CAPÍTULO TRÊS

Struan dormira um pouco. A comida, na mesa, estava intacta. Ele olhou, através da porta da tenda, para os navios ancorados. O sol se punha e uma lua nublada estava próxima à linha do horizonte. Grandes massas de cúmulo dominavam o céu. O vento prometia tempestade.

Ti-sen, sua mente continuava a repetir. Ti-sen. Ele é o único que pode salvar você. Sim, mas isto é traição para com tudo em que você acredita, tudo aquilo para que trabalhou.

McKay chegou com uma lanterna acesa e depositou-a sobre a mesa. A tenda era espaçosa e confortável. Havia tapetes no chão pedregoso.

— A chalupa de Brock se aproxima da praia, senhorrr.

— Leve os homens e se mantenha afastado, McKay.

— Sim, senhorrr.

— Sabe se já encontraram o Ramsey?

— Não, senhorrr.

— Onde está ele?

— Não sei, senhorrr.

Struan fez um sinal com a cabeça, distraidamente.

— Amanhã colocarei em ação todos os meus espiões, para descobrir onde ele está.

— Peço perdão, senhorrr, já espalhei a notícia, senhorrr. — McKay tentou esconder sua ansiedade. — Se ele estiver a bordo, é por maldade de alguém. — Depois, acrescentou — eu me sinto mal por causa do Capitão Perry, senhorrr.

Os olhos de Struan endureceram-se de repente.

— Vou lhe dar quinze dias para provar que eu tinha razão quanto a Isaac. Quinze dias, senão você vai ser demitido com ele.

— Sim, senhorrr. — McKay sentiu um espinho lhe subir dos testículos às tripas, e maldisse a si próprio por abrir a boca. Você nunca vai aprender, seu louco idiota? Os passos de Brock eram pesados, na praia. Ele ficou em pé à entrada da tenda.

— Permissão para subir a bordo, Dirk?

— Sim, Tyler.

McKay saiu. Brock sentou-se à mesa e Struan serviu-lhe uma grande dose de conhaque.

— Foi horrível a perda de sua família. Sei como a gente se sente. Perdi duas mulheres de parto, as crianças também. Horrível.

— Sim.

— Não tem muito espaço para manobrar — disse Brock, examinando a tenda.

— Está com fome? — Struan indicou a comida.

— Muito obrigado. — Brock pegou um frango, partiu-o em dois e arrancou metade da carne branca. Usava no dedo mínimo um anel de ouro com uma grande esmeralda. Parece que o pagode da Casa Nobre acabou.

Pagode é uma palavra forte demais.

Brock riu.

— Vamos, Dirk. Uma companhia precisa ter barras de ouro para sustentar seu crédito. Até a Casa Nobre.

— Sim.

— Gastei muito tempo, Dirk, e muito dinheiro, investigando vocês. — Brock retirou a outra metade do peito do frango e devorou-o. — Você tem um bom cozinheiro. Diga-lhe que lhe darei emprego.

— Ele gosta do que tem.

— Sem dinheiro não há emprego, meu caro. E nada de banco, nada de crédito, nada de navio, nada de nada! — Brock partiu outro frango. — Está guardando o champanha? Deve ser para uma ocasião especial, aposto.

Struan abriu com habilidade a garrafa e encheu copos limpos para Brock e para si mesmo.

— Está bem gelado, rapaz. No ponto. — Brock estalou os lábios. — Vinte e cinco mil não é grande coisa por um milhão, verdade? Struan nada disse. Seu rosto estava impassível.

— Seis centavos a libra, eles disseram. Recebi uma carta no pacote de correspondência de ontem. Perdi dez mil mangos. É ruim. É muito ruim que um banco jogue com o dinheiro de seus clientes. — Brock deu uma risadinha. — Por acaso, encontrei aquele patife do Skinner. Ele também achou ruim. Vai escrever um artigo. A manchete do jornal, aposto. E com toda razão. Cortou um pedaço de torta de maçã e comeu com gosto.

— Ah, sim, a propósito, possuo oitocentas mil letras à vista de Struan e Companhia. Andei comprando, nos últimos seis meses, apesar das dificuldades. Pelo menos, meu filho Morgan e nossos agentes da cidade de Londres andaram comprando.

— Um bom investimento, Tyler. Muito bom.

— Sim. Skinner também achou isso, Dirk, meu rapaz. Ele ficou muito chocado com seu mau pagode, mas eu lhe disse que manterei os nomes de seus navios. É mau pagode mudar os nomes. Mas ele melhorarão sob minha bandeira.

— Você precisa conseguir esses navios, primeiro.

— Dentro de trinta dias, eles serão meus, rapaz. É quando as letras vão vencer. Todo mundo já saberá o que aconteceu. E você deixará de ter crédito no Oriente. Está liquidado, rapaz.

— Talvez eu destrua meus navios, antes de você ficar com ele.

— Você não faria uma coisa dessas, Dirk. Eu o conheço muito bem. Outros fariam, mas não você. Somos parecidos, quanto a isso. Navios são uma coisa toda especial. Melhor do que qualquer prostituta. — Ele terminou seu champanha. Struan tornou a encher o copo.

— Foi você quem começou a corrida ao banco?

— Não. Se tivesse pensado nisso eu teria começado, há muito tempo. Uma ótima idéia. Imagine você com os colhões presos no laço da armadilha.

— Se tiver sido proposital, eu descobrirei.

— Foi proposital, rapaz.

— Quem fez isso?

— Morgan — disse Brock. — Tenho de creditar a ele... o moleque está crescido. Sim. Foi meu filho, e estou orgulhosíssimo. — Ele coçou, todo satisfeito, os piolhos que representavam um estilo de vida. — Então, você está quebrado, Dirk. Depois de todos esses anos. Liquidado.

— Muita coisa pode acontecer, em trinta dias.

— Sim, pode. Ouvi dizer que seu filho está encarregado da venda das terras.

— Sim. Mas será honesta. Quem fizer a oferta mais alta fica com a terra. Não enganamos ninguém, Tyler. Outras pessoas, sim. Nós não precisamos.

— Um raio lhe parta! — Brock berrou. — Está querendo dizer que eu trapaceio?

— Você trapaceia o tempo todo — disse Struan, encolerizado. — Você trapaceia com seus homens, trapaceia com seus navios, e é isto que vai destruí-lo. Não se pode construir sempre com o chicote.

— Não faço nada além dos outros, por Deus. Só porque você andou recebendo umas merdas de idéias da moda, isto não quer dizer que os outros estejam errados. O chicote mantém a ralé em seu lugar. Ralé!

— Você vive do chicote e vai morrer através dele.

— Quer acertar nossas contas agora? Chicote contra chicote? Faca contra faca? Ora, por Deus! Ou será que é um covarde?

— Eu já lhe disse, um dia, e vou dizer-lhe pela última vez. Um dia, eu irei atrás de você, com um chicote... talvez esta noite, talvez amanhã, talvez no dia seguinte. Mas, por Deus, um dia eu irei atrás de você. E vou lhe dizer outra coisa. Se, por acaso, você morrer antes de eu estar preparado, irei atrás de Gorth e Morgan e destruirei sua companhia.

Brock puxara a faca.

— Talvez, rapaz, eu corte sua garganta agora.

Struan serviu mais champanha. Agora, a garrafa estava vazia.

— Abra outra garrafa. Há muitas mais.

Brock riu.

— Ah, Dirk, rapaz, você é um tipo único. Está falido e ainda quer fingir. Você está liquidado, está ouvindo, rapaz? Sua Casa Nobre está no fim da linha. E você é um covarde!

— Ah, não sou um covarde, Tyler. Você sabe disso.

— Sabe aquele outeiro onde ia ficar sua Grande Casa? — perguntou Brock, com os olhos reluzindo.

— Sim.

— É meu, rapaz. Eu vou comprá-lo. Você pode oferecer quanto quiser, eu vou oferecer mais.

Struan sentiu o sangue subir-lhe à cabeça, pois sabia que não tinha dinheiro para competir com Brock agora. A não ser que fizesse o pacto com Ti-sen. A não ser que entregasse Hong Kong.

— Vá para o inferno!

— Será meu, rapaz. E todo este rochedo maldito. — Brock esvaziou o copo e arrotou outra vez. — Depois que sua companhia falir, eu vou expulsar você e sua gente desses mares. — Ele pegou uma bolsa e contou vinte guinéus de ouro. Depois atirou as moedas no chão da tenda. — Compre um caixão para você.

Saiu da tenda, com arrogância.

— Com sua licença, senhorrr — disse McKay. Struan saiu de seu devaneio.

— Sim?

— O Sr. Culum está em terra. Ele quer falar com o senhor. Struan ficou espantado ao ver que a lua aguada estava alta no céu, e era noite fechada.

— Eu vou falar com ele.

— Vieram outras pessoas, senhorrr. Aquele chinês, Gordon Chen. A Srta. Sinclair. Um casal que não conheço. O velho Quance. Eu disse que o senhorrr ia falar com eles amanhã. Espero ter feito bem, deixando o Sr. Culum vir, sem pedir. — McKay viu os vinte guinéus de ouro no chão, mas nada disse.

— Enquanto obedecer às ordens, você nunca estará errado, McKay.

Culum apareceu à porta da tenda.

— Estou perturbando você, papai?

— Não, rapaz. Sente-se.

Culum viu as moedas no chão e começou a pegá-las.

— Deixe onde estão.

— Por quê?

— Porque quero que sejam deixadas aí. Culum sentou-se.

— Quero falar com você.

— Não estou com disposição para falar, rapaz.

— Falava sério, quando me tornou sócio?

— Sim.

— Não quero ser sócio. Não quero ficar no Oriente. Quero voltar para nossa terra.

— Sei disso mais do que você, Culum. Mas me dê tempo.

— O tempo não vai fazer diferença.

— Você é jovem, rapaz. Terá muito tempo. Tenha paciência comigo. E com a China. Robb lhe disse como proceder, quanto à venda de terras?

— Sim. — Maldito tio Robb, Culum pensou. Se, pelo menos, não tivesse explodido com papai e dito que ia embora. Maldito, maldito, maldito. Que vá para o inferno aquele banco amaldiçoado. Arruinou tudo. Pobre papai. — Acho que serei capaz de fazer tudo.

— Você não terá problema nenhum, se tudo for feito de maneira correta. Quem oferecer mais fica com a terra.

— Sim, claro. — Culum olhou para os guinéus. — Por que quer que as moedas fiquem aí?

— São o dinheiro para eu comprar meu caixão.

Não compreendo.

Struan contou-lhe o que acontecera com Brock.

— É melhor você saber a respeito dele, Culum. Tenha cuidado, porque ele irá atrás de você, como eu vou atrás de Gorth.

— Os pecados do pai não são culpa do filho.

— Gorth Brock é igual ao pai.

— Cristo não ensina o perdão?

— Sim, rapaz. Mas eu não posso perdoá-los. Eles são o que há de mais podre sobre a face da terra. São tiranos e acreditam que o chicote responde a todas as perguntas. Uma coisa certa, na terra: dinheiro é poder... seja você rei, proprietário de terras, caudilho, mercador ou seareiro. Sem dinheiro, a pessoa não pode proteger o que tem, e nem melhorar a sorte de outrem.

— Então, está dizendo que os ensinamentos de Cristo estão errados?

— Não estão errados, rapaz. Estou dizendo que alguns homens são santos. Alguns são felizes sendo mansos, humildes e desprovidos de ambição. Alguns homens nascem contentes com o segundo lugar... mas não eu. E nem Brock. Você é assim?

— Não sei.

— Você será submetido ao teste, mais cedo ou mais tarde. Então conhecerá a si próprio.

— Então, quer dizer que o dinheiro é tudo?

— Quero dizer que sem poder não se pode ser santo, nos tempos que correm. O poder por si mesmo é um pecado. O dinheiro por si mesmo é um pecado.

— É tão importante assim ter dinheiro e poder?

— Não, rapazinho — disse Struan, com um sorriso irônico.

— O importante é a falta de dinheiro.

— Por que você quer poder?

— Por que você quer, Culum?

— Talvez eu não queira.

— Sim Talvez. Gostaria de tomar uma bebida, rapaz?

— Vou querer um pouquinho de champanha.

— Já comeu?

— Sim, obrigado. Ainda não conheço muito a mim mesmo. — disse Culum.

— Tem tempo, rapazinho. Estou tão satisfeito, de você se encontrar aqui! Muito satisfeito. Culum tornou a olhar para as moedas.

— Realmente, não tem importância, não é? Eu ser sócio ou não, e todo o resto. A companhia está liquidada. O que você vai fazer?

— Por vinte e nove dias, ainda não estamos liquidados. Se o pagode estiver contra nós, esta versão da Casa Nobre morrerá. Então começaremos de novo. — Não se iluda, ele pensou, você não pode jamais começar outra vez.

— Uma batalha interminável?

— O que você pensa que é a vida, rapaz?

— Posso desistir de ser sócio se não estiver gostando, ou se achar que não sou bom, e não mereço o lugar? De acordo com meus desejos?

— Sim. Mas, se um dia chegar a ser Tai-Pan, não. O Tai-Pan não pode jamais renunciar, até ter certeza de que a casa está em boas mãos. Ele precisa ter certeza. É sua responsabilidade final.

— Se os mercadores chineses nos devem tanto, não podemos cobrar? Assim teremos o dinheiro para pagar a Brock.

— Eles não têm o dinheiro. — Com mil demônios, disse Struan a si próprio, você está numa armadilha. Decida. É Ti-sen ou nada.

— E Sua Excelência? Ele não pode adiantar alguma coisa? Do dinheiro do resgate?

— Pertence à Corôa. Talvez o Parlamento cumpra seu acordo, talvez o repudie. O dinheiro não nos chegará às mãos em menos de quase um ano.

— Mas nós o conseguiremos. Com certeza, Brock aceitará suas garantias, não? A voz de Struan tornou-se áspera.

— Já lhe descrevi a medida da caridade de Brock. Eu não lhe daria vinte guinéus, se eu o tivesse preso em armadilha igual. Maldito seja, e maldita seja sua cria.

Culum mexeu-se, desajeitado, na cadeira. Seu sapato tocou num dos guinéus, e a moeda reluziu repentinamente.

— Sua Excelência não é muito... bom, ele não é um tanto tolo?

— Ele está deslocado na Ásia... isto é tudo. O homem errado para o posto. Eu estaria perdido, nas cortes da Europa. Mas ele é plenipotenciário. É tudo que importa. Sim, ele é tolo... mas tenha cuidado com ele também. Tenha cuidado com todo mundo.

— Ele sempre faz o que você manda?

Struan olhou a noite, lá fora, através da porta da tenda.

— Ele aceita meus conselhos, na maioria das vezes. Desde que eu seja o último a dá-los. Culum mexeu em outro guinéu.— Deve haver alguma coisa... Alguém a quem recorrer. Você deve ter amigos.

Inexoravelmente, a mente de Struan estava cheia do nome da única pessoa que poderia desmontar a armadilha: Ti-sen. Brock vai tomar os navios com toda tranqüilidade, ele pensou, fervendo de raiva impotente. Sem os navios, você está perdido, rapazinho. A casa, Hong Kong, o plano. Sim, você pode começar outra vez, mas não se iluda. Você não pode construir e tripular uma armada assim, outra vez. Jamais se equiparará a Brock novamente. Jamais. Vai ficar em segundo lugar. Será o segundo lugar para sempre.

Struan sentiu pulsarem as veias de seu pescoço. Sua garganta estava seca. Não vou ficar em segundo lugar. Por Deus Nosso Senhor, eu não posso. Eu não posso. Eu não posso. Diante de Brock ou de qualquer outra pessoa.

— Amanhã, quando o China Cloud voltar, eu vou a Cantão. Você vai comigo.

— E a venda de terras? Não devo começar os procedimentos?

— O diabo carregue a venda de terras! Temos a casa para salvar, em primeiro lugar. Vá para bordo do Resting Cloud, rapaz. Partiremos logo que possível.

— Está bem. — Culum levantou-se.

— Boa-noite, rapazinho.

As moedas prenderam o olhar de Culum, hipnotizando-o. Ele começou a pegá-las.

— Eu lhe disse para deixar aí essas moedas!

— Não posso. — Havia gotas de suor na testa de Culum. As moedas pareciam queimar-lhe os dedos. — Eu preciso... eu preciso ficar com elas.

— Por que, pelo amor de Deus, hein?

— Não sei. Simplesmente, quero ficar com elas. — Ele pôs as moedas em seu bolso. — Agora são minhas. Boa-noite, papai.


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