindo para limpar a garganta ou cuspindo no Império?
Tyler Brock tinha quase cinqüenta anos e era um homem grandalhão, tão duro e resistente como o ferro que fora obrigado a mascatear em Liverpool, quando jovem, e tão forte e perigoso como os navios mercantes, dos quais fugira e, afinal, aos quais chegara a comandar, como diretor da Brock e Filhos. Suas roupas eram opulentas e a faca que tinha à cintura era cravejada de pedras preciosas. Sua barba começava a ficar grisalha, como o cabelo.
— O dia está frio, Sr. Brock — disse Tillman depressa, aborrecido, interiormente, com a língua solta de seu jovem sócio. Brock não era homem para ser provocado, e eles não podiam permitir-se ainda uma aberta inimizade com ele. — O vento está um bocado frio, hein, Jeff?
Cooper fez um rápido sinal afirmativo com a cabeça. Mas não tirou os olhos de Brock. Não tinha faca, mas havia uma pistola em seu bolso. Era da mesma altura de Brock, porém mais magro, e destemido.
— Vou dar-lhe um conselho, Sr. Cooper — disse Brock. — É melhor não cuspir com muita freqüência depois de dizer “Império Britânico”. Talvez não lhe concedam o benefício da dúvida.
— Obrigado, Sr. Brock, eu me lembrarei — respondeu Cooper, despreocupadamente. — E vou dar-lhe também um conselho: é mau pagode praguejar numa terça-feira.
Brock conteve a raiva. Acabaria esmagando Cooper e Tillman e a companhia deles, a maior entre os negociantes americanos. Mas, agora, precisava dos dois como aliados contra Dirk e Robb Struan. Brock praguejou contra o pagode. O pagode tornara Struan e Companhia a maior casa de comércio da Ásia, tão rica e poderosa que os outros negociantes na China denominaram-na, com medo e inveja, a Casa Nobre — nobre porque era a primeira em riqueza, a primeira em tamanho, a primeira em comércio, a primeira em navios mas, principalmente, porque Dirk Struan era Tai-Pan, o Tai-Pan de todos os tai-pans da Ásia. E o pagode tirara de Brock um olho, há 17 anos, no ano em que Struan fundara seu império.
Aconteceu ao largo da Ilha Chushan. Chushan ficava logo ao sul do grande porto de Xangai, perto da embocadura do grande Rio Yang-tsé. Brock atravessara a monção com uma grande carga de ópio — e Dirk Struan vinha atrás dele, com um atraso de alguns dias, também carregando ópio. Brock chegou a Chushan primeiro, vendeu sua carga e começou a voltar, satisfeito por saber que agora Struan teria de ir mais para o norte, e tentar chegar a outro ponto da costa, com novos riscos. Brock seguiu velozmente em direção ao sul, onde morava — em Macau — com os cofres cheios de barras de ouro, o vento soprando favoravelmente. Mas, então, uma grande tempestade se formou sobre os mares da China. Os chineses chamavam essas tempestades de tai-fung, os ventos supremos. Os negociantes as designavam tufões. Eram o próprio terror.
O tufão castigou impiedosamente o navio de Brock e ele ficou preso entre os mastros e vergas caídos. Uma adriça cortada, impelida pelo vento, açoitara-o, enquanto ele se encontrava sem movimentos. Seus homens cortaram o madeirame, soltando-o, mas, antes, a corda partida, com um aro na ponta, vazou-lhe o olho esquerdo. O navio ficou inclinado sobre o costado, com perigo de naufragar, e ele os ajudou a cortar o cordame e os mastros que estavam ao sabor das ondas. Quase por milagre, a embarcação retomou o prumo. Então, ele derramou conhaque na órbita sangrenta; ainda se lembrava da dor.
E se recordava de como se arrastara até o porto, muito tempo depois de ter sido dado como perdido, com seu belo clíper de três mastros reduzido a um mero casco, as soldaduras soltas, sem mastros, sem canhões e nem cordame. E, quando Brock conseguiu substituir a mastreação, os cabos e as torres de amarração, bem como as armas e a pólvora, as balas e os homens, e comprara outra carga de ópio, todos os lucros daquela viagem já haviam desaparecido.
Struan fora atingido pelo mesmo tufão numa pequena lorcha — embarcação com casco chinês e cordame inglês, usada para fazer contrabando costeiro, em ocasiões de bom tempo. Mas Struan saíra da tempestade e, elegante e intocado como de hábito, já estava no cais para cumprimentar Brock, com seus estranhos olhos verdes zombando dele.
Dirk e seu maldito pagode, pensou Brock. Com esse pagode, Dirk transformara aquela única lorcha fedorenta numa frota de clíperes e centenas de lorchas, em armazéns e barras de ouro para entesourar. Na amaldiçoada Casa Nobre. E o pagode empurrou Brock e Filhos para o amaldiçoado segundo lugar. Segundo. E, ele pensou, o pagode o fez cair nas boas graças de nosso amaldiçoado e cagão plenipotenciário, o Ilustre Amaldiçoado Longstaff, todos esses anos. E agora, juntos, eles nos traíram. Hong Kong que se dane, e Struan também!
— Se não fosse o plano de Struan, vocês jamais teriam ganho essa guerra tão facilmente — disse Cooper.
A guerra começara em Cantão dois anos antes, quando o imperador chinês, decidido a controlar os europeus, tentara eliminar o contrabando de ópio, essencial ao comércio britânico. O Vice-Rei Ling cercou de tropas o núcleo dos estrangeiros em Cantão e pediu que fossem entregues todas as caixas de ópio existentes na Ásia, como resgate para as vidas dos indefesos negociantes ingleses. Finalmente, foram entregues e destruídas vinte mil caixas de ópio e os britânicos tiveram permissão para se refugiar em Macau. Mas os ingleses não poderiam aceitar interferências assim em seu comércio, ou ameaças a pessoas de sua nacionalidade. Seis meses depois, a Força Expedicionária Britânica chegara ao Oriente e fora colocada, ostensivamente, sob o comando de Longstaff, o Capitão-Superintendente do Comércio.
Mas foi Struan quem concebeu o inspirado plano de se desviarem de Cantão, onde
o problema todo tinha começado, e enviarem, em vez disso, a força expedicionária ao norte, a Chushan. Seria simples tomar esta ilha sem perdas, teorizara Struan, porque os chineses não tinham preparo e nem defesa para enfrentar qualquer exército ou frota moderna européia. Deixando uma pequena força de resistência em Chushan, e alguns poucos navios bloqueando o Yang-tsé, a força expedicionária poderia navegar para o norte, até a boca do Rio Pei Ho, e ameaçar Pequim, a capital da China, que ficava a apenas uma centena de milhas rio acima. Struan sabia que só uma ameaça assim tão direta faria o imperador pedir paz imediatamente. Uma idéia soberba. E funcionara de maneira brilhante. A força expedicionária chegara ao Oriente em junho passado. Em julho, Chushan tinha sido tomada. Em agosto, a frota já estava fundeada no Pei Ho. Duas semanas mais tarde, o imperador enviava um oficial para negociar a paz — a primeira vez, na história, que qualquer imperador chinês reconhecia oficialmente uma nação européia. E a guerra terminara quase sem perdas de ambas as partes.
— Longstaff foi muito sábio ao seguir o plano — disse Cooper.
— Qualquer negociante na China saberia como fazer os chineses se ajoelharem — disse Brock, com a voz rouca. Ele empurrou mais para trás, sobre a testa, a sua cartola, e afrouxou a venda do olho. — Mas por que Longstaff e Struan concordaram em negociar lá em Cantão, hein? Qualquer tolo perceberia que “negociar” para o chinês quer dizer ganhar tempo. Deveríamos ter ficado no norte, no Pei Ho, até a paz ser firmada. Mas não, fizemos a frota voltar e, durante os últimos seis meses, estamos esperando interminavelmente que os patifes assinem alguma coisa. — Brock cuspiu. — Uma estupidez, uma louca estupidez. E toda essa perda de tempo e dinheiro por causa desta merda de rochedo. Deveríamos ter ficado com Chushan. Aquela ilha valia a pena. — Chushan tinha vinte milhas de comprimento e dez de largura e sua terra era fértil e rica com um bom porto e uma grande cidade, Ginghai. — Ali tem espaço para um homem respirar de verdade. Ora, de lá três ou quatro fragatas podem bloquear o Yang-tsé num abrir e fechar de olhos E quem controla aquele rio controla o coração da China. Pelo amor de Deus, é onde devíamos nos estabelecer.
— O senhor ainda tem Chushan, Sr. Brock.
— Sim. Mas não está citada no amaldiçoado tratado e, então não vai ser nossa. — Ele bateu os pés no chão, para aquecê-los, pois o vento ia ficando cada vez mais frio.
— Talvez devesse falar disso a Longstaff — disse Cooper. — Ele é sensível a conselhos.
— Não aos meus, aposto. Como sabe muito bem. Mas eu lhe digo, quando o Parlamento souber desse tratado, vai ser preciso pagar um dinheirão, pode ter certeza. Cooper acendeu um charuto.
— Estou inclinado a concordar. É um espantoso pedaço de papel, Sr. Brock. Para os nossos tempos. Quando toda potência européia está louca por terra e poderes.
— E os Estados Unidos não, quer dizer? — O rosto de Brock se endureceu. — E os índios? A compra de Louisiana? Da Flórida espanhola? Vocês têm andado de olho no México e no Alasca russo. Segundo as últimas notícias, até tentaram roubar o Canadá. Hein?
— O Canadá é americano, não inglês. Não vamos fazer uma guerra no Canadá. Eles se juntarão a nós por vontade própria — disse Cooper, escondendo seu aborrecimento.
Ele puxou com força as suíças e envolveu mais apertadamente os ombros com seu casaco de marinheiro, para se proteger do vento, que esfriava mais ainda. Sabia que a guerra com o Império Britânico seria desastrosa naquela ocasião e arruinaria Cooper-Tillman. Malditas guerras. Ainda assim, tinha certeza de que os Estados Unidos precisariam ir fazer a guerra no México e no Canadá, a menos que fosse assinado um acordo. Exatamente como a Grã-Bretanha precisara guerrear com a China.
— Não haverá guerra — disse Tillman, tentando diplomaticamente acalmar Cooper.
Ele suspirou, e desejou estar de volta ao Alabama. Lá, um homem pode ser um cavalheiro, pensou. Lá, não é preciso lidar todo dia com os amaldiçoados ingleses, ou com gente da ralé, blasfemos e desbocados como Brock, ou um demônio em forma de homem, feito Struan, ou até com um jovem impetuoso, e sócio importante, como Jefferson Cooper, que tinha Boston como o centro do mundo.
— E esta guerra acabou, bem ou mal — acrescentou.
— Ouça bem o que eu digo, Sr. Tillman — disse Brock. — Esse maldito tratado não é bom nem para nós, nem para eles. Devíamos conservar Chushan e portos abertos no continente chinês. Estaremos em guerra outra vez, dentro de algumas semanas. Em junho, quando o vento estiver bem forte, a frota terá de navegar para o norte, novamente até Pei Ho. E, se estivermos de novo em guerra, como conseguiremos os chás e as sedas da temporada? Ano passado, quase não houve comércio, por causa da guerra. No ano anterior, comércio nenhum, e eles nos roubaram todo ópio. Só minhas, oito mil caixas. Isto me custou dois milhões de taéis de prata. Em dinheiro vivo.
— Aquele dinheiro não está perdido — disse Tillman. — Longstaff nos mandou entregá-lo. Para resgatar nossas vidas. Ele nos deu papel, em nome do Governo britânico. E há um acordo no tratado. Seis milhões de taéis de prata para pagar aquilo.
Brock riu, rudemente.
— Acha que o Parlamento vai respeitar o papel de Longstaff? Ora, qualquer governo seria derrubado na hora em que pedisse dinheiro para pagar ópio. Quanto aos seis milhões... servirão para custear as despesas da guerra. Conheço o Parlamento melhor do que o senhor. Despeça-se para sempre de seu meio milhão de taéis, é o conselho que eu dou aos dois. E, se estivermos em guerra outra vez, este ano, novamente não haverá comércio. Se não houver comércio este ano, entraremos todos em bancarrota. O senhor, eu e todos os que comerciam na China. Até a maldita Casa Nobre.
Puxou com impaciência o relógio. A cerimônia deveria ter começado há uma hora. O tempo expirava, pensou. Sim, mas não para Brock e Filhos, pelo amor de Deus. Dirk tivera um período de dezessete anos de bom pagode e agora era hora de mudar.
Brock se encantava ao pensar em seu segundo filho, Morgan, que controlava — com implacável competência — todos os seus interesses na Inglaterra. Ficou imaginando se Morgan tinha conseguido minar a influência de Struan no Parlamento e nos círculos bancários. Nós vamos fazer você naufragar, Dirk, pensou ele, e Hong Kong junto com você.
— Por que diabo será essa demora? — perguntou, aproximando-se apressadamente do oficial da Marinha que caminhava de um lado para outro, perto dos fuzileiros. — Que há com você, Jeff? Sabe que ele está certo a respeito de Hong Kong — disse Tillman. — Devia entender que não deve arreliá-lo. Cooper deu o seu magro sorriso.
— Brock tem uma maldita auto-suficiência. Não consegui conter-me.
— Se ele estiver certo com relação ao meio milhão de taéis, ficaremos arruinados.
— Sim. Mas Struan vai perder dez vezes isso, se não houver pagamento. Ele vai receber o dele, não tenha medo. Então, nós receberemos o nosso. — Cooper acompanhou Brock com o olhar. — Acha que ele sabe do nosso acordo com Struan?
Tillman encolheu os ombros.
— Não sei. Mas Brock tem razão quanto ao tratado. É estúpido. Vai nos custar um bocado de dinheiro.
Durante os últimos três meses, Cooper-Tillman tinham atuado como agentes secretos para a Casa Nobre. Belonaves britânicas bloqueavam Cantão e o Rio Pérola, e os comerciantes ingleses ficaram proibidos de negociar. Longstaff — a pedido de Struan — colocara em vigor o embargo, como outra medida para forçar o tratado de paz, sabendo que os armazéns de Cantão estavam repletos de chá e de sedas. Mas, como a América não declarara guerra à China, os navios americanos podiam atravessar livremente o bloqueio, passando pelos navios de guerra. Então, Cooper-Tillman haviam comprado quatro milhões de libras de chá a Chen-tsé Jin Arn — ou Jin-qua, como era apelidado — o mais rico dos mercadores chineses, e embarcaram-nas para Manilha, supostamente destinadas a comerciantes espanhóis. A autoridade espanhola local, em troca de um considerável suborno, emitira as necessárias licenças para importação e exportação e o chá fora transferido — livre de impostos — para os clíperes de Struan, que o levaram apressadamente para a Inglaterra. O pagamento a Jin-qua foi toda uma carga de ópio, entregue secretamente por Struan, em algum ponto da costa.
Um plano perfeito, pensou Cooper. Todos estão mais ricos e conseguem as mercadorias que querem. Mas teríamos feito uma fortuna, se nossos navios pudessem ter entregue o chá diretamente à Inglaterra. E ele amaldiçoou os Decretos de Navegação Britânica, que proibiam qualquer navio, com exceção dos britânicos, de levar mercadorias até portos ingleses. Malditos sejam, são os donos do mundo.
— Jeff!
Cooper acompanhou o olhar de seu sócio. Por um momento, não conseguiu entender o que Tillman queria que ele visse, no porto apinhado. Depois, viu a chalupa afastar-se da nau capitania, conduzindo o alto e ruivo escocês, tão poderoso a ponto de dobrar o Parlamento aos seus objetivos e fazer entrar em guerra a maior nação do mundo.
— Seria esperar muito ver Struan afogar-se — disse Tillman. Cooper riu.
— Você está enganado a respeito dele, Wilf. De qualquer maneira, o mar nunca ousaria fazer uma coisa dessas.
— Talvez sim, Jeff. Já é tempo. Por tudo que é sagrado.
***
Dirk Struan estava em pé à proa da chalupa, cavalgando a crista das ondas. E, embora já estivesse atrasado para a cerimônia, não apressou os remadores. Sabia que nada começaria até ele chegar.
A chalupa estava a trezentos metros da praia e as ordens de comando do mestre misturavam-se agradavelmente com a forte monção que vinha do nordeste. Lá longe, nas alturas, o vento ganhava força e impelia os cúmulus do continente para a ilha e, de lá, em direção ao oceano.
O porto estava cheio de navios, todos ingleses, com exceção de umas poucas embarcações americanas e portuguesas, barcos mercantes de todos os tamanhos. Antes da guerra, esses barcos mercantes teriam fundeado em Macau, a pequena colônia portuguesa, numa ponta do continente, quarenta milhas sudoeste, por sobre a grande embocadura do Rio Pérola. Ou ao largo da Ilha de Whampoa, treze milhas ao sul de Cantão. Esta era a maior aproximação de Cantão permitida a qualquer navio europeu, segundo a lei chinesa. De acordo com um decreto imperial, todo comércio europeu restringia-se a esta cidade. Dizia a lenda que mais de um milhão de chineses viviam dentro de suas muralhas. Mas europeu algum tinha certeza disto, porque nenhum deles caminhara jamais por aquelas ruas.
Desde a Antigüidade, os chineses tinham leis rígidas excluindo os europeus de seu país. A inflexibilidade dessas leis, a falta de liberdade, para os europeus, de irem onde queriam, e de comerciar como queriam, provocara a guerra.
Enquanto a chalupa passava perto de um navio mercante, algumas crianças acenaram para Struan, e ele respondeu ao aceno. Será bom para as crianças terem, afinal, os seus lares, em terra própria, pensou ele. Quando a guerra começara, todos os cidadãos britânicos haviam sido evacuados para os navios, a fim de ficarem em segurança. Havia aproximadamente cento e cinqüenta homens, sessenta esposas, oitenta crianças. Algumas das famílias ficaram a bordo de navios por quase um ano.
Em torno dos navios mercantes, estavam as belonaves da Força Expedicionária Britânica: navios de linha de 74 canhões, 44, 22, brigues, fragatas, uma pequena parte da mais poderosa armada que já existira no mundo.
E, entre esses navios, estavam os bonitos clíperes de ópio, com seus mastros enviesados, as mais velozes embarcações já construídas.
Struan sentiu um calor de excitação ao examinar a ilha, com sua montanha principal que se elevava a cento e oitenta pés, quase a prumo do mar.
Ele jamais pisara na ilha, embora soubesse mais a seu respeito do que qualquer outro homem. Jurara não desembarcar ali até o local pertencer aos britânicos. Agradavalhe ser assim arrogante. Mas isto não o impedira de mandar seus capitães e o irmão mais moço, Robb, à terra, a fim de explorar a ilha. Conhecia os recifes, os rochedos, os vales e as colinas, e sabia onde ia construir seus armazéns e a Grande Casa, bem como o local em que passaria a estrada.
Virou-se para olhar o seu clíper, o China Cloud, de 22 canhões. Todos os clíperes de Struan e da companhia tinham Cloud como segundo nome, em honra de sua mãe, cujo sobrenome era McCloud, morta há anos. Marinheiros pintavam e limpavam a embarcação, que já reluzia. Os canhões eram examinados e o cordame testado. O pavilhão do Reino Unido tremulava orgulhosamente à popa, e a bandeira da companhia no alto da vela.
A bandeira da Casa Nobre era o real leão vermelho da Escócia, entrelaçado com o dragão verde imperial da China. Drapejava em vinte clíperes armados, espalhados pelos oceanos do mundo numa centena de velozes lorchas armadas que contrabandeavam ópio pela costa acima. E também em três grandes navios-depósitos para o abastecimento de ópio — antigos navios mercantes, atualmente ancorados no porto de Hong Kong. Drapejava ainda no Resting Cloud, embarcação na qual estava seu quartel-general, com quartos-fortes repletos de barras de ouro, escritórios, suítes luxuosas e salões de refeições.
É uma bela bandeira, pensou Struan, orgulhosamente.
O primeiro navio a içar a bandeira fora uma lorcha pirata carregada de ópio, que ele tomara à força. Piratas e corsários infestavam a costa, e as autoridades chinesas e portuguesas ofereciam uma recompensa em prata para quem os capturasse. Quando o vento impedia o contrabando de ópio, ou quando ele não tinha ópio algum para vender, esquadrinhava os mares da China. As barras de ouro ganhas com os piratas, investiu no ópio.
Maldito ópio, pensou. Mas sabia que sua vida estava inexoravelmente ligada ao ópio — e que, sem ele, nem a Casa Nobre e nem o Império Britânico poderiam existir.
A razão para tanto remontava a 1699, quando o primeiro navio britânico negociara pacificamente com a China e levara de volta sedas e, pela primeira vez, a inigualável planta chamada chá — que só a China, no mundo, produzia de maneira barata e em abundância. Em troca, o imperador só recebia barras de prata. E esta diretriz persistira, desde então.
Dentro de pouco mais de cinqüenta anos, o chá se tornara a bebida mais popular do mundo ocidental — particularmente na Grã-Bretanha, a maior nação comerciante da terra. Em setenta anos, o chá era a única fonte importante de renda interna de impostos para o Governo britânico. Num século, o fluxo de riqueza derramado na China esvaziara de maneira crítica o tesouro inglês, e a troca desequilibrada de chá por prata tornou-se uma catástrofe nacional.
No curso do século, a Companhia das índias Orientais Britânica — a gigantesca firma semiprivada, semipública que detinha, através de um decreto parlamentar, o monopólio do comércio indiano e asiático — oferecera de tudo, com crescente desespero — algodão, teares, até canhões e navios — em substituição à prata em barras. Mas os imperadores, autoritariamente, recusaram. Consideravam a China auto-suficiente, sentiam desprezo pelos “bárbaros”, como chamavam os não chineses, e encaravam todas as nações do mundo apenas como Estados vassalos da China.
E então, há trinta anos, um navio mercante britânico, o Vagrant Star, subira o Rio Pérola e ancorara ao largo da Ilha de Whampoa. Sua carga secreta era ópio, que a Bengala britânica produzia barato e abundante. Embora o ópio fosse usado na China há séculos — mas só os muito ricos o consumiam, e os moradores da Província de Yunnan, os locais onde a papoula também florescia — era considerado contrabando. A Companhia das índias Orientais autorizara clandestinamente o capitão do Vagrant Star a oferecer ópio. Mas só em troca de barras de prata. A Guilda de Mercadores Chineses que, por decreto imperial, monopolizava o comércio ocidental, comprou a carga e a vendeu em segredo, com grande lucro. O capitão do Vagrant Star, em particular, entregou as barras de prata a oficiais da Companhia, em Cantão, e tirou seu lucro em papel moeda, em Londres, voltando em seguida, às pressas, a Calcutá, a fim de conseguir mais ópio.
Struan lembrava-se bem do Vagrant Star. Ele fora camaroteiro a bordo. Nesta embarcação se tornara homem — e vira a Ásia. E jurara destruir Tyler Brock, na época terceiro-imediato do Vagrant Star. Struan tinha doze anos, Brock dezoito, e era muito forte. Brock o odiara à primeira vista e se deliciava em encontrar erros seus, cortar-lhe a ração de alimentos, mandá-lo fazer turnos extras, vigia de mastreação em ocasiões de mau tempo, em atormentá-lo, aguilhoá-lo. Ao menor engano, mandava amarrar Struan no cordame e açoitá-lo com os azorragues.
Struan ficara no Vagrant Star por dois anos. Então, certa noite, o navio bateu num recife, no Estreito de Málaca, e afundou. Struan nadou para a costa e conseguiu chegar a Cingapura. Mais tarde, soube que Brock sobrevivera também, e isto o fez sentir-se muito feliz. Queria vingança, à sua maneira, na ocasião oportuna.
Struan embarcou em outro navio. Agora, a Companhia das índias Orientais dava autorizações, secretamente, a muitos capitães negociantes independentes, cuidadosamente selecionados, e continuava a lhes vender com exclusividade o ópio de Bengala, a preços vantajosos. A Companhia começou a ter grandes lucros e adquiriu grande quantidade de barras de prata. A Guilda Chinesa de Mercadores e os mandarins fecharam os olhos para
o comércio ilícito, porque também tinham grandes lucros. E estes lucros, sendo secretos, não estavam sujeitos aos impostos imperiais.
O ópio se tornou a mercadoria de comércio de torna-viagem. A Companhia, rapidamente, monopolizou o fornecimento mundial de ópio, fora da província de Yunnan e do Império Otomano. Em vinte anos, as barras de prata trocadas pelo ópio contrabandeado igualavam as barras devidas pelos chás e pelas sedas.
Afinal, o comércio se equilibrava. Depois, houve uma ultrapassagem, porque havia vinte vezes mais clientes chineses do que clientes ocidentais, e aí começou um pasmoso fluxo de barras que mesmo a China não poderia agüentar. A Companhia ofereceu outras mercadorias para represar a maré. Mas o imperador permaneceu inflexível: barras de prata em troca do chá.
Quando Struan chegou aos vinte anos, era capitão de seu próprio navio, no comércio do ópio. Brock era seu principal rival. Competiam implacavelmente. Dentro de seis anos, Struan e Brock dominavam o mercado.
Os contrabandistas de ópio ficaram conhecidos como negociantes da China. Eram um grupo intrépido, rijo e enérgico, de capitães-proprietários, individualistas — ingleses, escoceses e alguns americanos — que, sem pensar duas vezes, dirigiam seus pequenos navios para águas desconhecidas e perigos ignorados, fazendo disto um estilo de vida. Navegavam para comerciar pacificamente: a fim de tirar lucros e não conquistar. Mas, se enfrentavam um mar hostil, ou um decreto hostil, seus barcos se tornavam navios de guerra. E, se não combatiam bem, desapareciam e eram logo esquecidos.
Os comerciantes da China logo perceberam que, enquanto eles assumiam todos os riscos, a Companhia ficava com a maior parte dos lucros. Além disso, eram completamente excluídos do comércio legítimo — e altamente lucrativo — de chá e seda. Então, embora continuassem a competir ferozmente, persuadidos por Struan começaram a se agitar, coletivamente, contra a Companhia, a fim de romper seu monopólio. Sem o monopólio, os comerciantes poderiam converter ópio em barras de prata, barras de prata em chá e, depois, levar o chá para seu país e vendê-lo diretamente aos mercados mundiais. Os negociantes da China controlariam eles próprios o comércio mundial de chá e seus lucros se tornariam gigantescos.
O Parlamento se tornou seu foro de agitação. O Parlamento dera à Companhia seu monopólio exclusivo há dois séculos, e só o Parlamento poderia retirá-lo. Então, os negociantes da China jogavam pesadamente, comprando votos, apoiando membros do Parlamento que acreditavam na livre competição e no mercado livre, escrevendo para jornais e para membros do Governo. Estavam decididos e, com o aumento de sua riqueza, também cresceu seu poder. Eram pacientes, tenazes e indomáveis — como só conseguem ser os homens treinados no mar.
A Companhia ficou furiosa com os insurgentes e relutava em perder seu monopólio. Mas precisava desesperadamente que os comerciantes da China fornecessem as barras de prata, para pagarem o chá, e agora dependiam muito da grande renda decorrente da venda do ópio de Bengala. Então, lutou cuidadosamente para se defender no Parlamento. Este se encontrava em igual armadilha. Clamava contra a venda de ópio, mas precisava da renda dos chás e do Império Indiano. O Parlamento tentou ouvir os comerciantes da China e a Companhia, mas não satisfez a nenhum dos dois lados.
Então, a Companhia decidiu fazer de Struan e Brock, seus principais antagonistas, um exemplo. Retirou-lhes suas autorizações para negociar o ópio e as rompeu.
Brock ficou com seu navio, Struan sem nada. Brock entrou em sociedade secreta com outro comerciante da China e continuou a agitar. Struan e sua tripulação atacaram um refúgio de piratas ao sul de Macau, destroçaram-no e tomaram a lorcha mais veloz. Então, ele se tornou um negociante clandestino de ópio a serviço de outros negociantes e, incansavelmente, tomava outros navios piratas, ganhando cada vez mais dinheiro. Em associação com os outros negociantes da China, jogava de maneira cada vez mais pesada, comprando ainda mais votos e continuando a importunar, e exortar, até o Parlamento uivar pela total destruição da Companhia. Sete anos antes, o Parlamento aprovara o decreto que eliminava o monopólio da Companhia na Ásia, e abria o continente ao livre comércio. Mas permitira à Companhia conservar o direito exclusivo de negociar com a índia Britânica — e o monopólio mundial do ópio. O Parlamento lamentava a venda do ópio. A Companhia não queria negociar com ópio. Os próprios comerciantes da China teriam preferido outra mercadoria — se fosse igualmente lucrativa. Mas todos eles sabiam que, sem a balança do chá-barra de prata-ópio, o Império seria destruído. Era uma evidência do comércio mundial.
Com liberdade para negociar, Struan e Brock tornaram-se príncipes mercadores. Suas frotas armadas se expandiram. E a rivalidade aguçou ainda mais sua inimizade.
Para substituir o vácuo político deixado na Ásia, quando o controle da Companhia fora anulado e o comércio liberado, o Governo britânico nomeara um diplomata, o Nobre William Longstaff, como Capitão-Superintendente do Comércio, para proteger seus interesses. Os interesses da Coroa eram um volume crescente de comércio — para ganhar mais com o produto dos impostos — e a contínua exclusão de todas as outras potências européias. Longstaff era responsável pela segurança do comércio e dos cidadãos britânicos, mas seu mandato era vago e ele não recebeu nenhum poder real para colocar em vigor uma política.
Pobrezinho do Willie, pensou Struan, sem malícia. Mesmo com todas as minhas pacientes explicações, no curso dos últimos oito anos, nossa “exaltada” Excelência, o Capitão-Superintendente do Comércio, ainda não consegue enxergar um palmo adiante do nariz.
Struan olhou para a praia, enquanto o sol crestava as montanhas e banhava os homens ali reunidos com uma luz repentina: amigos e inimigos, todos rivais. Virou-se para Robb.
— Você acha que eles são um comitê de recepção? — Todos os anos afastado da Escócia não haviam apagado completamente seu sotaque escocês. Robb Struan deu uma risadinha e colocou seu chapéu de feltro num ângulo mais definido.
— Eu acho que todos eles estão esperando ver-nos morrer afogados, Dirk. — Tinha trinta e três anos, cabelos escuros, rosto barbeado, com olhos fundos, nariz delgado e suíças bastas. Sua roupa era negra, com exceção de um manto de veludo verde, camisa branca pregueada e gravata branca. Os botões da camisa e do punho eram rubis. — Meu Deus, aquele é o Capitão Glessing? — perguntou, espiando a praia.
— Sim — disse Struan. — Achei oportuno que fosse ele a pessoa a ler a proclamação.
— O que disse Longstaff, quando você sugeriu o nome dele?
— “Tudo bem, Dirk, se você acha apropriado”.— Ele sorriu. — Por Deus, já percorremos uma longa estrada, desde que começamos.
— Você sim, Dirk. Já estava tudo pronto quando eu apareci aqui.
— Você é o cérebro, Robb. Eu sou apenas o músculo.
— Sim, Tai-Pan, apenas o músculo. — Robb sabia bem que seu meio-irmão era o Tai-Pan de Struan e Companhia e que, na Ásia, Dirk Struan era o Tai-Pan. — Um belo dia para içar a bandeira, não?
— Sim.
Robb ficou a observá-lo, enquanto ele virava as costas para a praia. Parecia tão grande, em pé ali na proa, maior do que as montanhas, e tão duro quanto elas. Eu queria ser como ele, pensou Robb.
Robb só fizera uma vez o contrabando do ópio, pouco depois de chegar ao Oriente. O navio em que os dois se encontravam fora atacado por piratas chineses e Robb ficara aterrorizado. Ainda sentia vergonha, embora Struan tivesse dito “não tem nada demais nisso, rapazinho. A primeira vez em que se combate é sempre ruim”. Mas Robb sabia que ele não era um combatente, nem um bravo. Servia a seu meio-irmão de outras maneiras. Comprando chás, sedas e ópio. Arranjando empréstimos e vigiando as barras de prata. Compreendendo os procedimentos modernos, cada vez mais complicados, do comércio e do financiamento internacional. Defendendo seu irmão, a companhia e sua frota, e dandolhes segurança. Vendendo chás na Inglaterra. Fazendo a escrituração e todas as coisas necessárias para o funcionamento de uma companhia moderna. Sim, disse Robb a si próprio, mas sem Dirk você não é ninguém.
Struan estava observando os homens na praia. A chalupa ainda se encontrava a duzentos metros de distância. Mas ele via nitidamente os rostos. A maioria deles olhava para a chalupa. Struan sorriu de si para consigo.
Sim, pensou, estamos todos aqui, neste dia histórico.
***
O oficial de marinha, Capitão Glessing, esperava pacientemente pelo começo da cerimônia de hasteamento da bandeira. Tinha vinte e seis anos, era capitão de um navio de linha, filho de um vice-almirante, e a Marinha Real estava em seu sangue. A praia ficava cada vez mais iluminada, e mais longe, na direção leste, na linha do horizonte, o céu estava cheio de nuvens.
Haverá uma tempestade dentro de poucos dias, pensou Glessing, sentindo o vento. Afastou a vista de Struan e, automaticamente, verificou a posição de seu navio, uma fragata de 22 canhões. Aquele era um dia monumental em sua vida. Não acontecia sempre novas terras serem tomadas em nome da rainha, e o privilégio de ler a proclamação era promissor para sua carreira. Havia muitos capitães na frota de posição superior à dele. Mas sabia que fora escolhido por estar naquelas águas há mais tempo, e porque seu navio, o H.M.S. Mermaid, envolvera-se fortemente em toda a campanha. Que não fora absolutamente uma campanha, pensou ele, com desprezo. Mais um incidente. Tudo poderia ter sido ajeitado há dois anos, se o tolo do Longstaff possuísse alguma energia. E, com certeza, se eu tivesse tido permissão para levar minha fragata até os portões de Cantão. Diabo, afundei toda uma maldita frota de juncos de guerra, e o caminho estava livre. Poderia ter bombardeado Cantão, capturado aquele demônio pagão que é o Vice-rei Ling, e o enforcaria no laís de verga.
Glessing chutou a praia, com irritação. Não é que eu me importe com o fato de os pagãos roubarem o amaldiçoado ópio. É muito correto querer parar o contrabando. Um insulto à bandeira. Vidas de ingleses postas sob resgate por demônios pagãos! Longstaff deveria ter deixado que eu agisse imediatamente. Mas não. Ele humildemente, retirou-se, evacuou todos para a frota mercante, e depois me incapacitou. A mim, por Deus, que tinha de proteger toda frota mercante. Que um raio o parta! E maldito seja Struan, que o leva para o lado que quer.
Bom, acrescentou para si próprio, mesmo assim você tem sorte de estar aqui. Esta é a única guerra que temos, no momento. Pelo menos, a única guerra marítima. As outras são simples escaramuças; a mera tomada dos Estados indianos pagãos — caramba, eles adoram as vacas, queimam as viúvas e se curvam diante de ídolos — e as guerras afegãs. E ele sentiu uma irrupção de orgulho por integrar a maior armada da terra. Graças a Deus nascera inglês!
Abruptamente, notou que Brock se aproximava e ficou aliviado ao vê-lo interceptado por um homem baixo e gordo, sem pescoço, na casa dos trinta, com uma grande barriga que lhe sobrava por cima das calças. Era Morley Skinner, proprietário do Oriental Times, o mais importante entre os jornais ingleses do Oriente. Glessing lia todos os exemplares. Era bem escrito. É importante ter um bom jornal, pensou. Importante ter as campanhas bem registradas, para a glória da Inglaterra. Mas Skinner é um homem revoltante. E todo o resto deles. Bom, nem todos. O velho Aristotle Quance é uma exceção.
Deu uma olhada no homenzinho feio, sentado sozinho numa encosta de onde se descortinava a praia, num banco diante de um cavalete, obviamente pintando, sem parar. Glessing deu uma risadinha de si para consigo, lembrando os bons tempos que passara em Macau, com o pintor.
Além de Quance, Glessing não gostava de mais ninguém ali na praia, com exceção de Horatio Sinclair. Horatio era de sua idade, e Glessing tinha chegado a conhecê-lo muito bem, nos dois anos em que estivera no Oriente. Horatio era também auxiliar de Longstaff, seu intérprete e secretário — o único inglês no Oriente que falava e escrevia fluentemente o chinês — e eles tinham precisado trabalhar juntos.
Glessing perscrutou a praia e viu, com desagrado, que Horatio estava junto à rebentação, conversando com um austríaco, Wolfgang Mauss, um homem a quem ele desprezava. O reverendo Mauss era o único outro europeu no Oriente que escrevia e falava chinês. Era um homem grande, de barba negra — um padre renegado, intérprete e contrabandista de ópio de Struan. Havia pistolas em seu cinto e as abas de seu casaco de marinheiro estavam emboloradas. Seu nariz era vermelho e bulboso e o cabelo comprido, negro-acizentado, emaranhado e revolto como a barba. Os poucos dentes que lhe restavam estavam quebrados e escurecidos, e os olhos dominavam a obesidade do rosto.
Um contraste tão grande com Horatio, pensou Glessing. Horatio era louco, frágil e limpo como Nelson, a quem devia o nome — por causa de Trafalgar e porque ele perdera ali um tio.
Incluído na conversa dos dois, estava um eurasiano alto e esbelto, um rapaz que Glessing só conhecia de vista, Gordon Chen, bastardo de Struan.
Caramba, pensou Glessing, como podem os ingleses exibir tão abertamente bastardos mestiços? E este se vestia como todos os malditos pagãos, uma roupa comprida, com um rabicho horroroso caindo-lhe pelas costas. Se não fossem os olhos azuis e a pele clara, ninguém diria que ele tinha sequer uma gota de sangue inglês. Por que diabo não corta o cabelo como um homem? Nojento.
Glessing virou as costas para eles. Suponho que o mestiço nada tem de errado, não é culpa dele. Mas aquele maldito Mauss é má companhia. Má para Horatio e má para sua irmã, a querida Mary. Ah, uma moça que vale a pena conhecer! Será uma boa esposa, caramba.
Ele hesitou, em sua caminhada. Era a primeira vez que considerava realmente Mary como uma possível companheira.
Por que não? Perguntou a si próprio. Você a conhece há dois anos. Ela é a flor de Macau. Dirige a casa Sinclair impecavelmente e trata Horatio como um príncipe. A comida é a melhor da cidade e ela dirige os criados maravilhosamente. Toca harpa como um sonho e canta feito um anjo, Deus é testemunha. Obviamente, ela gosta de você — por que outra razão você teria um convite permanente para jantar, sempre que você e Horatio estão em Macau? Então, por que não casar, hein? Mas ela nunca esteve lá em nosso país. Passou a vida inteira entre pagãos. Não tem nenhuma renda. Os pais estão mortos. Mas que importância tem isso, hein? O reverendo Sinclair era respeitado em toda Ásia, quando vivo, e Mary é linda e tem apenas vinte anos. Minhas perspectivas são excelentes. Tenho quinhentas libras por ano e herdarei, um dia, a casa senhorial e as terras. Caramba, talvez ela seja a mulher indicada para mim. Poderíamos casar-nos em Macau, na igreja inglesa, e alugar uma casa até terminar esta incumbência, e então iremos para nossa terra. Quando chegar a hora, eu direi a Horatio — “Horatio, meu velho, há uma coisa a respeito da qual quero falar com você...”.
— Por que essa demora toda, Capitão Glessing? — A voz rouca de Brock encerrou seu sonho. — Oito toques do sino marcaram a hora de hastear a bandeira, e já se passou uma hora.
Glessing deu uma volta. Não estava acostumado com um tom de voz agressivo de pessoa alguma com escalão inferior a vice-almirante.
— A bandeira será içada, Sr. Brock, quando acontecerem uma ou duas coisas. Basta Sua Excelência desembarcar, ou um tiro de canhão dar o sinal, da nau capitania.
— E quando vai ser isso?
— Observo que não estão ainda com a representação completa.
— Refere-se a Struan?
— Claro. Ele não é o Tai-Pan da Casa Nobre? — Glessing disse isto deliberadamente, sabendo que irritaria Brock. Depois, acrescentou — sugiro que tenha paciência. Ninguém mandou nenhum de vocês, comerciantes, desembarcarem.
Brock enrubesceu.
— Seria melhor que aprendesse a diferença entre comerciantes e mercadores. — Movimentou seu naco de tabaco para mascar na bochecha, e cuspiu nas pedras, junto aos pés de Glessing. Alguns pingos de saliva mancharam o brilho dos sapatos de fivelas prateadas. — Perdão — disse Brock, com fingida humildade, e se afastou.
O rosto de Glessing gelou. Se não fosse o “perdão” ele o teria desafiado para um duelo. Miserável ralé, ele pensou, cheio de desprezo.
— Com licença, senhor — disse o mestre-d’armas, fazendo continência — o sinal da nau capitania.
Glessing semicerrou os olhos, ao vento forte. Diziam as bandeiras de sinalização: “Todos os capitães se apresentem a bordo, quando soarem quatro badaladas do sino.” Glessing estivera presente, a noite passada, numa reunião particular com o almirante e Longstaff. O almirante dissera que o contrabando de ópio era a causa de todos os problemas da Ásia. “Deus do céu, senhor, eles não têm nenhum senso de decência”, explodira ele. “Só pensam em dinheiro. Eliminem o ópio, e não teremos mais nenhum maldito problema com os malditos pagãos, ou os malditos negociantes. A Marinha Real cumprirá sua ordem, por Deus!” E Longstaff concordara, justificadamente. Suponho que a ordem será anunciada hoje, pensou Glessing, esforçando-se para conter sua satisfação. Bom. E estava na hora. Fico imaginando se Longstaff acabou de dizer a Struan que está dando a ordem.
Deu uma olhada para trás, em direção à chalupa que se aproximava, lentamente. Struan o fascinava. Ele o admirava e detestava — o marinheiro mestre que pilotara navios em todos os oceanos do mundo, que destruíra homens, companhias e navios para a glória da Casa Nobre. Tão diferente de Robb, pensou Glessing; eu gosto de Robb.
Estremeceu, sem querer. Talvez houvesse alguma verdade nas histórias sussurradas pelos marinheiros em todos os mares da China, histórias de que Struan cultuava em segredo o Demônio e, em troca, o Demônio lhe dera poder sobre a terra. De que outra maneira poderia um homem de sua idade ter um aspecto tão jovem e ser tão forte, com dentes brancos e todo o cabelo, e os reflexos de um rapaz, quando, na maioria, os homens estariam enfermos e gastos, e perto da morte? Por certo, os chineses sentiam terror de Struan. “O velho rato com os olhos verdes do Diabo”, eles o apelidaram, e puseram-lhe a cabeça a prêmio. Pois ninguém o apanharia vivo.
Glessing, com irritação, tentou mover os dedos do pé dentro dos sapatos afivelados. Seus pés doíam, e ele não se sentia confortável no uniforme com galões dourados. Maldita demora! Maldita ilha, e o porto, e o desperdício de bons navios, e de bons homens. Lembrou-se de seu pai, dizendo: “Amaldiçoados civis. Tudo que pensam é em dinheiro ou poder. Não têm o menor sentido de honra, o mínimo sequer. Cuidado com a bunda, filho, quando um civil estiver no comando. E não esqueça que até Nelson teve de colocar o telescópio em seu olho cego, quando havia um idiota no comando”. Como poderia um homem como Longstaff ser tão estúpido? Ele é de boa família, bem-nascido — seu pai era diplomata na corte de Espanha. Ou fora em Portugal? E por que Struan compeliu Longstaff a parar a guerra? Com certeza conseguimos um porto onde podem fundear as armadas do mundo. Mas, o que mais? Glessing observou os navios no porto. A nave de guerra de 22 canhões de Struan, o China Cloud. E o White Witch, 22 canhões, orgulho da armada de Brock. E o brigue americano de 20 canhões de Cooper-Tillman, Princess of Alabama. Todos umas belezas. Valia a pena era combater com eles, pensou. Sei que eu poderia afundar o americano. Brock? Ele é resistente, mas eu sou melhor do que Brock. Struan?
Glessing imaginou uma batalha naval com Struan. Então percebeu que tinha medo de Struan. E, por causa de seu medo, ficava cheio de raiva e repulsa, diante da pretensão de não serem piratas todos os comerciantes da China.
Por Deus, jurou para si próprio, logo que a ordem for oficializada, eu vou comandar uma flotilha que fará todos eles sumirem da água, com uma explosão.
***
Aristotle Quance estava sentado, cheio de mau humor, diante da pintura inacabada em seu cavalete. Era um homem pequeno, com o cabelo meio grisalho. Suas roupas, com relação às quais ele se mostrava incrivelmente exigente, eram da última moda: calças cinzentas justas, meias brancas de seda e sapatos negros amarrados com um laço. Colete de cetim-pérola e casaco de lã negra. Colarinho alto, gravata com alfinete de pérola. Meio inglês, meio irlandês, ele era, aos cinqüenta e oito anos, o mais velho europeu no Oriente.
Tirou os óculos de ouro e começou a limpá-los com um imaculado lenço de renda francesa. Este dia me causa desgosto, pensou. Maldito Dirk Struan. Se não fosse por ele, não existiria nenhuma amaldiçoada Hong Kong.
Sabia que testemunhava o fim de uma era. Hong Kong destruirá Macau, pensou. Roubará todo o comércio. Todos os tai-pans ingleses e americanos vão transferir para cá seus quartéis-generais. Viverão aqui e construirão aqui. Depois, virão todos os vendedores portugueses. E todos os chineses que vivem à custa dos ocidentais e do comércio ocidental. Bom, eu jamais viverei aqui, jurou. Terei de vir aqui para trabalhar, de vez em quando, a fim de ganhar dinheiro, mas Macau será sempre meu lar.
Macau era seu lar há mais de trinta anos. Apenas ele, entre todos os europeus, pensava no Oriente como um lar. Todos os outros vinham por uns poucos anos, e depois partiam. Só aqueles que morriam ficavam. Mesmo neste caso, quando podiam se dar ao luxo, determinavam em seus testamentos que seus corpos fossem levados de navio de volta para “casa”.
Serei enterrado em Macau, graças a Deus, ele disse a si próprio. Passei tão bons tempos ali, todos passamos. Mas acabou. Maldito seja o Imperador da China! Um louco em destruir uma estrutura construída de maneira tão inteligente, há um século.
Tudo estava funcionando tão bem, pensou Quance amargamente, mas agora acabou. Agora tomamos Hong Kong. E agora que a poderosa Inglaterra está comprometida no Oriente e os negociantes provaram o poder, não se satisfarão com Hong Kong apenas.
— Bom — disse ele, involuntariamente alto — o imperador vai colher o que semeou.
— Por que está tão mal-humorado, Sr. Quance?
Quance pôs os óculos. Morley Skinner estava em pé, à beira da encosta.
— Não mal-humorado, meu jovem. Triste. Os artistas têm o direito... sim, uma obrigação, de serem tristes. — Guardou a pintura inacabada e colocou no cavalete um pedaço de papel limpo.
— Concordo plenamente, concordo plenamente. — Skinner subiu arrastadamente a encosta, com os olhos castanhos claros parecendo resíduos de cerveja velha. — Só queria pedir sua opinião a respeito deste dia solene. Vou fazer uma edição especial. E não estaria completa sem algumas palavras de nossos cidadãos mais destacados.
— Tem toda razão, Sr. Skinner. Pode colocar — “O Sr. Aristotle Quance, nosso maior artista, bon vivant e querido amigo, não quis dar uma declaração, pois estava no processo de criação de outra obra-prima”. — Tomou uma pitada de rapé e espirrou com força. Depois, com o lenço, espanou o rapé acumulado em seu casaco e os respingos do espirro do papel. — Bom-dia, senhor. — Mais uma vez se concentrou no papel. — O senhor está perturbando a imortalidade.
— Sei exatamente como se sente — disse Skinner, com um amável aceno afirmativo de cabeça. — Exatamente como se sente. Sente-se do mesmo jeito que eu, quando tenho algo importante para escrever. — Ele se afastou, arrastando-se.
Quance não confiava em Skinner. Ninguém confiava. Pelo menos ninguém com algum segredo no passado, e todos ali tinham algo que queriam esconder. Skinner gostava de fazer o passado ressuscitar.
O passado. Quance pensou em sua mulher e estremeceu. Que um raio me parta! Como posso eu ter sido tão estúpido a ponto de pensar que aquele monstro irlandês daria uma boa companheira? Graças a Deus voltou para o detestável pantanal irlandês, e não vai mais perturbar minha vida. As mulheres são a causa de todas as tribulações do homem. Bom, ele acrescentou, cautelosamente, nem todas as mulheres. Não a queridinha Maria Tang. Ah, sim, aquela é uma tremenda gatinha. E se alguém conhece um cruzamento perfeito de português com chinês é você, querido e inteligente Quance. Diabo, tive uma vida maravilhosa.
E ele percebeu que, embora estivesse testemunhando o final de uma era, também fazia parte de outra, nova. Agora tinha uma nova história para testemunhar e pintar. Uma nova cidade para perpetuar. E novas moças para namorar e novos traseiros para beliscar.
— Triste? Nunca! — ele rugiu. — Vamos trabalhar, Aristotle, seu malandro velho!
***
Aqueles que, na praia, escutaram as palavras de Quance riram uns para os outros. Ele era muito popular e sua companhia disputada. E costumava falar sozinho.
— O dia não estaria completo sem o nosso querido velho Aristotle — disse Horatio Sinclair, com um sorriso.
— Sim. — Wolfgang Mauss coçou os piolhos da barba. — Ele é tão feio que seu rosto chega a ser suave.
— O Sr. Quance é um grande artista — disse Gordon Chen. — Por isso, ele é lindo. Mauss movimentou o corpanzil e olhou para o eurasiano.
— A palavra é “simpático”, rapaz. Eu lhe ensinei durante anos e você ainda não sabe a diferença entre “simpático” e “lindo”, hein? E ele não é um grande artista. Seu estilo é excelente e ele é meu amigo, mas não tem a magia de um grande mestre.
— Eu quis dizer “lindo” num sentido artístico, senhor.
Horatio viu o momentâneo relâmpago de irritação passar através de Gordon Chen. Pobre Gordon, pensou, sentindo pena dele. Não pertencia a nenhum dos dois mundos. Tentando desesperadamente ser inglês, mas usando túnicas chinesas e um rabicho. Embora todos soubessem que era o bastardo do Tai-Pan, filho de uma prostituta chinesa, ninguém o reconhecia abertamente, nem mesmo o pai.
— Acho a pintura dele esplêndida — disse Horatio, com voz suave. — E ele também. É estranho como todos o adoram e, entretanto, meu pai o desprezava.
— Ah, seu pai — disse Mauss. — Ele era um santo entre os homens. Tinha elevados princípios cristãos, não era como nós, pobres pecadores. Que sua alma repouse em paz.
Não, pensou Horatio. Que sua alma arda no fogo do inferno para sempre.
O reverendo Sinclair era membro do primeiro grupo de missionários ingleses que se estabeleceu em Macau, há pouco mais de trinta anos. Ajudara a traduzir a Bíblia para o chinês e fora um dos professores na escola inglesa fundada pela missão. Toda sua vida o honraram como cidadão de destaque — menos o Tai-Pan — e, ao morrer, há sete anos, fora enterrado como um santo homem. Horatio conseguira perdoar o pai por levar sua mãe a uma morte precoce, porque seus elevados princípios lhe faziam ver a vida de uma maneira estreita e tirânica, por seu fanatismo ao adorar um Deus aterrorizador, pela coerência obsessiva de seu zelo missionário, e por todas as surras que dera no filho. Mas, mesmo depois de todo aquele tempo, não poderia jamais perdoar as surras que ele dera em Mary ou as maldições que acumulara sobre a cabeça do Tai-Pan.
Foi o Tai-Pan quem achou a pequena Mary quando, aos seis anos, ela fugiu aterrorizada. Ele a acalmara e depois levara-a para casa e, ao entregá-la ao pai, advertira-o de que, se tornasse a pôr as mãos nela, ele o arrancaria do púlpito e o chicotearia pelas ruas de Macau. Horatio, desde então, venerava o Tai-Pan. As surras pararam, mas foram impostos outros castigos. Pobre Mary.
Ao pensar em Mary, seu coração bateu mais rápido e ele olhou para a nau capitania onde estavam temporariamente instalados. Sabia que ela estaria observando a praia e, como ele, contava os dias que faltavam para chegarem em segurança a Macau. Apenas a quarenta milhas de distância, em direção ao sul, mas tão longe. Vivera todos os seus vinte e seis anos em Macau, com exceção de um período na escola, na Inglaterra. Detestava escola, tanto em seu país como em Macau. E detestara receber ensinamentos do pai; tentara desesperadamente satisfazê-lo, sem conseguir nunca. Ao contrário de Gordon Chen, o primeiro menino eurasiano aceito na escola de Macau. Gordon Chen era um aluno brilhante e sempre conseguira satisfazer o reverendo Sinclair. Mas Horatio não o invejava: Mauss fora o torturador de Gordon Chen. Por cada surra que seu pai lhe dera, Mauss havia dado três em Gordon Chen. Mauss era também um missionário; ensinava Inglês, Latim e História.
Horatio afrouxou as dragonas nos ombros. Viu que Mauss e Gordon Chen olhavam fixamente outra vez para a chalupa e ficou imaginando por que Mauss teria sido tão duro com o rapaz na escola — por que exigia tanto dele. Supôs que fora porque Wolfgang odiava o Tai-Pan. O Tai-Pan decifrava seus pensamentos e lhe oferecera dinheiro e o posto de intérprete em viagens para o contrabando de ópio, pela costa. A troco da permissão para Wolfgang distribuir bíblias chinesas e opúsculos e pregar para os pagãos, sempre que o navio parava — mas só depois de terminada a negociação do ópio. Supunha que Wolfgang desprezava a si mesmo por ser um hipócrita e estar associado a um demônio daqueles. E era forçado a fingir que o fim justificava os meios, quando sabia não ser verdade.
Você é um homem esquisito, Wolfgang, ele pensou. Lembrou-se de ter ido à Ilha de Chushan, no ano passado, enquanto estava ocupada. Com a aprovação do Tai-Pan, Longstaff indicara Mauss como magistrado temporário, para colocar em vigor a lei marcial e a justiça britânica.
Contra os costumes, ordens estritas haviam sido dadas em Chushan, proibindo o saque e a pilhagem. Mauss oferecera a todo saqueador — chinês, indiano, inglês — um julgamento justo e aberto e depois condenara cada um deles à forca, usando as mesmas palavras: “Gott im Himmel, perdoai este pobre pecador. Enforquem-no”. Logo a pilhagem acabou.
Como Mauss costumava entregar-se livremente às recordações, no tribunal, entre os enforcamentos, Horatio descobrira que ele fora casado três vezes, todas com moças inglesas; as duas primeiras morreram de corrimento e a atual não estava em boas condições. Que, embora Mauss fosse um marido dedicado, o Demônio ainda conseguia tentá-lo a ir ao prostíbulo e aos botequins de Macau. Que Mauss aprendera chinês com os pagãos em Cingapura, para onde fora enviado como jovem missionário. Que vivera vinte, de seus quarenta anos, na Ásia e jamais estivera em seu país durante todo esse tempo. Que carregava pistolas agora porque: “Nunca se sabe, Horatio, quando um dos demônios pagãos vai resolver matar a gente, ou os malditos piratas tentarão nos roubar”. Que ele considerava todos os homens pecadores — e ele próprio mais do que qualquer outro. E que seu único objetivo na vida era converter os pagãos e tornar a China uma nação cristã.
— Em que está pensando? — a frase interrompeu os pensamentos de Horatio. Ele viu Mauss a observá-lo.
— Ah, em nada — disse, depressa. — Eu estava apenas... apenas pensando. Mauss coçou a barba, pensativamente.
— Eu também. Este é um dia que faz a gente pensar, hein? A Ásia inteira vai mudar para sempre.
— Sim, creio que é verdade. Vai mudar-se de Macau para cá? Construir casa aqui?
— Sim. Será bom possuir terra, ter nosso próprio chão, longe daquele esgoto papista. Minha mulher vai gostar disso. Mas, e eu? Eu não sei. Pertenço àquele lugar — acrescentou Mauss, cheio de nostalgia, e sacudiu o grande punho em direção ao continente.
Horatio viu os olhos de Mauss carregarem-se, quando ele olhou para a distância. Por que a China é tão fascinante? Perguntou a si mesmo.
Esquadrinhou cansadamente a praia, com o olhar, sabendo que não havia nenhuma resposta. Queria ser rico. Não tão rico quanto o Tai-Pan, ou Brock. Mas rico o bastante para construir uma bela casa e receber todos os negociantes e levar Mary para uma luxuosa viagem à Inglaterra, percorrendo a Europa.
Gostava de ser intérprete e secretário particular de Sua Excelência, mas precisava de mais dinheiro. A pessoa é obrigada a ter dinheiro, neste mundo. Mary devia possuir vestidos de baile e diamantes. Sim. Mas, mesmo assim, estava satisfeito de não ter de ganhar seu pão de cada dia como os negociantes. Os negociantes precisavam ser implacáveis, implacáveis em excesso, e seu ganho era demasiado precário. Muitos que hoje se acreditavam ricos, dentro de um mês estariam arruinados. Bastaria perder um navio e poderiam estar liquidados. Até A Casa Nobre era ocasionalmente prejudicada. Seu navio Scarlet Cloud já estava um mês atrasado, talvez reduzido a um casco castigado, virado e sob reparos, em alguma ilha fora do mapa, entre o ponto onde se encontravam e a Terra Van Diemen, duas milhas fora do curso. Ou, mais provavelmente, no fundo do mar, com ópio no valor de meio milhão de guinéus no bojo.
E as coisas que um negociante precisava fazer aos homens em geral e aos amigos, a fim de sobreviver, quanto mais para prosperar! Terrível.
Viu o olhar fixo de Gordon Chen para a chalupa e ficou imaginando em que pensaria ele. Devia ser terrível a condição de mestiço, pensou. Suponho que, se a verdade viesse à tona, verificaríamos que também odeia o Tai-Pan, embora finja que não. Eu apostaria...
***
A mente de Gordon Chen estava voltada para o ópio e ele o abençoava. Sem ópio não haveria Hong Kong — e Hong Kong, ele pensava, com exultação, é a mais fantástica oportunidade para ganhar dinheiro que eu poderia ter e o mais inacreditável golpe de pagode para a China.
Se não existisse o ópio, disse a si mesmo, não haveria comércio na China. Se não houvesse comércio na China, então o Tai-Pan jamais teria tido dinheiro para comprar minha mãe e tirá-la do bordel, e eu jamais teria nascido. O ópio pagou a casa que o pai deu à mãe há anos, em Macau. O ópio pagou nossa comida e nossas roupas. O ópio pagou minha escola e os professores de inglês e de chinês e então, agora, hoje, eu sou o jovem mais educado do Oriente.
Deu uma olhada em Horatio Sinclair, cujo olhar percorria a praia, enquanto ele franzia a testa. Sentiu uma punhalada de inveja porque Horatio fora enviado à Inglaterra para estudar. Jamais estivera lá.
Mas afastou a inveja. A Inglaterra viria depois, prometeu a si mesmo, todo feliz. Dentro de poucos anos.
Virou-se para observar outra vez a chalupa. Adorava o Tai-Pan. Nunca chamara Struan de “pai” e jamais fora chamado de “meu filho” por ele. Na verdade, só falara com ele vinte ou trinta vezes na vida. Mas tentava tornar o pai muito orgulhoso dele, e sempre pensava em Struan, secretamente, como “pai”. Abençoou-o outra vez por vender sua mãe a Chen Sheng, como terceira esposa. Meu pagode foi grande, pensou.
Chen Sheng era compradore da Casa Nobre e quase um pai para Gordon Chen. O compradore era o agente chinês que comprava e vendia em nome de um estabelecimento estrangeiro. Cada mercadoria, grande ou pequena, passava pelas mãos do compradore. Segundo o costume, em cada mercadoria ele acrescentava uma percentagem. Esta se tornava seu lucro pessoal. Mas seus ganhos dependiam do sucesso da casa à qual pertencia e ele tinha de cobrir dívidas pesadas. Então, precisava ser muito cauteloso e nunca ficar rico.
Ah, pensou Gordon Chen, ser rico como Chen Sheng! Ou, melhor ainda, rico como Jin-qua, o tio de Chen Sheng. Ele sorriu para si próprio, achando divertido que os ingleses tivessem tanta dificuldade com os nomes chineses. O verdadeiro nome de Jin-qua era Chen-tsé Jin Arn, mas até o Tai-Pan, que conhecia Chen-tsé Jin Arn há quase trinta anos, ainda não conseguia pronunciar o nome. Então, há anos, o Tai-Pan o apelidara “Jin”. O “qua” era uma má pronúncia da palavra chinesa que significava “Sr.”.
Gordon Chen sabia que os chineses não se importavam com seus apelidos. Só se divertiam, por ser outro exemplo, para eles, de uma falta de cultura própria de bárbaros. Ele lembrou-se quando, anos atrás, ainda menino, observava Chen-tsé Jin Arn e Chen Sheng secretamente, através de um buraco no muro do jardim, enquanto os dois fumavam ópio. Ouvira-os rir juntos de Sua Excelência — os mandarins em Cantão haviam apelidado Longstaff “Odioso Pênis”, um trocadilho referente ao seu nome, e diziam como os caracteres chineses para a tradução cantonesa haviam sido usados em cartas oficiais endereçadas a Longstaff por mais de um ano — até Mauss explicar a Longstaff o que estava acontecendo e estragar uma brincadeira ótima.
Ele olhou disfarçadamente para Mauss. Respeitava-o por ser um professor implacável e lhe estava grato por forçá-lo a ser o melhor aluno da escola. Mas o desprezava por sua sujeira, por seu fedor e por sua crueldade.
Gordon Chen gostara da escola da missão e de aprender e de ser uma das crianças de lá. Mas, certo dia, descobrira que era diferente das outras crianças. Diante deles, Mauss lhe dissera o que significavam as palavras “bastardo”, “ilegítimo” e “mestiço”. Gordon Chen fugiu para casa, aterrorizado. E viu sua mãe com clareza pela primeira vez, e a desprezou por ser chinesa.
Depois, aprendeu com ela, através das suas lágrimas, que era bom ser meio-chinês, pois os chineses constituíam a raça mais pura da terra. E soube que o Tai-Pan era seu pai.
— Mas por que vivemos aqui, então? Por que é Chen Sheng o “pai”?
— Os bárbaros só têm uma esposa e não se casam com chinesas, meu filho — explicou Kai-sung.
— Por quê?
— É o costume deles. Um costume estúpido. Mas eles são assim.
— Odeio o Tai-Pan! Eu o odeio! Eu o odeio! — ele explodiu. Sua mãe lhe bateu no rosto, selvagemente. Jamais lhe batera antes.
— Ajoelhe-se e peça perdão! — disse, com raiva. — O Tai-Pan é seu pai. Ele lhe deu a vida. Ele é meu Deus. Ele me comprou para si mesmo e depois me abençoou, ao me vender para Chen Sheng como esposa. Por que Chen Sheng tomaria uma mulher com um filho impuro de dois anos como esposa, quando poderia comprar mil virgens, se não fosse porque o Tai-Pan assim o quis? Por que o Tai-Pan me daria propriedades, se não nos amasse? Por que o aluguel viria para mim, e não para Chen Sheng, se o Tai-Pan não determinasse que fosse assim? Por que Chen Sheng me trataria tão bem, mesmo já velha, se não fosse em troca do favor perpétuo do Tai-Pan? Por que Chen Sheng trata você como filho, seu estúpido ingrato, se não por causa do Tai-Pan? Vá para o templo e se ajoelhe com a testa no chão, implorando perdão. O Tai-Pan lhe deu vida. Então ame-o, honre-o e o abençoe, como eu faço. E, se você tornar a dizer isso, jamais voltarei a lhe dirigir a palavra.
Gordon Chen sorriu para si mesmo. Como a mãe estava certa, e como ele estava errado e era estúpido. Mas não tão estúpido quanto os mandarins e o maldito imperador, ao tentarem impedir a venda de ópio. Qualquer louco sabe que, sem ele, não haverá barras de prata para os chás e as sedas.
Uma vez, ele perguntara à sua mãe como o produto era feito, mas ela não sabia, e nem ninguém na casa. No dia seguinte, interrogou Mauss, que lhe informou ser o ópio a seiva — as lágrimas — da vagem madura contendo as sementes de papoula.
— O plantador de ópio faz um corte delicado na vagem e deste corte pinga uma lágrima de líquido branco, hein? A lágrima endurece dentro de poucas horas a sua cor muda, do branco para marrom-escuro. Então, a pessoa raspa a lágrima, guarda-a e faz um novo corte delicado. Depois, raspa a nova lágrima e faz um outro corte. As lágrimas são reunidas e modeladas em forma de bola — dez libras é o peso costumeiro. O melhor ópio vem de Bengala, na Índia Britânica, hein? Ou de Malwa. Onde fica Malwa, menino?
— Na Índia Portuguesa, senhor!
— Era portuguesa, mas agora pertence à Companhia das Índias Orientais. Que a tomou para completar seu monopólio mundial de todo ópio e assim arruinar os negociantes portugueses de ópio aqui em Macau. Você comete erros demais, menino, então pegue o chicote, hein?
Gordon Chen lembrava-se de como odiara o ópio, aquele dia. Mas agora o abençoava. E agradecia seu pagode por causa do pai e por causa de Hong Kong. Hong Kong ia enriquecê-lo. Muito.
— Vão ser ganhas fortunas aqui — disse ele a Horatio.
— Alguns dos negociantes vão prosperar — disse Horatio, distraído, olhando para a chalupa que se aproximava. — Uns poucos. O comércio é um negócio diabolicamente complicado.
— Sempre pensando em dinheiro, Gordon, hein? — A voz de Mauss era rouca. — Melhor pensar em sua alma imortal e em sua salvação, menino. O dinheiro não é importante.
— Claro, senhor. — Gordon Chen escondeu seu divertimento diante da estupidez do homem.
— O Tai-Pan parece um príncipe poderoso que vem reivindicar seu reinado — disse Horatio, quase para si mesmo. Mauss tornou a olhar para Struan.
— É verdade, hein?
***
A chalupa estava nas ondas da praia.
— Remos ao alto! — gritou o mestre, e a tripulação guardou os remos na embarcação, escorregou por sobre o costado e arrastou a chalupa, habilmente, por sobre a rebentação.
Struan hesitou. Depois saltou da proa. No momento em que suas botas de marinheiro tocaram a praia, ele soube que a ilha ia ser a morte para ele.
— Santo Cristo!
Robb estava a seu lado e viu sua repentina palidez.
— O que está errado, Dirk?
— Nada. — Struan forçou um sorriso. — Nada, garoto.
Limpou da testa os respingos do mar e caminhou pela praia em direção ao mastro. Pelo sangue de Cristo, pensou, suei e planejei durante anos, para ter você, Ilha, e você não vai me derrotar agora. Não, por Deus.
Robb o observava, e a seu leve capengar. O pé dele deve estar doendo, pensou. Ficou imaginando como seria uma dor na metade do pé. A causa disto era um fato ocorrido na única viagem de contrabando feita por Robb. Ao salvar a vida de Robb, quando ele estava inerme e paralisado pelo medo, Struan ficou à mercê dos piratas. Uma bala de mosquete arrancou-lhe a parte externa do astrágalo e dois dos dedos menores do pé. Quando o ataque acabou de ser repelido, o médico de bordo cauterizou as feridas e derramou sobre elas breu derretido. Robb ainda podia sentir o fedor da carne queimada. Se não fosse por minha causa, pensou, isto jamais teria acontecido.
Seguiu Struan pela praia, consumido por um desgosto consigo mesmo.
— Bom-dia, cavalheiros — disse Struan, ao encontrar alguns dos negociantes, perto do mastro. — Bela manhã, por Deus.
— Está frio, Dirk — disse Brock. — E seria mais gentil de sua parte ser mais apressado.
— Cheguei cedo demais. Sua Excelência ainda não desembarcou e não foi dado o tiro como sinal.
— Sim, está com uma hora e meia de atraso, e aposto que foi tudo combinado entre você e aquele lacaio cagão.
— Eu lhe agradeceria, Sr. Brock, se não se referisse a Sua Excelência nesses termos — exclamou o Capitão Glessing.
— E eu lhe agradeceria se guardasse suas opiniões para si mesmo. Não estou na Marinha e nem sob seu comando. — Brock cuspiu acintosamente. — Melhor pensar a respeito da guerra que não está travando.
A mão de Glessing apertou sua espada.
— Jamais pensei que um dia a Marinha Real fosse chamada para proteger contrabandistas e piratas. É o que vocês são. — Olhou para Struan. — Todos vocês. Fez-se um silêncio repentino e Struan riu.
— Sua Excelência não concorda com você.
— Temos decretos parlamentares, por Deus, os Decretos de Navegação. E um deles diz “Qualquer navio armado sem autorização pode ser tomado como prêmio pela marinha de qualquer nação”. A frota de vocês tem autorização?
— Há muitos piratas nessas águas, Capfitão Glessing. Como sabe — disse Struan, descontraidamente. — Temos armas para nos proteger. Apenas isso.
— O ópio é contra a lei. Quantos milhares de fardos vocês contrabandearam para a China, pela costa, violando as leis da China e da humanidade? Três mil? Vinte mil?
— O que fazemos aqui é bem conhecido em todos os tribunais da Inglaterra.
— O “comércio” de vocês desonra a bandeira.
— É melhor agradecer a Deus por esse comércio, porque sem ele a Inglaterra não teria chá algum e nem seda, e sim uma pobreza generalizada, que a arruinaria.
— Tem razão, Dirk — disse Brock. Depois, virou-se de novo para Glessing. — É melhor meter logo em sua cabeça que sem negociantes não haverá Império Britânico e nem impostos para comprar navios de guerra e pólvora. — Olhou para o uniforme imaculado de Glessing e suas joelheiras e meias brancas, sapatos afivelados e chapéu de três bicos. — E dinheiro nenhum para pagar muito aos capitães!
Os fuzileiros piscaram os olhos e alguns dos marinheiros riram, mas muito cautelosamente.
— É melhor que agradeça a Deus a existência da Marinha Real, por Deus. Sem ela, não haveria negociantes por aqui.
Estrondeou um tiro de canhão da nau capitania, era o sinal. Abruptamente, Glessing marchou para o mastro.
— Apresentar armas!
Pegou a proclamação e a multidão silenciou. Então, com a raiva algo abrandada, começou a ler:
— “Por ordem de Sua Excelência, o Venerável William Longstaff, CapitãoSuperintendente do Comércio na China de Sua Majestade Britânica, a Rainha Vitória. De acordo com o documento conhecido como o Tratado de Chuenpi, assinado em 20 de janeiro deste ano de Nosso Senhor, por Sua Excelência, em nome do Governo de Sua Majestade e por Sua Excelência Tin-sen, Plenipotenciário de Sua Majestade Tao Kuang, Imperador da China, eu, Capitão Glessing, RN, tomo, por meio deste, posse desta Ilha de Hong Kong, em nome de Sua Majestade Britânica, de seus herdeiros e cessionários, em caráter perpétuo, sem estorvo ou impedimento, neste dia 26 de janeiro, ano da Graça de 1841. O solo desta ilha é agora solo inglês. Deus Salve a Rainha!”
O pavilhão do Reino Unido irrompeu, desfraldado, no topo do mastro, e a guarda de honra dos fuzileiros disparou uma salva. Depois, os canhões rugiram em toda frota e o vento ficou espesso com o cheiro penetrante de pólvora. Os que se encontravam na praia deram vivas à rainha.
Agora, está feito, pensou Struan. Agora, estamos comprometidos. Agora, podemos começar. Afastou-se do grupo e foi até a linha da rebentação e, pela primeira vez, virou de costas para a ilha e olhou o grande porto e a terra, atrás: a China continental, a uns mil metros de distância.
A península continental era de terras baixas, com nove colinas achatadas, e projetava-se para dentro do porto que a cercava. Era chamada “Kau-lung” — “Kowloon”, como pronunciavam os mercadores — “Nove Dragões”. E ao norte ficava a ilimitada e desconhecida extensão da China.
Struan lera todos os livros já escritos pelos três europeus que tinham ido à China e voltado. Marco Polo, há quase seiscentos anos, e dois padres católicos, que haviam obtido permissão para entrar em Pequim, há duzentos anos. Os livros quase nada revelavam.
Durante duzentos anos, nenhum europeu tivera permissão para entrar na China. Uma vez — contra a lei — Struan fora até uma milha de distância da costa, para o interior, chegando perto de Swatow, isto quando vendia ópio, mas os chineses eram hostis e ele estava sozinho, apenas em companhia de seu primeiro-imediato. Não foi a hostilidade que o fez voltar. Simplesmente, a enormidade de seu número e a ilimitada extensão da terra.
Sangue de Cristo!, ele pensou. Nada sabemos a respeito da mais antiga e mais populosa nação da terra. O que existe dentro dela?
— Longstaff vai desembarcar? — Robb perguntou, quando ele se aproximou.
— Não, garoto. Sua Excelência tem coisas mais importantes para fazer.
— O quê?
— Coisas como ler e escrever despachos. E fazer acordos particulares com o almirante.
— Para quê?
— Para proibir o comércio de ópio. Robb riu.
— Não estou brincando. Era para isso que ele queria me ver... com o almirante. Queria pedir meu conselho a respeito de quando emitir a ordem. O almirante disse que a Marinha não teria nenhum problema para colocá-la em vigor.
— Deus do céu! Longstaff está louco?
— Não. É apenas um sujeito de mente simples. — Struan acendeu um charuto. — Eu lhe disse para emitir a ordem aos quatro toques do sino.
— Isto é loucura! — exclamou Robb.
— É muito sensato. A Marinha não colocará em vigor a ordem durante uma semana: “a fim de dar aos negociantes da China tempo para dispor de seus abastecimentos”.
— Mas então, o que vamos fazer? Sem ópio, estamos liquidados. O comércio na China está liquidado. Liquidado.
— Quanto dinheiro vivo nós temos, Robb?
Robb olhou em torno para se certificar de que não havia ninguém por perto, e baixou a voz.
— Existe o ouro na Escócia. Um milhão e cem mil libras esterlinas em nosso banco na Inglaterra. Cerca de cem mil em barras de prata, aqui. Devem-nos três milhões pelo ópio apreendido. Temos duzentos mil guinéus de ópio no Scarlet Cloud, de acordo com o atual preço do mercado. Existe...
— Cancele o Scarlet Cloud, garoto. Está perdido.
— Ainda há uma chance, Dirk. Vamos dar a ele mais um mês. Há cerca de cem mil guinéus em ópio no navio. Devemos nove mil em saques à vista.
— Quais são os custos de operação durante os próximos seis meses?
— Cem mil guinéus em pagamento por navios e salários e impostos.
Struan pensou um momento.
— Amanhã haverá pânico entre os negociantes. Nenhum deles, exceto Brock, talvez, pode vender seu ópio em uma semana. É melhor você embarcar todo nosso ópio para a costa esta tarde. Eu acho...
— Longstaff terá de mudar esta ordem — disse Robb, com crescente ansiedade. — Ele tem de fazer isso. Vai arruinar o erário e...
— Quer me ouvir? Quando o pânico estiver instalado, amanhã, pegue todo tael que tem, e todo tael que puder pedir emprestado, e compre ópio. Você deverá poder comprar a dez centavos de dólar.
— Não poderemos vender todo o nosso em uma semana, quanto mais uma quantidade maior. Struan sacudiu a cinza de seu charuto.
— Um dia antes que a ordem seja colocada em vigor, Longstaff vai cancelá-la.
— Não compreendo.
— É uma questão de salvar as aparências, Robb. Depois que o almirante saiu, eu expliquei a Longstaff que proibir o ópio seria destruir todo o comércio. Pelo sangue de Deus, quantas vezes terei de explicar? Depois, observei que ele poderia muito bem cancelar a ordem imediatamente, sem se desmoralizar, e sem fazer o almirante, que é bem-intencionado, mas nada sabe a respeito de comércio, se desmoralizar. A única coisa a fazer seria dar a ordem e depois, para salvar a cara e o emprego do almirante, e o seu próprio, cancelá-la. Eu prometi explicar o “comércio” ao almirante, enquanto isso. A ordem também agradará aos chineses, e vai colocá-los em desvantagem. Haverá outro encontro com Ti-sen, dentro de três dias. Longstaff concordou inteiramente e me pediu para manter o assunto particular.
O rosto de Robb se iluminou.
— Ah, Tai-Pan, você é um grande homem! Mas que garantias há de que Longstaff cancelará a ordem?
Struan tinha no bolso uma proclamação, assinada e datada para dali a seis dias, que cancelava a ordem. Longstaff a empurrara em cima dele. “Olha aqui, Dirk, leve isso agora, senão posso esquecer. Diabo! Toda essa papelada, sabe... terrível. Mas é melhor manter em particular, até chegar a hora.”
— Você cancelaria uma ordem estúpida dessas, Robbie?
— Sim, claro. — Robb teve vontade de abraçar o irmão. — Se são seis dias e ninguém mais sabe disso com certeza, nós vamos ganhar uma fortuna.
— Sim.
Struan deixou os olhos vagarem até o porto. Ele o descobrira há mais de vinte anos. A borda externa de um tufão o apanhara e impelira para mar alto e, embora ele estivesse preparado para tempestades, não conseguiu escapar e foi empurrado inexoravelmente em direção à terra. Seu navio ficara ameaçado, enfrentando mar com dificuldade, no dia em que o céu e o horizonte se apagaram, sob os lençóis de água que os Ventos Supremos arrancaram do oceano e atiraram diante deles. Perto da praia, no mar tenebroso, as âncoras de tempestade cederam e Struan percebeu que o navio estava perdido. O mar agarrou a embarcação e atirou-a contra a praia. Por milagre, o vento alterou seu curso uma fração de grau e a impeliu para além dos rochedos, para dentro de um estreito canal não registrado no mapa, com menos de trezentos metros de largura, que a extremidade leste de Hong Kong formava com o continente — e eles entraram no porto que existia atrás. Em águas protegidas.
O tufão destroçou a maior parte da frota mercante em Macau e afundou dezenas de milhares de juncos pela costa. Mas o navio de Struan e os juncos que se abrigavam em Hong Kong conseguiram suportar a tempestade. Quando passou, Struan navegou em torno da ilha, mapeando-a. Depois guardou a informação em sua mente e começou a planejar em segredo.
E agora que você é nossa, agora eu posso partir, ele pensou, com a excitação aumentando. Agora, o Parlamento.
Há anos Struan sabia que o único meio de proteger a Casa Nobre e a nova colônia estava em Londres. O verdadeiro centro de poder na terra era o Parlamento. Como membro do Parlamento, apoiado pelo poder que lhe dava a grande riqueza da Casa Nobre, dominaria a política externa da Ásia, como dominara Longstaff. Sim.
Alguns poucos milhares de libras colocarão você no Parlamento, ele disse a si próprio. Bastava de trabalhar através de terceiros. Agora você poderá fazer o serviço por si mesmo. Sim, afinal, garoto. Uns poucos anos, e então um título de cavaleiro. Depois, o Gabinete. E então, por Deus, você dirigirá os caminhos do Império e da Ásia, e a Casa Nobre durará mil anos.
Robb estava a observá-lo. Sabia que tinha sido esquecido, mas não se importava. Gostava de espiar o irmão, quando seus pensamentos estavam distantes. Quando o rosto do Tai-Pan perdia sua dureza e seus olhos o verde frio, quando sua mente estava cheia de sonhos, que ele sabia jamais poderia partilhar, Robb se sentia muito próximo dele e muito seguro.
Struan quebrou o silêncio.
— Dentro de seis meses, você vai assumir como Tai-Pan. O estômago de Robb esfriou de pânico.
— Não. Não estou preparado.
— Você está preparado. Só no Parlamento eu posso nos proteger e a Hong Kong.
— Sim — disse Robb; depois acrescentou, tentando manter a voz no mesmo tom.
— Mas isto deveria ser no futuro... dentro de dois ou três anos. Há coisas demais para fazer aqui.
— Você pode fazê-las.
— Não.
— Você pode. E não há dúvidas na mente de Sarah, Robb.
Robb olhou para o Resting Cloud, seu navio-depósito, onde sua mulher e filhos estavam vivendo, temporariamente. Sabia que Sarah era ambiciosa demais para ele.
— Não quero ainda. Há tempo bastante.
Struan pensou a respeito do tempo. Ele não lamentava os anos passados no Oriente, longe de seu país. Longe de sua mulher, Ronalda, e de Culum, Ian, Lechie e Winifred, seus filhos. Teria gostado que estivessem com ele, mas Ronalda odiava o Oriente. Casaram-se na Escócia, quando ele tinha vinte anos e Ronalda dezesseis, e partiram imediatamente para Macau. Seu primeiro filho morrera ao nascer e, no ano seguinte, quando o segundo filho, Culum, nasceu, também ficou doente. Então Struan mandou sua família para casa. A cada três ou quatro anos, voltava, de férias. Passava um mês ou dois em Glasgow, com eles, e depois voltava ao Oriente, porque havia muita coisa a fazer e era preciso construir uma Casa Nobre.
Não lamento um só dia, disse ele a si mesmo. Nem um dia. Um homem precisa sair pelo mundo, para fazer dele e de si próprio o máximo possível. Não é esta a finalidade da vida? Ainda que Ronalda seja uma moça bonita e eu ame meus filhos, um homem precisa fazer o que tem de fazer. Não foi para isso que nascemos? Se o antepassado dos Struans não tivesse tomado todas as terras do clã e as cercado, e expulsado a todos nós — a nós, seus parentes, que trabalhávamos as terras há gerações — então eu poderia ter sido um seareiro, como meu pai foi. Mas ele nos mandou para uma favela fedorenta em Glasgow, e tomou todas as terras para si, a fim de se tornar o Conde de Struan, e dispersou o clã. Então, quase morremos de fome, e eu fui para o mar e o pagode nos salvou e agora a família está próspera. Todos eles. Porque eu fui para o mar. E porque A Casa Nobre deu certo.
Struan aprendera muito rápido que dinheiro era poder. E ia usar seu poder para destruir o Conde de Struan e comprar de volta algumas das terras do clã. Não lamentava nada em sua vida. Descobrira a China, e a China lhe dera o que seu país nunca pôde dar. Não apenas riqueza. A riqueza por si própria era uma obscenidade. Mas riqueza é uma finalidade para ele. Tinha uma dívida para com a China.
E, ele sabia, ainda que fosse para a Inglaterra e se tornasse membro do Parlamento, ministro do Gabinete, destruísse o conde e cimentasse Hong Kong como uma jóia na coroa britânica, voltaria sempre. Pois seu verdadeiro objetivo — secreto para todos, quase secreto para ele mesmo, a maior parte do tempo — levaria anos para ser alcançado.
— Não há nunca tempo suficiente. — Olhou para a montanha mais elevada. — Vamos chamá-la “O Cume” — disse distraidamente, e outra vez teve a estranha e repentina sensação de que a ilha o odiava e queria que ele morresse. Sentia o ódio a cercá-lo, e ficava imaginando, perplexo, por quê?
— Dentro de seis meses, você dirigirá A Casa Nobre — repetiu, com voz rouca.
— Não posso. Sozinho não.
— Um Tai-pan está sempre sozinho. Esta é sua alegria e também seu sofrimento.
— Por sobre o ombro de Robb viu o mestre de guarnição que se aproximava. — Sim, Sr. McKay?
— Com licença, senhorrr. Permissão para tomar uma bebida? — McKay era um homem atarracado e corpulento, com o cabelo amarrado num rabicho alcatroado e sórdido.
— Sim. Uma bebida dupla para todos os homens. Ajeite tudo como ficou combinado.
— Sim, sim senhorrr. — McKay saiu, apressadamente. Struan tornou a se virar para Robb e Robb teve consciência apenas dos estranhos olhos verdes, que pareciam despejar luz em cima dele.
— Vou mandar vir Culum, lá pelo fim do ano. Ele terá terminado então a universidade. Ian e Lechie irão para o mar e depois virão também. Nessa ocasião, seu filho Roddy estará com idade suficiente. Graças a Deus temos filhos em número suficiente para nos suceder. Escolha um deles para suceder você. O Tai-Pan deve sempre escolher quem vai sucedê-lo, e decidir quando. — Depois, com determinação, ele deu as costas para a China continental e disse — Seis meses! — E se afastou.
***
— Querem beber conosco, cavalheiros? — Struan perguntou a um grupo de negociantes. — Um brinde para nosso novo lar? Tem conhaque, rum, cerveja, vinho branco espanhol seco, uísque e champanha.
Ele apontou para sua chalupa, onde seus homens descarregavam barris e punham mesas. Outros estavam vergados ao peso de cargas de carne assada fria — frangos, traseiros de porco, vinte porquinhos de leite e um quarto de boi — além de pães, pastéis de porco frio, salgados, paneladas de repolho frio, cozido com presunto gordo, trinta ou quarenta presuntos defumados, cachos de banana de Cantão, tortas de frutas em conserva, copos finos e canecas de estanho, até mesmo baldes de gelo — que as lorchas e os clíperes tinham trazido do norte — e garrafas de champanha.
— Tem comida para quem quiser.
Houve vivas de aprovação e os negociantes começaram a convergir para as mesas. Quando todos já tinham pegado seus copos ou canecões, Struan ergueu o seu copo.
— Um brinde, cavalheiros.
— Vou beber com você, mas não por causa deste maldito rochedo. Vou beber à sua queda — disse Brock, erguendo um canecão de cerveja. — Pensando melhor, vou beber ao seu pequeno rochedo também. Eu lhe darei um nome: “A Extravagância de Struan”.
— Ah, é pequeno demais — respondeu Struan. — Mas suficientemente grande para Struan e o restante dos negociantes da China. Se é grande bastante para Struan e Brock... esta é outra questão.
— Vou lhe dizer com certeza, Dirk, meu rapaz: nem a China inteira é. Brock esvaziou o canecão e atirou-o em direção ao interior da ilha. Depois caminhou altivamente para sua chalupa. Alguns dos negociantes o seguiram.
— Puxa vida, que maneiras horrorosas — disse Quance. Depois bradou, rindo. — Vamos, Tai-Pan, o brinde! O Sr. Quance tem uma sede imortal! Façamos a História!
— Desculpe, Sr. Struan — disse Horatio Sinclair. — Antes do brinde, não seria apropriado agradecer a Deus pela graça que nos concedeu neste dia?
— Claro, rapaz. Tolice minha esquecer. Quer conduzir a prece?
— O Reverendo Mauss está aqui, senhor.
Struan hesitou, apanhado desprevenido. Observou o jovem, gostando do profundo humor que se escondia no fundo dos olhos cinza-azulados. Depois disse, alto:
— Reverendo Mauss, onde está o senhor? Vamos rezar uma prece.
Mauss se elevava acima dos negociantes. Ele se movimentou, hesitante, diante da mesa e depôs o copo vazio, fingindo que sempre estivera vazio. Os homens tiraram os chapéus e esperaram, com as cabeças descobertas sob o vento frio.
Agora tudo estava tranqüilo na praia. Struan ergueu os olhos para os sopés das colinas, para um afloramento onde ficaria a igreja. Com os olhos da mente, viu a igreja, bem como a cidade, o cais, os armazéns, lares e jardins. A Casa Grande onde o Tai-Pan tomaria decisões referentes a sucessivas gerações. Outros lares para a hierarquia da casa e suas famílias. Pensou a respeito de sua atual amante, T'chung Jen May-may. Comprara May-may há cinco anos, quando ela tinha quinze e estava intocada.
Ayeeee yah, disse ele para si próprio, cheio de felicidade, empregando uma das expressões cantonesas dela, que significava prazer, raiva, desgosto, felicidade, desamparo, a depender de como era dita. É uma gata selvagem como não tem outra.
— Ó Deus cheio de brandura que rege os ventos selvagens, as ondas, e a beleza do amor, Deus dos grandes navios e da estrela do Norte e da beleza do lar, Deus Pai do Cristo menino, olhai por nós e tende piedade de nós. — Mauss, com os olhos fechados, erguia as mãos. Sua voz era sonora, e a profundeza de seu anelo envolveu-os. — Somos os filhos dos homens e nossos pais se preocuparam conosco como Vos preocupastes com
o Vosso Filho ferido, Jesus. Santos são crucificados na terra e os pecadores se multiplicam. Contemplamos a glória de uma flor e não Vos vemos. Percorremos os poderosos oceanos e não Vos sentimos. Segamos a terra e não Vos tocamos. Comemos e bebemos, mas não Vos provamos. Vós sois todas essas coisas, e ainda mais. Sois a vida e a morte e o sucesso e o fracasso. Sois Deus e nós somos homens...
Fez uma pausa, com o rosto contorcido, enquanto lutava com sua alma torturada. Oh, Deus, perdoai meus pecados. Deixai que eu expie a minha fraqueza convertendo os pagãos. Deixai que eu seja um mártir da Vossa Santa Causa. Fazei com que eu mude, do que sou agora para o que era antes...
Mas Wolfgang Mauss sabia que não havia retorno, ao começar a servir Struan sua paz o abandonara, e as necessidades de sua carne o absorveram. Certamente, ó Deus, o que eu fiz era certo. Não havia nenhuma outra maneira de entrar na China.
Ele abriu os olhos e ficou fitando em torno, desamparadamente.
— Desculpem. Perdoem-me. Não sei as palavras. Posso vê-las, grandes palavras, para fazer que O conheçam, como outrora eu O conhecia, mas não posso mais dizer essas palavras. Perdoem-me. Ó Senhor, abençoai esta ilha. Amém.
Struan pegou um copo cheio de uísque e deu-o a Mauss.
— Acho que falou muito bem. Um brinde, cavalheiros. À rainha!
Beberam e, quando seus copos ficaram vazios, Struan mandou que fossem cheios novamente.
— Com sua permissão, Capitão Glessing, gostaria de oferecer a seus homens um duplo. E ao senhor, claro. Um brinde para a nova propriedade da rainha. O senhor entrou para a História hoje. — Ele bradou aos mercadores. — Devemos prestar uma homenagem ao capitão. Vamos chamar esta praia de “Cabo Glessing”.
Houve um bramido de aprovação.
— Dar nome a ilhas ou à parte de uma ilha é função do oficial de escalão mais elevado — disse Glessing.
— Vou mencionar isto a Sua Excelência.
Glessing fez um aceno brusco de cabeça e gritou para o mestre-d’armas:
— Marinheiros, um duplo, com os cumprimentos de Struan e Companhia. Fuzileiros, nada. Relaxar.
Apesar de sua fúria com Struan, Glessing não pôde deixar de se regozijar ao saber que, enquanto houvesse uma colônia em Hong Kong, seu nome seria lembrado. Porque Struan jamais dizia nada impensadamente.
Foi feito um brinde a Hong Kong, e dados três vivas. Depois, Struan fez um aceno de cabeça para o tocador de gaita de foles e o toque do clã Struan encheu a praia.
Robb nada bebeu. Struan tomou um copo de uísque e passeou por entre a multidão, cumprimentando aqueles a quem queria cumprimentar e fazendo acenos de cabeça para outros.
— Não está bebendo, Gordon?
— Não, obrigado, Sr. Struan. — Gordon Chen fez uma curvatura à moda chinesa, muito orgulhoso de ser notado.
— Como vai você?
— Muito bem, obrigado, senhor. O garoto se transformara num belo jovem, pensou Struan. Quantos anos tem agora? Dezenove. O tempo passa tão depressa.
Lembrou-se com ternura de Kai-sung, a mãe do rapaz. Ela tinha sido sua primeira amante e era linda. Ayeeee yah, ela lhe ensinara uma porção de coisas.
— Como está sua mãe? — Perguntou.
— Está muito bem. — Gordon Chen sorriu. — Ela gostaria que eu lhe falasse de suas orações por sua segurança. Todo mês ela queima bastões do pagode em sua honra, no templo.
Struan ficou imaginando qual seria seu aspecto, agora. Há dezessete anos não a via. Mas se lembrava, nitidamente, de seu rosto.
— Mando-lhe as minhas saudações.
— O senhor lhe faz muita honra, Sr. Struan.
— Chen Sheng me contou que vocês estão trabalhando duro e lhe são muito úteis.
— Ele é por demais generoso comigo, senhor.
Chen Sheng não era jamais generoso com alguém que não fizesse mais do que ganhar seu sustento. Chen Sheng era um velho ladrão, Struan sabia, mas, por Deus, estaríamos perdidos sem ele.
— Bom — disse Struan — você não poderia ter um professor melhor do que Chen Sheng. Haverá uma porção de coisas a fazer nos próximos meses. Vai ser um aperto.
— Espero ser útil à Casa Nobre, senhor.
Struan sentiu que seu filho tinha algo em mente, mas simplesmente fez um aceno amável de cabeça e se afastou, sabendo que Gordon encontraria uma maneira de lhe dizer, quando chegasse a ocasião oportuna.
Gordon Chen curvou-se e, depois de um momento, aproximou-se de uma das mesas e ficou esperando, cortesmente, ao fundo até haver espaço para ele, consciente dos olhares, mas sem se importar; sabia que enquanto Struan fosse o Tai-Pan ele estava completamente seguro.
Os negociantes e marinheiros na praia fizeram em pedaços com as mãos os frangos e porquinhos de leite e se encheram de carne, a gordura a lhes escorrer pelo queixo. Que bando de selvagens, pensou Gordon Chen, e agradeceu seu pagode por ter sido criado como chinês e não como europeu.
Sim, pensou ele, meu pagode foi grande. Pagode lhe trouxera seu professor chinês secreto, há alguns anos. Ele não contara a ninguém sobre o professor, nem mesmo à sua mãe. Com esse homem, ele aprendera que nem todos os ensinamentos dos reverendos Sinclair e Mauss eram necessariamente verdadeiros. Aprendera sobre Buda e sobre a China e seu passado. E como pagar a dádiva da vida e usá-la para a glória de sua terra natal. Depois, no ano passado, o Professor o iniciara na mais poderosa, mais clandestina e mais militante das sociedades secretas chinesas, a Hung Mun Tong, que esteve disseminada por toda China e cujo empenho, através dos mais sagrados juramentos de irmandade de sangue, era derrubar os odiados Manchus, os Ch’ings estrangeiros a dinastia governante da China.
Por dois séculos, sob vários disfarces e nomes, a sociedade fomentara a insurreição. Haviam ocorrido revoltas em todo o Império Chinês — do Tibete à Formosa, da Mongólia à Indochina. Onde quer que houvesse fome, opressão ou descontentamento, a Hung Mun reunia os camponeses contra os Ch’ings e contra seus mandarins. Todas as insurreições fracassaram e foram selvagemente esmagadas pelos Ch’ings. Mas a sociedade sobrevivera.
Gordon Chen sentia-se orgulhoso com o fato de, sendo apenas parte chinês, ter sido considerado digno de ser um Hung Mun. Morte aos Ch’ings. Ele abençoou seu pagode por ter nascido naquela época da história, naquela parte da China, com o pai que tinha, pois sabia ter quase chegado a hora de uma revolta em toda a China.
E ele abençoou o Tai-Pan, pois dera a Hung Mun uma pérola de valor inestimável: Hong Kong. Afinal, a sociedade tinha uma base segura, longe da perpétua opressão dos mandarins. Hong Kong estaria sob controle dos bárbaros e ali, naquela pequena ilha, ele sabia que a sociedade floresceria. De Hong Kong, em segurança e secretamente, eles esquadrinhariam o território continental e atacariam os Ch’ings até chegar o Dia. E com pagode, pensou ele, eu posso usar o poder da Casa Nobre para a causa.
— Pula fora, pagão maldito!
Gordon Chen ergueu os olhos, espantado. Um marinheiro atarracado, rijo e baixinho o fitava. Tinha nas mãos um pedaço de porquinho de leite e o partia com seus dentes quebrados.
— Pula fora, senão eu vou enrolar seu rabicho em volta de seu maldito pescoço! O mestre McKay aproximou-se às pressas, e afastou o marinheiro.
— Cala a boca, Ramsey, seu sujo — disse. — Ele não é perigoso, Sr. Chen.
— Sim, obrigado, Sr. McKay.
— Quer “bóia”? — McKay cortou um frango com a sua faca e ofereceu-o.
Gordon Chen, cuidadosamente, partiu o osso final da asa do frango, horrorizado com as maneiras bárbaras de McKay.
— Obrigado.
— Só vai querer isso?
— Sim. É a parte mais tenra. — Chen fez uma curvatura. — Obrigado outra vez.
— Afastou-se.
McKay aproximou-se do marinheiro.
— Você está bom da cabeça, imediato?
— Eu devia arrancar seu coração de veado. É seu queridinho chinês, McKay?
— Fala baixo. Aquele chinês tem de ser deixado em paz. Se você quer apoquentar um bastardo pagão, existem muitos outros. Mas não aquele, pelo amor de Deus. Ele é o bastardo do Tai-Pan, nada mais, nada menos.
— Então por que não usa um maldito sinal... ou corta aquele maldito cabelo? — Ramsey baixou a voz e lançou olhares de soslaio. — Ouvi dizer que são diferentes... as bichas chinesas. Feitos de maneira diferente.
— Não sei. Nunca cheguei perto de um desses tipos. Tem uma porção de nossa raça em Macau.
***
Struan estava olhando uma sampana ancorada ao largo. Era um barco pequeno, com uma cabina bem-arrumada feita de finas esteiras de palhinha entrançada, esticada sobre arcos de bambu. O pescador e sua família eram Hoklos, gente que morava em barcos e vivia toda sua vida flutuando, raramente, ou nunca, indo à praia. Ele podia ver que havia quatro adultos e oito crianças na sampana. Algumas das crianças estavam amarradas no barco por cordas em torno da cintura. Deviam ser os filhos. As filhas não eram amarradas, porque não tinham nenhum valor.
— Quando acha que poderemos voltar para Macau, Sr. Struan? Ele se virou e sorriu para Horatio.
— Creio que amanhã, rapazinho. Mas acho que Sua Excelência vai precisar de você para o encontro com Ti-sen. Haverá mais documentos para traduzir.
— Quando será o encontro?
— Dentro de três dias, acredito.
— Se tiver um navio indo para Macau, dará uma passagem à minha irmã? A pobre Mary está a bordo há dois meses.
— Com a maior satisfação. — Struan ficou imaginando o que Horatio faria, quando soubesse a verdade a respeito de Mary. Struan descobrira a verdade sobre ela há pouco mais de três anos...
Ele estava num mercado apinhado, em Macau, e um chinês, de repente, empurroulhe um pedaço de papel nas mãos e fugiu correndo. Era uma nota escrita em chinês. Ele mostrou o papel a Wolfgang Mauss.
— É o endereço de uma casa, Sr. Struan. E um recado: “O Tai-Pan da Casa Nobre precisa de informações especiais, por causa de sua casa. Venha secretamente à entrada lateral, na Hora do Macaco.”
— O que é Hora do Macaco?
— Três horas da tarde.
— Onde é a casa?
Wolfgang lhe disse e depois acrescentou:
— Não vá. É uma armadilha, hein? Lembre-se de que sua cabeça foi posta a prêmio por cem mil taéis.
— A casa não fica no bairro chinês — disse Struan. — E à luz do dia não seria uma armadilha. Reúna a tripulação do meu navio. Se eu não tornar a aparecer, são e salvo, dentro de uma hora, venham procurar-me.
E então ele partiu, deixando Wolfgang e a tripulação do navio armada e por perto, de prontidão, caso fosse necessário. A casa ficava junto de outras, enfileiradas, numa rua tranqüila e arborizada. Struan entrou por uma porta no alto muro, e chegou a um jardim. Uma criada chinesa o esperava. Ela estava vestida de maneira asseada, com calças negras e casaco da mesma cor, e seu cabelo estava penteado num coque. Ela fez uma curvatura e um sinal para que ele ficasse em silêncio, e a seguisse. Mostrou-lhe o caminho através do jardim, até dentro da casa, subindo em seguida por um lance de escadas internas, que davam num quarto. Ele a acompanhou cautelosamente, pronto para qualquer problema.
O quarto estava ricamente mobiliado e as paredes de madeira eram cobertas de tapeçarias. Havia cadeiras, uma mesa e móveis chineses de teca. O quarto cheirava singularmente a limpo, com uma leve sugestão de sutil incenso. Havia uma janela que dava para o jardim.
A mulher foi até à extremidade de uma parede lateral e, cuidadosamente, movimentou um segmento de madeira. Havia um pequeno buraco na parede. Ela espiou por ali, e depois fez sinal para que ele fizesse a mesma coisa. Ele sabia que havia um antigo truque chinês para enganar um inimigo: fazê-lo colocar o olho num buraco assim, na parede, enquanto alguém esperava, do outro lado, com uma agulha. Então manteve o olho a algumas polegadas do buraco. Mesmo assim, podia ver o outro quarto, claramente.
Era um quarto de dormir. Wang Chu, o principal mandarim de Macau, encontravase na cama, nu e corpulento, roncando. Mary estava nua, a seu lado. Com a cabeça apoiada nos braços, ela olhava para o teto.
Struan espiava com um horror fascinado. Mary, langorosamente cutucou Wang Chu e acariciou-o até acordá-lo, rindo e conversando com ele. Struan não sabia que ela falava chinês, e ele a conhecia mais do que qualquer outra pessoa, com exceção do irmão. Ela tocou uma pequena sineta e uma criada entrou e começou a ajudar o mandarim a se vestir. Wang Chu não podia vestir a si mesmo porque suas unhas tinham quatro polegadas de comprimento e eram protegidas por folhas de metal cravejadas de jóias. Struan virouse, cheio de repulsa.
Houve um repentino ruído de vozes, numa cadência monótona, vindas do jardim, e ele, cautelosamente, olhou pela janela. Os guardas de Wang estavam reunidos no jardim; poderiam impedir-lhe a saída. A criada fez-lhe um sinal para não se preocupar e esperar. Ela foi até à mesa e serviu-lhe chá; depois, fez uma curvatura e saiu.
Dentro de meia hora, os homens saíram do jardim e Struan viu que se enfileiravam diante de uma liteira, na rua. Wang Chu foi ajudado a entrar na liteira e carregado.
— Olá, Tai-Pan.
Struan fez um giro, puxando a faca. Mary estava em pé num pórtico antes escondido na parede. Usava um traje de tecido fino e diáfano, que nada escondia. Tinha o cabelo comprido e louro, olhos azuis e um queixo com uma covinha; longas pernas, cintura estreita e seios pequenos e firmes. Um pedaço de jade entalhado, de valor incalculável, estava pendurado numa corrente de ouro em torno de seu pescoço. Mary observava Struan com um sorriso curioso e aberto.
— Pode guardar a faca, Tai-Pan. Não está em perigo. — Sua voz era calma e zombeteira.
— Você devia ser chicoteada — disse ele.
— Conheço muito bem o chicote, não se lembra? — Ela se movimentou em direção ao quarto. — Teremos mais conforto aqui dentro. — Ela foi até uma escrivaninha e despejou uísque em dois copos. — Que é que há? — disse ela, com o mesmo sorriso perverso. — Nunca esteve no quarto de uma moça antes?
Ela lhe entregou um copo e ele o pegou.
— Somos iguais, Tai-Pan. Ambos preferimos amantes chineses.
— Por Deus, sua cadela maldita, você...
— Não seja hipócrita; não fica bem para você. Você é casado e tem filhos. Entretanto, tem muitas outras mulheres. Mulheres chinesas. Sei tudo a respeito delas. Empenhei-me em descobrir.
— É impossível que você seja Mary Sinclair — disse ele, mais ou menos para si mesmo.
— Não é impossível. Surpreendente, sim. — Ela bebia seu uísque calmamente. — Mandei buscá-lo porque queria que você me visse como eu sou.
— Por quê?
— Primeiro, é melhor você mandar seus homens embora.
— Como sabe a respeito deles?
— Você é muito cuidadoso. Como eu. Não viria aqui secretamente sem um guarda-costa. — Seus olhos zombavam dele.
— Em que você está metida?
— Quanto tempo disse a seus homens para esperarem?
— Uma hora.
— Preciso de um espaço maior de seu tempo. Mande-os embora. — Ela riu. — Eu esperarei.
— É melhor esperar. E vista alguma coisa.
Ele saiu da casa e disse a Wolfgang para esperar mais duas horas e então ir procurá-lo. Contou-lhe a respeito da porta secreta, mas não sobre Mary. Quando ele voltou, Mary estava deitada na cama.
— Por favor, feche a porta, Tai-Pan — disse ela.
— Eu lhe disse para vestir alguma coisa.
— Eu lhe disse para fechar a porta.
Raivosamente, ele bateu a porta. Mary tirou o vestido transparente e o atirou para um lado.
— Acha que eu sou atraente?
— Não. Você me enoja.
— Você não me enoja, Tai-Pan. Você é o único homem que eu admiro no mundo.
— Horatio devia ver você agora.
— Ah, Horatio — disse ela, enigmaticamente. — Quanto tempo você disse a seus homens para esperarem, desta vez?
— Duas horas.
— Você lhes contou a respeito da porta secreta. Mas não a meu respeito.
— Por que tem tanta certeza?
— Conheço você, Tai-Pan. Por isso lhe confio o meu segredo. — Ela brincava com o copo de uísque, os olhos baixos. — Já tínhamos terminado, quando você espiou pelo buraco?
— Sangue de Deus! É melhor você...
— Tenha paciência comigo, Tai-Pan — disse ela. — Já tínhamos?
— Sim.
— Fico satisfeita. Satisfeita e aborrecida. Queria que você tivesse certeza.
— Não entendi.
— Queria que você tivesse certeza de que Wang Chu era meu amante.
— Por quê?
— Porque tenho informações que lhe podem ser úteis, Tai-Pan. Tenho muitos amantes. Chen Sheng vem aqui algumas vezes. Muitos dos mandarins de Cantão. O velho Jin-qua, uma vez. — Os olhos dela gelaram e pareceram mudar de cor. — Não me desagradam. Eles gostam da cor de minha pele e eu lhes dou prazer. Eles me dão prazer. Tenho de lhe dizer essas coisas, Tai-Pan. Não faço mais do que pagar a dívida que tenho com você.
— Que dívida?
— Você impediu os espancamentos. Você impediu tarde demais, mas não foi por culpa sua. — Ela se levantou da cama e vestiu um traje grosso. — Não quero aborrecê-lo mais. Por favor me ouça e depois pode fazer o que quiser.
— O que você quer me contar?
— O imperador indicou um novo vice-rei para Cantão. Esse Vice-rei Ling, leva um edito imperial para proibir o tráfico de ópio. Ele chegará dentro de duas semanas, e dentro de três semanas cercará a Colônia em Cantão. Nenhum europeu sairá de Cantão até todo o ópio ter sido entregue.
Struan riu com desprezo.
— Não acredito nisso.
— Se o ópio for entregue e destruído, qualquer pessoa que tenha cargas de ópio fora de Cantão ganharia uma fortuna — disse Mary.
— Não será entregue.
— Vamos dizer que toda a Colônia seja posta sob exigência de resgate, em troca do ópio. O que poderiam vocês fazer? Não há navios armados aqui. Vocês estão indefesos. Não estão?
— Sim.
— Mande um navio a Calcutá, com ordens de comprar ópio, todo que puder, dois meses depois de chegar. Se minha informação for falsa, isto lhe dará tempo suficiente para cancelar a ordem.
— Wang lhe disse isso?
— Só a respeito do vice-rei. O resto foi idéia minha. Queria pagar a dívida que tenho com você.
— Você não me deve nada.
— Você nunca foi chicoteado.
— Por que você não mandou alguém me contar, secretamente? Por que me trazer aqui? Para ver você assim? Por que me fazer passar por isto... este horror?
— Queria lhe contar. Eu mesma. Queria que alguém mais, além de mim mesma, soubesse quem eu sou. Você é o único homem em quem confio — ela disse, com uma inesperada e infantil inocência.
— Você está louca. Devia ser trancafiada.
— Por que gosto de ir para a cama com chineses?
— Deus do céu! Não entende quem você é?
— Sim. Uma vergonha para a Inglaterra. — A raiva aflorou em seu rosto, endurecendo-o, envelhecendo-o. — Vocês homens fazem o que lhes agrada, mas nós mulheres não podemos. Bom Deus, como posso ir para a cama com um europeu? Eles não conseguem se conter e vão contando logo aos outros, e me cobririam de vergonha diante de todos vocês. Desta maneira, ninguém se prejudica. A não ser eu, talvez, e isto aconteceu há muito tempo.
— O que aconteceu?
— É melhor você encarar uma verdade da vida, Tai-Pan. A mulher precisa de homens tanto quanto o homem precisa de mulheres. Por que deveríamos nos satisfazer com um homem apenas? Por quê?
— Há quanto tempo isto vem acontecendo?
— Desde que eu tinha quatorze anos. Não fique tão chocado! Quantos anos tinha May-may quando você a comprou?
— Isso é diferente.
— É sempre diferente para um homem. — Mary sentou-se à mesa, diante do espelho, e começou a escovar o cabelo. — Brock está negociando secretamente com os espanhóis em Manilha a compra da colheita de açúcar. Ele ofereceu a Carlos de Silvera dez por cento pelo monopólio.
Struan sentiu um assomo de fúria. Se Brock conseguisse fazer funcionar aquele truque com o açúcar, poderia dominar todo o mercado das Filipinas.
— Como você sabe?
— O compradore dele, Sze-tsin, me contou.
— Ele é outro dos seus... clientes?
— Sim.
— Tem mais alguma coisa que queira me contar?
— Você poderá ganhar cem mil taéis de prata com o que eu lhe contei.
— Acabou?
— Sim.
Struan levantou-se.— O que vai fazer?
— Contar a seu irmão. É melhor que você seja mandada de volta para a Inglaterra.
— Deixe-me viver minha própria vida, Tai-Pan. Eu gosto do que eu sou e jamais mudarei. Nenhum europeu, e poucos chineses sabem que eu falo cantonês e mandarim, exceto Horatio e, agora, você. Mas só você conhece meu verdadeiro eu. Prometo que serei muito, muito útil a você.
— Você estará em casa, fora da Ásia.
— A Ásia é a minha casa. — Ela franziu a testa e seus olhos pareceram suavizarse. — Por favor, deixe-me como eu sou. Nada mudou. Há dois dias, nós nos encontramos na rua e você foi gentil e bondoso. Ainda sou a mesma Mary.
— Você não é a mesma. Acha que isto não é nada?
— Somos todos pessoas diferentes, ao mesmo tempo. Este é um dos meus eus, e a outra moça, a doce e inocente virgenzinha, que conversa bobagens e adora a igreja, o cravo, cantar e bordar, também sou eu. Não sei por que, mas é verdade. Você é o Tai-Pan Struan, demônio, contrabandista, príncipe, assassino, marido, fornicador, santo e centenas de outras pessoas. Qual desses é, verdadeiramente, você?
— Não contarei a Horatio. Você pode simplesmente ir embora para casa. Eu lhe darei o dinheiro.
— Tenho dinheiro suficiente para minha própria passagem, Tai-Pan. Ganho muitos presentes. Possuo esta casa e a vizinha. E irei quando decidir, da maneira que decidir. Por favor, deixe que eu tenha o meu próprio pagode, Tai-Pan. Sou quem sou, e nada do que você fizer poderá mudar isso. Antigamente, você poderia ter-me ajudado. Não, isto também não é honesto. Ninguém poderia ter-me ajudado. Gosto do que eu sou. Juro que jamais mudarei. Serei o que sou: secretamente, sem que ninguém saiba, exceto você e eu... ou abertamente. Então por que ferir os outros? Por que ferir Horatio?
Struan observou-a. Sabia que ela estava falando sério.
— Sabe o perigo em que se encontra?
— Sim.
— Vamos dizer que você tenha um filho.
— O perigo dá tempero à vida, Tai-Pan. — Ela o olhou fixamente, com uma sombra nos olhos azuis. — Só uma coisa eu lamento, por ter trazido você aqui. Agora jamais poderei ser sua mulher. Eu teria gostado de tentar ser sua mulher.
Struan abandonou-a ao seu pagode. Tinha direito de viver como lhe agradava, e expô-la à comunidade nada resolveria. Pior, destruiria seu dedicado irmão.
Ele usara sua informação, com um lucro imenso. Por causa de Mary, A Casa Nobre teve monopólio quase total de ópio durante um ano e ganhos que ultrapassaram as despesas de sua parcela do ópio — doze mil caixas — que servira para resgatar a Colônia. E a informação de Mary a respeito de Brock era correta, e Brock foi impedido de executar seu plano. Struan abriu uma conta secreta para Mary na Inglaterra e depositou, nesta conta, uma proporção do lucro. Ela lhe agradecera, mas jamais parecera interessada no dinheiro. De vez em quando, dava-lhe mais informações. Mas jamais quis dizer-lhe como começara sua vida dupla, e nem por quê. Meu Deus do céu, pensara ele, jamais entenderei as pessoas...
E agora, na praia, ele estava imaginando o que Horatio faria quando descobrisse. Era impossível para Mary manter sua segunda vida secreta — com certeza, acabaria cometendo algum erro.
— O que há, Sr. Struan? — disse Horatio.
— Nada, rapaz. Estava apenas pensando.
— Tem algum navio que parta hoje ou amanhã?
— O quê?
— Que vá para Macau — disse Horatio, rindo. — A fim de levar Mary para Macau.
— Ah, sim, Mary. — Struan se recompôs. — Amanhã, provavelmente. Eu lhe informarei, rapaz.
Ele abriu caminho entre os negociantes, dirigindo-se para Robb, que estava de pé perto de uma das mesas, fitando o mar.
— Qual o próximo, Sr. Struan? — bradou Skinner.
— Ah?
— Temos a ilha. Qual o próximo passo da Casa Nobre?
— Construir, naturalmente. Os primeiros a construir serão os primeiros a lucrar, Sr. Skinner. — Struan fez um aceno bem-humorado de cabeça e seguiu adiante. Ficou imaginando o que os outros negociantes — até mesmo Robb — diriam se soubessem que ele era o proprietário do Oriental Times e Skinner seu empregado.
— Não vai comer, Robb?
— Mais tarde, Dirk. Há tempo bastante.
— Quer chá?
— Obrigado.
Cooper aproximou-se, e ergueu seu copo.
— Para a “Extravagância de Struan?”
— Se for, Jeff — disse Struan — todos vocês vão descer pelo cano conosco.
— E vai ser um cano caro, se Struan não tiver nada com isso. — disse Robb.
— A Casa Nobre realmente faz as coisas em alto estilo! Perfeito uísque, conhaque, champanha. E copos de vidro veneziano.
— Cooper bateu no vidro com a unha e a nota produzida era pura. — Lindo.
— Feito em Birmingham. Acabaram de descobrir um novo processo. Uma fábrica já faz mil por semana. Dentro de um ano, haverá dúzias de fábricas. — Struan fez uma pausa, por um momento.
— Entregarei quantos quiser em Boston. Dez centavos americanos por copo. Cooper examinou o copo mais detidamente.
— Dez mil. Seis centavos.
— Dez centavos. Brock lhe cobraria doze.
— Quinze mil a sete centavos.
— Fechado, com uma ordem garantida de trinta mil, pelo mesmo preço, por ano, a partir de hoje e a garantia de que você só importará através de Struan.
— Fechado, se você fretar uma carga de algodão pelo mesmo navio, de Nova Orleans e Liverpool.
— Quantas toneladas?
— Trezentas. Nas condições de costume.
— Fechado, se você trabalhar como nosso agente em Cantão durante esta temporada do chá. Se for necessário. Cooper ficou instantaneamente na defensiva.
— Mas a guerra acabou. Por que você iria precisar de um agente?
— Estamos de acordo?
A mente de Cooper estava fervilhando, como um vespeiro. O Tratado de Chuenpi abria Cantão imediatamente ao comércio. No dia seguinte, eles iam voltar à Colônia em Cantão, para fixar residência outra vez. Iriam assumir o controle de suas feitorias ou hongs, como suas casas de negócios no Oriente eram chamadas — e ficariam na Colônia, como sempre, até maio, quando terminasse a temporada de negócios. Mas A Casa Nobre necessitar de um agente, agora, em Cantão, era uma loucura tão grande como dizer que os Estados Unidos da América precisavam de uma família real.
— Negócio fechado, Jeff?
— Sim. Você está esperando uma nova guerra?
— A vida é sempre problemática, não? Não foi isto que Wolfgang estava tentando dizer?
— Não sei.
— Quando vai ficar pronto seu novo navio? — perguntou Struan, abruptamente. Os olhos de Cooper se estreitaram.
— Como você descobriu a respeito disso? Ninguém sabe, fora da nossa companhia. Robb riu.
— Nosso negócio é saber, Jeff. O navio pode representar uma competição injusta. Se navegar como Dirk pensa que navegará, talvez nós o compremos, tirando-o de seu controle. Ou podemos construir quatro outros parecidos.
— Vai ser algo diferente para os ingleses, comprarem navios americanos — disse Cooper, tenso.
— Ah, não vamos comprar, Jeff — disse Struan. — Já temos uma cópia do projeto. Construiremos onde sempre construímos. Em Glasgow. Se eu fosse você, daria aos mastros um caimento de mais um ponto, aumentaria o cordame e acrescentaria mastaréus de sobrejoanete ao mastro principal e à vela. Como é que vai batizá-lo?
— Independence.
— Então vamos chamar o nosso de Independent Cloud. Se o seu for digno disso.
— Vamos tirar vocês do mar. Já os derrotamos duas vezes na guerra, e agora vamos derrotar onde realmente dói. Vamos tomar seu comércio.
— Vocês não têm a mínima chance. — Struan notou que Tillman se afastava. Abruptamente, sua voz se endureceu. — E muito menos quando metade de seu país se baseia na escravidão.
— Isso vai mudar, no devido tempo. Foram os ingleses que começaram.
— Foi a ralé quem começou!
Sim, e os loucos continuam com isso, pensou Cooper, amargamente, lembrando-se das brigas particulares violentas que estava sempre tendo com seu sócio, que tinha escravos para a lavoura e fazia o tráfico negreiro. Como poderia Wilf ser tão cego?
— Vocês traficavam há cerca de oito anos.
— Struan jamais transportou carga humana, por Deus. E, em nome de Cristo, eu vou explodir qualquer navio que pegar fazendo isso. Dentro ou fora de águas britânicas. Fomos os pioneiros no mundo. A escravidão proibida. Pelo amor de Deus, demorou até 1833 para se conseguir isso, mas foi conseguido. Qualquer navio, lembre-se!
— Então faça outra coisa. Use sua influência para nos deixar comprar ópio da maldita Companhia das Índias Orientais. Por que todos, com exceção dos comerciantes ingleses, seriam totalmente excluídos dos leilões, hein? Por que devemos ser forçados a comprar ópio turco de má qualidade, quando há mais do que suficiente em Bengala para todos nós?
— Fiz mais do que podia para destruir a Companhia, como você sabe muito bem. Gaste algum dinheiro, rapaz. Jogue um pouco. Agite, em Washington. Pressione o irmão do seu sócio. Ele não é senador por Alabama? Ou será que está ocupado demais tomando conta de quatro malditos navios de tráfico de escravos e alguns “mercados” em Mobile?
— Você sabe minha opinião a respeito disso, por Deus — disse Cooper. — Abram os leilões de ópio e vamos derrotar vocês no comércio, no mundo inteiro. Acho que estão com medo de competir livremente, a verdade é essa. Por que motivo manter em vigor os Decretos de Navegação? Por que fazer uma lei dizendo que só navios ingleses podem levar mercadorias para a Inglaterra? Com que direito monopolizam o maior mercado consumidor do mundo?
— Não é por direito divino, rapaz — disse Struan asperamente — embora ele, segundo parece, esteja sempre presente no pensamento americano e em sua política externa.
— Em algumas coisas estamos certos e vocês errados. Vamos competir livremente. Malditas tarifas! Comércio livre e mares livres... isto é que está certo!
— Struan concorda com você, nesse ponto. Não lê os jornais? Não me incomodo de lhe dizer que compramos dez mil votos por ano para apoiar seis parlamentares dispostos a votar a favor da liberdade de comércio. Estamos fazendo um grande esforço.
— Um voto, um homem. Não compramos votos.
— Vocês têm seu sistema, e nós o nosso. E vou lhe dizer mais uma coisa. Os ingleses não eram a favor das guerras americanas, nenhuma das duas. Nem a favor daqueles malditos reis hanoverianos. Vocês não ganharam as guerras, nós as perdemos. Felizmente. Por que iríamos guerrear amigos e parentes? Mas se a gente das Ilhas decidir um dia fazer guerra aos Estados Unidos, cuidado, por Deus. Porque vocês estarão liquidados.
— Acho que está na hora de fazer um brinde — disse Robb. Os dois homens arrancaram os olhos um do outro e o fitaram. Para espanto de ambos, ele encheu três copos.
— Você não vai beber, Robb — disse Struan, tendo na voz uma violência de chicote.
— Vou. Pela primeira vez em Hong Kong. A última vez. Robb entregou-lhes os copos. O uísque era marrom-dourado e destilado exclusivamente para a Casa Nobre em Loch Tannoch, onde eles tinham nascido. Robb precisava da bebida; um barril inteiro.
— Você fez um juramento sagrado!
— Eu sei. Mas traz má sorte brindar com água. E este brinde é importante. — A mão de Robb tremia, quando ele ergueu seu copo. — Ao nosso futuro. Ao Independence e ao Independent Cloud. À liberdade nos mares. À liberdade, contra todos os tiranos.
Ele tomou um gole e conservou a bebida, sentindo-a arder, com o corpo torcendose de necessidade dela. Depois cuspiu-a e despejou o que restava nas pedrinhas da praia.
— Se eu tornar a fazer isso, arranque o copo de minha mão com um soco. — Ele se virou, nauseado, e caminhou em direção à terra.
— Eu não teria força para tanto — disse Cooper.
— Robb é louco, de tentar o Demônio desse jeito — disse Struan.
Robb começara a beber até à loucura há seis anos. No ano anterior, Sarah viera a Macau, da Escócia, com seus filhos. Durante algum tempo, tudo fora ótimo, mas depois ela descobrira a respeito da amante chinesa que Robb tinha há anos, Ming Soo, e sobre a filha dos dois. Struan lembrou-se da raiva de Sarah e da angústia de Robb, e ficou triste por ambos. Eles deveriam ter-se divorciado há anos, ele pensou, e amaldiçoou o fato de que o divórcio só poderia ser obtido através de um decreto parlamentar. Afinal, Sarah concordou em perdoar Robb, mas só se ele jurasse por Deus livrar-se imediatamente de sua adorada amante e da filha de ambos. Odiando a si próprio, Robb concordara. Dera secretamente a Ming Soo quatro mil taéis de prata e ela e a filha partiram de Macau. Ele jamais tornara a vê-las, e nem ouvira novamente falar delas. Mas, embora Sarah cedesse, jamais esquecera a bela moça e a menina, e continuou a atirar sal na ferida aberta para sempre. Robb começou a beber muito. Logo a bebida dominara-o, e ele ficara embrutecido por meses a fio. Então, certo dia, desapareceu. Afinal, Struan encontrara-o, num dos fedorentos botequins de Macau, carregara-o para casa e lhe curara a bebedeira; depois, dera-lhe uma arma.
— Atire em si próprio, ou jure por Deus que não tocará em bebida outra vez. É veneno para você, Robb. Você esteve bêbado por quase um ano. Você tem de pensar em seus filhos. As pobres crianças estão aterrorizadas com você e têm razão; e eu estou cansado de tirar você da sarjeta. Olhe para você mesmo, Robb! Vá!
Struan forçou-o a se olhar num espelho. Robb jurara, e então Struan mandara-o para o mar, durante um mês, com ordem de que não lhe dessem nenhuma bebida. Robb quase morrera. Depois de algum tempo, voltara a ser o que era, e agradecera ao irmão, tornando então a viver com Sarah, após fazer as pazes. Mas jamais houvera paz outra vez entre eles — e nem amor. Pobre Robb, pensou Struan. Sim, e pobre Sarah. É terrível marido e mulher viverem assim.
— Por que diabo Robb fez isso?
— Acho que ele queria impedir uma briga — disse Cooper. — Eu estava começando a ficar zangado. Desculpe.
— Não peça desculpas, Jeff. Foi minha culpa. Bom — acrescentou Struan — não vamos desperdiçar a coragem de Robb, hein? E nem o brinde que ele fez.
Beberam, silenciosamente. Em torno, pela praia inteira, negociantes e marinheiros divertiam-se ruidosamente.
— Ei, Tai-Pan! E você, maldito colono! Cheguem aqui! Era Quance, sentado perto do mastro da bandeira. Ele acenou para ambos e gritou de novo.
— Diabo, venham cá!
Tomou uma pitada de rapé, espirrou duas vezes e tirou o pó, com impaciência, de cima de sua roupa, usando um lenço de renda francesa.
— Por Deus, senhor — disse ele a Struan, espiando-o por sobre seus óculos sem aros — como pode um homem trabalhar com toda essa barulhada e esse tumulto, com mil demônios? Vocês e sua maldita bebida!
— Já provou o conhaque, Sr. Quance?
— Impecável, meu caro camarada. Como as testas da Srta. Tillman. — Tirou a pintura do cavalete e segurou-a. — O que acham?
— De Shevaun Tillman?
— Da pintura. Débeis mentais, como podem pensar num rabo de saia, quando estão diante de uma obra-prima? — Quance tomou outra pitada de rapé, ficou sufocado, bebeu conhaque Napoleão em seu canecão e espirrou.
A pintura era uma aquarela mostrando a cerimônia daquele dia. Delicada. Fiel. E algo mais. Era fácil identificar Brock e Mauss, e Glessing estava lá, com a proclamação nas mãos.
— É muito boa, Sr. Quance — disse Struan.
— Cinqüenta guinéus.
— Comprei uma pintura a semana passada.
— Vinte guinéus.
— Não apareço aí.
— Por cinqüenta guinéus eu o pintarei lendo a proclamação.
— Não.
— Sr. Cooper. Uma obra-prima. Vinte guinéus.
— Salvo o Tai-Pan e Robb, eu tenho a maior coleção de Quance de todo Oriente.
— Diabo, cavalheiros, preciso arranjar algum dinheiro, em algum lugar.
— Venda a Brock. Consegue vê-lo com muita nitidez -; disse Struan.
— Maldito seja Brock! — Quance tomou um gole enorme de conhaque e disse, com a voz rouca. — Ele me recusou, que vá para o inferno! — Deu furiosas pinceladas, fazendo Brock sumir. — Por Deus, por que deveria eu torná-lo imortal? E malditos sejam vocês dois. Vou mandar o quadro para a Real Academia. Em seu próximo navio, Tai-Pan.
— Quem vai pagar o frete? E o seguro?
— Eu pagarei, meu rapaz.
— Com o quê?
Quance contemplou a pintura. Sabia que, mesmo na velhice, seria ainda capaz de pintar, e de se aperfeiçoar; seu talento não se deterioraria.
— Com o que, Sr. Quance?
Ele acenou para Struan uma mão imperiosa.
— Dinheiro. Taéis. O cobre. Dólares. À vista!
— Conseguiu mais crédito, Sr. Quance?
Mas Quance não respondeu. Continuou a admirar seu trabalho, sabendo que conseguira fisgar sua presa.
— Vamos, Aristotle, quem deu o crédito? — insistiu Struan. Quance bebeu um enorme gole de conhaque, tomou mais rapé e espirrou. Sussurrou, como quem conspira.
— Sente-se. — Verificou se não havia mais ninguém escutando. — Um segredo.
— Ergueu a pintura. — Vinte guinéus?
— Muito bem — disse Struan. — Mas espero que valha esse preço.
— É um príncipe entre os homens, Tai-Pan. Quer rapé?
— Diga logo!
— Parece que uma certa senhora se admira muito. Num espelho. Sem roupa nenhuma. Fui contratado para pintá-la assim.
— Meu Deus do céu! Quem é?
— Ambos a conhecem muito bem. — Depois Quance acrescentou, com tristeza fingida. — Jurei não revelar seu nome. Mas vou colocar na história o seu traseiro. É soberbo. — Outro gole de conhaque. — Eu, anh, insisti em vê-la inteira. Antes de concordar em aceitar a incumbência. — Beijou os dedos, com êxtase. — Impecável, cavalheiros, impecável! E seus mamilos! Meu Deus, quase enlouqueci! — Outro gole de conhaque.
— Você pode nos contar. Vamos, quem foi?
— A regra principal com relação a nus é a mesma que vale para a fornicação.
Nunca revelar o nome da senhora. — Quance acabou com pena o canecão. — Mas não existe um só homem, de vocês, que não pagasse mil guinéus para possuí-la. — Levantouse, arrotou com gosto, espanou-se, fechou sua caixa de pintura e pegou seu cavalete, satisfeitíssimo consigo mesmo. — Bom, isso é negócio suficiente para esta semana. Vou cobrar trinta guinéus a seu compradore.
— Vinte guinéus — disse Struan.
— Um original de Quance retratando o dia mais importante da História do Oriente — disse Quance, com desdém — por quase o preço de um barril de Napoleão. — Voltou para sua chalupa e dançou uma giga, quando o saudaram com vivas, a bordo.
— Deus todo-poderoso, quem terá sido? — disse Cooper, afinal.
— Deve ser Shevaun — disse Struan, com uma curta risada. — É o tipo de coisa que aquela moça faria.
— Nunca. Ela é uma danada, mas nem tanto assim. — Cooper olhou pouco à vontade para o navio-depósito de Cooper-Tillman, onde estava alojada Shevaun Tillman. Ela era a sobrinha de seu sócio e viera para a Ásia há um ano, de Washington. Neste período, ela se tornara a favorita do continente. Era bonita, tinha dezenove anos, era ousada e desejável, e nenhum homem conseguia apanhá-la — nem para a cama e nem para casar. Todo solteirão da Ásia, incluindo Cooper, fizera-lhe propostas. E todos haviam sido recusados e, ao mesmo tempo, não recusados; mantidos numa rédea, como ela fazia com todos os seus admiradores. Mas Cooper não se importava. Sabia que ela ia ser sua mulher. Fora mandada para ficar sob a guarda de Wilf Tillman pelo pai dela, um senador do Alabama, na esperança de que Cooper gostasse dela e ela dele, a fim de cimentar mais solidamente os negócios da família. E ele se apaixonara por ela, no momento em que a vira.
— Então, anunciaremos os esponsais imediatamente — Tillman dissera, deliciado, há um ano.
— Não, Wilf. Não há pressa. Vamos deixar que ela se acostume com a Ásia e comigo.
Quando Cooper virou as costas para Struan, sorriu para si mesmo. Por uma gata selvagem como aquela valia a pena esperar.
— Deve ser uma das “moças” da Sra. Fortheringill.
— Aquelas coelhinhas fazem qualquer coisa.
— Claro. Mas não pagariam a Aristotle para fazer isso.
— A velha Cara de Cavalo poderia pagar. Faz bons negócios.
— Ela tem negócios a granel, agora. Sua clientela é a melhor da Ásia. Consegue imaginar aquela bruxa dando dinheiro a Aristotle? — Cooper puxou com impaciência as suíças. — O máximo que ela faria era dar o dinheiro a ele, para fazer negócio. Talvez ele esteja brincando conosco, não?
— Ele brinca a respeito de tudo e de todos. Mas jamais sobre a pintura.
— Uma das portuguesas?
— Impossível. Se for casada, o seu marido lhe arrancará a cabeça. — Se for viúva... isto faria cair toda a cúpula da igreja católica. — As rugas com que os ventos haviam marcado o rosto de Struan retorceram-se num sorriso. — Vou colocar todo o poder da Casa Nobre a serviço da descoberta de quem é. Aposto vinte guinéus com você que descubro primeiro!
— Fechado. Fico com a pintura, se ganhar.
— Diabo, eu gostei dela, agora que Brock foi apagado.
— O vencedor fica com a pintura, e pediremos a Aristotle para colocar nela o perdedor.
— Fechado. — Apertaram-se as mãos.
— Houve um repentino disparo de canhão e eles olharam em direção ao mar. Um navio se aproximava pelo canal leste, navegando a toda força. Suas velas soltas, quadradas, mastaréus e mastaréus de sobrejoanete estavam enfunados a sotavento, enquanto os brióis lhes davam formas redondas e o cordame esticado tornava-se mais tenso e cantava sob o vento forte. O clíper, com seus mastros inclinados, tinha uma grande extensão da amura a sotavento, e a onda formada pela sua proa se erguia muito alta, molhando a amurada. Sobre a espuma de sua esteira — muito branca, contra o verdeazulado do oceano — gaivotas gritavam suas boas-vindas.
Outra vez o canhão rugiu e uma baforada de fumaça agitou-se sobre a quadra da popa, onde drapejava o Pavilhão do Reino Unido, enquanto o Leão e o Dragão flutuavam no alto da mezena. Aqueles que, na praia, haviam ganho suas apostas deram altos vivas, pois grandes somas de dinheiro tinham sido apostadas no navio que chegaria primeiro na Inglaterra, e no primeiro a voltar.
— Sr. MacKay! — bradou Struan, mas o mestre já se aproximava correndo, com o duplo óculo de alcance.
— Três dias de avanço, tempo recorde, senhorrr — disse o Mestre McKay com um sorriso desdentado. — Olha lá o vôo dele. Vai custar a Brock um barril de prata! — Saiu correndo em direção à terra.
O navio, Thunder Cloud, saiu velozmente do canal e, agora que tinha o caminho livre, corria adiante do vento, ganhando rapidez.
Struan colocou diante dos olhos o curto óculo de alcance e focalizou as bandeiras de código que procurava. A mensagem dizia: “Crise não resolvida. Novo tratado com o Império Otomano contra a França. Conversa sobre guerra”. Depois, Struan examinou o navio; sua pintura estava boa, a cordame retesado, os canhões em seus lugares. E, num canto de sua vela dianteira, havia um pequeno remendo negro, sinal de código, usado apenas em emergências e cujo significado era: “Importantes despachos a bordo.”
Ele baixou o binóculo e ofereceu-o a Cooper.
— Quer emprestado?
— Obrigado.
— É chamado bi-óculo, ou binóculo Dois olhos. Você focaliza com a rosca central — disse Struan. — Mandei fazer especialmente.
Cooper espiou através do binóculo e viu as bandeiras de código. Ele sabia que todos na armada estavam tentando ler a mensagem e todas as companhias gastavam muito tempo e dinheiro tentando decifrar o código da Casa Nobre. O binóculo era mais poderoso do que um telescópio.
— Onde posso conseguir doze dúzias disso?
— Cem guinéus por peça. Um ano para entregar.
É pegar ou largar, pensou Cooper, amargamente, conhecendo aquela entonação de voz.
— Fechado.
Novas bandeiras de código foram erguidas e Cooper devolveu o binóculo. A segunda mensagem era uma única palavra, “Zenith”, um código dentro do código principal.
— Se eu fosse você — disse Struan a Cooper — eu descarregaria o meu algodão da temporada. Depressa.
— Por quê? Struan deu de ombros.
— Só estou tentando ser útil. Com licença.
Cooper observou-o, enquanto se afastava para interceptar Robb, que se aproximava com o mestre. O que haverá naquelas malditas bandeiras? — perguntou a si mesmo. E o que ele queria dizer com relação ao nosso algodão? E por que diabo não chegou o naviocorreio?
Era isso que tornava o comércio tão excitante. Comprava-se e se vendia para um mercado quatro meses antecipado, sabendo apenas a posição deste mercado quatro meses antes. Qualquer erro representava a ameaça de prisão por dívida. Um jogo calculado que, se perdido, resultava na aposentadoria e partida para sempre do Oriente. Sentiu uma dor de barriga. Uma dor do Oriente, que o acompanhava sempre — e à maioria deles — e também um estilo de vida. Teria sido uma informação amistosa do Tai-Pan ou uma manobra calculada?
***
O Capitão Glessing, acompanhado de Horatio, estava observando o Thunder Cloud com inveja. E também com impaciência. Era um prêmio que valia a pena conquistar, e o primeiro navio do ano a fazer a viagem da Inglaterra a Calcutá, com certeza com os porões cheios de ópio. Glessing ficou imaginando qual seria o significado das bandeiras. E por que havia um remendo negro na vela da frente.
— Belo navio — disse Horatio.
— Sim, é mesmo.
— Mesmo sendo pirata? — Horatio perguntou, ironicamente.
— A carga e os proprietários é que fazem com que seja pirata. Mas um navio é um navio, e este é um dos mais belos que já serviram ao homem — respondeu Glessing secamente, aborrecido com a brincadeira de Horatio. — Falando de coisas belas — disse ele, tentando não ser óbvio — será que você e a Srta. Sinclair aceitariam cear comigo esta noite? Gostaria de lhes mostrar o meu navio.
— É muita gentileza, George. Sim, aceito. E imagino que Mary ficará encantada. Ela nunca visitou uma fragata. Talvez esta noite, disse Glessing a si mesmo, surja uma oportunidade para descobrir o que Mary sente a meu respeito.
— Mandarei uma chalupa buscá-los. Estará bem às três badaladas do sino... o último toque de três?
— É melhor às oito badaladas — disse Horatio, despreocupadamente, só para mostrar que sabia que às três badaladas seu relógio marcaria sete e meia, mas as oito horas seriam assinaladas por oito badaladas.
— Muito bem — disse Glessing. — A Srta. Sinclair será a primeira dama que vou receber a bordo.
Meu Deus, pensou Horatio, será que Glessing teria por Mary mais do que um interesse passageiro? Claro! O convite era realmente para ela, não para mim. Que coragem! Idiota enfarpelado! Pensar que Mary chegaria a considerar uma união dessas. Ou que eu permitiria que ela se casasse agora.
Um mosquete bateu ruidosamente nas pedras e eles deram uma olhadela em torno. Um dos fuzileiros desmaiara e estava caído na praia.
— Que diabo ele tem? — perguntou Glessing. O mestre-d’armas virou o jovem fuzileiro.
— Não sei, senhorrr. É o Norden, senhorrr. Há semanas que ele está se comportando de uma maneira esquisita. Talvez tenha a febre.
— Bom, deixe-o onde está. Reúna os marinheiros e fuzileiros ... aos botes! Quando todos estiverem a bordo, volte para pegá-lo.
— Sim, senhorrr. — O mestre-d’armas pegou o mosquete de Norden e o atirou para outro fuzileiro, fazendo em seguida os homens se afastarem, marchando.
Quando já era seguro mover-se, Norden — que tinha apenas fingido desmaiar — esgueirou-se e procurou abrigo sob alguns rochedos, escondendo-se. Oh, Cristo, protegeime, até eu poder chegar ao Tai-Pan, ele rezava, desesperadamente. Jamais terei uma oportunidade como esta, outra vez. Protegei-me, ó Jesus abençoado, e ajudai-me a encontrá-lo antes que voltem à minha busca.
***
Brock estava em pé no tombadilho de seu navio, com o telescópio dirigido para as bandeiras. Ele decifrara o código de Struan há seis meses e entendeu a primeira mensagem. Agora, o que queria dizer aquele “Zenith”? Qual o significado? — perguntou a si mesmo. E o que haveria de tão importante com relação ao tratado otomano, a ponto de Struan se arriscar a ver a notícia dada assim abertamente, mesmo em código, em vez de em segredo, quando se encontrasse a bordo? Talvez saibam que decifrei o código. Talvez queiram que eu entenda, e “Zenith” signifique, para eles, que a mensagem é falsa. Crise e guerra significam que o preço do chá e da seda vai aumentar. E do algodão. É melhor comprar muito. Se for verdade. E talvez eu coloque a minha cabeça na armadilha de Struan. Onde diabo está o Gray Witch? Não é direito que tenha sido derrotado. Maldito Gorth! Ele me fez perder mil guinéus.
Gorth era seu filho mais velho, capitão do Gray Witch. Um filho que dava orgulho. Tão grande quanto ele, tão duro, tão forte, tão bom marinheiro como nunca houvera navegando pelos mares. Sim, um filho para sucedê-lo, e merecedor de ser o Tai-Pan dentro de um ano ou dois. Brock rezou silenciosamente pela segurança de Gorth e depois o amaldiçoou outra vez, por não estar à frente do Thunder Cloud.
Focalizou seu óculo de alcance na praia, onde Struan se encontrava com Robb, e desejou ouvir o que estavam dizendo.
— Com licença, Sr. Brock. — Nagrek Thumb era capitão do White Witch, um alto e robusto natural da Ilha de Man, com mãos grandes e um rosto da cor de carvalho em conserva.
— Sim, Nagrek?
— Está correndo um boato pela frota. Não creio muito nele, mas nunca se sabe. O boato é de que a Marinha está conseguindo poderes para nos fazer parar de contrabandear ópio. E assim poderemos ser presos como piratas.
Brock escarneceu.
— Seria mesmo uma coisa estrambólica.
— Também dei risada, Sr. Brock. Até ouvi dizer que a ordem vai ser dada às quatro badaladas. E até ouvi dizer que Struan disse a Longstaff que deveríamos ter, todos, seis dias de prazo para vender todo nosso estoque.
— Tem certeza? — Brock mal teve tempo de absorver a chocante notícia, quando foi distraído por uma movimentação no passadiço. Eliza Brock entrou pesadamente no convés. Era uma mulher grande, com braços grossos e a força de um homem; seu cabelo cinza-aço estava preso num coque frouxo. Estavam com ela suas duas filhas, Elizabeth e Tess.
— Bom-dia, Sr. Brock — disse Liza, batendo solidamente os pés no convés, com os braços cruzados sobre a enormidade de seu busto. — Dia bonito, puxa vida!
— Onde esteve, amor? Bom-dia, Tess. Olá, Lillibet, querida — disse Brock, com a adoração pelas filhas dominando-o.
Elizabeth Brock tinha seis anos e cabelos castanhos. Aproximou-se correndo de Brock e fez uma curvatura, quase caindo, depois pulou nos braços dele e o abraçou, fazendo-o rir.
— Estivemos em casa da Sra. Blair — disse Liza. — Ela está mesmo ruim.
— Vai perder o bebê?
— Não, se Deus quiser — disse Liza. — Bom-dia, Nagrek.
— Bom-dia, Madame — disse Thumb, tirando os olhos de Tess, que estava em pé na amurada, olhando em direção à ilha. Tess Brock tinha dezesseis anos, era alta e encurvada, com a cintura elegantemente fina. Seus traços eram marcados e ela não era bonita. Mas tinha um rosto forte e a vitalidade que nele existia tornava-o atraente. E muito desejável.
— Vou pegar um pouco de comida. — Liza notou a maneira como Nagrek olhara para Tess. Está em tempo de ela casar, pensou. Mas não com Nagrek Thumb, por Deus.
— Desça daí, Tess. E cuide de você própria, Lillibet — disse, enquanto Elizabeth estendia os braços para ser carregada.
— Por favor, por favor, por favor, mãezinha. Por favor, por favor.
— Use suas próprias pernas, menina. — Mas, ainda assim, Liza acabou arrastandoa, com seu grande braço, e carregou-a para baixo. Tess seguiu-as e sorriu para o pai, fazendo com embaraço um aceno de cabeça para Nagrek.
— Tem certeza quanto a Struan e Longstaff? — perguntou Brock outra vez.
— Sim. — Nagrek virou-se para Brock, forçando a mente acalorada a não pensar na menina. — Um guinéu de ouro na mão de um homem torna longas suas orelhas. Tenho um espião na nau capitânia.
— Struan jamais iria concordar com isso. Não poderia. Ele iria ficar arruinado, como todos nós.
— Bom, foi dito com bastante certeza. Hoje de manhã.
— O que mais foi dito, Nagrek?
— Fui tudo que o espião ouviu.
— Então deve ser um truque... mais uma de suas sujas maldades.
— Sim. Mas o quê?
Brock começou a examinar possibilidades.
— Mande um recado para as lorchas. Levem todas as caixas de ópio para a costa. Enquanto isso, mande uma bolsa com vinte guinéus para nosso espião a bordo do China Cloud. Diga-lhe que receberá mais vinte se descobrir o que há por trás disso. Que tenha cuidado. Não queremos perdê-lo.
— Se Struan chegar a pegá-lo, ele vai nos mandar a sua língua.
— Junto com a cabeça. Aposto cinqüenta guinéus como Struan tem um homem seu a bordo do nosso navio.
— Aposto cem que está enganado — disse Thumb. — Todos os homens a bordo são de confiança!
— É melhor que eu nunca o pegue vivo em sua frente Nagrek.
***
— Mas por que ele sinalizaria “Zenith”? — Robb estava dizendo.
— Claro que iremos para bordo imediatamente.
— Não entendi — disse Struan. Zenith significava: “Proprietário venha para bordo
— urgente.” Franziu a testa, olhando para o Thunder Cloud. O Mestre McKay estava fora do alcance da voz, na praia, mais adiante, esperando pacientemente.
— Vá você a bordo, Robb. Dê meus cumprimentos a Isaac e lhe diga para vir à praia imediatamente. Traga-o ao vale.
— Por quê?
— Há muitos ouvidos a bordo. Pode ser importante. — Depois, ele gritou — Mestre McKay!
— Sim, sim, senhorrr! Desculpe, senhorrr — disse Mestre McKay, desajeitadamente. — Tem um rapazola. Ramsey. No H.M.S. Mermaid, o navio de Glessing. Os Ramseys são parentes dos McKays. O primeiro-imediato acabou com o rapaz. Trinta chicotadas ontem e mais para amanhã. Ele foi recrutado em Glasgow.
— E daí? — Struan perguntou, com impaciência.
— Ouvi dizer, senhorrr — disse o mestre, cuidadosamente — que ele gostaria de encontrar emprego em algum lugar.
— Pelo sangue de Cristo, você é idiota? Não acolhemos desertores a bordo de nossos navios. Se recebermos um deles, sabendo o que é, poderíamos perder o navio... e com justiça!
— É verdade! Pensei que poderia comprá-lo — disse McKay depressa — porque vi como o Capitão Glessing é amigo seu. O dinheiro ganho por mim como prêmio iria ajudar, senhorrr. Ele é um bom rapaz e mudaria de navio, se não houvesse nenhum obstáculo.
— Vou pensar a respeito.
— Obrigado, senhorrr. — O mestre tocou em seu topete e disparou.
— Robb, se você fosse Tai-Pan, o que faria?
— Homens sob pressão são sempre perigosos, e jamais se deve confiar neles — disse Robb, imediatamente. — Então eu nunca o compraria. E agora vigiaria McKay. Talvez McKay seja agora um homem de Brock e tenha tramado tudo. Eu submeteria McKay a um teste e também um inimigo de McKay... e poria Ramsey na mesma lista, jamais voltando a confiar em suas informações.
— Você me disse o que eu faria — observou Struan com um toque de humor. — Eu perguntei o que você faria.
— Não sou Tai-Pan, então o problema não é meu. Se fosse, provavelmente não lhe diria, de qualquer jeito. Ou talvez dissesse e então faria o oposto. Para testar você. — Robb ficou satisfeito de poder odiar seu irmão, de vez em quando. Isto fazia com que gostasse muito mais do outro.
— Por que você tem medo, Robb?
— Eu lhe direi, dentro de um ano. — Robb caminhou atrás do mestre.
Durante algum tempo, Struan ficou pensando sobre seu irmão e o futuro da Casa Nobre; depois pegou uma garrafa de conhaque e começou a caminhar ao longo da abertura entre os rochedos, em direção ao vale.
A multidão dos negociantes diminuía, e alguns já partiram em suas chalupas. Outros ainda estavam comendo e bebendo e havia repentinas gargalhadas por causa de alguns que dançavam uma quadrilha escocesa.
— Senhor!
Struan parou e olhou para o jovem fuzileiro.
— Sim?
— Preciso de sua ajuda, senhor. Desesperadamente — disse Norden, com olhos estranhos e rosto pálido.
— Que ajuda? — Struan estava consciente, sombriamente, da arma à cintura do fuzileiro, uma baioneta. — Estou com sífilis... apanhei com uma mulher. O senhor pode ajudar. Me dê o remédio, senhor. Farei tudo, qualquer coisa.
— Não sou médico, rapaz — disse Struan, com os pêlos do pescoço arrepiando-se.
— Você já não deveria estar em seu barco?
— O senhor teve a mesma coisa. Mas tinha o remédio. Tudo que eu quero é o remédio. Farei qualquer coisa — a voz de Norden era um grasnido e seus lábios estavam com respingos de espuma.
— Jamais tive essa doença, rapaz. — Struan notou o mestre-d’armas que se encaminhava para eles, gritando algo que parecia um nome.
— É melhor você ir para seu barco, rapaz. Estão esperando você.
— O remédio. Diga-me como. Tenho minhas economias, senhor. — Norden puxou um trapo sujo, amarrado com um nó, e o ofereceu orgulhosamente, com o rosto coberto de suor. — Sou econômico e aqui está... tem cinco xelins completos e quatro pence, senhor, isto é tudo que tenho no mundo, e tem também o meu pagamento, vinte xelins por mês, que o senhor pode guardar. Pode ficar com tudo, senhor, juro por Cristo, senhor!
— Nunca tive essa doença apanhada com as mulheres, rapaz. Nunca.
Struan disse outra vez, com o coração oprimido à lembrança de sua infância, quando riqueza eram moedas e não barras de prata valendo dezenas de milhares de taéis. E vivendo outra vez o horror inesquecível de toda sua juventude — sem dinheiro, sem esperança, sem calor, sem teto, e os estômagos inchados e protuberantes das crianças. Deus do céu, eu posso esquecer minha própria fome, mas nunca a das crianças, nunca seus gritos, sob o vento enregelante, num canto de sarjeta.
— Farei tudo, tudo, senhor. Aqui. Posso pagar. Não quero nada por nada. Aqui, senhor. O mestre-d’armas aproximava-se, pela praia.
— Norden! — gritou ele, zangado. — Você vai levar cinqüenta chicotadas por sair do alinhamento, por Deus!
— Seu nome é Norden?
— Sim, senhor. Bert Norden. Por favor. Só quero o remédio. Ajude-me, senhor. Aqui. Fique com o dinheiro. É todo seu, e haverá mais. Em nome de Jesus Cristo, ajudeme!
— Norden! — gritou o mestre-d’armas, a cem metros de distância, vermelho de raiva. — Pelo sangue de Deus, venha cá, seu filho da mãe!
— Por favor, senhor — dizia Norden, com crescente desespero — ouvi dizer que foi curado pelos pagãos. O senhor comprou o remédio aos pagãos!
— Você ouviu uma mentira. Não há remédio chinês, que eu saiba. Nenhum remédio. Nenhum. É melhor você voltar para seu navio.
— Claro que há remédio! — Norden gritou. Ele puxou sua baioneta. — Me diga onde conseguir, ou então vou abrir sua barriga a faca! O mestre-d’armas começou a correr horrorizado.
— Norden! Algumas pessoas na praia viraram-se, espantadas: Cooper, Horatio e um outro. Começaram a correr em direção a eles.
Então, a cabeça de Norden estalou e, balbuciando e espumando, ele se atirou contra Struan e dirigiu-lhe uma perversa cutilada, mas Struan deu um passo para o lado e esperou-o sem medo, sabendo que poderia matar Norden no momento que quisesse.
Pareceu a Norden que ele estava cercado de demônios gigantescos, todos com o mesmo rosto, mas não podia jamais tocar nenhum deles. Sentiu o ar explodir para fora de seus pulmões e a praia bateu-lhe no rosto, enquanto ele parecia suspenso numa agonia indolor. Depois, foi a escuridão.
O mestre-d’armas virou Norden de frente e tornou a lhe dar um soco. Agarrou Norden e sacudiu-o, como se fosse uma boneca de trapos, atirando-o em seguida outra vez ao chão.
— Que diabo aconteceu com ele? — perguntou, levantando-se, com o rosto turvo de raiva. — O senhor está bem, Sr. Struan?
— Sim.Cooper, Horatio e alguns dos negociantes aproximaram-se às carreiras.
— O que aconteceu?
Struan, cuidadosamente, virou Norden com o pé.
— O pobre louco apanhou a doença com mulheres.
— Cristo! — disse o mestre-d’armas, nauseado.
— É melhor se afastar dele, Tai-Pan — disse Cooper. — Se respirar seu fluxo poderá pegar a doença.
— O pobre louco pensou que eu tinha contraído a doença e me curara. Em nome de Deus, se eu soubesse a cura para isso, eu seria o homem mais rico da terra.
— Vou mandar pôr esse patife a ferros, Sr. Struan — disse o mestre-d’armas. — O Capitão Glessing vai fazer ele desejar nunca ter nascido.
— Basta arranjar uma pá — disse Struan. — Ele está morto. Cooper rompeu o silêncio.
— Primeiro dia, primeiro sangue. Mau pagode.
— De acordo com o costume chinês, não — disse Horatio, distraidamente, sentindo-se mal. — Agora seu fantasma vai velar este lugar.
— Seja bom ou mau agouro — disse Struan — o pobre rapaz está morto. Ninguém lhe deu resposta.
— Que Deus tenha piedade de sua alma — disse Struan.
Depois virou-se e seguiu pela linha da arrebentação em direção a oeste, para o espinhaço de montanha que descia do alto da serraria e quase tocava o mar. Ele estava cheio de pressentimentos, enquanto bebia o ar limpo e bom, e sentia o cheiro penetrante da espuma do mar. Mau pagode, disse a si mesmo. Muito mau.
Ao se aproximar do espinhaço, sua premonição se intensificou e quando, afinal, chegou ao vale onde decidira que a cidade seria construída, sentiu pela terceira vez um imenso ódio rodeando-o.
— Bom Deus — disse alto. — O que há comigo?
Jamais sentira antes um terror tão grande. Tentando mantê-lo sob controle, enviesou os olhos em direção ao outeiro onde ficaria a Grande Casa e, abruptamente, percebeu por que a ilha era hostil. Riu alto.
— Se eu fosse você, ilha, eu odiaria a mim, também. Você odeia o plano! Bom, eu lhe digo, ilha, o plano é bom, por Deus! Bom, está ouvindo? A China precisa do mundo e
o mundo precisa da China. E você é a chave para abrir os portões da China e sabe disso, e eu sei disso, e é o que eu vou fazer, e você vai ajudar!
Pare com isso, disse ele a si próprio. Você está agindo como um louco. Sim, e todos pensariam que você está louco, se lhes dissesse que sua intenção secreta não é apenas a de ficar rico com o comércio e ir embora. Mas usar as riquezas e o poder para abrir a China ao mundo e, particularmente, à cultura britânica e à lei britânica, de modo que cada um possa aprender com o outro e crescer, em benefício de ambos. Sim. É o sonho de um louco.
Mas ele tinha certeza de que a China possuía algo especial para oferecer ao mundo. O que, ele não sabia. Um dia, talvez fosse descobrir.
— E nós temos algo especial para oferecer também — Struan continuou, em voz alta — se você quiser receber. E se a oferta não for conspurcada na entrega. Você é solo britânico, seja isto bom ou ruim. Nós a trataremos com carinho e a transformaremos no centro da Ásia... que é o mundo. Empenho a Casa Nobre no plano. Se virar as costas para nós, será o que é agora. . . um insignificante pontinho árido, formado por um inútil rochedo estéril ... e você morrerá. E, finalmente, se a Casa Nobre algum dia virar as costas para você... pode destruí-la com a minha bênção.
Ele escalou o outeiro e, desembainhando seu punhal, cortou dois longos ramos. Partiu um deles ao meio, encravou-o ao chão e com o outro formou uma cruz tosca. Banhou a cruz com conhaque e ateou-lhe fogo.
Aqueles que, na armada, podiam ver o vale e notaram a fumaça e as chamas, pegaram seus óculos de alcance e viram a cruz em chamas e o Tai-Pan a seu lado, e estremeceram, supersticiosamente, a imaginar que feitiçaria ele estaria fazendo. Os escoceses sabiam que a queima de uma cruz era uma convocação do clã e de todos os parentes, de todos os clãs aparentados: um chamado para todos se reunirem diante da cruz, e partirem em combate.
E a cruz em chamas só era erguida pelo chefe do clã. Segundo a lei antiga, uma vez erguida, a cruz em chamas comprometia o clã a defender a terra até à extinção do clã.
CAPÍTULO DOIS
— Bem-vindo a bordo, Robb — disse o Capitão Issac Perry. — Quer chá?
— Obrigado Isaac — Robb sentou-se, bem reclinado, aprazivelmente, na funda poltrona de couro, sentindo seu travoso perfume, e esperou. Ninguém conseguia apressar Perry, nem mesmo o Tai-Pan.
Perry despejou o chá em xícaras de porcelana.
Era magro, mas incrivelmente forte. Seu cabelo tinha a cor do cânhamo envelhecido, marrom com fios de prata e negro. Sua barba era grisalha e o rosto marcado de cicatrizes, e cheirava a cânhamo alcatroado e espuma salgada.
— A viagem foi boa? — perguntou Robb.
— Excelente.
Robb estava feliz, como sempre, por se encontrar na cabine principal. Era grande e luxuosa, como todos os alojamentos. As instalações, no navio inteiro, eram de latão, cobre e mogno, e as velas de tela de melhor qualidade, com cordas sempre novas. Canhões perfeitos. A melhor pólvora. A política do Tai-Pan, em toda sua frota, era dar aos oficiais
— e homens — os melhores alojamentos e comida de qualidade superior, além de uma parcela nos lucros, havendo ainda, sempre um médico a bordo. E os açoites eram proibidos. Havia apenas um castigo para a covardia ou a desobediência, tanto para oficiais como para marinheiros: serem obrigados a desembarcar no primeiro porto e jamais receberem uma segunda chance. Então os marinheiros e oficiais lutavam para fazer parte da frota, e jamais havia um lugar vago.
O Tai-Pan nunca esquecera seus primeiros navios, e os castelos de proa e os chicoteamentos. Nem os homens que os ordenavam. Alguns haviam morrido, antes de encontrá-los. Os que encontrou, destruiu. Só em Brock não tinha tocado.
Robb não sabia por que seu irmão poupara Brock. Ele estremecia, sabendo que, fosse qual fosse a razão, um dia haveria um ajuste de contas.
Perry pôs uma colherada de açúcar e leite condensado. Entregou a Robb uma xícara e depois se sentou atrás da escrivaninha de mogno e ficou observando em torno, com seus olhos fundos sob sobrancelhas hirsutas.
— O Sr. Struan está com saúde?
— Como sempre. Esperava que ele estivesse doente?
— Não.
Houve uma batida na porta da cabina.
A porta se abriu e Robb abriu a boca diante do jovem que estava em pé ali.
— Deus do céu, Culum, meu rapaz, de onde você veio? — Levantou-se cheio de excitação, derrubando sua xícara. “Despachos muito importantes”, na verdade, e, naturalmente, “Zenith”!
Culum Struan entrou na cabina e fechou a porta. Robb segurou-o com afeto pelos ombros e depois notou sua palidez e as faces cavadas.
— O que há de errado, rapaz? — ele perguntou, cheio de ansiedade.
— Estou muito melhor, obrigado, tio — disse Culum, com a voz fraca.
— Melhor do que, meu filho?
— A peste, a peste de Bengala — disse Culum, confuso. Robb virou-se para Perry.
— Você tem peste a bordo? Em nome de Deus, por que não está com a bandeira amarela?
— Claro que não há peste a bordo! Foi na Escócia, meses atrás. — Perry parou. — Scarlet Cloud! Nunca chegou?
— Está com atraso de quatro semanas. Nem uma só notícia, nada. O que aconteceu? Diga, homem.
— Devo contar a ele, Culum, meu rapaz, ou você contará?
— Onde está papai? — perguntou Culum a Robb.
— Na praia. Ele está esperando por vocês na praia. No vale. Pelo amor de Deus, o que aconteceu, Culum?
— A peste chegou a Glasgow em junho — disse Culum, obtusamente. — Dizem que chegou outra vez num navio. De Bengala, na índia. Primeiro atingiu Sutherland, depois Edimburgo, e enfim chegou até nós, em Glasgow. Mamãe está morta, Ian, Lechie, Vovó... Winifred está tão fraca que não vai durar. Vovô está tomando conta dela. — Ele fez um gesto desamparado e se sentou no braço da cadeira. — Vovó está morta. Mamãe. Tia Uthenia e os bebês, e o marido dela. Dez, vinte mil pessoas morreram, entre junho e setembro. Depois, a peste desapareceu. Simplesmente desapareceu.
— Roddy? E Roddy? Meu filho está morto? — perguntou Robb, cheio de angústia.
— Não, tio. Roddy está ótimo. Ele não foi atingido.
— Tem certeza, tem, Culum? Meu filho está salvo?
— Sim. Eu o vi na véspera da minha partida. Muito poucos em sua escola contraíram a peste.
— Graças a Deus!
Robb estremeceu, lembrando-se da primeira onda de peste que misteriosamente varrera a Europa, há dez anos. Cinqüenta mil mortes, só na Inglaterra. Um milhão na Europa. Milhares em Nova York e em Nova Orleans. Alguns chamavam esta peste por um novo nome — cólera.
— Sua mãe está morta? — disse Robb, sem acreditar. — Ian, Lechie, a Vovó?
— Sim. E tia Susan e prima Clair, e tia Uthenia, e primo Donald e o pequeno Stewart e... Houve um silêncio monstruoso. Perry rompeu-o, nervosamente. — Quando ancorei em Glasgow, bom, o garoto Culum estava sozinho. Não sabia o que fazer, então achei melhor trazê-lo a bordo. Partimos um mês depois do Scarlet Cloud.
— Você fez bem, Isaac — Robb ouviu a si próprio dizer. Como iria comunicar a Dirk? — É melhor eu ir. Farei sinal a vocês para desembarcarem. Fiquem a bordo.
— Não. — Culum disse isso alto, como se falasse para si próprio, lá no fundo de si mesmo. — Não. Eu desembarcarei primeiro. Sozinho. É melhor. Verei papai sozinho. Devo contar a ele. Irei para a praia sozinho. — Ele se levantou e, tranquilamente, caminhou para a porta, com o navio balançando suavemente, ao doce ruído das ondas que o lambiam, e partiu. Depois, lembrou-se de alguma coisa e voltou para a cabina. — Levarei os despachos — disse ele com sua vozinha fraca. — Ele vai querer ver os despachos.
***
Quando a chalupa se afastou do Thunder Cloud, Struan estava no outeiro onde iria ficar a Grande Casa. Logo que viu seu filho mais velho no meio da nau, seu coração disparou.
— Culummmmm! — ele gritou exultante, do alto do outeiro. Arrancou seu casaco e acenou com ele, freneticamente, como um náufrago há seis anos isolado numa ilha e que vê o primeiro navio. — Culummmmmm!
Ele correu num ímpeto, através das ásperas sarças, sem se importar com os espinhos, e esquecido do caminho que levava da praia à vila de pescadores e aos refúgios de piratas na extremidade sul da ilha, passando por sobre a serrania. Esqueceu tudo, exceto que ali estava seu querido filho, no primeiro dia. Mais depressa. Agora ele estava correndo pela praia, cheio de êxtase.
Culum viu-o primeiro.
— Ali. Parem ali. — Apontou o local mais próximo de desembarque.
Mestre McKay girou a cana do leme.
— Força, queridos — disse, exortando os homens a remarem mais rápido para a praia.
Todos sabiam agora, e a notícia voava por toda a frota — e, com ela, a ansiedade. Entre Sutherland e Glasgow viviam muitos parentes de todos e, na cidade de Londres, a maioria do resto. Culum levantou-se e escorregou pela amurada, entrando na água rasa.
— Deixem-nos sós. — Ele, começou a caminhar em direção à praia.
Struan correu para as ondas que varriam a praia, dirigindo-se diretamente para seu filho, e viu as lágrimas, e gritou:
— Culum, meu garoto.
Culum parou por um momento, desamparado, afogando-se na abundância da alegria de seu pai. Depois, começou também a correr através das ondas e, finalmente, encontrou-se na segurança dos braços do pai. E todo, o horror daqueles meses explodiu como um abscesso e ele chorava, apertando-o, apertando-o, e então Struan acariciou o filho e carregou-o em seus braços para a praia, murmurando:
— Culum, meu garoto... Ah, meu menino... E Culum soluçava:
— Estamos mortos... estamos todos mortos... Mãezinha, Ian, Lechie, vovó, as tias, prima Clair... estamos todos mortos, papai. Só restaram eu e Winifred, e ela agora deve estar morta. — Ele repetia os nomes várias vezes, e eram facadas nas entranhas de Struan.
Mais tarde, Culum dormiu, exausto, afinal seguro, na força e no calor. Seu sono foi sem sonhos, pela primeira vez desde que a peste chegara. Dormiu aquele dia, e a noite, e parte do dia seguinte, e Struan o embalava, balançando-o suavemente.
Struan não notou a passagem do tempo. Algumas vezes falava com sua mulher e filhos — Ronalda, Ian, Lechie e Winifred — como se estivessem sentados na praia, a seu lado. Outras vezes, quando iam embora, ele os chamava, baixinho, para não acordar Culum e, mais tarde, eles voltavam. Em certos momentos, cantava as suaves canções de ninar que Ronalda usava para pôr seus filhos para dormir. Ou as gaélicas de sua mãe, ou de Catherine, sua segunda mãe. Acontecia também um nevoeiro cobrir-lhe a alma, e ele nada via.
Quando Culum acordou, sentia-se em paz.
— Olá, papai.
— Você está bem, rapaz?
— Agora, estou bem. — Ele se levantou.
Estava frio na praia, à sombra do rochedo, mas ao sol ficava mais quente. A frota estava tranqüilamente ancorada e os navios-tênderes navegavam velozmente, de um lado para outro. Havia menos navios do que antes.
— É ali que ficará a Grande Casa? — perguntou Culum, apontando para o outeiro.
— Sim. É ali que podemos morar no outono, até à primavera. O clima é ótimo, então.
— Como se chama o vale?
— Não tem nome. — Struan movimentou-se para o sol e tentou dominar a dor entranhada em seus ombros e nas costas.
— Deveria ter um nome.
— A pequena Karen, sua prima Karen, a filha mais nova de Robb, quer chamá-lo Vale Feliz. Teríamos sido felizes ali. — voz de Struan ficou mais carregada. — Eles sofreram muito?
— Sim.
— Você vai me contar como foi?
— Agora não.
— A pequena Winifred. Ela morreu antes de você partir?
— Não. Mas estava muito fraca. Os médicos disseram que estando tão fraca... Os médicos só deram de ombros e foram embora.
— E o avô?
— A peste nunca o atingiu. Ele chegou como o vento até nós, e então levou Winifred. Fui para a casa de tia Uthenia para ajudar. Mas não ajudei. Struan encarava o porto, sem vê-lo.
— Você contou ao tio Robb?
— Sim. Acho que sim.
— Pobre Robb. É melhor eu ir para bordo. — Struan estendeu a mão e pegou os despachos, meio enterrados na areia. Estavam fechados. Ele limpou a areia.
— Desculpe — disse Culum. — Eu esqueci de entregá-los a você.
— Nada, rapaz. Você os entregou — Struan viu uma chalupa dirigindo-se para a praia. Isaac Perry estava à popa.
— Boa-tarde, Sr. Struan — disse Perry, cautelosamente. — Meus pêsames pela perda que sofreu.
— Como está Robb?
Perry não respondeu. Ele caminhou para a praia e gritou à tripulação: “Depressa!” e Struan ficou imaginando, em sua mente ferida e obscurecida, por que Perry tinha medo dele. Não havia razão para ter medo. Nenhuma.
Os homens carregaram para a praia uma mesa, bancos, e alimento, chá, conhaque e roupas.
— Depressa! — Perry repetiu, com irritação. — E vão embora! Para longe daqui, para o inferno, mas fiquem afastados!
Os remadores empurraram rapidamente a chalupa, fazendo-a retroceder, ficaram por sobre as ondas, satisfeitos de estarem longe. Struan ajudou Culum a vestir roupas secas e depois enfiou-se numa camisa limpa, pregueada, e num jaquetão mais quente. Perry ajudou-o a tirar suas botas encharcadas.
— Obrigado — disse Struan.
— Está doendo? — perguntou Culum, vendo as botas.
— Não.
— Quanto ao Sr. Robb, senhor — disse Perry. — Depois que Culum saiu, ele foi procurar bebida. Eu lhe disse que não, mas não quis ouvir. — Ele continuou, com hesitação. — O senhor tinha dado ordens. Então, a cabina ficou meio torta, mas eu tirei a bebida de suas mãos. Quando ele voltou a si, estava bem. Eu o levei a bordo do China Cloud e entreguei-o à sua mulher.
— Fez bem, Isaac. Obrigado.
Struan ajudou Culum a se servir de alimento — carne cozida, bolinhos de massa, frango frio, batatas, biscoitos duros de bordo — e pegou um canecão de estanho cheio de chá quente e doce para si próprio.
— Sua Excelência envia suas condolências. Ele gostaria que o senhor subisse a bordo, quando lhe convier.
Struan esfregou o rosto e sentiu o espetar da barba, imaginando logo por que sempre se sentia sujo, quando tinha as faces não barbeadas e os dentes sem escovar.
— Sua navalha está ali — disse Perry, indicando uma mesa lateral. Ele previra a necessidade que Struan sentiria de se arrumar. O Tai-Pan tinha uma fanática obsessão com seu asseio pessoal. — Tem água quente.
— Obrigado.
Struan encharcou uma toalha na água e limpou o rosto e a cabeça. Em seguida, cobriu o rosto de sabão e se barbeou habilmente, sem espelho. Depois, mergulhou uma pequena escova em seu canecão de chá e começou a limpar os dentes, vigorosamente. Enxaguou a boca com chá e atirou fora o resíduo. Lavou o canecão com chá fresco e tornou a enchê-lo, bebendo grande quantidade. Havia um pequeno vidro de água-de-colônia junto às suas coisas de barbear, e ele derramou algumas gotas nas mãos, esfregando-as no rosto.
Sentou-se, reanimado. Culum só brincava com a comida.
— Você precisa comer, rapaz.
— Não tenho fome, obrigado.
— Coma, de qualquer jeito. — O vento agitou os cabelos vermelho-dourados de Struan, que os usava compridos e lisos, e ele os escovou para trás. — Minha tenda está armada, Isaac?
— Claro. O senhor deu ordens. Está num outeiro, acima do local onde se encontra
o pau da bandeira.
— Diga a Chen Sheng, em meu nome, para ir a Macau comprar mel e ovos frescos. E conseguir ervas chinesas que curem as indisposições e seqüelas resultantes da peste de Bengala.
— Eu estou bem, pai, obrigado — Culum protestou, fracamente. — Não preciso de nenhuma infusão de feiticeiros pagãos.
— Não são feiticeiros iguais aos que conhecemos como tal — disse Struan. — E são chineses, não pagãos. Já me salvaram muitas vezes. O Oriente não é como a Europa.
— Não precisa se preocupar comigo, pai.
— Preciso, sim. O Oriente não é lugar para os fracos. Isaac, mande o China Cloud a Macau, com Chen Sheng e, se não voltar em tempo recorde, o Capitão Orlov e todos os oficiais estarão desligados. Chame a chalupa.
— Talvez Culum devesse ir para Macau no navio, Sr. Struan.
— Ele vai ficar sob minhas vistas até eu considerar que está bom.
— Ele seria bem tratado em Macau. A bordo não há...
— Pelo sangue de Deus, Isaac, não vai fazer o que eu disse? Chame a chalupa.
Perry enrijeceu-se instantaneamente e gritou para a chalupa vir à praia. Struan, com Culum a seu lado, sentou-se a meia-nau, Perry estava atrás deles.
— Para a nau capitânia! — Struan ordenou, verificando automaticamente a posição de seus navios, o vento, e estudando as nuvens, numa tentativa de ler sua mensagem de tempo. O mar estava calmo. Mas ele pressentia perturbações.
A caminho da nau capitânia, Struan leu os despachos. Lucros relativos ao chá do ano passado, bom. Perry fizera uma viagem lucrativa, bom. Uma cópia da conta da carga do Scarlet Cloud, comprada por Perry em Calcutá, ruim: duzentas e dez mil libras esterlinas de ópio perdidas. Graças a Deus, o navio estava no seguro — embora isto não fosse substituir os homens e o tempo perdido, enquanto outro navio estava em construção. A carga de ópio era contrabando e não poderia ser segurada. Lucro de um ano desaparecera. O que acontecera com a embarcação? Tempestade ou pirataria? Tempestade, mais provavelmente. A não ser que tivesse deparado com um dos navios corsários espanhóis, franceses ou americanos — sim, ou ingleses — que infestavam os mares. Finalmente, ele rompeu o selo da carta de seu banqueiro. Leu-a e explodiu de raiva.
— O que é? — Culum perguntou, assustado.
— Apenas uma dor antiga. Nada. Não é nada. — Struan fingiu ler o próximo despacho enquanto, interiormente, estava cheio de raiva com o conteúdo da carta. — Meu Deus do céu! “Lamentamos informar-lhe que, inadvertida e momentaneamente, o crédito foi exageradamente ampliado e houve uma corrida ao banco, iniciada por malignos rivais. Por isso, não podemos mais manter nossas portas abertas. A junta diretiva determinou que poderemos pagar seis centavos por libra. Tenho a honra de ser, senhor, seu mais obediente criado...” E temos quase um milhão de libras esterlinas em letras deles. Vinte e cinco mil libras esterlinas por um milhão, e nossas dívidas elevando-se a quase um milhão de libras esterlinas. Estamos em bancarrota. Meu Deus, adverti Robb para não colocar todo o dinheiro num só banco. Principalmente com toda a especulação que estava sendo feita na Inglaterra, um banco podendo emitir papel-moeda na quantia que quisesse.
“Mas esse banco é seguro”, dissera Robb, “e precisamos do dinheiro num só bloco, para garantir empréstimos” — e Robb continuara explicando os detalhes de uma complicada estrutura financeira que envolvia bônus espanhóis, franceses e alemães e bônus da Dívida Nacional e, no final, dava a Struan e Companhia uma posição bancária internacionalmente segura e um enorme poder aquisitivo para expandir a frota, como Struan queria, e comprar para a Casa Nobre privilégios especiais em lucrativos mercados alemães, franceses e espanhóis.
— Muito bem, Robb — ele disse, sem entender as complicações, mas confiando que as palavras de Robb fossem sábias.
Agora, estavam quebrados. Bancarrota.
Deus do céu!
Ele ainda se achava espantado demais para pensar numa solução. Só conseguia se deter no que havia de terrível na Nova Era. A sua complexidade. Sua inacreditável velocidade. Uma nova rainha — Vitória — a primeira monarca popular em séculos. E seu marido, Albert — não sabia muita coisa a seu respeito ainda, pois ele era um maldito estrangeiro de Saxe-Coburg, mas agora o Parlamento se tornara forte e controlava a situação, e o desenvolvimento aumentara. Paz por vinte e seis anos e nenhuma grande guerra iminente — o que não ocorria há centenas de anos. O Demônio Bonaparte seguramente morto, a violenta França bem contida e a Inglaterra dominando o mundo pela primeira vez. A escravidão proibida há oito anos. Canais, um novo método de transporte. Estradas com pedágio, cujas superfícies eram de uma suavidade e permanência até então desconhecidas, fábricas, indústrias, teares, produção em massa, ferro e carvão, companhias de capital social e tantas outras coisas novas dentro dos últimos dez anos: o correio por vinténs, o primeiro correio barato do mundo, a primeira força policial, e o “magnetismo” — fosse isto que diabo fosse — e martelo mecânico a vapor, o primeiro Decreto das Fábricas e o Parlamento, afinal, tirado das mãos dos poucos ricos e aristocráticos proprietários de terras, de modo que, agora, inacreditavelmente, qualquer homem na Inglaterra que possuísse um negócio rendendo vinte libras por ano poderia votar, poderia realmente votar, e qualquer homem poderia tornar-se Primeiro-Ministro. E a incrível Revolução Industrial, e a Grã-Bretanha fantasticamente rica, e suas riquezas começando a se disseminar. Novas idéias sobre o governo e a humanidade rompendo barreiras de séculos. Todas britânicas, todas novas. E agora, a locomotiva!
— Essa é uma invenção que vai abalar o mundo — murmurou.
— O que disse, papai? — Culum perguntou. Struan voltou a si.
— Eu só estava pensando a respeito de nosso primeiro passeio num trem — ele inventou.
— Já esteve num trem, senhorrr? — perguntou McKay. — Como é? Quando foi isso?
— Fizemos a viagem inaugural da locomotiva de Stephenson, a Rocket. Eu tinha doze anos — Culum disse.
— Não, rapaz — disse Struan — você tinha onze. Foi em 1830. Há onze anos. Era a viagem inaugural da Rocket, o primeiro trem de passageiros do mundo. De Manchester a Liverpool. De diligência, demoraria um dia, mas fizemos a viagem em hora e meia.
E, outra vez, Struan começou a meditar sobre o destino da Casa Nobre. Depois lembrou-se das instruções que dera a Robb para pedir emprestado todo dinheiro que pudesse, a fim de açambarcarem o mercado do ópio. Vamos ver — poderíamos ganhar entre cinqüenta e cem mil libras esterlinas, com isso. Sim — mas é uma gota d'água, para o que precisamos. Os três milhões que nos devem pelo ópio roubado! Sim, mas não poderemos recebê-los, até o tratado ser ratificado — e isso levará entre seis e nove meses — e precisaremos saldar nossos saques dentro de três!
Como conseguir dinheiro à vista? Nossa posição é boa — nosso conceito é bom. Embora haja hienas salivando em nossos calcanhares. Brock em primeiro lugar. Cooper-Tillman também. Será que Brock iniciou a corrida ao banco? Ou foi seu lacaio Morgan? Os Brocks têm poder suficiente, e dinheiro suficiente. É de dinheiro à vista que precisamos. Ou um grande empréstimo. Apoiados por dinheiro vivo, não papéis. Estamos na bancarrota. Pelo menos estaremos na bancarrota, se nossos credores caírem em cima de nós.
Sentiu a mão do filho em seu braço.
— O que disse, rapaz? Estava falando do Rocket?
Culum estava muito perturbado com a palidez de Struan e o verde penetrante e luminoso de seus olhos.
— A nau capitânia. Já chegamos.
Culum seguiu seu pai, no convés. Jamais estivera a bordo de um navio de guerra, quanto mais uma embarcação capitânia. O H.M.S. Titan era uma das poderosas naves do mar. Era grande — três mastros — com 74 canhões montados em três conveses de tiro. Mas Culum não ficou impressionado. Não dava importância a navios e detestava o mar. Tinha medo da sua violência, do seu perigo e enormidade, e não sabia nadar. Ficou imaginando como seu pai poderia amar o mar.
Há tanta coisa que não sei a respeito de meu pai, pensou. Mas não é de estranhar. Só o vi umas poucas vezes em minha vida, e a última foi há seis anos. Papai não mudou. Mas eu, sim. Agora sei o que vou fazer com a minha vida. E agora que estou sozinho. Gosto de estar sozinho e, ao mesmo tempo, detesto.
Ele seguiu o pai pelo passadiço e entrou no principal convés de tiro. Tinha o teto baixo e eles precisavam curvar-se, enquanto caminhavam em direção à popa, onde se encontrava a cabina com a sentinela. O navio todo cheirava a pólvora, alcatrão, cânhamo e suor.
— Bom-dia, senhor — disse o fuzileiro a Struan, com o mosquete formalmente apontado para ele. — Mestre-d’armas!
O mestre-d’armas, com uniforme vermelho e resplendentes acessórios brancos, engomados, saiu batendo os pés da cabina do guarda. Ele era duro como uma bala de canhão e tinha a cabeça tão redonda quanto ela.
— Bom-dia, Sr. Struan. Espere um momento, senhor. — Ela bateu com deferência na porta de carvalho da cabina. Uma voz disse: “Entre”, e ele fechou a porta atrás de si. Struan tirou um charuto e ofereceu-o a Culum.
— Já está fumando agora, meu rapaz?
— Sim. Obrigado, papai.
Struan acendeu o charuto de Culum e outro para si próprio. Ele se encostou num dos canhões de doze polegadas de comprimento. As balas do canhão estavam empilhadas ordenadamente, sempre à mão. Balas de trinta quilos.
A porta da cabina se abriu. Longstaff, homem esguio e buliçoso, saiu. Seu cabelo era escuro, com elegantes cachos e suíças bastas. Tinha uma testa alta e olhos escuros. A sentinela apresentou armas e o mestre-d’armas voltou para a cabina do guarda.
— Olá, Dirk, meu caro amigo. Como vai? Fiquei tão triste ao saber da notícia. — Longstaff apertou a mão de Struan, nervosamente, depois sorriu para Culum e ofereceu a mão outra vez. — Você deve ser Culum. Eu sou William Longstaff. Sinto que tenha vindo em circunstâncias tão terríveis.
— Obrigado, Excelência. — disse Culum, espantado com o fato de ser tão jovem o Capitão-Superintendente do Comércio.
— Incomoda-se de esperar um momento, Dirk? Uma conferência com o almirante e os capitães. Voltarei em poucos minutos. — Longstaff disse, com um bocejo. — Tenho uma porção de coisas para lhe falar. Se estiver preparado.
— Sim.
Longstaff olhou ansiosamente para o relógio de bolso de ouro, com pedras preciosas encravadas, que pendia de seu colete de brocado.
— Quase onze horas! Não parece nunca haver tempo suficiente! Gostaria de descer para o salão dos oficiais?
— Não. Esperaremos aqui.
— Fiquem à vontade. — Longstaff rapidamente tornou a entrar na cabina e fechou a porta.
— Ele é muito jovem para ser o plenipotenciário, não é? — perguntou Culum.
— Sim e não. Ele tem trinta e seis anos. Os impérios são construídos por jovens, Culum. São perdidos pelos velhos.
— Ele não parece inglês, absolutamente. Será galês?
— Sua mãe é espanhola. — O que explicava sua veia cruel, pensou Struan. — Ela era condessa. O pai era diplomata credenciado junto à corte espanhola. Foi um desses casamentos “de boa estirpe”. A família dele tem ligação com os condes de Toth.
Quando não se nasce aristocrata, pensou Culum, por mais inteligente que se seja não há esperança. Nenhuma esperança. A não ser com uma revolução.
— As coisas estão muito ruins na Inglaterra — disse ele ao pai.
— Como assim, rapaz?
— Os ricos estão ricos demais e os pobres demasiado pobres. As pessoas afluem em massa para as cidades, procurando emprego. E seu número é maior do que o das ocupações disponíveis. O povo está morrendo de fome. Os líderes do movimento de reforma democrática ainda se encontram na prisão.
— Também tem o seu lado positivo. Aqueles miseráveis agitadores deveriam ter sido enforcados ou deportados, não apenas colocados na prisão.
— Não aprova a Carta? — Culum ficou repentinamente em guarda. A Carta do Povo fora escrita há menos de três anos e agora se tornara o símbolo da luta pela liberdade, para todos os descontentes da Grã-Bretanha. A Carta pedia que todo homem tivesse o direito de votar, a abolição da qualificação à propriedade para os membros do Parlamento, distritos eleitorais equitativos, votação em pleito secreto, Parlamentos anuais e salários para os membros do Parlamento.
— Aprovo como um documento com reivindicações justas, mas não aprovo os cartistas e seus líderes. A Carta é como uma porção de boas idéias... que caem nas mãos dos líderes errados.
— Não é errado agitar para defender reformas. O Parlamento precisa fazer mudanças.
— Agitar, sim. Conversar, discutir, escrever petições, mas não incitar a violência e comandar revoluções. O Governo estava certo ao sufocar as rebeliões em Gales e Midlands. A insurreição não é uma solução, por Deus. Há histórias no sentido de que os cartistas ainda não aprenderam sua lição e estão comprando armas e mantendo reuniões secretas. Deveriam ser postos a correr, por Deus.
— Não se pode pôr a Carta a correr. Muitos a desejam e estão preparados para morrer por ela.
— Então haverá uma porção de mortes, rapaz. Se os cartistas não se encherem de paciência.
— Você não sabe o que são agora as Ilhas Britânicas, papai. Você ficou aqui muito tempo. É difícil ter paciência com a barriga vazia.
— A mesma coisa acontece na China. É igual no mundo inteiro. Mas a revolta e a insurreição não estão de acordo com a natureza britânica.
Logo estarão, pensou Culum, sombriamente, se não forem feitas reformas. Ele lamentava agora ter partido de Glasgow para o Oriente. Glasgow era o centro dos cartistas escoceses, e ele era líder dos estudantes que, em segredo, comprometeram-se a trabalhar e suar — morrer, se necessário — para a causa cartista.
A porta da cabina se abriu outra vez e a sentinela enrijeceu-se. O almirante, um homem corpulento, saiu com o rosto tenso e zangado, e se dirigiu para o passadiço, seguido por seus capitães. A maioria dos capitães era jovem, mas uns poucos tinham cabelos grisalhos. Todos estavam vestidos com uniforme naval, usavam chapéus de três bicos e suas espadas batiam ruidosamente.
O Capitão Glessing foi o último. Parou diante de Struan.
— Posso apresentar-lhe meus pêsames, Sr. Struan? Foi uma grande falta de sorte.
— Sim. — Foi só falta de sorte, pensou Struan, perder uma linda mulher e três lindos filhos? Ou será que Deus, ou o Diabo, meterem a mão no pagode? Ou são eles, Deus, o Diabo, sorte, pagode, apenas nomes diferentes para a mesma coisa?
— Teve toda razão de matar aquele maldito fuzileiro — disse Glessing.
— Eu não o toquei.— Ah, é? Supus que tivesse tocado. Não pude ver o que aconteceu do ponto em que me encontrava. Não tem importância.
— Sepultou-o em terra?
— Não. Não valia a pena conspurcar a ilha com aquele tipo de doença. Será que o nome Ramsey significa alguma coisa para o senhor, Sr. Struan? — Glessing perguntou, encerrando as amenidades.
— Ramsey é um nome bastante comum. — Struan ficou em guarda.
— É verdade. Mas os escoceses mantêm-se unidos. Não é esta uma chave para o sucesso dos empreendimentos dominados por escoceses?
— É difícil encontrar pessoas de confiança, sim — disse Struan. — O nome Ramsey significa alguma coisa para o senhor?
— É o nome de um desertor do meu navio — disse Glessing com dureza. — Ele é primo de seu mestre, o Mestre McKay, eu acho.
— E então?
— Nada, só estou passando adiante a informação. Como sabe, naturalmente qualquer navio mercante que abrigar desertores, armado ou não, pode ser tomado como presa pela Marinha Real. — Glessing sorriu. — É uma estupidez desertar. Para onde pode ele ir, a não ser para outro navio?
— Para lugar nenhum. — Struan se sentiu preso numa armadilha. Tinha certeza de que Ramsey estava a bordo de um de seus navios e a convicção de que Brock tinha a ver com isso, e talvez Glessing também.
— Estamos fazendo uma busca na esquadra, hoje. Não tem nenhuma objeção, claro?
— Claro. Tomamos muito cuidado com a tripulação dos nossos navios.
— É muito sensato. O almirante achou que a Casa Nobre deveria ter prioridade, e então seus navios serão revistados imediatamente.
Nesse caso, pensou Struan, não há nada que eu possa fazer. Então tirou o problema da cabeça.
— Capitão, gostaria que conhecesse meu filho mais velho... meu filho Culum. Culum, este é nosso famoso Capitão Glessing, que ganhou para nós a batalha de Chuenpi.
— Bom-dia para você. — Glessing deu um aperto de mão, polidamente. A mão de Culum era macia e tinha dedos longos, com um leve toque feminino. Meio dândi, pensou Glessing. Casaco de marinheiro cintado, gravata azul-clara e colarinho alto. Deve ser um estudante. É curioso apertar a mão de alguém que teve a peste de Bengala e sobreviveu. Fico imaginando se eu sobreviveria. — Não foi uma batalha.
— Duas fragatas pequenas contra trinta juncos de guerra e trinta ou mais navios armados? Isto não é uma batalha?
— Uma escaramuça, Sr. Struan. Poderia ter sido uma batalha... — Se não fosse aquele maldito covarde Longstaff e você, seu maldito pirata, ele teve vontade de dizer.
— Nós negociantes achamos, Culum, que foi uma batalha — disse Struan, ironicamente. — Não compreendemos a diferença entre uma escaramuça e uma batalha. Somos apenas pacíficos mercadores. Mas a primeira vez em que as armas da Inglaterra foram contra as armas da China merece o título de “batalha”. Foi exatamente há um ano. Nós disparamos primeiro.
— E o que teria feito, Sr. Struan? Foi a decisão tática correta.
— Claro.
— O Capitão-Superintendente do Comércio concordou plenamente com minhas ações.
— Claro. Ele praticamente não poderia ter feito outra coisa.
— Travando velhos combates, Capitão Glessing? — Longstaff perguntou. Ele se achava à porta da cabina e estivera escutando, sem ser observado.
— Não, Excelência, apenas dando nova feição a uma antiga escaramuça. O Sr. Struan e eu jamais vimos Chuenpi com os mesmos olhos, como sabe.
— E por que deveriam? Se o Sr. Struan estivesse no comando, sua decisão poderia ter sido a mesma. Se estivesse no lugar do Sr. Struan, então poderia ter tido a certeza de que eles não atacariam, e arriscaria. — Longstaff bocejou e brincou com seu relógio de bolso.” — O que teria feito, Culum?
— Não sei, senhor. Ignoro as complicações que existiam.
— Muito bem dito. “Complicações” é uma boa palavra. — Longstaff deu uma risadinha. — Gostaria de se unir a nós, Capitão? Um copo de vinho?
— Obrigado, senhor, mas é melhor eu voltar para meu navio. — Glessing fez uma elegante continência e se afastou.
Longstaff levou os Struans para o salão de conferências que, atualmente, servia como quartel-general particular para o Capitão-Superintendente do Comércio. Era espartano e funcional, e as fundas poltronas de couro, mesas com mapas, cômodas e uma pesada mesa de carvalho estavam todas fortemente amarradas ao convés. A escrivaninha de carvalho, elaboradamente entalhada, tinha atrás o semicírculo das escotilhas da proa. A cabina cheirava a alcatrão, fumo velho, mar, e, inevitavelmente, a pólvora.
— Camaroteiro! — chamou Longstaff. Imediatamente, a porta da cabina se abriu.
— Sim, senhorrr.
Longstaff virou-se para Struan.
— Vinho? Conhaque? Porto?
— Vinho branco, seco, obrigado.
— A mesma coisa, por favor, senhor — disse Culum.
— Tomarei Porto. — Longstaff bocejou novamente.
— Sim, senhorrr. — O camaroteiro tirou as garrafas de um aparador e despejou os vinhos em finas taças de cristal.