— Falemos a respeito disso amanhã, está bem?

— Muito sensato! Sim, vamos deixar passar um tempinho, para assentar as idéias. Isso mesmo. Vou ficar satisfeito em receber seus conselhos outra vez. Bom, parece que estamos prontos para começar. Aliás, fiquei encantado com aquele outro gesto seu. — Longstaff se afastou, todo feliz.

— O que ele quis dizer com isso? — perguntou Robb.

— Não sei. Referia-se às barras de prata, suponho. Ouça, Robb, amanhã será você quem o receberá — disse Struan. — E lhe dirá o que fazer.

— E ele deve fazer o quê? — O rosto de Robb se enrugou num sorriso.

— Tomar os fortes Bogue. E depois atacar Cantão. Imediatamente. Colocar Cantão sob resgate. Seis milhões de taéis de prata. Depois, quando o vento estiver favorável, seguir para o norte. Como estava programado antes.

— Mas ele quer falar com você.

— Você pode fazer com ele o que quiser, agora. Ele viu as barras de prata.

— Ele não vai confiar em mim como confia em você.

— Dentro de pouco mais de cinco meses, terá de confiar. Como Sarah recebeu a notícia?

— Como você esperava. Ela partirá, de qualquer maneira. — Robb olhou para o estrado, onde havia uma excitada movimentação. Longstaff subia os degraus. — Você o tratou tão bem, Dick, mesmo depois de ele ter sido tão insultuoso. Entretanto, sei que ele está marcado por você, agora. Não está?

— Ele é o primeiro governador de Hong Kong. Os governadores duram quatro anos. Haverá tempo bastante para cuidar de Longstaff.

— E o outeiro?

— Isto já está decidido.

— Vai deixar que Brock fique com ele?

— Não.

***

— Senhores — disse Longstaff, aos comerciantes reunidos — antes de começarmos, quero confirmar os princípios da propriedade de terras e sua venda, como me foram recomendados pelo Governo de Sua Majestade. — Começou a ler um documento oficial. — Toda a terra pertence a Sua Majestade. Será feita uma partilha em leilão público a quem fizer lances mais altos a uma renda anual da terra... a renda anual será o objeto dos lances. Arrendamentos de novecentos e noventa e nove anos. Um prédio com valor mínimo de mil dólares deverá ser construído dentro de um ano, e o imposto sobre ele está fixado em quatro xelins e quatro centavos de dólar. Caso contrário, a partilha será desfeita. Deverá ser pago em espécie um depósito equivalente à metade do total do lance. — Ele ergueu os olhos. — Inicialmente, planejávamos oferecer cem lotes hoje, mas não foi possível demarcá-los todos. Aproximadamente cinqüenta estão em oferta, e o resto será posto logo que for possível. Também recomendei que os compradores tenham permissão para adquirir seus lotes no regime de livre propriedade, sujeitos à vontade de Sua Majestade. Sim, e também os compradores de “lotes marinhos” poderão ainda escolher lotes “suburbanos” e “rurais”. Os lotes marinhos estão demarcados com uma largura de cem pés, em frente à Estrada da Rainha e estendendo-se até o mar. — Ele ergueu os olhos e sorriu, amavelmente.

— Com a oferta de terra para a venda, hoje, podemos presumir que estão lançados os alicerces da cidade. Já foram separados os lotes de terra para o Tribunal, as instalações governamentais, a mansão do governador, a cadeia, um campo de críquete, a praça do mercado e os setores destinados aos orientais. Chamei formalmente nossa futura cidade de Cidade da Rainha!

Houve vivas.

— Esta é a primeira oportunidade que tenho, depois de muito tempo, de falar a todos vocês. Eu diria que teremos de enfrentar épocas difíceis. Mas não vamos desanimar. Devemos todos trabalhar juntos. Devemos colocar nossas costas sob a charrua e então, com a boa ajuda de Deus, conquistaremos os pagãos para a glória de Sua Majestade Britânica e para a glória da Colônia de Hong Kong.

Houve três vivas para a rainha, três vivas para a colônia e três vivas para Longstaff. E os espectadores chineses conversavam, espiavam e riam.

— Agora, se o Sr. Brock fizer o favor de afastar seus pensamentos da mudança radical de situação da Casa Nobre, declaro aberto o leilão! Brock e Gorth ferveram de raiva, enquanto eram engolidos pelas risadas. Longstaff saiu da plataforma e Glessing se aproximou. .— Quero repetir, Excelência — disse Glessing — que, devido ã falta de tempo, nem todos os lotes foram devidamente demarcados.

— Detalhes. Detalhes, meu caro companheiro. O que importam alguns poucos pés de terreno? Há terra suficiente para todos. Por favor, vá em frente, Culum, meu querido rapaz. Bom-dia para você. — Longstaff caminhou para o seu cúter e, ao passar por Struan, sorriu e tirou o chapéu. — Amanhã ao meio-dia, Dirk.

Culum enxugou o suor do rosto e deu uma olhada ao homenzinho que estava a seu lado.

— Sr. Hibbs?

Henry Hardy Gibbs esticou bem seus cinco pés e meio de altura e subiu na plataforma.

— Bom-dia, minha gente — disse, e acrescentou, com um sorriso untuoso: — Sou ‘Enry ‘Ardy ‘Ibbs. Da cidade de Londres, da firma de ‘Ibbs, ‘Ibbs e ‘Iggs, Leiloeiros e Corretores, leiloeiro oficial de Sua Excelência, o ilustre Longstaff. A seu serviço. — Era um gnomo sujo, piolhento, careca e com maneiras servis. — Lote número um. Quem dá mais?

— Onde diabo você achou esse homem, Culum? — perguntou Struan.

— Num dos navios mercantes — Culum ouviu a si mesmo responder, desejando que o dia já tivesse terminado. — Ele trabalhava para pagar sua passagem de Cingapura para cá. Meteram a mão no bolso dele, lá, e roubaram todo seu dinheiro.

Struan ficou escutando, enquanto Hibbs, com eficiência e habilidade, ia fazendo os preços subirem cada vez mais. Ele examinou a multidão e franziu a testa.

— O que há, Dirk? — perguntou Robb.

— Estava procurando Gordon. Você o viu?

— A última vez em que o vi estava caminhando em direção ao Cabo Glessing. Por quê?

— Não tem importância — disse Struan, achando muito estranho Gordon não estar ali. Pensei que ele ia comprar terra para si mesmo. Que investimento melhor poderia haver?

Os lances para os lotes foram feitos rapidamente. Todos os comerciantes sabiam que uma colônia significava permanência. Permanência significava que o valor da terra subiria como um foguete. Especialmente, sendo a colônia numa ilha, onde havia pouca terra plana para construir. Terra significava segurança; e a terra jamais poderia ser perdida. Seriam ganhas fortunas.

Enquanto o leilão continuava, Struan sentiu que a excitação aumentava. No meio dos homens comprimidos uns contra os outros, Brock estava à espera, igualmente tenso. Gorth se encontrava a seu lado, com os olhos saltando de Struan para seus homens, que cercavam as barras de prata. Struan e Brock compraram os lotes com relação aos quais haviam entrado em acordo. Mas os preços foram mais altos do que eles esperavam, pois os lances se tornaram muito competitivos. Eles fizeram lances um contra o outro por alguns lotes menores. Alguns Struan comprou. De outros ele desistiu.

O último dos lotes marinhos foi oferecido e comprado. Depois, os lotes suburbanos e rurais foram oferecidos e também comprados por altos preços. Só restava o outeiro. Era o maior pedaço de terra, e o melhor.

— Bom, cavalheiros, acabamos — disse Hibbs, com a voz rouca de tanto leiloar.

Os que compraram têm de pagar metade, agora. Os recibos serão passados pelo vice secretário colonial. Façam o favor! Um silêncio pasmado se abateu sobre a multidão.

— A venda não terminou ainda. — A voz de Struan rompeu o ar.

— Sim, por Deus! — disse Brock.

— Como, cavalheiros? — perguntou Hibbs, cautelosamente, sentindo que havia algum problema.

— E o outeiro?

— Que outeiro, Excelência? Struan apontou, de dedo em riste.

— Aquele outeiro!

— Aquele, ah, não está na lista, meu senhor. Nada tem a ver comigo, senhor — disse Hibbs, apressadamente, e se preparou para correr. Ele olhou para Culum, que estava em pé, rígido como um pedaço de madeira. — Não é, Excelência?

— Não — Culum forçou a si próprio a olhar para seu pai, com o silêncio sufocando-o.

— Por que não está na lista, por Deus?

— Porque... porque, bom, já foi comprado.

Os pêlos da nuca de Culum se arrepiaram, quando ele viu — como se fosse um sonho — o pai aproximar-se dele. Todas as palavras tão bem pensadas sumiram de sua cabeça. Os motivos. Que ele dissera a Longstaff, aquela manhã, em desespero, que seu pai pensava em colocar ali uma igreja. Para o benefício de toda Hong Kong. Era a única maneira, Culum queria gritar. Não vê? Você teria destruído todos nós. Se eu lhe dissesse, você jamais teria escutado. Não vê?

— Comprado por quem?

— Por mim. Para a Igreja — gaguejou Culum. — Uma libra por ano. O outeiro pertence à Igreja.

Você tomou meu outeiro? — As palavras foram pronunciadas com suavidade, mas tinham farpas, e Culum sentiu sua crueldade.

— Para a igreja. Sim — ele resmungou. — O documento... o documento foi assinado esta manhã. Eu... Sua Excelência assinou o documento. Em perpetuidade.

Você sabia que eu queria aquela terra?

— Sim. — Tudo que Culum via era a luz ofuscante que parecia jorrar dos olhos de seu pai, consumindo-o, tirando-lhe a alma. — Sim. Sim. Mas decidi que seria para a Igreja. E agora o outeiro pertence à Casa de Deus.

Então, você ousou contrariar-me?

Houve um silêncio frenético. Até Brock estava apavorado com o poder que parecia fluir de Struan, e envolver a todos.

Culum esperou pelo golpe que, ele sabia, viria — todos sabiam que viria.

Mas os punhos de Struan se descerraram, ele deu uma volta e se afastou do vale.

O estouro de riso de Brock despedaçou o funesto silêncio e todos recuaram

involuntariamente.

— Cale a boca, Brock — disse Quance. — Cale a boca.

— Vou calar, Aristotle — disse Brock. — Vou calar.

Os negociantes se dividiram em grupos sussurrantes e Hibbs chamou, com voz trêmula:

— Quem comprou alguma coisa, faça o favor de vir por aqui. Por gentileza, cavalheiros. Brock estudava Culum, quase com piedade.

— Eu diria que seus dias estão contados, rapaz — disse ele. — Você não conhece aquele demônio como eu conheço. Cuidado com as costas. — Ele se aproximou de Hibbs, para pagar a terra que comprara.Culum tremia. Sentia que as pessoas o observavam. Sentia o pasmo de todos. Ou seria medo?

— Pelo amor de Deus, por que você não lhe pediu? — Robb disse, mal se recuperando de seu choque.

— Hein? Antes de fazer isso?

— Ele não teria concordado, teria?

— Não sei. Não sei. Talvez concordasse. Ou poderia ter deixado Brock... — parou, fracamente. — E não preste nenhuma atenção ao que Brock disse. Ele está apenas tentando amedrontar você. Não há necessidade de se preocupar. Nenhuma.

— Acho que papai é o Demônio. Robb estremeceu, involuntariamente.

— Isso é uma tolice, rapaz. Uma tolice. Você está apenas superexcitado. Todos estamos. As barras de prata... e... bom, a excitação do momento. Não há nada com que se preocupar. Claro que ele entenderá quando... — As palavras de Robb se tornaram imprecisas. Depois, saiu correndo atrás do irmão.

Culum estava achando muito difícil focalizar alguma coisa. Os sons pareciam mais fortes do que antes, mas as vozes mais distantes, as cores e as pessoas bizarras. Seus olhos viram Mary Sinclair e seu irmão à distância. De repente, estavam falando com ele.

— Desculpem — disse ele. — Não os escutei.

— Eu apenas disse que será um belo lugar para a igreja. — Horatio forçou um sorriso. — Um lugar perfeito.

— Sim.

— Seu pai sempre quis aquele outeiro. Desde que viu Hong Kong pela primeira vez — disse Mary.

— Sim. Mas agora pertence à Casa de Deus.

— Sim — disse ela, tristemente. — Mas, a que preço? Depois, eles já não falavam mais com ele, e Culum olhava para Hibbs.

— Sim?

— Com licença, senhor, mas há os recibos. Para os que compraram a terra — disse Hibbs, desajeitadamente.

— Recibos?

— Sim, os recibos da terra. O senhor precisa assiná-los. Culum observava a si mesmo, ao seguir Hibbs ao estrado. Mecanicamente, assinou seu nome.

Robb corria pela Estrada da Rainha, sem ligar para os olhares horrorizados que o acompanhavam, com o peito doendo pelo exercício da caçada.

— Dirk, Dirk — gritou.

Struan parou por um momento.

— Diga a ele que quero vê-lo em seu outeiro, ao amanhecer.

— Mas, Dirk, Culum estava apenas...

— Diga a ele para ir sozinho.

— Mas, Dirk, ouça um momento. Não vá embora. Espere. O pobre rapaz estava apenas...

Diga a ele para ir sozinho.


CAPÍTULO TREZE

Aquela noite, durante o turno intermediário, o vento mudou de direção do lestenordeste para o leste e diminuiu a velocidade em um nó. A umidade aumentou, a temperatura subiu um grau e os capitães da frota estremeceram, durante o sono, e acordaram por um momento, sabendo que outra monção irrompia. Agora, o vento iria soprar quente e úmido do leste, durante três meses, até maio, e depois mudaria de direção, tão repentinamente como agora, para o sul, ganhando calor e umidade. Depois, no outono, viraria para leste-nordeste outra vez, seco e frio, até a primavera do ano seguinte, quando novamente se deslocaria para leste e cairia um nó.

Os capitães dormiram outra vez, mas custaram mais tempo. O vento leste anunciava o período dos tufões.

Brock mudou de posição, irritado, em seu beliche, e se coçou.

— O que há com você, Tyler? — Liza perguntou, instantaneamente acordada e lúcida, como acontece com a mulher, quando o companheiro está perturbado, ou o filho doente. Ela estava no beliche atravessado na fétida cabina.

— Nada, Liza. O vento mudou, só isso. Vai descansar. — Ele ajustou seu barrete de flanela e bocejou fortemente.

— O que está fazendo?

— Abrindo a portinhola. Vá dormir.

Brock virou-se e fechou os olhos, mas sabia que perdera o sono. Sentiu o cheiro do vento penetrar na cabina.

— Logo haverá nevoeiro — disse.

Liza voltou para seu beliche e o colchão de palha rangeu. Ela ficou confortavelmente deitada sob as cobertas.

— São as barras de prata que o preocupam, não é?

— Sim.

— Não se preocupe agora. Amanhã você se preocupa. — Ela bocejou e se coçou, com a mordida de um percevejo. — Será uma maravilha ficar em terra outra vez. Vai demorar muito tempo para construir uma casa?

— Não muito — ele disse, e se virou.

— Esse baile que Struan vai dar — disse ela, escolhendo as palavras com muito cuidado. — É um tapa no seu rosto.

— Ridículo. Vá dormir. — Brock ficou instantaneamente na defensiva.

— Claro, se nós estivéssemos vestidos apropriadamente, seria outro tapa em resposta, hein, Tyler?

Brock gemeu, mas teve o cuidado de não deixar Liza ouvir. A notícia sobre o baile correra por toda a frota no momento mesmo em que Struan contara a Skinner. Todo marido na Ásia falara mal do Tai-Pan, pois sabiam que ele lhes roubara a paz. E o sangue de todo homem correu mais depressa. A aposta começara. Shevaun Tillman era a grande favorita.

— Quer dizer, tampar os canhões dele com enfeites? — disse. — Boa idéia, Liza. Você fica muito bem naquele seu vestido vermelho de seda que eu...

— Aquele velho trapo? — Liza disse, com uma fungadela de desprezo. — Você deve estar brincando!

— Velho, você disse? Ora, só foi usado três ou quatro vezes. Acho que você fica...

— Há três anos que estou usando aquilo. E você está precisando de um casaco novo, de calças, de um colete de festa, nem sei mais de quê.

— Gosto dos que eu tenho — disse ele. — Acho que...

— Está na hora de eu fazer umas compras. Antes que todas as peças decentes de seda da Ásia sejam compradas... e todas as costureiras contratadas. Amanhã, vou para Macau. No Gray Witch.

— Mas, Liza! Tudo isso para um baile idiota que Dirk...

— Partirei na maré do meio-dia.

— Sim, Liza — disse Brock, reconhecendo aquele tom especial na voz dela, sabendo que toda discussão do mundo não a faria desistir. Maldito Struan! Mas, apesar de sua fúria, ele pensou no prêmio e o concurso o excitou. Seria uma idéia maravilhosa! Maravilhosa! Ora, por que não pensei nisso? Maldito Struan!

Liza ajeitou seu travesseiro e continuou a cogitar a respeito do baile. Já decidira que Tess iria ganhar o prêmio. E a honraria. Custasse o que custasse. Sim, ela disse a si própria outra vez, a qualquer preço. Mas, como convencer Tyler a deixar Tess ir ao baile? Ele era muito cabeçudo, com relação a ela.

— Está na hora de pensar em nossa Tess — disse ela.

— O que há com ela?

— É bom você ir pensando num marido para ela.

— O quê? — Brock se sentou, ereto, no beliche. — Você está fora de si? Tess mal saiu do berço. Nem fez dezesseis anos ainda.

— Quantos anos eu tinha, quando você casou comigo?

— Isso é diferente, por Deus! Você era bem madura para sua idade, por Deus. E os tempos mudaram. Haverá tempo bastante para aquele diabrete tonto, por Deus! Um marido para Tess? Você está completamente louca, mulher! E que coisa para dizer, assim no meio da noite! Não fale nisso outra vez, senão lhe dou uma surra de cinto. — Ele virou-lhe as costas, furioso, bateu no travesseiro e fechou os olhos.

— Sim, Tyler — disse Liza, sorrindo.

Ela não o condenava pelas surras que lhe dera. Haviam sido poucas — e nunca com violência, ou com a raiva provocada pela embriaguez. E tinham ocorrido há muito tempo. Há vinte anos vivia com ele e estava contente com seu homem.

— Liza, menina — disse Brock, experimentalmente, com o rosto ainda virado para a parede. — Tess já sabe, bem... a respeito das “coisas”?

— Claro que não — disse ela, chocada. — Ela foi bem criada!

— Bom, por Deus, está na hora de você a chamar de parte e lhe dizer — falou ele, irritado, sentando-se novamente. — E é melhor ter cuidado com ela. Por Deus, se eu pegar alguém farejando Tess... O que faz você pensar que ela já está na idade? Será que a garota disse alguma coisa? Está agindo de maneira diferente?

— Claro que eu tomo conta dela. É ridículo pensar que não. Ridículo! — bufou Liza. — Vocês homens são todos iguais. Ora! Faça isso e faça aquilo, ameaças e não sei o que mais, quando a menina só está crescendo e chegando na hora de casar! E eu lhe agradeceria se não praguejasse tanto, Sr. Brock! Seja gentil e bem-educado!

— Cale sua boca, por Deus, e a conversa se encerra aqui, por Deus!

Liza sorriu, complacentemente, de si para consigo. Quem será? Não aquele Nagrek Thumb, por Deus. Quem? O jovem Sinclair? Não tem dinheiro, e é muito pretensioso e dado demais à igreja. Mas parece ter futuro, não há dúvida, e está no conselho do maldito Longstaff. Nada como um filho de reverendo numa família. É possível. E o americano, Jefferson Cooper? Melhor. Bastante rico. Bastante poderoso. Mas é um maldito estrangeiro que detesta a nós, ingleses. Mesmo assim, Brock e Cooper-Tillman reunidos seriam uma bela faca nas tripas da Casa Nobre. Gorth seria bom, mas é meio-irmão dela e assim está excluído. Que pena!

Liza examinou os muitos que dariam bons maridos. O homem tinha de ter dinheiro, poder e potencialidade. E uma vontade de ferro e um braço forte para controlála. Sim, pensou. Aquela menina vai precisar de umas boas surras de cinturão no traseiro, de vez em quando. É uma grande teimosa. Não é fácil de manejar. Longstaff seria perfeito. Mas já é casado, embora eu tenha ouvido dizer que a mulher dele anda doente e vive em Londres, de maneira que talvez fosse melhor esperarmos.

A lista se reduziu para dois nomes. Mas quem?

— Tyler?

— Pelo amor de Deus, você não deixa um homem dormir em paz? O que é, agora?

— Que será que aquele demônio vai fazer com Culum Struan?

— Não sei. Talvez o mate, quem sabe. Nao sei. Só sei que fará com certeza alguma coisa terrível.

— Culum é um garoto de fibra, resistindo daquele jeito. Brock riu.

— Eu só queria que você tivesse visto a cara de Dirk. Aquele filho da mãe balançou. Balançou de verdade.

— O garoto foi muito esperto, dando a terra para a igreja. Ele salvou seu pai do perigo. E a você também.

— Ridículo, mulher. Não a mim, por Deus. Dirk queria aquele outeiro, desesperadamente. Ele faria um lance atrás do outro, e eu só iria parar quando ele estivesse estrangulado pelo preço. Se não fosse aquele fedelho, Dirk estaria de joelhos agora. Arrebentado.

— Ou Struan poderia deixar você se estrangular. Da mesma maneira.

— Não. Ele queria aquele outeiro.

— Ele queria mais ver você destruído.

— Não. Você está enganada. Vá dormir.

— O que ele fará com Culum?

— Não sei. Ele é um homem vingativo. Os dois se odeiam, agora. Nunca vi Dirk tão furioso. Uma briga entre ele e o rapaz poderia funcionar otimamente para nós.

Por um momento, Liza se sentiu dominada pelo medo. Medo por seu homem. Medo pela violência entre ele e Struan. Uma inimizade que só terminaria com a morte de um deles. Ou de ambos. Meu Deus do céu, ela rezou, pela milionésima vez, fazei que haja paz entre eles. Depois, parou de sentir medo e disse a si própria o que sempre dissera: “Acontecerá o que tiver de acontecer.” E isto a fez lembrar o Hamlet, de Willian Shakespeare, que era sua paixão.

— Por que não construir um teatro, Tyler? Em Hong Kong. Agora vamos ficar aí, não é?

— Sim. — Brock se animou, seus pensamentos se afastaram de Struan. — É uma boa idéia, Liza, muito boa. Antes que aquele canalha pense nisso. Sim, vou falar com Skinner amanhã. Vou começar a levantar fundos. E mandarei buscar um grupo teatral. Vamos encenar uma peça no Natal. Pense qual será.

Liza ficou calada. Ela teria dito Romeu e Julieta, mas isto seria uma estupidez, pois sabia que seu marido adivinharia imediatamente por que dissera aquilo. Sim. Tess seria elo para unir os Brocks e Struans. Mas a união não acabaria em tragédia. Como acabou com os Montecchios e os Capuletos.

— Se Gorth tivesse feito aquilo com você, tomado o seu outeiro, o que você teria feito?

— Não sei, querida. Mas estou satisfeito de não ter sido Gorth. Vá dormir, agora.

Liza Brock deixou seus pensamentos vaguearem. Qual dos dois seria melhor? Melhor para nós, ou melhor para Tess? Culum Struan ou Dirk Struan?

***

O nevoeiro baixou sobre os navios calmamente ancorados. E, envolta nele, chegou uma sampana ensombrecida. Tocou a amarra dianteira da âncora do White Witch por um momento. Mãos seguraram rapidamente a amarra, um machado se ergueu e caiu e a sampana desapareceu tão depressa como surgira.

Os que se encontravam no convés, os marinheiros armados e Nagrek, oficial do turno, nada notaram de estranho. No meio do nevoeiro, sem costa à vista ou outros navios para servirem de ponto de referência, o vento fraco e o mar calmo não davam nenhuma idéia de movimento. O White Witch derivou em direção à praia.

O mestre fez o sino soar oito vezes e Nagrek ficou cheio de pânico, com o risco que ia correr. Maldito idiota, pensou ele. Você se põe em perigo mortal, marcando encontro com Tess. Não vá — fique no convés — ou siga para seu beliche e durma. Mas não vá onde ela está. Esqueça-a, e esqueça do dia de hoje, e esqueça a noite passada. Durante meses, Nagrek estivera consciente da presença dela, mas a noite passada, durante seu turno, ele espiara através da portinhola da cabina que ela partilhava com a irmã. Viraa de camisola de dormir, de joelhos diante do beliche como um anjo, fazendo suas orações. Os botões da camisola estavam abertos, os bicos dos seios dela duros ao encontro da seda branca. Depois de terminar suas orações, ela abriu os olhos e, por um instante, ele pensou que o vira. Mas ela afastara a vista da portinhola e arrepanhara a camisola num pufe, moldando-a contra o corpo. Depois, movimentara as mãos sobre si mesma. Numa carícia. Langorosamente. Seios, coxas, cintura. Em seguida, tirara a camisola e ficara diante do espelho. Seu corpo foi percorrido por um tremor e então ela tornou devagarinho a se vestir, suspirou e apagou a lanterna, metendo-se na cama.

E então hoje, observando-a correr pela praia, com a saia voando, a observar-lhe as pernas e desejar estar entre elas, decidira possuí-la. Esta tarde, a bordo, cheio de terror e desejo, ele lhe sussurrara o pedido e vira-a corar, e ouviu-a responder:

— Sim, Nagrek, esta noite, aos oito toques do sino. Seu substituto chegou ao convés.

— Pode descer, Nagrek — disse Gorth, caminhando até à popa.

Ele se aliviou nos embornais e, depois, bocejou e tomou seu lugar no tombadilho, ao lado da bitácula, sacudindo-se quase como um cão.

— O vento mudou para leste.

— Eu senti. — Gorth, irritado, serviu-se de uma dose dupla de rum. — Maldito nevoeiro!

Nagrek foi para sua cabina. Tirou os sapatos e se sentou no beliche, molhado de suor. Sufocado por sua estupidez, mas incapaz de controlá-la, deslizou para fora da cabina e, sem fazer ruído, caminhou nas pontas dos pés pelo corredor. Parou diante da cabina. Sua mão estava úmida, enquanto experimentava a maçaneta. Respirando com dificuldade, entrou na cabina e fechou a porta.

— Tess? — Sussurrou, quase rezando para que ela não o escutasse.

— Psiu — ela respondeu — senão você vai acordar Lillibet. O terror dele aumentou — sua mente gritava: “Vá embora!”

— Mas seus anseios o forçavam a ficar.

— Isto é terrivelmente perigoso — disse ele. Sentiu a mão dela sair da escuridão, pegar a dele e guiá-lo para o beliche.

— Você queria falar comigo? O que você queria? — disse ela, inflamada pela escuridão e pelo mistério, e pela presença de Nagrek, aterrorizada com aquilo, mas adorando.

— Agora não é a hora, amor.

— Mas você queria falar em segredo. Como poderia ser em segredo, senão assim?

— Ela se sentou no beliche, puxou a roupa com mais força em redor do corpo e colocou a mão na dele, com as pernas moles.

Ele se sentou no beliche, sufocado de desejo. Sua mão avançou e ele tocou no cabelo dela, e depois em seu pescoço.

— Não faça isso — ela murmurou, e estremeceu quando ele lhe acariciou os seios.

— Quero casar com você, amor.

— Ah, sim, ah, sim.

Os lábios dos dois se tocaram. A mão de Nagrek percorreu o corpo dela, todos os seus contornos. E, com o seu toque, veio um frenesi de terror. Aproximando-se cada vez mais do centro.

***

Gorth parou de olhar em direção ao nevoeiro, enquanto o mestre fazia soar o sino uma vez, e caminhou pela bitácula. Olhou para ela, com a lanterna tremeluzindo, e não conseguiu acreditar no que viu. Sacudiu a cabeça, para pensar melhor, e olhou outra vez.

— É impossível!

— O que está errado, senhorrr? — perguntou o mestre, espantado.

— O vento, por Deus. Está a oeste! Oeste!

O mestre correu para a bitácula, mas Gorth já corria pelo convés, fazendo os marinheiros se dispersarem. Ele se inclinou sobre a proa e viu a amarra cortada.

— Cuidado! Estamos à deriva! — gritou, num pânico repentino, e houve um pandemônio no convés.

— Soltem a âncora da popa! Depressa, malditos! Enquanto os marinheiros corriam para a amarra da popa, a quilha raspou nas pedras do fundo e o navio estremeceu e gritou.

O grito atravessou o madeirame e entrou na fornalha da cabina, e Nagrek e a menina ficaram paralisados por um instante. Depois, ele deixou o calor aderente que emanava dela e saiu para o corredor, correndo em seguida para o convés. Brock abriu violentamente a porta de sua cabina, chegou a ver Nagrek a correr pelo passadiço, e mais ou menos notou que a porta da cabina das meninas estava aberta, mas esqueceu tudo, em sua cega corrida para cima. Liza saiu correndo da cabina principal, atravessou o corredor e passou pela porta aberta.

Quando Brock chegou ao tombadilho, a âncora já fora solta, porém tarde demais. O White Witch deu um grito final, adernou ligeiramente a bombordo e encalhou, pesadamente. Naquele momento, sampanas saíram em bandos do nevoeiro e caíram sobre

o navio com ganchos, enquanto piratas começaram a subir pela embarcação.

Os piratas estavam armados com mosquetes, facas e espadas, e o primeiro a chegar ao convés foi Scragger. Logo, os homens do White Witch lutavam para defender suas vidas.

Gorth esquivou-se a um chinês que arremeteu contra ele e, agarrando o homem pela garganta, partiu-lhe o pescoço. Nagrek pegou um chicote de ferro e brandiu-o contra a horda invasora, notando a presença de Scragger e outros europeus entre os chineses. Ele aleijou um homem e correu em direção a Brock, que cobria o passadiço, para ninguém chegar aos alojamentos lá embaixo. E nem às barras de prata no porão.

Scragger abateu um homem a faca e recuou, observando seus comandados atacarem.

— Para baixo, por Deus! — gritou, e liderou a corrida contra Brock. Outros investiram e mataram o primeiro dos vigias que vinha da parte inferior do convés.

Brock fez explodir a cara de um europeu, jogou a pistola inútil na virilha de outro e deu um violento golpe com sua espada. Investiu contra Scragger, que se esquivou e puxou

o gatilho de sua arma apontada, mas Nagrek bateu contra ele naquele exato segundo e a bala assobiou inofensiva no nevoeiro. Scragger virou-se, rosnando, e furou Nagrek com sua espada, ferindo-o ligeiramente e depois meteu-se na massa, atirando-se contra Brock outra vez. Sua espada atravessou um marinheiro; depois Brock agarrou-o pelo pescoço e os dois caíram, batendo-se com punhos e joelhos. Brock arquejou, quando a espada de Scragger alcançou-o, no rosto. Conseguiu levantar-se, atirou Scragger para um lado e investiu, de espada em riste, contra ele. Scragger rolou na hora certa e a espada se quebrou, ao bater no convés. Brock enterrou a espada partida num chinês que pulou em sua garganta, e Scragger fugiu correndo para trás de um grupo dos seus homens.

Gorth lutava no convés principal, dando golpes de espada, apontando a arma, quando uma faca entrou-lhe no flanco e ele arquejou e caiu. Brock viu o filho cair, mas permaneceu no passadiço, brigando e matando.

Embaixo, Liza Brock levou Tess e Lillibet para a cabina principal.

— Agora, não se aflijam, meninas — disse ela, fechando a porta pelo lado de fora.

Plantou-se no corredor, com uma pistola em cada mão e duas outras de prontidão, no bolso. Se o inimigo descesse o passadiço antes de terminar a luta, isto significaria que seu homem estava morto ou inconsciente. Mas quatro piratas morreriam, antes de passarem por ela.

Conduzidos por Scragger, os piratas atacaram a tripulação de Brock e foram mais uma vez repelidos. Um número maior de marinheiros lutava e conseguia sair do castelo de proa. Três se uniram a Brock, perto do passadiço, e eles investiram contra os piratas, fazendo-os recuar.

Uma malagueta bateu nas costas de Scragger e ele sentiu que a luta estava perdida. Imediatamente, gritou algo em chinês e seus homens abandonaram o combate, marinharam como ratos pelo costado, entraram nas sampanas e fugiram. Scragger pulou da proa e desapareceu na água. Brock agarrou o mosquete de um de seus homens e correu para o costado. Quando a cabeça de Scragger apareceu na superfície, por um instante, ele disparou, mas errou o alvo e a cabeça desapareceu. Brock praguejou e, depois, atirou fora

o mosquete descarregado, na escuridão.

Seus homens começaram a disparar nas sampanas, que se dissolveram rapidamente no nevoeiro. Quando não havia mais piratas em fuga para matar, Brock ordenou que os inimigos mortos e feridos fossem atirados por sobre a amurada, e voltou sua atenção para Gorth.

O sangue gotejava da ferida que Gorth cobria com o punho fechado. Brock afastou a mão do filho. A faca fizera um corte fundo debaixo do braço, em direção às costas.

— Você tossiu sangue, rapaz?

— Não, papai.

— Ótimo. — Brock limpou o suor do rosto e ficou em pé.

— Peguem piche. E grogue. Depressa, por Deus! E, quem estiver ferido, venha à popa. Os outros vão para os botes e nos desencalhem. A maré está cheia. Depressa! Nagrek tentou afastar a agonia de sua mente, enquanto fazia baixar os barcos. O sangue escorria do ferimento em seu ombro.

Brock deu a Gorth um canecão de rum e, logo que o piche começou a ferver no braseiro, ele mergulhou nele uma malagueta, e passou o piche na ferida. O rosto de Gorth se contorceu, mas ele não deu um só gemido. Depois, Brock medicou os demais com rum e piche.

— Eu senhorrr, o senhorrr se esqueceu de mim — gemeu um dos marinheiros. Ele segurava o peito. Havia sangue escumando-lhe nos lábios e o ar era sugado pela ferida em seu peito, e assobiava.

— Você está morto. É melhor fazer as pazes com o Criador. — disse Brock.

Não! Não, por Deus! Me dê o piche, senhorrr. Vamos por Deus! — E começou a gritar. Brock deu-lhe um soco e ele ficou imóvel onde caíra, com o ar assobiando e gorgolejando.

Brock ajudou Gorth a se levantar. Uma vez de pé, Gorth se agüentou nos próprios pés.

— Eu ficarei bom, por Deus!

Brock deixou-o e examinou a popa. Os barcos remavam fortemente. A água estava parada.

— Mais força! — gritou ele. — Prepare uma âncora dianteira, Nagrek!

Eles arrastaram o navio, resgatando-o, enquanto o prumador gritava ordens e, quando Brock teve certeza de que estavam em “segurança, mandou soltar a âncora. A embarcação balançou, com a maré que enchia e se endireitou.

— Mestre de velas!

— Sim, sim, senhorrr — disse o velho.

— Costure mortalhas para eles — disse, apontando os sete corpos. — Use as velas grandes gastas. Uma corrente nos pés e dos lados, ao amanhecer. Eu presidirei o culto, como sempre.

— Sim, sim senhorrr.Brock voltou as atenções para Gorth.

— Por quanto tempo, depois de você vir dar seu plantão, ficamos encalhados?

— Apenas por uns poucos minutos. Não. Foi quando o sino deu um toque. Eu me lembro muito bem. Brock pensou, por um momento.

— Não poderíamos estar à deriva, do ancoradouro até a costa, no período de um toque de sino. De maneira nenhuma. Então, cortaram a amarra e ficamos à deriva no turno anterior. — Brock olhou para Nagrek e ele titubeou. — Seu turno. Vinte chicotadas ao amanhecer, para os que estavam no convés.

— Sim, senhor — disse Nagrek, aterrorizado.

— Quanto a você, eu teria sido morto pela pistola daquele maldito pirata, então vou pensar no seu caso, Nagrek. Então ele desceu.

— Está tudo bem, amor — disse ele.

Liza estava dura como uma pedra, em frente da cabina das filhas.

— Obrigada, Tyler — disse ela, e guardou as pistolas. — Foi muito ruim?

— Mais ou menos. É a prata. Alvo de piratas, no porto! No porto! Havia ingleses entre os piratas. Matei um, mas o líder, maldito seja, escapou. As meninas estão bem?

— Sim, Estão lá dentro. — Dormem agora. — Liza hesitou. — Acho melhor falar com você.

— Estamos falando, não?

Caminhou pelo corredor, gravemente, até a cabina principal. Ele a seguiu e ela fechou a porta.

***

Quando o sino deu três toques, Brock foi para o convés, outra vez. O nevoeiro diminuíra, mas o vento amainara. Ele o farejou e percebeu que logo refrescaria de novo e, pela manhã, o nevoeiro desapareceria.

— Gorth, vamos para baixo, dar uma olhada na carga.

— Nenhum daqueles filhos da mãe foi até lá embaixo, papai!

— Vamos olhar, de qualquer jeito. Você vem também, Nagrek!

Brock pegou uma lanterna e eles foram para o porão.

— Veja! A porta ainda está trancada — disse Gorth, com a ferida atormentando-o.

Brock destrancou a porta e eles entraram. Ele colocou a lanterna sobre as barras de prata e tornou a trancar a porta.

— Está fora de si, papai? — perguntou Gorth. Brock olhava para Nagrek.

— O que está errado, Sr. Brock? — Nagrek estava petrificado.

— Parece que Nagrek andou metendo as mãos em sua irmã, Gorth. Em Tess.

— Eu não... eu não, por Deus — Nagrek exclamou. — Eu não, de jeito nenhum! Brock pegou o chicote que estava pendurado na parede do porão.

— Parece que ele foi até a cabina dela, enquanto ela dormia, e então a acordou, e ficou brincando com ela.

— Eu não a toquei, eu não fiz mal a ela, não fiz, por Deus — gritou Nagrek. — Ela me convidou para ir à sua cabina. Ela me convidou. Esta tarde ela me convidou. Ela convidou, por Deus!

— Então você foi à sua cabina!

Gorth se atirou sobre Nagrek e praguejou de dor quando se partiu o piche de sua ferida. Nagrek fugiu para a porta, mas Brock o empurrou para trás.

— Você é um homem morto, Nagrek!

— Não fiz mal a ela, juro por Deus, juro por Deus...

— Você pôs essas mãos fedorentas embaixo da camisola dela!

O açoite atingiu Nagrek repetidamente, enquanto Brock o levava cada vez mais para o fundo do porão.

— Você fez isso, não fez?

— Juro por Deus que não a toquei, Sr. Brock. Por favor. Não foi feito nenhum mal... desculpe... só toquei nela... não aconteceu nada mais... nada mais. Brock parou, com a respiração espasmódica.

— Então era verdade. Você ouviu, Gorth? — Ambos os homens pularam em cima de Nagrek, mas Brock foi mais rápido e um soco seu deixou Nagrek inconsciente. Ele afastou Gorth com um empurrão. — Espere!

— Mas, papai, esse miserável...

— Espere! Sua mãe contou que a pobre garota ficou com medo de dizer alguma coisa, no começo. Tess achava que, como ele a tocara, ela agora ia ter filho. Mas Liza disse que Tess ainda é virgem. Ele só a tocou, graças a Deus!

Quando Brock recuperou o fôlego, despiu Nagrek e esperou até ele estar consciente. Então o castrou. E depois espancou-o até morrer.


CAPÍTULO QUATORZE

— Você queria me ver, papai? — O rosto de Culum estava rígido.

Struan se achava em pé no alto do outeiro, com os binóculos em torno do pescoço, faca à cinta, um chicote de ferro amontoado no chão. Ele observara Culum desembarcar e caminhar pelo vale, subindo em seguida o outeiro. O vento limpara o céu, e o sol no horizonte prometia um belo dia.

Struan fez um gesto, apontando para baixo.

— A vista daqui é bonita, hein?Culum não disse nada. Seus joelhos tremiam, sob a chama do olhar do pai.

— Não concorda?

— A igreja... todos poderão...

— Já sei tudo a respeito da igreja — interrompeu Struan. — Você ouviu falar de Brock? — A voz era demasiado mansa, calma demais.

— O que aconteceu com ele?

— Foi atacado por piratas, durante a noite. Os piratas cortaram o cabo de seu navio, que ficou à deriva e foi arrastado para a praia. Depois entraram a bordo. Não ouviu os tiros?

— Sim. — Culum estava oprimido e cansado. Noites sem dormir, depois a descoberta de que só ele poderia salvá-los, e a decisão, em seguida, de enganar Longstaff.

— Mas não sabia que era isso.

— Sim. Atacados por piratas, no porto de Hong Kong. Logo que o nevoeiro se desfez, eu me aproximei. Brock disse que perdeu sete homens e o capitão.

— Gorth?

— Não. Nagrek. Nagrek Thumb. O pobre homem morreu em conseqüência de seus ferimentos. Gorth ficou ferido, mas sem gravidade. — O rosto de Struan se endureceu. — O capitão morreu defendendo seu navio. Uma bela forma de morrer.

Culum mordeu os lábios e ficou examinando o outeiro, em torno, com o coração batendo.

— Quer dizer que este é meu Calvário?

— Não entendo o que quer dizer.

— Os capitães morrem defendendo seus navios? Este é meu navio... este outeiro... é isto que quer dizer? Está me perguntando se quero morrer defendendo isto?

— Quer?

— Não tenho medo de você. — As palavras saíram roucas da garganta ressecada de Culum. — Há leis contra o assassinato. Posso lutar contra você, e você pode me matar, mas será enforcado por isso. Estou desarmado.

— Acha que eu mataria você?

— Se eu me atravessar em seu caminho, sim, e me atravessei em seu caminho, não foi?

— Ah, se atravessou?

— Você era um Deus para mim. Mas, nos trinta dias que passei aqui, conheço você como é. Matador. Assassino. Pirata. Contrabandista de ópio. Adúltero. Você compra e vende pessoas. Você é o pai de bastardos e se orgulha deles, e seu nome fede nas narinas das pessoas decentes.

— Que pessoas decentes?

— Você queria me ver. Estou aqui. Diga-me o que quer e vamos acabar com isso. Estou cansado de brincar de rato para seu gato. Struan pegou seu bornal e o colocou num ombro.

— Vamos.

— Por quê?

— Quero falar com você em particular.

— Estamos sozinhos, agora. Struan fez sinal com a cabeça em direção aos navios ancorados.

— Ali existem olhos. Posso sentir que nos observam. — Apontou para a praia, pontilhada de chineses e europeus. Os comerciantes caminhavam pelos seus lotes. Crianças já brincavam. — Estamos sendo observados de toda parte. — Indicou um cume de morro, a oeste, — É para lá que vamos.

O morro era quase uma montanha, tinha treze mil pés de altura, rochoso, árido e sombrio.

— Não.

— Será que é longe demais para você? — Struan viu o ódio no rosto de Culum e ficou esperando uma resposta. Mas só houve um silêncio. — Pensei que não estivesse com medo.

Ele deu a volta e desceu o outeiro, começando em seguida a subir a encosta da montanha. Culum hesitou, devorado pelo medo. Depois, começou a ir atrás dele, dominado pela vontade de Struan.

Enquanto Struan subia, sabia que estava fazendo outro jogo perigoso. Não parou para olhar para trás, senão quando já alcançara a crista da montanha. O local era varrido pelo vento e desolado. Olhou para trás e viu Culum se esforçando para subir, ainda bem afastado.

Virou as costas para o filho.

O panorama era vasto. Maravilhosamente belo. O sol alto, no céu azul, e o Oceano Pacífico como um tapete azul-esverdeado. As montanhas das ilhas, de um marromoliváceo, salientavam-se no tapete marinho, Pokliu Chau a sudoeste; Lan Tao, a grande ilha, maior do que Hong Kong, a quinze milhas de distância, em direção oeste; e as centenas de pequenas ilhas áridas e rochedos descampados que cercavam o arquipélago de Hong Kong. Os navios, no porto, apareciam nitidamente em seu binóculo e, ao norte estava a China continental. Via frotas de juncos e sampanas que percorriam o canal Lan Tai, aproximando-se de Hong Kong pelo oeste. Outros viajavam de volta, entrando no estuário do Rio Pérola. A norte, sul e leste havia tráfego marinho: fragatas em patrulha, juncos de pesca, sampanas, mas nenhum navio mercante. Bom, ele pensou, mais algumas semanas, a segunda guerra terminará e então os navios mercantes vão dominar o mar.

Culum lutava para subir pela trilha aberta por Struan. Estava quase exausto e só sua vontade obstinada mantinha-lhe os pés em movimento. Suas roupas estavam rasgadas e tinha o rosto arranhado pelas ervas espinhentas. Mas ainda subia.

Afinal, chegou à crista, com o peito arquejante, o vento a empurrá-lo.

Struan estava sentado no chão, alguns pés abaixo, ao abrigo do vento. Uma toalha estava estirada no chão e havia comida e uma garrafa de vinho.— Aqui, rapaz — disse Struan, e ofereceu meio copo de vinho.

Ainda ofegando, Culum pegou o vinho e tentou beber, mas a maior parte lhe escorreu pelo queixo. Ele o enxugou e arquejou, procurando mais ar.

— Sente-se — disse Struan. Para pasmo de Culum, Struan sorria benevolentemente.

— Vamos, rapaz, sente-se. Por favor, sente-se.

— Eu... eu... não entendo.

— A vista é mais bonita daqui, não?

— Num momento, você parece o próprio Demônio — disse Culum, com os pulmões ardendo do exercício — e agora... agora... agora... não entendo...

— Trouxe frango e pão — disse Struan. — E outra garrafa de vinho. Não gosta? Culum se deixou cair, exausto.

— Frango?

— Bom, você não almoçou, não é? Deve estar morto de fome.

— A respeito do outeiro, eu...

— Recupere o fôlego, descanse, depois coma. Por favor. Com certeza está sem dormir há duas noites. Não é bom conversar com o estômago vazio. Coma devagar, senão vai ficar enjoado. Foi uma subida cansativa, até aqui. Eu próprio estou cansado.

Culum se recostou numa pedra e fechou os olhos, recuperando as forças, enquanto o corpo bradava por descanso. Forçou os olhos a se manterem abertos, pensando que aquilo fosse um sonho. Mas ali estava seu pai, examinando o mar, ao sul, através do binóculo.

— Com relação ao outeiro, eu estava...

— Coma — interrompeu Struan, e lhe ofereceu um pouco de frango.

Culum pegou uma perna da galinha.

— Não posso comer. Só quando tiver dito o que tenho para dizer. Eu tinha de fazer aquilo. Era preciso. Você jamais teria concordado, e era a única maneira. Brock teria destruído você. Ele ia parar de fazer os lances. Eu sei que sim. Se ele não o odiasse tanto, e você a ele, então você teria o outeiro. Você forçou a questão. Foi você. A culpa é sua. O outeiro é da Igreja e isto está certo. Você forçou esta situação.

— Sim — disse Struan. — Claro. Estou muito orgulhoso de você. Foi preciso muita coragem. Robb jamais teria feito isso, ou, mesmo que tivesse pensado em fazer, jamais seria capaz de levar a idéia avante.

Culum ficou perplexo.— Você... você queria que eu fizesse aquilo?

— Claro, rapazinho. Era a única solução para uma situação impossível.

— Você planejou que eu fizesse aquilo?

— Apostei que você faria, sim. Insinuei que você deveria fazer. Quando você ficou tão nervoso, à procura de Longstaff... e quando me evitou, no Vale Feliz... pensei que tinha combinado tudo. Então, fiquei desconcertado com sua reação a Gordon. Mas Longstaff, mais tarde, disse: “Seu outro gesto, maravilhoso!”, e então eu soube que você encontrara a única solução possível. Estou muito orgulhoso de você, rapaz. Brock certamente nos teria liquidado. Eu não podia fazer nada para impedir. O outeiro era uma questão de prestígio.

— Você... você me atirou... me atirou durante dois dias e duas noites num inferno... sabendo que meu gesto era uma simples solução?

— Será que foi tão simples assim?

— Para você, foi! — gritou Culum. — Ele ficou em pé, de um salto.

— Sim — disse Struan, com a voz repentinamente áspera. — Para mim. Mas não para você. Mas você tomou a decisão e, com isso, cresceu. Agora, você é um homem. Se eu tivesse sugerido a você a “Casa de Deus”, você não teria sido capaz de executar o plano. Nunca. Teria desistido. Você precisava acreditar no que estava fazendo. Se Brock tivesse pensado, por um só instante, que eu planejara tudo com você, ele faria de nós alvo de riso de toda a Ásia. Estaríamos desmoralizados para sempre.

— Você me sacrifica por uma questão de prestígio? — gritou Culum. — Seu maldito prestígio?

— O nosso, Culum — disse Struan. — E é bom ouvir você praguejar, afinal. Isto melhora você, rapaz!

— Então toda sua raiva, sua raiva... era fingida?

— Claro, rapaz — disse Struan. — Era para enganar Brock. E os outros.

— Até Robb?

— Robb mais do que qualquer outra pessoa. Coma um pouco.

— A comida que vá para o inferno! Você é o Demônio! Você nos carrega a todos para o inferno, com você. Mas, por Deus, juro que... Struan levantou-se, com um pulo, e agarrou Culum pelos ombros.

— Antes de você dizer alguma coisa de que possa se arrepender, é bom escutar. Eu apostei que você teria a coragem de decidir, e você assim fez. Sozinho. Sem minha ajuda. E eu abençoei você. Agora, você é Culum Struan, o homem que teve a coragem de contrariar o Tai-Pan. O homem que lhe tomou seu querido outeiro. Você é único. Você ganhou mais prestígio num só dia do que poderia adquirir em vinte anos. Como, pelo amor de Deus, você acha que é possível controlar homens e conduzi-los para onde se quer? Com a força bruta, apenas! Não. Com o cérebro. E com magia. — Soltou Culum.

— Magia? — Culum estava sufocado. — Mas isto é magia negra!

Rindo baixinho, Struan se sentou e se serviu de um copo de vinho.

— Os inteligentes terão visto como você é esperto. “Aquele Culum é astuto. Ele dá o outeiro à Igreja. E assim impede aquele demônio do Struan de destruir a Casa Nobre, empregando sua fortuna num outeiro sem valor. Culum salvou o prestígio do Tai-Pan e, ao mesmo tempo, aquele demônio não pode matar Culum Struan por dar terras à Igreja.”

— Struan bebeu o vinho. — Até Brock deve estar impressionado, pense ou não que se trata de um pacto secreto, porque você foi capaz de fazer aquilo tudo. Os religiosos o abençoarão por dar “o melhor” à Igreja. Os idiotas como Longstaff terão medo de você e irão pedir seus conselhos. Os cínicos terão o maior respeito por sua esperta solução e vão detestá-lo, e dirão: “Culum tem nele o demônio do pai. É melhor ter cuidado.” Eu acho que você ganhou estatura, rapaz.

— Mas... mas se eu... e então você, você perdeu prestígio?

— Sim. Mas eu tenho prestígio mais do que suficiente, de sobra. Para dar também a você e a Robb. E não tenho muito tempo para firmar você em seu lugar. Cuidado, rapazinho. Todos estarão pensando: “Culum resolveu tudo uma vez, mas será capaz de fazer aquilo de novo?” E vão esperar que nós nos odiemos tanto, a ponto de nos destruirmos. E é exatamente o que vamos fingir que estamos fazendo. Abertamente. Em público.

— O quê?

— Claro. Fria hostilidade, sempre que nos encontrarmos. E, não vai demorar muito tempo, Brock tentará atraí-lo para seu lado. Cooper também... e Tillman. Eles encherão você de mentiras... ou verdades distorcidas, na esperança de você ficar tão cheio de ódio que arruíne a mim e a você próprio, na barganha. E à Casa Nobre. Pois todos os negociantes querem aquele prêmio. Mas, agora, jamais conseguirão. Você provou seu valor, por Deus.

— Você não tem nada a ver com isso — disse Culum, tranqüilamente.

— Você terá tudo a ver com isso. Durante cinco meses e cinco anos. Você fez um juramento sagrado.

— Vai me obrigar a cumpri-lo? Agora?

— Você o cumprirá por vontade própria. Seu salário foi triplicado.

— Acha que o dinheiro é importante, numa situação dessas?

— É um pequeno pagamento por dois dias no inferno.

— Não quero dinheiro nenhum. E não vou fazer isso. Não posso.

Struan escolheu uma perna de galinha, pensativamente.

— Estudei você com muito cuidado. Fiquei tentado a não lhe dizer nada. Deixar você desempenhar um papel sem saber. Mas, depois, pesei você. Decidi que você podia fazer isso sabendo. Será mais agradável para nós ambos agora que você sabe.

— Deixaria eu viver minha vida e acabar minha vida odiando você? Só para levar adiante a Casa Nobre?

— Você sabe a resposta para essa pergunta.

— Você é perverso.

— Concordo. De algumas maneiras — disse ele, mastigando o frango, com gosto.

— Sou todas as coisas que você diz, e ainda mais. Deixo de obedecer a muitos dos Mandamentos, mas não a todos. Sei o que eu faço e estou pronto para responder pelas minhas ações. Mas sou o único homem no mundo em quem você pode confiar completamente... desde que não vá contra a casa, deliberadamente. Sou o Tai-Pan. Com sofrimento e maldade, você será a mesma coisa.

— Não compensa a hipocrisia. E o mal.

— Ah, rapaz, você faz bem ao meu coração — disse Struan, atirando fora o osso de frango. — Você é tão jovem. Invejo você, os anos que tem diante de si. Não vale a pena? Ser o melhor? Dominar Brock e os outros pela força de sua presença? Longstaff e, através dele, a Corôa? O Imperador da China? E, através dele, trezentos milhões de chineses? — Struan bebeu um pouco de vinho. — Vale a pena. Muito ódio e um pouco de teatro são um preço pequeno a pagar.

Culum se recostou em seu berço de pedra, com a mente enfurecida diante das palavras e perguntas implacáveis e das respostas inexoráveis. É esta a vontade de Deus?

— perguntou a si mesmo. Os mais fortes sobreviveram à custa dos mais fracos? Pois Deus fez todas as coisas e sua maneira de ser. Mas Jesus disse: “Os mansos herdarão a terra.” Será que Ele queria dizer a terra... ou o Reino de Deus?

Mansidão não teria obtido as barras de prata, nem as protegeria. Mansidão não teria salvo a Casa Nobre, quando surgiu a questão do outeiro. Mansidão jamais levaria ao progresso, jamais se imporia aos cruéis e aos cobiçosos. Se eu for Tai-Pan, a Carta será promovida. A riqueza com um objetivo — um objetivo imortal, ele disse. Muito bem. O ódio de Culum Struan por seu pai desapareceu. E, com o ódio, seu amor. Tudo que ficou foi respeito.

— Por que você subiu até aqui? — perguntou Culum. Struan sabia que perdera o filho. Ficou triste como pai, mas não como homem. Trouxera seu inimigo para o combate nos termos dele, e na ocasião que escolhera. Então, cumprira seu dever de pai.

— Para cansar você, de modo que eu pudesse falar e fazê-lo entender — disse. — E para mostrar a você que, embora a vista do outeiro seja boa, a daqui é ótima.

Culum viu a vista, pela primeira vez.

— Sim, é mesmo. — Depois, inclinou-se para a frente, escolheu um pedaço de frango e começou a comer. Struan não deixou que a dor aparecesse em seu rosto. O sorriso do rapaz voltará, disse a si próprio. Dê tempo ao rapaz. É duro crescer tão depressa. Dê tempo ao rapaz.

Ele se sentiu muito cansado. Recostou-se numa pedra e virou seu binóculo para o sul, procurando o China Cloud. Mas não estava à vista. Ociosamente, esquadrinhou o horizonte. Então seus olhos se fixaram.

— Veja, rapaz, ali está o Blue Cloud!

Culum pegou o binóculo e viu o clíper. Era idêntico ao Thunder Cloud, com 18 canhões e igualmente veloz e belo. Belo até mesmo para Culum, que odiava navios e o mar.

— Deve ter a bordo ópio no valor de cem mil guinéus — disse Struan. — Agora, o que deverá fazer? Temos três navios aqui e mais dezesseis deverão chegar até o fim do mês.

— Mandá-los para o norte? A fim de vender suas cargas?

— Sim. — Uma sombra passou pelo rosto de Struan. — Isto me fez lembrar uma coisa. Você se recorda de Isaac Perry?

— Sim. Parece que há um século.

— Eu o despedi, lembra-se? Porque ele não deu apoio a McKay e tinha medo de mim, e eu não sabia o motivo. Dei a McKay quinze dias para descobrir a resposta desse enigma, mas ele nunca voltou para Cantão. A noite passada, eu vi McKay. Ele tem um emprego em terra, agora, juiz auxiliar e policial. — Acendeu um charuto, pondo a mão em concha para se proteger do vento, passou-o para Culum e acendeu outro. — Bom, parece que Perry tem agora uma colocação com Cooper-Tillman. Na linha entre a Virgínia e a África. Transportando escravos.

— Eu não acredito nisso.

— Wilf Tillman me disse. A noite passada. Ele deu de ombros e disse que Perry não queria mais fazer a linha para a China. Então, ofereceu-lhe um navio negreiro, e ele aceitou. Partiu há uma semana. Pouco antes de Perry partir, McKay o enganou. Eles beberam juntos. McKay disse que fora demitido por mim, como o outro, e me amaldiçoou, pedindo-lhe, em seguida, um emprego no novo navio de Perry e jurando vingar-se de mim. A bebida deixa qualquer língua solta e a de Perry se soltou. Contou a McKay que vendera uma cópia dos nossos locais secretos de comércio na costa, com as latitudes e longitudes, e os nomes de nossos negociantes de ópio, a Morgan Brock. Da última vez em que esteve em Londres.

— Então Brock sabe de todos os nossos locais secretos?

— Aqueles que Perry usava. Dez anos de comércio. Isto representa quase todos.

— O que podemos fazer?

— Encontrar novos locais e novos homens em que se possa confiar. Então, como vê, rapaz, não se pode confiar muito em ninguém.

— Isso é terrível.

— É a lei de sobrevivência. Descanse por uma hora, e depois vamos partir.

— Para onde?

— Para Aberdeen. Vamos dar uma olhada tranqüila. Antes da escolha dos homens de Wu Kwok. — Ele abriu o bornal e entregou uma pistola. — Sabe usar armas desse tipo?

— Não muito bem.

— Talvez seja bom você praticar.

— Está bem. — Culum examinou a arma. Usara pistolas de duelo uma vez, numa tola briga na universidade, e tanto ele como o adversário ficaram tão aterrorizados que as balas erraram o alvo a uma grande distância.

— Podemos ir agora — disse Culum. — Não estou mais cansado. Struan abanou a cabeça.

— Quero esperar até o China Cloud aparecer no horizonte.

— Onde esteve o navio?

— Em Macau.

— Por quê?

— Mandei-o para lá. — Struan limpou as migalhas do casaco. — Uma recompensa acaba de ser colocada pela cabeça de minha amante. E do filho e da filha que tive com ela, se forem capturados vivos. Mandei Mauss no China Cloud trazê-los ambos para cá. Estarão a salvo a bordo.

— Mas Gordon Chen já está aqui. Eu o vi ontem.

— Essa moça não é a mãe dele.

Culum achou curioso que agora não ficasse magoado por saber que seu pai tinha duas — não, três — famílias. Três, contando a ele próprio e Winifred.

— Seqüestro é uma coisa terrível. Terrível — disse.

— Há uma recompensa por sua cabeça, agora. Dez mil dólares.

— Será que eu valho tanto? Não sei, não.

— Se um chinês oferece dez, você pode apostar que vale cem. — Struan outra vez focalizou o binóculo no Blue Cloud. — Acho que cem mil seria uma soma mais exata. Para você.

Culum cobriu os olhos do sol e compreendeu o cumprimento de seu pai. Mas não deu nenhuma mostra disso. Estava pensando a respeito da outra amante e ficou imaginando como ela era, e se a mãe de Gordon Chen era parecida. Sua mente trabalhava friamente, sem emoção, sem rancor, mas com desprezo pela fraqueza e pela promiscuidade do seu pai. Culum achava estranho que sua mente estivesse tão calma.

— O que Brock vai fazer a respeito das barras de prata? Será alvo de ataques sem conta de piratas, enquanto estiver com elas.

— Terá de nos pedir para receber uma parte de volta. Em troca de papel. Faremos isto imediatamente. E com juros inferiores ao usual. Diga a Robb para acertar isto.

— Então seremos alvo de ataques de piratas.

— Talvez. — Struan espiava o Blue Cloud seguindo lentamente, contra o vento, na passagem entre Lan Tao e Hong Kong. — Logo que o China Cloud voltar, eu vou partir. Irei com a força expedicionária e não voltarei a Hong Kong senão na véspera do baile.

— Por quê?

— Para lhe dar tempo para se acostumar com nossa “inimizade”. Você precisará de prática. Você e Robb vão começar a construir. Os planos já estão prontos. Exceto com relação à Grande Casa. Vou decidir a respeito disso mais tarde. Comece a construir uma igreja no outeiro. Peça a Aristotle para fazer o projeto. Pague-lhe um décimo do que ele lhe pedir de início. Você e Robb deverão fazer tudo.

— Sim, Tai-Pan — disse Culum. Tai-Pan. Não papai. Ambos os homens sentiram o caráter decisivo da denominação. E aceitaram isto.

— Construa minha casa no lote suburbano dezessete. Robb tem o plano. Deverá estar pronto dentro de três semanas, com o jardim plantado e em torno dela um muro de dez pés.

— Isso é impossível.

— Custe o que custar. Coloque cem, duzentos homens no trabalho, se for necessário. Mobiliada, ajardinada, como manda o plano. E quero todos os prédios terminados dentro de três meses.

— Vai demorar pelo menos dez meses para construir. Um ano ou mais.

— Sim. Então usaremos mais homens. Mais dinheiro. E terminaremos antes.

— Por que a pressa?

— Por que não?

Culum olhou para o mar.

— E o baile?

— Acerte tudo. Com Robb e Chen Sheng, nosso compradore.

— E Robb? Ele não saberá que nossa inimizade é uma farsa?

— Eu vou deixar você decidir quanto a isso. Você pode dizer a ele na noite do baile. Se quiser. O China Cloud apareceu no horizonte.

— Podemos ir agora — disse Struan.

— Ótimo. Struan colocou o binóculo e o restante da comida dentro do bornal outra vez.

— Mande alguns homens aqui para cima, secretamente, a fim de manterem uma vigília permanente, durante o dia.

— Para quê?

— Os navios. Daqui teremos uma informação antecipada quatro ou cinco horas, quanto à sua chegada. Especialmente os que trazem a correspondência. Então, mandaremos um cúter veloz interceptá-los e conseguiremos nossa correspondência antes dos outros.

— Então?

— Passaremos na frente de todo mundo. Em quatro horas é possível fazer uma porção de compras e vendas. Saber com quatro horas de antecedência pode ser a diferença entre vida e morte.

O respeito de Culum aumentou. Muito inteligente, pensou. Estava olhando, ociosamente, em direção ao oeste, para a grande ilha de Lan Tai.

— Veja! — exclamou de repente, apontando para o sul da ilha. — Fumaça. Um navio está em chamas!

— Você tem olhos apurados, rapaz — disse Struan, virando o binóculo. — Pelo sangue de Cristo, é um vapor!

O navio era negro, esguio e feio, com uma proa pontiaguda. Fumaça jorrava de seu atarracado cano de chaminé. Tinha dois mastros e cordame para velas, mas não usava velas agora, e fumegava malevolamente ao vento, com a bandeira vermelha drapejando na popa.

— Olhe para aquela merda de navio da Marinha Real! Culum ficou abalado com a veemência do pai.

— O que há?

— Aquela porcaria... é isso! Veja o vapor!

Culum olhou pelo binóculo. O navio lhe parecia inofensivo. Tinha visto antes alguns navios movidos a rodas, como aquele. Há dez anos, os navios irlandeses para o transporte de correspondência eram vapores. Via as duas gigantescas rodas propulsoras, no meio da embarcação, entre bombordo e estibordo, a fumaça que se elevava e a esteira espumejante. Havia canhões a bordo. Muitos.

Não consigo ver nada errado nele.

— Olhe para a esteira dele! E a direção em que segue! Para dentro do vento. Olhe para ele. Está alcançando nosso navio, como se o Blue Cloud fosse um briguezinho de merda, nas mãos de um bando de idiotas... em vez de ter uma das melhores tripulações do mundo!

— Mas o que há de errado nisso?

— Tudo. Agora, há um vapor no Oriente. Ele fez o impossível. Aquela merda enferrujada, com casco de ferro, movida a máquina e inventado por Stephenson, viajou da Inglaterra para cá, contra o desgosto do mar e o desprezo do vento. Se um fez isso, mil farão. Há progresso. E o começo de uma nova era! — Struan pegou a garrafa vazia de vinho e atirou-a contra uma pedra. — É aquilo que teremos de usar, dentro de vinte ou trinta anos. Aquele aborto monstruoso de navio, por Deus!

— É feio, quando se compara com um navio a vela. Com o Blue Cloud. Mas essa capacidade de navegar contra o vento, esquecer o vento, significa que será mais veloz, mas econômico e...

— Nunca! Não veloz, quando o vento está para a ré de través, e nem tão navegável. Quando há tempestade, não. Aqueles urinóis fedorentos vão virar e afundar como uma pedra. E nem tão econômicos. Precisam ter madeira para as caldeiras, ou carvão. E não serão bons para o comércio marítimo. O chá é sensível e vai se estragar, naquele fedor. Velas terão de transportar o chá, graças a Deus.

Culum achou engraçado, mas não demonstrou.

— Sim, mas com o tempo, certamente, vão melhorar. E se um deles pode navegar até cá, como você disse, mil outros poderão. Acho que devemos comprar vapores.

Você deve, e está certo. Mas maldito seja eu, se comprar uma daquelas monstruosidades fedorentas. Maldito seja, se o Leão e o Dragão drapejarem sobre um deles, enquanto eu estiver vivo!

— Todos os homens do mar pensam como você? — Culum fez a pergunta despreocupadamente, mas por dentro fervia.

— É uma pergunta muito estúpida! O que tem em mente, Culum? — perguntou Struan, mordazmente.

— Só estava pensando a respeito do progresso, Tai-Pan. — Culum tornou a olhar para o navio. — Qual será seu nome, hein?

Struan observava Culum com suspeita, sabendo que a mente do homem estava funcionando, mas sem perceber o que planejava. É estranho, disse a si mesmo. É a primeira vez em que você pensou em Culum como um homem, e não como seu filho e nem como “Culum”, “rapaz” ou “rapazinho”. — Graças a Deus, eu não viverei para ver a morte da vela. Mas aquela merda anuncia a morte do clíper na China. Os mais belos navios que já cruzaram os mares.

Seguiu em frente e desceu a montanha, em direção a Aberdeen. Mais tarde, o navio passou suficientemente perto para eles poderem ler seu nome. Era Nemesis... H.M.S. Nemesis.



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