— É sua primeira viagem de navio, Culum? — perguntou Longstaff.

— Sim, senhor.

— Mas suponho que está bem atualizado quanto às nossas recentes “complicações”?

— Não, Excelência. Papai não escreve muito, e a China não é mencionada nos jornais.

— Mas logo será, hein, Dirk?

O camaroteiro ofereceu as taças a Longstaff e a seus convidados.

— Não deixe que nos perturbem.

— Sim, senhorrr. — O camaroteiro colocou as garrafas num local ao alcance e saiu.

— Um brinde — disse Longstaff e Struan lembrou-se do brinde de Robb e lamentou que ele tivesse chegado primeiro à nau capitânia. — A uma agradável estada, Culum, e uma viagem segura de volta para a pátria.

Beberam. O vinho branco estava excelente.

— A história está sendo feita aqui, Culum. E não há ninguém melhor equipado para contá-la a você do que seu pai.

— Existe um velho ditado chinês, Culum: “A verdade tem muitas faces” — disse Struan.

— Não entendo.

— Apenas, minha versão dos “fatos” não é necessariamente a única. — Isto lembrou-lhe o vice-rei anterior, Ling, agora caído em desgraça em Cantão porque sua política precipitara conflito aberto com a Grã-Bretanha e, atualmente, condenado à morte.

— Aquele demônio, Ling, ainda está em Cantão?

— Acho que sim. Sua Excelência, Ti-sen, sorriu quando lhe perguntei isso, há três dias, e respondeu, enigmaticamente — “O Escarlate é o Filho do Céu. Como pode o homem saber o que o Céu deseja?” O imperador chinês é chamado o Filho do Céu — Longstaff explicou, esclarecendo Culum. — “O Escarlate” é outro de seus nomes, porque ele sempre escreve com tinta vermelha.

— Gente estranha, muito estranha, os chineses, Culum — disse Struan. — Por exemplo, só o imperador, entre três milhões de pessoas, tem permissão para usar tinta escarlate. Imagine se a Rainha Vitória dissesse: — “De agora em diante, só eu tenho permissão para usar o escarlate”, por mais que a amemos, quarenta mil britânicos imediatamente repudiariam todas as outras tintas, menos a vermelha. Inclusive eu.

— E todos os negociantes da China — disse Longstaff com um inconsciente sorriso escarninho — imediatamente lhe enviariam um barril de tinta desta cor, pagamento contra entrega, e diriam a Sua Majestade Britânica que ficariam satisfeitos em abastecer a Coroa, ao preço tal. E escreveriam a Carta com tinta vermelha. Seria exatamente assim, suponho. Onde estaríamos, se não fosse o comércio?

Houve um pequeno silêncio e Culum ficou imaginando por que seu pai deixara passar o insulto. Ou não era um insulto? Não se tratava apenas de mais um fato corriqueiro, os aristocratas sorrirem sempre de maneira escarninha para qualquer pessoa que não fosse também aristocrata? Bom, a Carta resolveria o caso dos aristocratas de uma vez por todas.

— Queria me ver, Will? — Struan sentia-se mortalmente cansado. Seus pés doíam, e os ombros também.

— Sim. Algumas coisinhas aconteceram desde que... nos últimos dois dias. Culum, quer nos desculpar por um momento? Quero falar com seu pai a sós.

— Certamente, senhor. — Culum levantou-se.

— Não há necessidade disso, Will — disse Struan. Se não fosse o sorriso escarninho de Longstaff, ele teria deixado Culum sair. — Culum é sócio de Struan, agora. Um dia ele será o dirigente, o Tai-Pan. Pode confiar nele como confia em mim.

Culum queria dizer: “Jamais farei parte disto, jamais. Tenho outros planos.” Mas não podia falar nada.

— Devo congratulá-lo, Culum — disse Longstaff — por ser sócio da Casa Nobre.

— Bom, este é um prêmio incalculável. Não quando se está em bancarrota, Struan quase acrescentou.

— Sente-se, Culum.

Longstaff caminhou pela sala e começou:

— Está combinado para amanhã um encontro com o plenipotenciário chinês, a fim de discutir os detalhes do tratado.

— Ele sugeriu a ocasião e o lugar, ou foi você?

— Foi ele.

— Talvez seja melhor mudar. Escolha outro lugar e outra ocasião.

— Por quê?

— Porque, se concordar com sua sugestão, ele e todos os mandarins vão interpretar isso como fraqueza.

— Está bem. Se acha assim. Depois de amanhã, então? Em Cantão?

— Sim. Leve Horatio e Mauss. Irei com você, se quiser, e devemos chegar quatro horas atrasados.

— Mas diabos, Dirk, por que chegar a todos esses extremos ridículos? Quatro horas? Puxa vida!

— Não é ridículo. Agindo como superior diante de um inferior, você os colocará em desvantagem. — Struan deu uma olhada em Culum. — É preciso fazer o jogo oriental com regras orientais. Coisinhas se tornam muito importantes. Sua Excelência tem uma posição muito difícil aqui. Um pequeno erro agora, e o resultado durará cinqüenta anos. Ele precisa fazer as coisas depressa, mas com extrema cautela.

— Sim. E sem nenhuma ajuda, que inferno! — Longstaff esvaziou o copo e encheu outro. — Por que diabo eles não podem agir como gente civilizada, eu não sei. E nunca vou saber. Além de seu pai, não há ninguém que ajude. O Gabinete, em nosso país, não sabe os problemas que enfrento e não se preocupa com isso. Estou completamente sozinho aqui. Eles me dão instruções impossíveis e esperam que eu lide com pessoas impossíveis. Puxa vida, precisamos nos atrasar quatro horas para provar que somos “superiores”, quando é claro que todos sabem que somos superiores! — Ele tomou um pouco de rapé, cheio de irritação, e espirrou.

— Quando vai pôr as terras à venda, Will?

— Bom, ahn, quando o Gabinete aprovar o tratado, eu acho. Há tempo bastante. Digamos, em setembro.

— Não se lembra de sua idéia? Pensei que queria começar a construir em Hong Kong imediatamente.

Longstaff tentou lembrar-se. Parece que se recordava de ter falado a respeito com Struan. O que era mesmo?

— Bom, naturalmente, a cessão de Hong Kong não será oficial até os dois governos aprovarem o tratado... quero dizer, este é o costume, não?

— Sim. Mas essas circunstâncias não são usuais. — Struan brincava com seu copo.

— Hong Kong é nossa. Quanto antes começarmos a construir, melhor, não foi isso que disse?— Bom, naturalmente é nossa. — Qual era o plano? Longstaff prendeu outro bocejo.

— Você disse que toda terra deveria pertencer à rainha. Que até você ser oficialmente o primeiro governador de Hong Kong, todo governo deveria ficar em suas mãos, como plenipotenciário. Se você fizer uma proclamação especial, então tudo será como planejou. Se eu fosse você, realizaria uma venda de terras no próximo mês. Não esqueça, Willy, de que você precisará de renda para a colônia. O Gabinete é sensível com relação a colônias que não pagam seus próprios gastos.

— Correto. Sim. Absolutamente correto. Naturalmente. Deveríamos começar logo que possível. Realizaremos a primeira venda de terra no próximo mês. Vejamos. Deverá ser no sistema de propriedade livre, arrendamento ou o quê?

— Arrendamentos de novecentos e noventa e nove anos. Os acordos costumeiros da Coroa.

— Excelente. — Longstaff fez um gesto de desamparo. — Como se não tivéssemos preocupações suficientes, Culum! Agora temos de agir como malditos comerciantes. Como se faz para construir uma colônia, ora? É preciso ter esgotos, ruas e prédios, Deus sabe o que mais. Um tribunal e uma prisão, por Júpiter! — Ele parou diante de Culum. — Você tem alguma prática legal?

— Não, Excelência — disse Culum. — Apenas metade de um curso universitário.

— Não tem importância. Precisarei ter um secretário colonial, um ajudante-geral, tesoureiro e Deus sabe quem mais. Será necessária uma força policial de algum tipo. Gostaria de ficar encarregado da polícia?

— Não, obrigado, senhor. — Culum tentou não demonstrar o choque que sentira.

— Bom, tenho certeza de que haverá algum lugar onde poderemos utilizá-lo. Todos terão de pôr mãos à obra. Não posso tomar conta de tudo. Pense a respeito do que gostaria de fazer, e me diga. Precisamos de pessoas em quem possamos confiar.

— Por que não colocá-lo em seu staff como suplente? — disse Struan. — Nós o emprestaremos a você por seis meses.

— Excelente. — Longstaff sorriu para Culum. — Bom. Você é agora vicesecretário colonial. Vejamos. Faça os acertos para a venda de terras. Esta é a sua primeira tarefa.

— Mas eu nada sei a respeito de venda de terras, senhor. Não sei nada a respeito...

— Sabe tanto quanto qualquer outra pessoa, e seu pai poderá orientá-lo. Você seria, ah, vice-secretário colonial. Excelente. Agora eu posso esquecer aquele problema. Descubra o que pode ser feito e como, e me informe o necessário para oficializar tudo. Faça um leilão. Esta é a maneira justa, eu imagino. — Longstaff tornou a encher seu copo. — Ah, a propósito, Dirk, eu determinei a evacuação da Ilha de Chushan. Struan sentiu o estômago revirar.

— Por que você fez isso, Will?

— Recebi uma carta especial de Sua Excelência, Ti-sen, há dois dias, pedindo que isto fosse feito, como um ato de boa fé.

— Você poderia ter esperado.

— Ele queria uma resposta imediata e não havia, bom... nenhuma maneira imediata de alcançar você.

— Imediata, no estilo chinês, significa até um século. — Ah, Willie, seu pobre louco, pensou ele, quantas vezes eu terei de explicar? Longstaff sentiu o olhar de Struan a apunhalá-lo.

— Ele ia mandar uma cópia do tratado ao imperador, e queria incluir o fato de que havíamos ordenado a evacuação. Nós devolveríamos a ilha, de qualquer jeito, não? Era este o plano. Diabo, que diferença faz, agora, ou mais tarde?

— A escolha do momento é muito importante para os chineses. A ordem já seguiu?

— Sim, seguiu ontem. Ti-sen teve a gentileza de nos oferecer o correio montado imperial. Enviei a ordem por ele. Maldito seja, pensou Struan. Seu louco impossível.

— É muito ruim usar o serviço deles para enviar nossas ordens. Perdemos prestígio e eles ganharam um ponto. Não adianta mandar um navio agora. — Sua voz estava fria e áspera. — Quando chegasse a Chushan, a evacuação estaria realizada. Bom, está feito, não adianta mais. Mas não foi sensato. Os chineses só vão interpretar isto como uma fraqueza.

— Achei o ato de boa fé uma esplêndida idéia, esplêndida — Longstaff prosseguiu, tentando vencer seu nervosismo. — Afinal, temos tudo que desejamos. A indenização deles é leve... apenas seis milhões de dólares, e isto mais do que cobre o custo do ópio que destruíram. Cantão está novamente aberta ao comércio. E temos Hong Kong. Afinal. — Seus olhos brilhavam, agora. — Tudo de acordo com o plano. A Ilha de Chushan não é importante. Você disse para tomá-la apenas como um recurso. Mas Hong Kong é nossa. E Ti-sen disse que nomearia um mandarim para Hong Kong, dentro de um mês, e eles vão...

— Ele o quê? — Struan estava horrorizado.

— Ele nomeará um mandarim para Hong Kong. O que há? Contenha seu gênio, Struan advertiu a si próprio, com um grande esforço. Você tem sido paciente todo esse tempo. Este incompetente de mente fraca é o instrumento mais necessário de que você dispõe.

— Will, se você permitir que faça isso, irá dar-lhe poder sobre Hong Kong.

— Absolutamente, meu caro, por quê? Hong Kong é britânica. Os pagãos ficarão sob nossa bandeira e sob nosso governo. Alguém precisa encarregar-se dos demônios, não? É preciso haver alguém a quem pagar as taxas alfandegárias. Onde melhor do que em Hong Kong? Eles terão sua própria alfândega, seus prédios e...

— Eles o quê? — A palavra estrondeou para além dos tabiques de carvalho. — Pelo sangue de Deus, você não concordou com isso, eu espero?

— Bom, não vejo nada errado nisso, Dirk, hein? Puxa vida, não muda nada, não é? E nos livra de uma porção de problemas. Não precisamos ir para Cantão. Podemos fazer tudo daqui.

Para evitar esmagar Longstaff como se fosse um piolho, Struan caminhou até à escrivaninha e se serviu de conhaque. Contenha-se. Não o destrua agora. A ocasião não é oportuna. Você precisa usá-lo.

— Você concordou com Ti-sen que ele pode nomear um mandarim para Hong Kong?

— Bom, meu caro camarada, não concordei exatamente. Não faz parte do tratado. Eu simplesmente disse que concordava que parecia uma boa idéia.

— Você fez isto por escrito?

— Sim. Ontem. — Longstaff estava perplexo com a violência de Struan. — Mas não é o que vínhamos tentando fazer há tanto tempo? Tratar diretamente com os mandarins, e não por intermédio dos donos de armazéns chineses?

— Sim. Mas não em nossa ilha, pelo amor de Deus! — Struan mantinha a voz baixa, mas estava pensando: “Seu maldito arremedo de líder, seu estúpido aristocrata indeciso, montão de esterco que só toma decisões erradas.” — Se permitirmos isso, afundaremos Hong Kong. Perderemos tudo.

Longstaff puxava o lobo da orelha, encolhendo-se sob o olhar de Struan.

— Por que, papai? — perguntou Culum.

Para alívio de Longstaff, os olhos viraram-se para Culum e ele pensou: sim, por quê? Por que perderemos tudo, hein? Achei que era um acerto simplesmente maravilhoso.

— Porque eles são chineses.

— Não compreendo.

— Eu sei, rapaz. — Para afastar a dor da perda de sua família, que repentinamente cresceu dentro dele, e para tirar da cabeça sua frenética preocupação com a perda de sua riqueza, ele decidiu explicar, tanto a Longstaff como a Culum. — A primeira coisa que é preciso compreender: durante cinqüenta séculos, os chineses vêm chamando a China de Império do Meio, a terra que os deuses colocaram entre o céu, acima, e a terra, abaixo. Por definição, um chinês é um ser de superioridade sem igual. Todos eles acreditam que qualquer outra pessoa, qualquer, é um bárbaro e não deve ser levado em consideração. E que eles sozinhos, como habitantes da única nação realmente civilizada, têm o direito divino de dominar a terra. No entender deles, a Rainha Vitória é uma vassala bárbara e deve pagar tributos. A China não tem armada, nem exército, e podemos fazer o que quisermos com ela... mas eles acreditam que vivem na mais civilizada, a mais poderosa e a mais rica, quanto a isto, acho que estão potencialmente certos, nação da terra. Conhece os Oito Regulamentos?

Culum abanou a cabeça.

— Bom, eram os termos através dos quais o imperador da China concordou em negociar com os “bárbaros”, há cento e cinqüenta anos. Os regulamentos confinavam todo comércio “bárbaro” a um único porto, o de Cantão. Todo o chá e a seda deveriam ser pagos com prata, não havia permissão para nenhum crédito e o contrabando era proibido. Os “bárbaros” foram autorizados a construir armazéns e fábricas num pedaço de terra de meia milha por duzentas jardas, em Cantão; e deviam permanecer totalmente confinados a essa área amuralhada, a Colônia de Cantão, mas só durante a temporada de inverno da navegação, de setembro a março, e depois precisavam sair e ir para Macau. Nenhuma família “bárbara” tinha permissão para ir à Colônia, em nenhuma circunstância, e o ingresso de todas as mulheres era proibido. Absolutamente não se podia levar armas para lá. Aprender chinês, andar de barco como divertimento, ou em liteiras, e misturar-se com os chineses, tudo era proibido; navios de guerra “bárbaros” eram proibidos de entrar no estuário do Rio Pérola. Todos os navios mercantes “bárbaros” deveriam ancorar em Whampoa, a treze milhas, rio abaixo, onde as cargas tinham de ser baldeadas e as tarefas de exportação pagas em prata. Todo comércio dos “bárbaros” deveria realizar-se exclusivamente através de um monopólio, uma guilda de dez mercadores chineses que chamamos a Co-hong. A Co-hong era também a única fornecedora de alimentos, a única autoridade a conceder licença para um número estabelecido de criados, barqueiros e compradores. E, finalmente, o regulamento que nos crucificava, e o tratado cancela, especificava que a Co-hong era a única recebedora de todas as petições dos “bárbaros”, seus pedidos e queixas, que seriam encaminhados aos mandarins exclusivamente através do órgão.” A intenção básica dos Regulamentos era nos manter ao alcance, a fim de nos incomodar, e tirar de nós cada centavo. Lembrem-se de outra coisa a respeito dos chineses: eles adoram dinheiro. Mas a sangria só beneficiou a classe dirigente dos manchus, não a todos os chineses. Os manchus acham que nossas idéias, Cristandade, Parlamento, votos e, acima de tudo, igualdade perante a lei e um sistema de júri, são revolucionárias, perigosas e más. Mas eles querem nossas barras de prata.

“Sob os Regulamentos, estávamos sem defesa, nosso comércio era controlado e poderia ser sangrado à vontade. Mesmo assim, ganhamos dinheiro. — Ele sorriu. — Ganhamos uma porção de dinheiro, e eles também. A maioria dos Regulamentos foi desobedecida por causa da cobiça das autoridades. Os importantes, relativos à proibição de navios de guerra, de contato oficial fora da alçada dos mercadores da Co-hong, da presença de esposas em Cantão, de ficar além de março e chegar antes de setembro, permaneceram em vigor.

“E, o que é tipicamente chinês, os pobres mercadores da Co-hong foram considerados responsáveis por nós. Quaisquer “complicações”, e a ira do imperador caía sobre eles. O que, outra vez, é tão completamente chinês. A Co-hong foi taxada pesadamente e está sendo taxada, até que vá à bancarrota a maioria de seus membros. Possuímos seiscentos mil guinéus de seu papel sem valor. Brock tem quase a mesma quantidade. De acordo com o costume chinês, a Co-hong tem de comprar suas posições ao imperador, e se espera que enviem continuamente grandes “presentes” para seus superiores... cinqüenta mil taéis de prata é o “presente” costumeiro, no dia do aniversário do imperador, de cada um dos membros.

“Acima da Co-hong, está a taxação do chefe de cobrança pessoal do imperador. Nós o chamamos Hoppo. Ele é o responsável pela sangria dos impostos cobrados aos mandarins de Cantão, à Co-hong, ou a qualquer pessoa. O Hoppo também compra sua posição... ele é o maior comerciante de ópio, aliás, e ganha uma fortuna com isso.

“Então, se permitirem a presença de um mandarim em Hong Kong, permitem a entrada de todo o sistema. O mandarim será um Hoppo. Todo chinês estará sujeito a ele.

Todo comerciante chinês que vier negociar terá de “comprar” licenças e será obrigado a pagar impostos e, em troca, eles nos sangrarão. O Hoppo destruirá aqueles que nos ajudarem e ajudará aqueles que nos odiarem. E não desistirão até nos expulsarem.

— Por quê?

— Porque são chineses.

Struan se espreguiçou para aliviar os ombros, sentindo o cansaço dominá-lo, depois caminhou até o aparador e despejou outro conhaque. Gostaria de poder ser chinês mais ou menos por uma hora, pensou ele, exausto. Então, poderia manobrar para conseguir um milhão de taéis de alguma parte, sem nenhum problema. Se esta é a resposta, disse ele a si próprio, então tente pensar como um chinês. Você é o Tai-Pan dos “bárbaros”, o mandarim, com poder ilimitado. De que adianta o poder, se você não o utilizar para mudar o pagode e ajudar a si mesmo? Como pode você usar seu poder? Quem tem um milhão de taéis? A quem você poderá pressionar, para consegui-los? Quem lhe deve favores?

— O que deveremos fazer, Dirk? Quero dizer, concordo plenamente — disse Longstaff.

— É melhor você mandar a Ti-sen um despacho imediato. Diga-lhe... não, ordene-lhe...

Struan parou abruptamente, enquanto seu cérebro clareava. Sua fadiga desapareceu. Você é um lacaio estúpido, parlador e idiota! Ti-sen! Ti-sen é a sua chave. Um mandarim. É tudo que você precisa arranjar. Duas medidas simples: primeiro, cancelar seu acordo, Longstaff, como deve ser cancelado, de qualquer maneira; segundo, dentro de uma ou duas semanas, fazer uma oferta secreta a Ti-sen, dizendo que, em troca de um milhão, em barras de prata, você fará Longstaff modificar sua posição e permitir a presença de um mandarim em Hong Kong. Ti-sen vai aceitar correndo porque, imediatamente, terá de volta tudo o que a guerra o forçou a conceder; ele arrancará o milhão em impostos da Co-hong, e eles ficarão satisfeitíssimos em pagar, porque, imediatamente, acrescentarão isso ao preço do chá que estão loucos para nos vender, e nós estamos loucos para comprar. O pobrezinho do Willie não representa nenhum problema, e não haverá objeções, por parte dos outros negociantes, a um mandarim. Não chamaremos o homem “mandarim”, nós vamos inventar um novo nome, para afastar qualquer um da pista. “Comissário de Comércio”. Os negociantes não farão objeções ao “comissário de comércio” chinês, porque ele assistirá o comércio e simplificará o pagamento alfandegário. Agora, como fazer a oferta secreta? Obviamente, o velho Jin-qua. Ele é o mais rico e o mais astuto dos integrantes da Co-hong e nosso principal fornecedor, e você o conhece há vinte anos. Ele é o homem, sem a menor dúvida.

Um mandarim garantirá o futuro da Casa Nobre. Sim. Mas ele destruirá Hong Kong. E destruirá o plano. Quer apostar como você fará o trato, sabendo que terá de lográ-lo depois? É um risco terrível... você sabe que um mandarim significa todo o sistema. Você não pode deixar esse legado diabólico para Robb ou Culum, ou os filhos deles. Mas, sem o dinheiro, não haverá Casa Nobre, e nem futuro.

— Você dizia o que, Dirk?

— Ordene a Ti-sen, em nome da rainha, para esquecer a idéia de colocar um mandarim em Hong Kong.

— É exatamente a minha maneira de pensar. — Longstaff, todo feliz, sentou-se à escrivaninha e pegou a pena. — O que devo dizer?

E o que deverei eu fazer, pobre Willie, com relação à segunda medida?, Struan perguntou a si mesmo. Será que o fim justifica os meios?

— Escreva isto: “Para Ti-sen, em Cantão. Uma Proclamação Especial: Só Sua Majestade Britânica, a Rainha Vitória, tem a autoridade para nomear funcionários para a ilha britânica de Hong Kong. Não haverá funcionários chineses aqui, e nem alfândega nenhuma.” — Hesitou e depois continuou, deliberadamente, sentindo que a oportunidade era aquela. — “E todos os chineses residentes na Colônia de Sua Majestade, Hong Kong, serão doravante súditos britânicos e estarão submetidos apenas às leis da Inglaterra.”

— Mas isto ultrapassa minha autoridade!

— O costume é que os plenipotenciários ultrapassem sua autoridade. Por isso são tão cuidadosamente escolhidos, Will. Este é o motivo de termos um império. Raffles, Hastings, Clive, Raleigh, Wellington. Você tem a autoridade plenipotenciária do Governo de Sua Majestade para acertar um tratado com a China. O que eles sabem sobre a China em nosso país, ou o que se importam com ela? Mas você é um inovador, um artífice da História, Will. Estará disposto a aceitar uma pequena ilha, estéril, quase desabitada, quando é um costume mundial se apoderar de continentes inteiros, quando você poderia tomar toda a China, se quisesse? Você é inteligente demais para se contentar com tão pouco.

Longstaff hesitou e chupou o alto da pena.

— Sim, mas já concordei que os chineses em Hong Kong estariam submetidos à lei chinesa, com a proibição de todas as formas de tortura. — Uma gota de suor alcançou-lhe o queixo. — Era uma cláusula do tratado e eu emiti uma proclamação especial.

— Você mudou de idéia, Will. Do mesmo modo como Ti-sen mudou também. Não havia cláusulas para que fosse nomeado um mandarim.

— Mas ficou combinado.

— Em sua cabeça, não. E nem na minha. Ele está tentando enganar você. Como fez no caso de Chushan.

— Está certo — concordou Longstaff, feliz de ser convencido. — Você tem razão, Dirk. Absoluta. Se permitirmos qualquer controle... você tem razão. E eles voltarão aos seus antigos procedimentos incorretos, não é? Sim. E está na hora de os chineses verem o que a justiça realmente é. Lei e ordem. Tem razão.

— Conclua a carta como o imperador faria: “Tema, e obedeça tremulamente”, e assine com seu título completo — disse Struan, e abriu a porta da cabina.

— Mestre-d’armas!

— Sim, senhor?

Sua Excelência quer que seu secretário, o Sr. Sinclair, venha até aqui correndo.

— Sim, senhorr.

Longstaff parou de escrever. Releu a carta.

— Não está um tanto dura, Dirk? Quero dizer, assim sem colocar nenhum dos títulos dele, e terminando como se fosse uma proclamação imperial?

— Aí é que está. Você vai querer publicá-la no jornal.

— Mas é um documento particular.

— É um documento histórico, Will. E você pode se orgulhar dele. E o almirante vai gostar de sua atuação. Aliás, por que estava ele aborrecido?

— Ah, os motivos de costume. — Longstaff imitou o almirante. — “Diabo, senhor, fomos enviados para cá a fim de combater os pagãos e, depois de duas incursões sem nenhuma resistência apreciável, o senhor assina um tratado desprezível, que nos dá ainda um pouco menos do que o Secretário de Relações Exteriores nos mandou pedir?” Você tem certeza, Dirk, de que pedir menos é o procedimento correto? Sei que você disse isso antes mas... bom, os mercadores parecem pensar que foi um erro terrível. Nenhum porto aberto, quero dizer.

— Hong Kong é mais importante, Will.

— Espero que você continue tendo certeza disso. O almirante também está muito irritado com algumas deserções e, ainda, com a demora da colocação em vigor da ordem contra o contrabando. E, bom, houve uma grande gritaria por parte de todos os negociantes.

— Encabeçados por Brock?

— Sim. Aquele patife mal-educado. O coração de Struan confrangeu-se.

— Você disse aos mercadores que ia cancelar a ordem?

— Bom, Dirk, não foi bem assim. Mas insinuei que seria cancelada.

— E insinuou ao almirante que cancelaria a ordem?

— Bom, eu sugeri que não era aconselhável levar aquilo avante. Ele ficou muito irritado e disse que ia levar seu ponto de vista ao conhecimento do Almirantado. — Longstaff suspirou e bocejou. — Puxa vida, ele não tem a menor visão dos problemas. Nenhuma, Eu ficaria muito grato, Dirk, se você explicasse “comércio” a ele, está bem? Eu tentei, mas não consegui meter nada em sua cabeça.

E eu não consigo meter nada na sua Willie, pensou Struan. Se Robb comprou o ópio, estamos numa confusão ainda maior. Se não comprou, ainda assim estamos liquidados. Só resta um negócio a fazer — um maldito mandarim por um maldito milhão.

— Não sei o que faria sem o conselho de seu pai, Culum. — Longstaff pegou rapé de uma caixinha ornamentada com pedras preciosas.

Diabo, pensou ele. Sou um diplomata, não um fomentador de guerras. Governador de Hong Kong é apenas o rótulo. Depois de ser governador de Hong Kong, então virá alguma coisa que valha a pena, Bengala, talvez. Jamaica... aquele é um bom lugar. Canadá. Não, é frio demais. Bengala, ou outro dos Estados indianos.

— É tudo muito complicado na Ásia, Culum. Ter de lidar com tantos e tão diferentes pontos de vista e interesses... da Coroa, dos negociantes, dos missionários, da Marinha Real, do Exército e dos chineses... todos em conflito. E, diabo, os chineses estão divididos em grupos que se chocam. Os mercadores, os mandarins e os soberanos manchus. — Ele encheu de rapé as duas narinas, cheirou profundamente e espirrou. — Creio que sabe que os dirigentes da China não são chineses?

— Não, senhor.

— Metade dos problemas vem daí, segundo nos disseram. São manchus. Da Manchúria. Bárbaros selvagens vindos do norte da Grande Muralha. Governam a China há dois séculos, segundo nos disseram. Devem pensar que somos idiotas. Disseram-nos que existe uma enorme muralha, como a Muralha de Adriano, uma fortificação atravessando todo o norte da China, para protegê-la das tribos selvagens. Supõe-se que tenha mais de três mil milhas e meia de comprimento, quarenta pés de altura e trinta pés de espessura e tem largura suficiente, no topo, para oito cavaleiros cavalgarem, lado a lado. E, segundo supõe, há postos de observação a cada trezentas jardas. É feita de tijolo e granito, e foi construída há dois mil anos. — Ele riu com desdém. — Ridículo!

— Eu acredito que exista — disse Struan.

— Ora, vamos, Dirk — disse Longstaff. Seria impossível construir tal fortificação há dois mil anos.

— Diz a lenda, Culum, que um em cada três homens na China foi recrutado para trabalhar na muralha. Foi construída em dez anos. Segundo contam, um milhão de homens morreu, e eles foram enterrados na muralha. Seus espíritos a protegem, também.Culum sorriu.

— Se é tão grande, papai, os manchus nunca teriam podido rompê-la. Não é possível que exista.

— A lenda conta que os manchus atravessaram a muralha usando um estratagema.

O general chinês encarregado da muralha vendeu seu próprio povo.

— Isso é mais do que provável — disse Longstaff, com repulsa. — Não têm o menor sentido de honra esses orientais, hein? O general achou que poderia usurpar o trono usando o inimigo. Mas os manchus o usaram e depois o destruíram. Seja como for, a história é essa.

Culum disse:

— É uma história e tanto, senhor.

Os olhos de Struan se endureceram.

— É melhor você se acostumar com muitas histórias estranhas. E um novo pensamento, Culum: os chineses têm civilização há cinco mil anos. Livros, máquinas impressoras, arte, poetas, governo, seda, chá, pólvora e milhares de outras coisas. Há milhares de anos. Somos civilizados há quinhentos anos. Se é que podemos nos considerar assim.

Houve uma batida na porta. Horatio entrou apressadamente.

— Queria me ver, Excelência?

— Sim. Quero que traduza isto imediatamente para o chinês e envie por correio especial. E mande uma cópia ao Sr. Skinner, para publicação.

— Sim, senhor. — Horatio pegou o papel e se virou para Struan. — Senti muito ao saber da terrível notícia, Sr. Struan.

— Obrigado. Este é o meu filho Culum. Horatio Sinclair.

Apertaram-se as mãos, gostando imediatamente um do outro. Horatio leu a carta.

— Vou precisar de algum tempo para colocar isto nas frases certas da corte, senhor. — Sua Excelência quer que seja enviada exatamente como está — disse Struan. — Exatamente.

A boca de Horatio se abriu completamente. Ele fez um fraco aceno afirmativo com a cabeça.

— Sim. Ahn, farei isto imediatamente. Mas Ti-sen jamais irá aceitá-la, Sr. Struan. Jamais, Excelência. Ele perderia prestígio demais. Longstaff eriçou-se.

— Prestígio? Eu vou mostrar àquele pagão algum prestígio, por Deus. Apresente meus cumprimentos ao almirante e lhe peça para enviar a carta a Whampoa por um navio de linha, com ordens de seguir de imediato para Cantão, se não for aceita prontamente!

— Sim, senhor.

— Veja só, não a aceitarão! — disse Longstaff, após a partida de Horatio. — Maldita insolência. São todos bárbaros pagãos. Todos eles. Chineses. Manchus. Não têm nenhuma justiça, e seu desprezo pela vida humana é inacreditável. Vendem suas filhas, irmãs, irmãos. Inacreditável.

Culum repentinamente, pensou em sua mãe e em seus irmãos e em como haviam morrido. Vômito e fezes aguadas, mau cheiro, dores no ventre, agonia, olhos fundos e espasmos. E as convulsões, e mais mau cheiro e depois a morte por sufocação. E, depois da morte, os repentinos espasmos musculares — sua mãe, morta há uma hora, de súbito retorcendo-se na cama, os olhos mortos e abertos, a boca morta e aberta.

O medo antigo começou a fazê-lo sentir-se doente, e ele procurou algo em que pensar, qualquer coisa capaz de lhe tirar a lembrança de seu terror.

— Quanto à venda de terras, senhor. Em primeiro lugar, a terra precisa ser demarcada. Como vai fazer isso, senhor?

— Conseguirei alguém, não se preocupe.

— Talvez Glessing — disse Struan. — Ele tem experiência de mapeamento.

— Boa idéia. Falarei com o almirante. Ótimo.

— Você poderia considerar a possibilidade de designar a praia onde a bandeira foi içada como “Cabo Glessing”. Longstaff ficou pasmo.

— Jamais eu o compreenderei. Por que se dar ao trabalho de perpetuar o nome de um homem que o odeia?

Por que bons inimigos são valiosos, pensou Struan. E tenho um serviço para Glessing. Ele morrerá para proteger o Cabo Glessing, e isto significa Hong Kong.

— Agradaria à Marinha — disse Struan. — É apenas uma idéia.

— É uma boa idéia. Estou satisfeito de que a sugestão tenha sido sua.

— Bom, obrigado, acho que vamos voltar para nosso navio — disse Struan. Ele estava cansado. E havia muitas coisas para fazer.

***

Isaac Perry estava no tombadilho do Thunder Cloud observando os fuzileiros fazerem uma revista sob longas alcatroadas, nas chalupas e no paiol. Ele detestava fuzileiros e oficiais da Marinha; mas fora pressionado a entrar nela.— Não há desertores a bordo — disse, outra vez.

— Claro — disse o jovem oficial.

— Por favor, mande seus homens não desarrumarem tudo, desse jeito. Vai ser preciso um turno inteiro de trabalho para limpar isso, depois que forem embora. — Seu navio será uma bela presa, Capitão Perry. O navio e a carga — zombou o oficial.

Perry olhou para McKay, que estava junto à prancha de desembarque, sob guarda armada. Você é um homem morto, McKay, pensou Perry, se ajudou Ramsey a vir para bordo.

— Chalupa no passadiço da popa — gritou o terceiro-imediato. — O proprietário está Vindo para bordo. Perry saiu correndo para receber Struan.

— Acham que temos um desertor a bordo, senhor.

— Eu sei — disse Struan, ao chegar ao convés. — Por que está o meu mestre sob guarda? — ele perguntou ao arrogante jovem oficial, com uma perigosa irritação na voz.

— Apenas uma precaução. Ele é parente de Ramsey e...

— Malditas sejam as precauções! Ele é inocente, até se provar que é culpado, por Deus — estrondeou Struan. — Vocês estão aqui para fazer uma busca, e não para incomodar e prender meus homens.

— Não sei de nada, senhorrr — explodiu McKay. — Ramsey não a bordo por ação minha. Ele não tá. Não tá.

— Que Deus lhe ajude, se ele estiver — disse Struan. — Você está confinado ao navio, até que eu mande o contrário. Vá para baixo!

— Sim, senhorrr — disse McKay, e fugiu.

— Pelo sangue de Deus, Isaac! — berrou Struan. — Você é ou não é capitão deste navio? Que lei autoriza a Marinha a prender um homem sem mandado, só como precaução?

— Nenhuma, senhor — Perry ficou intimidado, e preferiu não discutir.

— Saia do meu navio e vá para o inferno. Você está demitido!

Perry empalideceu.

— Mas, senhor...

— Saia do meu navio até o entardecer. — Struan caminhou para o passadiço que levava ao interior do navio. — Vamos, Culum. Culum alcançou Struan no corredor que conduzia à cabina principal.

— Não é justo — ele disse. — Não é justo. O Capitão Perry é o melhor capitão que você tem. Você disse isso.— Ele era, rapaz — disse Struan. — Mas não defendeu os interesses de seu subordinado. E ele tem medo. Do que, eu não sei. Mas homens assustados são perigosos, e não temos lugar para eles.

— McKay não sofreu nada.

— A primeira norma a ser obedecida por um capitão meu é proteger seu navio. A segunda, seus homens. Assim, eles o protegerão. Pode-se comandar sozinho um navio, mas não se pode operá-lo sozinho.

— Perry não fez nada errado.

— Ele permitiu que a Marinha colocasse McKay sob guarda, contra a lei, por Deus

— disse Struan, com dureza. — Um capitão precisa saber mais do que simplesmente fazer a embarcação navegar, por Deus! Isaac deveria ter enfrentado aquele jovem peralvilho. Mas ele teve medo e abandonou seus homens, numa ocasião importante. Da próxima vez, poderá abandonar o navio. Não vou me arriscar a isso.

— Mas ele está com você há anos. Isso não conta?

— Sim. Isto quer dizer que tivemos sorte por anos. Agora não confio mais nele. Então, agora ele vai embora e não se discute mais o assunto! — Struan abriu a porta da cabina.

Robb estava sentado à escrivaninha, espiando para fora através das escotilhas da proa. Caixas, arcas, roupas e brinquedos de crianças encontravam-se espalhados pelo chão. Sarah, a mulher de Robb, estava meio encolhida numa das cadeiras, cochilando. Era uma mulher pequena, estava grávida e, no sono, seu rosto apresentava-se marcado e cansado. Quando Robb notou Struan, e Culum, tentou sem sucesso forçar um sorriso.

— Olá, Dirk. Culum.

— Olá, Robb. — Struan pensou: “Ele envelheceu dez anos em dois dias.” Sarah acordou, num sobressalto.

— Olá, Dirk. — Levantou-se pesadamente, e se aproximou da porta.

— Olá, Culum.

— Como vai, tia Sarah?

— Cansada, querido. Muito cansada. E detesto estar num navio. Gostaria de tomar um pouco de chá?

— Não, obrigado.

Robb observou Struan, com ansiedade.

— O que posso dizer?

— Nada, Robbie. Eles estão mortos e nós estamos vivos, não podemos fazer mais nada.

— Será, Dirk? — os olhos azuis de Sarah endureceram-se. Ela alisou o cabelo castanho-avermelhado e endireitou o longo vestido verde, com pufes. — Será?

— Sim. Dá licença, Sarah? Preciso falar com Robb.

— Sim, claro. — Ela olhou para o marido e desprezou sua fraqueza. — Estamos de partida, Dirk. Vamos deixar para sempre o Oriente. Já decidi. Dei a Struan e Companhia cinco anos de minha vida e um bebê. Agora, é tempo de ir embora.

— Acho uma boa decisão, Sarah. O Oriente não é lugar para uma família, atualmente. Dentro de um ano, quando Hong Kong estiver construída... bom, então será ótimo.

— Para algumas famílias, talvez, mas não para nós. Não para o meu Roddy, para Karen, Naomi ou Jamie. E nem para mim. Jamais moraremos em Hong Kong. — Ela saiu.

— Você comprou ópio, Robb?

— Comprei um pouco. Gastei todo nosso dinheiro à vista e tomei emprestado cerca de cem mil... não sei a soma exata. Os preços não baixaram muito. Então, bom, eu perdi o interesse.

Então afundamos mais no buraco, pensou Struan.

— Por que a nossa família? É terrível, terrível — disse Robb, com a voz atormentada. — Por que toda nossa família?

Pagode.

Maldito pagode. — Robb olhou para a porta da cabina. — Brock quer ver você, logo que possível.

— Por quê?

— Ele não disse.

Struan sentou-se, afrouxou a bota por um momento e pensou a respeito de Brock. Depois disse:

— Tornei Culum sócio.

— Ótimo — disse Robb. Mas sua voz estava arrasada. Ele ainda olhava para a porta.

— Papai — Culum interveio — quero falar com você a respeito disso.

— Mais tarde, garoto. Robb, existe mais alguma coisa. Estamos diante de problemas graves.

— Há uma coisa que eu preciso dizer imediatamente. — Robb afastou os olhos da porta. — Dirk, vou partir do Oriente com Sarah e as crianças. No próximo navio.

— O quê?

— Jamais serei um tai-pan, e nem quero ser.

— Você vai partir porque Culum é sócio?

— Você me conhece o bastante para saber que não é isso. Você devia ter discutido o assunto comigo, sim, mas não tem importância. Ouero ir embora.

— Por quê?

— Todas as mortes lá em nosso país me fizeram pensar. Sarah tem razão. A vida é breve demais para ficarmos aqui suando e morrendo. Quero alguma paz. E existem mais coisas além do dinheiro. Você pode comprar a minha parte. Quero partir no próximo navio.

— Por quê?

— Estou cansado. Cansado!

— Você é apenas fraco, Robb. Sarah deu em cima de você outra vez, não foi?

— Sim, sou fraco e... sim, ela deu em cima de mim outra vez, mas já decidi. São mortes demais. Em excesso.

— Não posso comprar sua parte. Estamos em bancarrota. — Struan entregou-lhe a carta do banqueiro. Robb leu a carta. Seu rosto envelheceu ainda mais.

— Malditos!

— Sim. Mas isto não muda a situação... continuamos em bancarrota. — Struan enfiou outra vez as botas e se levantou.

— Sinto muito, Culum, a sociedade não tem valor. Houve uma corrida ao nosso banco. O ar na cabina pareceu ficar mais espesso.

— Temos cem mil na Escócia — disse Robb. — Eu fico com a metade e você pega

o resto.

— Obrigado, Robb. Falou como um homem. Robb esmurrou a escrivaninha.

— Não foi minha culpa se o banco fechou as portas!

— Sim. Então não peça metade do nosso dinheiro, quando precisamos de cada centavo.

Você precisará, não eu. Você vai encontrar uma solução, sempre encontra.

— Cinqüenta mil libras não bastarão a Sarah por cinco anos.

— Isso é problema meu! O dinheiro não está nos livros, de maneira que é legalmente nosso. Vou pegar metade. Minha parcela nos negócios vale vinte vezes isso!

— Estamos em bancarrota! Será que não consegue meter isso na cabeça? Bancarrota!

A porta da cabina se abriu e entrou na sala uma menininha de cabelos dourados. Tinha nas mãos uma boneca de palha. Tinha o rosto contraído.

— Olá, paizinho. Olá, tio Dirk. — Ergueu os olhos para Struan. — Eu sou feia? Com um esforço, Struan tirou os olhos de Robb.

— O quê? Karen, minha garotinha.

— Sou feia?

— Não. Não. Claro que não, Karen. — Struan levantou-a do chão. Quem andou dizendo essas coisas terríveis a você, garota?

— A gente estava brincando de escola no Resting Cloud. Foi Lilibet.

— Lilibet Brock?

— Ah, não. Ela é minha melhor amiga. Foi Lilibet Não-Sei-de-Quê.

— Bom, você não é feia. Diga a Lilibet Não-Sei-de-Quê que é falta de educação dizer uma coisa dessas. Você é muito bonita.

— Ah, bom! — Karen sorriu amplamente. — Meu papai sempre me diz que sou bonita, mas eu queria lhe perguntar, porque você sabe. Você sabe tudo. — Ela lhe deu um grande abraço.

— Obrigada, tio Dirk. Agora me ponha no chão. — Ela dançou até a porta. — Estou feliz de não ser feia. Robb se deixou cair em sua cadeira. Afinal, disse:

— Malditos banqueiros. Sinto muito. É minha culpa... e sinto muito. Eu disse... sinto muito.

— Eu também sinto muito, rapaz. Robb tentava inutilmente pensar.

— O que poderemos fazer?

— Não sei. Será que você não pode fazer isso, Robb? Dar-me alguns meses. Enviaremos Sarah e as crianças pelo primeiro navio. Quanto antes, melhor, assim escaparão à temporada dos tufões.

— Talvez eu possa arranjar um empréstimo em algum lugar. Precisamos pagar as letras à vista. Perderemos os navios... tudo.

— Robb forçou a mente a parar de pensar em Sarah. — Mas como, no curto espaço de tempo de que dispomos? — Torceu nervosamente os dedos. — A correspondência chegou ontem. Nada importante para nós. Nenhuma notícia do nosso país. Talvez outros saibam da corrida ao nosso banco. Compramos algumas ações de Brock, para mantê-lo sob vigilância. Talvez ele saiba da corrida ao nosso. Será por isso que ele quer encontrar você?

— Talvez. De qualquer maneira, ele vai colocar a corda em nosso pescoço, e bem colocada, se descobrir. Se é que não foi ele quem começou tudo. Ele comprará nossas letras e nos arruinará.

— Por quê? — perguntou Culum.

— Porque eu o arruinarei, se tiver a mínima chance. Culum teve vontade de perguntar por que, e dizer a eles que também ia voltar para casa no próximo navio. Mas seu pai parecia tão triste e Robb estava tão taciturno. Amanhã ele lhe diria.

— Preciso dormir durante algumas horas — disse Struan. — Vou desembarcar. Você e Sarah voltem para o Resting Cloud, hein? Perry recebeu ordens de ir embora ao entardecer. Eu o demiti.

— Quem vai substituí-lo?

— Não sei — disse Struan, enquanto saía. — Mande um recado para Brock. Irei vê-lo em terra, ao entardecer.


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