— Tem cinchona aqui? Em Macau?
Houve um silêncio, rompido pelos estalidos das unhas batendo na cruz, lembrando a Struan o médico chinês a dar pancadinhas no pulso de May-may. Ficou imaginando se julgara corretamente o bispo.
— Não sei, Sr. Struan.
— Se a cinchona puder curar nossa malária, estou disposto a pagar. Se quer dinheiro, terá. Poder? Eu lhe darei. Se quer minha alma, pode ficar com ela... não subscrevo seus pontos de vista, de maneira que seria. uma troca segura. Alegremente, até mesmo passaria pelo ritual de me transformar em católico, mas não teria sentido, como sabe e eu sei. O que quer que desejar, eu lhe darei, se estiver em meu poder lhe dar. Mas quero um pouco da casca. Quero curar uma pessoa da febre. Diga seu preço.
— Para quem vem como suplicante, suas maneiras são curiosas.
— Sim. Mas estou supondo que, a despeito de minhas maneiras, ou do que pensa a meu respeito e eu ao seu, temos os meios de realizar um negócio. Tem cinchona? Se tiver, curará a malária do Vale Feliz? E se curar, qual será o seu preço?
O aposento estava muito silencioso, um silêncio sobrecarregado de movimentos de mentes, vontades e pensamentos.
— Não posso responder a nenhuma dessas perguntas agora — disse o bispo. Struan levantou-se.
— Voltarei hoje à noite.
— Não há necessidade de que volte, senhor.
— Quer dizer que não haverá negócio?
— Estou dizendo que hoje à noite pode ser cedo demais. Levará tempo para mandar o aviso a todos os curadores de doentes e para obter uma resposta. Entrarei em contato com o senhor logo que tenha uma resposta. Para todas as suas perguntas. Onde estará? No China Cloud ou em sua residência?
— Mandarei um homem sentar-se à sua porta, à espera.
— Não há necessidade. Mandarei notícia. -. O bispo permaneceu em sua cadeira. Depois, vendo a profundidade da preocupação de Struan, acrescentou, compassivamente:
— Não se preocupe, senhor. Mandarei um aviso para ambos os lugares, em nome de Cristo.
— Obrigado. — Quando Struan partia, ouviu o bispo dizer: “Vá com Deus”, mas não parou. A porta da frente bateu atrás dele.
No silêncio do pequeno aposento, o bispo suspirou profundamente. Seus olhos contemplaram o crucifixo cravejado de jóias pendurado em seu peito. Rezou, silenciosamente. Depois, mandou buscar seu secretário e ordenou que começasse a procura. Em seguida, mais uma vez sozinho, ele se dividiu nas três pessoas que todos os generais da igreja devem ser, simultaneamente. Antes de tudo, Pedro ungido, primeiro bispo de Cristo, com o que isso implicava, espiritualmente. Em segundo lugar, o guardião militante da igreja temporal, com todas as conseqüências. E, finalmente, apenas um simples homem, que acreditava nos ensinamentos de um homem simples que era o Filho de Deus.
Voltou a se instalar em sua cadeira e deixou essas facetas de si mesmo discutirem uma com a outra. E ficou a escutá-las.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
Struan subiu as escadas de mármore da residência da companhia, fatigado mas, estranhamente, em paz. Fiz tudo que podia, pensou.
Antes de tocar na porta, esta foi amplamente aberta, com um floreio. Lo Chum, o mordomo dos funcionários da Casa Nobre de Macau, exibiu-lhe um sorriso desdentado. Era um velho baixinho, com um rosto que parecia de marfim antigo e um sorriso de duende, e estava a serviço de Struan desde que este pudera pagar a um criado. Usava uma limpa bata branca, calças negras e sandálias de corda.
— Hallo-ah, Tai-Pan. O banho está pronto, o desjejum está pronto, as roupas estão prontas, tudo que o Tai-Pan quiser. Não se preocupe.
— Olá, Lo Chum. — Struan nunca deixava de se maravilhar diante da rapidez com que circulavam as notícias. Sabia que, se tivesse, logo ao desembarcar, corrido pelo desembarcadouro diretamente para a mansão, a porta teria sido aberta rapidamente, do mesmo jeito, e Lo Chum ali estaria, como estava agora.
— Quero banho e roupas — disse Struan.
— Compradore Chen Sheng foi embora. Diz que volta às nove horas, pode?
— Pode — respondeu Struan, cansado.
Lo Chum fechou a porta e disparou na frente de Struan, subiu a escadaria de mármore e abriu a porta do quarto de dormir do patrão. A grande banheira de assento, de ferro, estava cheia de água fumegante, como sempre, um copo de leite se encontrava sobre uma mesinha, como sempre, seus aparelhos de barbear se achavam separados a um canto, a camisa e as roupas limpas sobre a cama — como sempre. É bom estar em casa, pensou Struan.— Tai-Pan quer moça no banho, hein? — uma risada, como um relincho.
— Ayeee yah, Lo Chum. Sempre disse que moça no banho traz muitos problemas. Acorde o Senhor Culum... diga para vir aqui. — Struan falou, tirando as roupas sujas.
— Senhor Culum não dormiu.
— Onde o Senhor Culum foi? — perguntou Struan. Lo Chum pegou as roupas e deu de ombros.
— Passou a noite toda fora, senhor.
Struan franziu a testa.
— A mesma coisa toda noite, hein?
Lo Chum abanou a cabeça.
— Não, senhor. Uma, duas noites dormiu aqui. — Saiu, afobado.
Struan mergulhou no banho, perturbado pelo relato das ausências de Culum. Espero em Deus que Culum tenha suficiente bom senso para não ir a Chinatown.
***
Pontualmente, às nove horas, uma rica liteira parou diante da mansão. Chen Sheng, compradore da Casa Nobre, fez uma pesada curvatura. Seu traje era escarlate e o chapéu cravejado de jóias, e ele tinha muita consciência de sua majestade.
Subiu os degraus e a porta foi aberta por Lo Chum. pessoalmente — como sempre. Isto dava a Chen Sheng grande prestígio, pois Lo Chum só abria a porta pessoalmente para o Tai-Pan e para ele.
— Ele está à minha espera? — perguntou, em dialeto cantonês.
— Claro, Excelência. Sinto muito ter marcado seu encontro para tão cedo, mas achei que iria desejar ser o primeiro.
— Ouvi dizer que ele partiu de Hong Kong com uma pressa frenética. Sabe qual é o problema?
— Ele foi diretamente ao Tai-Pan dos saias-compridas e...
— Sei disso — disse Chen Sheng, com petulância. Não podia adivinhar por que Struan correra ao mosteiro. — Realmente, não sei por que sou tão paciente com você, Lo Chum, ou por que continuo a lhe pagar uma soma mensal, a fim de me manter informado, nesses tempos difíceis. Eu já sabia que o navio estava no porto, antes de você mandar me avisar. É uma desagradável falta de interesse por meus assuntos.
— Realmente, sinto muito, Excelência — disse Lo Chum. — Claro, o Tai-Pan trouxe sua concubina, no navio.
— Ah! — Ótimo, pensou. Estou satisfeito de devolver as crianças e me livrar dessa responsabilidade. — Isso é um pouco melhor, embora eu fosse receber esta informação, por parte de outras pessoas, em menos de uma hora. Que outras maravilhosas informações tem você para merecer um pagamento tão alto. todos esses anos?
Lo Chum mostrou o branco dos olhos.
— Que sabedoria poderia ter eu, um miserável escravo, diante de um mandarim como o senhor? — falou muito tristemente. — Atravessamos tempos difíceis, Excelência. Minhas esposas me aborrecem, pedindo dinheiro, e meus filhos gastam taéis no jogo, como se a prata crescesse como arroz. É terrível. Só tendo conhecimentos prévios de grande importância a pessoa pode defender-se contra o destino. É terrível pensar que tais conhecimentos podem cair nos ouvidos errados.
Chen Sheng brincava com o rabicho, imediatamente cônscio de que Lo Chum tinha uma informação muito especial.
— Concordo. Em tempos difíceis como esses, é muito importante... os deuses assim decretaram... assistir os pobres — disse ele, com gravidade. — Eu estava pensando em lhe enviar um presente sem valor, em nome de seus ilustres ancestrais: três porcos assados, catorze galinhas poedeiras, duas peças de xantungue de seda, uma pérola no valor de dez taéis da mais pura prata, uma bela fivela de cinto de jade do início da dinastia Ch’ing, no valor de cinqüenta taéis e alguns doces e pastéis sem importância completamente inadequados para seu paladar, talvez você prefira dá-los aos seus criados.
— Uma dádiva de tal magnificência eu dificilmente poderia aceitar — disse Lo Chum, com grande deferência. — Isto me colocaria como seu devedor para sempre.
— Se recusar, então só posso supor que é uma oferta inadequada para seus ilustres ancestrais e perderei prestígio.
Finalmente, Lo Chum permitiu-se ser persuadido a aceitar, e Chen Sheng se permitiu ser persuadido de que o presente era principesco.
— Ouvi dizer que o Tai-Pan procura algo — sussurrou Lo Chum — porque sua concubina está muito doente. Doente com a febre venenosa de Hong Kong. — O quê? — Chen Sheng ficou horrorizado com a notícia, mas satisfeito porque o montante do presente fora bem gasto. — Por favor, continue.
Lo Chum lhe contou a respeito do médico e do estranho remédio — e tudo que Ah Sam sussurrara aquela manhã a um proprietário de sampana que Lo Chum enviara até ela.
— Há também boatos de que o Tai-Pan ofereceu vinte mil taéis como recompensa. O filho dele, filho ilustre de sua terceira esposa e seu filho de criação, iniciou uma busca frenética da droga em Hong Kong.
A mente de Chen Sheng mergulhou nas implicações. Fez sinal a Lo Chum e foi conduzido até o gabinete de Struan.
— Hallo-ah, Tai-Pan — ele disse, expressivamente. — É bom vê-!o em Macau. -. Hallo-ah, Chen Sheng — disse Struan. Fez sinal em direção a uma cadeira. — Sente-se.
— O navio Blue Cloud chegou primeiro à Inglaterra?
— Não sei. Digo-lhe depressa, quando souber. Chen Sheng queria me ver?
Chen Sheng estava preocupado, Ele, o líder das Tríades de Macau, recebera de Jin-qua a responsabilidade pessoal da segurança de Tchung May-may e das suas crianças. Só ele, entre todos os associados de Jin-qua, sabia que ela era neta de Jin-qua e que, como concubina do Tai-Pan, seu valor para eles, pessoalmente, era enorme, e seu valor para a futura causa da Tríade — que era a causa da China — inestimável. A notícia de que a frota voltaria imediatamente a Cantão, em vez de ir direto a Pequim, poupara-lhes quase quatro milhões de taéis — cem vezes o custo da educação de May-may. Abençoara seu pagode por May-may existir; sem ela, teria tido de encontrar ele próprio um montante substancial daquele resgate.
E, agora, a estúpida e inútil mulher tivera o mau pagode de pegar uma doença incurável. Pelo menos, emendou depressa, incurável a menos que nos seja possível encontrar a droga. E se pudermos, ela melhorará, e nosso investimento nela — e no Tai-Pan será garantido e haverá vinte mil taéis de recompensa. Então, outro fragmento de informação se encaixou no lugar e ele pensou, então isto explica por que Gordon Chen mandou chamar a Macau ontem, secretamente, quarenta membros da Tríade, da sede Hong Kong. Deve haver um pouco da droga aqui. Ficou imaginando o que Gordon Chen diria se lhe contasse que seu “Professor” secreto lhe fora enviado por ordens de Jin-qua — que Jin-qua era o líder da Tríade de toda Kwangtung e que ele, Chen Sheng, era o vice de Jin-qua. Ah, disse a si próprio, é muito aconselhável manter em segredo muitas coisas; nunca se sabe quando alguém vai escorregar.
— Crianças de Tai-Pan lá em casa muito bem, muito felizes — Disse, jovialmente.
— Quer ver eles, hein? Levar de volta a Hong Kong?
— Vejo hoje. Levo de volta logo. Digo quando. — Struan ficara imaginando se deveria contar a Chen Sheng a respeito de May-may.
— Tai-Pan. Suas crianças muito boas. — Começou Chen Sheng. — Acho que é melhor levar crianças para mamãe. Fazer feliz mamãe. Médico importante aqui diz que pode. Não tem problemas. Acho que tem remédio aqui em Macau. Chen Sheng dá um jeito.
— Como sabia que ela está aqui, e com malária?
— O quê? Não entendo.
— Como sabia que minha mulher tem doença grave?
Chen Sheng deu uma risadinha para si próprio e encolheu os ombros.
— Sabia de qualquer jeito, não se preocupe.
— Tem remédio aqui? Verdade?
— Se tiver aqui, consigo. Mando junco depressa para o China Cloud, Traga mulher para terra. Chen Sheng ajeita.
Ele fez uma curvatura cortês e saiu.
Struan foi para bordo do China Cloud e deu à tripulação licenças para desembarcar por turnos. Logo o junco de Chen Sheng se aproximou. May-may foi cuidadosamente levada para terra, aos cuidados de um médico chinês, e carregada para sua casa, encravada no morro de Santo Antônio.
A casa estava limpa e os criados se encontravam de prontidão, havendo chá preparado. Ah Sam deu uma volta, solicitamente, e abraçou as crianças que esperavam na casa, com sua ama, ajeitou May-may na grande cama e levou os filhos até ela. Houve lágrimas de felicidade, novas corridas de um lado para outro, gritos, e Ah Sam e May-may ficaram satisfeitas por estarem em casa, afinal.
O médico trouxera alimentos e remédios especiais para fortalecer May-may e manter a força da criança em seu útero, e lhe ordenara para ficar na cama.
— Voltarei logo — disse Struan.
— Ótimo. Obrigada, Tai-Pan, obrigada.
— Vou para a sede e, depois, talvez para a casa de Brock.
— Ele estão em Macau?
— Sim. Todos, com exceção de Tyler. Pensei que lhe havia dito. Não se lembra? Culum e Tess estão aqui também.
— Ah, sim — ela respondeu. Lembrou-se do que fora combinado com Gordon Chen. — Sinto muito. Eu tinha esquecido. Minha cabeça está como uma peneira. Claro que me lembro, agora. Estou muito feliz de ter saído do navio e de me encontrar em casa. Obrigada.
Ele voltou para a sede da companhia. Culum não voltara, então caminhou pela praia, até à casa de Brock. Mas nem Tess e nem Liza sabiam onde se encontrava Culum. Gorth disse que os dois haviam jogado na noite da véspera, no English Club, mas ele, Gorth, saíra cedo.
— Vou levá-lo até à porta — disse Gorth. Quando estavam sozinhos, junto à porta, sorriu sardonicamente, exultando na doçura da vingança. — Sabe como é... eu estava visitando uma senhora. Talvez ele estivesse fazendo a mesma coisa. Não há perigo nenhum nisso, não é? Ele estava ganhando no jogo quando eu o deixei, se é isto que o está preocupando.
— Não, Gorth, não estou preocupado com isso. Sabe que há boas leis britânicas relativas a assassinato... um julgamento rápido e uma rápida forca, seja quem for a vítima. Até mesmo uma prostituta.
Gorth empalideceu.
— O que quer dizer com isso?
— Se alguém se tornar merecedor da forca, eu serei alegremente o carrasco.
— Está me ameaçando? Há leis contra isso também, por Deus!
— Se houver morte... então haverá acusação de homicídio, por Deus!
— Não sei o que quer dizer! — explodiu Gorth. — Está me acusando falsamente!
— Não estou acusando você de nada, Gorth. Só lembrando você de fatos. Sim. Ouvi dizer que há duas possíveis testemunhas para uma possível morte... que estariam preparadas para falar no tribunal.
Gorth controlou seu pânico. Foi aquela maldita cadela Fortheringill, e também o patife do Quance. Ela foi paga o suficiente para manter o bico calado. Bom, vou cuidar dos dois imediatamente, se for necessário, mas não será, porque a cadela não vai morrer, de qualquer jeito.
— Não tenho medo de falsas acusações como as suas.
— Não estou acusando você, Gorth — disse Struan.
Ficou fortemente tentado a provocar agora a inevitável luta. Mas sabia que teria de esperar que Gorth cometesse seu primeiro erro, insultá-lo imperdoavelmente em público. Só assim poderia, aberta e livremente, mandar ajudantes com um desafio formal e matá-lo diante de uma platéia. Só dessa maneira poderia impedir a ruptura do casamento de Culum e Tess e evitar dar a Brock um meio de destruí-lo nos tribunais de justiça. Porque May-may estava certa — todos na Ásia sabiam que ele estava louco para matar Gorth.
— Se encontrar Culum, por favor diga-lhe que estou procurando por ele.
— Dê os seus próprios recados! Não sou seu lacaio. Você não será por muito tempo mais o Tai-Pan da Casa Nobre, por Deus.
— Cuidado — disse Struan. — Não tenho medo de você.
Gorth engoliu a isca.
— Nem eu, Dirk. Eu lhe digo de homem para homem tenha cuidado, ou vou atrás de você. Struan caminhou de volta para a sede da companhia, encantado consigo mesmo. Você está fisgado, Gorth.
Culum ainda não voltara. E não havia notícia alguma do bispo. Struan disse a Lo Chum para tentar encontrar Culum. E foi para a praia, subiu o morro em direção à catedral, em seguida entrou em ruas menos transitadas, passando por graciosos restaurantes na calçada e sombrinhas coloridas. Cruzou uma extensa praça e atravessou um grande pórtico.
A freira, à escrivaninha, ergueu os olhos.
— Bom-dia. Fala inglês? — perguntou Struan.
— Um pouco, senhor.
— Tem uma paciente. Srta. Mary Sinclair. Sou amigo dela.
Uma longa pausa.
— Quer vê-la?
— Por favor.
Ela fez sinal para uma freira chinesa e lhe falou rapidamente, em português. Struan seguiu a freira chinesa por um corredor e subiu algumas escadas que davam no quarto de Mary.
Era pequeno, sujo e rançoso, e tinha as janelas totalmente cerradas. Um crucifixo pendia sobre a cama. O rosto de Mary estava abatido, seu sorriso era fraco. E o sofrimento a envelhecera.
— Olá, Tai-Pan.
— Qual é o problema, Mary? — ele perguntou brandamente.
— Nada que eu não mereça.
— Eu vou tirar você deste maldito lugar — disse Struan.
— Estou ótima, Tai-Pan. Eles são muito bons para mim.
— Sim, mas isto não é lugar para uma moça inglesa protestante.
Um monge magro e tonsurado entrou. Usava uma batina simples — suja de manchas de sangue e remédios derramados — e um crucifixo simples de madeira.
— Bom-dia — disse o monge, com um inglês cultivado e sem sotaque. — Sou Padre Sebastião. O médico desta paciente.
— Bom-dia. Acho que a tirarei de seus cuidados.
— Eu não aconselharia isso, Sr. Struan. Ela não deve ser movimentada por um mês, pelo menos.
— O que há com ela?
— Tem problemas internos.
— É inglês?
— É tão estranho isso, Sr. Struan? Há muitos ingleses, e também escoceses, que reconhecem a verdade da Igreja de Cristo. Mas o fato de ser católico não diminui os meus méritos como médico.
— Tem aqui a casca de árvore cinchona?
— O quê?
— Casca de árvore cinchona. Casca dos jesuítas.
— Não. Jamais usei isso. Nunca vi. Por quê?
— Por nada. O que há de errado com a Srta. Sinclair?
— É muito complicado. A Sra. Sinclair não deverá ser movimentada por um mês... melhor dois.
— Sente-se suficientemente bem para ser movimentada, garota?
— O irmão dela, Sr. Sinclair, não faz objeção ao fato de permanecer aqui. E eu acredito que o Sr. Culum Struan também aprova o que eu sugiro.
— Culum esteve aqui hoje? — Struan perguntou a Mary.
Ela abanou a cabeça e falou com o monge, o rosto trágico.
— Por favor, conte ao Tai-Pan. A respeito... a meu respeito. O Padre Sebastião disse com gravidade.
— Acho que tem razão. Alguém deve saber. A Srta. Sinclair está muito doente, Sr. Struan. Ela bebeu uma poção de ervas chinesas... talvez veneno fosse a palavra certa... para provocar um aborto. O veneno deslocou o feto, mas causou uma hemorragia que está agora, graças a Deus, quase sob controle.
Struan sentiu um repentino suor.
— Quem mais sabe disso, Mary? Horatio? Culum?
Ela abanou a cabeça.
Struan tornou a se virar para o monge.
— Quase sob controle? Quer dizer que a moça está bem? Que dentro de um mês, aproximadamente, ela estará bem?
— Fisicamente, sim. Se não houver gangrena. E se esta for a vontade de Deus.
— O que quer dizer “fisicamente”?
— Quero dizer, Sr. Struan, que é impossível considerar o físico sem o espiritual. Esta senhora pecou terrivelmente contra as leis de Deus... contra as leis da Igreja Católica e também de sua igreja... e então a paz, o acerto de contas, têm de ser feitos com Deus, antes de ela poder curar-se. Era isto que eu estava tentando dizer.
— Como... como ela chegou aqui?
— Foi trazida para cá por sua ama, que é católica. Consegui uma licença especial para tratá-la e, bom, nós a colocamos aqui e a tratamos o melhor que pudemos. A madre superiora insistia que alguém fosse informado, porque sentimos que não estava resistindo. Foi enviada notícia para o Capitão Glessing. Supusemos que ele fosse o pai, mas a Srta. Sinclair jura que não... que não era. E nos implorou para não revelar a causa de sua doença. — O Padre Sebastião fez uma pausa. — Essa crise, graças a Deus, passou.
— Manterá isso em segredo? O que... o que aconteceu com ela?
— Só o senhor e as freiras sabem. Temos juramentos diante de Deus, que não podem ser rompidos. Não precisa temer por nós. Mas sei que não haverá cura para esta pobre pecadora sem um acerto de contas. Porque Ele sabe.
O Padre Sebastião afastou-se.
— O... o padre era um de seus “amigos”, Mary?
— Sim. Eu não... eu não me arrependo de minha vida, Tai-Pan. Eu não... não posso. E nem do que fiz. É o pagode. — Mary olhava através da janela. — Pagode. — Ela repetiu. — Eu fui estuprada, muito jovem... pelo menos... não é verdade. Mas eu não sabia o que... Eu não entendia, mas fui um pouco forçada, da primeira vez. Depois, eu... não foi necessário forçar... eu queria.
— Quem foi ele?
— Um de meus colegas de escola. Ele morreu. Foi há tanto tempo.
Struan procurou lembrar, mas não identificou nenhum menino que tivesse morrido. Nenhum menino que pudesse ter ido à casa dos Sinclair.
— E, depois disso — Mary continuou, cheia de vacilação — eu tive necessidade. Horatio... Horatio estava na Inglaterra e, então, eu pedia... pedia a uma das amas para procurar um amante para mim. Ela me explicou que eu... que eu poderia ter um amante, muitos amantes e que, se fosse inteligente, e ela fosse inteligente, eu poderia ter uma vida secreta e coisas bonitas. Minha verdadeira vida nunca foi agradável. Você sabe o pai que eu tive. Então, a ama me mostrou como. Ela... procurava para mim. Nós... ficamos... nós ficamos ricas juntas, e eu estou satisfeita. Comprei as duas casas e ela sempre trouxe só homens muito ricos. — Ela parou e, depois de um longo tempo, gemeu: — Ah, Tai-pan, estou com tanto medo.
Struan sentou-se a seu lado. Lembrou-se do que lhe dissera há apenas poucos meses. E da confiante resposta da moça.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
Struan estava à janela aberta, melancolicamente a observar a praia lá embaixo. Entardecia. Os portugueses todos vestiam trajes de noite e davam voltas de um lado para outro, fazendo mesuras, conversando animadamente — com os jovens fidalgos e as moças a se namorarem cautelosamente, sob os olhares vigilantes de pais e aias. Algumas liteiras, com seus cules, labutavam à procura de clientes ou depositavam pessoas que chegavam atrasadas para o passeio. Aquela noite, havia um baile no palácio do governador e ele fora convidado, mas não sabia se iria. Culum não voltara ainda. E não havia notícias do bispo.
Ele vira Horatio, aquela tarde. Horatio ficara furioso porque Ah Tat, ama de Mary, desapareceu.
-Tenho certeza de que foi ela quem deu à pobre Mary a poção, Tai-Pan — disse ele. Mary contara-lhe que bebera por engano um chá de ervas por ela encontrado na cozinha, e nada mais.
— Isso é tolice, Horatio. Ah Tat está com vocês dois há anos. Por que faria uma coisa dessas? Foi um acidente.
Depois da partida de Horatio, Struan procurara os homens com quem Culum e Gorth haviam estado, na noite anterior. Na maioria, eram camaradas de Gorth e todos disseram que, algumas horas depois de Gorth sair, Culum fora embora; que ele bebera, mas não estava mais bêbado do que os outros, do que habitualmente ficava.
Seu estúpido idiota Culum, pensou Struan. Você devia ter tido cuidado.
De repente, notou um criado imaculado, de peruca e libré, que se aproximava, e reconheceu o brasão do bispo, instantaneamente. O homem vinha sem pressa pela praia, mas passou pela sede da companhia sem parar, e desapareceu na praia mesmo.
A luz sumia rapidamente agora, e as luzes do passeio marginado por lanternas começaram a dominar o clarão do entardecer. Struan viu uma liteira com cortinas parar diante da casa. Dois cules, apenas, entrevistos, depuseram-na e sumiram numa ruela.
Struan saiu correndo do aposento e desceu as escadas.
Culum estava estirado, inconsciente, na parte de trás da liteira, com as roupas rasgadas e manchadas de vômito. Fedia a álcool.
Struan ficou mais divertido do que zangado. Puxou Culum até colocá-lo em pé, atirou-o sobre o ombro e, sem se preocupar com os olhares dos transeuntes, carregou-o para a casa.
— Lo Chum! Banho, depressa!
Struan depositou Culum na cama e o despiu. Não havia ferimentos no seu peito e nem nas costas. Ele o virou. Arranhaduras causadas por unhas no estômago. E manchas provocadas por mordidas amorosas.
— Idiota — disse ele, examinando-o rapidamente, mas de maneira minuciosa. Não havia ossos quebrados. Nenhum dente arrancado. O anel de sinete e o relógio haviam sumido. Os bolsos estavam vazios.
— Você foi “depenado” rapazinho. Talvez, pela primeira vez, mas, com certeza, não pela última. — Struan sabia que drogar a bebida de um rapaz era um truque antigo em bordéis.
Criados trouxeram baldes de água quente e encheram a banheira de ferro. Struan ergueu Culum, colocou-o no banho e o ensaboou e lhe passou uma esponja. Lo Chum segurava a cabeça pendurada.
— Patrãozinho bebeu demais, fez muito amor.
— Ayeee yah! — disse Struan.
Ao retirar Culum do banho, sentiu uma dor forte, como uma punhalada, no tornozelo esquerdo, e percebeu que a caminhada de hoje lhe cansara o tornozelo mais do que esperava. É melhor envolvê-lo em gaze durante alguns dias, pensou.
Enxugou Culum e colocou-o na cama. Deu-lhe palmadinhas leves no rosto, mas isto não o acordou, e então jantou e ficou esperando. Sua preocupação aumentou com a passagem do tempo, porque sabia que, àquela hora, por mais que Culum tivesse bebido, já deveria estar recuperado.
A respiração de Culum era profunda e regular. As batidas do coração, fortes. Struan levantou-se e se espreguiçou. Não havia nada a fazer, senão esperar.
— Vou ver a senhora. Fique olhando com cuidado, está bem? — disse ele.
— Lo Chum olha como se fosse uma mãe!
— Mande notícia, está bem? Quando o patrão acordar, não deixe de mandar notícia. Entendido?
— Não precisa perguntar se entendido, sim? Sempre entendido muito bem, não se preocupe.
Mas Lo Chum não mandou notícia alguma, aquela noite.
Ao amanhecer, Struan saiu da casa de May-may e voltou para a sede da companhia.
May-may dormira em paz, mas Struan ficara à escuta de todos os movimentos de transeuntes, e de cada liteira — e de muitos ruídos que apenas sua imaginação criava. Lo Chum abriu a porta da frente.
— O que adianta Tai-Pan vir cedo, hein? Desjejum pronto, banho pronto, o que Tai-Pan quer ver, hein?
— Patrão acordou?
— Por que perguntar? Se acorda, mando notícia. Entendido tudo muito bem, Tai-Pan — disse Lo Chum, com sua dignidade ofendida. Struan foi para o andar superior. Culum ainda dormia, profundamente.
— Uma, duas vezes, patrão faz a mesma coisa — e Lo Chum resmungou, fez ruídos com os maxilares, fungou, bocejou e gemeu alto. Depois do desjejum, Struan mandou dizer a Liza e Tess que Culum voltara, mas não lhes contou em que condições. Em seguida, tentou concentrar-se nos negócios.
Assinou papéis e aprovou gastos maiores nas construções de Hong Kong, indignado com os custos crescentes da madeira, do tijolo e do trabalho e toda sorte de suprimentos para navios, reparos de navios, equipamento náutico.
Maldição! Os preços tiveram um aumento de cinqüenta por cento — e não há sinal de que vão descer. Devo começar a construir clíperes para o próximo ano, ou vou apostar nos que já temos? Apostar que o mar não afundará nenhum? É preciso comprar mais.
Então, mandou fazer um novo clíper. Ele o chamaria de Tessan Cloud e o navio seria dado a Culum, como presente de aniversário. Mas, mesmo o pensamento de um novo e belo clíper não o entusiasmou como de costume. Fez com que ele se lembrasse do Lótus Cloud, que logo deveria ser construído em Glasgow, e do combate naval, no ano seguinte, com Wu Kwok — se ainda estivesse vivo — ou com Wu Fang Choi, o pai, e seus piratas. Ficou imaginando se os filhos de Scragger desembarcariam na Inglaterra a salvo. Outro mês se passaria, no mínimo, antes de eles chegarem — e mais três meses para a notícia voltar.
Fechou seu escritório e foi para o English Club, onde bateu papo com Horatio por um momento, em seguida com alguns negociantes, e jogou bilhar, mas não se divertiu nem um pouco com a companhia e nem com o jogo. A conversa foi toda sobre negócios, toda cheia de ansiedade com relação a sinais de desastre quanto ao nível internacional e à expansão de seus grandes lances comerciais da temporada.
Sentou-se no grande e tranqüilo salão de leitura e pegou os últimos jornais — de três meses atrás — chegados com a correspondência.
Com esforço, concentrou-se num editorial. Falava das disseminadas perturbações industriais nos Midlands, e garantia que era imperativo pagar um salário justo para uma jornada de trabalho justa. Outro artigo lamentava que a grande máquina industrial da Inglaterra estivesse operando com apenas metade de sua capacidade, e insistia que grandes mercados novos deveriam ser encontrados para a riqueza produtiva que a nação podia vomitar; mais produção significava mercadorias mais baratas, aumento dos empregos, salários mais altos.
Havia outros artigos falando de tensão e de nuvens de guerra sobre a França e a Espanha, por causa da sucessão do trono espanhol; a Prússia metia seus tentáculos em todos os Estados alemães, a fim de dominá-los, e— uma confrontação franco-prussiana estava iminente; havia nuvens de guerra sobre a Rússia e o Sacro Império Romano dos Habsburgos; nuvens de guerra sobre os Estados italianos, que queriam derrubar o adventício rei francês de Nápoles, e desejavam unir-se, ou não se unir, e o Papa, apoiado pelos franceses, estava envolvido na arena política; havia ainda nuvens de guerra sobre a África do Sul, porque os Bôers — que, nos últimos quatro anos, haviam migrado da colônia do Cabo para se estabelecerem no Transvaal e no Estado Livre de Orange — agora ameaçavam a colônia britânica de Natal, e esperava-se que a guerra já fosse anunciada nos próximos despachos; havia manifestações anti-semitas e pogroms em toda a Europa; os católicos lutavam contra os protestantes, maometanos contra indianos, contra católicos, contra protestantes, e esses lutavam entre si mesmos; havia guerras com os índios peles-vermelhas na América, hostilidade entre os Estados do norte e do sul, hostilidade entre a América e a Grã-Bretanha, com relação ao Canadá, perturbações na Irlanda, Suécia, Finlândia, Índia, Egito, os Bálcãs...
— Seja lá o que se leia! — explodiu Struan, sem se dirigir a ninguém, em particular.
— O mundo inteiro está louco, por Deus!
— O que há de errado, Tai-Pan? — perguntou Horatio, repentinamente despertado de seu devaneio cheio de ódio.
— O mundo inteiro está louco e você pergunta o que há de errado! Por que diabo as pessoas não param de se destruir, e não vivem em paz?
— Concordo plenamente — gritou Masterson, do outro lado da sala. — Plenamente. É um lugar terrível para se ter filhos, por Deus! O mundo inteiro está se arrebentando. Arrebentou-se. Era muito melhor antigamente, não? Que horror!
— Sim — disse Roach. — O mundo está andando depressa demais. O maldito Governo encontra-se desgovernado... como sempre. Por Deus, a gente pensa que eles aprendem, mas não aprendem nunca. Todo maldito dia a gente lê que o Primeiro-Ministro disse: “Temos todos de apertar os cintos.” Pelo amor de Deus, você já ouviu alguém declarar que podíamos afrouxar os cintos um pouquinho?
— Ouvi dizer que o imposto de importação sobre o chá vai dobrar — disse Masterson. — E, se aquele maníaco do Peel chegar a ganhar, o patife, com certeza vai criar um imposto sobre a renda! Aquela invenção do demônio.
Houve uma grita geral e Peel foi atacado por todos.
— O homem é um miserável anarquista! — disse Masterson.
— Tolice — disse Roach. — Não é uma questão de impostos, o problema é que há gente demais. O negócio é controlar a natalidade.
— O quê? — rugiu Masterson. — Não comece com essa idéia horrorosa e blasfema! Você é um anticristo, pelo amor de Deus?
— Não, por Deus! Mas estamos sendo engolidos pelas classes inferiores. Não estou dizendo que nós deveríamos controlar a natalidade, mas que eles deveriam, por Deus! A maioria dessa ralé é de malfeitores!
Struan atirou os jornais para um lado e foi para o Hotel Inglês. Era um prédio imponente, cheio de colunas, como o clube. Na barbearia, aparou e lavou o cabelo. Mais tarde, mandou chamar Svenson, o marinheiro sueco massagista. O velho retorcido esmurrou-o com mãos de aço e esfregou gelo sobre seu corpo todo, enxugando-o em seguida com uma toalha áspera, até sua carne arder.
— Por Lord Harry, Svenson, sou um homem novo.
Svenson sorriu, mas não disse nada. Sua língua fora arrancada por corsários no Mediterrâneo há muitos anos. Fez sinal para que Struan repousasse na mesa acolchoada e o cobriu de leve com cobertores, deixando-o a dormitar.
— Tai-Pan! — era Lo Chum.
Struan acordou instantaneamente.
— O patrão Culum?
Lo Chum abanou a cabeça e sorriu, desdentado.
— O senhor da saia comprida!
***
Struan seguiu o taciturno monge jesuíta ao longo das galerias cobertas em torno ao pátio interno, com seu belo jardim.
O relógio da catedral bateu as quatro horas.
O monge virou-se no final da galeria, e abriu uma grande porta de teca que dava para uma vasta ante-sala. As paredes eram cobertas de tapeçarias. Tapetes cobriam o chão de mármore gasto.
Bateu respeitosamente numa porta, na outra extremidade, e entrou num aposento. Imponente como um rei, Falarian Guineppa estava sentado numa cadeira de encosto alto, semelhante a um trono. Ele fez gestos dispensando o monge, que se curvou e saiu.
— Sente-se, por favor, senhor.
Struan sentou-se na cadeira indicada. Era ligeiramente mais baixa do que a do bispo e ele sentiu a força de vontade do homem se estendendo para dominá-lo.
— Mandou chamar-me?
— Pedi-lhe para vir ver-me, sim. Cinchona. Não existe nenhuma em Macau, mas creio que há alguma em nossa missão em Lo Ting.
— Onde fica isso?
— No continente. — O bispo endireitou uma dobra em seu traje carmim. — Cerca de cento e cinqüenta milhas noroeste. Struan levantou-se.
— Vou mandar alguém imediatamente.
— Já fiz isso, senhor. Por favor, sente-se. — O bispo estava solene. — Nosso emissário partiu ao amanhecer, com ordens de fazer um tempo recorde. Acho que conseguirá. Ele é chinês e vem daquela área.
— Quanto tempo acha que ele levará? Sete dias? Seis dias?
— Também estou preocupado com isso. Quantos ataques de febre já teve a moça?
Struan teve vontade de perguntar ao bispo como ele sabia a respeito de May-may, mas se conteve. Percebeu que as fontes para informação secreta dos católicos eram uma legião e, de qualquer maneira, a “moça” seria uma dedução simples para um homem tão astuto como o bispo.
— Uma. Ela começou a suar há dois dias, mais ou menos a essa hora.
— Então terá outro ataque amanhã, ou, com certeza, dentro de quarenta e oito horas. Levará pelo menos sete dias para o mensageiro chegar a Lo Ting e voltar... se tudo correr bem e não houver dificuldades imprevistas.
— Não creio que ela possa suportar mais dois ataques.
— Ouvi dizer que ela é jovem e forte. Deveria poder suportar oito dias.
— Ela está grávida de quatro meses.
— Isso é péssimo.
— Sim. Onde fica Lo Ting? Dê-me um mapa. Talvez eu possa reduzir esse prazo em um dia. — Nessa viagem, meus contatos são mil vezes mais felizes do que os seus — disse o bispo. — Talvez sejam sete dias. Tudo dependerá da vontade de Deus.
Sim, pensou Struan. Mil vezes. Queria ter o conhecimento que os católicos acumularam no curso dos séculos, através de constantes incursões à China. Que Lo Ting será esse? Pode haver cinqüenta, num raio de duzentas milhas.
— Sim — disse ele, afinal — tudo dependerá da vontade de Deus.
— É um homem estranho, senhor. Estou satisfeito de ter tido a oportunidade de conhecê-lo. Gostaria de tomar um cálice de Madeira?
— Qual o preço da casca de árvore? Se existir e se chegar a tempo e curar a enfermidade?
— Gostaria de tomar um cálice de Madeira?
— Obrigado.
O bispo tocou a sineta e, imediatamente, um criado de libré apareceu à porta, com uma bandeja de prata lavrada na qual se achavam a garrafa e os cálices.
— A uma melhor compreensão de muitas coisas, senhor. Eles beberam — e se mediram, reciprocamente.
— O preço, Reverendíssimo?
— Há muitas dúvidas, no momento. A resposta pode esperar. Mas duas coisas não podem. — O bispo saboreou seu vinho. — Madeira é um aperitivo perfeito. — Ele voltou à sua linha de raciocínio. — Estou gravemente preocupado com a Srta. Sinclair.
— Eu também — disse Struan.
— O Padre Sebastião é um médico maravilhoso. Mas ele me levou a acreditar que, se a senhorita não for espiritualmente ajudada, poderá matar-se.
— Não, Mary, não! Ela é muito forte. Não faria uma coisa dessas.
Falarian Guineppa juntou os dedos finos. Um raio de sol liquefez o grande anel de rubi.
— Se fosse inteiramente confiada ao Padre Sebastião, e à Igreja de Cristo, poderíamos transformar sua maldição em bênção. Seria a melhor coisa para ela. Acredito, com todo meu coração, que esta é a única solução real. Mas,— se não for possível, antes de ter alta eu passarei a responsabilidade sobre ela a alguém que a aceite.
— Eu aceito.
— Muito bem, mas eu não acho que seja sensato, senhor. Mesmo assim, sua vida e sua alma... e a dela... estão também nas mãos de Deus. Rezo para que o senhor e ela recebam a bênção da compreensão. Muito bem. Antes de ela partir, farei tudo ao meu alcance para salvar sua alma... mas, logo que estiver em condições de partir, eu mandarei notícias.
O relógio da catedral bateu cinco horas.
— Como está o ferimento do Arquiduque Zergeyev? As sobrancelhas de Struan se franziram.
— Essa é a segunda coisa que não pode esperar?
— Para vocês britânicos, talvez.
Falarian Guineppa abriu uma gaveta e tirou uma pasta de couro para documentos bem fechada.
— Pediram-me para lhe dar isto, com prudência. Parece que certas autoridades diplomáticas estão muito preocupadas com a presença do arquiduque na Ásia.
— As autoridades da Igreja?
— Não, senhor. Pediram-me para lhe dizer que pode, se quiser, passar adiante os documentos. Pelo que soube, alguns selos garantem sua validade. — Um fraco sorriso passou-lhe pelo rosto. — A pasta também está selada.
Struan reconheceu o selo do escritório do governador-geral.
— Por que me dariam segredos diplomáticos? Há canais diplomáticos, o Sr. Monsey está a meia milha daqui e Sua Excelência se encontra em Hong Kong. Ambos se acham bem familiarizados com o protocolo.
— Eu nada lhe estou dando. Simplesmente, faço o que me pediram para fazer. Não se esqueça, senhor, por mais que eu, pessoalmente, deteste o que representa, o senhor é um poder na Corte de St. James e suas ligações comerciais são mundiais. Vivemos em tempos arriscados, e Portugal e Grã-Bretanha são antigos aliados. A Grã-Bretanha tem sido uma boa amiga de Portugal, e é sensato os amigos ajudaram-se mutuamente, não? Talvez seja apenas isso.
Struan pegou a pasta oferecida.
— Mandarei notícia logo que voltar o mensageiro enviado a Lo Ting. — Falarian Guineppa disse. — A qualquer hora. Gostaria que o Padre Sebastião examinasse a senhora?
— Não sei — disse Struan, levantando-se. — Talvez. Vou pensar a respeito, Reverendíssimo.
— Como desejar, senhor. — O bispo hesitou. — Vá com Deus.
— Fique com Deus, Reverendíssimo — respondeu Struan.
***
— Olá, Tai-Pan — disse Culum, com a cabeça latejando e a língua com gosto de esterco seco.
— Olá, rapaz. — Struan depôs a pasta ainda sem abrir, que o queimara durante todo o caminho para casa. Foi até o aparador e se serviu de um conhaque forte.— Comida, mestre Culum? — perguntou Lo Chum, todo satisfeito. — Porco? Batata? Um caldo de carne? Hein?
Culum abanou a cabeça, fracamente, e Struan dispensou Lo Chum.
— Tome isto — disse ele, dando o conhaque a Culum.
— Não posso — disse Culum, nauseado.
— Beba.
Culum engoliu o conhaque. Sufocou e logo bebeu mais do chá que havia ao lado da cama. Ficou deitado de costas, com as têmporas latejando.
— Gostaria de falar? Dizer-me o que aconteceu?
O rosto de Culum estava cinzento e o branco de seus olhos avermelhado.
— Não consigo lembrar de nada, por Deus. Sinto-me muito mal.
— Comece do princípio.
— Eu estava jogando uíste com Gorth e alguns poucos amigos nossos — disse Culum, com um esforço. — Lembro-me de ter ganho cerca de cem guinéus. Bebemos bastante. Mas eu me recordo de ter posto os ganhos no bolso. Depois... bom, o resto é um vazio.
— Lembra-se para onde foi?
— Não. Não me lembro direito. — Ele bebeu mais chá, com muita sede, e enxugou o rosto com as mãos, tentando afastar a dor. — Ah, meu Deus, eu me sinto terrível.
— Lembra-se para que bordel você foi?
Culum abanou a cabeça.
— Você tem um bordel para o qual vai regularmente?
— Bom Deus, não!
— Não precisa se exaltar, rapazinho. Você esteve num bordel... isto é claro. Foi “depenado” é claro. Sua bebida foi drogada... é claro.
— Fui drogado?
— É o truque mais velho do mundo. Por isso, eu lhe disse para nunca ir a uma casa não recomendada por um homem em que você pudesse confiar. É a primeira vez que vai a uma casa em Macau?
— Sim, sim. Bom Deus, eu fui drogado?
— Agora, use sua cabeça. Pense, rapaz! Lembra-se da casa?
— Não, nada. Tudo um vazio.
— Quem escolheu a casa para você, hein?
Culum se sentou na cama.
— Estávamos bebendo e jogando e eu estava, ah... bastante bêbado. Então, ah... todos começaram a falar de... de garotas. E, ah... — ele olhou para Struan, expondo sua vergonha e seu tormento — eu estava — ah... com a bebida... eu me senti aceso por uma garota. Decidi, então, que tinha... de ir para um bordel.
— Não há perigo nisso, rapaz. Quem lhe deu o endereço?
— Acho... não sei... mas acho que todos me deram um endereço. Escreveram os endereços... ou me disseram os endereços, não consigo lembrar. Eu me lembro de ter saído do clube. Havia uma cadeira à espera e eu entrei. Espere um minuto... eu me lembro agora! Eu disse a ele para me levar ao “E & F”!
— Nunca iriam “depenar” você ali, rapaz. E nem colocar uma droga em sua bebida. E nem trazer você de volta desse jeito. Prezam mais a reputação da casa.
— Não. Tenho certeza. Foi o que eu disse ao homem. Sim. Tenho absoluta certeza!
— Por que caminho conduziram você? Pelo Chinatown?
— Não sei. Parece que me lembro... não sei.
— Você disse que se sentia “aceso”. Como assim?
— Bom, era como... Eu me lembro de me sentir muito quente e, bom... pela morte de Cristo, eu estou frenético de desejo por Tess e com a bebida e tudo... Não tenho paz, então... então eu fui para o bordel... — As palavras se arrastavam. — Ah, Deus, minha cabeça está explodindo. Por favor, deixe-me sozinho.
— Você levou protetores?
Culum abanou a cabeça.
— Aquele fogo. Aquela necessidade. Foi diferente, a noite passada?
Outra vez Culum abanou a cabeça.
— Não. Tem sido a mesma coisa há semanas, mas... bom, de certa maneira, suponho que sim... bom, não, não sei bem. Eu estava duro como ferro e meus rins ardiam como fogo e eu precisava de uma garota, e... não sei! Deixe-me sozinho! Por favor ... desculpe, mas por favor...
Struan foi até a porta.
— Lo Chum... ahhhh!
— Sim, patrão?
— Vá à casa de Chen Sheng. Traga médico da moça doente aqui, depressa! Entendido?
— Muito entendido! — Lo Chum disse, em tom rabugento. — Já tem bom dotô lá embaixo para a doença da cabeça doendo e tudo que é doença. O patrãozinho é como Tai-Pan, não se preocupe!
No andar inferior, Struan conversou com o médico, através de Lo Chum. E o médico disse que enviaria os remédios e alimentos especiais imediatamente, aceitando um pagamento generoso.
Struan voltou para o andar de cima.
— Consegue lembrar alguma outra coisa, rapaz?
— Não, nada. Desculpe. Eu não queria decepcioná-lo.
— Escute, rapaz! Vamos, Culum, é importante!
— Por favor, papai, não fale tão alto — disse Culum, abrindo os olhos desamparadamente. — O quê?
— Parece que fizeram você tomar um afrodisíaco.
— O quê?
— Sim, afrodisíaco. Há dúzias de afrodisíacos que poderiam ser colocados dentro de uma bebida.
— Impossível. Era apenas a bebida e minha necessidade... necessidade... é impossível!
— Só há duas explicações. Primeiro, que os cules levaram você para uma casa... e não foi a sede do “E & F” em Macau... onde eles conseguem mais dinheiro por um cliente rico e uma parcela do roubo. Lá, a moça ou as moças drogaram você, roubaram-no e o mandaram de volta. Para seu bem, espero que tenha sido só isso o que aconteceu. A outra possibilidade é a de que um de seus amigos tenha dado o afrodisíaco a você no clube, e combinado para que a cadeira ficasse à sua espera... e o levasse a uma determinada casa.
— Não faz sentido! Por que alguém faria isso? Por cem guinéus, um anel e um relógio? Um de meus amigos? Isso é loucura.
— Mas, vamos imaginar que alguém o odeie, Culum. Vamos dizer que o plano fosse colocar você com uma moça doente... com sífilis.
— O quê?
— Sim. Temo que tenha acontecido isso.
Culum morreu, por um instante.
— Você só está tentando me assustar.
— Por Deus, meu filho, não. Mas é uma possibilidade muito concreta. Mais provável do que a outra, porque você foi trazido de volta.
— Quem faria isso comigo?
— Essa pergunta você mesmo tem de responder, rapaz. Mas, mesmo que tenha sido o que aconteceu, nem tudo está perdido. Ainda. Mandei buscar remédios chineses. Você precisa beber tudo, sem faltar nada.
— Mas não existe cura para a sífilis!
— Sim. Quando a doença está instalada. Mas os chineses acreditam que se pode matar o veneno da sífilis, ou aquilo que a provoca, quando se toma precauções imediatas para purificar o sangue. Anos atrás, quando vim para cá pela primeira vez, a mesma coisa aconteceu comigo. Aristotle me encontrou numa sarjeta, no quarteirão chinês, mandou buscar um médico chinês e tudo acabou bem. Foi assim que o encontrei... e o motivo pelo qual é meu amigo há tanto tempo. Não posso ter certeza de que a casa ou a moça estavam contaminadas ou não, mas nunca peguei a sífilis.
— Ah, que Deus me ajude!
— Sim. Não teremos certeza por uma semana. Se, até daqui a uma semana, não houver inchação, dor ou supuração... desta vez você escapou. — Viu o terror nos olhos do filho e foi dominado pela compaixão. — Você tem uma semana do inferno em sua frente, rapazinho. Esperando para saber. Sei como é isso... procure não se torturar muito. Ajudarei no que puder. Como Aristotle me ajudou.
— Eu me matarei. Eu me matarei se... ah, Deus, como posso ter sido tão tolo? Tess! Ah, Deus, é melhor dizer...
— Você não vai fazer uma coisa dessas! Diga a ela que foi atacado por assaltantes, no caminho de casa. Nós daremos queixa como tal. Diga a mesma coisa a seus amigos. Que você acha que deve ter bebido demais... depois de estar com a moça. Que não consegue lembrar de nada, a não ser que se divertiu muito e acordou lá. E, durante a semana, comporte-se da maneira habitual.
— Mas Tess! Como é que eu posso...
— É o que você vai fazer, rapazinho! É o que vai fazer, por Deus!
— Não posso, papai, é simplesmente imp...
— De maneira alguma você contará a qualquer pessoa a respeito dos remédios chineses. Não vá a nenhum bordel até termos certeza, e não toque em Tess, até se casarem.
— Estou com tanta vergonha.
— Não precisa ter, rapaz. É difícil ser jovem. Mas, neste mundo, o homem deve ter cuidado com as costas. Há uma porção de cães loucos por aí.
— Quer dizer que foi Gorth?
— Não estou dizendo nada. Acha que foi?
— Não, claro que não. Mas é isso que você está pensando, não?
— Não esqueça, você tem de agir de maneira normal, senão perderá Tess.
— Por quê?
— Acha que Liza e Brock iriam permitir que se casasse com Tess, se descobrissem que você é tão imaturo e estúpido a ponto de ir a bordéis em Macau bêbado... e a um bordel desconhecido, encher-se de poções de amor e ser roubado? Se eu fosse Brock, diria que você não tem bom senso suficiente para ser meu genro!
— Desculpe.
— Descanse um pouco, rapaz. Voltarei mais tarde.
E, no caminho todo, até à casa de May-may, Struan ficou decidindo sobre a maneira de matar Gorth — se Culum tivesse sífilis. Da maneira mais cruel. Sim, ele pensou, friamente, eu posso ser muito cruel. Este não vai ser um assassinato simples — e nem rápido. Por Deus!
***
— Você está com um aspecto terrível, querido Culum — disse Tess. — Precisa mesmo ir dormir cedo.
— Sim.
Passeavam ao longo da praia, na noite tranqüila. Ele acabara de jantar e tinha a cabeça desanuviada, mas sua agonia era quase insuportável.
— O que há? — ela perguntou, sentindo o tormento de Culum.
— Nada, querida, bebi demais, foi só isso. E aqueles assaltantes não eram lá muito gentis. Por Deus, juro que não beberei durante um ano. — Por favor, meu Deus, não deixai que nada aconteça. Fazei com que a semana passe depressa, e nada aconteça.
— Vamos voltar — ela disse e, pegando firmemente no braço dele, encaminhou-o para a residência dos Brocks. — Uma boa noite de descanso vai fazer muito bem a você.
— Ela se sentia muito maternal e não podia deixar de se sentir feliz, ao ver que ele estava quase desamparado. — Estou satisfeita por você repudiar a bebida por um ano. Meu pai se embriaga terrivelmente, algumas vezes... e Gorth, puxa vida, muitas vezes vi ele embrutecido.
— Eu o vi — disse ele, corrigindo-a.
— Eu o vi embrutecido. Ah, estou tão satisfeita por nos casarmos logo.
Que possível razão teria Gorth para fazer isso?, Culum perguntou a si mesmo. O Tai-Pan deve estar exagerando. Deve estar. Um criado abriu a porta e Culum levou Tess para a sala de visitas.
— De volta tão cedo, amores? — perguntou Liza.
— Estou um pouco cansada, mamãe.
— Bom, já vou indo — disse Culum. — Verei você amanhã. Vai para o jogo de críquete?
— Ah, sim? Vamos, mamãe!
— Quem sabe não quer nos acompanhar, caro Culum?
— Obrigado. Gostaria, sim. Eu as verei amanhã. — Culum beijou a mão de Tess. — Boa-noite, Sra.Brock.
—Boa-noite, rapaz.
—Culum virou-se para a porta, justamente quando Gorth entrava.
— Ah, olá, Gorth.
— Olá, Culum. Eu estava esperando você. Vou tomar uma bebida no clube. Por que não vem também?
— Hoje à noite não, obrigado. Estou exausto. Noites demais dormindo tarde. E há o críquete, amanhã.
— Uma bebida não lhe fará mal. Depois de apanhar, é a melhor coisa.
— Hoje à noite não, Gorth. Mas obrigado. Verei Você amanhã.
— Como quiser, amigo velho. Mas tome conta de você mesmo. — Gorth fechou atrás de si a porta da frente.
— Gorth, o que aconteceu a noite passada? — Liza o examinou.
— O pobre rapaz atravessou um mau pedaço. Saí do clube, como lhe disse, antes dele, então não sei. O que ele contou a Tess?
— Que bebeu muito e foi atacado por bandoleiros. — Ela riu. — Pobre Culum, acho que vai se curar do demônio da bebida por um longo tempo.
— Quer ir pegar meus charutos, Tess, querida? — perguntou Gorth. — Estão na cômoda.
— Pois não — disse Tess, e saiu correndo.
— Ouvi dizer — falou Gorth — ouvi dizer que nosso Culum andou saindo fora da linha.
— O quê? — Liza parou de costurar.
— Não tem perigo — disse Gorth. Talvez eu não devesse ter contado. Não tem perigo quando o homem é cuidadoso, por Deus! Sabe do que um homem gosta.
— Mas ele vai casar com a nossa Tess! E ela não vai casar com um devasso.
— Sim. Acho que vou ter uma conversa com o rapaz. É melhor ter cuidado em Macau, não há dúvida quanto a isso. Se papai estivesse aqui, seria diferente. Mas tenho de proteger a família... e o pobre rapaz de suas fraquezas. Não vá dizer nada a respeito disso, hein?
— Claro que não. — Liza detestava aquilo que tornava os homens masculinos. Por que não podiam controlar-se? Talvez seja melhor eu pensar outra vez a respeito desse casamento. — Tess não vai casar com um devasso. Mas Culum não é assim, de jeito nenhum. Tem certeza do que está dizendo?
— Sim — disse Gorth. — Pelo menos, foi o que alguns dos rapazes disseram.
— Eu queria que seu pai estivesse aqui.
— Sim — disse Gorth. E depois acrescentou, como se estivesse tomando uma decisão súbita. — Acho que vou visitar Hong Kong por um ou dois dias, a fim de conversar com papai. É melhor. E, depois, falarei com o próprio Culum. Partirei com a maré.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
Struan terminou de ler a última página da tradução inglesa dos documentos russos. Lentamente, ajeitou as páginas, recolocou-as na pasta e deixou que esta permanecesse em seu colo.
— Que há? — perguntou May-may. — Por que está tão fantasticamente silencioso, hein? — Ela estava recostada na cama, sob um mosquiteiro, com seu vestido de seda dourada tornando-lhe a pele mais branca.
— Nada, garota.
— Deixe os negócios para lá e converse comigo. Há uma hora, você parece um professor.
— Deixe-me pensar por cinco minutos. Depois, conversarei com você, hein?
— Sim — ela disse. — Se eu não estivesse doente, estaríamos juntos na cama o tempo todo.
— Claro que sim, garota. — Struan foi até à porta do jardim e ficou olhando o céu noturno. As estrelas estavam brilhantes e tudo fazia prever bom tempo. May-may ajeitou-se na cama e ficou a observá-lo. Ele está parecendo muito cansado, pensou. Pobre Tai-Pan, tantos problemas.
Ele lhe contara a respeito de Culum e seus temores por ele, mas nada com relação a Gorth. Dissera também que a casca de árvore que curava a febre chegaria dentro de poucos dias. E lhe contara a respeito de Mary, maldizendo Ah Tat.
— Louca assassina. Ela deveria ter visto o que estava fazendo. Se Mary me cantasse, ou a você, poderíamos tê-la mandado para ter o bebê em segurança,
secretamente. Para a América, ou alguma outra parte. O bebê poderia ter sido adotado e...
— E Glessing? — ela perguntou. — Será que ainda teria casado com ela? Nove meses depois?
— Isso acabou, de qualquer jeito!
— Quem é o pai? — May-may perguntou.
— Ela não me contaria — disse Struan, e May-may sorriu para si mesma. — Pobre Mary — acrescentou. — Agora, a vida dela acabou.
— Bobagem, Tai-Pan. O casamento pode realizar-se se Glessing e Horatio jamais souberem.
— Você perdeu a cabeça? Claro que tudo isso acabou... o que você diz é impossível. Desonesto, terrivelmente desonesto.
— Sim. Mas o que jamais é sabido não tem importância, e a razão para esconder é boa, e não má, pode ter certeza.
— Como ele jamais saberá, por Deus? Hein? Com certeza, descobrirá. Certamente, vai saber que ela não é virgem.
Há maneiras, Tai-Pan, May-may pensou. Maneiras de enganar. Vocês homens são tão simplórios em relação a certas coisas. As mulheres são muito mais espertas a respeito da maioria das coisas importantes.
E ela resolveu mandar alguém a Marr-rry, capaz de explicar tudo que era necessário e, assim, acabar com essa tolice suicida. Quem? Obviamente, a Irmã Mais Velha, a terceira esposa de Chen Sheng, que outrora estivera num bordel e sabia, com certeza, esses segredos. Vou mandá-la amanhã. Ela saberá o que dizer a Marr-rry. Então Marr-rry não é mais problema. Com pagode. Mas, e Culum, Gorth, e Tess? Em breve, não haverá problema, com o assassinato. E o problema de minha febre? Este será resolvido de acordo com meu pagode. Todas as coisas são resolvidas de acordo com o pagode, então por que se preocupar? É melhor aceitar. Tenho pena de você, Tai-Pan. Você pensa tanto e planeja tanto e tenta eternamente mudar o pagode, de acordo com seus caprichos, mas não é assim, é?, ela perguntou a si mesma. Mas, decerto, ele faz apenas o que você faz, o que todos os chineses fazem. Ri do destino e do pagode e dos deuses e tenta usar homens e mulheres para executar seus objetivos. E mudar o pagode. Sim, claro que isso está certo. De muitas maneiras, Tai-Pan, você é mais chinês do que os chineses.Afundou mais na coberta perfumada e esperou que Struan conversasse com ela.
Struan, entretanto, estava completamente concentrado no que soubera através dos documentos da pasta.
Os documentos incluíam uma cópia traduzida de um relatório secreto preparado pelo Tzar Nicolau I, em julho do ano passado, 1840, e continha, o que era incrível, mapas das ilhas entre a Rússia e a China. Só os mapas, os primeiros que Struan vira, tinham um valor incalculável. Havia também uma análise das implicações dos documentos.
O relatório secreto fora preparado pelo Príncipe Tergin, chefe da Comissão de Planejamento do Ministério de Relações Exteriores. Dizia:
“É nossa opinião, baseada em dados, que dentro de meio século o Tzar governará do Báltico ao Pacífico, dos mares gelados do norte até o Oceano Indico, e estará em posição de dominar o mundo se a seguinte estratégia for adotada, dentro dos próximos três anos.
“A chave para a dominação do mundo é a Ásia, e mais a América do Norte. A América do Norte está quase em nossas mãos. Se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos nos derem dez anos de liberdade, na parte russa da América, o Alasca, toda a América do Norte será nossa.
“Nossa posição ali é sólida e amistosa. Os Estados Unidos de maneira alguma consideram nossa vasta extensão territorial nas terras desérticas do norte como uma ameaça. A consolidação do Alasca até nosso ‘forte comercial’ mais ao sul, ao norte da Califórnia — e de lá, por terra, até o Atlântico — pode ser realizada pelo método habitual: emigração imediata, em vasta escala. A maior parte do oeste dos Estados Unidos e todo leste do Canadá, com exceção de uma pequena parte, estão atualmente quase despovoados. Portanto, o volume de nossa emigração para os ermos do norte pode ser mantido em segredo — e deve ser. De lá, os emigrantes, que seriam nossas valentes tribos guerreiras eurasiáticas — uzbeks, turcos, siberianos, kirghiz, tardzhiks e uigurs — muitas das quais consistiriam, deliberadamente, em povos nômades, abrir-se-iam num leque e reivindicariam toda a terra, quase à vontade.
“Devemos manter relações cordiais com a Inglaterra e os Estados Unidos, durante os próximos dez anos. Por essa época, a emigração terá tornado a Rússia a mais viril potência européia e nossas tribos — que, outrora, formaram as hordas de Tamerlão e Gêngis Khan — armadas com equipamento moderno e comandadas por russos podem, segundo nossos desejos, empurrar os anglo-saxões para o mar.” Mas, mil vezes mais importante — a Ásia. Podemos ceder a América, nunca a Ásia.
“A chave para a Ásia é a China. E a China fica aos nossos pés. Temos quase cinco mil milhas de terra contínua de fronteira com o Império Chinês. Devemos controlar a China, ou jamais estaremos em segurança. Não podemos nunca permitir que ela se torne forte ou seja dominada por outra grande potência, caso contrário ficaremos presos numa armadilha entre Leste e Oeste e poderemos ser forçados a entrar em guerra nas duas frentes. Nossa política para a Ásia é axiomática: a China deve ser mantida fraca, vassala e sob a esfera russa de influência.
“Só uma potência — a Grã-Bretanha — se interpõe entre nós e o sucesso. Se puder ser impedida, através da astúcia ou de pressão, de adquirir e consolidar uma ilha-fortaleza ao largo da China, a Ásia será nossa.
“Claro, não ousamos alienar nossa aliada Grã-Bretanha, nesta oportunidade. A França, a Polônia, a Prússia e os Habsburgos não estão, de maneira alguma, satisfeitos com a détente dos Dardanelos, como também a Rússia, e devemos permanecer em guarda constante contra suas contínuas hostilidades. Sem o apoio britânico, nosso território sagrado estaria aberto a uma invasão. Contanto que os britânicos sustentem sua posição declarada na China — que eles ‘meramente desejem estabelecer relações comerciais e armazéns comerciais abertos a uma participação igual de todas as nações ocidentais’ — poderemos avançar para Sinkiang, Turquestão e Mongólia, e controlar as vias terrestres para a China. (Já dominamos as rotas de invasão, facilmente alcançáveis a partir da passagem de Khyber e de Kashmir e, em seguida, entrando na índia britânica.) Caso se filtre alguma notícia sobre nossas conquistas territoriais, nossa posição oficial será a de que ‘a Rússia está meramente dominando tribos selvagens hostis em nosso interior’. Dentro de cinco anos, deveremos estar colocados nos umbrais do coração da China, a noroeste de Pequim. Então, através de simples pressão diplomática, estaremos em posição de forçar conselheiros do Imperador Manchu e, através dele, controlar o Império Chinês, até a ocasião em que possa ser convenientemente repartido em Estados vassalos. A hostilidade entre os senhores manchus e os súditos chineses é muito favorável a nós e, é claro, continuaremos a encorajá-la.
“Custe o que custar, devemos encorajar e assistir os interesses comerciais britânicos no sentido de se instalarem nos portos continentais da China, onde seriam contidos pela pressão chinesa direta que nós, no devido tempo, controlaríamos diplomaticamente. E, a todo custo, precisamos desencorajar a Inglaterra de fortificar e colonizar qualquer ilha — como fizeram em Cingapura, Malta, Chipre (ou uma posição inexpugnável, como Gibraltar) — que não estaria sujeita à nossa pressão e serviria como bastião permanente para seu poderio militar e naval. Seria vantajoso iniciar relações comerciais imediatas e próximas com firmas escolhidas naquela área.
“A pedra angular para a nossa política externa deve ser ‘deixemos a Inglaterra dominar os mares e as rotas comerciais, e ser a primeira nação industrial da terra. Mas que a Rússia domine a terra’. Pois, uma vez garantida a terra — e é nossa herança sagrada, um direito dado por Deus, civilizar a terra — os mares se tornarão russos. E, assim, o Tzar de todas as Rússias dominará o mundo.”
Zergeyev poderia facilmente ser uma chave para o plano, pensou Struan. Será ele o homem enviado para descobrir a nossa força na China? Para estabelecer “relações comerciais com firmas escolhidas”? Não fará parte de sua missão informar, em primeira mão, sobre as atitudes americanas diante do Alasca russo? Será ele o homem enviado para preparar o Alasca russo para as hordas? Lembre-se de que ele lhe disse: “A terra é nossa, o mar é de vocês!”
O comentário sobre esse relatório era igualmente ousado e penetrante: “Com base neste documento secreto e nos mapas anexos, cuja validade não deve ser questionada, podem ser tiradas certas conclusões de longo alcance:
“Primeira, com relação à estratégia norte-americana: Deve-se notar que, embora os Estados Unidos estejam gravemente preocupados com a atual disputa de fronteiras entre o país e o Canadá britânico, não deseja, segundo parece, adquirir mais território no continente norte-americano. E, devido às relações amistosas existentes entre os Estados Unidos e a Rússia — cuidadosamente alimentadas, segundo se acredita, para alcançar esse objetivo — o sentimento político dominante, atualmente, em Washington, é de que o envolvimento russo no Alasca e para o sul, pela costa oeste, não atinge a soberania do país. Em suma, os Estados Unidos da América não invocarão a Doutrina Monroe contra a Rússia e assim — espantosamente — deixarão sua porta dos fundos aberta para uma potência estrangeira, contrariando seus óbvios interesses. E, seguramente, contrariando os interesses do Canadá britânico. Se quinhentos mil membros de tribos eurasiáticas forem introduzidos, discretamente, no norte, como é perfeitamente possível, com certeza os ingleses e americanos ficarão numa posição completamente insustentável.” É preciso notar, além disso, que embora o atual Tzar sinta desprezo pela América russa, este território constitui uma chave russa para o continente. E, se chegar a ocorrer uma guerra civil nos Estados Unidos, relativa à questão dos escravos, como realmente parece inevitável, essas tribos russas estariam em posição de dominar o conflito. Isto, certamente, levaria a Inglaterra e a França à guerra. As hordas nômades russas, com curtas linhas de comunicação por sobre o Mar de Bhering e uma capacidade primitiva de viver ao largo da terra, teriam uma nítida vantagem. E, como a maior parte das terras ocidentais e a sudoeste é escassamente povoada, esses povoadores — ou “guerreiros” — poderiam abrir caminho para o sul com relativa facilidade.
“Assim, se a Inglaterra quiser manter sua posição como potência mundial e anular o constante desejo da Rússia de dominar o mundo, deve primeiro eliminar a ameaça do Alasca russo ao Canadá e aos débeis Estados Unidos. Deve persuadir este país, por todos os meios a seu alcance, a invocar a Doutrina de Monroe para expulsar a ameaça russa. Ou deve exercer pressão diplomática e comprar este território, ou tomá-lo através da força. Pois, a menos que a Rússia seja rapidamente contida, toda a América do Norte, dentro de meio século, estará sob seu domínio.
“Em segundo lugar, a Inglaterra deve manter absoluta predominância na China. É necessário verificar a extensão de território já conquistado pelos russos até o outro lado dos Urais e ver até onde eles já penetraram em terras que se encontram frouxamente sob o domínio histórico do Imperador chinês.” Com uma série de mapas, datas e lugares, cópias traduzidas de tratados, todo o panorama do deslocamento russo para leste estava documentado.
“Durante os últimos trezentos anos (desde 1552), exércitos moscovitas trabalharam firmemente em direção a leste, em sua procura de uma fronteira ‘definitiva’! Por volta de 1640, Okhotsk; no Mar de Okhotsk, norte da Manchúria, no Oceano Pacífico, foi alcançada. Imediatamente, esses exércitos moveram-se para o sul e, pela primeira vez entraram em conflito com hordas sino-manchus.
“O Tratado de Nerchinsk, em 1689, assinado entre a Rússia e a China, fixava a fronteira norte entre os dois países ao longo do Rio Argun e das Montanhas Stanovoi. Toda a Sibéria, a leste da Manchúria, era cedida à Rússia. Até então, esta linha era uma fronteira russa ‘definitiva’ ao norte da China.
“Mais ou menos nessa ocasião, em 1690, um russo chamado Zaterev foi enviado por terra a Pequim, como embaixador. A caminho, ele examinou os meios de uma possível invasão do incrivelmente rico coração da China. A melhor rota que descobriu seguia o corredor natural do Rio Selenga, que se dirige para as planícies ao norte de Pequim. A chave para esta rota é a posse do Turquestão, da Mongólia Externa e da província chinesa de Sinkiang.
“E, como declarou o relatório do Príncipe Tergin, os exércitos russos já dominam a Eurásia, ao norte da Manchúria, em direção ao Pacífico, e já se encontram nas fronteiras de Sinkiang, do Turquestão e da Mongólia Externa. É desta direção que, adequadamente, partirá a invasão russa à China, e continuará a partir, por um longo tempo.”
O relatório acrescentava: “A menos que a Grã-Bretanha mantenha uma atitude firme de que a China e a Ásia estão sob sua esfera de influência, os conselheiros russos estarão em Pequim dentro de uma geração. Os exércitos russos controlarão todas as rotas de acesso fáceis procedentes do Turquestão, Afeganistão, Kashmir, para a Índia britânica, e todo Império Britânico Indiano pode ser invadido e engolido à vontade.
“Se a Inglaterra quiser continuar como potência mundial, é vital que a China seja transformada em baluarte contra a Rússia. É vital que os avanços russos sejam detidos na área de Sinkiang. É vital que uma fortaleza britânica dominante seja localizada na China, porque, sozinha, a China não tem capacidade de defesa. Se a China for deixada fenecer em seus hábitos milenares e não for ajudada a emergir na era moderna, será conquistada facilmente pela Rússia e o equilíbrio da Ásia destruído.
“Em conclusão: É lamentável que Portugal não seja suficientemente forte para deter a fome de terra dos russos. Nossa única esperança é que nossa antiga aliada, a Inglaterra, impeça, pela superioridade e pela força, o que parece inevitável.
“Só por esta razão preparamos ilegalmente este dossiê, sem nenhuma permissão, oficial ou não. O relatório do Príncipe Tergin e os mapas foram adquiridos em São Petersburgo, e chegaram a mãos não-oficiais e amistosas em Portugal. E delas passaram às nossas.
“Pedimos a Sua Eminência — que não tem conhecimento de qualquer destas informações — para colocar esses documentos nas mãos do Tai-Pan da Casa Nobre, que garantirá, segundo acreditamos, sua chegada ao destino correto, permitindo sejam tomadas medidas, antes de ser demasiado tarde. E, como medida de nossa sinceridade, assinamos nossos nomes, rezando para que nossas carteiras e talvez as nossas vidas estejam em mãos igualmente seguras.”
O relatório era assinado por dois peritos portugueses em política externa, de menor importância, que Struan conhecia ligeiramente.Ele atirou a ponta de seu charuto no jardim e espiou-a consumir-se. Sim, disse a si próprio, é inevitável. Mas não, se conservarmos Hong Kong. Maldito Lord Cunnington.
Como usar as informações? É fácil. Logo que eu voltar a Hong Kong, uma palavra nos ouvidos de Longstaff e de Cooper. Mas, o que ganho com isso? Por que eu próprio não vou para meu país? Este tipo de conhecimento representa uma oportunidade única na vida. E Zergeyev? Será que conversaremos sobre “assuntos específicos”, agora? Devo negociar com ele?
— Tai-Pan?
— Sim, garota?
— Quer fechar a porta para o jardim? Estou ficando com muito frio.
A noite estava quente.
CAPÍTULO TRINTA E SETE
Calafrios convulsionavam May-may. Calores a consumiam. Durante o delírio, May-may sentiu seu útero romper-se e gritou. A vida em formação deixou-a e levou-lhe tudo, menos uma simples centelha de sua alma e força. Então, a febre cedeu e o suor livrou-a do pesadelo. Durante horas, ela oscilou à beira da morte. Mas seu pagode determinou que voltasse.
— Olá, Tai-Pan. — Sentia o contínuo vazamento do seu útero. — É mau pagode perder bebê — sussurrou.
— Não se preocupe. Procure só melhorar. A qualquer momento a casca de árvore cinchona vai chegar. Sei que vai.
May-may reuniu suas forças e deu de ombros, com um vestígio de seu antigo ar imperioso.
— Malditos sejam os homens de saias compridas. Como pode um homem correr de saias, hein?
Mas o esforço esgotou-a e ela deslizou para a inconsciência. Dois dias depois, parecia muito mais forte.
— Bom-dia, garota. Como se sente hoje?
— Fantasticamente bem — disse May-may. — Está um belo dia, hein? Viu Marrrry?
— Sim. Ela parece muito melhor. Uma mudança incrível. Quase miraculosa!— Por que uma mudança tão boa, hein? — ela perguntou, inocentemente, sabendo que a Irmã Mais Velha fora vê-la, na véspera.
— Não sei — ele disse. — Vi Horatio, pouco antes de partir. Ele trouxe algumas flores. Por falar nisso, ela lhe agradeceu pelas coisas que você lhe enviou. O que foi?
— Mangas e um pouco de chá de ervas que meu médico recomendou. Ah Sam foi lá, há dois ou três dias. — May-may descansou por um momento. Mesmo falar era um grande esforço para ela. Precisava ficar muito forte, aquele dia, disse a si própria com firmeza.
Há muito a fazer hoje, e amanhã chegará a febre outra vez. Ah, bem, pelo menos agora não há problemas para Marr-rry — ela está salva. Tão fácil, agora que a Irmã Mais Velha explicou a ela o que todas as mocinhas nos bordéis aprendem — que, com cuidado e meticuloso fingimento, lágrimas de fingida dor e medo, e as modestas manchas finais, denunciadoras, cuidadosamente colocadas, uma moça pode, se necessário, ser virgem dez vezes, para dez homens diferentes.
Ah Sam entrou, prosternou-se e murmurou alguma coisa para ela. May-may se alegrou.
— Ah, muito bom, Ah Sam! Você pode ir. — E, depois para Struan: — Tai-Pan, preciso de alguns taéis de prata, por favor.
— Quantos?
— Muitos. Estou pobre. Sua velha mãe gosta muito de você. Por que perguntar essas coisas?
— Se você se apressar e melhorar, eu lhe darei todos os taéis de que você precisar.
— Você me dá grande prestígio, Tai-Pan. Grande prestígio. Vinte mil taéis pelo remédio para a cura... Ayeee yah, valho para você tanto quanto uma imperatriz.
— Gordon lhe contou?
— Não. Eu estava escutando, à porta. Claro! Acha que sua velha mãe gosta de não saber o que o médico diz e o que você diz, hein? — ela deu uma olhada para a porta.
Struan virou-se e viu uma linda jovem curvando-se, graciosamente. Seu cabelo estava enrolado num espesso coque escuro no alto de sua bela cabeça, e enfeitado com ornamentos de jade e flores. Seu rosto em forma de amêndoa era como o mais puro alabastro.
— Essa é Yin-hsi — disse May-may. — Ela é minha irmã.
— Não sabia que você tinha irmã, garota. Ela é muito bonita.
— Sim, mas... bom, ela não é realmente irmã, Tai-Pan. As senhoras chinesas muitas vezes chamam umas às outras de “irmã”. É cortesia. Yin-hsi é seu presente de aniversário.
— O quê?
— Eu a comprei para seu aniversário.
— Você está fora de si?
— Ah, Tai-Pan, você é muito exasperante, algumas vezes demais! — disse May-may, começando a chorar. — Seu aniversário é daqui a quatro meses. Nessa ocasião, eu estarei com a barriga enorme, então mandei procurar uma “irmã”. Foi difícil decidir a melhor escolha. Ela é a melhor e agora, como estou doente, dou logo o presente, não vou esperar. Não gosta dela?
— Bom Deus, garota! Não chore, May-may. Escute. Não chore... Claro que gosto de sua irmã. Mas não se faz isso, comprar moças como presente de aniversário, pelo amor de Deus!
— Por que não?
— Ora, porque não!
— Ela é muito boazinha... quero que seja minha irmã. Eu ia ensinar a ela, durante esses quatro meses, mas agora... — Começou a soluçar, outra vez.
Yin-hsi veio correndo da porta, e se ajoelhou diante de May-may, segurando-lhe a mão e lhe enxugando as lágrimas, com solicitude, além de ajudá-la a beber um pouco de chá. May-may avisara-a de que os bárbaros são, algumas vezes, estranhos e mostram sua felicidade gritando e praguejando, portanto não deveria preocupar-se.
— Veja, Tai-Pan, como ela é bonita! — disse May-may. — Claro que gosta dela, não?
— Isso não vem ao caso, May-may. Claro que gosto dela.
— Então, está tudo decidido. — May-may fechou os olhos e tornou a se aninhar nos travesseiros.
— Não está decidido.
Ela reuniu forças para uma repreensão final.
— Está sim, e não vou mais discutir com você, por Deus! Peguei muito dinheiro por ela e ela é a melhor e não posso mandá-la embora, porque perderia todo prestígio e teria de se enforcar.
— Não seja ridícula!
— Juro a você que ela se enforca, Tai-Pan. Todos sabem que eu estava procurando uma nova irmã para mim e para você e, se você a mandar embora, o prestígio dela acaba. Acaba de vez. Ela vai se enforcar, pode ter certeza!
— Não chore, garota, por favor.
— Mas você não gostou de meu presente de aniversário.
— Gosto dela, e você não precisa mandá-la embora — ele disse, depressa; faria qualquer coisa para impedir suas lágrimas. — Diga a ela que fique. Ela será... uma irmã para você e, quando você estiver boa nós... nós encontraremos um bom marido para ela. Hein? Não há necessidade de chorar. Vamos, garota, pare com essas lágrimas.
Afinal, May-may parou de chorar e ficou outra vez deitada de costas. Sua irritação tira-lhe muito de sua preciosa energia. Mas valeu a pena, exultou. Agora, Yin-hsi ficará. Se eu morrer, ele estará em boas mãos. Se eu viver, ela será minha irmã, e a segunda irmã da casa, pois claro que ele a quererá. Claro que ele a quererá, ela disse a si mesma, enquanto adormecia. Ela é tão bonita.
Ah Sam entrou.
— Patrão. O patrãozinho está aí fora. Pode encontrar com ele?
Struan estava alarmado com a terrível palidez de May-may.
— Chame o médico depressa, entendido?
— Entendido, patrão.
Struan, desanimado, saiu do quarto. Ah Sam fechou a porta, e se ajoelhou ao lado da cama, dizendo a Yin-hsi:
— Segunda Mãe, eu preciso mudar a roupa da Suprema Senhora, antes do médico chegar.
— Sim. Eu vou ajudá-la, Ah Sam — disse Yin-hsi. — Papai certamente é um estranho gigante. Se a Suprema Senhora e você não me tivessem avisado, eu ficaria muito assustada.
— Papai é muito bom. Para um bárbaro. Claro, a Suprema Senhora e eu temos treinado Papai — Ah Sam franziu a testa, diante de May-may, que estava profundamente adormecida. — Ela parece realmente muito mal.
— Sim. Mas meu astrólogo previu boas notícias, de modo que devemos ser pacientes.
— Olá, Culum — disse Struan, ao entrar no belo jardim da frente, cercado por muros.
— Olá, Tai-Pan. Espero que não se incomode por eu vir aqui. — Culum ergueu-se do banco à sombra do salgueiro e tirou uma carta. — Acaba de chegar e... bom, em vez de mandar Lo Chum, achei que gostaria de ver como você estava. E saber como ela está.
Struan pegou a carta. Tinha uma anotação “Pessoal, Particular e Urgente” — e vinha de Morely Skinner.
— Perdeu a criança anteontem — disse ele.
— Terrível! — disse Culum. — A cinchona veio?
Struan abanou a cabeça.
— Sente-se, rapaz. — Abriu a carta.
Morely Skinner escrevia que pretendia reter a notícia sobre o “repúdio” até Struan voltar — achava perigoso liberá-la em sua ausência — mas agora era imperativo publicar
o relatório, imediatamente: “Uma fragata inglesa chegou hoje de manhã. Meu informante, na nau capitania, disse que o almirante ficou deliciado com o despacho particular do almirantado que recebeu, e alguém o ouviu dizer: ‘Está mesmo na hora, diabo! Com sorte, estaremos no norte dentro de um mês.’ Isto só pode significar que ele também sabe da notícia e a chegada de Whalen é iminente. Não posso enfatizar o suficiente a necessidade de sua volta. A propósito, ouvi dizer que há uma curiosa cláusula adicional no acordo entre Longstaff e Ching-so sobre o resgate de Cantão. Finalmente espero que tenha podido provar, de uma maneira ou de outra, o valor da casca da árvore cinchona. Lamento que, pelo que sei, não haja nenhuma por aqui. Sou, senhor, o seu mais humilde criado, Morely Skinner.”
May-may não resistirá a outro acesso de febre, pensou Struan, angustiado. Esta é a verdade, e você precisa encará-la. Amanhã, estará morta — a não ser que chegue a cinchona. E quem sabe se realmente irá curá-la?
Se ela morrer, você precisa salvar Hong Kong. Se ela viver, você precisa salvar Hong Kong. Mas, por quê? Por que não deixar aquela maldita ilha como era antes? Você pode estar errado — Hong Kong pode não ser necessária à Inglaterra. O que você prova, com sua louca cruzada para abrir a China e trazê-la para o mundo em seus termos, à sua maneira? Deixe a China ao seu próprio pagode e volte para seu país. Com May-may, se ela viver. E deixe Culum encontrar seu próprio valor como Tai-Pan. Um dia, você morrerá, e então a Casa Nobre encontrará seu próprio valor. Esta é a lei — a lei de Deus, a lei da natureza, e a lei do pagode.
Vá para a Inglaterra, e goze aquilo por que você suou e se sacrificou. Libere Culum de sua servidão de cinco anos; há mais do que suficiente para sustentar você, ele e os filhos de seus filhos. Deixe Culum decidir se quer ficar ou não. Vá para a Inglaterra e esqueça. Você é rico e poderoso e poderá freqüentar as cortes dos reis, se quiser. Sim. Você é o Tai-Pan. Parta como o Tai-Pan e a China que vá para o inferno. Desista da China. Ela é uma amante-vampiro.
— Mais notícias ruins?
— Ah, desculpe, Culum, esqueci de você. O que disse?
— Mais notícias ruins?
— Não, mas são importantes.
Struan notou que os últimos sete dias haviam marcado Culum. Não há mais traços juvenis em seu rosto, rapaz. Você é um homem. Então, lembrou-se de Gorth e pensou que não poderia sair da Ásia sem um ajuste de contas — com Gorth e com Brock.
— Hoje é o seu sétimo dia, rapaz, o último, não é?
— Sim — disse Culum.
Ó Deus, ele pensou, protegei-me contra outra semana dessas. Duas vezes, sentira um medo mortal. Uma vez, doera ao urinar e, outra, parecia haver uma inchação e coceira. Mas o Tai-Pan o acudira, e pai e filho se aproximaram mais um do outro. Struan lhe contara a respeito de May-may.
E, nas vigílias noturnas, Struan falara ao filho como um pai algumas vezes pode falar, quando a dor — ou, algumas vezes, a felicidade — abre todas as portas. Planos para o futuro, problemas do passado. Como é difícil amar alguém e viver com alguém, no curso dos anos. Struan levantou-se.
— Quero que vá para Hong Kong imediatamente — disse a Culum. — Irá no China Cloud, com a maré. Colocarei o Capitão Orlov oficialmente sob suas ordens. Nesta viagem, você será o capitão do China Cloud.
Culum gostou da idéia de ser capitão de um verdadeiro clíper. Sim.
— Logo que chegar a Hong Kong, mande o Capitão Orlov levar Skinner para bordo. Entregue-lhe pessoalmente uma carta que lhe darei. Depois, faça a mesma coisa com outra, para Gordon. Em hipótese alguma vá você próprio para terra, ou permita qualquer outra pessoa a bordo. Logo que Skinner e Gordon tiverem escrito suas respostas, mandeos de volta à terra e retorne para cá, imediatamente. Você deve estar de volta amanhã à noite. Parta com a maré do meio-dia.
— Está bem. Não posso agradecer-lhe o suficiente por... bom, por tudo.
— Quem sabe, rapaz? Talvez você nunca tenha estado sequer a uma légua da sífilis.
— Sim. Mas, mesmo assim... muito obrigado.
— Verei você no escritório, dentro de uma hora.
— Ótimo. Assim terei tempo bastante para me despedir de Tess.
— Já pensou na possibilidade de vocês tomarem as rédeas de seu destino? Não esperarem três meses?
— Você quer dizer, fugir?
— Só perguntei se chegou a pensar nisso. Não estou dizendo que devia fazer tal coisa.
— Gostaria de poder... de podermos fazer isso. Resolveria... Mas não é possível, senão eu faria isso. Ninguém nos casaria.
— Brock, certamente, ficaria furioso. Gorth também. Eu não recomendaria essa maneira de agir. Gorth já voltou? — ele perguntou, sabendo que não.
— Ainda não. Deve voltar esta noite.
— Mande um recado para o Capitão Orlov, a fim de se encontrar conosco em meu escritório, dentro de uma hora.
— Você o colocará absolutamente sob minhas ordens? — perguntou Culum.
— No que diz respeito à marinharia, não. Mas, em todas as outras questões, sim. Por quê?
— Por nada, Tai-Pan. Eu o verei dentro de uma hora — disse Culum.
***
— Boa-noite, Dirk — disse Liza, entrando na sala de jantar da sede da companhia.
— Desculpe interromper sua ceia.
— Não faz mal, Liza — disse Struan, levantando-se. — Por favor, sente-se. Não quer acompanhar-me?
— Não, obrigada. Os jovens estão aqui?
— Hein? Como poderiam estar aqui?
— Estou com a ceia deles pronta há mais de uma hora — disse Liza, com irritação.
— Pensei que estivessem vadiando outra vez. — Ela se virou para a porta. — Desculpe interromper sua ceia.
— Não entendo. Culum partiu no China Cloud, com a maré do meio-dia. Como você poderia estar a esperá-lo para a ceia?
— O quê?
— Ele partiu de Macau com a maré do meio-dia — Struan repetiu, pacientemente.
— Mas Tess... pensei que estivesse com ele. Jogaram críquete a tarde inteira.
— Tive de mandá-lo para lá, de repente. Hoje de manhã. A última coisa que me disse foi que ia se despedir de Tess. Ah, deve ter sido logo antes do meio-dia.
— Eles não disseram que ele ia embora hoje, só que me veriam mais tarde. Sim, foi antes do meio-dia! Então, onde está Tess? Ela não voltou o dia inteiro.
— Não há nada com que se preocupar. Ela, provavelmente, está com amigos... sabe como os jovens não notam a passagem do tempo. Liza mordeu o lábio, cheia de ansiedade.
— Ela nunca se atrasou, antes. Nunca se atrasou tanto. Ela é caseira, não é como essas namoradeiras que há por aí. Se alguma coisa aconteceu com ela, Tyler vai... Se partiu com Culum naquele navio, vai haver o diabo.
— Por que iriam fazer isso, Sra. Brock? — perguntou Struan.
— Que Deus os ajude, se fizeram. E se você os ajudou.
Depois que Liza partiu, Struan se serviu de um copo de conhaque, e foi para a janela, a fim de observar a praia e o porto. Quando viu o White Witch quase atracando, desceu as escadas.
— Vou para o clube, Lo Chum.
— Sim, patrão.
CAPÍTULO TRINTA E OITO
Gorth irrompeu no saguão do clube como um touro selvagem, com um chicote nas mãos. Empurrou para fora de seu caminho pasmados criados e freqüentadores e invadiu o salão de jogos.
— Onde está Struan?
— Acho que está no bar, Gorth — disse Horatio, chocado com a expressão de Gorth e com o chicote que se retorcia malevolamente.
Gorth deu a volta, passou como um raio pelo saguão e entrou no bar. Viu Struan numa mesa, com um grupo de comerciantes. Todos saíram do caminho, quando Gorth se aproximou de Struan.
— Onde está Tess, seu filho da puta?
Fez-se um silêncio mortal no bar. Horatio e os outros se apinhavam à porta.
— Não sei e, se me chamar assim outra vez, eu o matarei.
Gorth deu um puxão em Struan, aproximando-o de si.
— Não estará no China Cloud?
Struan libertou-se das mãos de Gorth.
— Não sei. E se estiver, o que importa? Não há nenhum mal quando um casal de jovens...
— Você planejou isso! Você planejou isso, seu patife! Você disse a Orlov para casá-los!
— Se fugiram, o que importa? Se estão casados agora, o que importa?
Gorth bateu em Struan com o chicote. Uma das extremidades, com a ponta de ferro, cortou nitidamente o rosto de Struan.
— Nossa Tess casada com aquele devasso sifilítico? — ele gritou. — Seu filho da puta fedorento!
Então eu tinha razão, pensou Struan. Foi você! Pulou sobre Gorth e agarrou o punho do chicote, mas outros, no bar, caíram sobre os dois e os separaram. Na confusão, um candelabro numa das mesas tombou no chão e Horatio apagou as chamas que consumiam o tapete felpudo. Struan se soltou, com violência, e olhou para Gorth.
— Vou mandar meus padrinhos visitá-lo esta noite.
— Não preciso de padrinhos, por Deus! Agora. Escolha suas malditas armas. Vamos! Depois de você, Culum. Juro por Deus!
— Por que me provocar, hein, Gorth. E por que ameaçar Culum?
— Você sabia, seu filho da puta. Ele está sifilítico, por Deus!
— Você está louco!
— Não adianta esconder, por Deus! — Gorth tentava soltar-se das mãos de quatro homens, mas não conseguia. Deixem-me livre, por Deus!
— Culum não tem sífilis! Por que diz que sim?
— Todos sabiam. Ele esteve em Chinatown. Você sabia disso, e por isso foi que partiram... antes que tudo aparecesse, de maneira terrível. Struan pegou o chicote, com a mão direita.
— Soltem-no, rapazes. Todos recuaram. Gorth pegou sua faca e se preparou para um ataque, e uma faca pareceu surgir, como por milagre, na mão esquerda de Struan.
Gorth simulou que ia atacar, mas Struan permaneceu imóvel como um rochedo e deixou Gorth ver, por um instante, a sede primitiva de matar que o consumia. E seu prazer. Gorth parou no meio do caminho, farejando perigo.
— Este não é lugar para lutar — disse Struan. — Este duelo não foi uma escolha minha. Mas não há nada que eu possa fazer. Horatio, quer ser padrinho?
— Sim. Sim, claro — respondeu Horatio.
Ele estava com a consciência doendo por causa das sementes de chá que arranjara para Longstaff. É essa a maneira de pagar por uma vida de ajuda e amizade? O Tai-Pan mandou-lhe notícia a respeito de Mary e lhe deu uma lorcha para ir a Macau. Ele foi como um pai para vocês dois e, agora, você o apunhala pelas costas. Sim — mas você não é nada para ele. Você só está destruindo um grande mal. Se puder fazer isso então compensará seu próprio mal, quando enfrentar a Deus, como irá acontecer.— Ficaria honrado em ser seu outro padrinho, Tai-Pan — dizia Masterson.
— .Então, talvez possam vir comigo, senhores — Struan enxugou o fio de sangue do queixo e atirou o açoite por sobre o balcão do bar, encaminhando-se para a porta.
— Você é um homem morto! — gritou Gorth, quando ele saía, novamente confiante. — Se apresse, seu filho da mãe! Struan só parou quando estava fora do clube, a salvo, na praia.
— Escolho maças como armas.
— Bom Deus, Tai-Pan... isso não é habitual — disse Horatio. — Ele é muito forte e você... bom, você... as últimas semanas lhe pesaram mais do que você percebe.
— Concordo plenamente — disse Masterson. — Uma bala entre os olhos é mais sensato. Ah, sim, Tai-Pan.
— Voltem e digam a ele agora. Não discutam. Minha mente é firme!
— Onde... onde você... bom, claro que isto deve ser mantido em segredo, não? Talvez os portugueses tentem impedi-lo.
— Sim. Contratem um junco. Vocês dois, eu, Gorth e seus padrinhos partiremos ao entardecer. Quero testemunhas e um duelo justo. Haverá espaço mais do que suficiente no convés de um junco.
Não vou matar você, Gorth, Struan exultou. Ah, não, isso seria fácil demais. Mas, pelo Senhor Deus, a partir de amanhã você nunca mais caminhará, nunca mais se alimentará com as próprias mãos, nunca mais verá, nunca mais voltará a fazer sexo. Eu mostrarei a você o que é a vingança.
***
Ao cair da noite, a notícia do duelo correra de boca em boca e, com a notícia, começaram as apostas. Muitas eram a favor de Gorth: ele estava em sua plena força e, afinal de contas, tinha boas razões para desafiar o Tai-Pan, se fosse verdade o boato de que Culum tinha sífilis e, sabendo disso, o Tai-Pan enviara Tess e Culum para o mar, com um capitão capacitado a casá-los, além do limite de três milhas.
Os que puseram dinheiro no Tai-Pan assim agiram porque esperavam, embora não acreditassem, que ele ganhasse. Todos sabiam de sua frenética ansiedade com relação à cinchona, e que sua legendária amante estava morrendo. E todos viam a perturbação que isso lhe causara. Só Lo Chum, Chen Sheng, Ah Sam e Yin-hsi tomaram emprestado cada tostão que puderam e apostaram no Tai-Pan, com confiança, pedindo aos deuses para velarem por ele. Sem o Tai-Pan. estariam perdidos, de qualquer jeito.Ninguém falou do duelo a May-may. Struan deixou-a, cedo, e voltou para sua residência. Queria dormir profundamente. O duelo não o perturbava; tinha certeza de que podia cuidar de Gorth. Mas, no processo, poderia ser mutilado, e sabia que precisaria ser muito forte e muito rápido.
Calmamente, caminhou pelas ruas tranqüilas, no calor de mais uma bela noite estrelada.
Lo Chum abriu a porta.
— Boa-noite, senhor. — Fez sinal, delicadamente, para a ante-sala. Liza Brock estava à espera.
— Boa-noite — disse Struan.
— Culum está com sífilis?
— Claro que não! Pelo sangue de Cristo, nós nem mesmo sabemos se eles estão casados. Talvez simplesmente tenham ido fazer uma viagem secreta.
— Mas ele esteve numa casa... quem sabe onde? Aquela noite em que foi assaltado.
— Culum não tem sífilis, Liza.
— Então, por que os outros disseram isso?
— Pergunte a Gorth.
— Eu perguntei e ele me disse que lhe contaram.
— Direi outra vez, Liza. Culum não tem sífilis.
Os grandes ombros de Liza estremeceram de soluços.
— Ah, Deus, o que fizemos?
Ela queria poder impedir o duelo. Gostava de Gorth, embora não fosse seu filho. Sabia que também teria culpa pelo sangue derramado — de Gorth, do Tai-Pan, de Culum ou do seu homem. Se não tivesse forçado Tyler a deixar Tess ir para o baile, então talvez tudo isso não tivesse acontecido.
— Não se preocupe, Liza — disse Struan, bondosamente. — Tess está bem, tenho certeza. Se casaram, você nada tem a temer.
— Quando o China Cloud voltará?
— Amanhã à noite.
— Deixará o nosso médico examiná-lo?
— Quem decide isso é Culum. Mas não proibirei. Ele não tem sífilis, Liza. Se tivesse, acha que eu permitiria o casamento?
— Sim, acho — disse Liza, atormentada. — Você é um demônio, e só o demônio sabe o que tem na cabeça, Dirk Struan. Mas eu juro por Deus, se você estiver mentindo eu o matarei, se meus homens não o matarem. Saiu às apalpadelas para a porta. Lo Chum abriu-a e fechou-a após sua saída.
— Senhor, é melhor ir dormir — disse Lo Chum alegremente. — Amanhã chega logo, hein?
— Vá para o inferno.
A aldrava de ferro da porta da frente causou um eco surdo, através da residênciaadormecida. Struan ficou atentamente à escuta, na ventilada calidez de seu quarto e, depois, ouviu os passos macios de Lo Chum. Saiu da cama, com a faca na mão, e agarrou seu robe de seda. Foi até o patamar, rápida e silenciosamente, e espiou por sobre a balaustrada. Dois andares abaixo, Lo Chum pôs a lanterna no chão e destrancou a porta. O relógio antigo bateu 1:15.
Padre Sebastião estava no umbral.
— O Tai-Pan pode ver-me?
Lo Chum fez um sinal afirmativo com a cabeça e pôs de lado a machadinha que segurava atrás das costas. Começou a subir a escada, mas parou quando Struan gritou.
— Sim?
O Padre Sebastião esticou o pescoço para o alto, em meio à escuridão, com os tendões do pescoço saltados, devido ao imprevisto do grito.
— Sr. Struan?
— Sim? — disse Struan, com a voz estrangulada.
— Sua Eminência me mandou aqui. Temos a casca de cinchona.
— Onde está?
O monge segurava uma pequena bolsa suja.
— Aqui. Sua Eminência disse que o senhor estava à espera de um mensageiro.
— E o preço?
— Nada sei a respeito disso, Sr. Struan — gritou com voz fraca Padre Sebastião. — Sua Eminência, simplesmente, disse-me para tratar qualquer pessoa à qual o senhor me conduzisse. Só isso.
— Estarei aí num segundo — berrou Struan, voltando às carreiras para o quarto. Enfiou as roupas às pressas, lutou com as botas, correu para a porta e parou. Depois de pensar um segundo, pegou o chicote de ferro e desceu as escadas, aos saltos. Padre Sebastião viu a maça e recuou.
— Bom-dia, Padre — disse Struan. Disfarçou a náusea provocada pelo hábito sujo do monge e detestou, de novo, todos os médicos.
— Lo Chum, quando o Sr. Sinclair chegar aqui, leve-o até lá, entendido?
— Entendido, senhor.
— Vamos, Padre Sebastião!— Só um momento, Sr. Struan! Antes de irmos, devo explicar uma coisa. Nunca usei cinchona antes... nenhum de nós usou.
— Bom, isso não importa, não é?
— Claro que importa! — exclamou o descarnado monge. — Tudo que sei é que devo fazer um “chá” com esta casca, fervendo-a. O problema é que não sei ao certo por quanto tempo fervê-la, ou se é preciso fazer um chá forte ou fraco. Ou a quantidade que o paciente deve tomar. Ou em quantas doses. O único tratado médico disponível que fala na cinchona é em latim arcaico... e muito vago!
— O bispo disse que ele teve a malária. Quanto chá tomou?
— Sua Eminência não se lembra. Só que tinha um gosto muito amargo e o enjoou. Acha que tomou chá durante quatro dias. Sua Eminência me disse para deixar bastante claro que estamos fazendo o tratamento sob sua responsabilidade.
— Sim. Entendo muito bem. Vamos!
Struan correu porta afora, com o Padre Sebastião a seu lado. Seguiram pela praia, procurando um caminho mais curto, e começaram a percorrer uma silenciosa avenida marginada de árvores.
— Por favor, Sr. Struan, não tão depressa — disse o Padre Sebastião sem fôlego.
— Está prevista mais febre para amanhã. Precisamos correr.
Struan cruzou a Praça de São Paulo e se encaminhou, impacientemente, para outra rua. De repente, seus instintos advertiram-no e ele parou, atirando-se para um lado. Uma bala de mosquete atingiu o muro, junto dele. Puxou para baixo o padre aterrorizado. Outro disparo. A bala cortou o ombro de Struan e ele amaldiçoou a si mesmo por não trazer pistolas.
— Corra, para salvar a vida!
Ele arrastou o monge, erguendo-o, e empurrou-o através da estrada, até um pórtico, onde se encontraram em segurança. Luzes apareciam nas casas.
— Por aqui! — sussurrou, e saiu correndo, Abruptamente, mudou de direção, e outro tiro deixou de atingir seu alvo por uma fração de centímetro, enquanto ele alcançava uma ruela segura, com o Padre Sebastião arquejando a seu lado.
— Ainda tem a cinchona? — perguntou Struan.
— Sim. Pelo amor de Deus, o que está acontecendo?
— Assaltantes! — Struan pegou o braço do assustado monge e correu através das profundidades da ruela, saindo no espaço aberto do forte de São Paulo do Monte. Nas sombras do forte, tomou fôlego.
— Onde está a cinchona?
Padre Sebastião ergueu frouxamente a bolsa. O luar banhou o lívido corte de chicote no queixo de Struan e bruxuleou em seus olhos, parecendo torná-lo maior e mais diabólico.
— Quem era? Quem disparava em nós? — perguntou.
— Assaltantes — repetiu Struan.
Sabia que, na verdade, homens de Gorth — ou Gorth — deveriam estar emboscados. Ficou imaginando, por um momento, se Padre Sebastião fora enviado como engodo. Era improvável — o bispo não fada isso, e nem era preciso trazer cinchona. Bom, logo saberei, pensou. E, se for o caso, cortarei algumas gargantas de papistas.
Observou, cansadamente, a escuridão. Tirou sua faca da bota e afrouxou a correia do chicote de ferro em torno do pulso. Quando Padre Sebastião respirava menos pesadamente, foi mostrando o caminho pela ladeira acima, passando pela Igreja de Santo Antônio e descendo o morro por uma rua que ia dar diante do muro da casa de May-may. Havia uma porta, na alta e grossa muralha de granito.
Bateu com força, com a aldrava. Em poucos momentos, Lim espiava através da vigia. A porta se abriu, depressa. Entraram no pátio da frente e a porta foi trancada atrás deles.
— Estamos em segurança, agora — disse Struan. — Lim Din, chá... beber muito, depressa! — fez sinal para que o Padre Sebastião se sentasse e colocou o chicote de ferro sobre a mesa. — Recupere o fôlego, primeiro.
O monge tirou as mãos do crucifixo que agarrava e franziu as sobrancelhas.
— Será que alguém realmente tentava matar-nos?
— Assim me pareceu — disse Struan. Tirou o casaco e olhou para o ombro. A bala queimara a carne.
— Deixe-me dar uma olhada nisso — disse o monge.
— Não é nada. — Struan tornou a vestir o casaco. — Não se preocupe, Padre. Você a tratará, mas a responsabilidade é toda minha. O senhor está bem?
— Sim. — Os lábios do monge estavam secos e tinha ha boca um gosto ruim. — Primeiro, prepararei o chá de cinchona.
— Ótimo. Mas, antes de começarmos, jure pela cruz que jamais falará a ninguém a respeito desta casa, ou do que acontece aqui.
— Isso não é necessário, pode ter certeza. Não há nada que...
— Sim, há! Gosto de minha privacidade! Se não jurar, então eu tratarei dela, por mim mesmo. Parece que sei o mesmo que o senhor a respeito do uso da cinchona. Decida.O monge estava aborrecido com sua falta de conhecimento e desejava desesperadamente curar, em nome de Deus.
— Muito bem, juro pela cruz que meus lábios estão selados.
— Obrigado. — Struan mostrou o caminho até a porta da frente e, dali por um corredor. Ah Sam saiu de seu quarto e fez uma curvatura tímida, puxando mais contra o corpo
o pijama verde. Seu cabelo estava desgrenhado, o rosto ainda inchado de sono. Ela os acompanhou à cozinha, com a lanterna.
A sala para cozinhar era pequena, com uma lareira e um braseiro a carvão, contígua ao repleto jardim posterior à casa. Estava cheia de potes, panelas e chaleiras. Centenas de molhos de ervas e cogumelos secos, vegetais, vísceras, salsichas estavam pendurados nas paredes escurecidas pela fumaça. Sacos de palhinha cheios de arroz entulhavam o chão cheio de manchas de sujeira.
Duas empregadas de cozinha, dopadas pelo sono, encontravam-se meio erguidas em beliches sujos, olhando, tontas, para Struan. Mas quando ele, descuidadamente, varreu da mesa uma confusão de panelas e pratos sujos, a fim de abrir espaço, elas pularam de suas camas e fugiram da casa.
— Chá, senhor? — Ah Sam perguntou, confusa.
Struan abanou a cabeça. Pegou a bolsa de pano, manchada de suor, das mãos do nervoso monge, e abriu-a. A casca era marrom, comum e partida em pequenos pedaços. Cheirou-a, mas não tinha odor algum.
— E agora?
— Precisamos de alguma coisa para ferver o caldo. — Padre Sebastião pegou uma panela mais ou menos limpa.
— Primeiro, quer fazer o favor de lavar as mãos? — Struan apontou para um pequeno barril e o sabão próximo.
— O quê?
— Primeiro, lave as mãos. Por favor. — Struan abaixou-se sobre o barril e ofereceu o sabão. — Não fará nada até lavar as mãos.
— Por que é necessário?
— Não sei. Uma antiga superstição chinesa. Por favor... vá, Padre, por favor.
Enquanto Struan lavava a panela e a colocava sobre a mesa, Ah Sam observava, de olhos brilhantes. Padre Sebastião esfregar as mãos com sabão, passar água e enxugá-las com uma toalha limpa.
Depois, fechou os olhos, uniu as mãos e sussurrou uma prece silenciosa.
— Agora, algo para medir — disse, voltando à terra, e escolhendo, ao acaso, uma xicrinha, encheu-a até a borda com cinchona. Passou a casca para a panela e então, lenta e metodicamente, acrescentou dez medidas iguais de água. Pôs a panela para ferver no braseiro de carvão. — Dez para uma, como começo — disse, com voz rouca. — Esfregou as mãos, nervosamente, dos lados do seu hábito. — Agora, gostaria de ver a paciente. Struan fez sinal a Ah Sam e indicou a panela.
— Não toque!
— Não vou tocar, senhor! — disse Ah Sam. Agora que superara seu susto inicial, por ser acordada de repente, estava começando a gostar de todos esses estranhos procedimentos. — Não vou tocar, senhor, não se incomode!
Struan e o monge saíram da cozinha e foram para o quarto de dormir de May-may. Ah Sam os acompanhou. Uma lanterna espalhava áreas de luz na escuridão. Yin-hsi estava escovando seu
cabelo despenteado diante do espelho. Parou e se curvou, apressadamente. Sua cama, um colchão, estava no chão a um lado da grande cama de dossel de May-may.
May-may tremia de leve, sob o peso dos cobertores.
— Olá, garota. Temos a cinchona — disse Struan, aproximando-se. — Afinal. Tudo está bem, agora!
— Sinto tanto frio, Tai-Pan — ela disse, desamparadamente. — O que você fez com seu rosto?
— Não é nada, garota.
— Você se cortou. — Ela estremeceu, fechou os olhos e caiu outra vez no nevoeiro que começava a engolfá-la. — Está tão frio. Struan virou-se e olhou para o Padre Sebastião. Viu o susto em sua face esticada.
— O que há de errado?
— Nada, nada.
O monge colocou uma pequena ampulheta sobre uma mesa e, ajoelhando-se ao lado da cama, pegou o pulso de May-may e começou a contar suas batidas cardíacas. Como pode uma moça chinesa falar inglês?, perguntou a si mesmo. Será que a outra moça é uma segunda amante? Estarei num harém deste demônio? Ah, Deus, protegei-me, dai-me o poder de Vossa cura e deixai-me ser o Vosso instrumento, esta noite.
O pulso de May-may estava tão lento e fraco que ele teve grande dificuldade em auscultá-lo. Com extrema delicadeza, virou-lhe o rosto e lhe observou os olhos.
— Não tenha medo — disse. — Não há nada para temer. Você está nas mãos de Deus. Preciso olhar seus olhos. Não tenha medo. Você está em Suas mãos.
Indefesa e petrificada, May-may fez como ele lhe disse. Yin-hsi e Ah Sam permaneciam em pé, atrás, e espiavam cheias de apreensão.— O que ele está fazendo? Quem é? — sussurrou Yin-hsi.
— Um médico bárbaro, um demônio feiticeiro — Ah Sam respondeu, também num sussurro. — Ele é um monge. Um desses padres de saias compridas que adoram o Deushomem nu, que eles prenderam numa cruz.
— Ah! — Yin-hsi estremeceu. — Ouvi falar deles. Como foi terrível fazerem uma coisa dessas! São realmente uns demônios! Por que não traz um pouco de chá para Papai? É sempre bom para a ansiedade.
— Lim Din está pegando o chá, Segunda Mãe — sussurrou Ah Sam, jurando que nada a faria se mover dali, pois assim poderia perder algo de grande importância. — Eu gostaria de poder entender a língua terrível que eles falam.
O monge colocou o pulso de May-may sobre a coberta da cama e ergueu os olhos para Struan.
— Sua Eminência disse que a malária provocou um aborto. Preciso examiná-la.
— Pode examinar.
Quando o monge afastou os cobertores e lençóis, May-may tentou impedi-lo e Yin-hsi e Ah Sam, ansiosamente, correram para ajudá-la.
— Não — gritou Struan. — Fiquem lá! — Ele se sentou ao lado de May-may e segurou-lhe as mãos. — Está tudo bem, garota. Vamos — disse ao padre.
Padre Sebastião examinou May-may e, depois, instalou-a confortavelmente outra vez.
— A hemorragia quase já parou. Isso é muito bom. Colocou seus longos dedos na base do crânio dela e apalpou cuidadosamente.
May-may sentiu que os dedos suavizavam um pouco de sua dor. Mas o gelo se formava nela outra vez, e seus dentes começaram a bater.
— Tai-Pan. Sinto tanto frio. Posso mandar colocar uma garrafa quente nos cobertores? Por favor. Sinto tanto frio.
— Sim, garota. Espere só um pouquinho. — Havia uma garrafa quente às suas costas. Ela estava deitada debaixo de quatro cobertores acolchoados.
— Tem um relógio, Sr. Struan? — perguntou Padre Sebastião.
— Sim.
— Por favor, vá para a cozinha. Logo que a água ferver, anote a hora. Quando tiver fervido uma hora... — Os olhos do Padre Sebastião espelharam seu terrível desespero. — Duas? Meia hora? Quanto tempo? Ah, Deus, por favor, ajudai-me neste momento de necessidade.— Uma hora — disse firmemente a Struan, com confiança. — Marcaremos a mesma quantidade para ferver por duas horas. Se a primeira não fizer efeito, tentaremos a segunda.
— Sim. Sim.
Struan examinou seu relógio à luz da lanterna, na cozinha. Tirou a infusão do braseiro e colocou-a num balde de água, para esfriar. A segunda panela já fervia.
— Como vai ela? — perguntou, quando o padre entrou, tendo logo atrás Ah Sam e Yin-hsi.
— Os calafrios estão fortes. O coração se encontra muito fraco. Pode lembrar-se por quanto tempo ela tremeu, antes de começar a febre?
— Quatro horas, talvez cinco. Não sei. — Struan despejou um pouco do líquido quente dentro de uma pequena xícara de chá e o provou. — Pelo sangue de Cristo, é terrivelmente amargo!
O padre tomou um gole e também fez uma careta.
— Bom. Vamos começar. Só espero que ela possa mantê-lo no estômago. Uma xícara de hora em hora. — Ele escolheu uma xícara ao acaso, numa prateleira manchada de fumaça, e pegou um trapo sujo na mesa.
— Para que é isso? — perguntou Struan.
— Terei de coar a casca, separando-a do chá. Este pano está bom. A mistura é bastante grossa.
— Eu vou fazer isso — disse Struan. Pegou o coador de chá de prata que já tinha pronto e poliu-o outra vez, com um lenço limpo.
— Por que está fazendo isso?
— Os chineses têm sempre muito cuidado em manter o bule e as xícaras limpos. Dizem que isso torna o chá mais saudável. — Começou a despejar o chá malcheiroso numa imaculada xícara de porcelana. Queria que a força da bebida estivesse certa.
— Por que não a mesma coisa com a próxima dose, hein?
Levou o bule e a xícara para o quarto de dormir. May-may vomitou a primeira xícara. E a segunda. Apesar de suas súplicas patéticas, Struan forçou-a a beber outra vez. May-may não vomitou — faria tudo para não ter de engolir outra vez. Ainda assim, nada aconteceu. A não ser que seus calafrios se tornaram mais fortes. Uma hora mais tarde, Struan fez com que ela bebesse outra vez. Ela não vomitou,
mas os calafrios continuaram a piorar.
— Vamos dar duas xícaras — disse Struan, lutando contra o pânico. E ele a forçou a consumir a dose dupla.
Hora após hora, o processo foi repetido. Agora amanhecia.Struan olhou para seu relógio. Seis horas. Nenhuma melhora. Os tremores faziam May-may se agitar como um raminho ao vento do outono.
— Pelo amor de Deus — explodiu Struan — precisa funcionar!
— Com o amor de Deus, está funcionando, Sr. Struan — disse Padre Sebastião.
Segurava o pulso de May-may. — O calor da febre deveria começar há duas horas. Se não começou, ela tem uma chance. Seu pulso se acha imperceptível, sim, mas a cinchona está funcionando.
— Agüente firme, garota — disse Struan, agarrando a mão de May-may. — Mais algumas horas. Agüente.
Mais tarde, houve uma batida no portão do muro do jardim. Struan saiu de casa, meio tonto, e destrancou a porta.
— Olá, Horatio. Venha cá, Lo Chum.
— Ela está morta?
— Não, rapaz. Acho que está curada, com a graça de Deus!
— Você conseguiu a cinchona?
— Sim.
— Masterson se encontra no junco. Está na hora de Gorth chegar. Vou pedir a eles, os seus padrinhos, para adiarem o duelo até amanhã. Você não está em condições de lutar com ninguém.
— Você não precisa se preocupar. Há outras maneiras de matar uma serpente além de arrancar sua cabeça com uma pisadela. Estarei lá dentro de uma hora.
— Está bem, Tai-Pan. — Horatio saiu às pressas, levando Lo Chum.Struan trancou a porta e voltou para May-may.
Ela estava deitada na cama, completamente imóvel. Padre Sebastião lhe tomava o pulso. O rosto dele estava enrijecido pela ansiedade. Curvou-se e auscultou-lhe as batidas do coração. Passaram-se segundos. Ele ergueu a cabeça e olhou inquisitivamente para Struan.
— Por um momento, pensei... mas ela está bem. As batidas de seu coração estão terrivelmente lentas, mas ela é jovem. Com a graça de Deus... a febre passou, Sr. Struan. A cinchona peruana curará a febre do Vale Feliz. Com são maravilhosos os desígnios de Deus!
Struan sentia-se estranhamente distanciado.
— Será que a febre voltará? — perguntou.
— Talvez. Ocasionalmente. Porém, mais cinchona a deterá... não há nada mais com que se preocupar, agora. Esta febre está morta. Não entende? Ela se curou da malária.
— Será que viverá? Diz que seu coração está muito fraco. Será que viverá?— Se Deus quiser, a chance é boa. Muito boa. Mas ainda não tenho certeza.
— Preciso ir, agora — disse Struan, levantando-se. — Quer fazer o favor de ficar aqui até eu voltar?
— Sim. — Padre Sebastião ia fazer o sinal-da-cruz sobre ele, mas se decidiu contra.
— Não posso abençoar sua partida, Sr. Struan. Vai para uma matança, não é?
— O homem nasceu para morrer, Padre. Apenas tento proteger a mim mesmo e aos meus o melhor que posso, e também escolher a ocasião de minha morte, apenas isso. Pegou o chicote de ferro e amarrou-o ao pulso, depois saiu da casa. Enquanto caminhava pelas ruas, sentiu olhos que o observavam, mas não prestou atenção. Ele tirava força da manhã e do sol, e da vista e do odor do mar. Está um belo dia para matar uma cobra, pensou. Mas quem vai morrer é você. Não tem força para enfrentar Gorth com um chicote de ferro. Hoje, não.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
Havia uma grande multidão perto do junco. Comerciantes, um destacamento de soldados portugueses comandado por um jovem oficial, marinheiros. O junco estava ancorado num desembarcadouro ao largo da praia. Quando Struan apareceu, os que haviam apostado nele ficaram desalentados. E os que haviam apostado em Gorth, exultantes.
O oficial português, cortesmente, interceptou Struan.
— Bom-dia, senhor.
— Bom-dia, Capitão Machado — respondeu Struan.
— O governador-geral quer que o senhor saiba que duelos são proibidos em Macau.
— Sei disso — disse Struan. — Agradeça a ele em meu nome, por favor, e diga-lhe que serei o último a infringir as leis portuguesas. Sei que somos todos hóspedes, e os hóspedes têm responsabilidades perante seus anfitriões.
Ele ajeitou a correia de seu chicote de ferro e caminhou em direção ao junco. A multidão se dividiu e ele viu animosidade nos rostos dos homens de Gorth e daqueles que desejavam vê-lo morto. Havia muitos. Lo Chum esperava no tombadilho alto, ao lado de Horatio.
— Bom-dia, senhor. — Estendeu o material para fazer a barba. — Quer?
— Onde está Gorth, Horatio?
— Seus padrinhos estão procurando por ele. Struan rezou para que Gorth estivesse deitado num bordel, bêbado como uma cabra. Ah, Deus, tomara que nossa luta seja amanhã! Começou a fazer a barba. A multidão observava, silenciosamente, e muitos se benziam, espantados com a serenidade do Tai-Pan.
Após barbear-se, ele se sentiu um pouco melhor. Olhou para o céu. Colares de cirros enfeitavam o firmamento e o mar estava calmo como um lago. Gritou para Cudahy, que trouxera o China Cloud:
— Proteja minhas costas.
— Sim, senhorrr.
Struan espichou-se sobre uma escotilha e adormeceu, imediatamente.
— Bom Deus — disse Roach — ele não é humano.
— Sim — disse Vivien — ele é o próprio Demônio.
— Por que não dobra a aposta, hein, se está tão confiante?
— Não. A não ser que Gorth chegue bêbado.
— Digamos que ele mate Gorth... e Tyler?
— Travarão um duelo de vida ou morte, eu acho.
— O que fará Culum, hein? Se Gorth vencer hoje?
— Nada. O que pode ele fazer? A não ser odiar, talvez. Pobre rapaz, eu até gosto dele. Ele odeia o Tai-Pan, de qualquer maneira... então talvez abençoe Gorth, hein? Ele se torna Tai-Pan, por direito. Onde está o demônio do Gorth?
O sol se erguia implacavelmente no céu. Um soldado português saiu correndo de uma rua adjacente e conversou animadamente com o oficial que, imediatamente, começou a fazer seus homens marcharem depressa para a praia. Transeuntes começaram a seguilos.
Struan acordou para uma dolorida realidade, com cada fibra de seu corpo pedindo sono. Pôs-se de pé, cambaleando. Horatio olhava-o, com uma expressão de estranheza.
***
O corpo de Gorth, brutalmente maltratado, jazia, numa viela suja, perto das docas do bairro chinês e, em torno do cadáver, estavam os corpos de três chineses. Outro chinês, mais morto do que vivo com o cabo de uma lança partida enterrado na virilha, jazia gemendo aos pés de uma patrulha de soldados portugueses.Comerciantes e portugueses se apinhavam em torno, procurando ver melhor. Os que conseguiram ver Gorth deram meiavolta, enjoados.
— A patrulha diz que ouviu gritos e ruído de luta — disse o oficial português a Struan e aos outros, que se encontravam por perto. — Quando correram para cá, viram o Sr. Brock no chão, como está agora. Três ou quatro chineses enfiavam-lhe lanças. Quando os demônios assassinos viram nossos homens, desapareceram daqui. — Apontou para um grupo de silenciosos barracos, ruelas retorcidas e becos. — Os soldados saíram à caça deles, mas... — Deu de ombros.
Struan sabia que fora salvo pelos assassinos.
— Oferecerei uma recompensa pelos que escaparam — disse. — Cem taéis mortos, quinhentos vivos.
— Economize seu dinheiro, no caso dos “mortos”, senhor. Os pagãos apenas apresentarão três cadáveres... os primeiros que conseguirem encontrar. Quanto aos “vivos” — o oficial apontou com um polegar, num gesto de desdém, para o prisioneiro — a menos que esse degenerado filho da mãe nos diga onde estão os outros, seu dinheiro está bem seguro. Pensando melhor, acho que as autoridades chinesas seriam, digamos, mais hábeis, num interrogatório. — Falou com dureza, em português, e os soldados colocaram o homem numa porta quebrada e o carregaram.
O oficial limpou uma mancha de poeira de seu uniforme.
— Uma morte estúpida e desnecessária. O Senhor Brock não deveria ter-se arriscado a vir a esta área. Parece que não houve honra satisfeita.
— Tem muita sorte, Tai-Pan — zombou um dos amigos de Gorth. — Muita sorte.
— Sim. Estou satisfeito por este sangue não se encontrar em minhas mãos.
Struan virou as costas para o cadáver e se afastou, devagar. Saiu da ruela e subiu a ladeira, em direção ao antigo forte. Na crista do morro, cercado de mar e de céu, sentou-se num banco e agradeceu ao infinito a bênção da noite e a bênção do dia.
Não prestava atenção aos transeuntes, aos soldados, ao portão do forte, à canção dos sinos da igreja. Nem aos pássaros cantando, ao vento suave ou ao sol reconfortante. E nem à hora.
Mais tarde, tentou decidir o que fazer, mas sua mente não queria funcionar.
— Controle-se — disse alto.
Desceu o morro, foi até à residência do bispo, mas este não se encontrava lá. Dirigiu-se à catedral e perguntou por ele. Um monge lhe disse para esperar no jardim do claustro. Struan sentou-se num banco, à sombra, e ficou à escuta das fontes borbulhantes. As flores lhe pareciam mais coloridas do que nunca, seu perfume mais suave. As batidas de seu coração, a força de seus membros e até mesmo a constante dor no tornozelo — não eram um sonho, mas a realidade.
Ah, meu Deus, obrigado pela vida.
***
O bispo olhava-o, sob a galeria do claustro.
— Olá, Eminência — disse Struan, maravilhosamente reconfortado. — Vim agradecer-lhe. O bispo franziu os lábios finos.
— O que estava vendo, senhor?
— Não sei — respondeu Struan. — Apenas olhava para o jardim. Apreciando-o. Apreciando a vida. Não sei exatamente.
— Creio que estava muito próximo de Deus, senhor. Talvez não ache, mas eu sei que sim. Struan abanou a cabeça.
— Não, Eminência. Só feliz, num dia esplêndido, num lindo jardim. Só isso.
Mas a fisionomia de Falarian Guineppa não mudou. Seus dedos esguios tocaram o crucifixo.
— Eu fiquei a observá-lo por um longo tempo. Senti que estava próximo. Logo o senhor! Certamente, isto não está certo. — Suspirou. — Entretanto, como poderemos nós, pobres pecadores, saber os desígnios de Deus? Invejo-o, senhor. Queria falar comigo?
— Sim, Reverendíssimo. A cinchona curou a febre.
— Deo gratias! Mas é maravilhoso! Como são esplêndidos os desígnios de Deus!
— Vou fretar uma embarcação para ir imediatamente ao Peru, com ordem para carregar cinchona — disse Struan. — Com sua permissão, gostaria de mandar o Padre Sebastião, para que descubra como cultivam a casca, de onde vem, como eles tratam a malária lá... tudo. Dividiremos a carga e o conhecimento igualmente, quando ele voltar. Gostaria que ele, sob sua autoridade, escrevesse um relatório médico, de imediato, e o enviasse para o Lancet, na Inglaterra, e para o Times, falando do seu tratamento bemsucedido da malária com a cinchona.
— Um tratado médico-oficial como esse teria de ser enviado através de canais oficiais do Vaticano. Mas eu lhe direi que faça isso. Quanto a mandá-lo... isto eu terei de considerar. Entretanto, mandarei alguém com o navio. Quando partirá?
— Dentro de três dias.
— Está bem. Dividiremos igualmente a carga e os conhecimentos. É muita generosidade.
— Não estabelecemos um preço para a cura. Ela está curada. Então, agora, quer fazer o favor de me dizer o preço?
— Nada, senhor.
— Não entendo.
— Não há preço para um punhado de cinchona que salvou a vida de uma moça.
— Claro que há um preço, pode pedir o que quiser! Estou pronto para pagar. Vinte mil taéis foram oferecidos em Hong Kong, Eu lhe enviarei uma ordem de pagamento à vista.
— Não, senhor — respondeu, com paciência, o sacerdote de elevada estatura. — Se fizer isso, eu simplesmente rasgarei o papel. Não quero pagamento pela casca de árvore.
— Farei uma doação a uma igreja católica em Hong Kong — disse Struan. — Um mosteiro, se quiser. Não brinque comigo, Eminência. Comércio é comércio. Diga seu preço.
— Nada me deve, senhor. Nada deve à igreja. Mas deve muito a Deus. — Ele ergueu a mão e fez o sinal-da-cruz. — In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti — disse, tranqüilamente, e foi embora.
CAPÍTULO QUARENTA
May-may se achou acordando, com os braços de Struan a apoiá-la e a xícara em seus lábios. Vagamente, ouviu Struan conversar, com tranqüilidade, com o Padre Sebastião, mas não fez o esforço necessário para entender as palavras em inglês. Obedientemente engoliu a cinchona e se deixou deslizar outra vez para o estado de inconsciência.
Ouviu o monge partir, sentiu que a presença estranha se fora, e isto lhe agradou. Percebeu que Struan a erguia outra vez e engoliu a segunda xícara, com o gosto ruim ainda a enjoá-la.
Através da névoa confortável, ouviu Struan sentar-se na cadeira de bambu e logo escutou sua respiração pesada e regular, percebendo que dormia. Isto a fez sentir-se muito segura.
O ruído das amas conversando na cozinha, o humor irritável e cáustico de Ah Sam, e o perfume de Yin-hsi eram tão agradáveis que May-may não quis deixar o sono dominá-la inteiramente.
Ficou deitada, quieta, e reuniu forças durante aquele minuto. E soube que iria viver.Queimarei incenso para os deuses pelo meu pagode. Talvez uma vela para o deus de saias compridas. Afinal de contas, o monge trouxe a casca, não foi? — por pior que seja o gosto. Talvez eu devesse tornar-me uma cristã de saias compridas. Isto daria ao monge grande prestígio. Mas o meu Tai-Pan não aprovaria. Mesmo assim, talvez eu me torne. Porque, se não existe nenhum Deus de saias compridas, então não haverá perigo e, se ele existir — então terei sido muito esperta. Fico imaginando se o deus bárbaro é como nossos deuses chineses. Que a pessoa descobre serem muito estúpidos, quando pensa seriamente a respeito. Mas, realmente, não são. São como seres humanos, com todas as nossas fraquezas e forças. É muito mais sensato do que fingir, como fazem os bárbaros, que seu deus é perfeito e vê tudo, escuta tudo, a tudo julga e pune.
Estou satisfeita por não ser um deles. Ouviu o sibilar das roupas de Yin-hsi e respirou sua presença perfumada. Abriu os olhos.
— Parece melhor, Suprema Senhora — sussurrou Yin-hsi, ajoelhando-se perto dela.
— Veja, trouxe-lhe algumas flores.
O pequeno buquê era muito bonito. May-may fez um sinal afirmativo com a cabeça, fracamente, mas sentiu que suas forças fugiam. Struan estava estirado na cadeira de encosto inclinado, profundamente adormecido, o rosto rejuvenescido pelo repouso, sombras escuras sob os olhos e o vermelho cru de um vergão no queixo.
— Papai está aí há mais de uma hora — disse Yin-hsi. Usava calças de seda azulclaro e uma túnica que ia até os joelhos, trespassada, cor verde-oceano, e havia flores em seus cabelos.
May-may sorriu e movimentou a cabeça, verificando que entardecia.
— Quantos dias se passaram desde que esta febre começou. Irmã?
— Foi a noite passada. Papai chegou com um monge de saias compridas. Eles trouxeram a bebida mágica, não se lembra? Eu mandei aquela miserável escrava Ah Sam ao templo, hoje de manhã cedo, a fim de agradecer aos deuses. Por que não me deixa lavá-la? Deixe que eu lhe ajeite o cabelo. Vai sentir-se muitíssimo melhor.
— Ah, sim, por favor, Irmã — disse May-may. — Devo estar com uma aparência terrível.
— Sim, Suprema Senhora, mas só porque quase morreu. Dentro de dez minutos, estará tão bonita quanto sempre foi... eu prometo!
— Seja silenciosa como uma borboleta, Irmã — disse May-may. — Não acorde o Papai, seja lá o que você fizer, e diga àqueles miseráveis escravos que, se Papai acordar antes de eu estar apresentável, você, pessoalmente, sob minhas ordens, vai colocar instrumentos de tortura em seu polegares.
Yin-hsi, toda satisfeita, afastou-se. Um vasto silêncio caiu sobre a casa.
Yin-hsi e Ah Sam entraram outra vez no quarto, nas pontas dos pés, banharam May-may com água perfumada, trouxeram calças que acabavam de sair do sol, do mais fino xantungue escarlate, com uma túnica também escarlate, e ajudaram-na a se vestir. Banharam-lhe os pés e mudaram as ataduras, seguraram-na enquanto ela escovava os dentes e lavava a boca com urina de bebê. Finalmente, May-may mastigou folhas de chá perfumadas e se sentiu muito purificada.
E, mesmo tendo o movimento e a mudança minado muito de sua força, May-may se sentiu renascida.
— Agora um pouco de sopa, Suprema Senhora. E, em seguida, uma manga fresca — disse Yin-hsi.
— E, em seguida — disse Ah Sam, com um tom de importância, as argolas de prata tilintando... temos notícias maravilhosas para a senhora.
— O quê?
— Só depois de ter comido, Mamãe — disse Ah Sam. Quando May-may começou a protestar, Ah Sam abanou a cabeça, com firmeza. — Temos de cuidar da senhora, ainda é uma paciente. A Segunda Mãe e eu sabemos que boas notícias são maravilhosas para a digestão. Mas, primeiro, precisa de alguma coisa para digerir.
May-may bebeu um pouco de caldo e comeu um pouquinho da manga cortada em fatias. Elas a encorajaram a comer mais.
— Deve fortalecer-se, Suprema Senhora.
— Termino a manga se você contar as notícias agora — disse May-may.
Yin-hsi franziu a testa. Depois, fez um sinal para Ah Sam.
— Vá, Ah Sam. Mas comece com o que Lo Chum lhe contou... como tudo começou.
— Não tão alto — disse May-may, em tom de advertência. — Não acordem Papai.
— Bom — começou Ah Sam — na noite antes de chegarmos, há sete terríveis dias, o filho bárbaro de Papai caiu nas garras do demônio em pessoa, um bárbaro. Esse monstro bárbaro armou uma trama tão suja, tão diabólica, para destruir o filho bem-amado de Papai, que quase não posso descrevê-la. E, a noite passada, hoje, enquanto a bebida mágica destruía sua doença febril, as coisas chegaram ao seu clímax fatal. Passamos a noite acordados, de joelhos, implorando aos deuses. Mas de nada adiantou. Papai estava perdido, a senhora estava perdida, nós estávamos perdidos e o pior era que... o inimigo tinha ganho o jogo. — Ah Sam fez uma pausa e, com estudada fraqueza, cambaleou até a mesa, pegou o pequeno copo cheio com o vinho que Yin-hsi trouxera como presente para May-may e bebeu-o, dominada pela emoção.
Quando estava reanimada, contou toda a história com pausas aflitivas, incríveis suspiros e movimentada gesticulação.
— E ali, no chão sujo — concluiu Ah Sam, com um sussurro soluçante, batendo os dedos na porta — cortado em quarenta pedaços, cercado pelos cadáveres de quinze assassinos, jazia o cadáver do demônio bárbaro Gorth! Assim Papai foi salvo.
May-may bateu as mãos alegremente, e congratulou-se por sua previsão. Os deuses estão certamente velando por nós! Graças a Deus falei com Gordon Chen, naquela oportunidade. Se não fosse ele...
— Ah, que maravilha! Ah, Ah Sam, você contou de uma maneira maravilhosa. Quase morri, quando você chegou àquela parte em que Papai saía de casa hoje de manhã.
Se não me tivesse dito antes de começar que as notícias eram maravilhosas, então eu realmente teria morrido.
— Olá, garota! — Struan estava acordado, fora desperto pelas palmas de May-may. Yin-hsi e Ah Sam levantaram-se depressa e fizeram curvaturas.
— Eu me sinto fantasticamente melhor, Tai-Pan — disse May-may.
— Seu aspecto está fantasticamente melhor.
— Precisa de alimento, Tai-Pan — disse May-may. — Provavelmente não comeu o dia inteiro.
— Obrigado, garota, mas não estou com fome. Vou pegar alguma coisa na residência, mais tarde. — Struan levantou-se e se espreguiçou.
— Por favor, coma aqui — disse May-may. — Fique aqui esta noite. Por favor. Não quero... bom, por favor, fique. Isto me faria muito feliz.
— Claro, garota — disse Struan. — Precisa tomar a cinchona durante os próximos quatro dias. Três vezes por dia.
— Mas, Tai-Pan, eu me sinto ótima. Por favor, não é preciso mais.
— Três vezes por dia, May-may. Durante os próximos quatro dias.
— Pelo sangue de Cristo, tem gosto de fezes de passarinho misturadas com vinagre e bílis de cobra.Uma mesa cheia de alimentos foi trazida para o quarto. Yin-hsi serviu-os e, depois, deixou-os sozinhos. May-may apanhou elegantemente alguns camarões fritos.
— O que fez hoje? — perguntou.
— Nada de importante. Mas um problema está resolvido. Gorth está morto.
— Ah? Como? — May-may perguntou e ficou adequadamente surpresa e chocada, quando ele lhe contou as novidades. — Você é muito inteligente, Tai-Pan. Mas seu pagode é fantasticamente bom.
Struan empurrou seu prato, sufocou um bocejo e pensou a respeito de pagode.
— Sim.
— Será que Brock vai ficar terrivelmente zangado?
— A morte de Gorth não foi por minhas mãos. Mesmo se fosse, ele merecia morrer. De certo modo, eu sinto ele ter morrido dessa maneira.
A morte de Gorth e a fuga vão deixar Brock furioso, pensou. É melhor me preparar, com um revólver ou uma faca. Será que ele vem atrás de mim, como um assassino de emboscada? Ou abertamente? Eu me preocuparei com isso amanhã.
— Culum deve voltar logo.
— Por que não vai para a cama? Parece muito cansado. Quando Lo Chum trouxer a notícia, Ah Sam o acordará, hein? Acho que também gostaria de dormir agora.
— Acho que vou dormir, sim, garota. — Struan beijou-a, ternamente, e prendeu-a em seus braços. — Ah, minha garota. Fiquei com tanto medo, por sua causa.
— Obrigada, Tai-Pan. Vá dormir agora, e amanhã eu estarei muito melhor, e você também.
— Tenho de ir a Hong Kong, garota. Logo que possível. Por uns poucos dias. Ela sentiu um aperto no coração.
— Quando irá, Tai-Pan?
— Amanhã, se você estiver bem.
— Pode fazer uma coisa por mim, Tai-Pan?
— Claro.
— Leve-me com você. Não quero... ficar sozinha aqui, enquanto você está lá.
— Você ainda não está suficientemente bem para se mover, e eu preciso ir, garota.
— Ah, mas amanhã eu estarei bem. Prometo. Ficarei na cama, no navio, e podemos permanecer no Resting Cloud, como antes. Por favor.— Serão apenas uns poucos dias,
garota, e seria melhor para você ficar aqui. Muito melhor. Mas May-may se aninhou perto dele, arreliando-o.
— Por favor. Serei muito boa, tomarei todas as xícaras sem criar problemas e ficarei na cama, e ficarei boa, comerei, comerei, comerei, ficarei fantasticamente muito boa. Prometo. Por favor, não me deixe até eu realmente melhorar.
— Bom, durma e decidiremos amanhã. Ela o beijou.
— Nada de decidir amanhã. Se for embora, eu não comerei, não tomarei as xícaras de chá, por Deus! Ouça! — disse ela, imitando as maneiras dele. — Sua velha mãe vai pôr os pés no tombadilho e não se mexerá!
Struan abraçou-a, com força. Minuto a minuto, sentia que ela ficava mais forte. Deus abençoe a cinchona.
— Está bem, mas não iremos amanhã. No dia seguinte, ao amanhecer. Se você estiver suficientemente bem. Se você...
— Ah, obrigada, Tai-Pan. Eu estarei muito bem.
Ele a afastou de si e examinou-a minuciosamente. Sabia que levaria meses para ela recuperar sua antiga beleza. Mas não é só um rosto que torna a pessoa bela, disse a si próprio. É aquilo que se encontra por trás, nos olhos e no coração.
— Ah, garota, você é tão linda. Eu a amo. Ela tocou o nariz dele, com seu dedinho.
— Por que dizer essas coisas à sua velha mãe? — Ela o abraçou com força. — Eu também acho que você é maravilhosamente lindo.
Então ele lhe deu as duas xícaras e ela tapou o nariz e bebeu-as. Ela colocou algumas folhas perfumadas de chá na boca, para tirar o gosto. Ele a ajeitou na cama como se fosse uma criança, beijou-a outra vez e foi para seu quarto.
Tirou a roupa e se deitou, permanecendo cheio de felicidade nos lençóis frescos. O sono veio rapidamente. E enquanto ele dormia, o assassino chinês continuava a ser interrogado. Seus torturadores eram muito pacientes — e muito hábeis na arte de extrair informações.
CAPÍTULO QUARENTA E UM
O China Cloud voltou ao porto de Macau pouco depois do amanhecer. Quando se aproximava de sua amarração, Struan correu pelo desembarcadouro. Seu escaler estava à espera.
— Dirk!
Ele ergueu os olhos, espantado.
— Bom-dia, Liza!
Liza Brock estava lívida e abatida.
— Vou com você.
— Claro. — Struan estendeu a mão para ajudá-la a subir, mas ela recusou-a.
— Largar! — ele ordenou.
Os remadores deram um forte impulso. O dia estava esplêndido e o mar calmo. Struan viu a pequena figura do Capitão Orlov no tombadilho do navio e sabia que estava sendo observado. Bom, ele pensou.
— Vou levar o corpo de Gorth de volta a Hong Kong amanhã — disse Liza. Struan não respondeu. Simplesmente, fez um aceno afirmativo com a cabeça e olhou para seu navio. Quando chegaram ao passadiço, ele deixou Liza subir primeiro ao convés.
— Bom-dia — disse o Capitão Orlov.
— A Srta. Brock está a bordo? — perguntou Struan.
— Sim.
— O senhor... o senhor os casou? Culum e a minha Tess? — perguntou Liza.
— Sim. — Orlov virou-se para Struan. — Você me colocou sob as ordens dele. Ele ordenou que eu os casasse. O capitão é o capitão e esta é sua lei. Eu obedeci às ordens.
— Concordo plenamente — disse Struan, com brandura. — Você não era responsável, exceto em questões de marinharia. Tornei isto claro a Culum. Liza virou-se para Struan, furiosamente.
— Então foi deliberado. Você combinou tudo isso. Sabia que eles iam fugir.
— Não, ele não sabia, Sra. Brock. — Culum saía do passadiço, confiante, porém tenso. — A idéia foi minha. Olá, Tai-Pan. Ordenei a Orlov que nos casasse. A responsabilidade é minha.
— Sim. Vamos para baixo, rapaz.
Liza, com o rosto cinzento, pegou Culum pelo ombro.
— Tem sífilis?
— Claro que não. O que pôs isso em sua cabeça? Acha que eu casaria com Tess, se tivesse?
— Peço a Deus que esteja dizendo a verdade! Onde está Tess?
— Na cabina. Nós... venha para baixo.
— Ela... ela está bem?
— Claro, Sra. Brock!— Este não é o lugar para tratar de assuntos de família — disse Struan. Ele desceu o passadiço e Liza o acompanhou.
— Olá — disse Tess, timidamente, saindo da cabina principal.
— Olá, mamãe.
— Você está bem, amor?
— Ah, sim, ah, sim.
Então mãe e filha se atiraram nos braços uma da outra. Struan fez sinal a Culum para sair da cabina.
— Desculpe, Tai-Pan, mas decidimos que assim era melhor.
— Escute, rapaz. Houve problemas enquanto você estava fora. — Ele contou a Culum a respeito de Gorth. — Não há dúvida de que foi ele. Ele projetou tudo, como nós pensamos.
— Não há nenhuma possibilidade de que, após sete dias... há?
— Não. Mas é melhor ir ao médico de Brock. Isto fará com que Liza se tranqüilize.
— Você tinha razão outra vez. Você me advertiu. Deus do céu, você me advertiu. Por que Gorth faria uma coisa dessas?
— Como podia qualquer homem fazer isso a outro, ele perguntou a si próprio.
— Não sei. Está tudo bem entre você e Tess?
— Ah, sim. Maldito Gorth! Ele estragou tudo. — Ele tirou duas cartas do bolso. — Aqui estão as respostas de Skinner e Gordon.
— Obrigado, rapaz. Não se preocupe...
— Vamos desembarcar — disse Liza, colocando-se com todo seu peso à porta. — Vou levar Tess, e... Culum interceptou-a.
— Não vai levar minha esposa para parte alguma, Sra. Brock. Quanto aos boatos a respeito da sífilis, iremos ao seu médico imediatamente, e resolveremos isso agora mesmo.
— Tyler vai anular esse casamento. Foi sem permissão.
— Estamos casados diante de Deus, legalmente, e não se fala mais nisso. — Culum dizia o que ele e Tess haviam planejado. Mas sua ousadia parecia vazia, agora, por causa de Gorth. — Sinto muito que tenhamos fugido... não, não sinto. Estamos casados e farei tudo que estiver ao meu alcance para ser um bom genro, mas Tess fica comigo e fará o que eu disser.
— Tyler vai açoitá-lo!
— Ah, mamãe, não — exclamou Tess, correndo para Culum.
— Estamos casados e é a mesma coisa que se esperássemos três meses. Diga a ela, Tai-Pan, diga a ela que está errada.
— Tenho certeza de que seu pai vai ficar zangado, Tess. E com razão. Mas também tenho certeza de que ele perdoará a ambos. Liza, não pode perdoá-los aqui, agora?
— Não sou eu, Dirk Struan, quem tem de perdoar.
— Vamos, mamãe — disse Tess.
Nada pode acontecer agora, ela disse a si mesma. Agora que somos marido e mulher e ele me amou e doeu como antes, mas de maneira diferente. E ele está satisfeito e tem sido tão gentil e maravilhoso. Ela se esquecera de Nagrek para sempre.
— Vamos todos tomar juntos o desjejum.
Liza enxugou os lábios sobre os quais nasciam gotas de suor.
— É melhor você ir para casa. Mandarei um aviso para seu pai.
— Vamos ficar no Hotel Inglês — disse Culum.
— Não precisa fazer isso, Culum — disse Struan. — Há uma suíte para você em nossa residência.
— Obrigado, mas decidimos que assim é melhor. Achamos que devemos voltar para Hong Kong imediatamente, ver o Sr. Brock e pedir seu perdão. Por favor, Sra. Brock, vamos ser amigos. Papai me disse o que aconteceu com Gorth. Não foi culpa dele.
— Acho que foi, rapaz. E você não pode partir imediatamente. Temos de levar o caixão de volta, amanhã.
— O quê? — perguntou Tess.
— Gorth foi morto, querida — disse Culum. — Ontem.
— O quê?
— Ele foi traiçoeiramente morto por assassinos! — Liza gritou.
— Ó, Deus, não!
Struan contou-lhe tudo. Exceto o que Gorth tentara fazer a Culum.
— Não tive escolha senão desafiá-lo. — Finalizou Struan. — Mas seu sangue não está em minhas mãos. Acho que é melhor todos desembarcarmos. Tess soluçava, quieta. Culum mantinha seu braço em torno dela.
— Vamos, querida, enxugue os olhos. Não foi culpa nossa... nem de papai. — Ele a conduziu para fora da cabina. Struan rompeu o silêncio.
— Eles estão casados e felizes, Liza. Por que não deixar as coisas como estão?
— Se fosse por mim, eu diria sim. Se o que Culum diz é verdade. Mas Tyler não fará isso... você o conhece, como ele o conhece. Eu sei que você planejou isso, Dirk. Ele vai saber. Ele o matará... ou tentará matá-lo, e acho que você planejou tudo assim. Tyler e você matarão um ao outro, quando ele começar a persegui-lo, ou você a ele. Por que não deixou as coisas como estavam? Três meses não eram mais tanto tempo. Mas agora... ó, Deus!
***
Struan ergueu os olhos das cartas, enquanto Culum entrava desanimado no escritório e se sentava.
— Vai tudo bem?
— Sim. O médico disse que eu estou são.
— Já almoçou?
— Não. Nenhum de nós tinha vontade de comer. Ah, Deus!... tudo ia tão bem. Maldito Gorth e maldita sua loucura.
— Como vai a Sra. Brock?
— Tão bem quanto se poderia esperar... como diriam os jornais. Como vai... a cinchona chegou?
— Sim. Ela está ótima, agora.
— Ah, isso é maravilhoso!
— Sim.
Mas, apesar de seu sentimento de bem-estar, Struan estava perturbado por uma vaga mas penetrante apreensão. Não era nada que ele pudesse articular, só uma sensação de perigo, em alguma parte. As cartas não lhe deram nenhuma sugestão quanto ao que poderia ser. Gordon Chen escrevia que ainda tinha esperanças de achar a cinchona. E Skinner dissera que liberaria a notícia imediatamente, e esperava Struan naquele mesmo dia.
Mas agora não poderá mais ser hoje. Queria muito ter sido firme e dito a May-may que ela ficaria.
— Voltarei a Hong Kong amanhã. É melhor vocês dois virem comigo.
— Acho melhor irmos no White Witch, com a Sra. Brock e Lillibet — disse Culum.
— A Sra. Brock mandou notícia a Brock por uma lorcha, hoje pela manhã. A nosso respeito... e sobre Gorth.
— Não se preocupe, rapaz. Liza Brock se conformará e Tyler também não o incomodará. Ele fez um juramento, lembra-se? Culum observou o Tai-Pan por um momento.
— Você sabia que eu ia levar Tess no China Cloud?
— Bom, rapaz, quando ela sumiu eu fiquei esperando que sim — disse Struan, circunspectamente.
Culum pegou um peso de papel que se encontrava sobre a escrivaninha. Era de jade branco e pesado.
— Fui muito estúpido.
— Não acho. Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Agora você está com tudo resolvido.
— Fui estúpido porque agi outra vez como um fantoche.
— Hein?
— Acho que você colocou em minha cabeça a idéia de fugir. Eu acredito que você, deliberadamente, colocou Orlov sob meu comando, sabendo que eu lhe ordenaria para nos casar. Acho que você mandou a mim e a Tess para fora sabendo que isto enlouqueceria Gorth e o faria atacar você publicamente, dando-lhe a oportunidade de matá-lo diante de todos. Não foi isso?
Struan ficou sentado, imóvel, em sua cadeira. Seus olhos não se desviaram dos olhos de Culum.
— Não sei direito como lhe responder, Culum. Não sei bem se você quer mesmo uma resposta. O fato é que você queria casar com Tess depressa e está casado. O fato é que Gorth realmente tentou matá-lo, da maneira mais traiçoeira que um homem poderia imaginar. O fato é que ele está morto. O fato é que eu lamento não ter tido o prazer de matá-lo, mas o fato é que seu sangue não está em minhas mãos. O fato é que, estando ele morto, você está vivo... você e Tess. O fato é que Brock, embora querendo fazer de tudo, com relação ao assunto, estará preso pelo juramento sagrado prestado por ele, e dar a você um ancoradouro seguro, num porto seguro. E o fato final é que, agora, logo você poderá assumir. Como o Tai-Pan.
Culum recolocou o peso de papel em seu lugar.
— Não estou preparado para ser o Tai-Pan.
— Eu sei. Mas logo estará. Voltarei para a Inglaterra dentro de poucos meses — disse Struan. — Levarei o Lótus Cloud no próximo ano e cuidarei de Wu Kwok. Mas tudo o mais será problema seu.
Culum pensou em ser Tai-Pan, em agir sozinho. Mas sabia que agora não agia mais sozinho. Agora, ele tinha Tess.
— Acho que posso fazer as pazes com Brock... se você não tentar fazer tudo em meu lugar — disse ele. — Planejou tudo isso? Posso ter um “sim” ou um “não”? — Ele esperou, desesperadamente desejoso de ouvir um “não”.
— Sim — disse Struan, deliberadamente. — Usei certos fatos para alcançar um fim calculado.
— Quando eu for Tai-Pan, ingressarei em Struan e Companhia com Brock e Filhos
— disse Culum. — Brock será o primeiro Tai-Pan e eu só assumirei depois dele! Struan ficou em pé, de um salto.
— Aquele filho da mãe não será o Tai-Pan da Casa Nobre. Ele não dirigirá meus navios!
— Não são seus navios. São da companhia. Será Brock só outro peão, para ser usado ou abusado de acordo com seus caprichos?
— Juro por Deus, Culum, eu não entendo você. Você tem toda a sua vida em suas próprias mãos e agora fará a única coisa capaz de destruí-la.
Culum de repente viu o pai com clareza — como homem. Viu a dimensão e a força do rosto castigado pelas intempéries, o cabelo vermelho-dourado e o verde surpreendente dos olhos. E percebeu que seria sempre o instrumento desse homem. Sabia que não poderia nunca combatê-lo, e nem convencê-lo de que a única maneira para ele sobreviver como Tai-Pan seria unir-se a Brock e apostar que Brock deixaria a ele e a Tess em paz.
— Não poderei nunca ser o Tai-Pan da Casa Nobre. Não sou como você — disse, com calma determinação. — Eu não quero ser, e nunca serei. Houve uma batida à porta.
— Sim? — disse Struan, irritado. Lo Chum abriu a porta.
— Soldado quer ver senhor, pode?
— Dentro de um minuto. Culum levantou-se.
— Acho que vou embora e...
— Só uni minuto, Culum. — Struan deu as costas a Lo Chum. — Pode mandar entrar. Lo Chum se abespinhou, cheio de irritação, e abriu mais a porta. O jovem oficial português entrou.
— Boa-tarde, senhor.
— Por favor, sente-se, Capitão Machado. Conhece meu filho, Culum?
Apertaram-se as mãos e o oficial se sentou.
— Como líder dos cidadãos de nacionalidade inglesa, meus superiores pediram-me para lhe comunicar oficialmente o resultado de nossa investigação sobre o assassinato do Senhor Brock — ele começou.
— Pegou os outros? — interrompeu Struan. O oficial sorriu e abanou a cabeça.
— Não, senhor. Duvido que vamos pegar. Passamos o assassino às autoridades chinesas, como é nossa obrigação fazer. Eles o submeteram a uma investigação à sua maneira, que é inimitável. Ele admitiu ser membro de uma sociedade secreta. A Hung Mun. Tríades, creio que a chamam assim. Parece que ele veio para cá, de Hong Kong, há alguns dias. Segundo ele, há uma sede dessa sociedade que floresce no Tai Ping Shan. — O oficial sorriu, outra vez. — Parece também que tem muitos inimigos, senhor Struan. Aquele cabrão declarou que seu... seu filho natural, Gordon Chen, é o líder.
— É a melhor piada que já ouvi em minha vida — disse
Struan, fingindo divertir-se. Mas considerava muito cuidadosamente a possibilidade de ser verdade. E, se for? Ele perguntou a si mesmo. Não sei. Mas é melhor descobrir depressa, de qualquer jeito.
— Os mandarins também se divertiram, assim disseram -•contou-lhe Machado. — De qualquer maneira, infelizmente, o demônio pagão morreu antes de se poder conseguir
o nome do verdadeiro líder. — Acrescentou com desdém. — Declarou ter sido enviado aqui para assassinar o Sr. Brock obedecendo a ordens do líder. Claro que ele deu os nomes de seus cúmplices, mas também não fazem sentido, como o resto de sua história. Foi um simples roubo. Esses malditos Tríades não passam de bandoleiros. — Ou talvez — ele disse, com agudeza — uma questão de vingança.
— Hein?
— Bom, senhor. O jovem senhor Brock não era... como direi... exatamente admirado em certas áreas de má reputação. Parece que freqüentava um bordel perto do qual foi encontrado. Agrediu brutalmente uma prostituta, há mais ou menos uma semana. Ela morreu anteontem. Acabamos de receber uma queixa contra ele, dos mandarins. Quem sabe? Talvez os mandarins tenham decidido que dente por dente, e tudo não passe de uma forma de desviar a atenção. Sabe como eles são tortuosos, em sua maneira de agir. Talvez seja bom que esteja morto, porque teríamos de tomar medidas embaraçosas para todos. — Ele se levantou. — Meus superiores, é claro, enviarão um relatório oficial a Sua Excelência, já que um cidadão de nacionalidade inglesa foi envolvido.
Struan estendeu-lhe a mão.
— Quer agradecer a eles em meu nome? E será que tudo isso não poderia ser silenciado? Quero dizer, a parte referente à prostituta. Meu filho é casado com a irmã dele, e gostaria de proteger o nome dos Brocks. Tyler Brock é um antigo sócio.
— Entendo — disse o oficial, com um tom ligeiramente irônico. Deu uma olhada em Culum. — Parabéns, senhor.
— Obrigado.
— Mencionarei sua sugestão a meus superiores, Sr. Struan. Tenho certeza de que eles avaliarão a delicadeza de sua posição.
— Obrigado — disse Struan. — Se pegar os outros, a recompensa ainda vale.
O oficial bateu continência e saiu.— Obrigado por sugerir aquilo — disse Culum. — O que iria acontecer com Gorth?
— Ele teria sido enforcado. Existem sólidas leis inglesas referentes a assassinato.
— Seria irônico, se essa história fosse verdadeira.
— Hein?
— Gordon Chen e a sociedade secreta. Se, realmente, você não teria planejado o desafio a Gorth porque já combinara secretamente que ele fosse assassinado.
— É uma terrível acusação. Terrível.
— Não o estou acusando — disse Culum. — Eu simplesmente disse que seria irônico. Sei que você é o que é; qualquer assassinato que cometer terá de ser abertamente, de homem para homem. Esta é a maneira como a mente do Tai-Pan funcionaria. Mas a minha, não. Nunca serei assim. Estou cansado de colocar pessoas em armadilhas e usálas. Você precisa me suportar como puder. E, se sua Casa Nobre morrer em minhas mãos... bom, para usar suas próprias palavras, é uma questão de pagode. Seu prestígio está salvo. Você partirá como o Tai-Pan, aconteça o que acontecer em seguida. Jamais o entenderei e você jamais me entenderá, mas podemos ser amigos, mesmo assim.
— Claro que somos amigos — disse Struan. — Só uma coisa... prometa que nunca se unirá a Brock.
— Quando eu for Tai-Pan, terei de fazer o que achar melhor. A decisão não caberá mais a você. É a lei que você criou e à qual eu jurei obedecer.
Da praia, vieram ruídos. Em alguma parte, à distância, os sinos de uma igreja começaram a bimbalhar.
— Vai jantar conosco esta noite? No clube?
— Sim. Culum partiu. Struan permaneceu à sua escrivaninha. Como posso inflamar Culum?, perguntou a si mesmo.
Não conseguia imaginar uma resposta. Mandou buscar seu secretário e tomou providências no sentido de que todos os negócios da companhia fossem concluídos antes de sua volta para Hong Kong. Saiu do escritório e, a caminho da casa de May-may, pensou em Brock. Será que ele vai invadir o clube furioso, esta noite, como Gorth fez?
Struan parou por um momento, e olhou para o mar. O White Witch e o China Cloud estavam lindos, ao sol da tarde. Seus olhos vaguearam por Macau, e viu a catedral. Por que aquele bispo diabólico não deu um preço justo para a casca de árvore? Seja justo você próprio, Dirk. Ele não é nenhum demônio. Sim, mas prendeu você numa armadilha. Agora, você jamais o esquecerá, pelo resto de sua vida — e fará todo tipo de favores à igreja. É aos demônios católicos. Serão mesmo demônios? Vamos ver a verdade.
Não. O único demônio que você conhece é Gorth, e Gorth está morto — liquidado. Graças a Deus! Sim.
Gorth está morto. Mas não esquecido.