LIVRO VI CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

O China Cloud soltou as amarras ao amanhecer. O mar estava calmo e o vento era firme e vinha do leste. Mas, após duas horas no mar, a brisa se tornou mais fresca e Struan deixou May-may na cabina grande e foi para o convés.

Orlov examinava o céu. Estava claro no horizonte mas, lá longe, reuniam-se algumas nuvens cúmulos.

— Não há perigo ali — disse.

— Também não há nada errado lá — disse Struan, com um gesto em direção ao mar.

Caminhou pelo convés e, depois, balançou-se nos cabos do mastro dianteiro. Subiu com facilidade, o vento puxando-o agradavelmente, e só parou quando segurava as adriças do mastaréu de joanete, no alto do mastro dianteiro.

Examinou o céu e o mar, procurando meticulosamente os ventos ou tempestades que poderiam estar à espreita, o recife escondido ou o baixio não mapeado. Mas não havia nenhum sinal de perigo no horizonte.

Por um momento, deixou-se gozar a velocidade, o vento, a ausência de limites, abençoando seu pagode pelo vida e por May-may. Ela estava muito melhor — ainda muito fraca, porém forte, em comparação com a véspera.

Examinou todo o cordame à vista, procurando ver se havia danos ou fraquezas e, depois, desceu pelas cordas e voltou para o tombadilho. Uma hora mais tarde, o vento refrescou outra vez e o clíper adernou mais, fazendo a espuma bater nas velas mais baixas.

— Ficarei satisfeito ao voltar ao porto esta noite — disse Orlov, contrafeito.

— Sim. Você também está sentindo isso?

— Não sinto nada. Só que ficarei satisfeito ao chegar ao porto esta noite. — Orlov cuspiu a barlavento e substituiu seu naco de fumo. — O mar está tranqüilo, o vento tranqüilo, o céu está limpo... mas, mesmo assim, há alguma coisa horrível preparando-se.

— Tem Sempre alguma coisa em preparo nessas águas.

— Com sua permissão, vamos rizar as velas e mandarei o prumador ir dando as profundidades. Talvez seja apenas um baixio, um maldito rochedo por aí. — Orlov estremeceu e fechou mais seu casaco de marinheiro, embora o dia estivesse quente e o vento calmo.

— Sim. Então o prumador foi mandado para a frente, e mediu as profundidades. E a tripulação subiu pelo cordame e diminuiu a pressão sobre as velas do China Cloud.

No fim da tarde, o navio estava salvo na entrada do canal oeste. A Ilha de Hong Kong encontrava-se a bombordo, o continente a estibordo. Uma viagem perfeita, sem nenhum incidente.

— Talvez nós estejamos apenas ficando velhos — disse Struan, com uma risada curta.

— Quanto mais velho se fica, mais o mar quer levar-nos — disse Orlov, sem rancor, olhando para o oceano, à popa. — Se não fosse pelo meu belo navio, eu me demitia hoje. Struan caminhou para o timão.

— Vou substituir você por um turno, timoneiro. Vá para a frente.

— Sim, sim, senhor. — O timoneiro deixou-os a sós no tombadilho.

— Por que? — Struan perguntou a Orlov.

— Sinto que o mar me observa. Está sempre observando um marinheiro, testando-o. Mas chega um tempo em que o observa de maneira diferente, com ciúme, sim, com ciúme, pois o mar é uma mulher. E perigosa. — Orlov cuspiu por sobre a amurada o naco de fumo e lavou a boca com o chá frio que havia na bolsa de lona perto da bitácula. — Eu não tinha nunca agido como padre e nem casado ninguém, antes. Foi mortalmente estranho... estranho, Olhos Verdes, olhar aqueles dois, tão jovens, ansiosos e confiantes. E ouvi-lo falar igual a você, inchado como um pavão, ele estava. “Por Deus, Orlov, você vai nos casar, por Deus! Sou o capitão do China Cloud, por Deus! Você conhece a lei do Tai-Pan, por Deus!” E ali estava eu, arengando e esbravejando, terrivelmente relutante, de modo a dar a ele prestígio, mas sabendo, o tempo todo, que o velho Olhos Verdes era quem mexia os cordéis. — Orlov deu uma risadinha e olhou para Struan. — Mas agi muito bem e deixei que ele me comandasse... como você queria que eu fosse comandado. Foi como... bom, como meu presente de casamento para o rapaz. Ele lhe contou nosso acordo?

— Não.

— Faça o nosso casamento e você conservará seu navio, por Deus! Se não casar, eu vou tirar você do mar, por Deus!” — Orlov sorriu. — Eu teria casado os dois, de qualquer maneira.

— Eu estava pensando em lhe tirar seu navio, eu mesmo.

O sorriso de Orlov sumiu.

— Hein?

— Estou pensando em reorganizar a companhia... colocar a frota sob o comando de um homem. Gostaria de assumir esse cargo?

— Em terra?

— Claro que em terra. Você pode administrar uma frota do tombadilho de um clíper? Orlov fechou o punho e o estendeu em direção ao rosto de Struan.

— Você é um demônio do inferno! Você me tenta com um poder que vai além dos meus sonhos, para tirar a única coisa que eu amo na terra. Num tombadilho, esqueço quem eu sou. Por Deus, você sabe disso. Em terra, quem sou eu, hein? Stride Orlov, o corcunda!

— Você poderia ser Stride Orlov, tai-pan da mais nobre frota da terra. Eu acho que é trabalho para um homem de verdade. — Os olhos de Struan não se desviaram do rosto do anão.

Orlov deu a volta, foi para a amurada a barlavento e começou a proferir uma torrente de obscenidades em norueguês e russo, que durou minutos. Voltou, pisando forte.

— Quando será isso?

— No fim deste ano. Talvez mais tarde.

— E minha viagem para o norte? À procura de peles? Esqueceu disso?

— Você iria querer cancelá-la, não?

— O que lhe dá o direito de transformar todo mundo em títere? Hein?

— Timoneiro! Venha à popa! — Struan devolveu o timão ao marinheiro, enquanto o China Cloud saía do canal para as águas calmas do porto.

Uma milha mais adiante, estava a saliente península de Kowloon. A terra, de cada lado do navio, era barrenta e árida e se esfarinhava rapidamente. A bombordo, mais ou menos uma milha adiante, estava a rochosa ilha que fora chamada de Ponto Norte e formava um promontório. Além do Ponto Norte, invisível daquela posição, estavam o Vale Feliz, o Cabo Glessing e a pequena parte do porto em uso.

— Norte por noroeste — ordenou Struan.

— Norte por noroeste, senhorrr — ecoou o timoneiro.

— Firme para a frente. — Ele olhou para Orlov por sobre seu ombro. — E então?

— Não tenho escolha. Sei quando você decide alguma coisa. Você não me demitiria sem pensar duas vezes. Mas, há condições.

— Quais?

— Em primeiro lugar, quero o China Cloud. Por seis meses. Quero voltar para casa.

Pela última vez. — Ou sua mulher e filhos voltam com você ou ficam para trás, disse Orlov a si mesmo. Ficarão, e vão cuspir em sua cara, e mandarão você para o inferno e você desperdiçará seis meses de vida de um navio.

— Combinado. Logo que tiver aqui outro clíper, o China Cloud será seu. Você trará de volta uma carga de peles. Qual a outra?

— A outra, Olhos Verdes, é sua lei: quando você está a bordo, é capitão. Quero a mesma coisa.

— Combinado. E a outra?

— Não há “outra”.

— Não discutimos dinheiro.

— O dinheiro que vá para o inferno! Serei tai-pan da frota da Casa Nobre. O que mais pode um homem desejar?

Struan sabia a resposta. May-may. Mas nada disse. Eles apertaram-se as mãos, selando o acordo e, quando o navio estava a um quarto de milha ao largo de Kowloon, Struan ordenou que o China Cloud entrasse numa amura sudoeste-pelo-sul e se encaminhasse diretamente ao porto.

— Todos os homens ao convés! Apresentem-se! Assuma, Capitão. Coloque-se ao lado do Resting Cloud. Nossos passageiros farão o transbordo primeiro. Depois, coloque as âncoras de tempestade.

— Obrigado, Capitão — rosnou Orlov. — É bom estar no porto, por Deus!

Struan observou a terra com seu binóculo. Agora, via as profundezas do Vale Feliz: prédios abandonados, nenhum movimento. Moveu as lentes, ligeiramente, e ajustou o foco, fazendo tornarem-se mais nítidos os locais de construção da nova Cidade da Rainha, em— torno do Cabo Glessing. Os andaimes de sua nova e grande feitoria já estavam erguidos e via cules azafamando-se como formigas: carregando, construindo, cavando. Também já estavam erguidos os andaimes no outeiro onde ordenara que fosse construída a Grande Casa. E via o estreito e esguio corte da estrada que agora serpenteava morro acima.O Tai Ping Shan crescera apreciavelmente. Onde havia algumas poucas centenas de sampanas, indo e vindo do continente, agora havia mil.

Mais navios de guerra e de transporte estavam ancorados, além de mais alguns poucos navios mercantes. Casas, barracos e abrigos temporários alastravam-se pela fita da Estrada da Rainha, que marginava a praia. E toda a faixa da praia próxima à arrebentação pulsava de atividade.

O China Cloud saudou a nau capitania, enquanto contornava o promontório e um canhão disparou em resposta.

— Sinal da nau capitania, senhorrr! — gritou o vigia. Struan e Orlov viraram seus binóculos para as bandeiras, que diziam: “Pede-se ao Capitão para vir a bordo imediatamente.”

— Quer que eu pare junto? — perguntou Orlov.

— Não. Ponha o escaler ao lado, quando estivermos à distância de duas correntes. Você é responsável pelo transbordo de meus passageiros para o Resting Cloud com segurança. Sem olhos de intrusos vendo o que não devem.

— Pode deixar por minha conta. Struan foi para baixo e disse a May-may que a veria logo, e fez com que ela, Ah San e Yin-hsi se preparassem para o transbordo.

Os olhos de Orlov percorreram rapidamente o navio. Um emprego em terra, hein? Bom, veremos. Há muitas léguas para viajar ainda, disse a si mesmo. Que o demônio o leve. Sim, mas eu enfrentaria o próprio demônio por Olhos Verdes — cria de Odin. Ele precisa de um homem como eu. Mas tem razão, novamente. Aquele é um cargo para homem. Esse pensamento o animava muito.

— Fiquem ativos! — rugiu para a tripulação, sabendo que muitos binóculos estariam fixados neles, e manteve a vela a todo pano, avançando, despreocupadamente, em direção à nau capitania. Seu coração cantou com o cordame e, depois, no último minuto, gritou: — Timão a sotavento! — e o navio deu a volta, atirando-se em seguida para a frente, sem fôlego, como um sabujo a perseguir uma ninhada de perdizes.

Baixaram o escaler e Struan desceu pelas cordas. Quando o cúter se afastou, o China Cloud mudou de direção alguns pontos, colocando-se com perfeição ao lado do Resting Cloud.

— Todos os homens para baixo! — ordenou Orlov. — Desocupe o convés, Sr. Cudahy. O nosso e o deles. Estamos baldeando uma carga que não precisa ser contada, por Deus!

***

Struan abriu a porta da cabina principal da nau capitania.

— Por Deus, Dirk! Estamos todos arruinados — disse Longstaff todo agitado, aproximando-se dele a acenar com um exemplar do Oriental Times em seu rosto. — Já viu isso? Arruinados! Arruinados!

Struan pegou o jornal. A manchete, na página editorial interna, era imensa: Ministro de Relações Exteriores Repudia os Comerciantes na China.

— Não, Will! — disse.

— Por tudo que é sagrado, como ousou ele fazer uma coisa tao estúpida, hein? Que louco idiota! O que vamos fazer?

— Deixe-me ler, Will. Então verei de que se trata.

— O idiota do Cunnington repudiou nosso tratado. É disso que se trata. E eu estou demitido! Substituído! Eu! Como ele ousa? Struan ergueu as sobrancelhas e assobiou.

— Não foi informado ainda através de despacho?

— Claro que não! Quem diabo informa o plenipotenciário, hein?

— Quem sabe se não é tudo falso?

— Aquele sujeito, o Skinner, jura que é verdade. É melhor que seja, do contrário eu o processarei, por Deus!

— Quando saiu isso, Will?

— Ontem. Como diabo esse obeso e fedorento peralvilho Skinner pôs suas mãos gordas e sujas num despacho secreto que eu nem sequer recebi ainda? Devia ser chicoteado! — Serviu-se de uma taça de Porto, esvaziou-a e se serviu de outra. — Não dormi um só minuto, a noite passada, preocupado com o nosso futuro na Ásia. Leia isso. Maldito Cunnington!

Enquanto Struan lia, descobriu que começava a ferver. Embora o artigo apresentasse, ostensivamente, os fatos amplos, e documentasse o despacho palavra por palavra, como Cross escrevera para ele, o editorial de Skinner implicava que Cunnington, bem conhecido pela sua maneira imperiosa de tratar as questões estrangeiras, repudiara totalmente não só o próprio tratado, mas toda a experiência da comunidade comercial, e também da Marinha Real e do Exército: “Lord Cunnington, que nunca esteve a leste de Suez, arvora-se em perito para opinar sobre o valor de Hong Kong. Muito provavelmente não sabe se Hong Kong fica ao norte ou ao sul de Macau, a leste ou a oeste de Pequim. Como ousa sugerir que o Almirante de nossa gloriosa frota é um saco de vento e nada sabe sobre marinharia e o valor histórico de maior porto da Ásia? Onde estaríamos nós, sem a Marinha Real? Ou o Exército, ambos igualmente desprestigiados — não, insultados – pela estúpida e equivocada maneira de tratar os nossos assuntos? Sem Hong Kong, onde nossos soldados encontrariam um refúgio, ou ossos navios um santuário? Como ousa esse homem, que está seu posto há demasiado tempo, dizer que, com toda sua experiência, todos os negociantes que, honradamente, investiram seu futuro e sua riqueza em Hong Kong são idiotas? Como ousa sugerir que essas pessoas, cuja vida foi passada na China, para a glória da Inglaterra, nada sabem a respeito dos negócios chineses, do imenso valor de um porto livre, de um empório comercial e uma ilha fortificada... — E o artigo avaliava a ilha e descrevia como, com grande risco para si próprios, os negociantes desenvolveram o Vale Feliz, e como, ao terem de abandoná-lo, destemidamente começaram a nova cidade, para a glória da Grã-Bretanha. Era uma peça magistral de manipulação de notícia.

Struan escondeu seu encanto. Sabia que, se ele — que introduzira a história — podia ser atiçado pelo editorial, outros iriam à violência.

— Estou chocado! Que ele tivesse ousado! Cunnington devia ser destituído!

— É exatamente o que eu penso! — Longstaff esvaziou seu copo outra vez, e bateu o na mesa. — Bom, agora estou demitido. Todo o trabalho, o suor, as conversas, a guerra... tudo por água abaixo, por causa daquele autoritário e precipitado maníaco, que acredita ser o dono do mundo.

— Ele não vai conseguir levar isso a cabo, Will! Temos de fazer algo com ele! Não conseguirá levar isso a cabo!

— Já conseguiu, por Deus! — Longstaff levantou-se e caminhou pela cabina, e Struan sentiu uma ponta de piedade por ele.

— O que vai acontecer? Minha carreira está arruinada... todos estamos arruinados!

— O que você fez com relação a isso, Will?

— Nada. — Longstaff olhou para fora, pelas vigias da cabina.

— Essa maldita ilha é a origem de todos os meus problemas. Esse rochedo do inferno me destruiu. Destruiu a todos nós! — Ele se sentou, soturnamente. — Ontem, quase houve um motim. Uma delegação de comerciantes veio aqui e pediu que eu me recusasse a partir. Outra, comandada por Brock, pediu que eu partisse da Ásia imediatamente, com a frota, e me apresentasse em Londres para pedir o impeachment de Cunnington e, se necessário, bloqueasse o porto de Londres. — Ele apoiou o queixo nas mãos. — Bom, a culpa foi minha. Eu deveria ter seguido minhas instruções ao pé da letra. Mas isso não teria sido certo. Não sou um conquistador sedento de poder, querendo tomar todas as terras. Maldito seja tudo! — Ele ergueu os olhos, o rosto retorcido de humilhação. — O almirante e o general estão encantados, é claro. Quer uma bebida?

— Obrigado. — Struan serviu-se de um conhaque. — Nem tudo está perdido, Will. Pelo contrário. Ao chegar a nosso país, você pode colocar em ação sua influência.

— Hein?

— O que você fez aqui está certo. Você poderá convencer Cunnington, se ele ainda estiver ocupando o cargo. Cara a cara, você estará em posição muito forte. Tem a razão do seu lado. Definitivamente.

— Você já encontrou Cunnington? — perguntou Longstaff, amargamente. — Não se discute com aquele monstro.

— É verdade. Mas eu tenho alguns amigos. Vamos dizer que você tivesse uma chave para provar que estava certo e ele errado?

Os olhos de Longstaff brilharam. Se Struan não se mostrava preocupado com a terrível notícia, nem tudo estava perdido.

— Que chave, meu caro amigo? — perguntou.

Struan saboreava seu conhaque.

— Os diplomatas são permanentes, os governos mudam. Antes de você chegar à Inglaterra, Peel será Primeiro-Ministro.

— Impossível!

— Provável. Digamos que você leve notícias da mais alta importância, provando que Cunnington é um idiota. Como Peel e os Conservadores iriam encarar você?

— Admiravelmente. Puxa vida! Que notícias, Dirk, meu amigo?

Houve uma confusão do lado de fora da porta, e Brock invadiu a sala, embora uma desafortunada sentinela tentasse, inutilmente, detê-lo. Struan ergueu-se, num átimo de segundo, pronto para puxar a faca.

O rosto de Brock estava inchado de ódio.

— Eles estão casados?

— Sim.

— Gorth foi assassinado?

— Sim.

— Quando deverá chegar o White Witch?

— Antes do entardecer, eu acho. Estava programado para partir no meio da manhã.

— Primeiro, falarei com Liza. Depois, com os dois. Então, em nome do Senhor, virei falar com você. — Saiu furioso.

— Que patife mal-educado! — Longstaff estava ofendido. — Poderia ter, pelo menos, batido à porta.

Struan relaxou como um gato relaxaria, depois de um perigo passar — os músculos se afrouxando, prontos para se enrijecerem outra vez, diante da próxima ameaça, mas os olhos imutáveis, ainda observando onde estava o perigo.

— Você nada tem a temer de Cunnington, Will. Ele está liquidado.

— Sim, claro, Dirk. E que bons ventos o levem! — Olhou para a porta, lembrou-se da luta e sentiu que a luta entre Dirk e Brock seria igualmente rancorosa. — O que Brock tem em mente, hein? Será que ele vai desafiar você para um duelo? Claro que ouvimos falar de sua briga com Gorth. As más notícias costumam circular rapidamente, não é? Que coisa terrível! Foi uma tremenda sorte que ele tivesse sido morto por outros.

— Sim — disse Struan. Agora que o perigo passara, ele sentia-se ligeiramente enjoado e fraco.

— O que deu naqueles dois jovens idiotas, para fugirem assim? É lógico que Brock só poderia ficar louco. Estupidez!

— Não foi estupidez, Will. Era a melhor coisa que podiam fazer.

— Claro. Se você diz que era. — E Longstaff ficou imaginando se os rumores eram verdadeiros: de que o Tai-Pan, deliberadamente, precipitara o casamento e o duelo. O Tai-Pan era esperto demais para não ter planejado isso, disse a si próprio. Então, Tai-Pan versus Brock. — E Peel, Dirk?

— Você é um diplomata, Will. Os diplomatas não devem ter ligações partidárias específicas. Pelo menos, deveriam ter boas relações com todos os partidos.

— É exatamente o que eu penso. — Os olhos de Longstaff se arregalaram. — Você quer dizer que eu devo tornar-me um Conservador... apoiar Peel?

— Apoiar igualmente os Whigs e os Conservadores. Hong Kong é bom para a Inglaterra. Você é Hong Kong, Will. Talvez isto — Struan agitou o papel — seja um grande golpe de sorte para você. Prova que Cunnington não só é um idiota, mas também um falador. É chocante ler um despacho particular nesse jornal. — Depois, falou-lhe da pasta de documentos, mas só o suficiente para deixar Longstaff tonto.

— Bom Deus!

Se, como o Tai-Pan sugeria, havia uma cópia do verdadeiro relatório secreto, com mapas de áreas de fronteira entre a Rússia e a China, e do interior, por Deus, isso seria um passaporte para um posto de embaixador e um cargo de nobreza.

— Onde a conseguiu?

— De uma fonte acima de qualquer suspeita. — Struan levantou-se. — Eu colocarei a pasta em suas mãos, antes de você partir. Use-a como quiser. Certamente, provará que você tem razão e Cunnington está errado, além de tudo o mais.

— Jantará comigo, Dirk? — Longstaff não se sentia tão bem há anos. — Podemos conversar a respeito dos velhos tempos.

— Hoje à noite, não, desculpe-me. Quem sabe, amanhã?

— Ótimo. Obrigado. E estou muito satisfeito por nossos pontos de vista terem sido comprovados.

— E, finalmente... há uma outra coisa que necessita de atenção imediata. Os Tríades.

— Hein?

— Gorth Brock foi assassinado pelos Tríades de Hong Kong. Do Tai Ping Shan.

— Puxa vida! Por quê?

— Não sei.

Struan contou o que o oficial português lhe contara sobre os Tríades. E sobre Gordon Chen. Sabia que tinha de dar a Longstaff esta informação pois, do contrário, iria parecer que tentara proteger seu filho, quando fosse oficialmente divulgada. Se Gordon estivesse envolvido com a sociedade, isto iria afastá-lo. Caso contrário, não haveria nenhum prejuízo.

— Ora essa — disse Longstaff, com uma risada. — Uma história ridícula.

— Sim, espalhada por meus inimigos, não há dúvida. Mas faça uma proclamação a respeito dos Tríades e ordene ao Major Trent para esmagá-los. De outra maneira, teremos os malditos mandarins atrás de nós.

— Boa idéia. Excelente, por Júpiter! Vou chamar Horatio... ora bolas, eu o mandei a Macau, numa folga de duas semanas. Você me cederia Mauss?

— Claro. Eu o mandarei procurá-lo.

Quando Struan partiu, Longstaff sentou-se, entusiasmado, à sua escrivaninha.

— Meu caro Sir William — ele disse para seu copo. — Eu me sinto ótimo. Para dizer a verdade, estou felicíssimo por deixar essa ilha fedorenta. Não dou a mínima para o que vai acontecer com ela... com os negociantes, os chineses ou os malditos Tríades. — Foi à janela e começou a rir. — Veremos o que a pasta contém. E quando voltarmos para a Inglaterra decidiremos. Se Cunnington cair, poderemos voltar com segurança para Hong Kong, e levando vantagem. Se Cunnington continuar, posso concordar que ele está certo e jogar a ilha no lixo, como uma coisa à-toa. Porque terei os documentos, uma chave para a alcova de qualquer Ministro de Relações Exteriores, e terei também uma porção de chá.

— Estourou de rir. Fazia alguns dias, um emissário particular, Ching-So viera vê-lo, para lhe dizer que as sementes pedidas Horatio poderiam ser embarcadas dentro de duas semanas. — Acho que teve um belo dia de trabalho, Excelência!

***

À bordo do Resting Cloud, Struan encontrou May-may já na cama, em seus próprios alojamentos, com excelente aspecto e ainda mais

— Estou muito satisfeita por me encontrar em casa, Tai-Pan. Você viu, não é? Sua velha mãe obedece como um marinheiro. Tomei duas xícaras de cinchona e estou preparada para mais três.

— Hein? — ele disse, com uma repentina suspeita.

— Ora, é a pura verdade. E não me olhe assim. Estou falando-, sério! Será que sou uma prostituta Hoklo? Uma miserável mendiga? Tenho cara de quem mente? Promessa é promessa, e não esqueci. Claro — ela acrescentou, com doçura — agora eu tomo o veneno com gosto de esterco misturado com suco de manga, coisa de que qualquer mulher normal se lembraria imediatamente, mas não os homens, ah, meu Deus, não... seria simples demais. — Ela ergueu a cabeça, com seu antigo ar imperioso. — Os homens!

Struan disfarçou o sorriso e o prazer de ver que ela voltara a ser como antes. — Retornarei mais tarde. E você fique na cama.

— Ora! Será que deixo de cumprir promessa? Será que sou um esterco inútil de tartaruga? — Estendeu a mão, como uma imperatriz. — Tai-Pan! Ele beijou-lhe a mão, com galanteria, e ela explodiu em risos e o abraçou.

— Vá, meu filho, mas nada de sujos bordéis!

Struan deixou-a, e foi para sua própria cabina. Destrancou seu cofre e tirou da pasta uma das duas cópias dos documentos e mapas, que mandara fazer meticulosamente. Colocou-os no bolso, com os pequenos sacos que continham os restos da casca de cinchona.

Entrou outra vez em seu escaler.

— Boston Princess — ordenou, dando o nome do pontão de Cooper-Tillman.

O sol morria no horizonte, mas tinha um brilho opaco, como se um véu tivesse sido puxado através do céu.

— O que acha disso, Mestre?

— Não sei, senhorrr. Vi tempo assim nos Mares do Sul, antes de clima bom e de tempestade. Se a lua tiver um anel em torno esta noite, então talvez vá chover, por um período.Ou coisa pior. Struan acrescentou para si mesmo. Levantou-se e olhou para o canal oeste. Não havia sinal do White Witch. Bom, cogitou, talvez permaneçam fora e voltem ao amanhecer. Não vou pensar a seu respeito ainda, Tyler.

O escaler parou ao lado do Boston Princess. Era um navio mercante adaptado, de grandes dimensões e três conveses, permanentemente ancorado. Struan subiu correndo a prancha de desembarque.

— Permissão para subir a bordo — disse ao oficial americano que se encontrava no convés. — Talvez o Sr. Cooper queira receber-me. É urgente.

— Só um minuto, Sr. Struan. — O oficial foi para baixo. Struan acendeu um charuto e atirou o fósforo por sobre a amurada. O China Cloud passava ao largo, encaminhandose para sua amarração, que ficava em águas profundas, em frente ao Vale Feliz.

— Olá, Tai-Pan — disse Jeff Cooper, chegando rapidamente ao convés. — Suponho que tenha ouvido dizer o que fez aquele estúpido filho da mãe do Cunnington? Ficamos muito sentidos ao saber do duelo, e todo o resto. Aqueles dois jovens loucos fugiram?

— Sim. Como vai Wilf?

— Morreu.

— Maldição! Quando morreu?

— Há três dias.

— Vamos para baixo, hein?

— Está bem. O que achou da demissão de Longstaff e do repúdio ao tratado?

— Não significa nada. Apenas um estúpido erro político. Tenho certeza de que será corrigido.

Cooper mostrou o caminho até embaixo. A cabina principal era luxuosa.

— Conhaque?

— Obrigado. — Struan aceitou a bebida. — Saúde!

Struan abriu a pequena bolsa e tirou um pouco da cinchona.

— Está vendo isso, Jeff? É uma casca de árvore. Casca de cinchona. Algumas vezes chamada casca de árvore dos jesuítas. Com ela se faz um chá que cura a malária.

— Tem certeza?

— Sim. Curei minha amante. Esta revelação é particular... mas cura com certeza. Cooper pegou um pedaço da casca, com os dedos trêmulos.

— Ah, meu Deus, Tai-Pan, percebe o que fez? Percebe o que está dizendo?

— Sim. A malária existe no mundo inteiro... vocês têm a doença nos Estados Unidos por toda a Flórida e no território da Louisiana. Conheço a cura e como obter a casca de árvore. O que isso leva você a pensar?

— Trata-se de um serviço prestado à humanidade e representa uma fortuna para quem conseguir a casca primeiro.

— Sim, rapaz. Estou propondo uma sociedade. — Struan colocou a casca outra vez na bolsa, repentinamente triste. — É irônico, não? Há poucas semanas, isto poderia ter salvo Robb e a pequena Karen... e todos os outros, até Wilf, embora eu o desprezasse.

— Ele teve uma morte terrível — disse Cooper.

— Sinto muito. — Struan provou o conhaque e esqueceu o passado — Minha proposta é simples. Formamos uma nova companhia especializada na casca. Colocamos dinheiro em proporção igual. Quatro diretores... você, um designado seu, eu e Culum. Você administra a companhia. Eu forneço os dados referentes a onde, e como, e o que fazer de imediato, e você começa a planejar amanhã.

Cooper estendeu a mão.

— Negócio feito.

Struan contou-lhe onde obtivera a casca, de quem, e a respeito do navio que fretara e ia partir de Macau no dia seguinte, para o Peru.

— O bispo mandou dizer que o Padre Sebastião seguirá a bordo. Proponho a parceria, e não nos arriscaremos. Os custos dessa embarcação serão debitados da companhia e enviaremos outro navio... mas diretamente da América. Contrataremos dois médicos e dois homens de negócios para irem no navio e descobrirem tudo que puderem a respeito da cinchona. No dia em que partir o navio dos Estados Unidos, divulgaremos a notícia lá, usando suas relações. Estaremos um passo à frente de nossos concorrentes e cumpriremos minha aposta com o bispo. Divulgaremos a notícia aqui imediatamente, para afastar a maldição do Vale Feliz. E, logo que possível, na Europa. Quando nossos navios tiverem voltado, médicos no mundo inteiro estarão gritando por cinchona. Meus navios transportarão a mercadoria para o Império Britânico... você toma conta do continente americano... e dividiremos o resto do mundo. Podemos vender toneladas do produto só no sul da Itália.

— Quem mais sabe a respeito disso?

— Só você. Hoje. Vou dar a Skinner uma matéria a respeito esta noite, se conseguir encontrá-lo. Então, o assunto negócios está encerrado. Como vai Shevaun?

— Bem e mal. Aceitou o fato de que está prometida. Mas tenho de admitir, por mais que eu a ame, que ela não me ama.

— Vai comprar os interesses de Tillman?

— Se Shevaun casar comigo, não. Se ela não tivesse concordado... bom, seria um mau negócio não fazer isso. Agora que Wilf está morto, preciso encontrar um outro sócio. Isto significará uma participação nas ações... sabe muito bem dos problemas.

— Sim. O que foi feito de Zergeyev?

— Ah, ele ainda está aqui. O quadril já não o incomoda tanto. Nós o vemos muitas vezes. Jantamos com ele duas ou três vezes por semana. — Cooper sorriu, polidamente.

— Ele é muito ligado a Shevaun e ela parece apreciá-lo. Está fazendo uma visita a seu navio, agora. Struan esfregou o queixo, especulativamente.

— Então, tenho outro jogo para você. Mais perigoso do que a cinchona.

— Qual?

— Mande Shevaun para casa, por um ano. Dê a ela o poder de decisão... é uma puro-sangue. Se quiser voltar no fim de um ano, você se casará com ela, feliz. Se decidir contra você, dê-lhe liberdade. De qualquer maneira, diga-lhe que continuará a pagar a seu pai sua “parcela”, durante toda a vida dele. Quanto aos irmãos dela, que vão para o inferno. Não esqueça, podemos tirar vantagem das ligações do Senador Tillman, em nosso negócio da cinchona. O dinheiro que lhe dá renderá juros.

Cooper aproximou-se de sua escrivaninha para pegar os charutos e para dar tempo a si mesmo. Por que estaria o Tai-Pan sugerindo isso? Será que planejaria ele próprio ir atrás de Shevaun? Não, não havia necessidade de ser tão tortuoso: bastaria acenar, para Shevaun ir correndo.

— Tenho de pensar a respeito disso, Tai-Pan — disse. — Quer um charuto?

— Não, obrigado. E, enquanto estiver considerando isso, acrescente um novo jogo. Peça a Zergeyev para oferecer a ela passagem para os Estados Unidos em seu navio... acompanhada, claro.

— Você está louco!

— Não, rapaz. — Struan apresentou a cópia dos documentos, bem amarrados com uma fita verde. — Por favor, leia isso. Cooper pegou os papéis.

— O que é isso?

— Leia. Não tenha pressa.

Cooper sentou-se à sua escrivaninha e desamarrou a fita.

Bom, Struan dizia a si próprio, a cinchona está lançada. E Culum? Talvez o rapaz tenha razão, ele precisa de um sócio. Jeff é a solução. Struan-Cooper-Tillman. Pelo menos, Struan-Cooper; podemos esquecer Tillman, agora. Por que não? É uma grande vantagem para Jeff. Ganhamos uma vantagem com as Américas. Jeff é hábil e honesto. Pense a respeito disso com cuidado. É uma boa saída. Longstaff? Já foi mais bem cuidado do que nunca, em sua vida. Quando se afastar de você, fará só o que o próximo homem forte lhe disser. E Skinner? Até agora, agiu bem. Blore? É preciso ver o que anda fazendo. Mauss também. E depois? Depois, é ir para casa, ver May-may. Talvez Orlov tivesse razão. Talvez você só estivesse sentindo o mar a espiá-lo — teve um bom trabalho para ganhar seu dinheiro. Não ponha de lado sentimentos assim sem lhes dar nenhuma importância.

Inexoravelmente, sua mente se voltou para Brock: sim. Há um assassinato para ser cometido. E Liza tinha razão. Quando começa, talvez nunca termine. Ou terminará com ambos.

— Será que isso é verdadeiro?

— A fonte poderia ser classificada como “acima de qualquer suspeita”. O que acha disso?

— É diabólico. Zergeyev, obviamente, é um dos homens enviados para investigar a “esfera britânica de influência” na Ásia, e estudar os meios de emigração para o Alasca russo. — Cooper ficou pensando, por um momento. Depois, disse: — O que faremos com relação a isso? Bom, seguindo sua linha de pensamento: Shevaun. Zergeyev ficaria encantado em escoltá-la à América. Ela o seduz, deliberadamente, ou sem saber, e o leva para Washington. Seu pai, que é a pessoa indicada para receber isso tudo, claro, diz a Zergeyev, em particular, que os Estados Unidos estão aborrecidos com os russos e querem que vão embora. A Doutrina de Monroe e tudo mais. É isso que tem em mente?

— Você é um homem esperto, Jeff.

— Essas informações fazem Lord Cunnington parecer um idiota.

— É verdade.

— E evidenciam a necessidade, e a importância vital, de Hong Kong.

— Sim.

— Agora, temos a decidir como levar essas informações, de maneira imediata e segura, às mãos do senador. Ele verá sua cotação crescer enormemente nos círculos políticos, por causa delas, e procurará tirar todo o proveito. Deveremos arriscar-nos a deixar Shevaun inteirar-se dessa história ou, simplesmente, dar-lhe uma cópia do dossiê para levar a seu pai?

— Eu não a deixaria ler o dossiê, e nem mesmo lhe diria o que contém. Afinal de contas, ela é uma mulher. As mulheres tendem a fazer coisas imprevisíveis. Ela pode apaixonar-se por Zergeyev. Então jogará no lixo os Estados Unidos da América porque a lógica da fêmea diz que ela precisa proteger seu companheiro, sem levar em conta pátria, ou seja lá o que for. Seria desastroso, se Zergeyev soubesse que estamos a par do conteúdo do dossiê.

— Gostaria de pensar a respeito de tudo isso — disse Cooper Amarrou a pasta e devolveu-a. — Soa um tanto pomposo, Tai-Pan, mas meu país saberá lhe agradecer.

— Não quero agradecimentos, Jeff. Talvez ajudasse, se o Senhor Tillman e outros diplomatas começassem a ridicularizar os ridículos equívocos de Lord Cunnington em nossa área.

— Sim. Pode considerar como feito. A propósito, você me deve vinte guinéus.

— A troco de quê?

— Não se lembra de nossa aposta? Sobre quem seria a mulher que posava nua? No primeiro dia, Dirk. A pintura de Aristotle mostrando a cessão da ilha fazia parte da aposta, não se lembra?

— Sim. Quem era ela? — perguntou Struan. Vinte guinéus não são muito contra a honra de uma dama, pensou. Sim, mas, diabo, eu gostava daquela pintura.

— Shevaun. Ela me disse, há dois dias... disse que ia mandar fazer uma pintura de si mesma. Como a Duquesa de Alba.

— Você vai deixar?

— Não sei. — O rosto de Cooper se enrugou num pálido sorriso e perdeu, por um momento, sua angústia habitual. — A viagem marítima impediria isso, não é?

— No caso daquela moça, não. Vou mandar a bolsa para bordo amanhã. Segundo me lembro, o perdedor deveria mandar Aristotle pintar o vencedor, também. Está feito.

— Talvez você queira aceitar a pintura. Como um presente. Vou mandar Aristotle pintar nós dois, hein?

— Bom, obrigado. Sempre gostei daquela pintura. Cooper fez um sinal em direção aos documentos.

— Vamos falar com mais calma a respeito disso, amanhã. Esta noite eu decidirei se mando ou não Shevaun. Struan pensou a respeito de amanhã. Devolveu os documentes a Cooper.

— Coloque em seu cofre. É uma questão de segurança.

— Obrigado. Obrigado por confiar em mim, Tai-Pan.

***

Struan foi para terra, dirigindo-se ao escritório provisório que mandara construir em seu novo terreno junto ao mar. Vargas esperava-o.

— As notícias ruins primeiro, Vargas.

— Há um informe de nossos agentes, senhor, em Calcutá.

Parece que o Gray Witch estava com três dias de vantagem do Blue Cloud, de acordo com as últimas informações.

— Qual a próxima?

— Os custos da construção estão imensos, senhor. Com o editorial de ontem, mandei parar todo o trabalho. Talvez devêssemos reduzir nossas perdas.

— Continue imediatamente o trabalho’ e dobre nossa força de operários, amanhã.

— Sim, senhor. As notícias da bolsa de valores da Inglaterra são ruins. O mercado está muito nervoso. O orçamento não se equilibrou ainda e estão previstos problemas financeiros.

— Isso é normal. Você não tem alguma calamidade especial para contar?

— Não, nenhuma, senhor. Claro que os roubos são incrivelmente freqüentes. Houve três casos de pirataria, desde que o senhor partiu, e uma dúzia de tentativas. Dois juncos piratas foram capturados e a tripulação publicamente enforcada. Cerca de quarenta a cinqüenta ladrões, assaltantes, e assassinos cortadores de gargantas são chicoteados, toda quarta-feira. É difícil uma noite em que uma casa não seja invadida. É uma tristeza. Ah, a propósito, o Major Trent determinou um toque de recolher para todos os chineses, ao anoitecer. Esta parece ser a única maneira de controlá-los.

— Onde está a Sra. Quance?

— Ainda no pequeno pontão, senhor. Ela cancelou sua passagem para a Inglaterra. Segundo parece, há um boato de que o Sr. Quance ainda se encontra em Hong Kong.

— E é verdade?

— Eu não gostaria de pensar que perdemos o imortal Quance, senhor.

— O que tem andado fazendo o Sr. Blore?

— Está gastando dinheiro como se as pedras de Hong Kong; fossem feitas de ouro. Claro, não é nosso dinheiro — disse Vargas, tentando não mostrar sua desaprovação — mas “fundos do Jóquei Clube”. Pelo que entendi, o clube deverá ser uma entidade-não-lucrativa, e todos os seus lucros serão empregados em corridas, cavalos e assim por diante. — Ele enxugou as mãos num lenço. O dia estava muito úmido. — Ouvi dizer que o Sr. Blore organizou uma briga de galos, sob os auspícios do Jóquei Clube. Struan animou-se.

— Ótimo. Quando será?

— Não sei, senhor.

— E Glessing, o que está fazendo?

— Cumprindo todos os deveres de um mestre do porto. Mas ouvi dizer que está furioso com Longstaff por não ter permitido que fosse a Macau. Há um boato de que será mandado de volta para a Inglaterra.

— Mauss?

— Ah, o Reverendo Mauss. Voltou de Cantão e tem quartos do hotel.

— Por que o “ah”, Vargas?

— Nada, senhor. Apenas outro boato — respondeu Vargas, aborrecido por ter dado com a língua nos dentes. — Bom, parece... claro que nós católicos não aprovamos, e sentimos tristeza porque os protestantes não têm as mesmas crenças que nós, em benefício da salvação de suas próprias almas. De qualquer maneira, ele tem um seguidor querido, um Hakka que se batizou, chamado Hung Hsiu-ch’uan.

— Será que Hung Hsiu-ch’uan tem alguma coisa a ver com a Hung Mun... os Tríades?

— Ah, não, senhor, o nome é muito comum.

— Sim, eu me lembro dele. Um homem alto, com aspecto curioso. Continue.

— Bom, não há muita coisa para contar. Só que ele começou a pregar entre os chineses de Cantão. Sem o consentimento do Reverendo Mauss, e chamando a si próprio de irmão de Jesus Cristo, afirmando que fala com seu pai, Deus, todas as noites. Que é o novo Messias, vai limpar os templos, como seu irmão fez, e uma “porção de outras tolices idolatras. Obviamente, é louco Se não fosse um sacrilégio tão grande, seria muito divertido.

Struan pensou a respeito de Mauss. Gostava dele como homem e tinha pena dele. Depois, lembrou-se outra vez das palavras de Sarah. Sim, disse a si próprio, você usou Wolfgang de diversas maneiras. Mas, em troca, deu-lhe o que ele queria — a oportunidade de converter os pagãos. Sem você, ele estaria morto há muito tempo. Sem você... deixe para lá. Mauss tem sua própria salvação com que se preocupar. Os caminhos de Deus são aparentemente estranhos.

— Quem sabe, Vargas? Talvez Hung Hsiu-ch’uan seja aquilo que ele proclama. De qualquer maneira — acrescentou, vendo Vargas se empertigar — eu concordo. Não é divertido. Falarei com Wolfgang. Obrigado por me contar.

Vargas pigarreou.

— Acha que eu poderia ter uma licença, na próxima semana? Este calor e... bom, seria agradável ver a minha família.

— Sim. Tire duas semanas, Vargas. E acho que seria bom para a comunidade portuguesa ter o seu próprio clube. Vou começar a fazer uma subscrição. Você está indicado como tesoureiro e secretário temporário. — Rabiscou num bloco de papel e arrancou uma folha. — Pode tirar isto imediatamente, em dinheiro. — Era uma ordem de pagamento à vista no valor de mil guinéus.

Vargas ficou esmagado.

— Obrigado, senhor.

— Não agradeça — disse Struan. — Sem o apoio da comunidade portuguesa, não teríamos comunidade nenhuma.

— Mas, senhor, essa notícia... esse editorial! Hong Kong está liquidada. A Coroa repudiou o tratado. Dobrar a força de trabalho? Mil guinéus? Eu não entendo.

— Hong Kong estará viva enquanto nela existir um negociante e houver uma só embarcação da Marinha no porto. Não se preocupe. Algum recado para mim?

— O Sr. Skinner deixou uma mensagem. Gostaria de vê-lo, quando o senhor assim quiser. O Sr. Gordon Chen, também.

— Mande dizer a Skinner que darei uma passada no jornal, esta noite. E a Gordon que eu o encontrarei a bordo do Resting Cloud, às oito horas.

— Sim, senhor. Ah, a propósito, uma outra coisa. Lembra-se de Ramsey? O marinheiro que desertou? Bom, ele viveu nas montanhas todo esse tempo, numa caverna, como um eremita. No Cume. Sobreviveu roubando comida da vila de pesca de Aberdeen. Parece que estuprou várias mulheres e os chineses o amarraram e entregaram às autoridades. Ontem, foi julgado. Cem chicotadas e dois anos de servidão penal.

— Seria preferível que o tivessem enforcado — disse Struan. — Jamais resistirá a dois anos. — As prisões eram armadilhas mortíferas, indescritivelmente brutais.

— Sim. Terrível. Mais uma vez obrigado, senhor. Nossa comunidade apreciará muito seu gesto — disse Vargas. Ele partiu, mas voltou quase no mesmo minuto.

— Com licença, Tai-Pan. Um de seus marinheiros está aí. O chinês, Fong.

— Mande-o entrar.

Fong fez uma silenciosa curvatura, ao chegar.

Struan observou o chinês robusto, cheio de marcas de varíola. Nos três meses em que permanecera a bordo, mudara, de “várias maneiras. Agora, usava com facilidade roupas européias de marinheiro, com o rabicho bem enrolado sob um gorro de tricô. Seu inglês era passável. Um excelente marinheiro. Obediente, fala mansa, rápido no aprender.

— O que está fazendo fora do navio?

— Capitão disse que podia vir para terra, Tai-Pan. Meu turno de vir.

— O que você quer, Fong?

Fong entregou um pedaço de papel amassado. A caligrafia que havia nele era infantil: “Aberdeen, em algum lugar, camarada. Oito toques de sino, turno intermediário. Venha só.” Estava assinado: “O pai de Bert e de Fred.”

— Onde conseguiu isso?

— Um cule me parou. E me deu.

— Sabe o que diz?

— Eu leio sim. Não leio fácil. Muito difícil, pode ter certeza. Struan observou o pedaço de papel.

— O céu. Já viu?

— Sim, Tai-Pan.

— O que lhe disse o céu?

Fong sabia que estava sendo testado.

Tai-fung — ele disse.

— Quanto tempo?

— Não sei. Três dias, quatro dias, mais ou menos. Tai-fung, pode ter certeza. O sol já se encontrava abaixo do horizonte e sua luz morria rapidamente. A praia e os locais de construção estavam pontilhados de lanternas.

O véu que havia sobre o céu se tornara mais espesso. Uma gigantesca lua sangrenta se achava dez graus acima do horizonte límpido.

— Acho que você tem um bom faro, Fong.

— Obrigado, Tai-Pan.

Struan levantou o papel.

— O que o seu faro diz a respeito disso?

— Para não ir sozinho — disse Fong.


CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

Com a chegada da escuridão, o céu começou a se cobrir de nuvens e a unidade intensificou-se. Os negociantes da China, experimentados na leitura do vento e do mar, sabiam que logo começaria a chover. As nuvens anunciavam, simplesmente, as primeiras chuvas da temporada, que aliviariam, por algum tempo, o constante abafamento, e fariam a poeira assentar. Apenas um aguaceiro, se estivessem com pagode. Se o pagode estivesse contra eles, poderia haver uma tempestade. E só o pagode decidiria se a tempestade se transformaria em tufão.

— Estou com calor, Tai-Pan — disse May-may, abanando-se na cama.

— Eu também — disse Struan. — Estava mudando uma camisa amassada e úmida por outra, limpa. — Eu lhe disse que você devia ficar em Macau. Lá é muito mais fresco.

— Talvez, mas então eu não teria o prazer de lhe dizer que estou com calor, que diabo!

— Eu gostava mais de você quando estava doente. Não era atrevida e não vivia com esse vulgar praguejar.

— Ora! — ela bufou. — Não seja mendaz comigo!

— Não seja o que, com você?

— Mendaz Tai-Pan. Não sabe inglês? Enquanto você estava fora o dia inteiro, sem se preocupar com sua pobre velha mãe, eu andava terrivelmente ocupada lendo seu livro de palavras do Dr. Johnson, melhorando minha mente com a língua bárbara. Todo mundo sabe o que é “mendaz”. Quer dizer “mentiroso”. É o que você é, por Deus. — Fez uma expressão amuada, que a tornou ainda mais bonita. — Você não me adora mais!

— Eu me lembro bem de seu traseiro mendaz.

May-may forçou um gemido sofrido.

— Tai-Pan quer ir pra cama com vaca cria, hein, senhor? Ah, pode, sim!

Struan se aproximou da cama e May-may recuou.

— Ora, Tai-Pan, era uma brincadeira. Ele a apertou com força.

— Ah, garota, fique boa, isso é que é importante.

Ela usava uma túnica macia de seda azul, tinha o cabelo penteado com elegância e seu perfume era embriagador.

— Não ouse ir para bordéis, hein?

— Não seja tola.

Ele a beijou e acabou de se vestir. Colocou sua faca na bainha, às suas costas, e o pequeno punhal na bota esquerda, e tornou a amarrar o cabelo, bem arrumado, com uma fita à nuca

— Por que corta seu cabelo, Tai-Pan? Deixe crescer, num rabicho, como fazem as pessoas civilizadas. É muito bonito. Lim Din bateu e entrou.

— Senhor. Está aí o Senhor Chen. Pode?

— Eu o verei na cabina acima.

— Você volta, Tai-Pan?

— Não, garota. Vou desembarcar, em seguida.

— Peça a Gordon para vir ver-me, está bem?

— Sim, garota.

— Onde você vai?

— Vou sair, ora. E é melhor você se comportar, enquanto eu estiver fora. Não voltarei antes da meia-noite. Mas apareço aqui logo que estiver a bordo.

— Ótimo — ela ronronou. — Mas me acorde, se eu estiver dormindo. Sua velha mãe gosta de saber que o filho mendacioso está bem. Ele lhe deu palmadinhas afetuosas e foi para a cabina, no convés acima.

— Olá, Gordon.

Gordon Chen usava um traje longo de seda azul e calças leves de seda. Estava agitado e muito preocupado.

— Boa-noite, Tai-Pan. Seja bem-vindo. Fiquei muito feliz ao saber a respeito da cinchona. Como vai a Sra. T’chung?

— Muito bem, obrigado.

— Sinto muito meus inadequados esforços não terem dado resultado.

— Obrigado por tentar.

Gordon Chen ficou outra vez aborrecido porque tivera de gastar número substancial de taéis na procura, mas seu aborrecimento não era nada comparado com sua ansiedade com relação a Hong Kong. Toda hierarquia das Tríades em Kwangtung estava num tumulto, devido às notícias chegadas da Inglaterra. Fora convocado por Jin-qua e recebera ordens de sondar o Tai-Pan, usar todo o poder dos Tríades e todos os meios necessários — barras de prata, impostos, aumento do comércio — para impedir os bárbaros de sair da ilha e encorajá-los a ficar.

— É um assunto de grave importância, Tai-Pan; senão, eu não me intrometeria. Hong Kong. Aquele editorial. É verdadeiro? Se for, estamos perdidos... arruinados.

— Ouvi dizer que você é o Tai-Pan dos Tríades de Hong Kong.

— O quê?

— Tai-Pan dos Tríades de Hong Kong — repetiu Struan, com brandura, e lhe contou o que dissera o oficial português. — História estúpida, hein?

— Não é estúpida, Tai-Pan, é realmente terrível! Uma mentira chocante! — Se Gordon estivesse sozinho, teria arrancado os cabelos, rasgado as roupas e gritado de raiva.

— Por que os Tríades iriam assassinar Gorth?

— Não sei. Como eu iria saber o que fazem esses anarquistas? Tai-Pan dos Tríades? Eu? Que acusação sórdida!

Minha vida não vale o preço dos excrementos de um cule, ele gritava para si mesmo. Aquele miserável traidor! Como ousou divulgar segredos! Não perca a cabeça. O Tai-Pan dos bárbaros está olhando para você e é melhor dar uma resposta inteligente!

— Simplesmente, não tenho a menor idéia. Deus do céu! Tríades no Tai Ping Shan, debaixo do meu nariz? Terrível.

— Você tem inimigos que pudessem espalhar uma história dessas?

— Devo ter, Tai-Pan. Deus do céu! Fico imaginando se... — os brancos de seus olhos apareceram.

— Se o quê?

— Bom, eu sou... bom, você é meu pai. Será que alguém está tentando atacá-lo, através de mim?

— Talvez seja verdade, Gordon. Talvez você seja o chefe dos Tríades.

— Um anarquista? Eu? Ó deuses, por que me abandonaram? Gastei cinqüenta taéis de incenso e oferendas para mandar dizer preces, ainda a semana passada. Não sou, sem favor, o mais generoso patrocinador dos seus templos? Não fiz, pessoalmente, a doação de três templos e quatro cemitérios, e não tenho em minha lista pessoal de pagamentos uma comitiva de quarenta e três sacerdotes budistas? Por que eu iria me associar a esses criminosos? Com a ajuda dos deuses, estou ficando rico. Não tenho necessidade alguma de roubar e nem de saquear.

— Mas gostaria de afastar os manchus do trono da China?

— Manchus ou chineses, é tudo a mesma coisa para mim, Tai-Pan. Por que iria eu preocupar-me com isso? Nada tem a ver com meus negócios. — Ah, deuses, tapai os ouvidos, por um momento. — Não sou chinês... sou inglês. Acho que a última pessoa em quem confiaria qualquer sociedade secreta chinesa seria eu. Representaria um perigo.

— Talvez. Não sei. Talvez você deva gastar alguns taéis, Gordon. Organize um sistema de espionagem. Descubra quem são esses homens e quais os seus líderes.

— Imediatamente, Tai-Pan.

— Três meses devem bastar para um homem astuto como você apresentar os líderes.

— Seis meses — disse Gordon Chen, automaticamente, tentando desesperadamente pensar numa maneira de sair da armadilha

Teve uma inspiração. Claro. Vamos deixar os bárbaros lidarem com os miseráveis anti-Tríades. Vamos recrutar espiões entre eles e fazer com que montem uma sociedade subsidiária e iniciá-los em falsas cerimônias. Excelente! Então... deixe-me ver. Vamos deixar escapar que o verdadeiro líder da Tríade é... quem? Vou pensar em algum inimigo, quando chegar a ocasião. Depois, nós revelaremos seus nomes aos bárbaros como os verdadeiros Tríades e eles serão decapitados.

— Ah, sim, Tai-Pan, vou começar imediatamente a fazer isso.

— Acho que deve. Porque, de uma forma ou de outra, eu vou esmagar os Tríades.

— E eu farei tudo que puder para ajudá-lo — Gordon disse, com fervor.

Dez cabeças devem satisfazer até a você, Tai-Pan, ele pensou. É pena que Chen Sheng seja da família, senão seria a pessoa perfeita para ser apontada como “líder dos Tríades”. Com algum pagode eu seria o próximo na fila de candidatos a compradore da Casa Nobre. Não se preocupe, Jin-qua ajudará você a encontrar o engodo certo.

— Tai-Pan, vamos falar de coisas mais importantes. E esse editorial? Hong Kong está liquidada? Poderemos perder uma fortuna. Seria desastroso, se perdêssemos a ilha.

— Há alguns pequenos problemas. Mas eles serão resolvidos. Hong Kong é permanente. Esse Governo sairá em breve. Não se preocupe. A Casa Nobre e Hong Kong são a mesma coisa.

A ansiedade de Gordon Chen desapareceu.

— Tem certeza? Esse Cunnington será afastado?

— De uma maneira ou de outra. Sim.

Ele olhou para seu pai com admiração. Ah, pensou ele, até através de um assassinato. Excelente. Ele teria gostado de dizer ao Tai-Pan que eliminara Gorth e, assim, salvara sua vida. Mas isto poderia esperar para uma ocasião mais importante, disse a si próprio, muito encantado.

— Excelente, Tai-Pan. Você me tranqüilizou de uma maneira maravilhosa. Concordo. A Casa Nobre e Hong Kong são a mesma coisa — Se não forem, você está liquidado, pensou. Mas é melhor não tornar a pôr os pés no continente, outra vez. Enquanto estiver circulando essa história sobre as Tríades. Não. Você está comprometido com Hong Kong. É o seu lugar ou o seu túmulo. — Então, será melhor nos expandirmos, apostarmos muito. Trabalharei para tornar Hong Kong muito forte. Ah, sim. Pode confiar em mim! Obrigado, Tai-Pan, por me tranqüilizar.

— A minha Senhora quer dizer-lhe olá. Vá lá embaixo, hein?

— Obrigado. E obrigado por me avisar sobre aquela ridícula, porém perigosa história. — Gordon Chen curvou-se e saiu.

Struan observara seu filho com muito cuidado. Será, ou não? perguntou a si mesmo. A surpresa poderia ter sido verdadeira, e o que ele disse faz muito sentido. Não sei. Mas se Gordon for, então você terá de ser muito esperto para pegá-lo. E aí?

***

Struan encontrou Skinner na sala de impressão do Oriental Times. Era sufocante e barulhenta. Cumprimentou o jornalista pela maneira como apresentara a notícia.

— Não se preocupe, Tai-Pan — disse Skinner. — Haverá uma suíte amanhã. — Entregou a prova tipográfica a Struan. — Ficarei satisfeito quando este maldito verão terminar. — Usava sua habitual sobrecasaca negra de lã e calças de tecido grosso.

Struan leu o artigo. Estava cheio de invectivas, sarcasmo, e enfatizava que todos os negociantes deveriam unir-se para bombardear o Parlamento e destruir Cunnington.

— Acho que isso vai fazer alguns dos rapazes enlouquecerem — disse Struan, com aprovação.

— Ah, espero que sim. — Skinner afastou os braços do corpo, a fim de aliviar a feroz coceira nas axilas.

— Maldito calor! Você arrisca a vida, Tai-Pan, saindo assim à noite — disse. Struan usava apenas uma camisa fina, calças de linho e botas leves.

— Devia experimentar. Suaria menos... e não teria brotoejas.

— Não fale nessa maldita praga. Nada tem a ver com o calor, é uma doença de verão. O homem nasceu para suar.

— Sim, e para ser curioso. Você mencionou algo em sua matéria a respeito de uma estranha cláusula adicional no acordo de Longstaff com o Vice-rei Ching-so. O que era?

— Apenas uma dessas informaçõezinhas esquisitas que um jornalista recolhe. — Skinner enxugou o rosto com um trapo que deixava manchas de tinta, e se sentou num banquinho alto. Contou a Struan a respeito das sementes. — Amoras, camélias, arroz, chá, todo tipo de flores.

Struan ficou pensando, por um momento.

— Sim, é bastante curioso.

— Que eu saiba, Longstaff não é nenhum jardineiro. Talvez fosse idéia de Sinclair... ele tem um pendor para a jardinagem Pelo menos, a irmã tem. — Skinner espiou os cules chineses trabalhando nas impressoras. — Ouvi dizer que ela está bastante doente.

— A moça está se recuperando, tenho a satisfação de informar. O médico disse que foi uma perturbação estomacal.

— Ouvi dizer que Brock foi a bordo da nau capitania esta tarde.

— Sua informação é muito boa.

— Fiquei imaginando se deveria preparar um obituário.

— Algumas vezes não me divirto com seu humor.

O suor escorria pelo queixo de Skinner e caía em sua camisa amarrotada.

— Não era brincadeira, Tai-Pan.

— Prefiro considerar assim — disse Struan, descontraidamente. — É mau pagode falar em obituários. — Espiou a impressora vomitando o jornal do dia seguinte. — Pensei a respeito de Whalen. Longstaff chamou a cidade velha de Cidade da Rainha. Agora, temos uma nova cidade. Quem sabe se Whalen não deveria ter a honra de escolher outro nome.

Skinner deu uma risadinha.

— Isso o envolveria de uma maneira ótima. Que nome decidiu, Tai-Pan?

— Vitória.

— Eu gosto. Vitória, hein? Com uma simples pincelada, Longstaff é apagado. Considere “sugerido”, Tai-Pan. E deixe comigo. Whalen jamais perceberá que a idéia não foi dele... eu garanto. — Skinner cocou a barriga, satisfeito. — Quando o jornal será meu?

— No dia em que Hong Kong for aceita pela Coroa, e o tratado ratificado por ambos os governos. — Struan entregou-lhe um documento. — Está tudo aqui. Com o meu carimbo. Claro, desde que o Oriental Times ainda esteja funcionando, na ocasião.

— Tem alguma dúvida, Tai-Pan? — perguntou Skinner, todo feliz.

Ele enxergava claramente o futuro. Dez anos, disse a si mesmo. Então, eu serei rico. Então, irei para a Inglaterra e me casarei com a filha de um proprietário rural e comprarei uma pequena casa de herdade em Kent e abrirei um jornal em Londres. Sim, Morley, meu velho, pensou, você percorreu um longo caminho a partir das vielas de Limehouse e daquele maldito orfanato e dos tempos em que remexia a sarjeta. Que Deus amaldiçoe aqueles demônios que me deram à luz e me abandonaram.

— Obrigado, Tai-Pan. Não vou falar, não tema.

— A propósito, talvez você goste de uma matéria exclusiva. A cinchona cura a malária do Vale Feliz.

Por um momento, Skinner ficou sem fala.

— Ah, meu Deus, Tai-Pan, isso não é uma matéria... é a imortalidade. —

Finalmente, exclamou: — Exclusiva, você diz? Esta é a maior matéria do mundo! Claro

— acrescentou, astutamente — o gancho para essa matéria é quem, “ele” ou “ela”, foi

curado. -Escreva o que quiser... mas não me envolva, e nem às pessoas próximas a mim.

— Ninguém irá acreditar nisso, a menos que vejam a cura com seus próprios olhos. Os médicos dirão que é tolice.

— Deixe dizerem. Os pacientes deles morrerão. Escreva isso! — Struan declarou, bruscamente. — Eu acredito tanto na história que estou investindo nela, substancialmente. Cooper e eu somos agora sócios no negócio da cinchona. Dentro de seis meses, teremos estoques disponíveis.

— Posso publicar isso?

Struan deu uma curta risada.

— Eu não lhe contaria, se fosse segredo.

***

Na Estrada da Rainha, Struan recebeu um sopro do calor da noite. A lua estava alta e nevoenta, num céu quase completamente nublado. Mas, ainda assim, não havia nenhum nimbo.

Seguiu pela estrada e não parou, até chegar ao ancoradouro. Ali, desviou-se ligeiramente em direção ao interior e desceu uma rua suja e esburacada. Subiu então um pequeno lance de escadas e entrou numa casa.

— Deus do céu — disse a Sra. Fortheringill, com os dentes postiços tornando grotesco seu sorriso. Estava na sala de jantar, ceando: arenques, pão preto e um jarro de cerveja. — Senhoras — gritou, e tocou uma campainha que tinha presa ao cinto. — Não há nada como uma boa brincadeira, numa noite quente, é o que eu sempre digo. — Notou que Struan estava em mangas de camisa— — A idéia é não perder tempo tirando a roupa, Tai-Pan?

— Só vim ver, ah... seu hóspede.

Ela sorriu, com doçura.— Aquele velho malandro já ficou aqui tempo demais. Quatro moças galoparam para dentro da sala. Seus quimonos de lã, enfeitados de plumas, estavam manchados, e elas fediam a perfume misturado com suor antigo. Mal chegavam aos vinte anos — mas tinham o aspecto endurecido, áspero e usado, devido à vida que levavam. Esperavam que Struan escolhesse.

— Nelly está ótima para você, Tai-Pan — disse a Sra. Fortheringill. — Tem dezoito anos, goza de boa saúde e é vigorosa.

— Obrigada, madame — Nelly fez uma mesura e seus seios grande saíram do quimono. Era robusta e loura, com os olhos envelhecidos e baços. — Quer vir comigo, Tai-Pan, amor?

Struan deu um guinéu a cada uma delas e mandou-as embora.

— Onde está o Sr. Quance?

— No segundo andar, aos fundos, à esquerda. O Quarto Azul. — A Sra. Fortheringill espiou-o por sobre os óculos. — Os tempos estão muito difíceis, Tai-Pan. Seu amigo, Sr. Quance, come como um cavalo e xinga de uma maneira terrível. É chocante para as moças. Sua conta está atrasada há muito tempo.

—Onde consegue as moças, hein?

—Um brilho pétreo iluminou os olhos da velha.

— Onde há mercado há sempre senhoras para servir, não é? Na Inglaterra. Algumas na Austrália. Aqui e acolá. Por quê?

— Quanto lhe custa uma delas?

— O negócio é secreto, Tai-Pan. Tem o seu, nós temos o nosso. — Ela fez um sinal com a cabeça, em direção a mesa, e mudou de assunto. — Gostaria de cear? O arenque veio especialmente da Inglaterra. Pelo paquete desta semana.

— Obrigado, mas já comi.

— Quem vai pagar a conta do querido Sr. Quance?

— Quanto é?

— Ele tem as notas. Ouvi dizer que a Sra. Quance está bem zangada.

— Vou discutir as contas com ele.

— Seu crédito jamais estará em questão, Tai-Pan.

— A moça que dormiu com Gorth morreu? — perguntou abruptamente Struan. A velha se tornou, outra vez, um modelo de distinção.

— O quê? Não sei o que quer dizer. Não há casos de mau comportamento em meu estabelecimento!

Struan empunhou a faca e fez a ponta tocar nas fanadas dobras de pele que pediam do pescoço da Sra. Fortheringill.

— Morreu?

— Aqui, não. Levaram-na embora. Pelo amor de Deus, não...— Morreu, ou não?

— Ouvi dizer que sim, mas nada tem a ver comigo...

— Quanto Gorth lhe pagou para manter a boca calada?

— Duzentos guinéus.

— O que aconteceu com a moça?

— Não sei. Esta é a verdade, juro por Deus! Vieram parentes buscá-la. Ele lhes pagou cem guinéus e ficaram satisfeitos. Levaram-na embora. Era apenas uma paga. Struan afastou a faca.

— Talvez vá ter de repetir isso num tribunal.

— O miserável está morto, pelo que ouvi dizer, então não vai ser preciso falar nada, eu acho. E como poderia eu dizei qualquer coisa? Não conheço o nome dela, e pelo que sei não existe nenhum cadáver. Sabe como é, Tai-Pan. Mas jurarei sobre uma Bíblia a Brock, se é isso que quer.

— Obrigado, Sra. Fortheringill.

Ele subiu as escadas até o Quarto Azul. Suas paredes caiadas de branco estavam cinzentas de sujeira e o vento soprava através das rachaduras. Havia um grande espelho, numa das paredes, e cortinas com rufos carmesim cercavam a grande cama de armação. Havia pinturas empilhadas no chão e penduradas nas paredes, o chão estava salpicado de tintas a óleo e aquarela. No centro do quarto, achava-se um cavalete e, espalhados em torno dele, dúzias de potes de tinta e pincéis.

Aristotle Quance roncava na cama. Só seu nariz e barrete de dormir eram visíveis.

Struan pegou um jarro quebrado e atirou-o contra a parede. Explodiu em pequenos fragmentos, mas Quance só se enroscou mais sob as cobertas. Struan pegou um jarro maior e espatifou-o contra a parede.

Quance levantou-se devagarinho e abriu os olhos.

— Deus do céu! O próprio Demônio, minha Virgem Santa! Pulou da cama e abraçou Struan.

— Tai-Pan, meu amado patrono! Eu o idolatro! Quando chegou?

— Tome cuidado! — disse Struan. — acabo de chegar hoje!

— Soube da morte de Gorth.

— Sim.

— Dei graças a Deus. Há três dias, aquele miserável veio aqui e jurou que cortaria minha garganta, se eu contasse alguma coisa sobre a moça.

— Quanto ele lhe deu para não contar?

— Nem um centavo, meu senhor! Diabo, eu só pedi cem.

— Como vão as coisas com você?

— Uma tristeza, meu caro amigo. Ela ainda está aqui, em pessoa. Ah, que Deus me proteja! Então tenho de permanecer metido neste buraco. Não posso me mexer... não ouso. — Quance pulou outra vez para a cama e, pegando um grande bastão, bateu no chão três vezes. — Pedindo o café — explicou. — Não quer me acompanhar? Agora, conte-me todas as suas novidades!

— Você toma o desjejum às nove da noite?

— Ah, meu caro amigo, quando se está num prostíbulo, age-se como uma prostituta!

— Estourou de rir e, depois, agarrou o próprio peito. — Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, estou fraco. Vê diante de você a sombra de um homem... um verdadeiro fantasma do imortal Quance.

Struan sentou-se na cama.

— A Sra. Fortheringill disse alguma coisa a respeito de uma conta. Eu lhe dei um saco de ouro, por Deus!

— Conta?

Quance deu um busca embaixo do travesseiro e tirou um sanduíche meio comido, dois livros, alguns pincéis e várias peças de roupa feminina, e encontrou o papel. Ele o empurrou nas mãos de Struan, sem fôlego.

— Veja o que aquela usurária está cobrando a você.

— Cobrando a você, é o que quer dizer — disse Struan. Leu o total. — Deus todopoderoso!

A conta se elevava a quatrocentos e dezesseis libras, quatro xelins e quatro penies e um quarto de pêni. Sete libras e seis penies por dia, com alojamento e comida. Cento e sete libras de tintas, pincéis, telas. O restante tinha o cabeçalho: “Contas variadas”.

— Que diabo quer dizer isso? Quance cerrou os lábios.

— Puxa vida, foi o que tentei fazer aquela gata velha me explicar.

Struan foi até à porta e berrou, para baixo:— Sra. Fortheringill!

— Chamou-me, Tai-Pan? — ela perguntou, com doçura, do fundo do poço das escadas.

— Sim. Quer fazer o favor de vir até cá?

— Queria que eu viesse? — ela perguntou, com doçura ainda maior, ao entrar no quarto.

— Que diabo é isso? — Struan apunhalava rancorosamente a conta, com um dedo.

— “Variadas... quase trezentas e vinte libras?

— Ah — ela respondeu, brejeiramente. — Transações, Tai-Pan.

— Hein?

— O Sr. Quance gosta de companhia todas as horas, e esse é o volume de suas transações, desde que se encontra sob nossos cuidados. — Ela fungou, com desdém. — Mantemos os livros em ordem, aqui. Tudo correto, nos menores detalhes.

— Mentira! — uivou Quance. — Ela falsificou os livros, Tai-Pan. É chantagem.

— Chantagem? — gritou a Sra. Fortheringill. — Ora, seu... seu... e aqui estou eu, com as minhas damas, a salvá-lo de algo pior do que a morte, e pela segunda vez consecutiva!

— Porém, mais de trezentas libras? — disse Struan.

— Absolutamente correto, por Deus. Ele gosta de pintá-las e também de... meu guarda-livros é o melhor da Ásia. Tem de ser!

— É impossível — insistiu Struan.

Quance ficou em pé na cama e colocou uma mão sobre o coração e com a outra apontou para a mulher.

— Recuso a conta toda, em seu nome, Tai-Pan! — Estava inchado como um pavão.

— É usura!

— Ah, é? Bom, eu lhe digo já, seu velho de merda, e bem na sua cara... dê o fora daqui! E vou mandar um recado para aquela mulher esta noite. — A mulherzinha deu uma volta e gritou: — Senhoras!

— Ora, Sra. Fortheringill, também não precisa aborrecer-se assim — disse Quance, amavelmente. As moças vieram correndo. Oito, ao todo.

— Levem tudo para fora e ponham no meu quarto — ela ordenou, fazendo um aceno em direção às tintas, pincéis e quadros. — Não haverá mais crédito, e essas coisas são minhas, até a conta ser paga, sem faltar um centavo! — E saiu, abespinhada.

— Quance engatinhou para fora da cama, com sua camisola de dormir tufada.

— Senhoras! Não vão tocar em nada, por Deus!

— Ora, comporte-se como um bom menino — disse Nelly, calmamente. — Se a Madame disse que é para irem, elas vão, nem que o próprio Senhor Deus fique na frente!

— Ah, sim, meu engraçadinho — disse outra. — A nossa Nelly explicou direitinho.

— Só um minuto, senhoras — disse Struan. — O Sr. Quance recebeu uma conta. Esta é a razão de todo o problema. Srta. Nelly, ah... a senhorita, bom, passou tempo com ele?

Nelly olhou para Struan.

— Falou em tempo, Tai-Pan? Nosso querido Sr. Quance tem um apetite pelo tempo que não tem igual, nem mesmo na Bíblia.— Ah, sim, Tai-Pan — disse outra, com uma risadinha. — Algumas vezes ele quer duas juntas. Ah, ele é uma graça!

— Para pintar, por Deus! — gritou Quance.

— Ah, deixe disso, Sr. Quance — disse Nelly. — Somos todos amigos.

— Durante algum tempo, ele nos retrata — disse outra, amavelmente.

— Quando? — outra perguntou. — Eu não fui retratada.

— Mentiras, por Deus! — Quance protestou para Struan, e, quando viu a expressão do Tai-Pan, piscou e voltou a se encolher na cama. — Vamos, Tai-Pan — implorou. — Não precisa precipitar-se. A gente não pode evitar... ser popular.

— Se acha que vou pagar por seu “quentão”, está completamente louco!

— “Quentão”, isso é jeito de falar! — exclamou Nelly indignada. — Somos senhoras respeitáveis, ora essa. Somos gente fina e não gostamos de palavras grosseiras!

— É uma palavra latina que significa “tempo”, querida Srta. Nelly — disse Quance, com voz rouca.

— Ah — disse ela, e fez uma mesura. — Perdão, Tai-Pan! Quance pôs a mão no peito e revirou os olhos.

— Tai-Pan, se você me abandonar, estou liquidado. Prisão por dívidas! Eu lhe suplico — ele escorregou para fora da cama e se ajoelhou, com atitude suplicante: — Não vire as costas para um velho amigo!

— Vou pagar essa conta e levar todas as suas pinturas, para cobrir o empréstimo. Mas é o último vintém. Entende, Aristotle? Não pagarei mais nada!

— Deus o abençoe, Tai-Pan. Você é um príncipe!

— Ah, sim — disse Nelly, e avançou furtivamente para Struan. — Vamos, amor. Pague a conta da Madame e isso vai por conta da casa.

— E eu? — outra perguntou. — Claro que Nelly sabe mais truques.

Todas fizeram acenos amáveis com a cabeça e esperaram.

— Eu recomendaria — começou Quance, mas o olhar de Struan fez com que se interrompesse. — Todas as vezes em que olha para mim assim, Tai-Pan, eu me sinto perto da morte. Desamparado. Perdido. Abandonado.

Apesar de sua irritação, Struan riu.

— Que o diabo o leve! — E caminhou em direção à porta. Mas um repentino pensamento fez com que parasse. — Por que este quarto é chamado Quarto Azul? Nelly se inclinou e pegou o urinol embaixo da cama. Era azul.

— Madame começou uma moda nova, Tai-Pan. Cada quarto tem uma cor diferente. O meu é verde. — O meu é aquele dourado, velho e rachado — disse outra, com uma fungadela. —

Não é fino, de maneira nenhuma! Struan abanou a cabeça, desamparadamente, e desapareceu.

— Agora, senhoras — disse Quance, com um sussurro exultante, e houve um silêncio cheio de expectativa. — Como será tudo pago, proponho uma modesta comemoração, depois do desjejum.

— Ah, ótimo — disseram elas, e se reuniram em torno da cama.


CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

À meia-noite, a lorcha avançou para a praia, em Aberdeen, e Struan pulou para o banco de areia, tendo Fong a seu lado. Antes, ele mandara seus homens desembarcarem, secretamente, a oeste, e se postarem em torno do poço. Caminhou pela praia e se aproximou do poço e da encruzilhada. Fong carregava uma lanterna e estava muito nervoso.

A lua achava-se escondida pelas nuvens baixas, mas vestígios de seu clarão se filtravam através das sombras. O ar estava carregado com o mau cheiro da maré baixa, e as centenas de sampanas no estreito braço de mar pareciam percevejos amontoados. Nenhuma lanterna, com exceção da que Fong levava, rompia a escuridão. Não havia som algum, a não ser o provocado pela inevitável voracidade dos cães.

A aparência da vila era igualmente agourenta.

Quando Struan chegou à encruzilhada, observou a noite. Sentia muitos olhos a espiá-lo das sampanas.

Afrouxou as pistolas no cinto e evitou cuidadosamente a luz da lanterna que Fong colocara à beira do poço.

O silêncio se intensificou. De repente, Fong se enrijeceu e apontou, tremendo, para alguma coisa. Logo além da encruzilhada, bem no meio do caminho, estava um saco. Parecia um saco de arroz. Com as pistolas prontas, Struan fez sinal a Fong para avançar, pois não confiava nele. Fong avançou, tomado pelo pânico.Ao chegarem ao saco, Struan atirou um punhal para Fong, com o cabo voltado para ele.

— Abra. Fong ajoelhou-se e cortou a aniagem. Deixou escapar um gemido aterrorizado e recuou.

Scragger estava no saco. Não tinha pernas e nem braços, olhos ou língua, e os tocos de seus membros estavam cauterizados com alcatrão.

— Boa-noite, camarada! — a maligna risada de Wu Kwok ecoou sepucralmente, dentro da noite, e Struan ficou em pé de um salto. A risada parecia vir das sampanas.

— O que você quer, seu demônio do inferno? — gritou Struan.

Houve uma torrente gutural de frases em chinês e Fong empalideceu. Gritou algo, em resposta, com a voz tensa.

— O que ele disse?

— Ele... Wu Kwok disse para eu ir... até lá.

— Fique onde está — disse Struan. — O que quer, Kwok? — ele gritou em direção às sampanas.

— Quero você vivo! Por Quemoy, por Deus! Você e suas malditas fragatas!

Vultos saíram aos bandos das sampanas e subiram a encosta furiosos, com lanças e espadas. Struan esperou até poder ver claramente o primeiro dos piratas e então derrubouo, com um tiro. Imediatamente, mosquetes chamejaram nas mãos dos tripulantes de Struan, emboscados. Houve grito, e a primeira onda de vinte ou trinta piratas foi aniquilada.

Outra onda de bandidos, aos gritos, subiu o caminho. Novamente, os mosquetes fizeram-nos em pedaços, mas quatro conseguiram chegar ao poço. Struan derrubou um deles a faca, Fong outro, e balas de mosquete mataram os outros dois.

Houve novo silêncio.

— Maldito seja, camarada!

— Maldito seja você, Wu Kwok! — gritou Struan.

— Minhas frotas vão lutar contra o Leão e o Dragão!

— Saia do seu buraco de rato e me enfrente, e eu o matarei agora. Patife!

— Quando eu pegar você, essa vai ser sua maneira de morrer, camarada. Um membro por semana. Aquele malandro viveu cinco, seis semanas, mas você vai levar um ano para morrer, aposto. Nós nos encontraremos dentro de um ano, ou antes! — Outra vez, a risada maligna e, depois, silêncio. Struan ficou tentado a atirar em direção às sampanas, mas sabia que havia a bordo centenas de homens, mulheres e crianças.

Olhou para o saco entreaberto.

— Apanhe isso, Fong. — E gritou para seus homens, que se encontravam em torno, na escuridão: — Voltem para a lorcha, rapazes!

Cobriu Fong, e os dois se retiraram. Quando estava no meio do mar, colocou uma corrente em torno do saco, leu um serviço fúnebre e atirou-o nas profundezas. Observou-o desaparecer, num pequeno círculo de espuma do mar.

Struan teria gostado de contar a Scragger a despedida de seus filhos.

Ele os colocara aos cuidados do capitão em Whampoa, com cartas para agentes da Casa Nobre em Londres, aos quais conferiu a responsabilidade pelos meninos e seu aprendizado escolar.

— Bom, boa sorte, rapazes. Quando voltar para a Inglaterra, eu irei visitar vocês.

— Posso falar com Vossa Senhoria em particular? — o pequeno Fred perguntara, tentando não chorar.

— Sim, rapaz. Vamos. — Struan levara-o para uma cabina, e Bert, o eurasiano, ficara triste, por ser deixado só, e Wu Pak segurara-lhe a mão.

— Sim, Fred? — perguntara, quando os dois se encontravam sozinhos.

— Meu papai disse que devíamos ter um nome decente antes de partimos, Excelência.

— Sim, rapaz. Está nos documentos de vocês. Eu lhe disse, a noite passada. Não se lembra?

— Desculpe, Excelência. Eu esqueci. Será que podia dizer de novo, por favor?

— Você é Frederick MacStruan — ele dissera, pois gostara do menino e o nome do clã era um bom nome. — E Bert é Bert Chen.

— Ah — dissera o menino. — Sim, agora eu me lembro. Mas, por que temos nomes diferentes? Eu e meu mano?

— Bom — dissera Struan, esfregando a mão na cabeça do menino, a lembrar, com dor pungente, a perda de seus próprios filhos — vocês têm mães diferentes, não é? O motivo é este.

— Sim. Mas somos irmãos, Excelência — dissera Fred, com os olhos enchendo-se de lágrimas. — Desculpe, mas não podemos ter o mesmo nome? Chen é um bom nome, e bonito. Frederick Chen está ótimo, Tai-Pan.

Então Struan mudara os documentos e o capitão testemunhara sua assinatura.

— Veja, rapazes, agora vocês são ambos MacStruan. Albert e Frederick MacStruan. Então os dois choraram, muito felizes, e o abraçaram.

***

Struan foi para baixo e tentou dormir. Mas não conseguia. O fim de Scragger atormentava-o. Sabia que era uma tortura favorita de Wu Fang Choi, o pai de Wu Kwok e avô do pequeno Wu Pak. A vítima a ser desmembrada tinha três dias para escolher qual o membro que seria cortado primeiro. E, na terceira noite, um amigo do homem era mandado secretamente até ele, a fim de sussurrar-lhe que ia receber ajuda. Então o homem escolhia o membro que achava ser menos necessário, até a ajuda chegar. Depois que o alcatrão selara o toco, o homem era forçado a escolher ainda outro membro e, mais uma vez, havia a promessa de uma ajuda iminente, que jamais chegaria. Só os muito fortes sobreviviam a duas amputações.

Struan saiu do beliche e foi para o convés. As nuvens se achavam inchadas e mais espessas: o brilho do luar desaparecera. A maré estava cheia, mas não apresentava perigo.

— Chuva, amanhã, Sr. Struan — disse Cudahy.

— Sim — respondeu. Espiou em direção a leste, para onde soprava o vento. Sentia o mar a observá-lo.

***

— Suprema Senhora — disse Ah Sam, tocando em May-may para acordá-la. — O escaler do Papai se aproxima.

— Lim Din preparou o seu banho?

— Sim, Mamãe. Ele subiu para dar as boas vindas ao Papai.

— Você pode voltar para a cama, Ah Sam.

— Devo acordar a Segunda Mãe? — Yin-hsi estava encolhida numa cama, a uma canto da cabina.

— Não. Volte para a cama. Mas primeiro dê-me a minha escova e o pente e veja se Lim Din preparou o desjejum, para o caso de Papai querer comer.

May-may ficou deitada um momento, lembrando-se do que Gordon Chen lhe dissera. Aquele assassino sujo! Imagine acusar meu filho de estar ligado a uma sociedade secreta! Ele foi mais do que suficientemente pago para ficar com a bom fechada e morrer em silêncio. Que loucura!

Saiu da cama, cautelosamente. Nos primeiros segundos, suas pernas estavam fracas e trêmulas. Depois, parou de sentir fraqueza e ficou em pé, ereta.— Ah — disse alto — agora estou melhor. — Caminhou para o espelho e se examinou, criticamente. — Você está velha — disse, para seu reflexo.

— Não está, não. E não devia sair da cama — disse Yin-hsi, sentando-se em seu leito. — Deixe-me escovar seu cabelo. Papai voltou? Fico tão satisfeita de ver como está melhor. Seu aspecto é realmente ótimo.

— Obrigada, Irmã. O barco dele se aproxima. — May-may deixou Yin-hsi escovar e entrançar seu cabelo. — Obrigada, querida.

Perfumou-se e voltou para a cama, sentindo-se reanimada. A porta se abriu e Struan entrou, na ponta dos pés.

— O que você está fazendo acordada? — perguntou.

— Queria ver você voltar a salvo. Seu banho está pronto. E o desjejum. Estou muito feliz por você voltar são e salvo!

— Acho que vou descansar, por algumas horas. Volte a dormir, garota, e tomaremos o desjejum quando eu acordar. Disse a Lim Din para me deixar dormir, a não ser que aconteça alguma coisa urgente. Ele a beijou rapidamente, um pouquinho embaraçado com a presença de Yin-hsi.

May-may notou isso e sorriu para si mesma. Como os bárbaros eram engraçados! Struan fez vagamente um aceno de cabeça para Yin-hsi e saiu do quarto.

— Ouça, querida Irmã — disse May-may, quando teve certeza de que Struan já não podia ouvir. — Tome um banho com água perfumada e, quando Papai estiver profundamente adormecido, vá para sua cama e durma com ele.

— Mas, Suprema Senhora, tenho certeza de que Papai não indicou, de maneira nenhuma, que queria minha presença. Eu estava observando, com muito cuidado. Se eu for sem ser convidada, ele... ele pode ficar muito zangado e me mandar embora, e então eu perderia muito prestígio diante da senhora e diante dele.

— Você precisa entender que os bárbaros são muito diferentes de nós, Yin-hsi. Não têm a mesma idéia de prestígio que nós. Agora, faça o que eu digo. Ele vai tomar banho e irá para a cama. Espere uma hora. Depois, vá para junto dele. Se ele acordar e lhe ordenar que saia, tenha paciência e diga — ela mudou para inglês: — A Suprema Senhora mandou que eu viesse.

Yin-hsi repetiu as palavras em inglês, decorando-as.

— Se não adiantar, volte para cá — continuou May-may. — Não haverá perda de prestígio, eu lhe prometo. Não tenha medo. Conheço muito Papai e sei como ele encara essa questão de prestígio. Não podemos, realmente, deixar que ele visite esses sujos bordéis. Esse teimoso foi direto a um deles, a noite passada.

— Não! — disse Yin-hsi. — Perdemos muito prestígio. Ah, querida. Eu, com certeza, desagrado Papai. Talvez seja melhor me vender a um coveiro.

— Ah! — disse May-may. — Eu ensinaria a ele, se estivesse boa. Não se preocupe, Yin-hsi. Ele nem mesmo a viu ainda. Eu já lhe expliquei. Ele é um bárbaro. É terrível ir a um bordel, quando você está aqui, e até mesmo Ah Sam.

— Concordo plenamente. Que homem terrível!

— São todos terríveis, querida — disse May-may. — Espero que ele esteja cansado e não mande você embora, como prevejo que vai fazer. Só durma na cama dele. Com Papai, temos de trabalhar bem as coisas. Mesmo na idade dele, ainda é muito tímido com relação ao amor.

— Ele sabe que eu não sou virgem? — Yin-hsi acariciava a cabeça de May-may.

— Ele ainda é bastante jovem para não precisar de virgens, a fim de se excitar, querida Irmã. E velho demais para ter a paciência de ensinar a uma virgem a fazer o amor, novamente. Basta dizer a ele: A Suprema Senhora me mandou vir.

Yin-hsi repetiu as palavras, em inglês, outra vez.

— Você é muito bonita, irmã. Vá, agora. Espere uma hora e então vá para junto dele. — May-may fechou os olhos e se instalou na cama, toda contente.

***

Yin-hsi olhou para Struan. Um dos braços dele estava atirado descuidadamente por sobre o travesseiro e dormia profundamente. As cortinas nas vigias da cabina estavam bem fechadas, para vedar a claridade da manhã. Tudo se achava muito silencioso.

Yin-hsi tirou seu pijama e deslizou cautelosamente por sob as cobertas, ao lado de Struan.

O calor da cama a excitou.

Ela esperou, sem fôlego, mas ele não acordou. Chegou mais perto dele e, suavemente, pôs uma mão sobre seu braço e esperou. Ainda assim, ele não acordou. Ela se moveu para mais perto ainda, e colocou seu braço em torno do peito dele, deixando-o descansar ali. E esperou.

Através da névoa de seus sonhos, Struan percebeu que May-may estava a seu lado. Sentia seu perfume e sua proximidade, e ficou satisfeito por sua febre ter-se tornado uma coisa distante, do passado, e por ela estar bem outra vez. Encontravam-se juntos ao sol, e ele podia sentir o bem-estar de May-may. Perguntou-lhe o que ela gostaria de ganhar de aniversário e ela, simplesmente, riu e abraçou-o ao sol, que era escuro e estranho, irreal, porém belo. Depois, ficaram muito juntos e ele escutou-lhe a conversa e, em seguida, nadaram juntos e ele achou isso estranho, pois sabia que ela não nadava, e imaginou como aprendera. Mais tarde, ficaram deitados, nus, na praia, lado a lado, todo o corpo dela tocando-o. Então, ela começou a tremer e ele ficou aterrorizado, temendo que tivesse febre outra vez, e lá estava o monge com sua batina manchada de sangue, e a taça de chá curou a febre de May-may e aí caiu a escuridão. Mas havia nuvens lá no alto, e estava escuro, quando deveria ser dia e Fong gritava, no meio das ondas: Tai-fung! Fugiram das nuvens e foram para a cama, salvos.

Ele estremeceu, adormecido, começou a acordar e sentiu o corpo cálido e macio tocando-o, e sua mão vagueou, e ele cobriu-lhe o seio e sentiu o tremor percorrê-la e a ele também.

Ficou deitado, quase acordando, na penumbra do quarto. O seio dela era macio em sua mão e ele sentiu a rigidez do mamilo.

Então, abriu os olhos.

Yin-hsi sorriu, recatadamente.

Struan apoiou-se sobre um cotovelo.

— Pelo sangue de Cristo, que diabo você está fazendo aqui? Yin-hsi piscou os olhos, com ar de quem não entende.

— Suprre... ma... Senhora... me mandou.

— Hein? — Struan tentava desanuviar as idéias.

— Suprrre... ma... Senhora... me mandou... Tai-Pan.

— Hein? May-may? May-may? Ela está louca? — Apontou para a porta. — Saia!

Yin-hsi abanou a cabeça.

— Suprrre... ma Senhora me mandou.

— Não me importa se você foi mandada pela Rainha da Inglaterra! Saia!

Yin-hsi fez uma expressão amuada.

— Suprrre... ma Senhora me mandou! — E plantou a cabeça firmemente no travesseiro, olhando para ele.

Struan começou a rir.

Yin-hsi estava confusa. Meu Deus, a Suprema Senhora tinha razão. Os bárbaros são

incríveis! Como você ousa ir a um bordel e me fazer perder prestígio diante da Tai-tai? Será que sou uma bruxa velha, por Deus? Ah, não, Tai-Pan! Não vou sair daqui! Sou muito atraente e sou a Segunda Irmã e Segunda Senhora em sua casa, é isso aí!

— Por todos os deuses! — disse Struan, recompondo-se. — Vou casar com May-may, nem que seja a última coisa que eu faça na vida. E que todo mundo vá para o inferno!

Deitou-se de novo e ficou imaginando o que ele e May-may fariam na Inglaterra. Ela será a favorita de Londres... desde que não use nunca roupas européias. Juntos, abalaremos a sociedade inglesa. Agora, tenho de voltar rapidamente para meu país. Talvez possa destruir pessoalmente o Ministro de Relações Exteriores! Ou derrubar Whalen. Sim. Agora, a chave para Hong Kong está em Londres. Então, é voltar para casa — quanto antes, melhor.

Virou a cabeça no travesseiro, olhou para Yin-hsi e realmente a viu, pela primeira vez. Achou-a muito desejável. Seu perfume era tão encantador como sua pele.

— Ah, garota eu estou seriamente tentado.

Ela se aproximou mais e aninhou-se contra ele.


CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

O White Witch entrou com dificuldade no porto, pouco antes do meio-dia. Seu mastro dianteiro fora arrancado e havia no convés principal um emaranhado de vergas quebradas e cordame torcido.

Brock aproximou-se num escaler, enquanto o navio se encaminhava para suas amarrações.

— Por Deus, alguém vai pagar por isso! — rugiu, ao chegar ao convés, descobrindo, por instinto, ao ver as velas rasgadas e não rizadas, espalhadas entre as adriças, que o navio soltara pano demais. — O que aconteceu?

— Bom-dia, senhor — disse Michaelmas. Era o primeiro-imediato, um homem rijo e com marcas de bexiga. — Assumi o lugar do Sr. Gorth. Até saber o que o senhor pretendia. — Havia um chicote em seu grande punho! — O vento nos pegou duas horas depois da partida de Macau. O maldito vento quase nos fez virar. Arrancou o mastro e nos afastou do curso cinqüenta léguas.

Brock cerrou o punho e sacudiu-o junto ao rosto do homem.

— Não sabe se defender do vento? Não sabe rizar as velas, nesta temporada?

— Sim, senhor Brock — disse Michaelmas, sem medo. — Mas as rajadas nos pegaram a sotavento. Não me repreenda por causa do vento, por Deus! O punho de Brock atirou-o contra a amurada e ele caiu, inconsciente, no convés.

— Bennyworth! — gritou Brock ao segundo-imediato, um jovem atarracado e troncudo. — Você é o capitão, até segunda ordem! Lance as âncoras de tempestade. Vamos ter mau tempo. — Então, viu Culum no tombadilho. Os marinheiros se dispersaram, quando ele subiu no cordame e transpôs o curto passadiço. Ele se agigantou diante de Culum.

— Bom-dia, Sr. Brock, eu queria...

— Onde está a Sra. Brock?

— Lá embaixo, senhor. Não foi culpa do Sr. Michaelmas. E eu queria...

— Cale o bico! — Brock rosnou e, depois, deu as costas com desprezo para Culum. Culum ferveu com o insulto; Brock jamais viraria as costas para o Tai-Pan.

— Ninguém tem permissão para desembarcar! — Brock gritou. — Limpe tudo isso, Pennyworth, do contrário será demitido, como aquele patife do Michaelmas. Mande-o embora do meu navio! — Rodopiou, virando-se de novo para Culum. — Falarei com você com calma.

— Gostaria de falar agora.

— Mais uma só palavra, antes de eu estar preparado, e reduzo você a pó. Culum seguiu Brock até embaixo e desejou que o Tai-Pan estivesse ali. Ah, Deus, como posso tratar com Brock? Por que entramos naquele maldito vento?

Tess estava em pé, à porta de sua cabina. Ela sorriu com meiguice e fez uma mesura, mas Brock passou direto e abriu a porta da cabina principal, batendo-a atrás de si.

— Ah, que Deus nos ajude, querido — Tess gritou para Culum.

— Não se preocupe, tudo vai acabar bem. — Culum tentou manter a voz calma, desejando desesperadamente ter uma pistola. Foi até um armeiro, tirou uma malagueta e fez sinal a Tess para entrar na cabina. — Não se preocupe. Ele fez um juramento sagrado. Prometeu.

— Vamos fugir, enquanto podemos — ela implorou.

— Não podemos fugir agora, querida — disse Culum. Não se preocupe. É melhor esclarecer tudo logo. Devemos fazer isso.

— Então, você deixou Tess escapar e aquele patife lhe tampou os olhos, hein? — disse Brock.

— Sim. — disse Liza, tentando conter seu pânico. — Eu estava observando com cuidado e jamais pensei que isso acontecesse, mas aconteceu, e a culpa é minha. Mas estão casados, rapaz, e não adianta nós...

— Quem decide sou eu, por Deus! O que houve com Gorth? Ela lhe contou tudo que sabia.

— Foi Gorth quem desafiou Dirk Struan — disse. Estava aterrorizada, não só por si mesma mas, ainda mais, por Tess e Culum e por seu homem. Se Tyler for atrás de um demônio como aquele, está perdido. — Foi Gorth, Tyler. Ele chamou o Tai-Pan de nomes terríveis. E bateu-lhe com um chicote. Foi em público. Eu disse a Gorth para esperar... para vir buscar você ... mas ele me bateu e saiu.

— O quê?

Ela afastou o cabelo da orelha direita. Estava inchada e negra e dentro havia sangue coagulado.

— Ele ainda me feriu de maneira terrível. — Desabotoou a blusa. Seu peito estava horrivelmente machucado. — Ele fez isto. Seu filho. Era um demônio, e você sabia disso.

— Por Deus, Liza. Se ele... se eu soubesse... é melhor que esteja morto. Mas não por assassinos e não sem honra, por Deus!

Com uma expressão terrível, tirou um caneco de cerveja do barril e Liza agradeceu a Deus por ter tido a previdência de pôr à mão um barrilete novo.

— O médico tem certeza quanto à sífilis? Daquele jovem patife?

— Ele não tem sífilis e não é um patife. É seu genro!

— Sei disso. Que Deus o amaldiçoe!

— Tyler, perdoe os dois. Eu lhe suplico. Ele é um bom rapaz e está terrivelmente apaixonado por Tess e ela está feliz e...

— Cale a boca! — Brock engoliu a cerveja e bateu o caneco na mesa. — Dirk planejou isso tudo. Sei disso. Para me humilhar! Primeiro, ele destruiu meu filho mais velho... e, depois, não me deixou casar minha filha de maneira decente. Maldito Struan! Até isso ele me fez! — Atirou o canecão contra a antepara. — Vamos enterrar Gorth no mar, hoje.

— Tyler, amor — começou Liza. Ela lhe tocou o braço. — Tyler, amor, tem outra coisa. É preciso que seja dita. Você precisa perdoar. Há muita coisa a ser perdoada. A respeito de Nagrek.

— Hein?— Gorth me contou o que você e ele fizeram com Nagrek. Foi terrível... mas ele mereceu. Porque teve relações com Tess. Ele fez isso. Mas Culum não sabe, parece. Então, nossa menina foi salva de um destino terrível.

Os músculos em torno da órbita vazia de Brock começaram a tremer fortemente.

— O que você está dizendo?

— É verdade, Tyler — disse Liza, e então seu tormento irrompeu. — Pelo menos, dê a eles uma chance. Você fez um juramento, diante de Deus. E Deus nos ajudou com relação a Tess. Perdoe os dois. — Ela enterrou a cabeça nos braços e soluçou, convulsivamente.

Os lábios de Brock se mexeram, mas não saiu nenhum som. Ele percorreu o corredor arrastando os pés, e então ficou em pé diante de Culum e de Tess. Viu o terror nos olhos de Tess. Isto o magoou e tornou-o cruel.

— Você preferiu não atender à minha vontade. Três meses eu disse. Mas você...

— Ah, papai, ah, papai...

— Sr. Brock, será que eu posso...

— Cale a boca. Logo terá sua vez de falar! E você, Tess, você preferiu fugir como uma puta qualquer. Muito bem. Vá dizer adeus a sua mãe. E, depois, saia de nossa vida, suma com seu homem.

— Papai, por favor, ouça...

— Vá! Eu quero falar com ele.

— Não vou sair! — Tess gritou, histericamente. Ela pegou a malagueta. — Você não vai tocar nele. Eu lhe mato! Ele lhe arrancou das mãos a malagueta, antes que ela percebesse seus movimentos.

— Saia e desembarque. — Brock observava a si mesmo, como se tudo aquilo fosse um pesadelo; queria perdoar e desejava que ela o abraçasse, mas algum outro eu, malvado, impulsionava-o, e ele não podia resistir. — Saia, por Deus!

— Está bem, querida — disse Culum. — Vá pegar suas malas. Ela saiu da cabina,

aos recuos, e depois correu. Brock fechou a porta, com um chute.

— Jurei dar a você um ancoradouro e porto seguro. Mas foi quando você ia casar direito.

— Ouça, Sr. Brock...

— Ouça você, por Deus, senão o esmago como se fosse um percevejo. — Um fio de saliva escorria pelo canto de sua boca. — Eu combinei com você de maneira justa, de homem para homem, que três meses estava bem. Você concordou. Mas não cumpriu sua palavra. Eu disse: “Seja honesto, rapaz.”

Culum nada disse. Rezou pedindo forças e sabia que estava derrotado. Mas tentaria, por Deus.

— Foi ou não foi?

— Sim.

— Então, acho que estou livre de cumprir o juramento.

— Posso falar, agora?

— Não terminei. Mas, mesmo tendo ludibriado, você está casado. Quer responder a uma pergunta? Diante de Deus? Então estaremos quites.

— Claro. — Culum queria contar a Brock a respeito da sífilis e do bordel e dos motivos para tudo aquilo.

— Diante de Deus?

— Sim. Nada tenho a esconder e... Brock interrompeu-o.

— Seu pai planejou tudo isso? Meteu em sua cabeça a idéia de fugir? Sabendo que isto deixaria Gorth louco? Sabendo que isto deixaria Gorth tão louco a ponto de desafiá-lo em público, para seu pai poder lutar com ele de maneira legal? Você foi para o bordel bêbado, sem saber onde estava, com quem se deitaria? Não precisa responder a isto. Está escrito em seu rosto.

— Sim... mas precisa ouvir. Há uma porção...

— Você tem garantias minhas. Mas vou dizer-lhe claramente. Estou atrás de seu pai. Estou atrás da Casa Nobre. Nunca vou descansar, até estar arruinada. Agora, sua única garantia será Brock e Filhos. Só lá, Culum. Maldito Struan! E, até esse dia, você estará morto para mim. Você e Tess.

Abriu violentamente a porta.

— O senhor não escutou o que eu tinha para dizer! — gritou Culum. — Não é justo!

— Não fale a respeito de “justiça” — disse Brock. — Eu lhe pedi pessoalmente. Três meses! Eu disse: “Seja honesto, rapaz”. Mas você, ainda assim, deixou de cumprir sua palavra. Não tem honra nenhuma a meus olhos, por Deus!

Afastou-se, e Culum ficou a segui-lo com o olhar, sufocado pela angústia, o alívio, a vergonha e o ódio.

— Você não agiu de maneira justa — disse ele, sentindo-se magoado com sua própria voz. Brock apareceu no convés e a tripulação se manteve afastada.

— Pennyworth!

O segundo-imediato parou de supervisionar os trabalhos de recolhimento das vergas e cordame partido e caminhou com dificuldade até onde se encontrava Brock.

— Procure Struan — disse Brock. — Diga a ele que estou a esperá-lo no Vale Feliz. Entre o ancoradouro dele e o meu. — Parou, com o rosto retorcido num sorriso sem alegria. — Não. No outeiro, na Vale Feliz. Sim. O outeiro que seria dele. Diga a ele que estou esperando por ele no outeiro, no Vale Feliz... onde ele queria enfrentar Gorth.

— Sim, senhor. — Pennyworth mordeu o lábio. — Sim, senhor. — E, se você contar isso a qualquer outra pessoa além dele, eu castro você, juro por Deus. — Brock começou a descer o passadiço.

— Quem vai consertar o navio, senhor?

— Você. É o capitão do White Witch. Mas depois que der o recado

***

Struan observava Yin-hsi. Ela ainda dormia, a seu lado. Ele a comparou com May-may. E May-may com sua amante chinesa de anos atrás. E as três com Ronalda, sua única esposa. Tão diferentes. Entretanto, em muitas maneiras, tão parecidas. E ficou imaginando por que as três orientais o excitavam mais do que Ronalda, que era seu amor — até ele conhecer May-may. E ficou perguntando a si próprio o que era o amor.

Sabia que as três chinesas tinham muito em comum: a pele incrivelmente sedosa e um humor, uma entrega, uma muda comunicação que excediam a tudo que já vira. Mas May-may superava de longe as outras duas. Era perfeita.

Tocou afetuosamente em Yin-hsi. Ela estremeceu, mas não acordou. Com cuidado, ele deslizou para fora da cama e espiou o céu, através das vigias. As nuvens eram ainda mais pesadas. Vestiu-se e desceu.

— Então... — disse May-may. Ela estava sentada na cama, inda.

— Então... — ele disse.

— Onde está minha irmã?

— Suprrre...ma Senhorr...ra me mandou vir.

— Ah — disse May-may, e jogou a cabeça para trás. — Você é mendaz e cheio de luxúria e já não adora mais sua velha mãe.

— É verdade — disse Struan, para arreliá-la. Ela parecia mais bela do que nunca e a palidez de seu rosto lhe ficava bem. — Acho que vou mandar você embora!

— Ayeee yah! E eu me importo muito!

Ele riu, e ergueu-a em seus braços.

— Cuidado, Tai-Pan — disse ela. — Você gostou de Yin-hsi? Estou tão satisfeita. Satisfeitíssima.

— Quando quer ser Tai-tai?

— O quê?

— Bom, se não está interessada, não falaremos mais disso.

— Ah, não, Tai-Pan! Quer dizer Tai-tai? Verdadeira Tai-tai, segundo os costumes? Não está falando isso de brincadeira? Por favor, não brinque comigo a respeito de uma coisa tão importante.

— Não estou brincando, May-may. — Sentou-se na cadeira, segurando-a nos braços. — Vamos para meu país. Juntos. Tomaremos o primeiro clíper disponível e nos casaremos a caminho de casa. Dentro de poucos meses.

— Ah, maravilhoso. — Ela o abraçou. — Solte-me, por um momento.

Ele a soltou e, capengando ligeiramente, ela caminhou até à cama.

— Veja, já estou quase boa.

— Vá para a cama, agora — ele disse.

— Pretende mesmo casar? De acordo com seus costumes? E com os meus?

— Sim. De acordo com ambos, se você quiser.

Ela se ajoelhou, graciosamente, diante dele, e tocou o tapete com a testa.

— Juro que serei digna de me tornar Tai-tai.

Ele a ergueu depressa e colocou-a na cama.

— Não faça isso, garota.

— Eu me ajoelhei porque você me deu o maior prestígio da terra. — Ela o abraçou outra vez e, depois, afastou-o um pouco e riu. — Gostou muito do presente de aniversário, hein? É por isso que quer casar com sua pobre mãe velha?

— Sim e não. Foi só por causa da idéia.

— Ela é ótima. Gosto muito dela. Estou satisfeita de que também goste.

— Onde você a encontrou?

— Era concubina na casa de um mandarim que morreu há seis meses. Eu já lhe disse que ela tinha dezoito anos? A casa dele entrou num período de dificuldade e então a Taitai chamou um casamenteiro para encontrar um bom marido para ela. Ouvi falar a seu respeito e conversei com ela.

— Onde? Em Macau?

— Ah, não. Há dois ou três meses. — May-may se aconchegou mais, de encontro a ele. — Conversei com ela em Cantão. A Tai-tai de Jin-qua foi quem me contou a seu respeito. Quando engravidei, pensei, ah, ótimo, e então mandei buscá-la. Porque meu homem é cheio de luxúria e em vez de ficar em casa talvez vá para um bordel. Você me prometeu não ir a bordel, mas foi, a noite passada. Maldição!

— Não procurei nenhuma mulher. Fui apenas visitar Aristotle.

— Ah! — May-may agitou um dedo, na cara dele. — Isso o que você diz. Eu não tenho ciúme de prostituta, mas não aquelas. Ah, muito bem, desta vez eu acredito em você.

— Muito obrigado.

— Yin-hsi é ótima, então você não precisa ir a bordéis. Ah, estou tão feliz. Ela canta maravilhosamente e toca muitos instrumentos, costura à perfeição e aprende tudo muito depressa. Eu lhe ensino inglês. Ela vai para a Inglaterra conosco. E Ah Sam e Lim Din também. — Franziu a testa, de leve. — Mas voltaremos à China? Muitas vezes?

— Sim. Talvez.

— Ótimo. Voltaremos, é claro. — Outra vez, um sorrisinho. — Yin-hsi é muito prendada. Ela é boa na cama? Os olhos de Struan semicerraram-se, de divertimento.

— Não fiz amor, se é isso que você está perguntando.

— O quê?

— Gosto de escolher quem vai para minha cama, e quando.

— Ela está em sua cama e você não fez amor?

— Sim.

— Juro por Deus, Tai-Pan. Não vou entender você nunca. Não a deseja?

— Claro. Mas decidi que hoje não era a ocasião. Talvez hoje à noite. Ou amanhã. Quando eu escolher. Não antes. Mas aprecio sua consideração.

— Juro por Deus que você é mesmo esquisito. Ou talvez estivesse tão cansado, por causa de uma suja prostituta, que não reagiu. Hein?

— Pense o que quiser. Houve uma batida à porta.

— Sim?

Lim Din entrou, com passos macios.

— Tai-Pan, há um senhor aqui. Quer ver Tai-Pan. Pode?

— Que senhor?

— Senhor Peeennnyworth.


CAPÍTULO QUARENTA E SEIS

Brock observou Struan subir a estrada que levava até o cume do outeiro à sombra da igreja sem teto, abandonada. Viu o chicote de ferro reunido num molho e se sentiu um pouco enjoado. Entretanto, estava satisfeito por haver, afinal, um ajuste de contas.

Ajustou a correia de seu próprio chicote de ferro, levantou-se e saiu para terreno aberto. Agarrou a faca com a mão esquerda.

Struan viu Brock no momento em que saía do abrigo da igreja e, por um instante, esqueceu o plano que decidira executar. Parou. Só se lembrou de que o outro era um inimigo seu, a quem precisava destruir. Com um esforço, Struan desanuviou as idéias e continuou a subir o caminho, com os músculos tremendo de ansiedade em começar.

Afinal, os dois homens se enfrentaram.

— Você planejou a fuga e o duelo, não foi? — rosnou Brock.

— Sim — Struan deixou cair o chicote de ferro. Este tilintou, com ódio. Outra vez, ele precisou esforçar-se para lembrar o que decidira dizer. Brock agarrou o cabo de seu chicote de ferro, deu um passo para a frente e se preparou. Só os olhos de Struan se moveram.

— Sinto muito Gorth ter morrido do jeito que morreu — disse Struan. — Eu teria gostado de matá-lo. Brock não deu resposta. Mas deslocou seu peso, imperceptivelmente, com o vento leste agitando-lhe o cabelo. O punhal de Struan apareceu em sua mão esquerda e ele se agachou ligeiramente.

— Tess está com sífilis.

Brock parou no meio do caminho.

— Não! O médico disse que Culum está sadio.

— Os médicos podem ser comprados — disse Struan, sentindo a sede de sangue tomar conta dele. — Ela foi contaminada de sífilis, de propósito!

— Seu, seu... — Brock fez girar malignamente a maça e investiu contra Struan. A farpa de metal deixou de alcançar os olhos de Struan por apenas uma fração de polegada.

Struan recuou rapidamente e tornou a atacar, Brock se desviou e eles começaram a cercar um ao outro como dois animais.

— Foi o que Gorth planejou — disse Struan. Desejaria parar de falar. — Está ouvindo? Foi o que Gorth quis fazer.

A cabeça de Brock estalava. Tudo que ele conseguia pensar, era em cercar o inimigo e matá-lo.Novamente houve uma violenta escaramuça, e outra vez eles brandiram suas maças. Brock fugiu a uma punhalada de Struan, que saiu de seu alcance, com uma contorção, e percebeu não poder conter-se mais e nem se manter afastado por muito tempo.

— Gorth planejou a sífilis!

— Que Deus amaldiçoe suas mentiras! — Brock aproximou-se lentamente de Struan.

— Gorth deu a Culum uma bebida drogada. Com um afrodisíaco. Gorth pagou a um bordel para que ele se deitasse com uma mulher sifilítica. Queria que Culum contraísse sífilis! Aquele seu filho maldito! Entende?

— Mentiroso!

— Mas, graças a Deus, Culum não tem sífilis... só contei para fazer você entender por que eu queria matar Gorth. Culum não tem sífilis. E nem Tess.

— O quê?

— Sim. É a verdade, juro por Deus!

— Demônio! Blasfemo! Jura falso!

Struan negaceou, Brock recuou e assumiu uma ameaçadora posição de ataque. Mas Struan não investiu com a arma. Atravessou a porta aberta da igreja abandonada e ficou em pé, diante do altar.

— Juro diante de Deus que é a verdade!

Ele se virou e perdeu o controle. Todos os ruídos pareceram cessar e o mundo inteiro era Brock e a frenética vontade de matar. Começou a voltar pela nave, lentamente.

— Gorth assassinou uma prostituta em Macau e outra aqui — ele silvou. — Esta é outra verdade. O sangue dele não está em minhas mãos, mas o seu estará.

Brock recuou do pórtico, sem desviar nunca o olhar de Struan. O vento parará de soprar, e ele sabia que isto era estranho, agourento e estranho. Mas não prestou atenção.

— Então você... você tinha motivo — disse Brock. — Eu... retiro o que eu disse. Você tinha motivo, por Deus! — Agora, estava do lado de fora, no gramado, e parou, acossado. — Eu retiro o que disse sobre Gorth, mas isto não significa que nossas contas estejam ajustadas. — Sua raiva de Gorth, de Struan, e de todos aqueles anos fustigava-o e ele só sabia que, agora, tinha de lutar, investir, matar. A fim de continuar vivo.

Então, sentiu outra vez o vento no rosto. Abruptamente, sua mente se desanuviou. Olhou para o continente. Struan perdeu repentinamente o equilíbrio, com a rapidez do movimento de Brock, e


hesitou.— O vento mudou — resmungou Brock.

— Hein? — Struan fez um esforço para se concentrar e recuou, sem confiar em Brock. Então, ambos olharam para o continente chinês, escutando com atenção e provando o vento. Vinha do norte. Lento, mas inequívoco.

— Talvez seja uma ventania — disse Brock, com a voz cheia de mortificação, o coração batendo; toda sua força o abandonara.

— Vindo do norte, não! — disse Struan, sentindo-se igualmente esvaziado. Ah, Deus, por um momento, eu fui um animal. Se o vento não tivesse mudado...

— Tufão!

Olharam para o porto. Os juncos e sampanas corriam em direção à terra.

— Sim — disse Struan. — Mas eu disse a verdade. A respeito de Gorth.

Brock sentiu um gosto de bílis na boca e cuspiu.

— Peço desculpas por Gorth. Sim. Aquilo foi provocado, e ele está morto, o que me dá ainda mais pena.

— Onde foi que eu errei?, perguntou a si mesmo. Onde? — O que foi feito, está feito. Mas eu já lhe disse umas verdades, na Colônia. Sim, eu errei em chamar você hoje, mas já lhe disse umas verdades em Cantão, e não vou mudar. Não vou mudar, e nem você. Mas, no dia em que me aparecer outra vez com uma maça na mão, ninguém vai nos fazer parar. Escolha esse dia, como eu disse antes. Concorda?

Struan se sentia curiosamente fraco.

— Concordo. — Ele recuou, desamarrou seu chicote de ferro e embainhou sua faca,

observando Brock, sem confiar nele. Brock também depôs as armas.

— E você perdoa Culum e Tess?

— Estão mortos para mim, como eu disse. Até Culum fazer parte de Brock e Filhos, e Brock e Filhos ser a Casa Nobre, e eu ser o Tai-Pan da Casa Nobre.

Struan atirou ao chão sua maça e Brock a dele. Ambos os homens partiram depressa do morro, por caminhos diferentes.


CAPÍTULO QUARENTA E SETE

Aquele dia inteiro o vento norte aumentou. Ao cair da noite, a Cidade da Rainha estava preparada como nunca estivera. As janelas trancadas, as portas calçadas e aqueles que haviam tido a previdência de construir porões abençoaram seu pagode. Os que viviam em residências improvisadas ou temporárias procuraram prédios mais sólidos. Mas poucos prédios eram sólidos — exceto no Vale Feliz. E poucos homens estavam dispostos a se arriscar a respirar os gases noturnos, embora tivessem lido no Oriental Times daquele dia a notícia sobre a cura da malária. Naquela ocasião, não existia cinchona disponível.

Todos os navios cerraram as escotilhas e todas as âncoras disponíveis foram lançadas ao fundo. Os navios foram colocados tão distantes quanto possível uns dos outros, a fim de lhes dar o máximo espaço de movimentação, quando o vento mudasse de direção.

Mas alguns diziam que, como o vento soprava constantemente do norte, não havia possibilidade de ser um tufão em início. Ninguém tinha notícia de um tufão que soprasse só do norte. O vento do tufão mudava constantemente de direção.

Até Struan inclinava-se a concordar. Jamais o barômetro estivera tão elevado. E jamais houvera um tufão sem queda do barômetro.

Ao entardecer, chuviscou, com nuvens baixas, e houve um alívio do calor.

Struan considerara cuidadosamente os perigos. Se só tivesse a si mesmo com que se preocupar, teria partido no China Cloud, em direção ao sul, até o vento mudar. Então, tomaria o curso mais seguro e escaparia. Mas algum instinto, que ele não entendia, dizialhe para não se arriscar no mar. Em vez disso, levou May-may, Yin-hsi, Ah Sam e Lim Din para a grande feitoria abandonada no Vale Feliz e colocou-os em seus alojamentos no terceiro andar. Sentiu que a chuva e o vento afastariam os gases noturnos. May-may estaria mais protegida por tijolo e pedra do que no mar, ou num buraco no chão, e isto era o mais importante.

Culum agradecera a Struan a oferta de um abrigo na feitoria, mas dissera que preferia levar Tess para o escritório do mestre do porto. Ficava num prédio baixo, de granito, e Glessing separara espaço para Culum e Tess nos alojamentos que faziam parte do edifício.Struan contara-lhes o que acontecera no outeiro, e que havia sido feita uma espécie de paz. E o dia inteiro, enquanto se preparava contra um tufão que poderia não chegar nunca, ele ficou meditando sobre a violência do homem.

— O que há, Marido? — perguntara May-may.

— Não sei. Brock, eu, o tufão... não sei. Talvez o teto de nuvens esteja baixo demais.

— Eu lhe digo o que está errado. Você pensa demais sobre o que aconteceu... pior ainda, imagina o que poderia ter acontecido. Ah! Que tolice! Seja chinês! Eu lhe ordeno! O que passou, passou. Foi feita a paz com Brock! Não perca tempo assim triste, como uma galinha constipada. Coma alguma coisa, beba um pouco de chá e faça amor com Yin-hsi.

Ela riu e chamou Yin-hsi, que veio às pressas pelo grande aposento, sentou-se à cama e lhe segurou a mão.

— Olhe para ela, por Deus! Já conversei um bocado com ela. Ele sorriu e se sentiu melhor.

— Assim é melhor — disse ela. — Penso em você o tempo todo, não se preocupe. Yin-hsi está sozinha, no quarto vizinho. Espera, atenta a noite inteira.

— Pare com isso, garota. — Ele deu uma risadinha e May-may falou rapidamente em chinês com Yin-hsi. Yin-hsi ficou toda atenta e depois, bateu palmas, extasiada, e sorriu radiante para Struan, saindo em seguida.

— O que você disse, May-may? — ele perguntou, cheio de suspeita.

— Eu disse a ela como você faz amor. E como deixar você fantasticamente excitado. E para não ter medo quando você gritar, no final.

— Vá para o inferno! Será que não posso ter nada particular?

— Tai-tai sabe o que é melhor para seu menino zangado. Yin-hsi está esperando você, agora.

— O quê?

— Yin-hsi. Eu disse a ela para se preparar. O amor à noitinha é bem agradável, pode ter certeza. Já se esqueceu? Struan grunhiu e caminhou para a porta.

— Muito obrigado, mas estou ocupado.

Desceu as escadas e, de repente, descobriu que se sentia muito melhor. Sim, era tolice preocupar-se com o passado. E, outra vez, abençoou seu pagode por ter May-may.

***

Brock mandara retirar da carlinga e prender ao costado, para maior segurança, o mastro de proa quebrado do White Witch. Todas as vergas quebradas e cordame retorcido haviam sido separados e o navio tivera as escotilhas cerradas. Ele mandara lançar três âncoras e uma outra, de lona, própria para tempestades, à popa, para manter a embarcação em direção ao vento.

O dia inteiro, ele se sentiu atoleimado. Sua cabeça e o peito doíam-lhe, e sabia que teria pesadelos, aquela noite. Teria gostado de se embriagar, atordoar-se. Mas sabia que o perigo se aproximava. Deu uma última volta pelo convés encharcado de chuva, com uma lanterna, e depois desceu para ver como iam Liza e Lillibet.

— Aqui está o seu chá, amor — disse Liza. — É melhor mudar de roupa, vestir algo seco. Aqui estão. — Apontou para o beliche, onde se encontravam um casaco e calças navais, e um chapéu de marinheiro e botas.

— Obrigado, amor. — Sentou-se à mesa e bebeu o chá.

— Papai — disse Lillibet — quer jogar comigo? — E quando Brock se manteve em silêncio, pois não a escutara, ela puxou-lhe o casaco molhado. — Papai, joga comigo?

— Deixe seu pai em paz — disse Liza. — Eu jogo com você. Levou Lillibet para a cabina vizinha e agradeceu a Deus pela paz entre seu homem e Struan. Brock contou-lhe o que acontecera e ela agradeceu a Deus por atender às suas preces. O vento foi um milagre, disse a si mesma. Agora, ele precisava de paciência. Acabaria por dar sua bênção a Tess. Liza pediu a Deus para proteger Tess e Culum, e o navio, e a todos eles, e se sentou e começou a disputar uma partida do jogo-da-velha com Lillibet. Aquela tarde, o caixão de Gorth fora colocado num escaler. Liza e Brock foram até águas profundas e Brock disse o serviço fúnebre. Quando acabou, amaldiçoou o filho e lançou o esquife nas profundezas. Voltaram ao White Witch e Brock foi para sua cabina, trancando a porta em seguida, e ali chorou pelo filho e por sua filha. Chorou pela primeira vez, depois de adulto, e a alegria de viver abandonou-o.

***

A noite inteira, o vento e a chuva foram piorando aos poucos. Ao amanhecer, o aguaceiro era forte, mas não terrível, e o mar estava agitado, mas não ameaçador.

Brock dormira vestido e apareceu no convés com os olhos lacrimejantes. Examinou o barômetro. Ainda 29.8 polegadas, firme. Bateu-lhe com a junta de um dedo, mas o registro não se alterou.

— Bom-dia, senhor — disse Pennyworth.

Brock fez um aceno com a cabeça, apaticamente.— Parece que é só uma chuvarada — disse Pennyworth, perturbado com a falta de ânimo de Brock. Brock observou o mar e o céu. A capa de nuvens estava cerca de cem pés de altura e escondia as montanhas da ilha e o Cume, mas isto também não era fora do comum.

Brock forçou-se a ir adiante e examinar as amarras das âncoras. Estavam firmes: três âncoras e três amarras da grossura da coxa de um homem. O bastante para resistir a qualquer tempestade, pensou. Mas isto não lhe causou satisfação. Nada sentiu.

O China Cloud estava elegantemente fundeado nas águas do porto, com o pessoal de plantão agachado a sotavento, no tombadilho. Todos os outros navios estavam fundeados também sem problemas, com a grande nau capitania dominando o porto. Alguns poucos juncos e sampanas atrasados procuravam amarrações ao lado da vila flutuante, na praia abrigada do vento de uma pequena enseada, perto do Cabo Glessing.

Brock desceu e Pennyworth e o resto do pessoal em serviço ficaram muito aliviados ao vê-lo ir embora.

— Ele envelheceu, desde ontem — disse Pennyworth. — Parece um morto-vivo.

***

À luz do amanhecer, Struan examinava as persianas do primeiro andar. Desceu até o piso principal e examinou as outras. Observou o barômetro: 29.8, firme.

— Pelos deuses! — disse, e sua voz estrondeou pelo edifício. — Que essa maldita chuva comece a cair de uma vez, ou pare logo, e vamos acabar com isso!

— O que, Tai-Pan? — May-may gritou do patamar.

Estava minúscula e linda.

— Nada, garota. Volte para a cama — ele disse. May-may ficou escutando a chuva cair e desejou estar em Macau, onde o ruído da água sobre os telhados seria doce.

— Não gosto desta chuva — disse. — Espero que as crianças estejam bem. Sinto muita falta delas.

— Sim. Volte para a cama, seja uma boa menina. Vou sair um pouco.

Ela fez um aceno jovial.

— Tenha cuidado, hein?

Struan vestiu seu grosso casaco marítimo e saiu.

Agora, a chuva era oblíqua. Não aumentara, durante a última hora. Na verdade, pensou, parecia estar diminuindo. As nuvens estavam muito baixas. Observou a posição do China Cloud. É lindo e está em segurança, disse a si mesmo.Voltou e examinou o barômetro. Nenhuma mudança. Tomou um bom desjejum e se preparou para sair outra vez.

— Vive para cima e para baixo! Por que é tão impaciente? Onde vai agora, hein? — perguntou May-may.

— Ao escritório do chefe do porto. Quero ver se Culum está bem. De maneira alguma você deve sair, e nem abrir qualquer janela ou porta, Suprema Senhora Tai-Tai, ou não Suprema Senhora Tai-Tai.

— Sim, Marido — May-may beijou-o.

A Estrada da Rainha estava toda enlameada e quase vazia. Mas o vento e a chuva eram revigorantes e ele se sentia melhor do que trancafiado na feitoria. Parecia um aguaceiro de primavera na Inglaterra, pensou; não, nem tão forte assim. Entrou no escritório do mestre do porto e sacudiu a água da chuva. Glessing levantou-se de sua escrivaninha.

— Bom-dia. Que tempestade estranha, não? Quer um pouco de chá? — Fez sinal para uma cadeira. — Suponho que esteja procurando Culum e a Sra. Struan. Eles foram ao serviço religioso matinal.

— Hein?

— Voltarão a qualquer momento. Hoje é sábado.

— Ah, eu tinha esquecido.

Glessing despejou o chá de um grande vaso, depois tornou a colocá-lo junto ao fogareiro. O aposento era grande e cheio de mapas. Um mastro atravessava o teto de caibros e, ao lado dele, havia uma portinhola. Bandeiras de código estavam em cubículos bem divididos, mosquetes em armeiros, e a sala inteira era limpa e bem-arrumada.

— O que acha da tempestade?

— Se for um tufão, estamos bem em seu caminho. É a única resposta. Se o vento não muda de direção, então o vórtice vai passar sobre nós.

— Que Deus nos ajude, se você estiver com razão.

— Sim.

— Uma vez, fui apanhado por um tufão ao largo de Formosa. Jamais quero estar num mar como aquele, outra vez, e nós não estávamos nem mesmo perto do vórtice. Se é que isso existe.

Uma rajada de vento, carregada de chuva, bateu com força nas persianas cerradas. Observaram o indicador de vento. Ainda inexoravelmente norte. Glessing pôs a xícara sobre a mesa.

— Sou-lhe devedor, Sr. Struan. Recebi uma carta anteontem, de Mary. Ela me contou como foram gentis... o senhor e Culum. Particularmente o senhor. Parece que ela está bem melhor.

— Eu a vi pouco antes de partir. Estava, com certeza, dez vezes melhor do que a primeira vez em que a visitei.

— Ela diz que terá alta em dois meses. E que o senhor disse aos papistas que aceitaria a responsabilidade por ela. Claro, isto cabe a mim, agora.

— Como quiser. É apenas uma formalidade. — Struan ficou imaginando o que faria, quando descobrisse a verdade a respeito de Mary. Lógico que ele teria de descobrir; como poderia May-may imaginar que não?

— O médico disse qual era a doença?

— Uma perturbação estomacal.

— Foi o que ela escreveu. Mais uma vez, obrigado. — Glessing movimentou um mapa sobre sua escrivaninha e enxugou um pouco de chá que caíra na teca. — Culum contou que o senhor esteve na Marinha Real, em menino. Em Trafalgar. Espero que não se incomode com a minha pergunta, mas meu pai teve a honra de servir também, naquela oportunidade. Fiquei imaginando em que navio se encontrava o senhor. Ele era ajudante-de-ordens do Almirante Lord Collingwood no...

— No Royal Sovereign — disse Struan, tirando-lhe a palavra da boca. — Sim, eu estava a bordo.

— Por Júpiter! — foi tudo que Glessing conseguiu gaguejar. Struan escondera o fato de Glessing deliberadamente, sempre sabendo que tinha outro ás para jogar, caso precisasse atraí-lo para seu lado.

— Sim. Claro, não me lembro de seu pai... eu era um menino carregador de pólvora, e morto de medo. Mas o almirante se encontrava a bordo e eu estava no Royal Sovereign.

— Por Júpiter! — Glessing repetiu. Vira o navio de 110 canhões ao largo de Spithead, uma vez, em menino. — Uma companhia de oitocentos e trinta e seis navios e o futuro Tai-Pan da Casa Nobre. Não é de admirar a nossa vitória, por Deus!

— Obrigado — disse Struan. — Mas tive pouco a ver com o combate.

— Por Deus, Tai-Pan — se me permite chamá-lo assim... acho isso maravilhoso. Estou muito satisfeito. Sim, estou. Palavra de honra! Eu o detestava, como sabe. Mas não detesto mais. Ainda acho que minha decisão era correta, na Batalha de Chuenpi, mas percebo agora que aquele maldito filho da mãe de Longstaff estava certo, quando disse que, se eu fosse o senhor, ou o senhor fosse eu, nossas atitudes seriam as mesmas.

— Por que está aborrecido com Longstaff?

O rosto de Glessing perdeu a animação.

— O maldito teve a impertinência de interferir em questões navais! Ele “sugeriu” ao almirante que eu fosse enviado para a Inglaterra! Graças a Deus o almirante é da Marinha Real e aquele patife foi demitido! E, por falar em idiotas, tenho certeza de que leu o jornal de ontem à noite. Aquele estúpido filho da mãe, o Cunnington! Como ousa dizer que Hong Kong é um rochedo abandonado, onde mal existe uma só casa! Que maldita coragem, declarar uma coisas dessas! É o melhor porto do mundo! Como ele ousa dizer que não sabemos nada sobre o mar?

Struan lembrou-se do primeiro dia — bom Deus, só fazia pouco mais de seis meses? — e percebeu que tinha razão. Glessing poderia afundar junto com Hong Kong, mas lutaria até à morte para proteger o Cabo Glessing.

— Talvez o novo designado, Whalen, concorde com Cunnington.

— No que me diz respeito, tudo farei para impedir isso. O almirante também. Ele quase teve uma apoplexia, quando leu o jornal. Vamos pôr a cabeça para pensar. Veja a frota. Ancorada com toda proteção e segurança, como se estivesse no porto de Portsmouth. Diabo, o que suportaríamos, num dia como este, sem Hong Kong? Meu bom Deus! Eu estaria morto de medo, se estivesse fundeado em Macau. Hong Kong é necessária, e não se fala mais no assunto. Até aquele general idiota viu a luz uma vez na vida e concorda plenamente — e ele continuou a amaldiçoar Cunnington e Longstaff, para divertimento de Struan.

A porta se abriu e uma rajada de vento e chuva agitou os mapas. Culum e Tess entraram, muito animados, apesar do tempo.

— Olá, Tai-Pan — disse Culum. — Será que podemos tomar um pouco de chá, Glessing, meu velho? Rezamos por você!

— Obrigado. — Glessing fez sinal para o vaso de ferro no fogareiro. — Sirvam-se. Tess fez uma mesura para Struan e tirou seu casaco encharcado.

— Bom-dia, Tai-Pan.

— Está linda hoje, Sra. Struan — disse ele.

Ela corou e serviu o chá mais apressadamente.

— Vocês dois parecem muito felizes — disse Struan.

— Sim, estamos — disse Culum. — Agradecemos a Deus. E pedimos para o vento mudar.

— Não quer mudar de idéia, rapaz? E ir para a residência?

— Não, obrigado. Estamos completamente seguros, aqui.Struan notou uma pequena caixa de prata, cravejada de pedras preciosas, pendente da corrente de relógio de Culum.

— O que é isso, Culum?

— Um presente. Foi Tess quem me deu.

A caixinha continha agora os vinte soberanos de ouro de Brock, e Culum sentia-se culpado por nunca ter contado a Tess seu significado. Colocara-os na caixa depois que ele e Tess desembarcaram do White Witch pela última vez: para lembrá-lo de Tyler Brock, de que Brock não fora justo, não lhe dera a oportunidade de falar.

— Foi de minha avó. Não é um grande presente de casamento — disse Tess a Struan. — Mas, sem dote nenhum, temos de nos conformar.

— Não se preocupe com isso, garota. Você faz parte da Casa Nobre. Quando irão para a casa de vocês!

— Dentro de três semanas — Culum e Tess disseram, juntos, e riram, outra vez felizes.

— Ótimo. Faremos uma comemoração. Bom, até mais tarde.

— Olhe para aquele idiota, Tai-Pan! — disse Glessing. Ele estava focalizando seu telescópio, através de uma portinhola, numa lorcha que entrava no canal norte, com as velas rizadas.

— Que diabo estará fazendo? Não é dia para sair — disse Struan.

— Com sua permissão, Sr. Struan, farei sinal para que ancore em seu desembarcadouro no Vale Feliz. Terá problemas para ancorar nas Estradas. E seu desembarcadouro está desimpedido.

— Sim, com prazer. Que navio é aquele?

— É uma lorcha da Marinha, Com a flâmula de vice-capitão superintendente. — Ele fechou o telescópio. — Seu capitão precisa fazer um exame de sanidade mental, imagine partir de Macau com um tempo desses. Ou então o Sr. Monsey está com uma pressa diabólica. Qual a sua opinião?

Struan sorriu.

— Não sou nenhuma bola de cristal, Capitão Glessing.

Glessing deu as necessárias ordens a um marinheiro, que prontamente amarrou as bandeiras de código na adriça. Abriu a escotilha do teto. A chuva respingou-os, enquanto as bandeiras eram levadas para cima.

— Onde está Longstaff? — perguntou Struan.

— A bordo da nau capitania — disse Glessing. — Devo confessar que estaria mais feliz se me encontrasse também a bordo.

— Eu, não — disse Culum.

— Ah, meu Deus, não! — Tess acrescentou.

Struan acabou de tomar seu chá.

— Bom, estou de partida. Sabem onde me encontro, para o caso de precisarem de mim.

— Não será perigoso, Tai-Pan? — perguntou Tess. — Ficar ali, com a febre do Vale Feliz, e tudo mais.

— O vento e a chuva afastarão quaisquer gases venenosos — disse Struan, com uma confiança que não sentia.

— Não esqueça, Tess, sobrou alguma cinchona, e logo teremos uma porção — disse Culum. — Tai-Pan, acho que o novo empreendimento é maravilhoso. Um serviço prestado a toda humanidade.

Struan contara a Culum a respeito de seu acerto com Cooper, antes da notícia ser publicada. Também encorajara Culum a procurar mais o americano; quanto mais pensava numa ligação de Cooper e Culum, mais gostava da idéia.

— Jeff é muito inteligente, rapaz. Você vai gostar de trabalhar com ele. — Vestiu a capa de chuva. — Bom, vou embora. Escutem, vocês dois. Não se preocupem com Brock. Não se preocupe com seu pai, menina. Tenho certeza de que mudará de idéia, se lhe derem tempo. Basta dar tempo a ele.

— Espero que sim — disse Tess. — Ah, espero que sim.

À saída, Struan parou junto do barômetro.

— Meu Jesus Cristo! Baixou para 29.5 polegadas!

Glessing olhou a hora, ansiosamente. Eram quase dez horas.

— Isto representa quase meia polegada em meia hora. — Fez uma anotação num gráfico de pressão e seguiu Struan, que correra para fora.

Um quarto do horizonte, a leste, estava negro, e não parecia haver divisão alguma entre mar e céu. O vento tornara-se mais forte, com muitas rajadas, ainda soprando diretamente do norte, e a chuva mais pesada.

— Lá está ele, sem dúvida — disse Struan, tenso. — Fechem tudo, se querem sobreviver. — Começou a correr a toda a velocidade pela Estrada da Rainha, em direção ao Vale Feliz.

— Para dentro! Culum, Tess! — ordenou Glessing. Bateu a porta e passou a tranca.

— De maneira alguma abram qualquer porta, até novas ordens. — Fechou todas as janelas e examinou os trincos, percebendo que Struan tinha razão. O vórtice ia passar diretamente sobre eles. — Fico muito satisfeito por você ter feito as pazes com seu pai, Culum. Agora, eu acho, é bom tomar algum desjejum — disse ele, acalmando-os. — Sra. Struan, quer tomar conta de tudo?


CAPÍTULO QUARENTA E OITO

Struan corria o mais rápido que podia. Alguns cules chineses que trabalhavam em liteiras corriam para o Tai Ping Shan, e alguns poucos europeus extraviados procuravam abrigo, às pressas. Através da chuva, Struan via a lorcha da Marinha à sua frente, no porto, encaminhando-se velozmente para o Vale Feliz, com muitas rizes nas velas. O mar agitado estava de um opaco verde acinzentado. A linha escura de um pé-de-vento percorreu o porto com incrível velocidade; sua beirada apanhou a lorcha, rasgou-lhe a vela principal e fê-la adernar. Struan concentrou suas energias e foi envolvido pelo vento. Demorou apenas uns poucos segundos, mas ele sentiu o açoite cego da chuva e quase foi derrubado. Quando conseguiu abrir os olhos, fitou o mar. Surpreendentemente, a lorcha ainda flutuava, e seguia em frente com dificuldade, — restando-lhe uma mezena, com o convés lavado e os farrapos da vela principal arrastados atrás.

Mais uma vez, Struan começou a correr. Chegou a seu desembarcadouro, no Vale Feliz, exatamente a tempo de ver os vagalhões de brancas cristas apanharem a lorcha e atirarem-na contra a estacaria. Um marinheiro pulou da amurada, com a amarra dianteira, mas escorregou e caiu entre o cais e o navio. Suas mãos agarraram a beirada do cais, e ele gritou quando o navio bateu no desembarcadouro, cortando-o ao meio. Quando o mar puxou outra vez o navio, o marinheiro desaparecera.

Struan gritou para os assustados marinheiros no convés e correu em frente. Um dos marinheiros atirou-lhe a corda e ele amarrou-a depressa em torno de um pilar. Outro, com risco de vida, pulou e conseguiu pisar a salvo no cais, com a amarra da popa.

O mar subia, e a lorcha e as estacas do cais rangiam. Então, a lorcha foi afinal amarrada e os homens começaram a pular em terra.

— Vão para a feitoria!

Struan lhes fez sinal para segui-lo, e correu para a porta da frente. Abriu-a com um empurrão, enquanto o vento o impelia. A tripulação de oito homens entrou correndo, a rogar pragas e bendizer sua sorte.

Struan tirou suas roupas ensopadas e, depois, notou Horatio e Monsey.— Meu Deus, o que está fazendo aqui, Horatio? Olá, Sr. Monsey!

— Jamais pensei que veríamos terra outra vez — ofegou Monsey.


Horatio encostou-se numa parede, com o peito arquejante e vomitou.

A porta se abriu e, num torvelinho de vento e chuva, o capitão — um jovem tenente— entrou zangado, sacudindo-se como um cão. Struan foi até lá e bateu a porta.

— Meu Deus do céu! — disse o homem, a Struan. — Viu o céu?

— Que diabo estavam fazendo no mar, num dia desses? Não tiveram bom senso suficiente para usar os olhos em Macau?

— Sim, por Deus! Mas recebi ordens de vir a Hong Kong, então vim para Hong Kong. Estamos nas mãos de um maníaco!

— Hein?

— Aquele maldito Capitão-Superintendente do Comércio, Sir Clyde Malfadado Whalen, por Deus! Aquele estúpido patife irlandês quase faz meu navio afundar com toda a tripulação. Eu disse a ele que o tempo estava ruim e ele só olhou para o céu e declarou: “Há tempo mais do que suficiente para chegar lá. Ordeno que parta!” Graças a Deus existe Hong Kong.

— Como está o mar, lá fora?

— Mais uma hora e jamais teríamos chegado. Vagas de vinte ou trinta pés. E aquele maldito vento! Não muda de rumo e não recua... é impossível! É um tufão, ou não? Como isso é possível?

— Porque a tempestade segue para leste daqui e estamos bem em seu caminho, rapaz!

— Ah, que Deus nos proteja!

— Fiquem à vontade. Vou pegar um pouco de chá e grogue para todos.

— Obrigado — disse o jovem. — Desculpe a explosão. Struan atravessou a sala, aproximando-se de Monsey e de Horatio.

— Consegue subir as escadas e ir para cima, Sr. Monsey?

— Sim. Obrigado, Tai-Pan. É muito gentil.

— Ajude-me com Horatio.

— Claro. Não sei o que deu no pobre rapaz. Está murmurando coisas sem nexo, desde que saímos de Macau. É muito esquisito.

— É medo — disse Struan.

Ajudaram Horatio a tirar o casaco encharcado. Seu rosto estava acinzentado e opaco, agora, e ele estava dominado pela náusea. Juntos, quase o carregaram pelas escadas acima e colocaram-no no sofá na ala oeste das instalações, parte que antes pertencia a Robb.

Struan aproximou-se do aparador e serviu doses de conhaque. Monsey pegou uma, com as mãos trêmulas, e esvaziou o cálice. Aceitou nova dose.

— Obrigado. Caminhou pelo corredor até o patamar e lá virou, tomando o corredor da ala leste. Sua suíte ocupava a extremidade sul deste pavimento.

May-may, Yin-hsi e Lim Din jogavam mah-jong numa pequena mesa, na vastidão da sala de estar. Havia lanternas acesas e as chamas dançavam alegremente.

— Olá, Tai-Pan — disse May-may. Ela pegou outra das pedras de bambu e marfim e atirou-a, com uma praga. — Ah, que dia terrível, Tai-Pan! — disse. — Meu pagode está horrível. Não ganhei um só jogo. Perdi quatrocentas, e estamos jogando há horas. Que horror, que horror, que horror! Mas estou satisfeita de ver você, não se preocupe.

A chuva castigava as persianas e o vento aumentava. — Maldito barulho! Pode me emprestar alguns taéis? Estou arruinada!

— Descontarei de sua mesada. Volte para seu jogo, garota. — Struan sorriu. — Temos companhia lá embaixo e por toda parte, então não saiam.

— Para que sair?

Ele voltou aos alojamentos de Robb.

Monsey parecia melhor. Tirara suas roupas ensopadas e se enrolara num cobertor. Horatio dormia, inquieto.

— Deus nos salvou desta vez, Tai-Pan — disse Monsey.

— Por que diabo partiram de Macau? Parece que procuravam mesmo problemas. Deviam ter visto o tempo.

— Negócios oficiais, Tai-Pan — zombou Monsey. — Sua Excelência Imperial Whalen chegou de fragata a noite passada. Ele me ordenou a vir a Hong Kong com um despacho oficial para o ex-plenipotenciário. Com este tempo, veja só! Como se um ou dois dias fossem fazer alguma diferença! Não tive coragem de lhe contar que a “grande notícia” já fora publicada no jornal.

— Como é ele?

— Eu diria que é bastante exasperante. Chegou a Macau cerca de meia-noite, numa fragata, sem se fazer anunciar. Dentro de quatro minutos, fui convocado para ir a bordo. Ele apresentou suas credenciais, deu-me para ler o despacho do Ministro de Relações Exteriores... palavra por palavra como estava na matéria de Skinner; como esses malditos jornalistas conseguem documentos secretos? E me ordenou para partir ao amanhecer, a fim de entregar imediatamente o despacho a Longstaff. Disse que chegaria imediatamente a Hong Kong, que Longstaff deveria partir na mesma hora. E que eu deveria procurar o almirante e o general e lhes dizer que tudo deveria estar pronto para uma imediata partida para o norte. — Monsey afundou numa cadeira. — Um irlandês. O que mais posso dizer?

— Por que ele não veio diretamente para cá?

— Não se pode ter dois plenipotenciários aqui, de uma só vez... é nitidamente contra os regulamentos, Sr. Struan. Existe uma coisa chamada protocolo, graças aos céus. Tenho de assumir imediatamente o cargo de Longstaff. Logo que ele sair do porto, devo informar o fato a Sua Excelência. Então, ele chegará.

Uma rajada de vento atingiu as persianas, fazendo-as estalejarem

— Maldito seja aquele homem. Quase me matou. As coisas vão ferver na Ásia, com ele no comando. A primeira coisa que disse, foi: “Aquele rochedo amaldiçoado pode afundar, que pouco estou ligando.” Puxa vida! Se não se importa, vou dormir um pouco. Não me sinto bem.

Horatio começou a gemer de novo e, depois, vomitou.

— Dê a ele um pouco mais de conhaque — disse Struan. — Há um quarto de dormir vizinho. Desceu para ver como ia a tripulação da lorcha. Eles já haviam encontrado provisões e bebida. Os que não estavam bebendo ou comendo, dormiam ou tentavam dormir.

O barômetro registrava 29.1, ainda caindo.

— Meu bom Deus, isto significa mais do que três décimos de polegada por hora —

disse o jovem tenente. Era alto e louro. — A propósito, Sr. Struan, sou o Tenente Vasserly-Smythe, R.N. Struan apertou. a mão que ele lhe estendia.

— Obrigado por nos dar abrigo.

Uma janela ao norte abriu-se com violência e a chuva e o vento jorraram para dentro do saguão. Três dos marinheiros bateram a janela e tornaram a fechar as persianas.

— Acho que vou dar uma olhada em meu navio — disse o tenente.

— É melhor vir por este caminho. — Struan conduziu-o por um corredor até uma janela lateral bem reforçada por persianas, e localizada num ponto protegido contra o vento norte. Abriu-a, com cuidado, e olhou para fora.

Viu que o China Cloud e o Resting Cloud estavam bem ancorados. A lorcha do tenente erguia-se e caía, com as ondas rangendo e se raspando contra a estacaria, e a leste não havia horizonte. Apenas escuridão. E a escuridão descia sobre eles.

— Seu navio nunca esteve tão seguro, Tenente.

— Sim. — O jovem deu uma última olhada assustada no céu, a leste, e trancou as persianas. — É o primeiro navio que eu comando. Só estou nessas águas há alguns meses. O que acontece quando vem um tufão?

— Os Ventos Supremos lançam-se contra nós.

— Que ventos são esses?

— Pés-de-vento. Rajadas. Algumas vezes são chamados os Ventos Diabólicos.


CAPÍTULO QUARENTA E NOVE

O primeiro dos Ventos Supremos varreu o porto uma hora mais tarde e pegou em cheio o Resting Cloud. Suas amarras se romperam e o navio ficou à deriva, sem proteção, em meio à escuridão. Mauss, numa das cabinas, ergueu os olhos de sua Bíblia e agradeceu a Deus por suas graças e por Hung Hsiu-ch’uan. A rajada fez o Resting Cloud adernar, e Mauss foi atirado contra a antepara, ficando inconsciente, enquanto o navio era arrastado para a praia, quase virando. Em seu caminho, estava o Boston Princess, da Cooper Tillman. Os dois navios colidiram, violentamente, e o gurupés do Resting Cloud arrancou parte das instalações superiores da outra embarcação, antes de se quebrar, e então a embarcação adernou, com a proa em direção à praia. A tempestade atirou-o na cidade flutuante das sampanas, afundando dezenas dos barquinhos, e a fez encalhar. Centenas de chineses afogaram-se, e os que ainda estavam a salvo, nas sampanas, agacharam-se sob seus frágeis abrigos de bambu. Mas o próximo Vento Supremo arrancou os abrigos, e muitas famílias foram engolfadas.

***

A bordo do Boston Princess, Jeff Cooper arrastou-se na cabina principal e ajudou Shevaun a se levantar. O vento aumentou de violência e castigou o navio, mas as amarras resistiram.

— Você está bem? — gritou Cooper por sobre o tumulto.

— Acho que sim. Ah, que Deus nos acuda!

— Fique aí!

Cooper abriu a porta da cabina e lutou para chegar ao convés, cercado por um pandemônio. Mas o vento e a chuva horizontal empurraram-no para baixo. Ele desceu três conveses e seguiu por um corredor que dava no porão. Espiou em torno, com uma lanterna. Onde o Resting Cloud batera, o madeirame estava esmagado e as soldaduras começavam a se desprender. Cooper voltou até onde se encontrava Shevaun.

— Está tudo bem — mentiu ele. — Basta que nossas amarras resistam.

***


Um Vento Supremo alcançou o Cabo Glessing e arrancou o pau da bandeira, atirando-o como um dardo no escritório do mestre do porto.

O pau da bandeira atravessou a parede de granito e decepou o braço de Glessing à altura do cotovelo. E continuou abrindo caminho até o outro lado do edifício, atirando Culum para um lado e fazendo caírem tijolos, destroços e carvões acesos sobre Tess, antes de, afinal, parar.

A chuva e o vento gemiam através das paredes quebradas e o vestido de Tess se incendiou. Culum ergueu-se com esforço e apagou o fogo, batendo-lhe com as mãos.

Quando acabou, ele segurou Tess em seus braços. Ela estava inconsciente. Tinha o rosto branco e o cabelo parcialmente chamuscado. Ele arrancou-lhe o vestido e examinoua cuidadosamente. Havia queimadura em suas costas.

Culum ouviu gritos. Virando-se, viu Glessing, com o sangue a jorrar do coto. E, do outro lado da sala, enxergou o braço decepado. Culum levantou-se, mas suas pernas não lhe obedeceram.

— Faça alguma coisa, Culum! — ele gritou, no meio do vento.

Os músculos, afinal, atenderam, e ele agarrou uma adriça do mastro da bandeira e atou um torniquete em torno do coto, fazendo parar a hemorragia. Tentou decidir o que deveria fazer em seguida e, então, lembrou-se do que seu pai fizera, quando Zergeyev fora atingido por um disparo.

— Limpe o ferimento — disse, alto. — É o que você precisa fazer. Depois, cauterize-o. Apanhou a chaleira. Havia ainda água dentro, de modo que ele se ajoelhou ao lado de Glessing e começou a molhar o coto.

— Resina, amigo velho — murmurou, com a agonia de Glessing a lhe cortar o coração.Tess gemeu, ao recuperar a consciência. Ergueu-se vacilante, com o vento agitando papéis, bandeiras e poeira, quase a cegá-la. Seus olhos se desanuviaram e ela gritou.

Culum virou-se, em pânico, e viu-a olhando para o braço decepado.

— Ajude-me! Procure as tenazes da lareira! — ele gritou, em meio ao ruído

provocado pela tempestade. Ela abanou a cabeça e recuou histericamente, muito enjoada.

— Pegue as malditas tenazes! — gritou Culum, com as mãos em fogo. — Mais tarde você fica enjoada!

Tess forçou-se a ficar ereta, chocada pela virulência na voz de Culum. Começou a procurar as tenazes.

— Pelo amor de Deus, apresse-se!

Ela as encontrou e, como se aquilo fosse um pesadelo, entregou-as a Culum.


Culum pejou um carvão aceso com as tenazes e segurou-o de encontro ao coto.

Glessing gritou e desmaiou outra vez. O fedor de carne queimada era arrasador. Culum lutou contra sua náusea até o coto estar completamente cauterizado. Então, virou a cabeça e vomitou violentamente.

***

Brock ergueu os olhos do barômetro, com todo o navio vibrando e o madeirame gemendo.

— 28.2 polegada, Liza! Nunca esteve tão baixo! Liza agarrou Lillibet e tentou conter o seu medo.

— Fico imaginando onde estará Tess. Que Deus a proteja!

— Sim — disse Brock.

Então, houve um grito da madeira e todo navio adernou, mas corrigiu sua posição.

— Vou para o convés!

— Fique aqui! Pelo amor de Deus, não se arrisque — mas ela parou, porque ele já fora embora.

— Quando isso vai passar, mamãe? — soluçou Lillibet.

— Daqui a pouco, amor.

Brock enfiou a cabeça, cautelosamente, para fora do passadiço do tombadilho, a sotavento. Ergueu o pescoço para olhar os mastros. Estavam quebrados como raminhos. Houve um ruído monstruoso quando se partiu o mastro principal.

— Agüentem aí! — gritou Brock para baixo do passadiço. — Guarda da proa ao convés!

Um Vento Supremo irrompeu do norte e outra adriça se partiu, e mais outra, e o mastro principal caiu até quase sobre o convés e bateu na mezena e ambos os mastros, vergas e cordame tombaram sobre o convés, destruindo o passadiço do tombadilho. O White Witch adernou terrivelmente.

Brock abriu caminho em meio aos destroços e injuriou a tripulação petrificada.

— Para o convés, patifes! Lutem pelas suas vidas! Cortem os mastros quebrados, do contrário estaremos perdidos!

Exortou os homens no convés e, agarrando-se com uma das mãos, o vento a empurrá-lo e a chuva a cegá-lo, brandiu freneticamente um machado contra as adriças, lembrando-se do outro tufão, que lhe custara um olho, e rezando para conservar o outro e para que Tess estivesse salva e Liza e Lillibet não se afogassem.

***

Os andaimes da nova cidade há muito haviam sido arrancados, quando um dos Ventos Supremos varreu a praia, derrubando o que restava das tendas dos soldados e destruindo o cais. Arrasou as tavernas, bares e prostíbulos perto das docas e destroçou o estabelecimento da Sra. Fortheringill, pulverizando a pintura e sepultando Aristotle Quance no entulho. Depois, direto como uma flecha, ceifou casebres do Tai Ping Shan, liquidando centenas de famílias, e lançou restos dos destroços a uma milha de distância, no seio do Cume.

Nas profundezas da terra, nas encostas do Tai Ping Shan, Gordon Chen se abrigava no porão secreto que construíra e se congratulava por sua prudência. O porão era de pedra e muito forte e, embora ele soubesse que a casa acima desaparecera, alegremente lembrou a si mesmo de que todos os seus pertences de valor estavam salvos ali, e a casa poderia ser depressa substituída. Seus olhos percorreram fileiras de livros de contabilidade, arquivos de títulos de propriedade de terras, notas promissórias, débitos e hipotecas importantes, caixotes de barras de prata, caixas contendo jades, peças de caras sedas e barriletes do mais fino vinho. E em sua concubina. Flor Preciosa. Ela estava instalada confortavelmente, sob as mais ricas cobertas, na cama encostada a uma das paredes. Ele se serviu de outra xicrinha de chá e deitou-se a seu lado.

Você é um sujeito muito inteligente, disse a si mesmo.

***

O vento e a chuva castigavam o lado norte da feitoria de Struan no Vale Feliz e, de vez em quando, um dos Ventos Diabólicos a empurrava. Mas, apesar dos tremores ocasionais, e do barulho terrível, o prédio resistiu.

Struan acendeu um charuto. Detestava ficar assim dentro da casa, sem fazer nada.

— Você fuma demais — May-may gritou, em meia aos ruídos da tempestade.

— Fumar acalma os nervos,

— Hábito sujo. Fedorento.

Ele não disse nada, mas deu outra olhada no barômetro.

— Por que você não pára de olhar, a cada dez minutos?

— É para descobrir onde está a tempestade. Quando o barômetro parar de cair, o centro estará sobre nós. Então, subirá. Eu acho.

— Não estou muito satisfeita por nos encontrarmos aqui, Tai-Pan. Seria muito melhor em Macau.

— Não acho.

— O quê?

— Não acho!

— Ah! Temos de dormir aqui outra vez, esta noite? — ela perguntou, cansada de gritar. — Não quero que você, ou Yin-hsi e até mesmo aquela idiota da Ah Sam peguem a febre.

— Acho que estamos bastante seguros.

— O quê?

— Não há perigo!

Ele deu uma olhada em seu relógio. Duas e vinte. Mas, quando espiou através de uma fenda na persiana, não conseguiu ver nada. Só um vago movimento na escuridão e na chuva horizontal que batia nas vidraças. Ficou satisfeito por se encontrarem ao abrigo do vento. Aquele canto da residência era virado para leste, e a oeste, e ao sul, estava protegido da violência. E Struan sentia-se satisfeito por se encontrar em terra. Nenhum navio pode sobreviver a isto, pensou. Nenhum porto no mundo pode proteger por muito tempo as frotas de um ato assim de Deus. Aposto que Macau está sendo atingida. E não há proteção ali. Aposto que metade dos navios estão destruídos, bem como dez mil juncos e sampanas, ao longo de quinhentas milhas da costa. Sim. E o navio enviado ao Peru? Aposto que foi atingido e destruído, e o Padre Sebastião com ele.

— Vou dar uma olhada nos outros.

— Não demore, Tai-Pan.

Ele seguiu pelo corredor e examinou os trincos das persianas. Depois, atravessou o patamar e, distraidamente, endireitou uma pintura de Quance e entrou nos alojamentos de Robb.

Horatio estava sentado — meio à sombra — na cadeira de bambu na qual há muito tempo Sarah se sentara e, à frágil e bruxuleante luz das lanternas, Struan pensou, por um momento, que fosse Sarah.

— Olá, Horatio. Onde está Monsey?

Horatio olhou para Struan sem reconhecê-lo.

— Encontrei Ah Tat — disse ele, com voz fúnebre.

— Não consigo ouvir, rapaz. Você tem de gritar.

— Ah Tat. Sim, eu a encontrei.

— Hein?

Horatio começou a rir, terrivelmente, como se Struan não estivesse no aposento.

— Mary. teve um aborto. Ela é uma puta suja, para fedorentos pagãos, há anos.

— Tolice. Isso é tolice, rapaz. Não acredite -: disse Struan.

— Eu encontrei Ah Tat e lhe arranquei a verdade. Mary é uma puta diabólica dos chineses, e estava grávida de um mestiço. Mas Ah Tat deu-lhe veneno para matá-lo. — Outra vez, uma gargalhada. — Mas eu peguei Ah Tat e lhe bati até ela me dizer a verdade. Ela era a alcoviteira de Mary. Mary vendeu-se aos pagãos. — Seus olhos voltaram para o centro da lanterna. — Glessing jamais se casará com uma puta de chineses. Então, ela será minha outra vez. Toda minha. Eu a perdoarei, se ela rastejar e implorar.

— Horatio! Horatio!

— Ela será minha. Como quando éramos meninos. Ela será toda minha, outra vez. Eu a perdoarei.

Outra rajada diabólica atingiu o prédio, e mais outra, e uma terceira, e parecia que se encontravam no meio de dez mil sorvedouros terríveis, e Struan ouviu janelas e persianas quebrando-se. Correu pelo corredor, até sua suíte. May-may e Yin-hsi estavam assustadas, na cama, e Ah Sam gemia, petrificada. Struan correu até a cama e abraçou May-may. A violência infernal aumentava.

Abruptamente, a tempestade parou.

Fez-se silêncio.

A luz começou a se filtrar através das fendas nas persianas, aumentando de

intensidade com a passagem dos segundos.

— O que aconteceu? — perguntou May-may, com a voz soando irreal, no silêncio esmagador.

Struan depôs May-may na cama e se aproximou da janela. Espiou através de uma das fendas e, depois, abriu cautelosamente a janela e destrancou as persianas. Piscou, enquanto o ar quente e seco invadia o quarto.

Olhou incrédulo para o porto.

O China Cloud ainda estava em suas amarras. O White Witch perdera seus mastros e as pontas das adriças caíam sobre o casco. O Resting Cloud encontrava-se encalhado no Cabo Glessing e a lorcha ainda amarrada no cais da companhia. Viu uma fragata encalhada, adernada, bem acima da arrebentação. Mas o resto da frota e os navios transportadores de soldados e mercantes ainda estavam ancorados, intactos.

Acima, havia pequenas nuvens, céu azul e sol. Mas, no porto, o mar enlouquecera. Ondas piramidais elevavam-se da superfície e se chocavam umas com as outras, e ele viu

o China Cloud fazer água por sobre a amurada, dos dois lados, bem como pela proa e pela popa, ao mesmo tempo. Além, à distância, uma cortina rodopiante de nuvens gigantescas elevou-s& do mar e subiu até sessenta mil pés, dominando tudo.

E, em toda parte, com exceção do ruído das ondas entrechocando-se, havia aquele silêncio sobrenatural.

— Estamos no vórtice!

— O quê?

— O olho da tempestade. É isso. O centro!

May-may e Yin-hsi e Ah Sam aproximaram-se, correndo.

— A frota está salva, por tudo que é sagrado! — disse Struan, exultante. — Os navios estão salvos. Salvos. — Abruptamente, sua alegria desapareceu e ele bateu as persianas e janelas, trancando-as em seguida.

— Vamos — disse, com urgência, abrindo repentinamente a porta, e elas o acompanharam, espantadas. Ele correu pelo corredor, atravessou o patamar, foi até a ala oposta do prédio e abriu a porta da suíte mais ao norte.

As persianas estavam parcialmente quebradas e uma janela espatifara-se, lançando vidro por toda parte.

— Fiquem aqui — disse.

— O que há, Tai-Pan? A tempestade foi embora.

— Façam como eu digo. — Saiu correndo. May-may deu de ombros e se sentou numa cadeira quebrada.

— O que há com Papai? — perguntou Yin-hsi.

— Não sei. Realmente, eu não o entendo, algumas vezes. Graças a Deus o barulho parou. Que silêncio, não? Um silêncio tão grande que chega a incomodar. Yin-hsi foi até uma janela e abriu-a.

— Ah, vejam! — disse. — Não é lindo? Estou tão feliz por a tempestade ter passado. May-may e Ah Sam colocaram-se a seu lado.

***

Brock estava no convés, paralisado. Via vagas aproximando-se de todas as direções, mas ali, a sotavento da praia, as ondas eram pequenas. O sol estava quente e seco. A água fazia ruído. As nuvens de tempestade em torno eram como as paredes de uma grande catedral, com cinco milhas de largura. Mas as paredes se moviam. O quadrante leste se acercava.

— O que está acontecendo, amor? — perguntou Liza, chegando ao convés com Lillibet. — Ah, que beleza!

— É tão lindo — disse Lillibet.

— Estamos no olho da tempestade! No vórtice! — exclamou Brock. Os marinheiros que chegavam ao convés viraram-se e olharam para ele.

— Ah, veja — disse Lillibet. Apontou para a ilha. — Não é engraçado?

As árvores que pontilhavam a ilha estavam brancas, contra a terra marrom; seus ramos haviam sido despojados de todas as folhas. A nova Cidade da Rainha quase sumira e o Tai Ping Shan estava em ruínas. Pequenas figuras começavam a se mover sobre a praia.

— Vão para baixo — disse Brock, com a voz desafinada. Confusos, eles fizeram o que ele ordenara.

— Capitão Pennyworth!

— Sim, senhor?

— É melhor fazer as pazes com seu Criador — disse Brock. — Só ele sabe o que há do outro lado dessas nuvens diabólicas. Vão todos para baixo.

Ele pegou seu telescópio e focalizou-o na residência da Casa Nobre. Viu Struan em pé no meio de um grupo, diante da porta da frente. Havia algumas cabeças espiando para fora das janelas do terceiro andar.

Fechou o telescópio.

— É melhor entrar, Dirk — disse tranqüilamente. Colocou os remanescentes da portinhola do passadiço no lugar e cerrou-a como pôde, descendo em seguida.

— Acho bom rezarmos — disse ele, alegremente.

— Ah, que bom — disse Lillibet. — Posso começar? Como na hora de dormir?

***

Culum tinha o braço passado sobre Tess.

— Se escaparmos vivos, maldito seja eu se ficar aqui — disse, ele. — Quero voltar para a Inglaterra e este lugar que se dane.

— Sim — disse Tess, horrorizada com a destruição. Ela olhou, com terror, para a cortina de nuvens que se aproximava, aos poucos. Engoliu a península de Kowloon. — É melhor entrarmos — disse.

Culum fechou a porta e sentiu uma dor terrível nas mãos queimadas. Mas fechou o trinco. Ela abriu caminho entre os destroços e se ajoelhou ao lado de Glessing. O rosto dele estava cadavérico, mas seu coração batia.

— Pobre George.

***

Struan media a distância do cais até o China Cloud e até as nuvens, que se encontravam mais a leste. Sabia que não havia tempo para tomar um escaler, então correu até a extremidade do cais e pôs as mãos em concha.

— Orlov! — rugiu. — Ó de bordo, China Cloud — sua voz ecoava estranhamente sobre o porto do Vale Feliz, e ele viu Orlov acenar-lhe, e ouviu-o responder fracamente:

— Sim?

— Vire o navio para o sul! Os ventos virão do sul, agora! Embique para o sul!

— Sim — ouviu Orlov responder e, dentro de um momento, viu marinheiros correndo, um escaler foi baixado e os homens começaram a empurrar febrilmente, virando o casco.

Struan voltou correndo para junto do grupo de homens na porta da frente.

— Entrem!

Alguns deles se moveram, mas o jovem tenente ainda olhava para sua lorcha no porto, sem acreditar.

— Deus do céu, ainda está inteira! E olhem para a frota, olhem para os navios! Pensei que já tivessem sido todos destruídos, a esta altura, mas só uma fragata está virada, e aquele clíper perdeu os mastros. Incrível, por Deus! Sul, o senhor disse? Por quê?

— Vamos — disse Struan, puxando-lhe o braço. — Entre... e leve seus homens para dentro.

— O que há?

— Pelo amor de Deus, sairemos do vórtice dentro de alguns minutos. E então haverá uma reversão dos ventos... acho que mudarão de direção e vão soprar do sul. Leve seus homens...

Foi quase derrubado, quando Horatio passou correndo e se dirigiu à Estrada da Rainha, em direção ao cais.

— Volte, seu louco, você será morto! — gritou Struan, mas Horatio não prestou a menor atenção. Struan saiu correndo atrás dele.

— Horatio! Que diabo há com você? — disse, alcançando-o e agarrando-lhe o ombro.

— Preciso dizer a Glessing. Acabar com essa loucura de casamento — gritou Horatio. — Afaste-se de mim... assassino! Você e sua suja puta assassina! Quero ver ambos na forca! — Ele se soltou, e saiu correndo.

Struan tornou a correr atrás dele, mas a chuva começou a cair e ele parou. A muralha de nuvens já estava quase na metade do porto, e o mar fervia à sua chegada. Viu a tripulação do escaler marinhar para bordo do China Cloud e desaparecer sob o convés. Orlov acenou pela última vez, depois também sumiu.

Struan virou-se e correu para o abrigo da residência. Uma rajada envolveu-o e ele redobrou seus esforços. Chegou ao umbral em meio ao aguaceiro e olhou para trás.

Horatio saía correndo do Vale Feliz, pela praia. A muralha de nuvens cobriu o cais e Horatio começou a desaparecer no meio do nevoeiro. Struan viu-o parar e erguer os olhos, e depois a pequena figura foi arrastada como uma folha.

Struan abriu violentamente a porta e a empurrou, em seguida, para fechá-la mas, antes de poder passar a tranca, baixou a escuridão e um Vento Supremo irrompeu, lançando-o lá para dentro do saguão. Fez explodirem todas as janelas do térreo e matou três marinheiros. Então, parou.

Struan levantou-se, espantado por ainda estar vivo. Correu para a porta e, com toda sua imensa força, fechou-a. O sorvedouro passava pelas janelas, sugando destroços, papéis e lanternas da residência — tudo que não estivesse preso por pregos.

Ao correr para as escadas, Struan deu com o corpo esmagado do jovem tenente. Parou, mas outra rajada empurrou-o e arrastou o cadáver, enquanto Struan lutava para escapar à sucção e subir as escadas, pondo-se a salvo.

***

Quando os ventos sopraram do sul, o White Witch sacudiu-se, bêbado. Adernou até quase virar, inclinou-se sobre as amarras dianteiras mas, por um milagre, endireitou-se outra vez e, tremendo, apontou para o vento. Brock pegou Lillibet e Liza e colocou-as de volta no beliche. Gritou-lhes frases de encorajamento, mas ela não ouviram, e todos eles procuraram, desesperadamente, manter-se vivos.

A água descia pelo passadiço e começou a bater na porta fechada da cabina, insinuando-se por baixo dela. Um Vento Diabólico atingiu o navio. Houve um barulho imenso e a embarcação estremeceu, e Brock percebeu que uma das amarras se partira.

***

A bordo do Boston Princess, Shevaun mantinha as mãos contra os ouvidos, tentando não escutar o grito dos ventos que assaltavam o navio. Cooper sentiu que a última amarra se partia. Gritou a Shevaun para resistir, mas ela não o escutou. Ele cambaleou até o local onde ela se encontrava e segurou-a de encontro a um balaústre, com todas as forças que lhe restavam.

O navio deu uma guinada. A amurada a bombordo oscilou e começou a fazer mais água, causando o afundamento da embarcação. A tempestade tomou conta da nave e atirou-a contra o navio russo.

***

Na cabina principal do grande bergantim, um armário com portas de vidro quebrouse, espalhando garrafas, cristal e instrumentos de cutelaria, e Zergeyev segurou-se, praguejou e rezou uma oração. Quando o navio tornou a se equilibrar, com o nariz em direção ao vento, ele chutou os destroços de debaixo dos pés, rezou outra vez e se serviu de mais um conhaque.

Maldita seja a Ásia, pensou. Queria estar em meu país. Maldita seja esta tempestade do demônio. Malditos sejam os ingleses. Maldita seja esta suja ilha. Maldito seja tudo. Maldito o Príncipe Tergin, por me mandar para cá. Maldito o Alasca — e a emigração. E as Américas, e os americanos. Mas bendita Shevaun.

Sim, disse a si mesmo, enquanto o navio rodopiava outra vez e gemia, sob a violência da tempestade. E bendita a Mãe Rússia, por sua santidade e seu lugar na História. O plano do príncipe Tergin é maravilhoso e correto, claro que é, e eu ajudarei na sua execução. Sim. Maldita aquela bala e maldita dor. Não cavalgarei mais pelas planícies infinitas. Acabou. Agora sou forçado a esquecer os esportes. Encare a si mesmo, Alexi! A bala foi sorte — qual é a palavra que usa o Tai-Pan? — ah, sim, pagode. A bala foi pagode. Bom pagode. Agora, posso concentrar todas as minhas energias a serviço da Rússia.

O que fazer? Partir de Hong Kong, agora. Acabou. O estúpido Lord Cunnington estrangulou a Grã-Bretanha e nos deu a chave para a Ásia. Ótimo. Faça um acordo comercial com o Tai-Pan ou com Brock e, depois, vá embora logo que possível e prossiga até o Alasca. Faça acertos referentes às tribos. Depois, retorne para seu país. Não, melhor ainda — vá a Washington. Olhe e ouça e pense, e faça o que nasceu para fazer — sirva a Mãe Rússia até os confins da terra. A terra dela.

Zergeyev sentiu a dor no quadril e, pela primeira vez, gostou dela. Muito bom pagode, pensou. Então, está decidido. Partiremos, se sobrevivermos.

Mas, e Shevaun? Ah, eis uma moça sobre a qual vale a pena pensar, pela cruz! Valiosa politicamente, hein? E fisicamente. Mas não é suficientemente boa para um casamento, mesmo sendo seu pai um senador. Ou talvez seja. Talvez fosse uma medida muito aconselhável. Considere isso, Alexi. Vamos precisar de líderes para a América russa. O continente será dividido em principados. O casamento entre nacionalidades sempre foi uma forma de conquista, hein? Talvez você deva apressar esse dia.

Por São Pedro, gostaria que ela fosse minha amante. Como poderia conseguir isso? Será que ela aceitaria? Por que não? Louco idiota, o Cooper. É muito aborrecido que esteja prometida. Pena. Ela disse que não o amava.

O tufão estava no auge, mas o anel de montanhas ainda desviava a maior parte de sua violência do porto.

O Boston Princess debatia-se no meio do porto, com uma das amuradas sob o mar, fazendo água, pesadamente. Cooper sabia que o fim estava próximo, e segurava Shevaun, gritando que tudo acabaria bem.

O navio afundou mais e seguiu velozmente em direção a Kowloon. Depois encalhou. Os rochedos perfuraram-lhe o casco e as ondas lamberam-lhe os porões, e então um Vento Supremo ergueu-o acima do torvelinho e atirou-o de lado, por sobre a linha da arrebentação.

***

Agora que o vento soprava do sul, passava por sobre a cordilheira de montanhas e seguia em direção ao continente. E, no funil que formava o Vale Feliz, ele aumentava sua força incrível. Abateu-se sobre a Casa Nobre, procurando seu ponto fraco.

Struan embalava May-may em seus braços, na suíte relativamente protegida, do lado norte. Uma lanterna bruxuleava nervosamente, lançando sombras bizarras e dançantes. Além das janelas espatifadas, a sotavento das rajadas carregadas de chuva, só havia escuridão. Ah Sam estava ajoelhada no chão e Yin-hsi aninhava-se perto de Struan, procurando abrigo.

May-may virou-se e colocou os lábios perto da orelha de Struan, gritando: — Tai-Pan, estou muito infeliz com esse barulho todo.

Ele riu, segurou-a com mais força e ela colocou os braços em torno de seu pescoço. Sabia que nada os atingiria agora. O pior passara.

— Dentro de mais três, ou quatro horas, passará, garota.

— Tempestade horrível. Eu não lhe disse que era um dragão? Um dragão marinho?

— Sim.

— Pelo sangue de Cristo!

— O que há?— Esqueci de tomar a última xícara do nojento chá de cinchona. Hoje é o último dia, lembra-se?

— Você vai tomar, dentro de algumas horas.

— Sim, Marido! — May-may sentia-se muito feliz e saudável. Brincava com o cabelo comprido na nuca de Struan. — Espero que as crianças estejam bem.

— Sim. Não se preocupe. Chen Sheng cuidará deles.

— Quando iremos embora, hein? Estou com uma pressa incrível de me casar.

— Daqui a três meses. Seguramente, antes do Natal.

— Acho que você deve tomar outra esposa bárbara como Terceira Irmã.

Ele riu.

— É muito importante ter muitos filhos. Não ria, por Deus!

— Talvez você tenha tido um bom pensamento, garota — ele disse. — Talvez eu deva ter três bárbaras. Depois, virão você e Yin-hsi. Acho terrivelmente importante arranjarmos outra irmã chinesa, antes de partirmos.

— Ora! Se sua atividade com a Segunda Irmã até agora continuar assim, arranjaremos amantes, por Deus! — Depois ela beijou-lhe a orelha e gritou: — Estou muito satisfeita com meu pagode por me trazer você, Tai-Pan!

Um tiroteio dos Ventos Supremos quebrou as janelas do lado sul e todo prédio se mexeu como se houvesse um terremoto. Os pregos do telhado rangeram diante do puxão incômodo e, depois, uma rajada diabólica arrancou o telhado e atirou-o no mar.

Struan sentiu Yin-hsi ser arrastada para cima, pelo sorvedouro. Tentou agarrá-la, mas ela já desaparecera. Struan e May-may abraçaram-se, apertadamente.

— Não desista, Tai-Tai!

— Nunca! Eu o amo, Marido!

E os Ventos Supremos abateram-se sobre eles.


CAPÍTULO CINQÜENTA

O sol se ergueu bravamente e espalhou calor sobre a cidade destroçada e o porto seguro.

Culum encontrou o pai no torvelinho da residência. Struan estava esmagado num canto da suíte norte e, em seu braços, havia uma pequena e magra moça chinesa. Culum ficou imaginando como o pai poderia tê-la amado, pois, para ele, não era bonita.

A morte não os enfeara. Seus rostos estavam calmos, como se dormissem.

Culum saiu do quarto e desceu a escadaria quebrada, sendo envolvido, lá fora, pela suave brisa do leste.

Tess estava à espera. E quando viu que ele abanava desamparadamente a cabeça, seus olhos também se encheram de lágrimas e ela segurou-lhe a mão. Saíram do Vale Feliz pela Estrada da Rainha, sem nada ver.

A nova cidade encontrava-se em ruínas, com destroços espalhados por toda parte. Mas, aqui e acolá, havia prédios ainda de pé, alguns meras cascas, outros só ligeiramente danificados. A praia estava cheia de gente que corria de um lado para outro, ou permanecia em pé, em grupos, observando os destroços de suas residências ou casas de negócios. Muitos supervisionavam equipes de cules, resgatando seus pertences enlameados ou fazendo consertos. Cules com liteiras exerciam sua atividade. Os mendigos também. Patrulhas de soldados haviam sido colocadas em pontos estratégicos para impedir o inevitável saque. Mas, estranhamente, havia pouquíssimos saqueadores.

Sampanas e juncos pescavam no calmo porto, entre os pedaços flutuantes de navios quebrados. Outros chegavam trazendo novos povoadores. E o cortejo de chineses da praia até o Tai Ping Shan começara outra vez.

Havia fumaça por sobre a encosta. Alguns incêndios ardiam entre os destroços dos casebres. Mas, além da fumaça, havia a movimentação do trabalho. Restaurantes, casas de chá e de venda de alimentos e vendedores ambulantes faziam negócios outra vez, enquanto os moradores — martelando, costurando, cavando, conversando — consertavam suas casas ou começavam a reconstruir, abençoando seu pagode por estarem vivos.

— Olhe, Culum, amor — disse Tess. Estavam perto do cais. Culum se achava obtuso, com o cérebro mal funcionando.

Ele olhou para onde ela apontava. Numa encosta, seu lar quase concluído estava sem teto e deslocado dos alicerces.

— Ah, meu Deus — ela disse. — O que vamos fazer? Ele não respondeu. O medo dela aumentou, ao sentir o pânico dele.

— Vamos, amor. Iremos... iremos para o hotel e depois... depois para bordo do White Witch. Vamos, amor.

Skinner aproximou-se, correndo. Seu rosto estava manchado, as roupas rasgadas e sujas.

— Com licença, Sr. Culum. Onde está o Tai-Pan?

— O quê?

— O Tai-Pan. Sabe onde ele está? Preciso vê-lo, imediatamente.

Culum não respondeu, então Tess disse:

— Ele... ele está morto.

— Hein?

— Ele está morto, Sr. Skinner. Eu... meu Culum o viu. Ele está morto. Na feitoria.

— Ah, meu Deus, não! — disse Skinner, com voz rouca. Que mau pagode! Ele murmurou condolências e voltou para sua impressora e a máquina destroçada.

— Você é dono de jornal! — ele gritou. — De quê? Não tem impressora e nem dinheiro para comprar outra, e agora o Tai-Pan está morto, de modo que não pode pedir emprestado a ele, então nada tem e está liquidado! Liquidado! Que diabo você vai fazer?

— Chutou os destroços, sem ligar para os cules que estavam a um lado, esperando pacientemente. — Por que diabo ele tinha de morrer numa ocasião dessas? Arengou por alguns minutos e depois sentou-se num banquinho.

— O que vai fazer? Recomponha-se. Pense!

Bom, disse a si mesmo, a primeira coisa é tirar o jornal. Edição especial. Como? Impresso manualmente.

— Sim, impresso manualmente — repetiu, em voz alta. — Você tem a mão-de-obra e pode fazer isso. E então?

Notou os cules a observá-lo. Então fique com a boca calada, advertiu a si mesmo. Tire o jornal e então vá procurar aquele jovem idiota desamparado, Culum, e faça-o empregar dinheiro numa nova impressora. Você pode dobrá-lo facilmente. Sim. E fique com a boca calada.

Chegou Blore. Seu rosto estava sem vida.

— Bom-dia — disse. — Que maldita confusão! As arquibancadas sumiram, e o padoque. Tudo. Perdemos quatro cavalos... o capão também, maldição!

— O Tai-Pan está morto.

— Ah, meu Deus! — Blore recostou-se contra a porta quebrada. — Isso acaba com tudo. Ah, bom, pensei mesmo que era bom demais para poder durar.

— Hein?

— Hong Kong... o Jóquei Clube... tudo. Isto é o fim. Pense bem. A Colônia é um desastre. Esse novo patife, o Whalen, vai dar uma olhada e morrer de rir. Não há esperança agora, sem o Tai-Pan. Diabo, eu gostava dele.— Foi ele quem mandou você me procurar, não? Para me entregar o despacho?

— Não — disse Blore. O Tai-Pan fizera-o jurar segredo. Um segredo era um segredo. — Pobre sujeito. De certa maneira, estou satisfeito por ele não ter vivido para ver o fim da Colônia.

Skinner tomou-o pelo braço e apontou para o porto.

— O que há ali?

— Hein? O porto, por Deus!

— Esse é que é o problema das pessoas. Não usam as cabeças e nem os olhos. A frota está salva... todos os navios mercantes! Perdemos uma fragata, que encalhou, mas será consertada e voltará para o mar dentro de uma semana. O mesmo aconteceu com o Resting Cloud. O Boston Princess afundou em Kowloon. Mas foi tudo. Não entende? O pior tufão da história submeteu Hong Kong ao teste... e ela passou com todas as bandeiras drapejando, por Deus! O tufão foi um grande pagode. Acha que o almirante não vai entender? Pensa que até aquele imbecil do Cunnington ignora que todo nosso poder está na frota... pense o que pensar aquele general debilóide? Poder marítimo, por Deus!

— Santo Cristo, pensa mesmo assim?

Skinner já voltara para dentro e estava tirando o lixo de seu caminho. Sentou-se, pegou uma pena, tinta e papel e começou a rabiscar.

— Se eu fosse você, começaria a fazer planos para as novas arquibancadas. Quer que eu publique que vai cumprir o programa estabelecido?

— Sim. Ótimo! Sim. — Blore pensou um momento. — Vamos começar um costume... teremos uma corrida especial. O maior prêmio do ano... a maior corrida da temporada. Vamos chamá-la o Grande Prêmio Tai-Pan.

— Ótimo. Esta noite, você lerá a respeito disso no jornal. Blore espiou Skinner escrevendo.

— Está fazendo o obituário dele?

Skinner abriu uma gaveta e empurrou um maço de papel em direção a ele.

— Já o escrevera há alguns dias. Leia. Depois você pode ajudar-me com a impressão manual.

***

Culum e Tess ainda estavam em pé onde Skinner os deixara.

— Vamos, amor — disse Tess, puxando-lhe o braço, angustiada.

Com um esforço Culum concentrou-se.— Por que você não vai para bordo do White Witch? Tenho... tenho certeza de que estão ansiosos para saber se você está salva. Irei para bordo mais tarde. Deixe-me só um pouquinho, está bem, querida? Preciso... bom, só quero ficar um pouco sozinho.

— Ah, Culum, o que vamos fazer?

— Não sei. Não sei.

Viu que ela erguia os olhos para ele e depois partia. Ele continuou caminhando em direção ao Cabo Glessing, sem ouvir e sem ver, o tempo parando, para ele. Ah, Deus do céu, o que farei?

— Sr. Struan?

Culum sentiu que alguém lhe puxava o braço e saiu de seu estupor. Notou que o sol estava alto no céu e ele estava encostado no pau da bandeira partida do Cabo Glessing. O mestre-d’armas olhava-o.

— Receba os cumprimentos de Sua Excelência, Sr. Struan. Quer fazer o favor de subir a bordo?

— Sim, sim, naturalmente — disse Culum, sentindo-se vazio e embrutecido.

Permitiu que o mestre-d’armas o guiasse até o escaler à espera. Subiu o passadiço da nau capitania e, depois, desceu.

— Meu querido Culum — disse Longstaff — que notícia terrível. Terrível. Quer Porto?

— Não. Não, obrigado, Excelência.

— Sente-se. Sim, terrível. Chocante. Logo que ouvi a notícia, mandei buscá-lo para lhe apresentar minhas condolências.

— Obrigado.

— Vou partir com a maré, amanhã. O novo plenipotenciário mandou notícia por Monsey de que está em Macau. — Maldito Whalen, por que diabo não esperou? Maldito tufão! Maldito Dirk! Maldito tudo! — Já conhece Monsey, não?

— Não... não senhor.

— Não importa. Puxa vida, que coisa triste. Monsey estava na residência e não sofreu um só arranhão. Sim, terrível. Tudo é uma questão de pagode. — Aspirou rapé e espirrou. — Ouviu dizer que Horatio foi morto também?

— Não... não, senhor. A última vez... pensei que ele estava em Macau.

Idiota, por que tinha de morrer? Complica tudo.

— Ah, a propósito, seu pai tinha uns documentos para mim. Eu precisava deles, antes de partir.

Culum revistou sua memória. O esforço esgotou-o ainda mais.— Ele não falou a respeito comigo, Excelência. Nada sei a respeito deles.

— Bom, tenho certeza de que os guardo em lugar seguro — disse Longstaff, encantado por ver que Culum não sabia de nada. — Um cofre, Culum, é lá onde devem estar. Onde fica seu cofre particular?

— Eu... eu não sei, senhor. Perguntarei a Vargas.

— Vamos, Culum, recomponha-se. A vida continua. Os mortos devem enterrar os seus mortos, e tudo mais. Não deve desistir, não é? Onde fica o cofre dele? Pense! Na residência? A bordo do Resting Cloud?

— Não sei.

— Então sugiro que verifique, e muito depressa. — A voz de Longstaff se tornou mais aguda. — É um assunto da máxima importância. E não fale com ninguém. Sabe qual o castigo por traição?

— Sim... sim, claro — respondeu Culum, assustado com Longstaff.

— Ótimo. E não esqueça que você ainda é vice-secretário colonial e se encontra sob solene juramento à Coroa. Coloquei os documentos nas mãos de seu pai para que os guardasse em segurança. Documentos diplomáticos altamente secretos referentes a uma “potência amiga”. Mapas, documentos em russo com traduções inglesas. Encontre tudo. Volte a bordo quando tiver o material. Volte a bordo ao entardecer, de qualquer maneira. Se não puder cumprir a tarefa, eu a farei por mim mesmo. Ah, sim, e vou confiar a você algumas sementes. Chegarão dentro de alguns dias. Você vai reencaminhá-las para mim e tratará o assunto com igual sigilo. Ordenança! — gritou. A porta se abriu imediatamente.

— Sim, senhor!

— Acompanhe o Sr. Culum à terra!

Culum voltou para a chalupa em pânico. Ele foi às pressas até o Resting Cloud. Estava no meio da cidade nas sampanas, quase na vertical. Soldados haviam sido colocados nas imediações, como proteção contra saqueadores. Escalou o barco e dirigiuse à cabina.

Lim Din montava guarda, com uma machadinha, em frente aos alojamentos de Struan.

— O Senhor está morto? — perguntou.

— Sim.

Lim Din ficou calado. E nem sua expressão mudou.

— Quando o Tai-Pan tinha papel... documento importante... onde guardava? — perguntou Culum.

— Hein?

— Documento... põe cofre. Tem cofre? Caixa segura?

Lim Din fez sinal para dentro e mostrou-lhe o cofre na antepara do quarto de Struan.

— Isto?

— E a chave?

— Chave não tem. Tai-Pan tem, pode ter certeza.

Onde ele guardaria a chave?, Culum perguntou a si mesmo, desesperado. Em suas roupas! Em suas roupas, claro! Vou ter de... Será que Vargas não terá uma duplicata? Ah, Deus do céu, ajude-me. Haverá... haverá um funeral; com esquife. Onde eu, e... e aquela moça, a moça chinesa? Será que pode ser enterrada com ele? Não, não seria direito. Será que ele tem filhos com ela? Ele não disse que tinha? Onde estarão eles? Nas ruínas? Pense, Culum! Acorde, pelo amor de Deus! E os navios? E dinheiro? Será que ele deixou um testamento? Esqueça isso, não tem importância agora... nada disso. Precisa achar os documentos secretos. O que Longstaff disse? Mapas e um documento russo?

Brock entrou sem ser notado na cabina. Viu o medo e o desamparo na fisionomia do jovem, e as manchas de sangue em suas mãos e no rosto.

— Bom-dia, rapaz — disse, gentilmente. — Vim, logo que soube. Sinto muito, rapaz, não se preocupe. Eu vou fazer tudo para você.

— Ah, obrigado, Sr. Brock — disse Culum, obviamente aliviado. — É apenas que eu... — Ele se sentou, fraco.

— Tess disse que, sem você, ela estaria morta, e Glessing também. Foi um mau pagode o que aconteceu com seu pai, mas não se preocupe. Fui à residência, rapaz, e tomei todas as providências adequadas. Ordenei a Orlov para colocar o Leão e o Dragão a meio-mastro e vou colocar em ordem o Resting Cloud sem demora. Você recupere o fôlego. Vou tomar conta de tudo.

— Ah, obrigado, Sr. Brock. Viu a chave? Eu preciso pegar... — Culum estava quase explicando a respeito dos documentos, mas lembrou-se do que Longstaff dissera a respeito de traição e se deteve em tempo. — Só pensei — ele disse, gaguejando

— Bom, acho que preciso dar uma olhada nos papéis dele.

— Não examinei os seus bolsos — disse Brock, com voz fria.

— Só o deitei ajeitado e coloquei a mulher em outro lugar, escondido. Ah, Dirk, disse a si mesmo, jamais vou esquecer como você estava, e a pagã. Juntos. Mas, por sua própria causa, e por causa das crianças, você será enterrado sozinho, como cristão.

— Fiz alguns acertos relativos a ela, com discrição.

— Sim, claro — disse Culum.

— Vamos fazer uma fusão, Culum. Brocks e Struans. Será o melhor para todos. A Casa Nobre será Brock-Struan. Vou ajeitar os papéis imediatamente para que tudo fique legalizado. — Sim, ele disse a si mesmo. Não vou esfregar esse pagode em sua cara, Dirk, mas eu sou o Tai-Pan, agora. Afinal. Culum será o seguinte, se for suficientemente bom, depois de Morgan e Tom. — Tudo está esquecido entre você, Tess e eu. rapaz. É melhor ir para bordo do White Witch. Tess precisa ser confortada.

— Sim. Está bem, Sr. Brock. Obrigado. Mas... bom, se não se incomoda, gostaria de... voltar à residência, primeiro.

— Vá para bordo ao anoitecer — Brock saiu.

Culum enxugou o rosto com as mãos. É melhor. Fazer uma fusão. Você sempre disse que faria. Recomponha-se, Culum. Vá pegar a chave!

— Senhor? — Lim Din fez-lhe sinal para segui-lo e levou-o a outra cabina. Mauss jazia no chão. Estava feio, morto. — Pagode. Não se preocupe — disse Lim Din, e riu, nervosamente.

Culum saiu às cegas do navio, com o coração doendo, e atravessou as vigias de pranchas da cidade das sampanas, até se aproximar do Cabo Glessing. Caminhou pela Estrada da Rainha, abrindo caminho entre destroços e pertences quebrados, murmurando incoerentes agradecimentos às muitas pessoas que dele se aproximavam oferecendo-lhe sua simpatia. Tinha apenas um pensamento, em sua mente despedaçada: você precisa examinar-lhe os bolsos.

— Culum!

Em sua perturbação, viu Cooper, com Shevaun a seu lado, num grupo de negociantes perto do hotel. Gostaria de prosseguir, mas eles se aproximaram.

— Acabamos de saber, Culum. Sinto muitíssimo — disse Cooper. — Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? Foi um pagode terrível.

— Sim — disse Shevaun, com o rosto muito machucado e as roupas em frangalhos.

— Terrível. Acabamos de voltar de Kowloon. Acho simplesmente horrível, tão injusto.

— Eu... eu... bom... sinto muito, não posso falar agora. Preciso... preciso... Observaram-no afastar-se às pressas.— Pobre rapaz — disse Cooper.

— Ele parece louco de susto.

— Não é de estranhar. Depois do que aconteceu com o Tai-Pan e com Glessing.

— Ele vai ficar bom? Glessing?

— Não sei. Espero que sim. — Cooper olhou para o porto. Viu os destroços do Boston Princess e agradeceu a Deus outra vez por estarem salvos. — Se fosse ele, eu estaria da mesma maneira.

Aquele pobre rapaz vai precisar de toda ajuda que lhe puder ser oferecida, disse Cooper a si mesmo. Graças a Deus, o Tai-Pan viveu tempo suficiente para me dar os papéis. Eu fico imaginando se ele teve uma premonição. Não. Com certeza não. E Culum? O que vai fazer? Está desamparado como um bebê. Talvez eu devesse tomar conta dele — devo isto ao Tai-Pan, e mais ainda. Temos juntos, agora, o negócio da cinchona. Vamos cancelar os dois outros diretores, ficaremos só Culum e eu. Por que não juntar forças? Fundir totalmente as companhias? A nova Casa Nobre — Cooper-Struan. Não! Struan-Cooper. Você será justo com Culum. Ele será o próximo. Há gigantescas possibilidades numa fusão, claro. Mas será melhor agir depressa, senão Brock vai colocar

o rapaz a seus pés. Tai-Pan da Casa Nobre. O Tai-Pan. Por que não?

— Por que você está sorrindo? — perguntou Shevaun.

— Um pensamento que me ocorreu — ele disse, e deu-lhe o braço. Você foi muito inteligente, Dirk, meu amigo. Em ambas as jogadas. Sim. Vai me custar um ano para consolidar. — Estou tão satisfeito por termos sobrevivido. Vamos para o desembarcadouro. Precisamos ver se Zergeyev está bem. Escute, Shevaun, decidi mandar você para a América por um ano, no próximo navio.

— O quê? — disse Shevaun, e parou.

— Sim. No final desse período, se você decidir que me ama e quer casar comigo, serei o mais feliz dos homens. Não, não diga nada — Cooper acrescentou, quando ela começou a falar. — Deixe-me terminar. Se você decidir em contrário, então tem sua liberdade e minha bênção. De qualquer maneira, não comprarei os interesses de Tillman. Seu pai receberá, durante toda sua vida...

Shevaun virou-se e os dois começaram a caminhar outra vez, de braços dados, enquanto ele continuava a falar. Mas ela não estava escutando, agora. Um ano, exultava, escondendo sua alegria Livre por um ano. Livre deste maldito lugar! E papai ainda terá suas ações! Ah, Deus, Vós atendestes às minhas orações. Obrigada, obrigada, obrigada. Pobre Dirk, meu amor. Agora eu estou livre e agora você está morto.Olhou para o bergantim russo. Sim, pensou, o Tai-Pan está morto. Mas você está livre, e o arquiduque seria uma escolha perfeita.

— Desculpe, Jeff. O que você disse?

— Só que quero entregar alguns documentos particulares a seu pai.

— Claro, meu caro. E muito obrigada, muito obrigada. O ano passará depressa.

***

Gordon Chen curvou-se diante de Buda, no templo em ruínas, e acendeu um último bastão de incenso. Chorara por seu pai e por May-may.

Mas agora não é hora de chorar, disse a si mesmo. Pagode é pagode. Agora é hora de pensar.

A Casa Nobre está morta.

Culum não tem a força para levá-la adiante. Brock irá dominá-lo e fundirá as companhias. Não posso cuidar de Brock. Se Culum se unir a Brock, Culum estará liquidado. Então, de nenhuma das duas maneiras, ele poderá ajudar-me. Será que posso ajudá-lo? Sim. Mas não com os bárbaros, e não posso ajudá-lo a ser o Tai-Pan. Isto é uma coisa que só o próprio homem consegue para si mesmo.

A fumaça do incenso fazia delicados anéis no ar e ele a observava, satisfeito com seu perfume.

Só meu pai sabia do nosso acordo. Eu tenho o loque de prata e, no devido tempo, ele se transformará em cinqüenta, cem loques. Sou o chinês mais rico de Hong Kong. E o mais poderoso. O Tai-Pan dos chineses.

Tenho de ser honesto... não sou chinês, e nem inglês. Mas estou contente com meu pagode, e sou mais chinês do que inglês. Casarei com uma chinesa e também meus filhos e os filhos de meus filhos, podem ter certeza.

Hong Kong? Vou ajudar a ilha a se tornar mais forte. Detive os saqueadores, hoje. A força de trabalho será ampla e obediente, no futuro.

Acredito no que o meu pai disse: o governo britânico cairá. Tem de cair. Ah, deuses, peço que caia, para o futuro da China! Vocês são chineses... pensem na China. Vou financiar o maior templo do sul da China... bom, pelo menos, um templo adequado para a sede da Tríade e para o Tai Ping Shan: logo que o governo cair e Hong Kong for absolutamente britânica.

Ele se ajoelhou, tocou o chão com a cabeça, diante da estátua, para confirmar a barganha. Sim, só papai sabe como iríamos ficar ricos. Mesmo assim, metade será de Culum. Todos os meses, eu lhe prestarei contas e dividiremos tudo de maneira justa, enquanto ele cumprir a parte de papai na barganha: que eu controle tudo e me sejam feitas poucas, ou nenhuma, perguntas; e tudo em particular... só entre nós dois.

Vá procurá-lo, agora. Preste suas homenagens.

É uma pena que Culum tenha casado com a filha de Brock, Isto será sua derrocada. Pena que ele não tenha tido a força de prosseguir sozinho. Queria que eu e ele pudéssemos trocar de lugar. Eu mostraria aos bárbaros como dirigir a Casa Nobre. E ao imperador, diga-se de passagem. Se Culum tivesse pelo menos alguma força e estivesse preparado para ouvir conselhos, Chen Sheng e eu poderíamos manter acuados Brock e todos os outros chacais.

Bom, não tem importância. Darei a meu pai e a sua Tai-tai um funeral que se transformará em legenda por cem anos. Mandarei fazer para ele uma tabuleta, e outra para sua Tai-tai, e prantearei durante cem dias. Depois, queimarei as tabuletas, para que renasçam em paz.

Vou mandar buscar Duncan e o bebê e os criarei eu próprio. E iniciarei uma dinastia.

***

Quase anoitecia. Culum estava sentado nos degraus da igreja abandonada, no outeiro do Vale Feliz, com a cabeça apoiada nas mãos. Estava com os olhos perdidos na distância. Você precisa pegar a chave, dizia a si próprio, repetidas vezes. Não há nada a temer. Precisa pegar a chave e, depois, os documentos. Vamos, Culum.

Superara o pânico, agora. Mas estava consumido pelo desgosto consigo mesmo — e pela solidão. Olhava para a residência, lá embaixo. Vargas e Orlov estavam ainda em pé à porta. Lembrou-se vagamente de ter chegado ao vale, há horas, e vendo-os ali afastara-se, para evitá-los, e depois gritara: “Deixem-me sozinho”, quando vieram atrás dele. Notou que Gordon Chen estava com eles, agora. Gordon não se encontrava lá, antes, lembrou a si mesmo. O que ele quer? Zombar? Ter pena de mim, como os outros? Longstaff... Brock... Cooper... Shevaun... Skinner... Vargas... Orlov. Até mesmo Tess. Sim, eu vi isso no seu rosto quando paramos na Estrada da Rainha. Até o seu. E você tem razão. Está certa.

O que eu faço? O que posso fazer? Não sou meu pai. Eu disse a ele que não sou. Fui honesto com ele. Pegue a chave. Pegue a chave e pegue os papéis. Você precisa entregar os papes. Longstaff ordenou-lhe para ir a bordo. Já está quase na hora. Ah, meu Deus! Ah, meu Deus!

Observou as sombras se alongarem.

Devo contar a Brock a respeito das moedas de Jin-qua? A respeito das restantes três metades de moedas, e dos três favores, e do juramento sagrado, e do Lótus Cloud. Eu preciso. Ah, Deus, e Wu Kwok? E os aprendizes de capitão chineses, e os meninos que estão sob a tutela de papai? Brock não cumpriria meu juramento, eu sei que não. Não me importo. Que diferença faz?

— Olá. — Ah, olá, Sr. Quance. — Culum olhou de soslaio, atoleimado, para as sombras. — Por favor, deixe-me sozinho. Por favor.

Todos os membros de Aristotle Quance doíam. Há apenas uma hora ele fora desenterrado dos escombros. Seu cabelo e o rosto estavam cheios de sangue coagulado e poeira, e tinha as roupas rasgadas.

— Sinto tanto — disse ele. — Foi o pagode. Só pagode.

— Detesto essa palavra. Por favor, por favor, deixe-me sozinho.

Quance viu o desamparo, a agonia e o ódio por si mesmo no rosto vagamente parecido com aquele que ele conhecia tão bem. Lembrou-se da primeira vez em que vira Struan. Numa viela obscura em Macau, caído, inconsciente, na sujeira. Tão desamparado, exatamente assim, disse a si mesmo. Não, não exatamente, jamais da mesma maneira. Dirk era como um deus, mesmo caído na lama. Ah, Dirk, você sempre teve o rosto de um deus e o poder de um deus — acordado ou dormindo. Sim, e até mesmo morto, sou capaz de apostar. Prestígio. Era o que você tinha.

Tão diferente de seu filho.

Sim, mas não tão diferente. Culum enfrentou-o, com relação ao outeiro. E ficou com você, contra Brock. E apertou a mão de Gordon Chen, diante de você. E fugiu com a moça, sem ligar para as conseqüências. E salvou a vida de Glessing. A centelha está aí.

Lembra-se do que você disse, quando recuperou a consciência? “Não sei quem são, mas obrigado por me devolverem o prestígio.”

Você nunca perdeu o seu, Dirk, meu amigo.

“Sim. Mas devolva a meu filho o dele.”

Não é o que você diria, se estivesse aqui? Estará aqui? Sinto falta de você, rapaz.Aristotle Quance esqueceu sua própria tristeza e se sentou no degrau, ao lado de Culum.

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