LIVRO II

As duas fragatas descarregaram sucessivamente a artilharia no primeiro dos fortes transversais ao Bogue, braço de água de dez milhas que guardava o acesso a Cantão. O Bogue era pesadamente fortificado, com suas altas fortalezas, além de ser também perigosamente estreito na embocadura, e as fragatas pareciam estar em desvantagem suicida. Havia pouco espaço para manobrar e os canhões dos fortes podiam manter facilmente os atacantes a queima-roupa, sob a mira de suas armas, enquanto eles seguiam de um lado para outro, tateando pela correnteza. Mas os canhões eram fixos sobre suas bases, não podendo girar, e séculos de administrações corruptas tinham deixado decair as fortificações. Assim, as inúteis balas de canhão dos fortes passavam a bombordo ou a estibordo das fragatas, sem causar danos.

Cúteres saíram das fragatas e os fuzileiros navais atacaram em terra. Os fortes foram tomados rapidamente e sem perdas, pois os defensores, sabendo-se perdidos, sabiamente se retiraram. Os fuzileiros inutilizaram os canhões e alguns deles ficaram para ocupar os fortes. O restante voltou para bordo, outra vez, e as fragatas se deslocaram para o norte uma milha, ali fazendo sucessivas descargas de artilharia sobre os próximos fortes, que foram tomados com igual facilidade.

Mais tarde, uma frota de juncos e de navios de disparo foi enviada contra eles, mas a frota foi afundada.

As duas fragatas podiam dizimar tantos juncos com essa facilidade por causa de sua potência de fogo superior, e devido ao fato de seu cordame e velas lhes darem velocidade em direção a todos os pontos do compasso, sempre que o vento soprava. Os juncos não podiam virar como uma fragata, e nem seguir a barlavento. Os juncos eram projetados para águas chinesas e ventos da monção, as fragatas para a gritante miséria do Canal Inglês, o Mar do Norte ou o Atlântico, onde a borrasca era um lugar-comum, e a tempestade um estilo de vida.


CAPÍTULO QUINZE

— É como atirar em patos sentados — disse o almirante, com desgosto.

— Sim — disse Struan. — Mas as perdas deles são leves e as nossas insignificantes.

— Uma vitória decisiva, o programa é esse — disse Longstaff.

— É isso que queremos. Horatio, lembre-me de pedir a Aristotle para registrar o ataque ao Bogue hoje.

— Sim, Excelência.

Estavam no tombadilho da nau capitania H.M.S. Vengeance, uma milha à ré das fragatas de tiro. Atrás, estava o corpo principal da força expedicionária. O China Cloud à frente — com May-may e as crianças secretamente a bordo.

— Estamos perdendo terreno, Almirante — disse Longstaff. — Não pode alcançar as fragatas?

O almirante conteve a raiva, esforçando-se para ser polido com Longstaff. Meses sob controle, meses de ordens e contra-ordens e uma guerra desprezível haviam-no deixado nauseado.

— Estamos com uma boa velocidade, senhor.

— Não é verdade. Andamos para a frente e para trás. Uma completa perda de tempo. Mande um sinal para o Nemesis. Ele pode nos rebocar.

— Rebocar minha nau capitania? — berrou o almirante, com o rosto e o pescoço vermelhos. — Aquela porcaria? Rebocar meu navio de linha com 74 canhões? Falou em rebocar?

— Sim, rebocar, meu querido amigo — disse Longstaff — porque assim chegaremos a Cantão bem mais depressa!

— Nunca, por Deus!

— Então, transferirei meu quartel-general para lá! Faça baixar um escaler. É ridículo todo esse ciúme. Um navio é um navio, a vela ou a vapor, e há uma guerra a ser ganha. Você pode vir para bordo quando quiser. Ficarei satisfeito se me acompanhar, Dirk. Vamos, Horatio.

Longstaff saiu pisando forte, exasperado com o almirante e suas atitudes insanas, com a disputa entre o Exército e a Marinha: disputa sobre quem estava no comando, quem tinha os pontos de vista mais respeitados, quem escolhia primeiro o espaço para querenagem ou para alojamento em Hong Kong, sé a guerra era marítima ou terrestre, e quem tinha a preferência, diante de quem. E ele estava ainda secretamente irritado com aquele demoniozinho esperto, Culum, que o enganara, fazendo-o vender o outeiro do Tai-Pan, na crença de que o Tai-Pan já aprovara a idéia — e assim colocara em risco a boa relação que construíra tão cuidadosamente com o perigoso Tai-Pan no curso de tantos anos, fazendo-o dobrar-se aos seus objetivos.

E Longstaff estava cansado de tentar estabelecer uma colônia, e cansado de receber pedidos e de ser injuriado, preso na armadilha da sórdida competição entre os negociantes. E estava furioso com os chineses, por ousarem repudiar o maravilhoso tratado que ele, e só ele, magnanimamente lhes oferecera. Diabo, pensou, aqui estou eu, carregando o peso da Ásia inteira em minhas costas, tomando todas as decisões, impedindo que se matem uns aos outros, travando uma guerra pela glória da Inglaterra, salvando seu comércio, por Deus, e que agradecimentos recebo? Deveria ter sido nomeado cavaleiro há anos! Depois, sua ira diminuiu, pois sabia que logo a Ásia se estabilizaria e, da segura colônia de Hong Kong, o poder britânico se disseminaria. Segundo a livre vontade do governador. Os governadores são nomeados cavaleiros. Sir William Longstaff — isto soava muito bem. E, como os governadores coloniais são comandantes-chefes de todas as forças coloniais, oficialmente, e, de acordo com a lei, legisladores — e representantes diretos da rainha — então ele podia cuidar dos almirantes e generais parlapatões arbitrariamente, e sem pressa. Malditos sejam todos eles, pensou, e se sentiu mais feliz.

Então Longstaff foi para bordo do Nemesis.

Struan foi com ele. Navio a vapor ou não, chegaria a Cantão primeiro.

Dentro de cinco dias, a esquadra estava ancorada em Whampoa, deixando atrás o rio dominado e seguro. Uma delegação de mercadores da Co-hong, enviada pelo novo vice-rei, Ching-so, chegou imediatamente para negociar. Mas, por sugestão de Struan, a delegação foi mandada embora sem ser recebida e, no dia seguinte, a Colônia foi novamente ocupada.

Quando os negociantes desembarcaram e chegaram à Colônia, seus antigos criados estavam esperando nas portas da frente de suas feitorias. Era como se a Colônia jamais tivesse sido abandonada. Nada fora tocado, na ausência deles. Nada estava faltando.

A praça foi destinada para as tendas de um destacamento dos militares, e Longstaff instalou seu quartel-general na feitoria da Casa Nobre. Outra delegação de mercadores da Co-hong chegou e foi mais uma vez mandada embora, como antes, enquanto laboriosos e elaborados preparativos começavam abertamente a envolver Cantão.

Dia e noite a Rua Hog e a Rua da Décima Terceira Feitoria eram ocupadas por uma multidão empenhada em comprar, vender, brigar e roubar. Floresciam os bordéis e as tavernas. Muitos homens morriam por bebedeira e alguns tinham as gargantas cortadas, enquanto outros, simplesmente, desapareciam. Os lojistas disputavam o espaço e os preços subiam ou caíam, mas mantendo sempre o nível máximo que o mercado podia suportar.

Novamente uma delegação procurou ser atendida por Longstaff, e mais uma vez Struan dominou Longstaff e ela foi mandada embora. Os.navios de linha se instalaram transversalmente no Rio Pérola e o Nemesis fumegava, calmamente, de um lado para outro, deixando o horror em sua esteira. Mas os juncos e as sampanas continuavam a fazer seu comércio pelo rio afora. O chá e a seda da temporada vinham do interior e entupiam os armazéns da Co-hong, que marginavam o rio.

Então Jin-qua chegou, à noite. Em segredo.

— Olá, Tai-Pan — disse ele, ao entrar na sala de jantar particular de Struan, carregado por seus escravos pessoais. — É bom vê-lo diante de mim. Por que não foi me visitar?

Os escravos o ajudaram a se sentar, curvaram-se e, depois, partiram. O ancião parecia mais velho do que nunca, com a pele mais enrugada. Mas seus olhos eram jovens e muito sábios. Usava uma túnica longa, azul-clara, calças de seda azul e sandálias macias nos pés pequenos. Um casaco leve de seda acolchoada protegia-o da umidade e do frio da noite de primavera. E, na cabeça, tinha um chapéu de muitas cores.

— Olá, Jin-qua. Mandarim Longstaff ficou aborrecido. Não quer que Tai-Pan veja amigo. Ayeee yah! Chá?

Struan deliberadamente recebera-o em mangas de camisa, pois queria que Jin-qua soubesse imediatamente, como estava muito zangado por causa da moeda de Wu Fang Choi. O chá foi servido e apareceram criados carregando bandejas com manjares que Struan encomendara especialmente.

Struan serviu Jin-qua e a si mesmo, com alguns dim sum.

— Comida muito boa — disse Jin-qua, sentado em sua cadeira, muito teso.

— Comida muito ruim — disse Struan, em tom de quem se desculpa, sabendo que era a melhor de Cantão. Um criado entrou com carvão e colocou-o no fogo, acrescentando alguns pauzinhos de madeira odorífera. O agradável perfume da madeira encheu o pequeno aposento.

Jin-qua comia os dim sum fastidiosamente, e bebia o vinho chinês, que estava aquecido — como todos os vinhos chineses — para se ajustar à temperatura correta. Ele se sentiu animado com o vinho e, ainda mais, com o conhecimento de que seu protegido Struan comportava-se perfeitamente, como faria um sutil adversário chinês. Servindo dim sum à noite, quando a tradição ditava que deviam ser comidos apenas no começo da tarde, Struan não apenas indicava com mais ênfase seu desagrado, mas o testava para ver’ quanto saberia do encontro de Struan com Wu Kwok.

E, embora Jin-qua tivesse ficado encantado com o fato de seu treinamento — ou antes, o treinamento oferecido por sua neta, Tchung May-may — estar dando frutos tão delicados, ele se sentiu atormentado por vagos pressentimentos. É o risco infinito que se corre, disse a si mesmo, quando se treina um bárbaro nos costumes civilizados. O estudante pode aprender bem demais e, antes de se perceber como, já dominou o professor. Tenha cuidado.

Então, Jin-qua não fez o que pretendia fazer: escolher o menor dos pastéis cozidos com recheio de camarão e oferecê-lo no meio do ar, repetindo o que Struan fizera no navio de Wu Kwok, gesto que teria indicado, com suprema sutileza, que ele sabia de tudo que acontecera na cabine de Wu Kwok. Em vez disso, pegou um dos pastéis fritos e colocou-o em seu próprio prato, comendo-o em seguida, placidamente. Sabia que era muito mais sábio, no momento, esconder o conhecimento. Mais tarde, se quisesse, poderia ajudar o Tai-Pan a evitar o perigo em que se encontrava e lhe mostrar como poderia evitar o desastre.

Enquanto mastigava o dim sum, refletiu sobre a profunda estupidez dos mandarins e dos manchus. Tolos! Desprezíveis comedores de esterco, filhos sem mãe idiotas! Que seus pênis encolham e suas tripas se encham de vermes!

Tudo fora planejado e executado tão engenhosamente, ele pensou. Manobramos os bárbaros para fazê-los entrar numa guerra — no lugar e ocasião de nossa própria escolha

— que resolveria seus problemas econômicos, mas não nos levaria, derrotados, a conceder nada importante. O comércio continuaria como antes, em Cantão apenas, e assim o Médio Reinado estaria ainda protegido dos bárbaros europeus invasores. E concederíamos apenas uma ilha fedorenta e cheia de moscas da qual, mal o primeiro cule pôs o pé em terra, já tínhamos começado a nos retirar.

E Jin-qua considerou a perfeição do esquema, que explorara a cobiça do imperador e seu temor de Ti-sen já ser uma ameaça ao trono, e fizera o imperador destruir seu próprio parente. Uma piada divina! Ti-sen ficara maravilhosamente preso na armadilha, e fora escolhido de maneira tão inteligente, e com tanta antecipação. O instrumento ideal para salvar o prestígio do imperador e da China. Mas, depois de anos de planejamento e paciência, e uma completa vitória sobre os inimigos do Médio Reinado, aquele filho da mãe — o imperador — tivera a fantástica e incrível estupidez de repudiar o tratado perfeito!Agora, os bárbaros ingleses estão zangados, e com razão. Eles perderam prestígio diante de sua demoníaca rainha e seus íntimos patetas. E agora teremos de começar tudo outra vez, e o antigo objetivo do Médio Reinado — de civilizar as áreas bárbaras da terra, de tirá-las da escuridão e trazê-las para a luz, com o mundo inteiro sob um só governo — terá de ser adiado.

Jin-qua não se importava de começar outra vez, porque sabia que o tempo eram séculos. Ficara só um pouco irritado pelo recuo desnecessário no tempo e pelo fato de ter sido desperdiçada uma soberba oportunidade.

Primeiro Cantão, ele disse a si próprio. Primeiro, nossa amada Cantão precisa ser resgatada. Qual será a soma mínima que poderei combinar? O mínimo?

Struan fervia. Esperava que Jin-qua pegasse um dos pastéis com recheio de camarão e lhe oferecesse, no meio do ar. Isto significa que ele não sabe. ainda que Wu Kwok entregou a primeira moeda? Claro que percebe a significação dos dim sum, não? Cuidado, rapazinho.

— Muitos navios atirando, hein? — falou Jin-qua, afinal.

— Longstaff tem muito mais, pode ter certeza. É muito ruim quando mandarim fica zangado.

Ayeee yah — disse Jin-qua. — Mandarim Ching-so ficou muito zangado. Imperador diz que todos são como Ti-sen. — Passou o dedo de um lado para outro da garganta e riu – Phfft! Quando Longstaff não vai embora, fica guerreando... não tem comércio.

— Faz guerra, toma comércio. Longstaff está muito zangado.

— Quantos taéis ajudam fazer passar zanga, hein? — Jin-qua colocou as mãos nas mangas de seu casaco de seda verde, recostou-se e ficou esperando, pacientemente.

— Não sei. Talvez cem laques.

Jin-qua sabia que os cem poderiam ser reduzidos, amigavelmente, para cinqüenta. E cinqüenta laques por Cantão não era uma soma exagerada, quando a cidade se encontrava indefesa. Mesmo assim, fingiu horror. Depois, ouviu Struan dizer:

— Acrescente cem laques. De impostos.

— Acrescente cem o quê? — disse ele, com horror verdadeiro.

— Meus impostos — disse Struan, asperamente. — Não gosto de soma oferecida por cabeça de mulher escrava minha, de crianças minhas. Mandarim Ching-so muito ruim.

— Impostos sobre cabeça de crianças? Ayeee Yah! Maldito mandarim foi muito ruim, muito! — disse Jin-qua, fingindo pasmo.

Ele agradeceu ao seu pagode por já ter ouvido falar na recompensa e acertado a questão rápida e corretamente, tendo mandado notícia a respeito, por um intermediário, para a prostituta inglesa — e, assim, para Struan — pensando na eventualidade de alguém tentar receber a recompensa por May-may e as crianças, antes de estarem em segurança.

— Jin-qua ajeita! Não se preocupe, hein? Jin-qua ajeita para o amigo, dentro de poucos dias. Mandarim Ching-so muito malvado. Ruim, ruim, ruim.

— Muito ruim — disse Struan. — Difícil acertar, talvez, pode custar muitos loques.

Então, não acrescente cem loques. Acrescente duzentos!

— Jin-qua acerta para o amigo — disse Jin-qua, tranqüilizadoramente. — Não acrescente um, não acrescente dois! Acerto tudo depressa, depressa. — Sorriu, feliz, com a perfeita solução que já encontrara.

— Muito fácil. Pus outros nomes na lista de Ching-so. Mulher do Senhor de Um Olho Só e duas filhas.

— O quê? — explodiu Struan.

— O que tem de ruim, hein?

Qual a importância disso, ficou pensando Jin-qua. Conseguira uma troca simples — uma mulher bárbara sem valor e duas meninas sem valor, pertencentes ao homem empenhado em destruir Struan, em troca da segurança da família deste. O que havia de errado nisso? Como é possível entender o pensamento dos bárbaros?

Pelo amor de Deus, estava pensando Struan, como é possível entender esses demônios pagãos?

— Não gosto da lista — disse. — Nenhum filho meu, nenhum filho de Demônio de Um Olho Só, nenhum filho de ninguém. É muito ruim.

O seqüestro, sem dúvida, é muito, muito terrível, pensou Jin-qua, concordando, pois temia constantemente que ele ou seus filhos fossem seqüestrados e mantidos presos, em troca de resgate. Mas alguns nomes têm de ir na lista, em substituição. Quais?

— Jin-qua não põe meninas na lista, não se preocupe. Eu ajeito. Não se preocupe, hein? Struan disse:

— Acrescente duzentos impostos meus, de qualquer jeito. Jin-qua bebia seu chá.

— Amanhã Co-hong fala Longstaff, pode?

— Ching-so pode.

— Ching-so e Co-hong, hein?

— Amanhã Ching-so pode. Dia seguinte Co-hong pode. Discutam quantos taéis. Enquanto discutem, compramos e vendemos chá como sempre.

— Quando a discussão terminar, o comércio pode ser feito.— Comércio como sempre. Jin-qua discutiu, implorou, arrancou os cabelos e, finalmente, concordou. Já obtivera o acordo de Ching-so para começar a negociar imediatamente e entregara metade da soma combinada de impostos — a outra metade deveria ser paga dentro de seis meses. E já sugerira o artifício para salvar o prestígio que Ching-so usaria, a fim de se proteger da ira do imperador, por desobedecer ordens: as negociações seriam retardadas até o último navio estar cheio de chá, e já pago o último tael em barras de prata, ocasião em que Ching-so cairia sobre a Colônia, incendiando-a e pilhando-a, enviando em seguida navios armados contra as embarcações mercantes dos bárbaros, para expulsá-las do Rio Pérola. As transações comerciais envolveriam os bárbaros num falso senso de segurança e dariam tempo para que chegassem os reforços chineses, obviamente necessários. Assim, os bárbaros ficariam indefesos e Ching-so obteria uma grande vitória.

Jin-qua maravilhava-se com a beleza do plano. Pois sabia que os bárbaros não estariam indefesos. E a queima e o saque da Colônia os deixariam furiosos. Imediatamente, navegariam para o norte de Cantão e atacariam outra vez Pei Ho, portão de Pequim. E, no instante em que a frota aparecesse em Pei Ho, o imperador pediria paz outra vez, e o tratado seria colocado novamente em vigor. O tratado perfeito. Assim seria, porque o Tai-Pan queria o tratado perfeito. E “Pênis Óbvio”(Trocadilho com o nome de Longstaff

— NT) era apenas o cão do Tai-Pan.

Assim eu evito ter de resgatar nossa amada Cantão agora, evito pagar a outra metade dos impostos, porque claro que Ching-so e sua família estarão enfiados em esquifes, debaixo da terra, o lugar que lhes cabe — e que aquele odioso avarento fuquienês fique impotente, nos poucos últimos meses que lhe restam de vida! O “resgate” terá de ser pago para acalmar o imperador agora, e os bárbaros, mais tarde, tirarão o dinheiro do lucro do chá, da seda e do ópio da temporada. E deixarão atrás de si bastante lucro. Como a vida é maravilhosa e excitante!

— Não se preocupe com as crianças, hein? Jin-qua ajeita.

Struan levantou-se.

— Acrescente duzentos impostos meus. — E prosseguiu, com voz doce: — Jin-qua diz a Ching-so: “Toque num só fio de cabelo de filho meu, e Tai-Pan leva dragão marinho que cospe fogo. E ele engolirá Cantão, pode ter certeza.

Jin-qua sorriu, mas estremeceu, diante da ameaça. Praguejou durante todo o caminho de volta para casa. Agora, terei de empregar mais espiões e mais guardas, e gastar mais dinheiro, para proteger os filhos de Struan, não só contra os malditos e óbvios seqüestradores, mas também contra qualquer vagabundo que pensar, estupidamente, que pode ganhar um dólar fácil. Que inferno, que inferno, que inferno!

Ao chegar na segurança de seu lar, ele chutou sua concubina favorita e mandou colocar instrumentos de tortura nos polegares de duas escravas, sentindo-se, com isso, muito melhor. Mais tarde, escapuliu de casa e foi a um local secreto de encontro onde vestiu os trajes cerimoniais escarlates de seu posto. Ele era o Tai Shan Chu — Líder Supremo da Hung Mun Tong no sul da China. Ouviu de líderes de escalão inferior da Tong o primeiro relatório sobre a recém-formada sede em Hong Kong. E confirmou Gordon Chen como seu líder.

***

Então, para completa satisfação e alívio dos negociantes chineses e dos mercadores, começaram as transações comerciais. Todos os soldados, com exceção de uma força simbólica de cinqüenta homens, foram enviados de volta a Hong Kong. A frota voltou para o porto de partida, em Hong Kong. Mas o H.M.S. Nemesis continuou a patrulhar o rio, supervisionando os acessos a Cantão e mapeando todos os cursos da água que encontrou.

E a Colônia, e as vias marítimas em Whampoa, explodiram, com a frenética competição, noite e dia. Os navios mercantes tiveram de ser preparados para os delicados chás: tiveram os porões pintados de novo e o fundo do casco limpo e higienizado. Era preciso encontrar provisões para a viagem de volta. Tornava-se necessário fazer a separação do espaço para a carga.

Os negociantes que não possuíam navios próprios — e havia muitos deles — caíram sobre os proprietários de embarcações e lutaram por bons espaços para carga nas melhores delas. Preços exorbitantes pelos fretes foram cobrados, e alegremente pagos.

A Casa Nobre e Brock e Filhos haviam sempre comprado chá, seda e especiarias por conta própria. Mas, sendo sagazes, os Struans e Brocks também transportavam carga para outros, e agiam não só como expedidores, mas também como corretores, banqueiros e agentes comerciais, em viagens de volta à Inglaterra, ou de lá procedentes. Nestas, transportavam carga para outrem — produtos do algodão, fio e fibra de algodão principalmente, mas também tudo o que produzia o poder industrial da Inglaterra, e qualquer coisa julgada vendável por um negociante. Algumas vezes, navios de outras companhias inglesas lhes eram consignados, e eles aceitavam a responsabilidade de vender sua carga, fosse qual fosse, em comissão, na Ásia, e de encontrar uma carga para a viagem de volta, ainda em comissão. Em viagens de vinda, a única carga que os Struans e Brocks compravam era ópio, canhões, pólvora e metralha.

As barras de prata começaram a mudar de mãos, e Struan e Brock ganharam pequenas fortunas, fornecendo dinheiro à vista a outros negociantes e recebendo títulos bancários em Londres. Mas o dinheiro à vista só era entregue quando um navio e sua carga passavam a salvo pelo Bogue, permanecendo um dia em mar aberto.

Aquele ano, Struan passara por cima de Robb e mantivera todo o espaço de carga do Blue Cloud só para a Casa Nobre e todo o chá e a seda só para a casa. Quatrocentos e cinqüenta e nove mil libras de chá, cuidadosamente acondicionadas em caixas de cinqüenta libras, revestidas com cedro, e cinco mil e quinhentos fardos de seda começaram a encher os porões do Blue Cloud, interminavelmente: seiscentas mil libras esterlinas, caso fossem entregues em segurança na cidade de Londres, chegando primeiro; cento e sessenta mil libras de lucro, se o navio tivesse a dianteira.

E, aquele ano, Brock conservara toda a carga do Gray Witch. Deveria transportar meio milhão de libras de chá e quatro mil fardos de seda. Como Struan, Brock sabia que não dormiria bem até o paquete com a correspondência, dali a seis meses, trazer a notícia de que o navio chegara a salvo — e a venda fora tranqüila.

***

Longstaff estava coroado de orgulho por ter, sozinho, reaberto o comércio tão facilmente, e levado o Vice-rei Ching-so em pessoa à mesa de negociações.

— Mas, meu querido almirante, para que eu mandei embora três delegações, ora? Uma questão de prestígio. É preciso entender a mentalidade dos pagãos, com relação ao prestígio. Negociações e comércio, quase sem disparar um tiro! E o comércio, meu caro senhor, o comércio é o sangue necessário à vida da Inglaterra.

Ele cancelou o sítio a Cantão, o que eufureceu ainda mais o Exército e a Marinha. E repetiu o que Struan lhe advertira, e que ele, Longstaff, já dissera:

— Devemos ser magnânimos, senhores, para com os derrotados. E proteger os fracos. O comércio da Inglaterra não pode nadar no sangue dos indefesos, não é? As negociações serão encerradas em poucos dias e a Ásia estará estabilizada, de uma vez por todas.Mas as negociações não foram concluídas. Struan sabia que não poderia haver conclusão alguma em Cantão. Só em Pequim, ou no portão de Pequim. E ele ainda não queria conclusão alguma. Só comércio. A única coisa vital era conseguir o chá e a seda da temporada e vender o ópio. Com os lucros do ano de comércio, todas as casas de negócio se compensariam das perdas. O lucro os encorajaria a se sustentarem por mais um ano e se expandirem. O único lugar para esta expansão era Hong Kong. Lucros e comércio comprariam um tempo vital. Tempo para construir armazéns e docas e lares, na ilha que lhes servia como refúgio. Tempo até os ventos de verão tornarem outra vez possível o ataque ao norte. Tempo para suportar qualquer tempestade, até a próxima estação de comércio, no ano seguinte. Tempo e dinheiro para tornar Hong Kong segura — e transformá-la no degrau de acesso à Ásia.

Então Struan acalmou a impaciência de Longstaff, manteve as negociações em fogo brando e entrou em forte competição com Brock pelos melhores chás e sedas e os negócios mais convenientes de transporte de carga. Dezoito clíperes tinham de ser carregados e despachados. Era preciso lidar com dezoito tripulações e capitães.

Brock deu partida primeiro ao Gray Witch, e o navio rompeu as águas com os porões lotados. A última portinhola do Blue Cloud foi fechada um dia e meio mais tarde, e a embarcação saiu em perseguição à outra. Começava a corrida.

Gorth arengou e esbravejou, porque seu navio fora com um novo capitão, mas Brock mostrou-se inflexível. “Não será bom, com seu ferimento, e precisamos de você aqui.” Então Gorth, outra vez, faz planos para quando fosse o Tai-Pan. O Tai-Pan, por Deus. Ele voltou para bordo do Nemesis. Desde que o navio chegara ao porto passava todos os momentos livres dentro dele, aprendendo como pilotá-lo, como combatê-lo, o que faria a embarcação, e o que não faria. Pois sabia, como seu pai, que o Nemesis representava a morte da vela — e, com pagode, a morte da Casa Nobre. Ambos sabiam do horror de Struan aos vapores e, embora percebessem que a transição da vela para o vapor seria arriscada, decidiram apostar no futuro. O mesmo vento e a mesma maré que o Nemesis vencera, ao vir até o porto de Hong Kong, mais tarde levara o paquete de correspondência de volta para Inglaterra. Nele havia uma carta de Brock para seu filho Morgan. A carta cancelava a encomenda de dois clíperes, substituídos pelas duas primeiras quilhas da nova linha a vapor de Brock e Filhos. A Orient Queen Line.

***

— Tai-Pan — disse May-may, na escuridão de seu quarto de dormir, e no conforto de sua cama. — posso voltar a Macau? Por alguns dias? Levarei as crianças comigo.

— Você está cansada da Colônia?

— Não. Mas é difícil aqui, sem todas as roupas e brinquedos das crianças. Só por alguns poucos dias, está bem?

— Eu já lhe falei das recompensas e eu...

Ela calou suas palavras com um beijo e se aproximou mais do seu calor.

— Você tem um cheiro tão bom.

— E você também.

— Aquela Marry Sin-clair. Gostei dela.

— Ela... ela tem muita coragem.

— Foi estranho você mandar uma mulher. Não parece coisa sua.

— Não havia tempo para mandar outra pessoa.

— O cantonês e o mandarim que ela fala são fantasticamente bons.

— Isso é um segredo. Você não deve contar a ninguém.

— Claro, Tai-Pan.

A escuridão se tornou mais densa em torno de ambos e eles permaneceram perdidos em seus pensamentos.

— Você sempre dormiu sem roupa? — ela perguntou.

— Sim.

— Como não sente frio?

— Não sei. A Alta Escócia é mais fria do que aqui. Em menino, eu era muito pobre. Ela sorriu.

— Gosto de pensar em você menino. Mas você não é pobre, agora. E duas das três coisas estão realizadas. Não estão?

— Que coisas? — ele perguntou, consciente do perfume dela e do contato da seda que a envolvia.

— A primeira era pegar as barras de prata, lembra-se? A segunda, chegar a salvo em Hong Kong. Qual era a terceira?

Ela se virou de lado, movimentou uma das pernas por sobre as dele e ficou imóvel. Ele sentiu o contato da perna dela através da seda e esperou, com a garganta seca.

— Hong Kong ainda não está segura — disse ele.

A mão dela começou a se mover sobre ele.

— Com o comércio deste ano, não estará? Então, a segunda logo se cumprirá.

— Com pagode.

A mão dele começou a abrir a camisola dela, sem pressa, e sua mão começou a se mover sobre May-may. Ela ajudou-o a tirar a camisola e acendeu a vela, afastando os lençóis de seda. Olhou para ela, maravilhado — sua suave luminosidade, como porcelana em fusão.

— É excitante... você olhar para mim, e eu saber que lhe agrado — disse ela. E então eles fizeram amor, sem pressa. Mais tarde ela disse:

— Quando você volta para Hong Kong?

— Dentro de dez dias. — Dez dias, pensou ele. Então, haverá a escolha dos homens de Wu Kwok em Aberdeen e, na noite seguinte, o baile.

— Eu irei com você?

— Sim.

— A nova casa estará pronta, então?

— Sim. E você estará segura lá. — O braço dele repousava sobre o dorso dela e ele passou a ponta da língua sobre sua face e até o pescoço.

— Será bom viver em Hong Kong. Então eu poderei ver mais o meu professor. Há meses não tenho uma boa conversa com Gordon. Quem sabe não poderemos ter aulas semanais outra vez? Preciso aprender mais palavras, e melhores. Como está ele?

— Muito bem. Eu o vi pouco antes de partir. Depois de uma pausa, ela disse, gentilmente:

— Não é bom ter brigas com seu filho número um.

— Eu sei.

— Queimei três velas para que sua raiva voe para Java e você o perdoe. Quando você o perdoar, eu gostaria de conhecê-lo.

— Isto acontecerá, no devido tempo.

— Posso ir a Macau, antes de Hong Kong? Por favor. Eu seria muito cuidadosa. Deixaria as crianças aqui. Estariam seguras aqui.

— Por que Macau é tão importante?

— Preciso de algumas coisas e... tenho um segredo, um bom segredo, uma surpresa. Só uns poucos dias? Por favor. Você poderia mandar Mauss e alguns homens, se quiser.

— É perigoso demais.

— Não é perigoso agora — disse May-may, sabendo que seus nomes estavam fora da lista e cheia de pasmo, outra vez, por Struan não ter batido palmas, encantado, como ela fizera, quando ele lhe contara sobre a solução de Jin-qua para a lista. Ayeee yah, pensou ela, os europeus são muito estranhos. Muito. — Não há perigo agora. Mesmo assim, eu serei muito cuidadosa.

— O que é tão importante? Qual é o segredo?

— É uma surpresa. Eu lhe direi, muito em breve. Mas é segredo agora.

— Vou pensar a respeito. Agora, durma.

May-may relaxou, contente, sabendo que, em poucos dias, iria para Macau, sabendo que há muitas maneiras de uma mulher conseguir o que quer com seu homem — bom ou ruim, inteligente ou estúpido, forte ou fraco. Meu vestido de baile será o melhor de todos, ela disse a si mesma, cheia de excitação. Meu.Tai-Pan ficará orgulhoso de mim. Orgulhosíssimo. Orgulhoso o bastante para se casar comigo e fazer de mim a Suprema Senhora.

E seu último pensamento, antes que o doce sono a dominasse, foi sobre a criança que germinava em seu útero. Com apenas algumas semanas. Meu filho será homem, prometeu a si mesma. Um filho, para ele se orgulhar. Duas maravilhosas surpresas, para ele se orgulhar.

***

— Não entendo, Vargas — disse Struan, mal-humorado. — É melhor você tratar disso com Robb. Ele conhece as cifras melhor do que eu.

Os dois estavam no escritório particular de Struan, estudando o livro-mestre de escrituração. As janelas do escritório estavam abertas para o burburinho de Cantão e as moscas pululavam. Era um dia quente de primavera e o mau cheiro já aumentara consideravelmente, em comparação com seu baixo nível do inverno.

— Jin-qua está muito ansioso para receber o nosso pedido final, senhor, e...

— Eu sei disso. Mas até ele nos dar seu pedido final de ópio, não poderemos fazer isso com exatidão. Estamos oferecendo o melhor preço para o chá e o melhor para o ópio, então qual o motivo da demora?

— Não sei, senhor — disse Vargas. Ele não perguntou, como gostaria de ter feito, por que a Casa Nobre estava pagando dez por cento mais para o chá de Jin-qua, em comparação com o dos outros comerciantes, e vendendo o melhor ópio indiano Padwa para Jin-qua a dez por cento menos do que o preço corrente do mercado.

— Com mil demônios! — disse Struan.

Ele se serviu de um pouco de chá. Desejaria não ter permitido a May-may ir para Macau. Ele mandara com ela Ah Sam, Mauss e alguns de seus homens, para vigiá-los. Ela deveria ter voltado ontem, mas ainda não retornara. Claro que o fato não era incomum — o tempo necessário para a travessia de Macau à Colônia de Cantão não poderia jamais ser avaliado com precisão.E nem o de nenhuma viagem marítima. Tudo depende do vento, ele pensou, sardonicamente. Se ela estivesse num vapor fedorento, então seria diferente. Os vapores podem cumprir programas e esquecer ventos e marés, malditos sejam.

— Sim — ele respondeu, com rispidez, a uma batida na porta.

— Desculpe-me, Sr. Struan — disse Horatio, abrindo a porta. — Sua Excelência gostaria que o visitasse.

— O que há de errado?

— Talvez Sua Excelência queira dizer-lhe ele próprio, senhor. Está em seus alojamentos. Struan fechou o livro de escrituração.

— Vamos tratar disso com Robb, logo que voltarmos, Vargas. Você vai ao baile?

— Eu não teria paz nos próximos dez anos, senhor, se minha senhora, meu filho e minha filha mais velha não fossem.

— Vai buscá-los em Macau?

— Não, senhor. Irão para Hong Kong acompanhados por amigos. Eu irei diretamente daqui.

— Logo que Mauss voltar, mande-me notícia. — Struan saiu e Horatio acompanhou-o.

— Não posso agradecer-lhe suficientemente, Sr. Struan, pelo presente a Mary.

— O quê?

— O vestido de baile, senhor.

— Ah. Já viu o vestido que ela mandou fazer?

— Ah, não, senhor. Ela partiu para Macau no dia seguinte à venda de terras. Recebi uma carta sua ontem. Ela lhe manda os melhores votos.

Horatio sabia que o presente do vestido dava a Mary uma oportunidade muito boa de ganhar o prêmio. Embora existisse Shevaun. Se, pelo menos, Shevaun adoecesse! Nada sério, só para afastá-la, no dia. Então, Mary poderia ganhar os mil guinéus. Com esse dinheiro, eles poderiam fazer coisas maravilhosas! Voltar para sua terra, a fim de passar aquela estação. Viver esplendidamente. Ah, Deus, fazei com que ela ganhe o prêmio! Estou satisfeito por ela se encontrar fora de Hong Kong, enquanto eu estou aqui, disse a si mesmo. Assim fica fora do alcance de Glessing. Maldito. Fico imaginando se ele realmente pedirá a mão dela! Que topete! Ele e Culum... ah, Culum... pobre Culum.

Horatio permaneceu um passo atrás de Struan, enquanto subiam as escadas, de modo que não precisou esconder sua inquietação. Pobre, bravo Culum. Ele se lembrou de como Culum estava estranho, no dia seguinte à venda de terras. Ele e Mary procuraram e o encontraram a bordo do Resting Cloud. Culum os convidara para jantar e, toda vez que ele tentava levar a conversa para o Tai-Pan, esperando fazer as pazes entre eles, Culum mudava de assunto. Então, finalmente, Culum dissera:

— Vamos esquecer meu pai? Eu esqueci.

— Você não deve, Culum — dissera Mary. — Ele é um homem maravilhoso.

— Somos inimigos agora, Mary, por pior que isto seja. Não creio que ele vá mudar e, até ele mudar, eu não mudarei.

Pobre, bravo Culum, Horatio pensou. Eu sei o que é odiar um pai.

— Tai-Pan — ele disse, ao chegarem ao cais. — Mary e eu sentimos terrivelmente o

que aconteceu com relação ao outeiro. Mas ainda sentimos mais o que aconteceu entre o senhor e Culum. Culum, bom, tornou-se um grande amigo e...

— Obrigado pelo pensamento, Horatio, mas eu ficaria satisfeito se você não se referisse outra vez ao assunto.

Horatio e Struan atravessaram o cais em silêncio e entraram na ante-sala de Longstaff. Era ampla e rica. Um grande candelabro dominava o teto enfeitado e a reluzente mesa de conferências embaixo. Longstaff estava sentado à cabeceira da mesa, tendo ao lado o Almirante e o General Lord Rutledge-Cornhill.

— Bom-dia, senhores.

— É ótimo que tenha vindo unir-se a nós, Dirk — disse Longstaff. — Sente-se, meu querido amigo. Achei que seu conselho seria precioso.

— O que há de errado, Excelência?

— Bom, ah, eu pedi ao Sr. Brock para vir unir-se a nós, também. O assunto pode esperar até ele chegar, pois então não precisarei repetir-me, está bem? Xerez?

— Obrigado.

A porta se abriu e Brock entrou. Sua cautela aumentou quando viu Struan e os resplandecentes oficiais.

— Queria falar comigo, Excelência?

— Sim. Sente-se, por favor.

Brock fez um cumprimento de cabeça para Struan.

— Bom-dia, Dirk. Bom-dia, cavalheiros — acrescentou, sabendo que enfureceria ogeneral. Ficou sombriamente divertido com os acenos frios de cabeça que recebeu de volta.

— Chamei os dois para se unirem a nós — começou Longstaff — bom, além do fato de serem os líderes dos negociantes, não?... bom, seu conselho seria valioso. Parece que um grupo de anarquistas se estabeleceu em Hong Kong.

— O quê? — exclamou o general.

— Ora essa! — disse Brock, igualmente surpreso.

— Desprezíveis anarquistas, pode imaginar isso? Parece que mesmo os pagãos estão contaminados por esses demônios. Sim, se não tivermos cuidado, Hong Kong se tornará um foco. Que aborrecimento, não?

— Que tipo de anarquistas? — perguntou Struan. Anarquistas representavam problemas. E problemas interferiam no comércio.

— Essa, ah, qual é mesmo o nome, Horatio? Tang? Tung?

— Tong, senhor.

— Bom, essa tal Tong já está operando sob nossos narizes. É terrível.

— Operando em que sentido? — Struan perguntou, com impaciência.

— Talvez seja melhor começar do início, senhor — disse o almirante.

— Boa idéia. No encontro de hoje, o Vice-rei Ching-so estava muito preocupado. Ele disse que as autoridades chinesas tinham acabado de saber que esses anarquistas, uma sociedade secreta, haviam instalado seu quartel-general naquela podre monstruosidade, o Tai Ping Shan. Os anarquistas têm muitos, muitos nomes e eles... bom, é melhor você explicar a eles, Horatio.

— Ching-so disse que esse é um grupo de fanáticos revolucionários, empenhados na derrubada do imperador — começou Horatio. — Ele deu a Sua Excelência meia centena de nomes adotados pela sociedade: Partido Vermelho, Irmandade Vermelha, Sociedade do Céu e da Terra e assim por diante... é quase impossível traduzir alguns dos nomes para o inglês. Alguns a Chamam apenas “Hung Mun”, ou “Hung Tong” — tong significa “irmandade secreta”. — Ele se concentrou. — De qualquer maneira, esses homens são anarquistas do pior tipo. Ladrões, piratas, revolucionários. Há séculos, as autoridades tentam eliminá-los, mas sem sucesso. Segundo se supõe, têm um milhão de membros do sul da China. Possuem sedes próprias e suas cerimônias de iniciação são bárbaras. Eles incentivam a rebelião a qualquer pretexto e se nutrem do medo de seus irmãos. Pedem “dinheiro para proteção”. Toda prostituta, todo camponês, dono de terras ou cule... todos estão sujeitos a lhes pagar impostos. Quando não é pago o imposto, então há mortes e mutilações. Todo membro paga taxas... como um sindicato. Toda vez em que há descontentamento, a Tong incita os descontentes à rebelião. São fanáticos. Estupram, torturam e se espalham como uma epidemia.

— Já tinham ouvido falar nas sociedades secretas chinesas? — perguntou Struan. — Antes de Ching-so falar nisso?

— Não, senhor.— Os anarquistas são demônios, é isso mesmo — disse Brock, cheio de preocupação. — Esse é o tipo de maldade que os chineses apreciam.

Longstaff empurrou uma pequena insígnia vermelha, triangular, através da mesa. Havia nela dois caracteres chineses.

— O vice-rei disse que o triângulo é sempre o símbolo deles. Os caracteres nesta bandeira significam “Hong Kong”. De qualquer jeito, estamos diante de problemas, isto é certo. Ching-so quer mandar soldados para o Tai Ping Shan e passar todo mundo na espada.

— Você não concordou, não é?

— Deus do céu, não. Não toleramos nenhuma interferência em nossa ilha, por Júpiter. Eu lhe disse que não temos nenhum trato com anarquistas sob nossa bandeira e cuidaríamos deles imediatamente, à nossa própria maneira. Agora, o que devemos fazer?

— Expulsar todos os orientais de Hong Kong e acabar com a sociedade — disse o almirante.

— Isso é impossível, senhor — disse Struan. — E não seria vantajoso para nós.

— Sim — disse Brock. — Precisamos de trabalhadores, cules, criados. Precisamos muito deles.

— Há uma solução simples — disse o general, tomando uma pitada de rape. Era um homem taurino, de faces vermelhas, cabelo grisalho, rosto gasto. — Emitir uma ordem no sentido de que todos os integrantes dessa... como a chamou, Tong?... sejam enforcados.

— Ele espirrou. — Cuidarei de executar a ordem.

— Não se pode enforcar um chinês, senhor, só por querer derrubar uma dinastia estrangeira. É contra a lei inglesa — disse Struan.

— Dinastia estrangeira ou não — disse o almirante — instigar a rebelião contra o imperador de uma “potência amiga”... e será amiga muito em breve, por Deus, se pudermos cumprir a missão que nos foi determinada aqui pelo Governo... é contra a lei internacional. E a lei inglesa. Veja aqueles patifes dos cartistas, por Deus.

— Nós não os enforcamos por serem cartistas. Só quando são apanhados em atos de rebeldia ou infringindo a lei; e aí está certo! — Struan franziu a testa para o almirante. — A lei inglesa diz que o homem deve ter liberdade de expressão. E liberdade de associação política.

— Mas não associações que promovem a rebelião! — disse o general. — Você aprova a rebelião contra a autoridade legal?

— Isto é tão ridículo que não vou ter nem a cortesia de responder.

— Senhores, senhores — disse Longstaff. — Claro que não podemos enforcar todos os que forem... seja lá o que for. Mas, do mesmo jeito, não podemos deixar Hong Kong infestada de anarquistas, não é? Ou de malditas idéias sindicalistas.

— Pode ser um truque de Ching-so, para nos colocar sem ação — Struan olhou para Brock. — Já ouviu falar nas tongs?

— Não. Mas estou pensando que, se os Triangs extorquem tributos de todos, então vão extorquir o comércio e logo estarão tirando dinheiro de nós.

O general, com petulância, deu um piparote em alguma poeira inexistente na imaculada túnica escarlate de seu uniforme.

— Isto, obviamente, está na jurisdição dos militares, Excelência. Por que não emitir uma proclamação colocando-os fora da lei? E faremos o resto. Ou seja, aplicaremos as regras que aprendemos na índia. Ofereceremos uma recompensa por qualquer informação. Os nativos estão sempre prontos para vender facções rivais, bastando atirar-lhes uma moeda. Castigaremos a primeira dúzia, para servir de exemplo, e então não mais haverá problemas.

— Não se pode aplicar as regras indianas aqui — disse Struan.

— O senhor não tem experiência em administração, meu caro, então não pode dar nenhuma opinião. Nativos são nativos, e apenas isso. — O general deu uma olhada em Longstaff. — Esta é uma questão simples para os militares, senhor. Como Hong Kong logo será estabilizada como acantonamento militar, ficará em nossa esfera. Emita uma proclamação colocando-os fora da lei e será feita justiça.

O almirante bufou.

— Já disse mil vezes que Hong Kong deveria ficar sob a jurisdição do serviço superior. Se não comandarmos as vias marítimas, Hong Kong estará morta. Portanto, a posição da Marinha é sem paralelo. Isto deveria ficar sob nossa jurisdição.

— Os exércitos decidem as guerras, Almirante... como já disse repetidas vezes. As batalhas terrestres encerram as guerras. A Marinha liquidou as frotas de Bonaparte, é verdade, e fez a França passar fome. Mas, mesmo assim, foi preciso que encerrássemos o conflito, definitivamente. Como fizemos em Waterloo.

— Sem Trafalgar, não haveria nenhum Waterloo.

— Uma questão discutível, meu caro Almirante. Mas, vejamos a Ásia. Logo teremos os franceses, holandeses, espanhóis e russos atrás de nós, disputando nossa justa liderança na área. Sim, você pode dominar as vias marítimas, e graças a Deus que domina, mas, se Hong Kong não for militarmente indestrutível, então a Inglaterra não terá base nem para proteger suas frotas e nem para escapar ao inimigo.— A função principal de Hong Kong, senhor, é como empório comercial para a Ásia — disse Struan.

— Ah, eu entendo a importância do comércio, meu bom homem — disse o general, com impertinência. — Esta é uma discussão a respeito de estratégia e pouco tem a ver com o senhor.

— Se não fosse o comércio — disse Brock, com o rosto vermelho — não haveria razão para a presença de exércitos e frotas.

— Conversa fiada, meu bom homem. Vou lhe mostrar que...

— Estratégia ou não — disse Struan, em voz alta — Hong Kong é uma colônia e deve ficar sob as ordens de um ministro de Relações Exteriores, e isto será decidido pela Coroa. Sua Excelência agiu sabiamente, com relação à questão, e tenho certeza de que ele considera como vitais tanto a Marinha Real como os exércitos da rainha, para o futuro de Hong Kong. Como arsenal da Marinha Real, base militar e empório comercial — ele chutou Brock, disfarçadamente, por baixo da mesa — e como porto livre, o futuro da ilha está garantido.

Brock disfarçou um estremecimento e acrescentou, depressa:

— Ah, sim, na verdade! Um porto livre significa muito dinheiro para a Coroa, realmente. E renda para os melhores arsenais da Marinha e quartéis do mundo inteiro. Sua Excelência tem em seu coração os interesses de todos, cavalheiros. Um porto aberto será vantajoso para todos. Principalmente para a rainha, que Deus a abençoe.

— Tem toda razão, Sr. Brock — disse Longstaff. — Claro que precisamos tanto da Marinha como do Exército. O comércio é sangue vital para a Inglaterra, e o livre comércio será o próximo passo. Interessa a todos nós que Hong Kong prospere.

— Sua Excelência quer abrir a Ásia para todas as nações sem favor — disse Struan, escolhendo cuidadosamente as palavras, — Como isto poderia ser feito de melhor maneira do que com um porto livre? Guardado pelas forças de elite da Coroa.

— Desaprovo deixar os estrangeiros engordarem à nossa custa. — disse o almirante, bruscamente, e Struan sorriu para si mesmo vendo que ele abocanhava a isca. — Travamos guerras e as ganhamos, e temos de travar outras, porque a paz é sempre destruída nas conferências civis. Malditos sejam os estrangeiros, eu digo.

— Um sentimento apreciável, Almirante — disse Longstaff de maneira igualmente brusca — mas não muito prático. E quanto às “conferências civis”, é muito bom que os diplomatas sejam vis tos com pontos de vista amplos. A guerra, afinal, é apenas o braço longo da diplomacia. Quando todo resto falha.

— A “diplomacia” falhou aqui — disse o general — e então quanto mais rápido desembarcarmos forças na China, e implantarmos a lei e a ordem inglesas em toda a terra, melhor.

— A diplomacia não falhou, meu querido General. As negociações prosseguem, cautelosamente, e bem. Ah, por falar nisso, há trezentos milhões de chineses na China.

— Uma baioneta inglesa, senhor, vale mil lanças nativas. Deus do céu, controlamos a Índia com um punhado de homens e podemos fazer a mesma coisa aqui... e veja o benefício que nosso governo na índia trouxe para aqueles selvagens, hein? Vamos mostrar a bandeira em toda sua força, é isso que deve ser feito. Imediatamente.

— A China é uma nação, senhor — disse Struan. — Não dúzias, como acontece na índia. Não se pode aplicar as mesmas normas.

— Sem vias marítimas seguras, o Exército não poderia controlar a índia por uma semana — disse o almirante.

— Ridículo! Ora, poderíamos...

— Senhores, senhores — disse Longstaff, cansado — estamos discutindo os anarquistas. Qual o seu conselho, Almirante?

— Expulsar todos os orientais da ilha. Se querem trabalhadores, escolham mil, ou dois mil... quantos precisarem, na ilha... e excluam todos os outros.

— Senhor?

— Já dei minha opinião, senhor.

— Ah, sim. Sr. Brock?

— Penso como o senhor, Excelência, que Hong Kong é um porto livre e precisamos dos chineses, devemos cuidar nós próprios dos Triangs. Penso como o general... vamos enforcar qualquer desses Triangs que for apanhado instigando a rebelião. E como o almirante... não devemos desejar na ilha nenhuma ação traiçoeira contra o imperador. Sim, vamos declará-los foras-da-lei. E penso como você, Dirk, que não será legal enforcálos, se estiverem agindo de maneira pacífica. Mas, qualquer um que sair da linha e, ao ser preso, for identificado como Triang... então vamos açoitá-lo, marcá-lo a fogo, expulsá-lo para sempre.

— Dirk? — perguntou Longstaff.

— Concordo com o Sr. Brock. Mas nada de açoite e nem de ferro em brasa. Isto pertence à Idade Média.

— Pelo que vi aqui, desses pagãos — disse o general, com desgosto — ainda estão na era do obscurantismo. Claro que têm de ser punidos, caso pertençam a um grupo fora-da-lei. O chicote é uma punição comum. Vamos fixar em cinqüenta chicotadas. E a marca com ferro em brasa na face é um castigo inglês correto e legal, para certos delitos. Vamos marcá-los, também. Mas é melhor enforcar a primeira dúzia que pegarmos, e se evaporarão como dervixes.

— Se os marcarem permanentemente — irrompeu Struan — jamais lhes darão uma oportunidade de se tornarem outra vez bons cidadãos.

— Bons cidadãos não se passam para sociedades secretas anarquistas, meu bom senhor — disse o general. — Mas, na verdade, só um cavalheiro apreciaria o valor desse conselho.

Struan sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.

— Da próxima vez que fizer uma observação como essa, senhor, mandarei alguns padrinhos visitá-lo, e receberá uma bala entre os olhos.

Houve um silêncio horrorizado. Branco de susto, Longstaff deu pancadinhas na mesa.

— Proíbo ambos de continuarem com esse tipo de conversa. É proibido. — Ele puxou seu lenço de renda e enxugou o repentino suor da testa. Tinha a boca seca e amarga.

— Concordo plenamente, Excelência — disse o general. — E sugiro, além disso, que este problema seja decidido apenas pelas autoridades... o senhor, junto com o almirante e eu, deveríamos decidir este tipo de assunto. Não está no domínio dos comerciantes.

— Está tão cheio de vento, senhor General — disse Brock — que se peidasse aqui em Cantão, faria explodir o portão da Torre de Londres!

— Sr. Brock! — começou Longstaff. — O senhor não... O general ficou em pé de um salto.

— Agradeceria, meu bom senhor, se guardasse para si mesmo este tipo de observação.

— Não sou o seu bom senhor. Sou um negociante na China, por Deus, e quanto antes você souber disso, melhor. Acabou para sempre aquele tempo em que as pessoas como eu lambiam o rabo de vocês por causa de uma merda de título concedido, a verdade é esta, primeiro à puta do rei e depois ao bastardo do rei, ou então comprado com uma faca enfiada às costas do rei.

— Por Deus, peço satisfações. Meu padrinhos irão visitá-lo hoje!

— Não farão isso, senhor — disse Longstaff, batendo com a mão espalmada na mesa. — Se houver qualquer problema entre os dois, eu os mandarei de volta para a Inglaterra, sob guarda, e os denunciarei perante o Conselho Privado. Eu sou o plenipotenciário de Sua Majestade na Ásia e eu sou a lei. Por Deus, que coisa inconveniente. Vão pedir desculpas um ao outro! Eu lhes ordeno. Imediatamente.

O almirante escondeu seu divertimento sombrio. Horatio olhou de um rosto para o outro, com descrença. Brock estava consciente de que Longstaff tinha o poder de feri-lo e ele não queria nenhum duelo com o general. E, além disso, estava furioso por ter-se deixado arrastar para uma aberta hostilidade.

— Peço desculpas, senhor. Por chamá-lo de saco de peido.

— E eu peço desculpas porque recebi ordens.

— Acho que vamos encerrar a reunião, neste momento — disse Longstaff, bastante aliviado. — Sim. Obrigado por seus conselhos, cavalheiros. Vamos adiar a decisão. Daremos a todos nós tempo para pensar, hein?

O general colocou seu capacete de pele de urso, fez um cumprimento e se encaminhou para a porta, com as esporas e a espada tilintando.

— Ah, General, a propósito — disse Struan, em tom casual — ouvi dizer que a Marinha desafiou o Exército para uma luta.

O general parou no meio do caminho, com a mão na maçaneta da porta, e se eriçou ao se lembrar das observações que o almirante deliberadamente fizera a respeito de seus soldados.

— Sim. Mas temo que a luta não vá ser grande coisa.

— Por que, General? — perguntou o almirante, irado, lembrando-se das observações que o general deliberadamente fizera a respeito de seus esplêndidos marujos.

— Porque eu acho que nosso homem vai ganhar, senhor. Sem fazer muito esforço.

— Por que não realizam a luta no dia do baile? — sugeriu Struan. — Consideraríamos isto uma honra e ficaríamos satisfeitos em oferecer um prêmio. Digamos, cinqüenta guinéus.

— É muito generoso, Struan, mas não creio que o Exército esteja preparado na ocasião.

— No dia do baile, por Deus — disse o general, escarlate. — Cem guinéus para nosso homem!

— Feito — disseram o almirante e Brock, simultaneamente.

— Cem para ambos! — O general deu meia-volta e saiu, pavoneando-se.

Longstaff serviu-se de um pouco de xerez.

— Almirante?

— Não, obrigado, senhor. Acho que vou voltar para meu navio. — O almirante pegou sua espada, fez um cumprimento de cabeça para Struan e Brock, uma continência, e partiu.

— Xerez, senhores? Horatio, talvez você faça as honras?

— Certamente, Excelência — disse Horatio, satisfeito por ter alguma coisa para fazer.

— Obrigado — Brock esvaziou o copo e estendeu-o para ser novamente cheio. — O gosto está bom. Tem um paladar excelente, Excelência. Não é, Dirk, meu rapaz?

— Na verdade, preciso censurá-lo, Sr. Brock. Imperdoável, dizer coisas assim. Senhor...

— Sim, senhor — disse Brock, como quem se penitencia. — Tem razão. Eu estava errado. Temos sorte de tê-lo neste posto. Quando fará a proclamação sobre o porto livre?

— Bom, ah, não há pressa. É preciso cuidar daqueles malditos anarquistas.

— Por que não cuidar das duas coisas, ao mesmo tempo? — perguntou Struan. — Logo que voltar para Hong Kong. Por que não dar aos nossos súditos sino-britânicos o benefício da dúvida? Deporte-os, mas não os açoite e nem marque com ferro em brasa, para começo de conversa. É justo, hein, Tyler?

— Se você assim o diz e Sua Excelência concorda — Brock respondeu, expansivamente.

Os negócios tinham sido bons. E o Gray Witch estava já bem longe, e ia à frente. Prédios estavam sendo construídos no Vale Feliz. Havia uma hostilidade aberta entre Struan e Culum. E, agora, Hong Kong ia ser porto livre. Sim, Dirk, rapaz, ele disse a si próprio, estaticamente, você ainda serve para alguma coisa. É esperto como uma raposa. O porto livre compensa todas as suas maldades. E, em dois anos, nossos navios a vapor vão levar você à bancarrota.

— Sim — ele acrescentou — se ambos concordarem. Mas logo será preciso usar o açoite e o ferro em brasa.

— Ah, realmente espero que não — disse Longstaff. — É uma coisa muito desagradável. Mas, de qualquer maneira, a lei precisa ser cumprida e os delinqüentes punidos. Uma excelente solução, senhores, para os... como os chama, Sr. Brock? Ah, sim, Tríades. Nós os chamaremos Tríades, no futuro. Horatio, faça uma lista, em caracteres, corri os nomes da Tong que nos deu Sua Excelência, Ching-so, e nós a afixaremos junto com a proclamação. Vá tomando nota, enquanto eu penso: “Todas as tongs acima citadas estão fora da lei e serão conhecidas, no futuro, com o nome geral de ‘Tríades’. A punição por pertencer a uma Tríade é a imediata deportação e a entrega às autoridades chinesas. A punição por instigar rebelião aberta contra o governo de Sua Majestade Britânica, ou contra Sua Alteza, o Imperador dos Chineses, é enforcamento.”


CAPÍTULO DEZESSEIS

A vila de Aberdeen estava escura, úmida e silenciosa sob a lua cheia. As ruas se achavam desertas e as portas das cabanas bem trancadas. Centenas de sampanas encontravam-se ancoradas nas águas paradas e lamacentas. E, embora estivessem tão amontoadas como as cabanas, não havia nenhum som ou movimento a bordo.

Struan permanecia em pé, no lugar previamente combinado, na encruzilhada da estrada nas imediações da vila, ao lado do poço. O poço tinha as bordas de pedra e Struan pendurara nelas três lanternas. Estava sozinho, e seu relógio de bolso de ouro lhe dizia que quase chegara a hora. Ficou imaginando se Wu Kwok e seus homens viriam da vila ou das sampanas, ou ainda dos morros desolados. Ou do mar.

Observou o mar. Nada se movia, a não ser as ondas. Em alguma parte, na escuridão, navegando à trinca, estava o China Cloud, com os tripulantes de prontidão. Era longe demais para aqueles que se encontravam a bordo observá-lo com nitidez, mas suficientemente perto para verem a luz das lanternas. As ordens de Struan eram no sentido de que, se as lanternas se apagassem bruscamente, os homens baixassem escaleres e viessem para terra com mosquetes e espadas.

As vozes abafadas do punhado de homens que trouxera consigo elevaram-se da praia, num fraco sopro. Eles estavam à espera, ao lado dos dois escaleres, armados e prontos, também observando a luz das lanternas. Ele ficou ouvindo com atenção, mas não conseguiu distinguir o que estava dizendo. Eu estaria mais seguro completamente sozinho, disse a si próprio. Não quero olhos indiscretos em cima disso. Mas desembarcar sozinho, sem guardas, seria loucura. Pior, eu estaria pondo à prova o meu pagode. Sim.

Ele se enrijeceu, quando um cão rosnou, no silêncio da vila. recuou atentamente à escuta, à procura de sombras em movimento. Mas não viu nenhuma e sabia que o cão estava apenas se exercitando. Recostou-se no poço e começou a relaxar, contente de estar de volta à ilha. Contente porque May-may e as crianças estavam seguras, na casa construída para eles no Vale Feliz.

Robb e Culum cuidaram habilmente de tudo, enquanto ele estava fora. A pequena casa, com altos muros em torno e fortes portões, ficara pronta. Duzentos e cinqüenta homens haviam trabalhado nela dia e noite.

Ainda faltavam muitos detalhes para serem cuidados, e o jardim inteiro para ser plantado, mas a casa em si estava habitável e quase toda mobiliada. Era construída de tijolos, tinha lareira e um telhado de madeira. Os quartos eram travejados. Muitas das paredes eram cobertas com papel, mas umas poucas haviam sido pintadas, e todas tinham janelas envidraçadas.

A casa ficava diante do mar e tinha uma suíte principal, sala de jantar e uma grande sala de visitas. E, a oeste, um abrigo em treliça, em torno de um jardim, separado do resto da casa. Ali ficavam os alojamentos de May-may e os aposentos das crianças, e, por trás, os quartos dos empregados.

Struan levara May-may, as crianças, e Ah Sam, a ama, para a casa com ele, na antevéspera, e os instalara lá. Um rapaz de confiança, cozinheiro, chamado Lim Din, e uma lavadeira, e makee-learnee, como eram chamados as ajudantes de cozinha, tinham vindo com ele de Cantão.

E, embora nenhum europeu tivesse visto May-may, a maioria deles tinha certeza de que o Tai-Pan trouxera sua amante para a primeira morada permanente em Hong Kong. Davam risadinhas entre si, ou o denunciavam, com sua inveja. Mas nada diziam às suas mulheres. No devido tempo, iam querer trazer suas próprias amantes e, quanto menos falassem, melhor. As mulheres que suspeitavam mantiveram-se caladas. Nada havia que pudessem fazer.

Struan ficara muito satisfeito com sua casa e com o progresso nos armazéns e na feitoria. E também com os resultados de sua frieza pública diante de Culum. Culum dissera-lhe às escondidas que já fora sondado inicialmente por Brock, e Wilf Tillman convidara-o para ir à bordo do caro navio de ópio da firma e o recebera principescamente.

Culum contara que o comércio fora discutido — e como o futuro da Ásia dependia vitalmente da cooperação, particularmente entre as raças anglo-saxônicas. E dissera que Shevaun estava na sala de jantar, muito bela e vivaz.

Um peixe saltou da água, permaneceu por um momento no ar, tornou a cair, e Struan ficou olhando por um momento, à escuta. Depois, relaxou outra vez e deixou a mente vaguear.

Shevaun seria um bom casamento para Culum, pensou Struan, sem emoção. Ou para ele próprio. Sim. Daria uma bela anfitriã e um acréscimo interessante aos banquetes que você oferecerá em Londres. Para lordes, ladies e membros do Parlamento. E ministros do Gabinete. Vai comprar para si próprio um título de baronete? Você poderia pagar dez vezes mais. Se o Blue Cloud chegar na Inglaterra primeiro. Ou em segundo e até em terceiro, bastando chegar a salvo. Se o comércio da temporada for concluído com segurança, então você pode comprar para si mesmo um título de conde.Shevaun é suficientemente jovem. Ela traria um dote útil e ligações políticas interessantes. E Jeff Cooper? Ele está loucamente apaixonado por ela. Se ela lhe disser não, é problema dele.

E May-rnay? Será que uma esposa chinesa barraria a você o acesso à nata? Certamente. Ela pesaria muito contra você. Está fora de cogitação.

Sem o tipo certo de esposa inglesa, a vida social será impossível. Os acertos diplomáticos são feitos sobretudo em salas de visita particulares, em meio ao luxo. Talvez a filha de um lorde, conde ou ministro de Gabinete? Espere até chegar à Inglaterra, hein? Há tempo suficiente.

Há mesmo?

Um cão latiu agudamente entre as sampanas e depois ganiu, enquanto outros se atiravam sobre ele. Os ruídos da briga mortal elevavam-se e decresciam até, finalmente, cessarem. Silêncio, outra vez, a não ser pelos furtivos rosnados, roçares de corpos e dilaceramentos na escuridão, enquanto os vencedores começavam a se alimentar.

Struan estava olhando as sampanas, de costas para as lanternas. Viu uma sombra se mover, outra, e logo um grupo de chineses foi saindo da vila flutuante e se reunindo na praia. Identificou Scragger. Struan segurou frouxamente sua pistola e esperou com calma, procurando Wu Kwok em meio à escuridão. Os homens vieram pela estrada, sem fazer ruído, com Scragger, cautelosamente, no meio. Pararam perto do poço e olharam fixamente para Struan. Todos eram jovens, no começo da casa dos vinte, e estavam vestidos com túnicas e calças negras, tinham nos pés sandálias com tiras de couro, e grandes chapéus de cule disfarçavam-lhes os rostos.

— Grande noite, Tai-Pan — disse Scragger, com voz baixa, em guarda, e preparado para uma retirada imediata.

— Onde está Wu Kwok?

— Mandou pedir desculpas, mas está muito ocupado. Aqui estão os cem. Faça a escolha e vamos embora, está bem?

— Diga-lhes para se dividirem em grupos de dez e tirarem a roupa.

— Tirar a roupa?

— Sim, tirar a roupa, pelo amor de Deus!

Scragger piscou para Struan. Depois, deu de ombros e voltou para perto dos homens, falando-lhes numa cantilena baixa. Os chineses conversaram baixinho e, depois, separaram-se às dezenas e tiraram as roupas.

Struan fez sinal para a primeira dezena e eles caminharam para a luz. De alguns grupos, escolheu um, de outros, dois ou três, de uns poucos, nenhum. Escolhia com o maior cuidado. Sabia que estava reunindo uma força-tarefa, a ponta de lança do seu avanço para o coração da China. Se conseguisse dobrá-los à sua vontade. Os homens que não conseguiam olhá-lo nos olhos eram imediatamente excluídos. Passava ao largo daqueles cujos rabichos eram maltratados e desgrenhados. Não eram considerados os que não tinham bom físico. Mas, aqueles cujos rostos eram pontilhados com marcas de varíola, ganhavam um ponto a seu favor — pois Struan sabia que a varíola assolava os navios em todos os mares e um homem já acometido pela doença e recuperado era imune e forte e sabia o valor da vida. Os que tinham ferimentos a faca bem cicatrizados eram favorecidos. Aqueles capazes de ficar nus sem se importar, ele aprovava. Mas, os que mostravam sua nudez com hostilidade, examinava cuidadosamente, sabendo que a violência e o mar são companheiros. Alguns, escolheu por causa do ódio em seus olhos e, alguns, apenas por causa de uma intuição que teve, ao lhes ver os rostos.

Scragger observava a seleção com impaciência crescente. Puxava sua faca e, repetidamente, atirava-a no pó. Afinal, Struan terminou.

— Esses são os homens que quero. Todos podem vestir-se, agora.

Scragger deu uma ordem e os homens se vestiram. Struan pegou um maço de papéis e entregou um deles a Scragger.

— Pode ler alto para eles.

— O que é isso?

— Um contrato regulamentar. Taxas de pagamento e termos para um serviço de cinco anos. Todos deverão assinar um.

— Não sei ler. E para que esse documento, hein? Wu Fang Choi disse a eles que ficariam com você por cinco anos. Struan entregou-lhe outra folha coberta com caracteres chineses.

— Dê isso a alguém que saiba ler. Cada qual assinará uma, ou então não os aceitarei e o acordo está cancelado.

— Quer fazer tudo bem direitinho, hein?

Scragger pegou o papel e chamou um chinês de baixa estatura, com marcas de varíola, que fora escolhido. O homem se adiantou e, pegando o papel, estudou-o à luz da lanterna. Scragger fez um sinal com o polegar para aqueles que haviam sido rejeitados, e eles •desapareceram nas sampanas.

O homem começou a ler.

— Como é o nome dele?

— Fong.

— Fong o quê?— Fong o que você quiser. Quem sabe qual é o verdadeiro nome desses macacos?

Os chineses ouviram Fong atentamente. A certa altura, explodiram numa onda de riso abafada e nervosa.

— Qual é a graça? — Scragger perguntou, em cantonês. Fong demorou muito tempo para explicar. Scragger virou-se para Struan.

— Que negócio é esse, hein? Eles precisam prometer que não vão fornicar e nem casar durante os cinco anos? Isto não é direito. O que acha que eles são?

— É uma cláusula justa e normal, Scragger. Todos os contratos têm a mesma cláusula.

— Não em papéis de marinheiros, por Deus.

— Eles vão ser capitães e oficiais, então precisam ter contratos. Para tornar legal sua situação.

— É muito impróprio, se quer saber minha opinião. Isto significa que não podem levar uma puta para a cama durante cinco anos?

— É apenas uma formalidade. Mas não podem casar. Scragger virou-se e fez um curto discurso. Outra vez, houve risos.

— Eu disse que eles precisam obedecer-lhe como a Deus Todo-Poderoso. Menos no que diz respeito à fornicação. — Enxugou o suor do rosto. — Wu Fang Choi disse a eles que seriam seus, por cinco anos. Então, não precisa se preocupar.

— Por que você está tão nervoso, hein?

— Por nada, por nada, eu lhe garanto.

Fong continuou a ler. Houve um silêncio e alguém pediu que uma cláusula fosse repetida. O interesse de Scragger aumentou. Era a respeito do pagamento. Os capitães em potencial receberiam cinqüenta libras no primeiro ano, setenta no segundo e no terceiro, cem quando alcançassem escalão de primeiro-imediato, e cento e cinqüenta ao terminarem sua formação. E teriam um sexto dos lucros dos navios que capitaneassem. Um bônus de vinte libras, se aprendessem inglês dentro de três meses.

— Cento e cinqüenta mangos é mais do que ganhariam em dez anos — disse Scragger.

— Quer um emprego?

— Estou satisfeito com meu atual emprego, muito obrigado. — Ele contorceu o rosto, quando teve um pensamento repentino.

— Wu Fang Choi não pagaria essa grana toda — disse.

— Ninguém vai lhe pedir. Esses homens vão fazer por merecer cada centavo, pode ter certeza. Ou então serão despedidos.

— O dinheiro não é meu, então pode pagar a eles quanto quiser e desperdiçar sua nota.

Quando Fong terminou de ler o documento, Struan fez cada homem escrever seu nome em caracteres, numa cópia. Todos os homens sabiam escrever. Ele fez cada um lambuzar a palma esquerda com tinta de carimbo e imprimir a palma no verso do papel.

— Para que é isso?

— Cada palma de mão é diferente da outra. Agora, eu conheço cada homem... seja qual for o seu nome. Onde estão os meninos?

— Quer que os homens vão para os botes?

— Sim. — Struan deu a Fong uma lanterna e fez sinal para que fosse até à praia. Os outros homens seguiram-no, em silêncio.

— A escolha e o negócio dos papéis foram muito inteligentes, Tai-Pan. Você é esperto mesmo. — Scragger chupava a ponta de sua faca, pensativamente. — Ouvi dizer que você deu uma boa lição em Brock. E também soube das barras de prata.

Struan deu uma olhada em Scragger, repentinamente suspeitoso.

— Havia europeus naquele ataque, segundo disse Brock. Você era um deles?

— Se eu tivesse recebido ordens de Wu Fang, Tai-Pan, não teria havido falha. Wu Fang Choi não gosta de falhas. Deve ter sido coisa de gente do local mesmo, os malditos. Terrível. — Scragger deu uma olhada na escuridão em torno. Quando se certificou de que estavam completamente sozinhos falou em tom de conspiração. — Wu Kwok é fuquienês. Ele vem de Quemoy, lá pelo alto da costa, sabe? Conhece a ilha?

— Sim.

— Na noite do solstício de verão, haverá um festival, Wu Kwok, com certeza, comparecerá. Tem alguma coisa a ver com seus ancestrais. — Os olhos de Scragger brilharam, malevolamente. — Se uma fragata ou duas estivessem passando por lá, ora, ele seria pegado como um maldito rato de esgoto numa barrica.

Struan sorriu, com desdém.

— Ah, seria sim!

— É verdade, eu lhe digo, por Deus. Você tem meu juramento, por Deus. Aquele patife me enganou e me fez jurar a você, quando era mentira, e não vou perdoar isso. O juramento de Scragger é tão bom quanto o seu!

— Sim. Claro. Acha que eu confiaria num homem que vende seu patrão como se fosse um rato?

— Ele não é meu patrão. Wu Fang Choi é meu chefe, e ninguém mais. Jurei lealdade a ele, a nenhum outro. Você tem meu juramento. Struan observou Scragger.

— Vou pensar a respeito da noite do festival.

— Você tem meu juramento. Quero que ele morra, por Deus. O juramento de um homem é tudo que tem, entre ele mesmo e a danação. Aquele porco desmentiu o meu, que Deus o amaldiçoe, e então quero que ele morra para pagar.

— Onde estão os meninos?

— Eles vão ser grã-finos, como você disse?

— Depressa, quero ir embora.

Scragger virou-se e assobiou para dentro da escuridão. Três pequenas sombras saíram das sampanas. Os meninos desceram cautelosamente a vacilante prancha de desembarque e pisaram em terra, subindo a estrada às pressas, em seguida. Os olhos de Struan se arregalaram, quando os meninos apareceram à luz. Um deles era chinês. Um eurasiano. E o último era um imundo pirralho inglês. O menino chinês estava ricamente vestido, tinha o rabicho grosso e bem entrançado. Carregava uma mala. Os outros dois estavam pateticamente vestidos, com sujas roupas de menino imitando as inglesas — casacos feitos em casa, velhas cartolas e calças e sapatos costurados em casa, toscamente. Sobre os ombros, cada um carregava um bastão com uma trouxa pendurada na ponta.

Todos os meninos tentavam desesperadamente — e sem conseguir — esconder sua ansiedade.

— Este é Wu Pak Chuk — disse Scragger. O menino chinês se curvou, nervosamente. — Ele é neto de Wu Fang Choi. Um dos netos, mas não filho de Wu Kwok. E esses são meus próprios filhos. — Ele apontou orgulhosamente para o pirralhinho, que piscou sem querer. — Este é Fred. Ele tem seis anos. E este é Bert, que tem sete.

Fez um leve sinal e ambos os meninos tiraram o chapéu, fizeram curvaturas e murmuraram alguma coisa, no meio de todo o pânico, olhando em seguida para o pai, a fim de ver se tinham feito tudo direito. Bert, o menino eurasiano, antes tinha o rabicho metido embaixo do chapéu, mas agora, com todo o nervosismo, o rabicho estava pendente às suas costas. O cabelo do pirralho estava sujo e, como o do seu pai, achava-se amarrado com um pedaço de cânhamo alcatroado, à nuca.

— Venham cá, rapazes — disse Struan, com pena.

O pirralho pegou a mão de seu meio-irmão e os dois adiantaram-se devagar. Pararam, quase sem conseguir respirar. O menino inglês limpou um fio de catarro do nariz, com as costas da mão.

— Você é Fred?

— Sim, Excelência — sussurrou, em voz quase inaudível.

— Fale alto, rapaz — disse Scragger, e o menino exclamou:

— Sim, Excelência, eu sou Fred.

— Eu sou Bert, Excelência. — O eurasiano recuou, quando Struan olhou para ele. Era um menino alto, bonito, com belos dentes e pele dourada. Tinha a estatura mais elevada dos três.

Struan olhou para Wu Pak. O menino baixou os olhos e riscou a terra com os pés.

— Ele não fala inglês?

— Não. Mas o Bert fala a língua dele. E Fred algumas palavras. A mãe de Bert é juquienesa. — O desajeitamento de Scragger piorou.

— Onde está sua mãe, Fred?

— Está morta, Excelência — disse o pirralho, num engasgo. — Ela está morta, senhorrr.

— Morreu há dois anos. O escorbuto a levou — disse Scragger.

— Há mulheres inglesas na frota de vocês?

— Algumas embarcações têm. Vão para lá, rapazes — disse, e seus filhos fugiram para onde ele estava apontando e ficaram duros feito pedras, num ponto onde não podiam ouvir o que se falava. Wu Pak hesitou e, depois, correu para perto deles, ficando bem juntinho.

Scragger baixou a voz.

— A mãe de Fred era prisioneira. Pegou dez anos de deportação por roubar carvão no mais frio do inverno. Fomos casados por um padre, na Austrália, mas ele era um renegado, e então talvez não valesse. Éramos casados, de qualquer maneira. Eu jurei a ela, antes que morresse, cuidar bem do menino.

Struan pegou outros papéis.

— Estes me dão a guarda dos meninos. Até terem vinte e um anos. Você pode assinar por seus filhos, mas como será com Wu Pak? Deveria ser assinado por um parente.

— Vou colocar minha marca em todos. Pode me dar uma cópia para eu mostrar a Wu Fang? O que eu assinei?

— Sim. Você pode levar um.

Struan começou a colocar os nomes, mas Scragger o deteve.

— Tai-Pan, não ponha Scragger nos meninos. Ponha outro nome. Qualquer um que você quiser. Não, não me diga qual — acrescentou, depressa. — Qualquer nome. Pense num bom nome.-O suor porejava em sua testa. Seus dedos tremiam, quando ele pegou o lápis e fez sua marca. — Fred deve me esquecer. E à sua mãe. Faça o melhor que puder por Bert, hein? A mãe dele é ainda minha mulher e ela não é ruim, para uma pagã. Faça o melhor que puder por eles, e terá um amigo pelo resto da vida. Faço o meu juramento. Ambos precisam ser ensinados a rezar direito suas orações. — Assoou o nariz nos dedos e os enxugou nas calças. — Wu Pak precisa escrever uma vez por mês a Jin-qua. Ah, sim, e você manda as contas para Jin-qua, pela escola e o resto. Uma vez por ano. Todos devem ir para a mesma escola e comer juntos.

Ele fez sinal para o menino chinês. Wu Pak adiantou-se, hesitante. Scragger fez um sinal com o polegar em direção aos botes e o menino foi embora, obedientemente. Depois, fez sinal para seus filhos.

— Agora eu vou embora, rapazes.

Os meninos correram até onde se encontrava, e se agarraram a ele, implorando-lhe para não mandá-los embora, com as lágrimas escorrendo e esmagados pelo terror. Mas ele os empurrou e forçou a voz a ficar dura.

— Vão embora, agora. Obedeçam ao Tai-Pan, aqui. Ele vai ser como um pai para vocês.

— Não nos mande embora, papai — disse Fred, em tom de lamentação. — Eu sou um bom menino. Bert e eu somos bons meninos. Papai, não nos mande embora.

Estavam perdidos na imensidão de sua dor, com os ombros soerguidos.

Scragger pigarreou ruidosamente e cuspiu. Depois de hesitar um segundo, puxou sua

faca e pegou o rabicho de Bert. O eurasiano gritou de horror e tentou libertar-se. Mas Scragger cortou o rabicho e esbofeteou o menino, que estava histérico, com força suficiente para fazê-lo sair do seu choque, mas sem machucá-lo.

— Ah, papai — disse Fred, tremulamente, com sua vozinha esganiçada — você sabia que Bert prometeu à mãe dele conservar o cabelo direito.

— É melhor eu fazer isso, Fred, antes que outra pessoa faça — disse Scragger, com a voz cheia de dor. — Bert não precisa disso, agora. Ele vai ser um grã-fino, como você.

— Não quero ser grã-fino, quero ficar em casa.

Scragger despenteou os cabelos de Bert pela última vez. E de Fred.

— Adeus, meus filhos — disse ele.

Saiu correndo e a noite o engoliu.


CAPÍTULO DEZESSETE

— Por que ir tão cedo, Tai-Pan? — perguntou May-may, sufocando um bocejo. — Duas horas de sono, a noite passada, não são suficientes para você. Vai perder seu vigor.

— Vamos, moça! E eu já lhe disse que não precisa me servir.

Struan empurrou o prato de seu desjejum e May-may lhe despejou mais chá. Era uma linda manhã. O sol lançava seus raios através das janelas de treliça e formava delicados desenhos no chão.

May-may tentou fechar os ouvidos às batidas e ao ruído de serras das contrações ao longo de toda a praia, no Vale Feliz, mas não conseguiu. O baralho era permanente e esmagador, noite e dia, desde que haviam chegado, três dias atrás.

— Há muita coisa para ser feita, e eu quero ter certeza de que os preparativos para o baile marcham bem — disse Struan.

— Vai começar uma hora antes do anoitecer.

May-may estremeceu de delícia, ao se lembrar do seu vestido secreto e de como era bonito.

— Tomar o desjejum ao amanhecer é um costume barbarista.

— Bárbaro — ele corrigiu. — E não está amanhecendo. São nove horas.

— Parece amanhecer. — Ela ajeitou mais confortavelmente seu robe de seda amarela, sentindo os bicos dos seios duros contra o tecido. — Quanto tempo vão demorar esses barulhos horrorosos?

— Vão parar dentro de mais ou menos um mês. E não há trabalho aos domingos, é claro — disse ele, quase sem escutá-la, pensando a respeito de tudo que teria de fazer naquele dia.

— É barulho demais — disse ela. — E tem alguma coisa errada nesta casa.

— O quê? — perguntou ele, distraído, sem escutar.

— Está dando uma má impressão, uma impressão péssima. Tem certeza de que o feng-shui está correto, hein?

Feng o quê? — Ele ergueu os olhos, espantado, e prestou-lhe completa atenção. May-may estava horrorizada.

— Você não procurou um cavalheiro feng-shui?

— Quem é esse?

— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan! — ela disse, exasperada. — Você constrói uma casa e não consulta o feng-shui? Que loucura! Ayeee yah! Vou tratar disso hoje.

— O que faz o cavalheiro feng-shui — perguntou Struan — além de custar dinheiro?

— Verifica se o feng-shui está correto, é claro.

— E o que, pelo amor de Deus, é feng-shui?

— Se o feng-shui está ruim, os espíritos do mal entram na casa e a pessoa tem um mau pagode terrível e doenças terríveis. Se o feng-shui for bom, então não entram maus espíritos. Todos sabem a respeito do feng-shui.

— Você é uma boa cristã e não acredita em espíritos do mal e nem em bruxaria.

— Concordo plenamente, Tai-Pan, mas o feng-shui é tremendamente importante para as casas. Não se esqueça de que estamos na China, e na China...

— Muito bem, May-may — ele disse, com resignação. — Consiga um cavalheiro feng-shui para fazer bruxaria, se você precisa disso.

— Ele não faz bruxaria — ela disse, em tom de importância. — Verifica se a casa está em boa posição, diante das correntes do Céu-Terra-Ar. E de que não é construída num poço de dragão.

— Ah?

— Ah, meu bom Deus, como diz você, às vezes! Isso seria horrível, porque então o dragão que dorme na terra não poderia mais dormir em paz. Pelo sangue de Cristo, espero que não estejamos em seu pescoço! Ou na cabeça! Você poderia dormir com uma casa em seu pescoço, ou na cabeça? Claro que não! Se o sono do dragão for perturbado, claro que coisas muito terríveis acontecerão. Teríamos de nos mudar imediatamente.

— Ridículo!

— Muito ridículo, mas nós nos mudaríamos, de qualquer jeito. Eu, ah, eu protejo nós dois. Ah, sim. É muito importante a gente proteger nosso homem, e nossa família. Se a casa estiver construída em cima de um dragão, nós nos mudaremos.

— Então é melhor você dizer ao cavalheiro feng-shui para ter o cuidado de não encontrar nenhum dragão por aqui, por Deus. Ela fez um gesto de amuo com o queixo.

— O cavalheiro do feng-shui não vai ensinar você a pilotar um navio... por que você quer ensinar a ele alguma coisa a respeito de dragões, hein? Não é fácil ser um cavalheiro do feng-shui.

Struan ficou satisfeito de ver que May-may começava de novo a ser ela mesma. Notara que, desde a volta a Cantão, de Macau, e durante a viagem para Hong Kong, ela parecia ressentida e distraída. Particularmente nos últimos dias. E ela tinha razão, o barulho era muito desagradável.

— Bom, eu estou saindo.

— Seria correto eu convidar Marr-rry Sin-clcãr hoje?

— Sim. Mas não sei onde ela está... e nem se já voltou.

Ela está na nau capitania. Chegou ontem, com sua ama, Ah Tat, e seu vestido de baile. É preto e muito bonito. Vai custar a você duzentos dólares. Ayeee yah, se você me deixasse ajeitar o vestido, eu economizaria sessenta ou setenta dólares para você, pode ter certeza. A cabina dela é vizinha à do irmão.

— Como você sabe de tudo isso?

— Sua ama é a quarta filha da irmã da mãe de Ah Sam. De que adiantaria uma escrava insinuante como Ah Sam, se ela não mantivesse a mãe informada e nem tivesse contatos?

— Como a mãe de Ah Sam lhe contou?

— Ah, Tai-Pan, você é tão engraçado — exclamou May-may. — Não é a mãe de Ah Sam, sou eu. Todas as escravas chinesas chamam sua patroa de “Mãe”. Exatamente como ela chama você de “Pai”.

— É mesmo?

— Todas as escravas chamam o dono da casa de “Pai”. É um costume antigo e muito cortês. Então Ah Tat, escrava de Marry, contou a Ah Sam. Ah Sam, que é uma bobalhona preguiçosa e inútil, bem precisada de umas boas surras, então contou à sua “mãe”. A mim. É realmente muito simples. E, se você falasse um idioma chinês, chamaria Ah Sam de “Filha”.

— Para que você quer ver Mary?

— Ficar sem conversar dá muita solidão. Só falo cantonês, não se preocupe. Ela sabe que eu estou aqui.

— Como?

— Ah Sam contou a Ah Tat — ele disse, como se estivesse dando explicações a uma criança. — Naturalmente, uma notícia tão interessante, Ah Tat tinha de contar à sua mãe — ela contou a Marrry. Aquela puta velha da Ah Tat é uma mina de jade de segredos.

— Ah Tat é uma prostituta?

— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, só estou falando em linguagem figurada. Você realmente devia voltar para a cama. Está muito tolo hoje de manhã. Ele terminou seu chá e empurrou o prato.

— Não é de admirar, ouvindo tantos disparates. Vou almoçar com Longstaff, então darei o recado a Mary. Que; hora eu devo marcar?

— Obrigada, Tai-Pan, não se incomode. Ah Sam será melhor. Assim ninguém saberá, a não ser as criadas e elas sabem tudo, de qualquer jeito, pode ter certeza.

Lim Din abriu a porta. Era o criado pessoal de Struan, além de cozinheiro, um homenzinho atarracado, na casa dos cinqüenta, muito limpo, com suas calças negras e túnica branca. Tinha um rosto redondo e feliz, e olhos penetrantes, astutos.

— Senhor, a senhorita e o senhor vieram visitar. Pode?

— Senhor o quê? — Struan estava espantado de alguém ser tão descortês a ponto de aparecer sem ser convidado. Lim Din encolheu os ombros.

— Senhor e senhorita. Quer ver que senhor, que senhorita?

— Ah, não se incomode — disse Struan, e se levantou da mesa.

— Está esperando convidados? — perguntou May-may.

— Não.

Struan saiu da sala e entrou na pequena ante-sala. Abriu a porta mais afastada e fechou-a atrás de si. Passou ao corredor que conduzia ao saguão e aos aposentos separados, na frente da casa. E, no momento em que chegou ao corredor, soube que um dos visitantes era Shevaun. Seu perfume, uma fragrância turca especial que só ela usava, havia mudado delicadamente a qualidade do ar.

Seu coração bateu mais rápido e sua raiva diminuiu, enquanto caminhava pelo corredor, com suas macias botas curtas de couro estalando contra o chão de pedra, e se encaminhava à sala de estar.

— Olá. Tai-Pan — disse Shevaun.

Shevaun tinha vinte anos e era graciosa como uma gazela. Usava o cabelo ruivo escuro, mais escuro do que o de Struan, em longos cachos. Seu busto volumoso, sob o vestido de veludo verde discretamente decotado, erguia-se sobre uma cintura muito delgada. Seus tornozelos e pés delicados apareciam sob uma dúzia de anáguas. Seu gorro era verde, e a sombrinha de um laranja forte.

Sim, pensou Struan, cada dia ela está mais bonita.

— Bom-dia, Shevaun, Wilf.

— Bom-dia. Desculpe aparecer sem ser convidado. — Wilf Tillman estava muito constrangido.

— Ah, vamos, tio — disse Shevaun, alegremente — é um bom e velho costume americano fazer votos de felicidades para casa.

— Não estamos na América, querida.

Tillman desejava estar, hoje. E que Shevaun estivesse casada, em segurança, com Jeff Cooper, e não mais sob sua responsabilidade. Maldita Shevaun. E maldito Jeff, ele pensou. Eu queria muito que o homem fizesse seu pedido formalmente. Então eu poderia, simplesmente, anunciar o casamento, e tudo acabaria bem. Mas toda essa indecisão em torno do assunto é ridícula. “Vamos dar tempo a ela. Há muito tempo”, Jeff está sempre dizendo. Mas eu sei muito bem que há muito pouco tempo, agora que Struan está viúvo. Tenho absoluta certeza de que Shevaun está caída pelo Tai-Pan. Por que outro motivo insistiria em vir aqui, hoje de manhã? Por que não pára de fazer perguntas a respeito dele?

Todo o caminho até à casa de Struan, ele estivera ponderando sobre a possível sabedoria de uma união entre Struan e Shevaun. Naturalmente, poderia haver vantagens financeiras definidas, mas Struan era totalmente oposto ao estilo de vida deles, na América — ele, simplesmente, não entenderia.

Com certeza, iria virar Shevaun contra nós, pensou Tillman. Forçaria as coisas, através dela. Jeff ficaria furioso com a perda dela e, provavelmente, romperia a sociedade Cooper-Tillman. Não há nada que eu possa fazer para impedir isso. Se a companhia se desfizer, não haverá dinheiro para o irmão John oferecer recepções tão luxuosas, em Washington. A política é cara e, sem um apoio político, a vida será muito difícil para a família. Além disso, precisamos de qualquer ajuda disponível para enfrentar os malditos Estados do Norte. Não, pelo amor de Deus. Shevaun vai casar com Jeff e não com o Tai-Pan, não há dúvida.

— Desculpe vir sem ser convidado — ele repetiu.

— São ambos muito bem-vindos. — Struan fez sinal a Lim Din, em direção ao garrafão de bebida e aos copos. — Xerez?

— Ah, obrigado, mas acho que já vamos — disse Tillman. Shevaun riu e seu nariz arrebitado se enrugou graciosamente.

— Mas mal acabamos de chegar. Eu queria ser a primeira a dar as boas-vindas a você e à sua casa, Tai-Pan — disse ela.

— Está dando. Sente-se. É bom ver você.

— Compramos alguns presentes para a casa. — Ela abriu a sacola e tirou um pequeno pão, um vidrinho de sal e uma garrafa de vinho. — É um velho costume, a fim de trazer sorte para a casa. Eu queria vir sozinha, mas o tio disse que seria de péssimo gosto. Não é absolutamente culpa dele.

— Estou feliz porque você veio. — Struan pegou o pão. Era dourado, com a massa fresca e cheirosa..— Cozinhei-o a noite passada. Struan partiu um pedaço e provou-o. — Excelente!

— Na verdade, você não precisava comer. É apenas simbólico. — Ela riu outra vez, pegou sua sacola e a sombrinha. — E, agora que já cumpri meu dever, nós vamos embora.

— Meus primeiros convidados não vão fazer uma coisa dessas. Eu insisto, pelo menos um xerez.

Lim Din ofereceu os copos. Shevaun pegou um e se instalou confortavelmente, enquanto Wilf Tillman franzia a testa. Lim Din afastou-se.

— Você realmente cozinhou o pão? Sozinha? — Struan perguntou.

— É muito importante uma moça saber cozinhar — ela disse, e devolveu-lhe o olhar, com um jeito desafiador. Tillman bebeu o xerez.

— Shevaun é uma boa cozinheira.

— Vou comer um pão por dia — disse Struan. Ele se sentou na poltrona de couro e ergueu o copo. — Muitos anos de vida!

— Para você também.

— Sua casa é bonita, Tai-Pan.

— Obrigado. Quando estiver terminada, eu gostaria de lhe mostrar todos os cômodos. — Struan sabia que ela estava curiosa para descobrir se os boatos a respeito de May-may eram verdadeiros. — Aristotle disse que você não estava bem a última vez em que a viu.

— Foi apenas um resfriado — ela disse.

— Vai mandar fazer outro retrato?

— Estou pensando nisso — disse ela, tranqüilamente. — O querido Sr. Quance. Admiro tanto os quadros dele. Titio e eu estamos tentando convencê-lo a passar uma temporada, como experiência, em Washington. Acho que ele ganharia uma fortuna.

— Nesse caso, eu acho que você teria um visitante. — Struan ficou imaginando se a inocência no rosto dela era fingida ou real. Olhou para Tillman. — Como vão os negócios?

— Excelentes, obrigado. Jeff volta de Cantão hoje à tarde. As coisas estão explodindo na Colônia. Você voltará para lá?

— Dentro de poucos dias.

— Ouvi dizer que o Blue Cloud e o Gray Witch estão empatando. Um de nossos navios, vindo de Cingapura, passou por eles há dois dias, em plena velocidade. Vai depender de sorte.

Enquanto os dois homens conversavam, polidamente, sobre questões comerciais, nenhum deles realmente interessado na opinião do outro, Shevaun bebia seu xerez e examinava Struan. Ele estava vestido com um terno de lã leve, bem cortado e elegante.

Você é um homem e tanto, ela pensou; talvez não saiba, Dirk Struan, mas vou casar com você. Fico imaginando como será sua amante oriental; sinto a presença dela na casa. Amante ou não, eu sou a moça para você. E, quando eu for sua mulher, você não vai precisar se afastar, por muito tempo. Por muitíssimo tempo.

— Bom, acho que já vamos — disse Tillman, e se levantou. — Mais uma vez, desculpe por chegar sem convite.

— São sempre bem-vindos.

— A propósito, Tai-Pan — disse Shevaun — pelo que eu soube, as senhoras não estão convidadas para a luta desta tarde. Quer apostar um guinéu no homem da Marinha por mim?

— Meu Deus, Shevaun — disse Tillman, chocado. — Você não deve dizer essas coisas! Não fica bem para uma moça!

— Você é muito desonesto — disse ela — e antiquado. Vocês homens apreciam uma luta, por que nós não deveríamos apreciar? Vocês homens gostam de jogar, mas nós não podemos, é?

— É uma boa pergunta, Shevaun. — Struan se divertia com o constrangimento de Tillman.

— Afinal, é um costume oriental. — Ela olhou inocentemente para Struan. — Ouvi dizer que os chineses jogam o tempo todo, especialmente as mulheres. Struan, complacentemente, ignorou a observação.

— Jogar é um mau hábito — disse Tillman.

— Concordo plenamente, tio. Quanto você já apostou?

— Uma coisa nada tem a ver com a outra.

Struan riu.

— Com sua permissão, Wilf, vamos satisfazê-la. Um guinéu na Marinha?

— Obrigada, Tai-Pan — disse ela, antes de Tillman poder responder, e estendeu a mão enluvada para Struan. — É apenas uma questão de princípio. Você é muito compreensivo.

Ele deixou que a mão dela repousasse na sua um momento mais do que o necessário e depois beijou-a, fascinado pelo pensamento de domá-la. Em seguida, levou os dois até a porta.

— Eu os verei esta noite.

— Se eu não ganhar aquele prêmio, ficarei desesperada. E também irei para a prisão, por dívidas.

— Você não irá, Shevaun, mas seu pobre pai e tio, que sofrem há tanto tempo, talvez vão mesmo — disse Tillman.

Quando partiram, Struan voltou para os alojamentos de May-may.Ela fitou-o, friamente.

— O que há de errado?

— Aquela maldita e melosa prostituta está atrás de você. É isso que está errado.

— Não seja tola e não fique aí praguejando! E como você a viu?

— Ora! Será que eu não tenho olhos? Não tenho nariz? Para que tanto estudei o projeto da casa, hein, horas a fio? Para que fosse planejada de modo a eu poder ver quem vem aqui e quem passa sem ser vista. Ora! Aquela putinha de merda está atrás de você, para casa!.

— Para casar — ele corrigiu.

— Beijando a mão dela, hein? Por que não beija minha mão? — Ela fechou o bule, com estrépito. — Por que ficou olhando para ela com os olhos de bezerro atrás da vaca, hein? Ayeee yah!

Ayeee yah para você. E se fizer mais um comentário assim, eu lhe dou uma surra. Quer levar uma surra?

— Esses homi! — Ela atirou a cabeça para cima. — Esses homi!

— Homens... não homi. Eu já lhe disse isso mais de mil vezes.

— Esses homens! — May-may, toda trêmula, se serviu de um pouco de chá e depois bateu a xícara no pires e se levantou. — Ouvi dizer que os homi chineses jogam muito, ispicialmente as mulheres — ela disse, imitando Shevaun, erguendo o busto para lhe dar maior volume e balançando o traseiro. — E você fica sentado ali devorando os peito dela com o olhar. Pra meus peito você não olha, ?

Struan, tranqüilamente, depôs sua xícara de chá e se levantou. May-may refugiou-se do outro lado da mesa.

— Não estou dizendo nada, não se preocupe — disse, depressa.

— Foi o que eu pensei. — Ele, calmamente, acabou de tomar seu chá e ela ficou a olhá-lo, sem se mexer, mas pronta para fugir. Ele colocou a xícara no pires.

— Venha cá.

— Ah! Eu tenho medo quando seus olhos lançam fogo verde.

Venha cá. Por favor — ele acrescentou, com doçura. Ela estava quase vesga de raiva e ele a achou parecida com um dos gatos siameses que vira em Bancoc. Tão rancorosa como eles, pensou.

Cautelosamente, ela se aproximou, sempre pronta para escapar, ou fazer uma investida, de unhas em riste. Ele, gentilmente, deu-lhe pancadinhas na face e se virou para a porta.

— Seja uma boa menina.

— Tai-Pan! — May-may, imperiosamente, estendeu a mão para ser beijada.

Fazendo força para não sorrir, ele voltou e, com galanteria, beijou-lhe a mão. Depois, forçou-a a se virar, sem tempo de se defender, e lhe deu uma forte palmada no traseiro. Ela arquejou, libertou-se com esforço das mãos dele e deu um pulo, para se proteger atrás da mesa. Ao se ver em segurança, atirou-lhe uma xícara. Esta se espatifou na parede, perto do ouvido dele, e ela pegou outra.

— Não atire isso!

Ela voltou a colocá-la sobre a mesa.

— Muito bem, garota. Uma, tudo bem. Duas já é demais. — Ele se virou para a porta.

— Só estou falando para proteger você — ela gritou. — Proteger daquela puta melosa, feia, com peitos de vaca velha!

— Obrigado, May-may — ele disse, fechando a porta atrás de si.

Ele fingiu seguir pelo corredor e depois ficou à escuta, tentando não rir. A xícara espatifou-se contra o outro lado da porta. O som foi seguido por uma torrente de pragas, depois o nome de Ah Sam e mais pragas.

Alegremente, ele saiu nas pontas dos pés.

***

O Vale Feliz inteiro pulsava de atividade e, enquanto Struan descia o leve declive que levava de sua casa em direção à praia, sentiu um grande orgulho. Muitas edificações estavam em início. As duas maiores eram as grandes feitorias de três andares da Casa Nobre e de Brock e Filhos uma em frente à outra na Estrada da Rainha — prédios enormes contendo armazéns, escritórios e apartamentos, do tipo preferido pelos comerciantes na China e parecidos com os existentes na Colônia de Cantão. No momento, eram apenas carcaças de andaimes externos de bambu, erguendo-se em direção ao céu, com centenas de trabalhadores chineses apinhados em torno. E, ao redor dessas estruturas dominantes, havia dúzias de outros prédios, moradias e desembarcadouros.

À distância, no meio do caminho até o Cabo Glessing, Struan via que o trabalho já começara no estaleiro; uma torrente interminável de cules empilhava pedras e rochas para formar o primeiro dos ancoradouros de águas profundas. Em frente à casinha do capitão de porto, já toda pronta, com exceção do telhado, estavam as muralhas de pedra da prisão, com mais da metade dos trabalhos concluídos. E ao lado do estaleiro, estava o primeiro quartel do exército, com seus andaimes.Struan virou-se em direção oeste, onde estava a série de grandes tendas que abrigavam a sede temporária da companhia. Haviam sido montadas nas imediações do vale. A igreja ainda não tivera sua construção iniciada embora Struan visse homens examinando o topo do outeiro.

— Bom-dia, Robb — disse ele, entrando na tenda.

— Bem-vindo à casa. — Robb não fizera a barba e havia manchas negras sob seus olhos. — Resolveu os problemas lá em Aberdeen?

— Sim. E por aqui, como vão as coisas?

— Bem e mal. Não se pode caminhar pela Estrada da Rainha sem que um montão de mendigos malcheirosos caia em cima da pessoa. E, pior do que isso, estamos trazendo dez mil tijolos de Macau por dia, em sampanas e juncos, e mais de dois mil somem, na manhã seguinte. — Atirou as mãos para cima, violentamente. — E não apenas tijolos... madeira, escrivaninhas, cimento, penas, papel... roubam tudo. Assim, nossos custos de construção vão dobrar. — Jogou uma lista de números — um presente para você... as cifras de custos de sua casa, até agora. Três vezes mais do que Vargas calculou.

— Por que tanto?

— Bom, você quis que fosse construída em três semanas.

— Por mil libras eu quase poderia comprar o quinto de um clíper, ora bolas!

— Se o Blue Cloud não chegar a Londres, estaremos com um terrível problema. Outra vez.

— Chegará.

— Gostaria de ser assim tão confiante — Robb respondeu, agressivamente. Struan sentou-se em sua escrivaninha.

— Qual é o verdadeiro problema, rapaz?

— Ah, não sei. Todo esse roubo, essa mendicância... e há coisas demais para fazer. E esse barulho maldito e constante. Estou cansado, eu acho. Não, não é verdade. Há duas coisas. Em primeiro lugar, Sarah. Ela está atrasada duas semanas e você não tem idéia de como uma mulher fica irritada, quando isto acontece, e a pobrezinha está com medo de morrer. Justificadamente. Não há nada que se possa fazer para ajudar, exceto dizer que tudo vai acabar bem. Além disso, há esse negócio de eu ter ficado. Não paramos de brigar. Ela está absolutamente decidida a ir embora, dentro de um ou dois meses... logo que estiver outra vez em condições.

— Você gostaria que eu conversasse com ela?

— Não. Nada poderá ajudar. Ela já decidiu e, quando Sarah decide, é definitivo. Claro que está encantada por termos ficado ricos de novo, mas vai embora assim mesmo. O baile não ajudou. .. ela está furiosa por se encontrar “grávida, gorda e feia”, como diz de si mesma. Nada que você disser fará a menor diferença.

— Isso é a “primeira” coisa. E a segunda?

— Culum. Você e Culum.

Struan olhou, através da porta da tenda, para o porto e os muitos navios ordenadamente ancorados.

— Ele parece estar muito bem.

— Não é isso que eu queria dizer.

— Deixe as coisas como estão, por enquanto.

— É uma situação muito ruim. Ruim para vocês dois e ruim para a casa.

— Deixe passar algum tempo, Robb.

— Eu estou lhe pedindo. Por favor, perdoe-o. Por favor.

— Deixe o tempo passar, Robb. — Struan virou-se. — Um tempinho.

— Muito bem, Dirk. — Robb enfiou as mãos nos bolsos. — O que aconteceu a noite passada em Aberdeen?

Struan contou-lhe e lhe deu os contratos e papéis de tutela. Mas nada disse a respeito de Wu Kwok, Quemoy e a noite do festival de verão. A noite iria acontecer enquanto ele ainda fosse Tai-Pan, e o que fazer com relação ao assunto era decisão do Tai-Pan — e só dele.

Robb ficou interessado.

— Onde estão os meninos, agora?

— A bordo do Resting Cloud. Deixei-os aos cuidados de Wolfgang. Os homens estão a bordo do China Cloud.

— É melhor mandarmos os meninos para nosso país, logo que possível. Se todos souberem que temos ligações com aqueles malditos piratas... bom, só Deus sabe que problemas teremos de enfrentar.

—O Thunder Cloud está quase cheio de carga. Dentro de quatro ou cinco dias, estará em condições de navegar. Irão nele.

— Vou mandá-los para Whampoa hoje.

— Não, rapaz. Eu mesmo os levarei, amanhã. É mais seguro. Tem muita coisa em jogo em Cantão, então é melhor eu voltar diretamente para lá. Quer ir também?

— Não posso, Dirk. Sarah está muito perto de ter criança. Por que não leva Culum?

— Há muita coisa para fazer aqui.

— Há muita coisa para ensinar a ele a respeito de chá, seda e navegação. Só faltam quatro meses.

— Está bem.

— Qual o seu plano, com relação aos homens?

— Em primeiro lugar, Wolfgang e Gordon vão ensinar-lhes inglês. Dentro de três meses, nós os colocaremos nos clíperes. Nunca mais de um no mesmo navio. E ponha sua esperta cabeça para funcionar, a fim de descobrir como conseguiremos que passem para o

nosso lado.

— Vou tentar. Fico imaginando que maldade Wu Kwok e Scragger estarão maquinando. Não confio neles, nem um pouquinho.

Sim, Struan pensou, imagino o que você faria, Robb, com relação à noite do festival... se soubesse. Você enviaria fragatas. Tendo certeza. E talvez as estivesse mandando para uma armadilha. Será que vou fazer isso? Não sei ainda.

Robb observou, através da porta da tenda, a atividade de construção.

— Se Deus ficar do nosso lado, nesta temporada, vamos alcançar uma grande dianteira, com relação a Brock.

— Sim. — Mas o que fazer com ele? E com Gorth?

— Acho que deveríamos aterrar um trecho de mar e estender os ancoradouros até águas profundas — disse Robb. — Tanto faz executar esses trabalhos agora como no próximo ano.

— Boa idéia, rapaz.

— Com licença, senhor — disse Cudahy, chegando às pressas — mas o senhor me disse para me apresentar imediatamente.

— Entre, Sr. Cudahy — disse Robb. — Como foram as coisas?

— Tudo num abrir e fechar de olhos, senhor. O paquete com a correspondência estava onde o senhor disse. Consegui uma lista dos passageiros, como o senhor queria. Interceptamos o navio ao largo de Pokliu Chau. Estará no porto dentro de três horas. — Cudahy sorriu e depôs um pequeno saco de correspondência. — Desculpe, senhor, mas como soube que o paquete estava chegando? Está adiantado um dia.

— Foi só um palpite, Sr. Cudahy — disse Robb. — Espere lá fora, por favor. — E começou a dar uma olhada em sua correspondência. Cudahy bateu continência e saiu.

— Foi uma idéia brilhante, essa sua — disse Robb — de colocar um vigia na montanha.

— Culum lembrou-se, não foi? — Struan ficou satisfeito, registrou a informação e ainda se sentiu mais satisfeito porque Robb e Culum haviam posto o plano em prática secretamente. — Como vocês trocam sinais?

— Escolhemos um dos funcionários, um sobrinho do velho Vargas, Jesus de Vargas, a fim de olhar para o topo da montanha, a cada quinze minutos. Com telescópio, naturalmente, e em segredo, é claro. Culum elaborou um sistema de sinais, com bandeiras. Agora, podemos dizer se o navio é um paquete, se é um dos nossos, ou de Brock ou de Cooper-Tillman.

Examinaram a correspondência. Os jornais e periódicos de três meses eles separaram, para desfrutar com calma. Livros, partituras musicais, peças de teatro, volumes sobre moda para Sarah, ou sobre aperfeiçoamentos náuticos, para Struan, papéis financeiros para Robb.

Em primeiro lugar, os negócios.

O preço das especiarias no mercado de Londres — gengibre, noz-moscada, pimenta e canela — subira apreciavelmente. O do melaço caíra. O preço para compra do chá, devido ao escasso abastecimento, aumentara cinqüenta por cento — o que significava, se

o Blue Cloud chegasse primeiro, que o lucro deles seria superior a duzentos e quarenta mil libras. Sérias perturbações cartistas haviam prejudicado a capacidade das fábricas de algodão do Lancashire e das minas de carvão galesas, o que significava que o custo do óleo de carvão para as lâmpadas iria subir, e o preço dos tecidos de algodão estaria mais alto do que o previsto. O preço do ópio em Calcutá baixara, porque havia supersafra. Então, Struan mudou as ordens dadas ao Sea Cloud, um de seus clíperes nas vias de Hong Kong, e enviou-o urgentemente para Manilha, a fim de receber uma carga de especiarias, em vez de ir a Whampoa, para pegar um carregamento de chá, e mandou em seguida o navio para a Inglaterra, a toda pressa, via Cabo da Boa Esperança. Robb deu instruções a Vargas para comprar todos os metros disponíveis de tecidos de algodão, de fio e linha de algodão, descarregar todos os seus estoques de melaço, e aumentar a encomenda de ópio a ser adquirido em Calcutá e descarregar seus estoques atuais, logo que possível,

E, antes do paquete de correspondência estar ancorado no porto, o Sea Cloud navegava para Manilha, enquanto em três horas de negócios já enriquecera potencialmente em quarenta mil guinéus. Pois em três horas haviam açambarcado o mercado, no tocante aos fornecimentos importados disponíveis de óleo para lâmpadas, mercadorias de algodão, fio e linha de algodão, e especiarias, além de contratarem antecipadamente todo espaço de carga disponível, em todos os navios americanos e ingleses — com exceção das embarcações de Brock e Filhos. Sabiam que, logo após o paquete ancorar e a notícia se espalhar, os compradores correriam às suas portas, a fim de obter algodão e especiarias e fretar navios para levarem tudo, às pressas, à Inglaterra. Ninguém sabia, a não ser os dois irmãos, que o Sea Cloud disparara com a vantagem de pelo menos um dia, e pegaria o melhor do mercado de Londres.— É uma pena que vá nos tomar dois dias, pelo menos, o atendimento às encomendas de todos os nossos clientes e o despacho dos navios para Manilha — disse Robb, alegremente.

— Que pena, Robb, que pena.

— Parece que fizemos um belo trabalho, esta manhã.

Estavam em pé, à porta da tenda, observando o paquete descer as âncoras. Em torno dele, apinhavam-se escaleres cheios de homens ansiosos para pegar sua correspondência. Struan deu uma olhada na lista de passageiros que chegavam.

— Meu Deus, veja isto! — Ele empurrou o papel.

Os olhos de Robb voaram pela lista de nomes. E se fixaram. H.R.H. Arquiduque Zergeyev.

— O que um prócer russo estará fazendo na Ásia, hein?

Robb continuou a ler. Esposas de negociantes, três mercadores que voltavam, nomes de homens que nada significavam para ele. Finalmente, chegou lá.

— Maureen Quance e família? — Ele riu, estrondosamente.

— Diabo, não é coisa para rir — disse Struan. — E o julgamento?

— Ah, meu Deus!

Há seis anos, a mulher de Aristotle entrara furiosa num navio em Macau, com destino à Inglaterra, acreditando — como todos eles acreditaram — que Aristotle, cujo terror por ela era mortal, fugira para lá. Mas em vez de fugir, ele estava escondido no Estabelecimento para Jovens Refinadas da Sra. Fortheringill — o “E & T”, como os moradores locais chamavam o bordel, as “Enguias Trepadoras”. Aristotle saíra do esconderijo uma semana depois de Maureen partir e só meses após voltara a si e se curara dos “eflúvios do álcool”, Os comerciantes atribuíram seus “eflúvios” a uma sobrecarga em sua recepção à casa. Mas ele negou, veementemente: “Quando alguém está num transe desses, por Deus, não tem nenhuma vontade de partilhar aquilo que, por falta de melhor palavra, só posso descrever como ‘quentão’. Deleitoso, certamente, mas ‘quentão’. Não, meus queridos e equivocados amigos, terror e “quentão’ não são “parceiros de cama.” Ninguém acreditou nele.

— O que faremos? — perguntou Robb.

— Se Aristotle ouvir falar nisso, certamente desaparecerá. Irá embora para Cantão e então estaremos perdidos. Precisamos encontrá-lo primeiro, e mantê-lo escondido até à noite.

— Onde está ele?

— Não sei. Despache grupos de busca. Todos os homens. Que o levem para bordo do Thunder Cloud, sob qualquer pretexto, e ali seja mantido até estarmos prontos para o julgamento. Mande Cudahy para bordo do paquete, imediatamente. Para dizer a Maureen que ela e a família são nossos hóspedes... coloquem-nos a bordo do pontão pequeno. Talvez seja possível mantê-la ocupada até amanhã.

— Você jamais conseguirá fazer isso. Ela sente o cheiro de Aristotle.

— Temos de tentar. Você está preparado para ser o juiz?

— E a luta? Ele não vai perder isso!

— Para fazer um retrato de Sarah, ou de uma das crianças, sim.

Robb saiu correndo.

Struan deu uma olhada em seu relógio. Ele ainda tinha uma hora, antes de precisar chegar à nau capitania. Mandou buscar Gordon Chen e lhe pediu para recrutar trinta chineses, a fim de ficarem como vigias.

— Acho que seria aconselhável, Tai-Pan, como precaução suplementar, ter vigias em sua casa, também — disse Gordon. — Eu ficaria mais satisfeito, se assim fosse.

— Boa idéia, Gordon. Aumente o número de homens para trinta e cinco.

— Temo que a maioria dos chineses vindos para o Tai Ping Shan seja gente de muito maus antecedentes. São quase todos procurados por crimes em Kwangtung e, bom, aqui em Hong Kong estão fora do alcance dos mandarins. — Tirou um rolo de pergaminho do fundo da manga. — Ah, a propósito, fiz um acerto com o Rei dos Mendigos para seu baile, esta noite. — Colocou o rolo sobre a escrivaninha. — Aqui está seu recibo. Posso ser reembolsado pelo compradore?

— Recibo? A troco de quê?

— Três taéis. Este modesto imposto garante que nenhum de seus convidados seja incomodado, esta noite. Também fiz um ajuste mensal muito razoável com ele... três taéis, em seu favor, para que os mendigos fiquem afastados dos limites de sua casa, e da Casa Nobre.

— Não vou pagar isso — explodiu Struan. — Não importa que Macau tenha seu Rei dos Mendigos, ou que todas as cidades da China também. Não vamos deixar que isso comece em Hong Kong, por Deus.

— Mas ele já está aqui, e organizado — disse Gordon Chen, com voz calma. — Que outra pessoa dará autorização para os mendigos? Quem será o responsável, senão ele? A quem se poderá pagar imposto, a fim de conseguir o tratamento especial devido a pessoas de riqueza e posição, como nós próprios? Imploro-lhe para reconsiderar, Tai-Pan. Eu lhe aconselharia, empenhadamente.Garanto-lhe que será dinheiro bem gasto. Pelo menos, experimente por um mês. Não é pedir muito. Então verá a sabedoria desse costume. Com certeza, também, irá servir como proteção para sua propriedade, porque os mendigos dão informações sobre ladrões. É muito necessário, acredite no que lhe digo.

— Está bem — disse Struan, afinal — mas por um mês, não mais.

Rubricou o recibo, sabendo que haveria uma taxa permanente para o Rei dos Mendigos. Não havia nenhuma maneira de combater o hábito, a não ser expulsando todos os chineses de Hong Kong

— Você pode pegar isso com Chen Sheng, amanhã.

— Obrigado.

— O que dá a esse homem, em particular, o direito de ser o Hei dos Mendigos, hein?

— Suponho que os outros confiam nele, Tai-Pan.

Gordon Chen fez uma anotação mental para falar com o homem aquela tarde, a fim de garantir que tudo ocorresse como fora planejado, durante o mês seguinte. Estava muito satisfeito, não apenas com o imposto muito baixo que negociara a favor de Struan — dois taéis, para esta noite, e dois taéis por mês, com o saldo de um tael para si próprio, como justo imposto — mas também por sua previdência, quando pediu a Jin-qua que fornecesse um “Rei” de Cantão. Este homem era o irmão mais jovem do Rei dos Mendigos de Cantão, o que significava ser ele um profissional, bem versado nos métodos de extrair o máximo com o mínimo esforço. E este homem, naturalmente, fora recrutado como funcionário de menor escalão da Hung Mun, na sede de Hong Kong. Um acerto perfeito, disse Gordon Chen a si próprio. O imposto dos mendigos seria uma parte valiosa e permanente das rendas da Tong. Então, ele ouviu seu pai fazer a pergunta pela qual estava esperando.

Já ouviu falar nas Tríades, Gordon?

— Li a proclamação, naturalmente — disse Gordon, com calma. — Por quê?

— Sabe algo a respeito?

— Bom, Tai-Pan, ouvi dizer que, historicamente, as sociedades secretas sempre foram uma forma de defesa contra invasores estrangeiros. E que têm muitos nomes.

— Fique de ouvidos atentos e me mantenha informado, em particular, a respeito do que fizerem, se chegarem a fazer algo. Outra coisa, tenho vinte recrutas chineses em minha frota. Vou treiná-los para imediatos. Você vai trabalhar com o Sr. Mauss ensinando-lhes inglês. E dez outros vão para a Inglaterra, a fim de serem treinados para construtores de navios.

— Sim, senhor.

Gordon ficou radiante. Trinta homens. Claro, trinta novos Tríades. Sim, o nome Tríade soava bem, melhor do que Hung Mun. E vinte desses homens, estrategicamente colocados nos navios da Casa Nobre, representariam um acréscimo imensamente valioso para o poder da sede. Ele se sentiu enormemente satisfeito consigo mesmo. O recrutamento fora ótimo. Todos os servos da Tríade foram colocados sob seu controle — pois, naturalmente, desde que os bárbaros estavam na Ásia, os criados eram membros da Tríade, escolhidos a dedo. Em seguida, Gordon ia formar uma liga de cules de navios, todos eles Tríades. A Liga Operária já estava em andamento avançado. Logo todos os trabalhadores e todos os chineses em Hong Kong seriam membros pagantes — para a glória de seu país e do bem comum. Sim, ele disse a si mesmo, cheio de excitação, aqui em Hong Kong, livres do temor dos mandarins, nós nos tornaremos a sede mais poderosa da China. E quando derrubarmos os manchus, a liderança da sede estará na linha de frente entre aqueles de quem o imperador ficará devedor. Morte aos Chings — que chegue logo

o tempo dos dirigentes por direito, nossa dinastia chinesa anterior, dos Mings.

— Quando poderei começar?

— Amanhã.

— Excelente. Pode ter certeza de que me empenharei. — Ele se curvou ligeiramente. — Talvez, quando lhe convier, eu tenha permissão para ajoelhar-me diante da Sra. T’chung e prestar-lhe meus respeitos. E às crianças. Há meses não os vejo.

— Claro, Gordon — disse Struan. — Venha amanhã, ao meio-dia. Por que não começa a dar lições semanais outra vez? Acho que seria bom para ela.

— Eu gostaria de fazer isso. E de conversar com as crianças. — Gordon tirou mais dois pergaminhos da manga. — Eu tenho as contas correspondentes ao mês passado, relativas ao nosso acordo particular. Gostaria de examinar as cifras?

— Sim.

Gordon abriu os pergaminhos. Um estava escrito em caracteres, outro em inglês.

— Estou satisfeito de poder informar, Tai-Pan, que, com base num investimento inicial de dez mil dólares, temos um lucro conjunto de seis mil e cinqüenta e oito dólares

e quarenta e dois centavos. Os olhos de Struan se arregalaram.

— É um ótimo lucro para um mês de comércio.— Eu estou bastante orgulhoso, também. Nossos investimentos em terras são também excelentes. Prometem grande lucro.

— Mas você não comprou terra nenhuma.

— Não em seu leilão. Mas, ah... andei comprando lotes na localidade de Tai Ping Shan. Foram aprovados pelo, ah... Departamento de Terras na semana passada. E possuímos grandes terrenos em torno da vila de Aberdeen e na Baía Deepwater.

— Mas ainda não foram postos à venda.

— São, ah... terras que estão em mãos de moradores locais, Tai-Pan. Direitos antigos. Comprei todos os títulos existentes, pelo menos todos que até agora descobri existirem.

— Mas isso não é legal, rapaz. Todas as terras são de propriedade da Coroa.

— Sim. Mas claro que alguns acordos terão de ser feitos para, ah... compensar os moradores da vila. Há anos estão aí e, bem... a Coroa é magnânima. — Seus olhos estavam cheios de inocência. — O Sr. Culum achou, segundo me pareceu, que Sua Excelência examinaria favoravelmente os títulos “validados”, creio que é esta a palavra, pelos anciãos da vila.

Fico imaginando que extensão dessa terra “validada” não pertence à vila e nem a ninguém, e nunca pertenceu, disse Struan a si próprio.

— Todos os nossos títulos são “validados”?

— Claro que sim, Tai-Pan, e isto foi verificado muito cuidadosamente. Senão, não teriam valor nenhum, não é? — Gordon sorriu. — Nossas terras estão em nome de ah... vários “testas-de-ferro” nossos, e não possuíamos abertamente, claro, propriedade alguma. Só os títulos originais. Os outros subtítulos, subsub e subsubsubtítulos podem passar pelo mais detalhado escrutínio. Fui muito cauteloso.

— Eu acho que você tem um grande futuro nos negócios, Gordon. — Ele examinou

o balancete minuciosamente. — Que item é este? Dois mil novecentos e setenta e oito dólares?

— São rendas de nossa propriedade no Tai Ping Shan.

— Você cometeu um engano. Segundo as datas que apresenta, esta conta cobre um período de rendas de dois meses, e você só possui a terra há um mês.

— Bom, Tai-Pan, logo que os chineses começaram a se instalar em nossas terras no Tai Ping Shan, comecei a lhes cobrar um imposto de serviço. O fato de não termos realmente adquirido a terra por um mês subseqüente não é da conta deles. Não é mesmo?

— Não. Só que se trata de uma fraude.

— Ah, não, senhor. Os fatos mostram o contrário. O ocupante que chegava queria, naturalmente, a melhor terra disponível para arrendar. Nós recebemos um pagamento à vista... e lhe demos o uso da terra antecipadamente, em boa fé. Ele ficava feliz porque estava pagando “aluguel”, pois, naturalmente, todos têm, de pagar aluguel. A soma é, na verdade, apenas uma taxa por serviço. Corri um grande risco ao fazer o serviço para eles. Se não tivermos conseguido comprar o lote e, assim, dar-lhes o benefício de um longo arrendamento, ora, com certeza teriam caído nas mãos de usuários, ladrões e bandoleiros.

Struan grunhiu.

— O que você planeja fazer com o resto do dinheiro?

— Se me dá permissão para pedir que seja paciente, eu gostaria de deixar este assunto para ser tratado no mês que vem. Continuarei a fazer uso do crédito que foi tão bondoso em me oferecer, mas com grande cautela.

Struan enrolou outra vez o pergaminho e entregou-o de volta.

— Ah, não, Tai-Pan, esta é sua cópia.

— Está bem.

Struan pensou por um momento; depois disse, com delicadeza:

— Ouvi dizer que os chineses estão acostumados a pedir dinheiro emprestado a altas taxas de juros. Confio que nossos investimentos não serão absolutamente usados desta maneira. — Seus olhos estavam fixos nos de Gordon. Houve um longo silêncio — A usura é mau negócio.

— Emprestar dinheiro é um negócio muito importante.

— Com taxas de juros razoáveis.

Gordon brincou com a extremidade de seu rabicho. — Um por cento a menos do que o costumeiro?

— Dois.

— Um e meio seria muito, muito justo.

— Sim. Muito justo. Você é um astuto homem de negócios, Gordon. Talvez no próximo ano eu possa melhorar o limite de crédito.

— Farei um esforço para obter lucros soberbos, apesar de sua decisão.

— Eu também aposto que você obterá, Gordon — disse Struan. Ele olhou através da porta da tenda e ficou surpreso ao ver que o mestre-d’armas dos fuzileiros navais corria em direção a eles.

— Sr. Struan? — O mestre-d’armas fez uma brusca continência. — Receba os cumprimentos de Sua Excelência, que lhe pede para ir encontrar-se com ele, imediatamente, na nau capitania.

Struan olhou para seu relógio. Não era tarde, mas ele não disse mais do que “Claro”.


CAPÍTULO DEZOITO

Longstaff estava com as costas voltadas para a porta e olhava, através das janelas da cabina principal, para o paquete que trouxera a correspondência. Struan observou que a mesa de jantar estava posta para quatro pessoas. Sobre a escrivaninha havia muitos despachos oficiais.

— Bom-dia, Will.

— Olá, Dirk. — Longstaff virou-se e estendeu a mão, e Struan verificou que há meses ele não parecia tão jovem.

— Bom, isso é curioso, não?

— O quê? — perguntou Struan, sabendo que deveria ser o russo. Mas deixou Longstaff ter o prazer de lhe dizer. Ele também queria saber a opinião de Longstaff porque, embora estivesse deslocado na Ásia e fosse inútil como Capitão-Superintendente de Comércio, Struan sabia que os pontos de vista de Longstaff sobre as questões diplomáticas européias eram incisivos e extremamente sagazes.

Desde que Struan conseguira resolver o problema imediato de Aristotle e vira Robb levá-lo para bordo em segurança, ficara a pensar, perplexo, sobre a razão da chegada do russo. Achou-a estranhamente perturbadora, mas não sabia por quê.

— Você não deve ter sabido ainda, mas temos um convidado.

— Ah, quem?

— Um arquiduque, nada mais, nada menos. Um arquiduque russo. Alexi Zergeyev. Ele chegou no paquete que trouxe a correspondência. Struan fingiu surpresa.

— Por que teríamos tal “honra”, aqui na Ásia?

— Por que, realmente? — Longstaff esfregou as mãos, todo satisfeito. — Ele vem almoçar conosco. Clive está a escoltá-lo.

Clive Monsey era o vice-capitão-superintendente de comércio de Longstaff, funcionário público por profissão e, como Longstaff, designado pelo Ministério de Relações Exteriores. Normalmente as funções de Monsey prendiam-no em Macau, onde Longstaff mantinha seu quartel-general permanente.

— Há também alguns despachos interessantes — disse Longstaff.

O interesse de Struan aumentou. Sabia que nenhum deles continha a aprovação formal do Tratado de Chuenpi e a indicação de Longstaff como primeiro governador da Colônia de Hong Kong, porque a notícia do fim da guerra e da vitória mal estaria chegando à Inglaterra. Struan aceitou o xerez.

— Sobre o Oriente Médio? — perguntou, e prendeu a respiração.

— Sim. A crise acabou, graças a Deus! A França aceitou o acordo do Ministro de Relações Exteriores e não há mais temores de uma guerra generalizada. O sultão turco está tão grato pelo nosso apoio que assinou um tratado comercial conosco, cancelando todos os monopólios comerciais turcos, abrindo todo Império Otomano ao comércio britânico.

Struan deu um grito.

— Por tudo que há de mais sagrado! É a melhor notícia que ouço há muito tempo!

— Achei que você iria gostar — disse Longstaff.

A longa crise se relacionava com o Dardanelos, estreito que era controlado pelo Império Turco Otomano. Era a chave para a Europa mediterrânea e Um casus belli perpétuo entre as Grandes Potências — Inglaterra, França, Rússia, Áustria-Hungria e Prússia — porque o Dardanelos era um atalho para os navios de guerra russos penetrarem no vital Mediterrâneo, e também para belonaves de outras nações entrarem no Mar Negro e ameaçarem o fraco baixo-ventre da Rússia. Há oito anos, a Rússia compelira a Turquia a assinar um tratado que dava aos russos suzerania conjunta sobre o Dardanelos, e a tensão internacional tornara-se aguda, desde então. Mas, há três anos, Mehemet Ali, o arrivista soldado-paxá do Egito, apoiado pelos franceses, iniciara um ataque a Constantinopla, proclamando a si próprio Califa do Império Otomano. A França, aberta e delicadamente, apoiou-o contra o sultão. Mas um aliado francês no caminho de Dardanelos colocaria em risco os interesses das Grandes Potências restantes, e toda Europa prometia envolver-se imediatamente em conflito aberto outra vez.

O Ministro de Relações Exteriores britânico, Lord Cunnington, persuadira as Grandes Potências — além da França, e sem consultá-la — a usar sua influência ao lado do sultão contra Mehemet Ali. A França ficou furiosa e ameaçou fazer guerra. O acordo proposto era no sentido de que Mehemet Ali se retirasse para o Egito; recebesse suzerania sobre a Síria enquanto vivesse; fosse confirmado como governante independente do Egito; pagasse apenas um tributo anual nominal ao sultão turco; e, o que era o mais importante, o antigo domínio do Estreito de Dardanelos fosse garantido por todas as potências, em caráter definitivo — enquanto a Turquia estivesse em paz. o estreito permaneceria fechado a todos os navios de guerra, de todas as nações.

O fato de a França ter aceitado o proposto acordo e a retirada de seu aliado egípcio significava riquezas para a Casa Nobre.Agora, os complexos acordos financeiros nos quais Robb e Struan haviam apostado tanto, por dois anos, seriam solidificados. Sua potência comercial iria estender-se, através de tentáculos financeiros, até o coração das Grandes Potências, dando-lhes a segurança suficiente para enfrentar a contínua crise internacional e abrir enormes mercados novos para o chá e a seda. Além disso, se o interesse britânico agora dominava o Império Otomano, talvez sua produção de ópio fosse impedida. Sem o ópio turco para equilibrar seu extravasamento de barras de prata, as companhias americanas teriam de aumentar o comércio com a Inglaterra, e os laços mais íntimos que Struan desejava com a América se transformariam em realidade. Sim, disse Struan a si mesmo, feliz, este é um ótimo dia. Estava aturdido com o fato de Longstaff ter recebido as notícias oficiais antes dele; os informantes de Struan no Parlamento habitualmente o aconselhavam sobre importantes revelações como essa com grande antecipação.

— Isto é excelente — disse.

— Haverá paz por um longo tempo, agora. Desde que a França não tente mais nenhum truque.

— Ou a Áustria-Hungria. Ou a Prússia. Ou a Rússia.

— Sim. O que nos leva a Zergeyev. Por que um russo muito importante viria à Ásia nesta ocasião? E por que não tivemos nenhum aviso oficial e nem extra-oficial, hein? Quando controlamos todas as vias marítimas a leste da África?

— Talvez ele só esteja fazendo uma visita oficial ao Alasca russo, e veio via Cabo da Boa Esperança.

— Aposto cem guinéus que ele diz isso — observou Longstaff. Instalou-se confortavelmente numa cadeira e pôs os pés sobre a mesa. — Zergeyev é um nome importante em São Petersburgo. Vivi ali por cinco anos, quando era menino... meu pai foi diplomata na corte dos tzares. Tiranos, todos eles. O atual, Nicolau I, é típico.

— Zergeyev é importante em que sentido? — perguntou Struan, surpreso com o fato de Longstaff jamais ter mencionado São Petersburgo, em todos os anos durante os quais o conhecera.

— Grandes proprietários de terras. Aparentados com o tzar. Eles “possuem” dezenas de milhares de servos e centenas de vilas, pelo que me lembro. Eu me recordo de ter ouvido meu pai dizer que o Príncipe Zergeyev, deve ser da mesma família, era íntimo dos elementos da corte que cercavam o tzar e um dos homens mais poderosos da Rússia. É curioso encontrar um deles aqui, entre todos os lugares do mundo, não é?

— Acha que a Rússia vai tentar interferir na Ásia?— Eu diria que esse homem é conveniente demais para sua vinda ser uma simples coincidência. Agora que o status quo foi restaurado no Oriente Médio e o caso de Dardanelos resolvido, estoura um arquiduque!

— Acha que existe uma ligação? Longstaff riu, baixinho.

— Bom, o acordo referente ao Oriente Médio claramente detém os avanços da Rússia para oeste, mas o país ainda pode permitir-se sentar e esperar. A França está doida por uma briga, e a Prússia também. Aquele demônio da Áustria-Hungria, Metternich, enfrenta dificuldades para dominar as possessões italianas da nação, e está furioso com a França, e com a Inglaterra, por ajudarem os belgas a formarem seu próprio país, às expensas dos holandeses. Vai haver um grande problema entre a Inglaterra e a França, com relação à sucessão espanhola... a rainha espanhola está com doze anos e logo vai ser dada em casamento. Louis Philippe quer que seu indicado seja o marido dela, não podemos permitir uma união dos tronos da França e da Espanha. A Prússia quer estender seu domínio na Europa que, historicamente a França sempre considerou como seu direito exclusivo e divino. Ah, sim — ele acrescentou, com um sorriso — a Rússia pode permitir-se esperar. Quando o Império Otomano se dividir, ela calmamente tomará toda área dos Bálcãs. Romênia, Bulgária, Bessarábia, Sérvia. e também tudo que puder engolir do Império Austro-Húngaro. Claro que não podemos deixá-la fazer isso, então haverá uma guerra generalizada, a menos que os russos aceitem um acordo razoável. Então, do ponto de vista da Rússia, a Europa não representa atualmente nenhum perigo. A Rússia foi bloqueada efetivamente, mas isto não importa. Sua política histórica foi sempre conquistar pela esperteza... subornar os líderes do país e os líderes da oposição, se esta existir. Para estender o território através da “esfera de influência” e não com a guerra e, depois, obliterar os líderes e engolir o povo. Quando não houver ameaça do Ocidente, eu acho que os olhos dos russos irão voltar-se para leste. Porque eles acreditam ainda, que seu país tem uma posição divina na terra, e também, como a França e a Prússia, tem a missão, destinada por Deus, de dominar o mundo. Para leste, nenhuma Grande Potência fica entre ela e o Pacífico.

— Com exceção da China.

— E nós sabemos, você e eu, que a China é fraca e indefesa. Isto não representa vantagem para nós, não é? Uma China fraca e uma Rússia muito forte, talvez controlando a China?

— Não — disse Struan. — Assim ela poderia estrangular-nos à vontade. E à índia.Os dois homens ficaram em silêncio, cada qual perdido em seus próprios pensamentos.

— Mas, por que mandar para cá um homem importante? — perguntou Struan.

— Para nos testar. A resposta é clara, historicamente. A Rússia é uma semeadora de grãos do descontentamento e sempre será, até descobrir quais são as suas fronteiras naturais, do seu ponto de vista. Ela faz fronteiras com a China, pelo menos, segundo sabemos, então, deve haver problemas aí. Zergeyev está aqui para verificar nosso sucesso. Quanto mais fraca ele pensar que a China é, mais razão terão os russos para apressarem sua expansão em direção ao leste. Então, temos de tentar neutralizá-lo, despistá-lo, fazê-lo pensar que a China é muito forte. Vou precisar de toda ajuda que você puder me dar. Poderíamos convidá-lo para o baile, esta noite?

— Claro.

— Precisamos mostrar, de qualquer jeito, que a China pertence à esfera privada de influência de Sua Majestade... que o Governo de Sua Majestade não tolerará nenhuma interferência aqui.

A mente de Struan deu um salto para a frente, rapidamente. Quanto mais a Coroa estivesse envolvida na Ásia, mais ajudaria no plano básico — levar a China para a família das nações, como uma Grande Potência. Quanto mais forte fosse a China, treinada e assistida pela Inglaterra, melhor para o mundo em geral. Sim. E não podemos permitir uma interferência russa despótica, quando nos encontramos no limiar do sucesso.

Houve uma batida à porta e Clive Monsey apareceu no umbral. Era um homem magro, na metade de seus quarenta anos, quieto, modesto, com cabelo ralo e um grande nariz bulboso.

— Excelência -disse ele — posso apresentar-lhe Sua Alteza o Arquiduque Alexi Zergeyev? Longstaff e Struan levantaram-se. Longstaff encaminhou-se para o arquiduque e disse, em russo perfeito:

— Muito prazer em conhecê-lo, Alteza. Por favor, venha sentar-se. Fez uma boa viagem?

— Perfeita, Excelência — respondeu Zergeyev, sem demonstrar surpresa, e apertou a mão estendida, fazendo uma ligeira curvatura, com graça perfeita. — É muita generosidade sua convidar-me para almoçar, quando não tive a cortesia de lhe avisar da minha chegada. E, particularmente, sendo minha visita não oficial e nem programada.

— É uma felicidade para nós, Alteza.

— Eu esperava que fosse o filho do estimado amigo da Rússia, Sir Robert. Esta é uma coincidência muito afortunada.

— Sim, na verdade — disse Longstaff, laconicamente. — E como está seu pai, o príncipe? — perguntou, arriscando um palpite.

— Goza de boa saúde, tenho o prazer de dizer. E o seu?

— Morreu há alguns anos.

— Ah, sinto muito. Mas e sua mãe, Lady Longstaff?

— Muito bem de saúde, tenho o prazer de dizer.

Struan estava examinando o russo. Zergeyev era um belo homem, alto, vestido de maneira impecável e rica. Pômulos salientes e olhos azuis curiosos, ligeiramente oblíquos, davam-lhe ao rosto uma expressão exótica. A espada embainhada que tinha à cintura, sob

o casaco aberto, parecia pertencer àquele lugar. Em torno ao pescoço, sob sua imaculada gravata branca, havia uma discreta condecoração de alguma ordem, sobre uma fina fita escarlate. Não era um homem para se brigar, pensou Struan. Aposto que ele é um demônio com a espada e um demônio quando sua “honra” é ferida.

— Permita-me apresentar-lhe o Sr. Dirk Struan — disse Longstaff, em inglês.

O arquiduque estendeu a mão, sorriu e acrescentou num inglês com apenas levíssimo sotaque:

— Ah, Sr. Struan, o prazer é todo meu.

Struan apertou-lhe a mão e achou que o aperto de Zergeyev era de aço.

— O senhor me coloca em posição de desvantagem, Alteza — disse ele, sendo deliberadamente brusco e não diplomático. — Tenho a nítida impressão de que sabe muito a meu respeito, mas nada sei sobre o senhor.

Zergeyev riu.

— O Tai-Pan da Casa Nobre tem uma reputação que chega até São Petersburgo. Esperava ter o privilégio de conhecê-lo. E estou ansioso para conversar e lhe contar a meu respeito, se isto lhe interessa. — Ele sorriu para Longstaff. — É generoso demais para comigo, Excelência. Garanto-lhe que informarei a Sua Alteza o Tzar que o plenipotenciário de Sua Majestade Britânica é muito hospitaleiro. Agora que tive o prazer de conhecê-lo, vou retirar-me e permitir que continuem a tratar de questões de Estado.

— Ah, não, Alteza, por favor, nós o esperávamos para o almoço. — Longstaff animou-se com a tarefa para a qual havia sido preparado e da qual entendia. — Ficaríamos muito desapontados. E é completamente informal, como pode ver.

— Bem, obrigado. Eu consideraria uma honra.

A porta se abriu e um camaroteiro entrou com champanha gelado e copos. Ele ofereceu a bandeja a Zergeyev, depois a Longstaff e Struan e em seguida a Monsey.— A uma viagem segura para casa — disse Longstaff.

Beberam.

— Soberbo champanha, Excelência. Soberbo.

— Sente-se, por favor.

O almoço foi servido dentro de um protocolo impecável, Zergeyev sentado à direita de Longstaff e Struan à esquerda. Os camaroteiros trouxeram salsichas e ostras defumadas, presuntos de Yorkshire, um cozido borbulhante de carne recém-abatida, pernil assado de carneiro, batatas cozidas e repolho em picles.

— Sinto não ter caviar — disse Longstaff.

— Ficaria satisfeito em lhe oferecer um pouco, Excelência, logo que meu navio chegar. Tivemos a infelicidade de enfrentar uma tempestade no Estreito Sunda. Sofremos um rombo e arribamos em seu porto de Cingapura. O paquete estava partindo na mesma maré, e então comprei passagem para cá.

E assim evitou nos dar notícia antecipada, pensou Longstaff. O Estreito de Sunda significava uma viagem via Cabo da Boa Esperança. O que diabo pretendia ele?

— Ouvi dizer que o clima de Cingapura não é bom, Sr. Struan, nesta época do ano — dizia Zergeyev.

— Sim, é verdade — disse Struan. — Esta é sua primeira viagem para a Ásia, Alteza?

— Sim.

— Bom, talvez possamos tornar sua estada agradável. Estou dando um baile, esta noite. Ficaria honrado, se comparecesse. Isto lhe daria a oportunidade de conhecer a todos.

— É muita gentileza sua.

— Por quanto tempo planeja ficar?

— Só até meu navio chegar. Estou fazendo uma visita informal às nossas possessões no Alasca.

— O navio ficou muito danificado?

— Realmente não sei, Sr. Struan. Não tenho muita experiência dessas coisas. Virá para cá logo que possível.

— Então, vai precisar de acomodações — disse Struan. Ele suspeitava que Zergeyev sabia muito a respeito “dessas coisas” e que o “defeito” de seu navio seria uma maneira conveniente de variar a seu gosto a duração da permanência. Struan também tinha um palpite de que Cingapura seria o primeiro porto a ser tocado, numa viagem ao exterior partindo de São Petersburgo.

— Ficaremos satisfeitos de lhe oferecer uma suíte a bordo de um de nossos navios parados. Não será luxuosa, mas nos esforçaremos para lhe oferecer conforto.

— É uma gentileza imensa de sua parte. Somos apenas eu e quatro servos. Eles podem dormir em qualquer parte.

— Providenciarei para que fiquem bem instalados. Ah, obrigado — disse Struan ao camaroteiro, enquanto seu copo era outra vez cheio. — Trata-se de um brigue de quatro mastros?

— Três.

— Na verdade, prefiro os de três mastros. É muito mais fácil de manobrar em mar alto. As velas são mais fáceis de rizar. Tem sobrejoanetes e gáveas.

— O navio parece ter um número adequado de velas, Sr. Struan. Seja lá quais forem seus nomes.

Struan captara a imperceptível hesitação e teve certeza de que Zergeyev era um homem do mar. E por que desejaria esconder isto?

— Ouvi dizer que a crise do Oriente Médio foi resolvida — disse Zergeyev.

— Sim — respondeu Longstaff. — A notícia chegou pelo paquete.

— Que ótimo. A França foi muito sábia, desistindo de sua posição militante.

— A importância de Dardanelos para a Inglaterra é óbvia — disse Longstaff. — É vantajoso para todos nós manter a paz.

— É uma pena que a França e a Prússia, pelo que parece, tenham posições contrárias. E os Habsburgos. A Inglaterra e a Rússia são aliadas tradicionais e seus interesses se assemelham, É um pensamento feliz, o de que estaremos trabalhando mais próximos, no futuro.

— Sim — disse Longstaff, com brandura. — Claro que Paris está muito próxima de Londres.

— Não é uma pena que aquela gloriosa cidade sempre encontre, pelo que parece, os líderes mais estranhos? — disse Zergeyev. — Um belo povo, belo. Entretanto, seus líderes estão sempre inchados de vaidade e decididos a semear no mundo a discórdia.

— O grande problema do mundo, Alteza. A Europa, e como conter a vaidade dos príncipes. Claro, na Inglaterra temos a sorte de possuir um Parlamento, e o poder da GrãBretanha não é mais posto a serviço da guerra pelo capricho de um só homem.

— Sim. É uma grande e gloriosa experiência, adequada para os esplêndidos atributos de seu país, senhor. Mas não é adequada para todas as nações. Não foram os antigos gregos que concluíram ser a mais perfeita forma de governo uma ditadura benévola? O governo de um só homem?

— Benévola, sim. Mas eleita. Não um governante por direito divino.

— Quem pode dizer, com absoluta certeza, que o direito divino não existe?

— Ah, Alteza — disse Longstaff — ninguém questiona a existência de Deus. Só o direito de um rei fazer o que quer, quando quer, sem consultar o povo. Tivemos uma longa dinastia de reis ingleses “divinos”, que descobrimos serem falíveis. A falibilidade num líder é muito penosa. Não é? Eles derramam tanto sangue dos outros.

Zergeyev deu uma risadinha.

— Amo o humor dos ingleses. — Ele deu uma olhada em Struan. — É escocês, Sr. Struan?

— Sim. Britânico. Não há diferença entre os escoceses e os ingleses atualmente. — Ele bebeu seu vinho. — Estamos cansados de roubar o gado deles. Achamos que seria melhor roubar o país inteiro e então saímos da Escócia e marchamos para o sul.

Todos riram e beberam mais vinho. Longstaff divertiu-se ao ver que Monsey ficara silencioso durante toda a refeição, perturbado com a rudeza de Struan.

— O que acha, Sr. Struan? — disse Zergeyev. — Poderia dirigir a Casa Nobre discutindo com um “Parlamento”?

— Não, Alteza. Mas só coloco uma companhia em conflito... em competição, com outros negociantes. Arrisco apenas a mim e à minha companhia. Não a vida de outrem.

— Entretanto, há uma guerra, agora, com a China. Porque os pagãos tiveram a temeridade de interferir em seu comércio. Não é certo?

— Em parte. Claro, a decisão de entrar em guerra não chegou a ser minha.

— Claro. Meu ponto de vista era de que só o senhor tem o direito de operar uma vasta sociedade comercial, e esta é a maneira de agir mais eficiente. Governo de um só homem. Certo para uma companhia, uma frota, uma nação.

— Sim. Desde que seja bem-sucedido — disse Struan, brincando. Depois, acrescentou, com seriedade: — Talvez, no presente, o sistema parlamentar não seja adequado para a Rússia... e para alguns outros países, mas estou convencido de que jamais haverá paz neste mundo, até todas as nações terem o sistema parlamentar inglês e todos os povos o direito de votar, e nenhum homem sozinho volte outra vez a controlar os destinos de qualquer nação, seja por direito divino ou por direito obtido através dos votos estúpidos, de um eleitorado estúpido.

— Concordo — disse Zergeyev. — Sua hipótese é correta. Mas tem uma grande falha. O senhor supõe uma população mundial esclarecida, toda igualmente educada, toda próspera, o que é, naturalmente, impossível, não é? Deveria viajar pela Rússia, para ver como isto é impossível. E o senhor não faz concessões ao nacionalismo e às diferenças de fé. Se acrescentasse “até todas as nações serem cristãs”, então talvez estivesse certo. Mas, como pode imaginar que os católicos franceses fossem concordar com os protestantes ingleses? Ou a Igreja Ortodoxa Russa com os jesuítas espanhóis? Ou todos os que estão com as massas dos infiéis maometanos, e os que apóiam os miseráveis judeus, ou os idolatras e pagãos?

Struan respirou fundo.

— Estou satisfeito porque o senhor fez esta pergunta — disse ele, e se calou, deliberadamente.

— Vejo que teremos muitas discussões interessantes — disse Longstaff, descontraidamente. — Chá, Alteza? Há uma luta, dentro de uma hora. Se não estiver demasiado cansado, talvez goste de assistir a ela. Promete ser uma grande luta. A Marinha contra o Exército.

— Ficarei encantado, Excelência. Em quem aposta? Eu ficarei com a oposição.

— Um guinéu para a Marinha.

— Feito.

Depois do almoço, tomaram chá e fumaram charutos e, afinal, Monsey escoltou o arquiduque de volta para o paquete. Longstaff dispensou os camaroteiros.

— Acho que uma fragata deveria imediatamente fazer uma visita, “por acaso”, a Cingapura — disse ele a Struan.

— Pensei a mesma coisa, Will. Ele é um homem do mar, tenho certeza.

— Sim. Foi uma coisa muito inteligente, Dirk. — Longstaff brincou com a sua xícara. — E ele é um homem muito astuto. Um homem assim, provavelmente, teria o maior cuidado com documentos oficiais.

— Pensei a mesma coisa.

— Eu gostei de minha estada em São Petersburgo. Menos das longas horas na escola. Tive de aprender a ler e escrever em russo, bem como em francês, claro. Russo é uma língua muito difícil.

Struan se serviu de um pouco de chá.

— Você jamais gostou de lutas, não é, Will?

— Não. Acho que só o acompanharei até a terra e depois voltarei para bordo. A fim de tirar um cochilo. — Longstaff riu, secamente. — Preparar-me para as festividades de hoje à noite, hein?

Struan levantou-se.— Sim. E é melhor que eu pense em alguns grãos de descontentamento para eu próprio semear. Enquanto os camaroteiros tiravam a mesa, Longstaff ficou olhando distraidamente as folhas em sua xícara.

— Não — disse, impedindo que a levassem, bem como ao bule. — E providenciem para que eu não seja perturbado. Quero ser chamado dentro de uma hora.

— Sim, senhorrr.

Ele sufocou um bocejo, com a mente vagando, prazerosamente, na tranqüilidade da cabina. Puxa vida, estou encantado por Zergeyev se encontrar aqui. Agora, podemos gozar a vida, um pouquinho. Uma boa esgrima diplomática. Sondar-lhe a mente, o objetivo é este. Esquecer as incessantes irritações da Colônia, os malditos negociantes e o malfadado imperador e os filhos da mãe dos pagãos, um bando amaldiçoado de ladrões.

Abriu a porta de sua cabina particular e ficou confortavelmente deitado no beliche, com as mãos sob a cabeça. O que Dirk tinha dito? — perguntou a si mesmo. Ah, sementes do descontentamento. É uma boa maneira de colocar as coisas. Que sementes poderemos plantar? Sombrias insinuações sobre a potência da China? A imensidão de sua população? Que o Governo de Sua Majestade poderá anexar todo país, se qualquer potência se intrometer? As complicações do comércio do ópio? Chá?

Ele ouviu ruído de passos, em cima, enquanto mudava o turno e a banda de fuzileiros começava a praticar. Bocejou de novo e fechou os olhos, satisfeito. Não há nada como um cochilo depois do almoço, disse a si próprio. Graças a Deus sou um cavalheiro — não preciso plantar sementes de verdade, como um camponês fedorento, ou um lavrador sujo. Droga, imagine trabalhar com as mãos o dia inteiro! Semeando. Fazendo o cultivo. Com todo o esparramento de estéreo. Pensamento horripilante. Plantar as sementes diplomáticas é muito mais importante e uma tarefa de cavalheiro. Ora, onde estava eu? Ah, sim. Chá. A vida deve ter sido terrível, antes de termos o chá. Absolutamente terrível. Não posso entender como as pessoas existiam sem chá. É uma pena que não possa ser cultivado na Inglaterra. Isto evitaria uma série de problemas.

— Meu Deus do céu! — exclamou, e se sentou, teso. — Chá! Claro, chá! Esteve anos embaixo de seu nariz e você nunca viu! Você é um gênio!

Ele ficou tão excitado com sua idéia que pulou da cama e dançou uma giga. Depois, aliviou-se no urinol e foi para a cabina principal, onde se sentou à sua escrivaninha, com

o coração batendo forte. Você sabe como resolver o pesadelo da Inglaterra-China com relação ao desequilíbrio chá-barras de prata-ópio. Você sabe, ele disse a si mesmo, espantado e aterrorizado, com o brilhantismo e a simplicidade da idéia que a frase final de Struan deflagrara.

— Bom Deus, Dirk — disse, alto — se você soubesse. Você cortou sua própria garganta, e a de todos os negociantes na China, junto com você. Para a glória da. GrãBretanha e a minha imortalidade! Sim, é claro. Então é melhor você manter a boca fechada, advertiu a si mesmo. As paredes têm ouvidos.

A idéia era tão simples — destruir o monopólio de chá da China. Comprar, pedir ou roubar — com grande segredo — uma tonelada das sementes da planta do chá. Transportar as sementes, sub-repticiamente, para a Índia. Deve haver dúzias de áreas nas quais o chá floresceria. Dúzias. E, ainda no período da minha vida, as plantações poderão estar florescendo — e estaremos cultivando nosso próprio chá, em nosso próprio solo. Com chá nosso, não precisaremos mais de barras de prata e nem de ópio para pagar pelo chá da China. Os lucros sobre as vendas de chá indiano logo se igualarão, serão o dobro ou o triplo da venda do ópio, então isso não é problema. Cultivaremos o chá para o mundo e o venderemos para o mundo. A Coroa ganhará, com as rendas do chá fantasticamente aumentadas, pois, naturalmente, nós o cultivaremos de maneira mais barata e mais aperfeiçoada do que a China cultiva o seu chá. Ora, há os cérebros ingleses e tudo mais! E nós ganharemos em grandeza moral, por parar com o comércio do ópio. Os malditos contrabandistas de ópio serão postos para fora do negócio, pois, sem a alavanca do ópio, não terão nenhuma função útil e, então, poderemos proibir o ópio. A Índia ganhará imensamente. E a China ganhará, pois não haverá mais contrabando de ópio, e ela consome seu próprio chá, de qualquer maneira.

E você, William Longstaff — o único homem que pode executar tal plano — você ganhará um prestígio monumental. Com um pouco de sorte, um ducado oferecido por um Parlamento cheio de gratidão, pois você, e só você, solucionou o que não tinha solução.

Mas, em quem poderei confiar, para obter as sementes do chá? E como persuadir os chineses a vendê-las? Claro que eles adivinharão imediatamente as conseqüências. E em quem confiar para transportar as sementes em segurança? Não podemos usar um dos negociantes — eles me sabotariam imediatamente, se tivessem a menor suspeita! E, como colocar o Vice-Rei da Índia do meu lado, agora, para ele não roubar o crédito da idéia?


CAPÍTULO DEZENOVE

Quando os dois homens e seus auxiliares subiram no ringue construído perto da bandeira, no Cabo Glessing, fez-se um silêncio não rompido sequer por ruído de respiração, na massa de espectadores.

Ambos os lutadores eram troncudos, mal-encarados e de elevada estatura, no começo da casa dos vinte. E os dois tinham a cabeça raspada, para se proteger do puxão do outro. E, quando tiraram as camisas grossas, cada qual tinha a mesma ondulação de aço nos músculos proeminentes, e apresentava nas costas antigos sulcos de açoites.

Os lutadores formavam uma bela dupla, e todos sabiam que havia muita coisa em jogo. O almirante e o general haviam aprovado pessoalmente a escolha dos homens e os exortaram a ganhar. A honra de todo o Serviço estava sobre seus ombros, o dinheiro da poupança de seus companheiros. O futuro seria doce para o vencedor. Para o vencido, não haveria futuro.

Henry Hardy Hibbs trepou pela única corda e ficou em pé no centro do ringue, onde havia sido traçada a giz a marca do metro quadrado.

— Sua Excelência, Sua Alteza, senhoras e senhores cavalheiros — ele começou. — Uma luta decisiva entre, neste canto, Mestre Jem Grum, da Marinha Real...

Houve um grande viva, partindo da multidão de marinheiros, a leste, e apupos e obscenidades entre as fileiras numerosas de soldados ingleses e indianos, a oeste. Longstaff, o arquiduque, o almirante e o general estavam sentados no lugar de honra, ao norte do ringue, com uma guarda da honra de impassíveis fuzileiros navais a cercá-los. Atrás do arquiduque, estavam seus dois guarda-costas em libré, armados e vigilantes. Struan, Brock, Cooper, Tillman, Robb, Gorth e todos os tai-pans estavam sentados do lado sul e, atrás deles, se encontravam os negociantes de menor importância e os oficiais navais e do Exército, todos se acotovelando, para ver melhor. E, na periferia, havia a multidão sempre crescente de chineses que jorrava das choupanas do Tai Ping Shan, conversando, dando risadas, à espera.

— E, neste canto, representando o Exército Real, Sargento Bill Tinker...E, outra vez, roucos vivas o interromperam. Hibbs ergueu os braços e seu piolhento casaco de marinheiro descobriu-lhe a pança, semelhante a uma bola. Quando os vivas e vaias se extinguiram, ele bradou:

— As regras de luta vigentes em Londres... cada round terminará com uma queda. Haverá trinta segundos entre os rounds e, quando a sineta tocar, serão concedidos oito segundos para o homem voltar à competição e pisar na linha. Não serão permitidos chutes, cabeçadas e golpes abaixo da cintura, e nem estrangulamento. Quem não sair do canto, ou aquele cujos auxiliares atirarem a toalha, será o perdedor.

Fez um sinal, com ar de importância, para os ajudantes, que examinaram os punhos do lutador adversário, a fim de ver se estavam untados com sumo de nozes, como era de praxe, e não tinham presa nenhuma pedra, e examinaram as botas de luta, para verificar se as solas tinham apenas os três cravos regulamentares.

— Agora, apertem-se as mãos, e que vença o melhor!

Os lutadores foram para o centro do ringue, com os músculos dos ombros tremendo de excitação reprimida, os músculos da barriga tesos, narinas frementes ao respirarem o suor úmido e ácido do outro.

Eles pisaram na linha e tocaram-se as mãos. Depois, juntaram os punhos duros como rochas e esperaram, com reflexos instantâneos.

Hibbs e os ajudantes mergulharam por sob as cordas e saíram da frente.

— Alteza? — disse Longstaff, dando a honra a Zergeyev.

O arquiduque se ergueu e caminhou para a sineta de navio que se encontrava próxima ao ringue. Ele a fez soar, com o percussor, e um selvagem frenesi tomou conta da praia.

No instante em que a campanhia soou, os lutadores arremessaram-se um sobre o outro, com as pernas plantadas como carvalhos, e tão fortes como estas árvores, e os pés firmes na linha. Os nós dos dedos de Grum bateram no rosto de Tinker e deixaram um vergão sangrento, e o punho de Tinker mergulhou violentamente na barriga de Grum. Bateram incessantemente um no outro, impelidos pelo tumulto e por sua raiva e ódio. Não havia ciência alguma em sua luta, nenhuma tentativa para evitar os golpes.

Depois de oito minutos, seus corpos estavam manchados de escarlate, os rostos sangrentos. Ambos os homens tinham os narizes quebrados e os nós de seus dedos estavam em carne viva e escorregadios, cheios de suor e sangue. Ambos arquejavam, buscando recuperar o fôlego, com os peitos arfando como poderosos foles, e os dois tinham sangue na boca. Então, no nono minuto, Tinker desferiu um hook (gancho) que atingiu Grum na garganta, derrubando-o. O Exército deu vivas e a Marinha praguejou. Grum levantou-se fora de si com a raiva e a dor, e correu para seu inimigo, esquecendo-se de que o primeiro round acabara, esquecendo-se de tudo, a não ser de que tinha de matar aquele demônio. Pegou Tinker pela garganta e ficaram investindo um contra o outro, estrangulando-se, enquanto o Exército gritava: “Infração!” Os ajudantes apinharam-se no ringue e tentaram separar os lutadores, arrastando um para cada lado, e quase houve uma briga entre os soldados e os marinheiros e seus oficiais.

— Por Deus, Harry — gritou Glessing, sem se dirigir a ninguém em particular. — Aquele filho da mãe estrangulou nosso homem!

— E quem começou a confusão, por Deus? O round tinha terminado! — disse o Major Turnbull, começando a se irritar, a mão sobre a espada. Era um homem alto, de trinta e cinco anos, principal magistrado de Hong Kong. — Só porque você foi indicado como mestre do porto, acha que isto lhe dá o direito de mascarar uma infração?

— Não, por Deus! Mas não tente trazer toda a majestade de seu cargo para uma questão social. — Glessing deu-lhe as costas, e abriu caminho, por entre a multidão.

— Olá, Culum!

— Olá, George, Uma boa luta, não?

— Você viu aquele filho da mãe estrangular o nosso homem? — Acho que ele também foi estrangulado, não?

— Ah, não é esta a questão, por Deus!

Então o meio minuto acabou e os lutadores correram um para o outro.

O segundo e o terceiro rounds foram quase tão longos como o primeiro, e os espectadores sabiam que nenhum homem poderia suportar um castigo daqueles por muito tempo. No quarto round, um soco de esquerda pegou o soldado embaixo do ouvido e ele caiu sobre a lona. A sineta soou e os ajudantes agarraram seu homem. Depois do meio minuto de descanso, cruelmente breve, o soldado investiu para a linha, esmurrou o marinheiro, agarrou-o em seguida pelo peito e, selvagemente, atirou-o no chão. Depois, voltaram para o canto, outra vez, houve trinta segundos de intervalo e a luta começou de novo.

Round após round. Mais quedas, menos quedas.

No décimo quinto round, o punho de Tinker pegou no nariz quebrado de Grum. Irrompeu fogo na cabeça de Grum, cegando-o; ele gritou e deu socos descontroladamente, em pânico. Seu punho esquerdo acertou em. cheio, seus olhos clarearam um momento e ele viu que o inimigo estava desprotegido e trôpego e ouviu uma imensidão de gritos e vivas muito perto, e, entretanto, longe. Grum arremessou seu punho direito, cerrando-o como jamais o cerrara antes. Viu-o bater na barriga do soldado. Seu esquerdo foi em frente, atingiu o inimigo do lado do rosto, ele sentiu um ossinho de sua mão se espatifar, e então ficou sozinho. Houve, mais uma vez, um toque da maldita sineta e mãos o agarraram, alguém enfiou a garrafa de bebida em sua boca quebrada e ele bebeu muito, e vomitou a bebida cheia de sangue, e resmungou: “Que round é este, camarada?” e alguém disse: “É o décimo nono”, e ele voltou à luta, mais uma vez, e lá estava de novo o inimigo, ferindo-o, matando-o, e ele tinha de resistir, e ganhar ou morrer.

— Boa luta, hein, Dirk? — bradou Brock, em meio a toda excitação.

— Sim.

— Quer mudar de idéia e apostar?

— Não, obrigado, Tyler — disse-lhe Struan, pasmado com a bravura dos lutadores. Ambos se encontravam no limite de suas forças, muito castigados. A mão direita de Grum estava quase inútil, os olhos de Tinker mal se abriam. — Eu não gostaria de enfrentar nenhum deles num ringue, por Deus!

— Têm mais tutano do que ninguém! — riu Brock, mostrando seus dentes escuros e estragados. — Quem vai ganhar?

— Dê seu palpite. Mas aposto que jamais desistirão, não haverá toalha para nenhum dos dois.

— É verdade, por Deus!

Hibbs cantou: “Vigésimo quarto round”, e os lutadores arrastaram-se pesadamente para o centro do ringue, com as pernas emperradas, e socaram um ao outro. Mantinhamse em pé só pela força de vontade. Tinker desferiu um soco monstruoso pela esquerda, que teria derrubado um boi, mas o golpe deslizou pelo ombro de Grum e o outro escorregou e caiu. A Marinha deu vivas e o Exército rugiu, enquanto os ajudantes carregavam o soldado para seu canto. Quando o meio minuto acabou, o Exército observou, sem respiração. Tinker agarrar as cordas e se levantar. As veias de seu pescoço contorceram-se com o esforço, mas ele se ergueu sobre ambos os pés e se arrastou de volta para a linha.

Struan sentiu que alguém o espiava e, ao se voltar, viu o arquiduque acenando. Abriu caminho, contornando o ringue, e ficou imaginando, cheio de tensão, se Orlov, a quem ele enviara para “assistir” o arquiduque, na transferência para o pontão, burlara os criados e encontrara algum documento de valor.— Já escolheu o vencedor, Sr. Struan? — perguntou Zergeyev.

— Não, Alteza. — Struan deu uma olhada no almirante e no general. — Ambos os homens são uma honra para seus serviços, cavalheiros.

— O homem da Marinha tem muita coragem, por Deus, é notável — disse o general, jovialmente — mas acho que nosso homem tem ânimo para resistir.

— Não. Nosso homem é quem vai tocar a linha. Mas, por Deus, seu homem é bom, senhor. Uma honra para qualquer serviço.

— Por que não vem sentar-se conosco, Sr. Struan? — disse Zergeyev, indicando a cadeira vazia. — Talvez pudesse explicar aspectos da luta.

— Com sua licença, senhores — disse Struan, cortesmente, sentando-se. — Onde está Sua Excelência?

— Foi embora cedo, por Deus! — disse o general. — Falou algo a respeito de despachos. A sineta tocou de novo. Zergeyev mexeu-se inquieto na cadeira.

— Qual o maior número de rounds que uma luta já teve?

— Eu assisti à luta Burke-Byrne em 33 — disse o almirante, laconicamente. — Noventa e nove rounds. Pelo sangue de Cristo, aquela foi uma batalha esplêndida. Coragem fantástica! Byrne morreu, em conseqüência das pancadas que levou. Mas não desistiu, até o fim.

— Nenhum desses dois vai desistir também... já bateram um no outro até ficarem insensíveis — disse Struan. — Estão em condições equivalentes e são igualmente bravos. Eu diria que ambos já provaram seu valor.

— Mas, então, não haverá vencedor. Isto seria injusto, uma vacilação não provaria nada.

— É injusto matar um homem corajoso — disse Struan, calmamente. — Só a coragem está mantendo os dois em pé. — Virou-se para os outros. — Afinal, são ambos ingleses. Vamos poupá-los, para um inimigo de verdade.

Uma súbita irrupção de vivas distraiu o almirante e o general, mas não a Zergeyev.

— Isto soa quase como um desafio, Sr. Struan — ele disse, com um sorriso mortalmente calmo.

— Não, Alteza — disse Struan, afavelmente — apenas um fato. Honramos a coragem mas, num caso como este, ganhar é secundário para a preservação de sua dignidade como homens.

— O que diz, Almirante? — perguntou o general. — Struan tem certa razão? Qual é o round? Trigésimo quinto?

— Trigésimo sexto — disse Struan.

— Vamos estabelecer o limite da luta em cinqüenta. Alguém vai ter de ceder, antes disso... é impossível que permaneçam em pé até então. Mas, se puderem ambos tocar na linha no qüinquagésimo primeiro round, atiraremos a toalha juntos, hein? Declararemos empate. Hibbs poderá fazer o anúncio.

— Concordo. Mas seu homem não resistirá.

— Mais cem guinéus que sim, por Deus!

— Feito.

— Uma aposta, Sr. Struan? — disse o arquiduque, enquanto o almirante e o general, carrancudos, viraram-se e fizeram sinal para Hibbs. — Diga as paradas e escolha um homem,

— É nosso convidado, Alteza, então é privilégio seu escolher... se a parada lhe agradar, uma pergunta... respondida pelo perdedor, em segredo, esta noite. Jurando diante de Deus.

— Que tipo de pergunta? — indagou Zergeyev, lentamente.

— Qualquer coisa que o vencedor queira saber.

O arquiduque ficou tentado, mas cheio de grandes apreensões. Era um jogo monumental, mas valia a pena. Havia muita coisa que ele queria saber do Tai-Pan da Casa Nobre.

— Feito!

— Qual o seu escolhido?

Zergeyev apontou instantaneamente para o Mestre Grum.

— Coloco nele a minha honra! — E, imediatamente, gritou para o marinheiro: —Mate-o, por Deus!

O número de rounds aumentava. Quarenta e três. Quarenta e quatro. Quarenta e cinco. Quarenta e seis. Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove. E, agora, os espectadores estavam quase tão exaustos como os lutadores.

Afinal, o soldado caiu. Tombou como um carvalho morto e o ruído de sua queda ressoou pela praia. O marinheiro, bêbado de dor, ainda dava socos a esmo no ar, procurando o inimigo. Então, ele também caiu, igualmente inerte. Os ajudantes carregaram os homens para seus cantos e o meio minuto expirou, e o Exército gritava para seu homem se levantar, e o general batia no chão do ringue, com o rosto vermelho, implorando a Tinker: “Levante-se, levante-se, pelo amor de Deus, rapaz!” E o almirante ficou carmesim, enquanto Grum se forçava a ficar em pé, cambaleando, em seu canto. “Toque na linha, rapaz, toque na linha!” E Struan exortava o soldado, e o arquiduque gritava frases de encorajamento, num paroxismo em russo-francês-inglês, para que o marinheiro tocasse a linha.

Cada lutador sabia que o outro estava derrotado. Ambos cambalearam até a linha e ficaram a se balançar, com os membros mortos e inúteis. Ambos levantaram os braços e tentaram tocar. Mas toda sua força havia desaparecido. Ambos caíram.

Último round.

A multidão ficou louca, pois era obviamente impossível para os dois lutadores saírem de seu canto em meio minuto e voltarem para a linha.

O gongo soou e, novamente, houve um silêncio sepulcral. Os lutadores ficaram desajeitadamente de pé, agarraram-se nas cordas e permaneceram em seus cantos, cambaleando. O marinheiro gemeu e deu o primeiro passo torturado, movendo um pé em direção à linha. Era seguida, após uma eternidade em suspense, outro. O soldado ainda estava em seu canto, tremendo e oscilando, quase a cair. Então, seu pé fez um arco para a frente, pateticamente, e houve uma gritaria furiosa — exortando, induzindo, implorando, rezando, praguejando, tudo a se misturar, num rugido final de excitação impossível, enquanto os dois homens avançavam cambaleando, polegada por polegada. De repente, o soldado deu uma reviravolta desamparada e quase escorregou, fazendo o general ficar a ponto de desmaiar. E aí o marinheiro deu uma guinada bêbada, e o almirante fechou os olhos, com o suor a lhe escorrer pelo rosto, e rezou.

Houve um pandemônio quando ambos os homens tocaram a linha, as toalhas voaram por sobre as cordas, e só quando o ringue se tornou um tumulto de homens que pulavam de um lado para outro foi que os lutadores tiveram certeza do fim do combate. E só então se permitiram mergulhar no pesadelo de dor, sem saber se eram vitoriosos ou vencidos — se estavam acordados ou mortos, sonhando ou vivos — sabendo apenas que haviam dado tudo.

— Pelas barbas de São Pedro — disse o arquiduque, com a voz rouca e dolorida e as roupas encharcadas de suor — foi a maior luta de todos os tempos.

Struan, também todo manchado de suor e exausto, puxou uma garrafa portátil e a ofereceu. Zergeyev inclinou-a e bebeu muito rum. Struan também bebeu e passou a garrafa ao almirante, que a deu ao general, e assim acabaram juntos a bebida.

—Pelo sangue de Cristo! — disse Struan, com voz roufenha. Pelo sangue de Cristo!


CAPÍTULO VINTE

O sol já mergulhara atrás das montanhas, mas o porto ainda estava imerso numa luz dourada. Ah Sam tirou o binóculo dos olhos e se afastou às pressas, ansiosamente, do orifício de espia no muro do jardim. Correu através das pilhas de pedras e de terra que logo se transformariam num verdadeiro jardim e entrou voando por uma porta da sala de estar.

— Mamãe! O barco de papai está perto da praia — disse. — Opa, ele parece realmente muito zangado. May-may parou de costurar a anágua.

— Ele veio do China Cloud, ou do Resting Cloud?

— Do Resting Cloud. É melhor ir dar uma olhada.

May-may agarrou o binóculo, correu para o jardim, e ficou atrás da pequena janela de treliça, focalizando as ondas da praia. Deteve-se em Struan. Ele estava sentado no meio da chalupa, com o Leão e o Dragão drapejando à popa. Ah Sam tinha razão. Ele parecia realmente muito zangado.

Ela fechou e trancou a portinhola do orifício de espia e voltou correndo.

— Limpe isto e providencie para que tudo fique bem escondido. — E, quando Ah Sam levantou descuidadamente o vestido de baile e as anáguas, ela a beliscou na face, com força. — Não amarrote tudo, sua puta. Vale uma fortuna. Lim Din! — gritou. — Prepare o banho de papai, depressa, e providencie para que suas roupas sejam arrumadas de maneira adequada e não falte nada. Ah, sim, e se certifique de que o banho está quente. Apanhe o novo sabonete perfumado.

— Sim, mamãe.

— E tome cuidado. A raiva de papai está no rosto dele!

— Opa!

— Realmente, opa! É melhor aprontarem tudo para papai, senão ambos serão açoitados. E, se alguma coisa interferir em meu plano, todos dois passarão por torturas e eu os chicotearei até seus olhos caíram das órbitas. Vão!

Ah Sam e Lim Din saíram correndo. May-may entrou em seu quarto de dormir e se certificou de que não havia nenhum sinal do vestido de baile. Colocou perfume atrás das orelhas e se compôs. Ah, meu Deus. Não queria que ele estivesse mal-humorado, esta noite.

Struan caminhou irascivelmente em direção ao portão, no alto muro.Estendeu a mão para a maçaneta do portão, mas este foi aberto rapidamente por Lim Din, que sorria e fazia curvaturas.

— Que belo entardecer, hein, senhor?

Struan respondeu com um granindo sombrio.

Lim Din fechou o portão e saiu às pressas para a porta da frente, onde riu ainda e fez curvaturas mais profundas.

Struan, automaticamente, examinou o barômetro de navio pendurado na parede do saguão. Estava colocado numa suspensão Cardan e a fina coluna de mercúrio dentro do vidro registrava a agradável temperatura de 29.8.

Lim Din fechou a porta, suavemente, e disparou na frente de Struan pelo corredor, abrindo a porta do quarto de dormir. Struan entrou, fechou a porta com um chute e trancou-a. Os olhos de Lim Din se reviraram. Ele levou um momento para se recompor e, depois, evaporou-se na cozinha.

— Alguém vai ser chicoteado — ele sussurrou, apreensivo, para Ah Sam. — Isto é tão certo quanto a morte e os impostos.

— Não se preocupe com o demônio do nosso pai bárbaro — sussurrou Ah Sam, em resposta. — Aposto com você o salário da próxima semana que mamãe vai transformá-lo numa pombinha, dentro de um hora.

May-may apareceu à porta.

— O que vocês, seus escravos filhos da mãe, estão aí cochichando? — ela sibilou.

— Só rezando para papai não ficar zangado com a pobrezinha da nossa linda mãe — disse Ah Sam, com os olhos esbugalhados.

— Então ande depressa, sua puta de fala macia. Por cada palavra de zanga que ele me disser, você leva um beliscão!

***

Struan estava em pé, no centro do quarto de dormir, olhando para o lenço cheio de nós, volumoso e sujo, que acabara de tirar do bolso. Com mil demônios, o que faço agora?, perguntou a si mesmo.

Depois da luta, acompanhara o arquiduque até seus novos alojamentos, no Resting Cloud. E ficara aliviado quando Orlov lhe dissera, em particular, que não tivera problema algum para esquadrinhar a bagagem do arquiduque.

— Mas não há papel nenhum — dissera Orlov. — Havia uma pequena caixa-forte, mas o senhor disse para não quebrar nada, então deixei como estava. Tive tempo suficiente... os homens mantiveram os criados ocupados.

— Obrigado. Nenhuma palavra a respeito, agora.

— Pensa que sou louco! — dissera Orlov, com sua dignidade ofendida. — A propósito, a Sra. Quance e os cinco filhos estão instalados no pontão pequeno. E eu disse que Quance estava em Macau, e deveria chegar com a maré do meio-dia, amanhã. Tive um grande trabalho para fugir às malditas perguntas que ela fez. Ela é capaz de extrair uma resposta de um caranguejo.

Struan deixara Orlov e fora para a cabina dos meninos. Eles estavam limpos, agora, e vestiam roupas novas. Wolfgang ainda se encontrava em sua companhia, e não tinham medo dele. Struan lhes dissera que no dia seguinte iriam com ele para Cantão, onde ele os embarcaria num navio para a Inglaterra.

Excelença — dissera o menininho inglês, quando ele se virava para ir embora — será que poderia falar com o senhor, em particular?

— Sim — dissera Struan, e levara o menino para outra cabina.

— Meu papá disse p’ra dar isto ao senhor, Excelença, e não dizê a ninguém, nem Sr. Wu Pak, nem mesmo Bert.

Os dedos de Fred tremiam, quando ele desfez a trouxa de pano ainda amarrada no cajado, abrindo-a. Continha uma pequena faca, um cachorro de pano e um lenço volumoso, amarrado com nós. Ele lhe passou o lenço, nervosamente, e para pasmo de Struan, virou as costas e fechou os olhos.

— O que está fazendo, Fred?

— Meu papá dizê que eu num devia olhá, e p’ra virá as costa, Excelença. P’ra num vê — respondeu Fred, com os olhos fechados.

Struan desamarrou o lenço e olhou, embasbacado, para seu conteúdo — brincos de rubi, pingentes de diamante, anéis cravejados de diamantes, um grande broche de esmeraldas e muitas fivelas de cinto de ouro, retorcidas, cheias de diamantes e de safiras. Tudo com um valor de quarenta a cinqüenta mil libras. Espólio de pirata.

— O que ele queria que eu fizesse com isto?

— Posso abri os olhos, Excelença? Não devia vê.

Struan tornou a amarrar o lenço e colocou-o no bolso de seu casaco naval.

— Sim. Agora, o que seu papai queria que eu fizesse com isto?

— Ele disse que era minha... esqueci a palavra. Era, era uma coisa parecida com “rança”, ou “anca”. — Os olhos de Fred se encheram de lágrimas. — Sou um bom menino, Excelença, mas esqueço as coisa.

Struan se agachou e segurou-o com firmeza, mas gentilmente.

— Não precisa chorar. Vamos pensar. Será que foi “herança”?

O menino olhou para Struan como se ele fosse um mágico.

— Sim. “Rança”. Como sabia?

— Não precisa chorar. Você é um homem. Homens não choram.

— O que é “rança”?

— É um presente, em geral dinheiro, de um pai para um filho.

Fred cogitou sobre isso por um longo tempo. Depois, disse:

— Por que meu papai disse p’ra não conta ao irmãozinho Bert?

— Não sei.

— Por que, Excelença?

— Talvez ele quisesse que você recebesse isto, e não Bert.

— Uma “rança” pode ser para muitos filhos?

— Sim.

— Eu e meu irmão Bert podemos dividi uma “rança”, se a gente tem uma?

— Sim. Se você tem uma.

— Ah, bom — disse o menino, enxugando as lágrimas. — Irmãozinho Bert é meu melhor amigo.

— Onde você e seu papai viviam? — perguntou Struan.

— Numa casa. Com a mãe de Bert.

— Onde era a casa, rapaz?

— Perto do mar. Perto dos navios.

— O lugar tinha nome?

— Ah, sim, era chamado “Porto”. A gente vivia numa casa no Porto — disse o menino, com orgulho. — Meu papai disse p’ra eu falá tudo com o senhor, de verdade.

— Vamos voltar agora, hein? A não ser que haja mais alguma coisa.

— Ah, sim. — Fred, depressa, tornou a amarrar a trouxa. — Meu papai disse para amarrar como antes. Segredo. E p’ra não contá. Eu estou pronto, Excelença.

***

Struan abriu outra vez o lenço. Pela morte de Cristo, o que vou fazer com este tesouro? Jogá-lo fora? Não posso fazer isto. Procurar os proprietários? Como? Podem ser espanhóis, franceses, americanos ou ingleses. E como vou explicar como consegui as jóias?

Ele foi até a grande cama de armação e afastou-a da parede. Notou que suas novas roupas de noite estavam estendidas, meticulosamente. Ajoelhou-se ao lado da cama. Uma caixa-forte de ferro estava cimentada no chão. Destrancou a caixa e depositou a pequena trouxa junto com seus papéis particulares. A Bíblia que continha as outras três metades de moedas atraiu-lhe o olhar e ele praguejou. Tornou a trancar a caixa e moveu a cama outra vez para seu lugar, caminhando, em seguida, em direção à porta.

— Lim Din!

Lim Din apareceu imediatamente, com os olhos vidrados e todo sorridente.

— Prepare meu banho, depressa!

— O banho já está pronto, senhor! Não se preocupe!

— Chá!

Lim Din sumiu. Struan atravessou o quarto de dormir, em direção ao quarto especial que fora reservado só para o banho e a toalete. Robb rira, ao ver os projetos. Mesmo assim, Struan insistira para que a inovação fosse executada exatamente segundo os planos.

A alta banheira de cobre fora instalada numa plataforma baixa’ e dela saía um cano que atravessava a parede e ia dar num poço fundo, cheio de pedras, cavado no jardim. Acima da banheira, um balde de ferro com orifícios estava suspenso das vigas. Outro cano dava no balde, saindo do tanque de água fresca, no teto. Havia uma torneira neste cano. A privada era um escrínio fechado, com uma tampa móvel e um balde removível, para os despojos noturnos.

A banheira já estava cheia de água quente. Struan tirou as roupas suadas e entrou no banho, satisfeito. Ficou deitado de costas e se ensaboou.

A porta do quarto se abriu e May-may entrou. Ah Sam a seguia, carregando uma bandeja com chá e dim sum quentes, tendo, logo atrás, Lim Din. Todos caminharam para dentro do banheiro, e Struan fechou os olhos, com silenciosa irritação; por mais que tivesse explicado e castigado, Ah Sam não conseguia entender que não devia entrar no banheiro, quando ele estava tomando banho.

— Olá, Tai-Pan — disse May-may, com um sorriso maravilhoso. Toda a irritação dele desapareceu. — Vamos tomar chá juntos — ela acrescentou.

— Ótimo — ele disse.

Lim Din pegou as roupas sujas e desapareceu. Ah Sam depôs a bandeja alegremente, pois sabia que ganhara sua aposta. Ela disse algo a May-may em cantonês, que fez May-may rir, e Ah Sam deu uma risadinha antes de correr para fora do banheiro e fechar a porta.

— Que diabo ela disse?

— Conversa de mulher!

Ele levantou a esponja para atirá-la, e May-may disse, depressa:.. — Ela falou que você é um homem muito bem-feito. .

— Por que, pelo amor de Deus, Ah Sam não entende que o banho é para ser tomado em particular?

— Ah Sam é muito particular, não se preocupe. Por que você tem vergonha, hein? Ela tem muito orgulho de você. Você não tem nada para se envergonhar. — Ela tirou o vestido e caminhou para dentro da banheira, sentando-se na outra extremidade. Então serviu o chá e o entregou.

— Obrigado. — Ele bebeu o chá e depois estendeu o braço e comeu um dos dim sum.

— A luta foi boa? — ela perguntou. Notou as cicatrizes malcuradas que seus dentes haviam feito no antebraço dele, e escondeu um sorriso.

— Excelente.

— Por que você está zangado?

— Sem razão. Estão bons — ele disse, comendo outro dos pastéis. Depois, sorriu para ela. — Você é linda e não posso imaginar uma maneira mais agradável de tomar chá.

— Você também é lindo.

— A casa já tem feng-shui?

— Quando é o julgamento dos vestidos?

— À meia-noite. Por quê? Ela encolheu os ombros.

— Meia hora antes da meia-noite, você voltará para cá?

— Por quê?

— Gosto de ver meu homem. De tirá-lo daquela descarada com peitos de vaca. — O pé dela escorregou por baixo d’água. Struan recuou diante do ataque íntimo e quase deixou cair seu chá. — Não faça isso, e tenha cuidado, por Deus. — Ele lhe interceptou a mão e riu. — Seja uma menina boazinha.

— Sim, Tai-Pan. Se você também tiver cuidado. — May-may sorriu docemente e deixou a mão descansar, tranqüila, na dele. — Você não olha para mim como olha para aquela mulher diabólica, nem mesmo quando estou sem roupa nenhuma. O que está errado com o meu busto?

— Seu busto é perfeito. Você é toda perfeita. Claro que é. Agora, pare de me aborrecer.

— Então você volta, meia hora antes?

— Faço qualquer coisa, em troca de paz. — Struan bebeu um pouco mais de chá. — Ah, sim. Você não me respondeu. A casa já tem feng-shui?

— Sim. — Ela pegou o sabão e começou a se ensaboar. Mas não disse mais nada.

— Tem ou não tem?

— Sim. — Outra vez ficou silenciosa, com uma exasperante e bela doçura a envolvê-la.

— O que aconteceu?

— Sinto muitíssimo, Tai-pan, mas estamos bem no globo ocular do dragão e precisamos nos mudar.

— Não vamos nos mudar e não se fala mais nisso.

Ela trauteou uma cançãozinha, enquanto terminava de usar o sabão. Lavou a espuma e olhou para ele, com os olhos muito abertos, toda gentil.

— Vire-se. Vou ensaboar suas costas — disse.

— Não vou me mexer — ele disse, com suspeita.

Marrr-rry veio aqui hoje à tarde, e conversamos bastante.

— Não vou me mexer! Não se fala mais nisso.

— Realmente, Tai-Pan, não sou surda. Ouvi você muito bem, da primeira vez. Quer que eu esfregue suas costas ou não?

Ele virou as costas e ela começou a ensaboá-lo.

— Vamos nos mudar e não se fala mais nisso. Porque sua velha mãe decidiu — disse ela, em cantonês.

— O quê? — ele disse, movimentando um pouco o pescoço, apreciando o toque insinuante dela, enquanto suas mãos lhe massageavam deliciosamente os músculos dos ombros.

— Um velho provérbio cantonês: “Quando as andorinhas fazem seus ninhos, o sol sorri.”

— O que isto quer dizer?

— Exatamente o que diz. — Ela estava satisfeita consigo mesma. — É apenas um pensamento feliz, só isso. — Pegou um pouco de água e lavou a espuma de sabão. — Ah Sam, ahhhh!

Ah Sam entrou correndo, a carregar grandes toalhas. May-may se levantou e Ah Sam enrolou uma delas em torno de seu corpo e segurou a outra para Struan.

— Diga-lhe que farei isto eu próprio, por Deus! — disse ele. May-may traduziu e Ah Sam depôs a toalha, deu uma risadinha e saiu correndo. Struan saiu do banho e May-may embrulhou-o na toalha. Para surpresa sua, ele descobriu que estava aquecida.

— Disse a Ah Sam para “cozinhar” um pouco as toalhas, de hoje em diante -falou May-may. — É bom para a saúde.

— Ê muito agradável — ele disse, e se esfregou até ficar enxuto. Abriu a porta e descobriu que a cama havia sido arrumada e suas roupas novas postas sobre a cômoda.

— Você tem tempo para descansar um pouco — disse May-may e, quando ele começou a discutir, acrescentou, imperiosamente: Você vai descansar! Struan deu uma olhada em seu relógio. Há bastante tempo, pensou, e então subiu na cama e se estirou, voluptuosamente.

May-may acenou para Ah Sam, que entrou no banheiro e fechou a porta. Ajoelhando-se, Ah Sam desatou os pés de May-may e os enxugou. Ela colocou pó nos pés e substituiu as ataduras por outras, limpas e secas, e calçou-lhes sandálias novas, bordadas.

— São tão lindas, mamãe — disse.

— Obrigada, Ah Sam. — May-may beliscou com ternura a bochecha de Ah Sam. — Mas, por favor, não faça tantas observações sobre os apêndices de papai.

— Eu só estava sendo cortês, e são muito dignos de respeito.

— Ah Sam soltou os cabelos de May-may e começou a escová-los.

— Normalmente, um pai ficaria muito satisfeito por ser elogiado. Realmente, não entendo nosso pai bárbaro, nem um pouquinho. Ele não me levou para a cama, nem uma só vez. Sou assim tão pouco atraente?

— Eu já lhe disse várias vezes que os pais bárbaros não levam para a cama todas as mulheres da casa — disse May-may, cansadamente. — Ele, simplesmente, não faria uma coisa dessas. É contra sua religião.

— É realmente muito mau pagode — fungou Ah Sam — ter um pai assim, tão dotado, e isso ser contra sua religião. May-may riu, e entregou-lhe a toalha.

— Vá embora, sua bajuladora. Traga chá, dentro de uma hora. Se chegar atrasada vou dar em você umas boas chicotadas!

Ah Sam fugiu.

May-may perfumou-se e, pensando no baile e em sua outra surpresa, cheia de excitação, entrou no quarto.

***

Liza Brock abriu a porta da cabina e foi para o beliche. Sentia suor frio escorrendo de suas axilas. Sabia que, para Tess, era agora ou nunca.

— Vamos, amor — disse ela, sacudindo Brock outra vez. — Está na hora de se levantar.

— Me deixe em paz. — Brock virou-se para o outro lado outra vez, suavemente embalado pela maré que balançava o casco do White Witch. — Quando chegar a hora eu me visto.

— Você dizendo isso faz meia hora. Levante, senão vai chegar atrasado. Brock bocejou e se estirou, erguendo-se no beliche.

— O sol nem se pôs ainda — ele disse, com os olhos turvos de sono, a espiar através da vigia.

— Gorth vai chegar logo e você queria estar pronto cedo. Vai ser preciso examinar os livros com o compradore. Você me pediu para lhe acordar.

— Está bem, chega, Liza.

Ele bocejou outra vez e olhou para Liza. Ela usava um vestido novo, de brocado de seda vermelho-escuro, com um grande pufe, deixando aparecerem muitas anáguas. Seu cabelo estava preso num coque.

— Você está muito elegante — disse ele, automaticamente, e se estirou outra vez.

Liza brincou com o grande chapéu de plumas que estava era suas mãos e, em seguida, o depôs.

— Vou ajudar você a se vestir — disse ela.

— Ora, o que é isso! Eu disse que minha roupa velha estava ótima — ele explodiu, ao ver suas roupas novas sobre a cadeira. — Você acha que o dinheiro é tão fácil de ganhar que pode ser gasto assim à vontade?

— Não, amor, você precisava de roupas novas e é necessário que esteja com seu melhor aspecto.

Ela ofereceu o pequeno espartilho que, segundo decretava a moda, o homem precisava usar para ficar com a cintura fina. Brock praguejou e saiu da cama. Depois de apertar o espartilho sobre sua roupa de baixo comprida, de lã, queixosamente, deixou-se ajudar a vestir suas roupas.

Mas, ao olhar para si próprio ao espelho, ficou satisfeitíssimo. A nova camisa pregueada crescia-lhe no peito e o casaco de veludo marrom, com lapelas bordadas a ouro, caía-lhe à perfeição — grande nos ombros e apertado na cintura. Suas calças brancas apertadas eram mantidas em caimento suave por correias, sob botas de festa negras, macias e lustrosas. Colete bordado em tom laranja, corrente de ouro e relógio no bolsinho.

— Meu Deus, você está parecendo o Rei da Inglaterra, amor!

Ele escovou a barba, deixando-a bem eriçada.

— Bom — disse ele, rudemente, tentando esconder seu prazer — talvez você tivesse razão. — Virou-se de perfil e alisou o veludo, para fazê-lo assentar bem sobre seu peito.

— Talvez pudesse ter ficado mais justo no peito, hein? Liza riu.

— Vamos com isso, rapaz — disse, com menos medo, agora — acho que o alfinete de rubi em sua gravata ficaria melhor do que o de diamante.

Ele mudou o alfinete e continuou a se admirar. Depois riu, segurou-a pela cintura e trauteou uma valsa, forçando-a a dançar.

— Você é a bela do baile, amor — disse.

Liza tentou ficar alegre, naquele momento, mas Brock viu em seus olhos que alguma coisa estava errada.

— O que há?

Ela puxou um lenço, enxugou o suor da testa e se sentou.

— Bom, é Tess.

— Ela está doente?

— Não. Nós vamos levá-la para o baile!

— Você está fora de si?

— Tenho um vestido pronto para ela... ah, é lindo... mandei ajeitar-lhe o cabelo e ela está à espera de sua aprovação antes de...

— Diga então a ela para ir para a cama, por Deus! Ela não vai para baile nenhum! Você mandou fazer um vestido para ela, não é? — e ele ergueu a mão para lhe bater. — Ouça um momento — disse Liza, com sua força a lhe dominar o medo. — Primeiro escute. Nagrek... e ela. O golpe parou no meio do ar.

— O que há, quanto a Nagrek?

— Foi sorte que ele tivesse morrido, aquela noite. Tess, bom, Tess, ela... — As lágrimas jorraram. — Eu não queria preocupar você, mas ela...

— Está grávida?

— Não. Fiquei aterrorizada durante todo o mês passado, desde que você foi para Cantão. Com medo de ter-me enganado. Mas o incômodo mensal dela começou na semana passada, graças a Deus, e então o medo acabou.

— Mas ela não é virgem? — ele perguntou, horrorizado.

— Ela ainda é virgem. — As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. :— Então, pelo amor de Deus, se ela ainda é virgem, por que diabo você se preocupa? Calma, calma, Liza — disse ele, dando-lhe palmadinhas na face.

Liza — ela sabia — jamais poderia dizer-lhe que Tess não era realmente virgem. Mas agradeceu ao Senhor por deixá-la convencer a menina de que tinha sido, principalmente, imaginação dela, e ainda era pura como deve ser uma mocinha.

— Este mês passado foi terrível — disse ela. — Terrível. Mas foi uma advertência para nós, Tyler. Fiquei preocupada com você, com o fato de você não ver que ela está crescida, e estou com medo. Você não quer ver o que está diante de seus olhos. — Ele começou a falar, mas ela interrompeu, depressa. — Por favor, Tyler. Eu lhe imploro. Basta olhar para ela e, se você concordar que cresceu, então nós a levamos. Se você pensar de outra maneira, ela não irá. Eu disse a ela que a decisão era sua.

— Onde está Tess, agora?

— Na cabina principal.

— Espere aqui.

oSim, amor.


CAPÍTULO VINTE E UM

Quando a noite se instalara firmemente sobre Hong Kong, Culum caminhou para a borda do convés, à popa do Thunder Cloud, e deu sinal. O canhão estrondeou e houve um momento de silêncio na frota. Ele olhou nervosamente em direção à costa no Vale Feliz. Sua excitação aumentou quando viu uma tremulação de luz, depois outra, e logo todo lote marinho 8 era um mar de luzes dançantes.

Os criados, na praia, corriam para acender as lanternas restantes. Centenas haviam sido colocadas em torno do grande círculo de pranchas bem aplainadas que formavam a pista de danças, e sua luminosidade era cálida e convidativa. Mesas e cadeiras estavam dispostas em grupos atraentes, com uma lâmpada e flores vindas de Macau em cada mesa. Mais lâmpadas se encontravam penduradas em cordas presas entre esguios bambus, perto das mesas de cavalete repletas de comida. Outras estavam acortinadas sobre os barris de vinhos portugueses e franceses, rum, conhaque, uísque, vinho branco seco e cerveja. Quarenta engradados de champanha se achavam no gelo, e à mão.

Criados corriam por toda parte, todos bem uniformizados, com calças negras e túnicas brancas, os rabichos dançando. Eles estavam sob a imperiosa supervisão de Chen Sheng, compradore da Casa Nobre. Ele era um homem de imensa pança, com trajes ricos e chapéu enfeitado com jóias. Um pedaço principesco de puro jade branco formava a fivela de seu cinto, e seus pés estavam metidos em botas de seda negra com solas brancas. Ele estava sentado, como uma aranha enorme, num assento no meio da pista de dança, e brincava com os cabelos compridos que nasciam numa pequena verruga em seu queixo. Um escravo particular abanava-o, dentro da noite amena.

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