CAPÍTULO SETE

— Meu pai avisou vocês todos, malditos sejam! — disse Gorth, afastando-se da janela da sala de jantar e abrindo caminho entre os mercadores.

— Já tivemos turbas assim, antes — disse Struan, bruscamente. — E você sabe que foram sempre controladas, e só se formaram por ordem dos mandarins.

— Sim, mas nenhuma como esta — disse Brock.

— Deve haver alguma razão especial. Não há ainda nenhum motivo para se preocupar.

A praça lá embaixo estava apinhada com uma massa crescente de chineses. Alguns carregavam lanternas, outros tochas. Uns poucos estavam armados. E eles gritavam em uníssono.

— Deve haver dois ou três mil desses vagabundos — disse Brock, e depois bradou

— Ei, Wolfgang! O que esses diabos pagãos estão gritando?

— “Morte aos demônios bárbaros.”

— Mas que ousadia! — disse Roach. Era um homem pequeno, parecendo um pardal, com um mosquete mais alto do que o dono.

Mauss tornou a olhar para a multidão, com o coração batendo penosamente, os flancos úmidos de suor. Será esta a Vossa hora, ó Senhor? A hora do Vosso incomparável martírio?

— Vou falar a eles, pregar para eles — disse, com voz rouca, desejando a paz de tal sacrifício, mas aterrorizado diante dele.

— Uma idéia respeitável, Sr. Mauss — disse Rumajee, agressivo, com os olhos negros movendo-se nervosamente de Mauss para a turba, e outra vez para ele. — Certamente, escutarão alguém com o seu poder de persuasão, senhor.

Struan viu o suor que escorria de Mauss, e sua estranha palidez, e o interceptou perto da porta.— Você não vai fazer uma coisa dessas.

— Chegou a hora, Tai-Pan.

— Você não vai comprar a salvação de maneira assim tão fácil.

— Quem é você para julgar? — Mauss começou a fazer força para passar, mas Struan ficou em sua frente.

— Eu queria dizer que a salvação é um longo e doloroso processo — declarou ele, gentilmente. Duas vezes, antes, vira a mesma esquisitice em Mauss. Tinham sido antes de um combate com piratas e, mais tarde, durante a batalha, Mauss deixara cair suas armas e fora em direção ao inimigo, num êxtase religioso, procurando a morte. — É um longo processo.

— A... a paz do Senhor é... difícil de encontrar — murmurou Mauss, com a garganta apertada sufocando-o, satisfeito por ser detido e odiando-se por estar satisfeito.

— Eu só queria...

— Muito bem. Eu sei tudo a respeito de salvação — Masterson se intrometeu. Ele juntou as mãos e sua atitude era piedosa. — Deus nos salve dos malditos pagãos! Concordo inteiramente, Tai-Pan. Maldito seja esse barulho, não?

Mauss se recompôs com um esforço, sentindo-se nu diante de Struan que, mais uma vez, enxergara as profundezas de sua alma.

— Você... você está certo. Sim. Certo.

— Afinal, se nós o perdermos, quem vai restar para pregar a Palavra? — disse Struan, e decidiu ficar vigiando Mauss, no caso de haver verdadeiro problema. — Completamente certo — disse Masterson, assoando o nariz com os dedos. — De que vale atirar um vaidoso cristão aos lobos? Aquele maldito bando de velhacos entrou em frenesi, e não está em estado de espírito para ouvir pregações. Que o Senhor nos proteja! Diabo, Tai-Pan, eu lhe disse que haveria um ataque.

— Disse coisa nenhuma! — gritou Roach, do outro lado da sala.

— Quem, com mil demônios, pediu sua opinião, por Deus? Estou tendo uma conversa tranqüila com o Tai-Pan e o Reverendo Mauss — gritou Masterson em resposta. E depois, para Mauss: — Por que você não reza uma prece para nós, hein? Afinal de contas, somos todos cristãos, por Deus! — Ele aproximou-se apressadamente da janela.

— Será que não se pode ver o que está acontecendo, hein?

Mauss enxugou o suor da testa. Ah, bom Deus e doce Jesus, Vosso único filho, dai-me Vossa Paz. Enviai-me discípulos e missionários, para que eu possa depositar Vossa carga. E eu Vos abençôo por me enviar o Tai-Pan, que é minha consciência e que me vê como eu sou.— Obrigado, Tai-Pan.

A porta foi aberta violentamente e mais comerciantes afluíram para dentro da sala. Todos estavam armados.

— Que diabo está acontecendo? O que houve de errado?

— Ninguém sabe — disse Roach. — Estava tudo calmo; de repente, eles começaram a chegar.

— Aposto que não veremos jamais o pobre velho Elikson. O coitado, provavelmente, teve já a garganta cortada — disse Masterson, escorvando malevolamente seu mosquete. — Vamos morrer em nossas camas, esta noite.

— Ah, cale a boca, pelo amor de Deus — disse Roach.

— Você é um prenunciador de doçura e conforto, não? — Vivien, um negociante com aparência de boi, franziu a testa para Masterson. — Por que não mija em seu chapéu? Ou vai tomar na bunda?

Os outros negociantes vociferaram, e então Gorth abriu caminho aos empurrões em direção à porta.

— Vou pegar meus guarda-costas e mandar todo mundo pelos ares!

— Não! — a voz de Struan era uma chicotada. Fez-se silêncio. — Eles ainda não nos estão causando nenhum dano. O que há, Gorth? Está com medo porque um grupinho de homens amaldiçoa você?

Gorth ficou vermelho e partiu para Struan, mas Brock se meteu no meio.

— Desça — ordenou. — Monte guarda no jardim e o primeiro chinês que entrar, você lhe explode a maldita cabeça! Com esforço, Gorth controlou sua raiva e saiu. Todos começaram a falar outra vez.

— Não foi correto falar assim com o rapaz, Dirk. — Brock serviu-se de um canecão de cerveja e bebeu-o, sedentamente. — Ele poderia estar agora entregando sua cabeça a você.

— Poderia. E também poderia ter-lhe ensinado um pouco de boas maneiras.

— Desculpe-me, Sr. Struan — Rumajee interrompeu, com o nervosismo a superar sua polidez. — Há guardas na entrada traseira?

— Sim. Três dos meus homens. Eles podem resistir a um exército formado por essa ralé. Irrompeu uma discussão entre os comerciantes e depois Roach disse:

— Estou com Gorth. Digo que devíamos lutar para sair daqui, imediatamente.

— Nós faremos isso. Se for necessário — disse Struan.

— Sim — disse Brock. — Fazer isso agora é comprar barulho. Vamos esperar e nos manter em guarda, até o dia amanhecer. Talvez então já tenham ido embora.

— E se não forem? Hein? É isso que eu gostaria de saber.

— Então vamos derramar um bocado de sangue. Meto três dos meus homens em nossa lorcha e a coloco no meio da corrente. Tem um canhão pesado a bordo. Struan riu.

— Acho que o Sr. Brock merece um voto de confiança.

— Por Deus, Sr. Brock, o senhor é muito dinâmico — disse Masterson. Três vivas para o Sr. Brock! Foram dados vivas e Brock sorriu.

— Obrigado, muito obrigado, rapazes. Agora, é melhor dormir um pouco. Estamos com segurança suficiente.

Gott im Himmel! Vejam! — Mauss apontava pela janela, com os olhos esbugalhados.

Uma procissão com lanternas, gongos e tambores saía maciçamente da Rua Hog e entrava na praça. Bandeireiros carregando manguais a precediam, abrindo caminho através da turba. À frente da procissão, ia um homem rotundo. Suas roupas eram ricas, mas ele estava descalço e sem chapéu, e caminhava com dificuldade ao peso de correntes.

— Deus do céu! — disse Struan. — É Ti-sen!

A procissão deu uma volta no centro da praça e parou. Todos os mercadores da Co-hong, com exceção de Jin-qua, a integravam. Não tinham nos chapéus os botões cerimoniais indicadores de sua posição, e tremiam. A multidão começou a zombar e assobiar. Depois, o bandeireiro-chefe, um guerreiro alto, com barba negra, fez soar um enorme gongo e a turba mais uma vez silenciou.

Uma liteira aberta, tendo à frente e atrás bandeireiros montados, foi carregada para a praça. Sentado na cadeira, com um traje cerimonial cinzento e vermelho completo, estava Hi’pia-kho, o Hoppo imperial. Ele era um atarracado e obeso mandarim manchu, quase sem pescoço, e tinha na mão o leque imperial que simbolizava seu posto. O leque era de marfim, com incrustações de jade.

A cadeira do Hoppo foi depositada no centro da praça e o bandeireiro-chefe gritou uma ordem. Todos na praça se prosternaram três vezes, tocando a cabeça no chão, e depois tornaram a se levantar.

O Hoppo desenrolou um papel e, sob a luz de uma lanterna segura por um guarda, começou a ler em voz muito alta.

— O que ele está dizendo? — perguntou Brock a Mauss.— Vejam, é o velho How-qua — disse Masterson, com uma risadinha. — Ele não pára de tremer...

— Por favor. Quietos. Não posso ouvir — disse Mauss. Ele se espichou para fora da janela. Todos ficaram à escuta.

— É uma proclamação do imperador — disse Mauss, depressa. — “E o traidor Ti-sen, nosso ex-primo, deve ser imediatamente acorrentado e enviado para nossa capital sob sentença de morte e...” Não consigo escutar. Esperem um momento... “e o desprezível tratado chamado Convenção de Chuenpi, que ele assinou sem nossa autoridade, está revogado. Os bárbaros têm ordem para sair do nosso reinado e de Cantão e de Hong Kong, sob pena de morte imediata e sob tortura e...”

— Eu não acredito nisso — zombou Roach.

— Cala a boca! Como pode Wolfgang escutar?

Mauss ouviu atentamente a voz alta e fantasmagórica que cortava o silêncio sombrio.

— Temos ordem de ir embora — disse ele. — E deveremos pagar uma indenização por todos os problemas que causamos. Não será permitido nenhum comércio, a não ser regido pelos Oito Regulamentos. A Rainha Vitória tem ordem de se apresentar pessoalmente em Cantão, em sinal de luto... algo a respeito... parece que nossas cabeças estão a prêmio e... “como símbolo do nosso desprazer, o criminoso Ti-sen será açoitado publicamente, e todas as suas propriedades serão confiscadas. Temam e obedeçam tremendo.”

O chefe dos bandeireiros aproximou-se de Ti-sen e apontou para o chão, com seu chicote. Ti-sen, branco como cera, ajoelhou-se, e o bandeireiro-chefe ergueu seu açoite e

o fez estalar sobre as costas de Ti-sen. Repetidas vezes. Não havia som algum na praça, a não ser o estalar do chicote. Ti-sen caiu para a frente, com o rosto no chão, e os bandeireiros continuaram a açoitá-lo.

— Eu não acredito nisso — disse Masterson.

— É impossível — disse Mauss.

— Se fizeram isso com Ti-sen... meu Deus, eles vão nos matar a todos.

— Tolice! Podemos tomar a China inteira... em qualquer ocasião.

Brock começou a gargalhar.

— O que é tão engraçado, hein? — Mauss perguntou, com impaciência.

— Isto significa guerra outra vez — disse Brock. — ótimo, digo eu. — Olhou para Struan, zombando dele. — Eu lhe disse, rapaz. É isso que você consegue, fazendo um tratado mole com a ralé.

— É algum truque — disse Struan, calmamente. Mas, por dentro, estava pasmado com os acontecimentos. — Ti-sen é o homem mais rico da China. O imperador conseguiu um saco de pancadas, um bode expiatório. E toda a riqueza de Ti-sen. É uma questão de prestígio. O imperador está defendendo seu prestígio.

— Você e o seu prestígio, rapaz — disse Brock, que não se divertia mais. — É seu prestígio que anda ruim. O tratado foi cancelado, o comércio cancelado, Hong Kong cancelada, você está liquidado e tudo que fez é falar sobre prestígio.

— Você está completamente enganado, Tyler. Hong Kong mal começou — disse Struan. — Uma porção de coisas apenas começou.

— Sim, a guerra, por Deus.

— E, se houver guerra, onde estará a base para a armada, hein? Macau é inútil, como sempre foi... faz parte do território continental, e os chineses podem atacar aquilo quando quiserem. Mas não nossa ilha, por Deus. Não com a armada protegendo-a. Concordo que, sem Hong Kong, estaríamos liquidados. Que, sem ela, não poderíamos lançar uma campanha para o norte outra vez. Nunca. Nem proteger quaisquer portos continentais, ou colônias que conseguirmos no futuro. Está ouvindo, Tyler? Hong Kong é a chave para a China. Hong Kong pegou você pelo pé.

— Sei tudo a respeito de fortaleza em ilha, por Deus. — Brock esbravejou, por sobre o coro de aprovação. — Hong Kong não é o único lugar, estou dizendo. Chushan seria melhor.

— Não se pode proteger Chushan como Hong Kong — disse Struan, exultante, sabendo que Brock estava comprometido, como todos eles estavam comprometidos. — Este “rochedo árido e estéril” , como você a chama, é todo nosso maldito futuro.

— Talvez sim, talvez não — disse Brock, com impertinência. — Vamos ver isso. Mas você não vai apreciar Hong Kong, de qualquer jeito. Eu vou ficar com aquele outeiro, e você está liquidado.

— Não tenha tanta certeza assim.

Struan espiou a praça, outra vez. O açoite ainda se elevava e caía. Ele teve pena de Ti-sen, que fora apanhado numa armadilha, não por escolha própria. Ele não procurara o posto de Plenipotenciário Chinês — recebera ordens para ocupá-lo. Tinha caído na armadilha da era em que vivia. Exatamente como Struan, Longstaff e Brock, e o Hoppo, todos eles estavam agora na armadilha, pois o primeiro passo fora dado. O resultado seria tão inexorável como o açoite. Haveria um ataque a Cantão, exatamente como antes. Primeiro, seriam tomados os fortes nas imediações de Cantão e, depois, a cidade seria apenas ameaçada. Não haveria necessidade de capturá-la, porque Cantão pagaria resgate primeiro. Depois, quando houvesse bons ventos, no verão, seguiriam mais uma vez em direção ao norte, à embocadura e aos pontos de desembarque do Rio Pei Ho e, novamente, o imperador, preso na armadilha, como todos os demais, imediatamente pediria paz. O tratado continuaria em vigor, porque era justo. Então, no curso dos anos, os chineses aos poucos iriam abrindo seus portos, por vontade própria — vendo que os ingleses tinham muito a oferecer: lei, justiça, a inviolabilidade da propriedade, liberdade.

Porque o chinês comum quer o que nós queremos, pensou ele, e não há nenhuma diferença entre nós. Podemos trabalhar juntos, para o benefício de todos. Talvez nós vamos ajudar os chineses a derrubar os bárbaros manchus. É o que acontecerá, enquanto existir um tratado razoável, e nós somos pacientes, e jogamos o jogo chinês com regras chinesas, no tempo chinês. O tempo não é medido em dias ou anos, mas em gerações. Basta que nos deixem negociar, durante o período de espera. Sem comércio, o mundo se tornará como antes — um inferno, onde só o braço mais forte e o chicote mais pesado eram a lei. Os mansos jamais herdarão a terra. Sim, mas pelo menos podem ser protegidos pela lei, para viverem suas vidas como desejarem.

Quando Ti-sen já levara cem chicotadas, os bandeireiros o levantaram. O sangue escorria de seu rosto e de seu pescoço, e a parte de trás de seu traje estava em farrapos e ensangüentada. A multidão zombava e vaiava. Um bandeireiro fez soar o gongo, mas a turba não prestou a menor atenção, e o bandeireiro investiu contra ela, dando chicotadas e machadadas. Houve gritos, e a multidão recuou e fez silêncio outra vez.

O Hoppo acenou imperiosamente com a mão em direção ao jardim. A liteira foi erguida, e os bandeireiros seguiram em frente dela, agitando seus chicotes, a fim de abrir caminho até o local onde se encontravam os negociantes.

— Vamos — disse Struan a Mauss e a Brock. — O resto de vocês se prepare para o caso de haver um ataque. — Ele correu para o jardim, com Brock e Mauss logo atrás.

— Está com dor de cabeça? — perguntou Brock.

— Não.

Eles espiaram, cheios de tensão, a multidão se dividir e os bandeireiros aparecerem no portão do jardim. O Hoppo ficou em sua cadeira, mas se dirigiu a eles gritando imperiosamente.— Ele lhe ordena para pegar uma cópia da proclamação, Sr. Struan — disse Mauss.

— Diga-lhe que não estamos vestidos em roupas cerimoniais. Uma questão tão importante precisa de grande cerimônia, para lhe dar a dignidade que ela merece. O Hoppo pareceu confuso. Depois de um momento, falou outra vez.

— Ele diz: “Bárbaros não têm nenhuma cerimônia e são mais do que desprezíveis. Entretanto, o Filho do Céu pediu clemência para todos os que o temem. Uma delegação virá ao meu palácio pela manhã, na Hora da Serpente.”

— Que diabo é isso? — perguntou Brock.

— Sete da manhã — disse Mauss.

— Não vamos colocar nossas cabeças nessa maldita armadilha. Diga a ele para ir à merda.

— Diga-lhe — falou Struan — que, de acordo com os Oito Regulamentos, não temos permissão para nos encontrarmos pessoalmente com o louvado Hoppo, mas devemos receber documentos através da Co-hong, aqui na Colônia. A Hora da Serpente não nos dá tempo suficiente. — Ele ergueu os olhos. O amanhecer clareava o céu — Que hora chinesa corresponde às onze da noite?

— A Hora do Rato — disse Mauss.

— Então diga-lhe que receberemos o documento da Co-hong aqui, com a “devida cerimônia”, na Hora do Rato. Amanhã à noite.

— “Devida cerimônia”, seja inteligente, Dirk — disse Brock. — Haverá tempo bastante para preparar um acolhimento sangrento! Mauss escutou o que dizia o Hoppo.

— Ele diz que a Co-hong vai entregar a proclamação na Hora da Serpente... às nove da manhã, de hoje. E todos os bárbaros ingleses terão de sair da Colônia na Hora do Carneiro ... ou seja, uma da tarde... hoje.

— Diga-lhe que uma da tarde de hoje não nos dá tempo suficiente. Na Hora do Carneiro, amanhã.

— Ele diz que deveremos evacuar a Colônia às três da tarde de hoje, a Hora do Macaco, e nossas vidas serão poupadas até essa hora, até à qual poderemos partir sem nenhum perigo.

— Diga-lhe: na Hora do Macaco, amanhã.

O Hoppo respondeu a Mauss, e gritou uma ordem. Sua cadeira foi erguida e o cortejo começou a se formar outra vez.

— Ele disse que devemos partir hoje. Na Hora do Macaco. Às três da tarde de hoje.

— Maldito seja! — disse Struan, enraivecido.

O cortejo dirigia-se para a Rua Hog. Um dos bandeireiros empurrou Ti-sen para trás da liteira e chicoteou-o, quando tropeçou nela; outros começaram a se aproximar da multidão, que correu para fora da praça. Os bandeireiros restantes dividiram-se em dois grupos. Um deles aproximou-se da feitoria, isolando-a da Rua Hog; o outro postou-se a oeste. A feitoria estava cercada.

— Por que você insistiu num retardamento? — perguntou Brock.

— Apenas uma negociação normal.

— Você devia saber que valia mais a pena esperar, do ponto de vista do Hoppo, depois do que aconteceu com Ti-sen! Por que achou tão importante ficar mais uma noite, hein? A maioria de nós ia embora hoje, de qualquer jeito. Para a venda de terras.

Deus do céu! Struan pensou, sabendo que Brock tinha razão. Como posso eu esperar pelo dinheiro?

— Hein? — Brock repetiu.

— Não havia razão.

— Há uma razão — disse Brock e entrou na feitoria.

***

Pontualmente, na Hora da Serpente, a totalidade dos mercadores da Co-hong entrou na praça, com uma escolta de cinqüenta bandeireiros que faziam soar gongos e tambores. A guarda de bandeireiros deixou-os passarem e depois fechou outra vez as fileiras. Novamente Jin-qua estava ausente. Mas seu filho How-qua, o principal mercador da Co-hong, encontrava-se ali. How-qua, um homem de meia-idade, rechonchudo, sorria sempre. Mas, naquele dia, estava sombrio e suado, tão aterrorizado que quase deixou cair a bem enrolada proclamação imperial, atada com uma fita escarlate. Seus companheiros negociantes estavam igualmente tomados de pânico.

Struan e Brock esperavam para recebê-los no jardim, vestidos com seus melhores casacos navais, gravatas brancas e cartolas. Struan acabara de barbear-se e Brock mandara pentear a barba. Ambos usavam aparatosas flores na lapela. Sabiam que aquela cerimônia os fazia ganhar muito prestígio e que o Hoppo perdia.

— Tem razão — dissera Brock, com uma risada rouca. — Struan e eu vamos pegar a maldita proclamação. Se não tivéssemos agido de maneira correta, então talvez nos queimassem como ratos numa ratoeira e não nos dessem esse prazo. Agora, vamos fazer exatamente como disse Struan.

O grupo parou no portão. Mauss abriu-o e Struan e Brock foram até o umbral. Os bandeireiros franziram a testa para eles. Struan e Brock estavam tristemente conscientes de que suas cabeças ainda se encontravam a prêmio, mas não demonstraram nenhum medo, pois tinham a proteção de armas escondidas nas janelas, atrás deles, e do canhão na lorcha de Brock, ancorada no meio do mar.

O bandeireiro-chefe falou acaloradamente, agitando seu chicote.

— Ele diz para sair e pegar a proclamação — interpretou Mauss. Struan simplesmente ergueu o chapéu e estendeu a mão, ficando com os pés firmemente plantados. — O Hoppo disse que a proclamação era para ser entregue. Entreguem-na. — Manteve a mão estendida.

Mauss traduziu o que ele dissera, e então, depois de um momento de nervosismo, os bandeireiros cobriram How-qua de imprecações, e How-qua correu para a frente e deu a Struan o papel enrolado.

Struan, Brock e Mauss imediatamente tiraram suas cartolas e gritaram o mais alto que podiam: “Deus salve a Rainha.” A este sinal, Gorth aproximou uma lamparina de alguns fogos de artifício e atirou-os no jardim. Os mercadores da Co-hong deram um salto para trás e os bandeireiros puxaram seus arcos e espadas, mas Struan e Brock, com os rostos solenes, ficaram perfeitamente quietos, segurando seus chapéus no ar.

Os fogos de artifício, ao explodirem, encheram o jardim de fumaça. Quando as explosões pararam, para horror da Co-hong, Mauss, Struan e Brock gritaram: “Malditos sejam todos os manchus!” e, de dentro da feitoria, foram proferidos três ressoantes vivas.

O bandeireiro-chefe caminhou para a frente, beligerantemente, e falou com Mauss.

— Ele pergunta para que tudo isso, Tai-Pan.

— Diga-lhe, exatamente como eu lhe disse. — Struan captou o olhar de How-qua e piscou-lhe às escondidas, sabendo do seu horror aos manchus.

Mauss disse em mandarim alto e sonoro:

— Este é nosso costume, numa ocasião muito importante. Nem todo dia temos o privilégio de receber um documento tão estimável.

Os bandeireiros o amaldiçoaram por um momento e, depois, ordenaram que o pessoal da Co-hong se afastasse. A Co-hong foi embora, mas agora, eles estavam mais ousados.

Brock começou a rir. E a risada espalhou-se por toda feitoria e ecoou na extremidade mais afastada da praça, onde estava situada a feitoria americana. Um pavilhão do Reino Unido apareceu numa de suas janelas e se agitou com bravura.

— É melhor nos prepararmos para ir embora — disse Brock. — Isso foi muito bom. Struan não respondeu. Atirou a proclamação a Mauss.

— Entregue-me uma tradução exata, Wolfgang — disse, e voltou para sua suíte.

Ah Gip fez uma curvatura diante dele e retornou para suas panelas. May-may estava vestida, mas permanecia deitada na cama.

— O que há, May-may?

Ela o olhou fixamente e virou-lhe as costas, erguendo o vestido e revelando as nádegas cheias de machucaduras.

— O que há! — disse, com raiva fingida. — Veja o que você fez, seu bruto bárbaro fan-quai. Preciso ficar em pé, ou então deitada de bruços.

— Deve ficar deitada — disse ele, e afundou soturnamente numa cadeira. May-may deixou cair o vestido e, cuidadosamente, saiu da cama.

— Por que você não ri? Pensei que isso faria você rir.

— Desculpe, garota. Eu deveria ter rido. Mas tenho uma porção de coisas em que pensar.

— O quê?Ele fez um sinal para Ah Gip.

— Você deve sair, entende? — e aferrolhou a porta. May-may ajoelhou-se ao lado da panela e mexeu o conteúdo com um pauzinho.

— Precisamos partir às três horas — disse Struan. — Mas, vamos dizer que você quisesse ficar na Colônia até amanhã, o que faria?

— Eu me esconderia — disse ela, imediatamente. — Num... como é que se diz... num pequeno quarto lá em cima, perto do telhado.

— Sótão?

— Sim. Sótão. Por que você quer ficar?

— Acha que revistarão a feitoria, quando tivermos partido?

— Por que ficar? Não é nada bom ficar.

— Acha que os bandeireiros vão contar nosso grupo quando formos embora?

— Aquela maldita ralé não sabe contar. — Ela pigarreou ruidosamente e escarrou no fogo.

— Quer fazer o favor de não cuspir?

— Eu já lhe disse muitas vezes, Tai-Pan, é importante, um costume chinês sábio — ela respondeu. — Há sempre veneno na garganta. E a pessoa fica muito doente, se não o expectorar. É aconselhável expectorar esse veneno. Quanto mais alto o pigarro, mais o deus do veneno do cuspe fica assustado.

— Isso é tolice, e é um hábito desagradável.

Ayeee yah — disse ela, com impaciência. — Você não entende inglês? Algumas vezes eu fico imaginando por que me dou ao trabalho de explicar toda a sabedoria tão civilizada da China a você. Por que deveríamos nos esconder aqui? É perigoso não ir com os outros. Será muito perigoso, se os bandeireiros me virem. Vamos precisar nos proteger. Por que nos esconder?

Ele lhe contou a respeito da lorcha. E a respeito das barras de prata.

— Você precisa confiar muito em mim — disse ela, com muita seriedade.

— Sim.

— O que você deve dar a Jin-qua, em troca?

— Concessões de negócios.

— Claro. Mas, o que mais?

— Apenas concessões de negócios. Houve um silêncio.

— Jin-qua é um homem inteligente. Ele não ia querer só concessões de negócios — ela observou. — Que concessões eu pediria, se fosse Jin-qua! E você deveria concordar com tudo. Tudo.

— O que você iria querer?

Ela ficou olhando para as chamas, a imaginar o que diria Struan, se soubesse que ela era a neta de Jin-qua — a segunda filha da quinta esposa de seu filho mais velho How-qua. E ficou imaginando por que fora proibida de dizer isto a Struan — sob pena de retirada de seu nome para sempre dos pergaminhos ancestrais. Estranho, disse a si mesma, e estremeceu ao pensamento de ser expulsa da família, pois isto significava que não apenas ela, mas sua descendência e a descendência deles para sempre estariam desligadas da corrente central, e assim privadas da ajuda mútua protetora que era o único amparo na sociedade chinesa. Um amparo perpétuo. A única coisa de valor verdadeiro que cinco mil anos de civilização e experimentação tinham ensinado ser segura e valiosa. A família.

E ela ficou imaginando por que, na verdade, fora dada a Struan.

— Segunda filha da quinta mãe — seu pai lhe dissera em seu décimo quinto aniversário. — Meu ilustre pai concebeu para você uma grande honra. Você será dada ao Tai-Pan dos bárbaros. Ficara aterrorizada. Jamais vira um bárbaro e acreditava que eles eram sujos e repugnantes canibais. Chorara e implorara perdão, mas depois, em segredo, mostraram-lhe Struan, quando ele estava com Jin-qua. O gigante Struan a assustara, mas ela vira que não era um macaco. Mesmo assim, ainda suplicara para se casar com um chinês.

Mas seu pai mostrara-se inflexível e lhe dera uma escolha:

— Obedeça, ou deixe esta casa e se considere expulsa para sempre.

Então ela fora para Macau e para a casa de Struan, com instruções de agradá-lo. De aprender o idioma dos bárbaros. E de ensinar a Struan coisas chinesas, sem ele saber que estava sendo ensinado.

Uma vez por ano, Jin-qua e seu pai enviavam alguém até ela, a fim de saber seus progressos e levar notícias da família.

Muito estranho, pensou May-may. Certamente, eu não fui enviada como espiã, mas para ser a concubina de Struan. E, certamente, nem meu pai e nem meu avô fariam uma coisa dessa sem seriedade — com alguém do seu próprio sangue. Eu não era a neta favorita de Jin-qua?

— Tanto dinheiro — disse ela, evitando responder à pergunta dele. — Tanto assim, representa uma tentação imensa. Imensa. Todo num lugar só... com um simples roubo, vinte ou quarenta gerações estariam com a vida ganha. — Como fui tola de ter medo do Tai-Pan. Ele é um homem como qualquer outro, e meu senhor. Muito homem. E logo eu serei Tai-tai. Afinal. E terei prestígio, afinal.

Ela fez uma grande curvatura.

— Estou honrada porque você confia em mim. Eu abençoarei seu pagode, Tai-Pan, para sempre. Você me concedeu uma grande honra e me dá tanto prestígio. Porque qualquer pessoa iria considerar como roubar esse dinheiro. Qualquer pessoa.

— Como você faria isso?

— Mandaria Ah Gip ao Hoppo — disse ela, imediatamente, e voltou a mexer a panela. — Em troca de cinqüenta por cento garantidos, ele desconsideraria até o imperador. Permitiria que você ficasse, secretamente, se você quisesse, até a lorcha chegar. Quando tivesse certeza de que era a lorcha certa, deixaria você ir a bordo, em segredo, e interceptaria a embarcação no rio. E cortaria sua garganta. Mas então ele me enganaria, tirando-me minha parte, e eu ia ter de ser mulher dele. Porco sujo! Nem por todo chá da China, com aquele porco fornicador, não. Ele tem truques sujos. Sabe que é quase impotente?

— O quê? — disse Struan, sem realmente escutá-la.

— Todo mundo sabe — disse ela. Provou o cozido afetadamente e adicionou um pouco de molho de soja. — Ele precisa ter duas moças ao mesmo tempo. Uma tem de brincar com ele, enquanto a outra trabalha. Além disso, tem o órgão tão pequeno que coloca coisas em si mesmo, coisas enormes. E gosta de fazer sexo com patos.

— Não diga essas sandices.

— O que quer dizer “sandices”?

— Tolices.

— Ah, não é tolice. Todo mundo sabe — ela sacudiu a cabeça, com graça, e a longa pluma de seus cabelos dançou. — Eu não entendo você, de maneira nenhuma, Tai-Pan. Fica chocado, quando lhe digo coisas comuns. Muitas pessoas usam coisas para melhorar o sexo. É muito importante melhorar, quando se pode. Comer as comidas certas, usar os remédios certos. Quando a pessoa tem pequeno, ayeee yah, não há nada de mau em melhorar o pagode e dar mais prazer à garota da gente. Mas não como aquele porco sujo! Ele fez essas coisas só para ferir.

— Quer calar a boca, mulher?

Ela parou de mexer a comida e olhou-o. Franziu ligeiramente a testa.

— Todos os europeus são como você, Tai-Pan? Não gostam de falar abertamente sobre o relacionamento homem-mulher, não é?

— Sobre certas coisas não se fala. Ela abanou a cabeça.

— Isto é errado. É bom falar. Como se pode melhorar, se não for assim? Homem é homem, e mulher é mulher. Você não fica chocado por causa de comida! Por que tanta loucura, hein? Sexo é comida, pode ter certeza. — Os olhos dela se franziram, maliciosamente, e ela o examinou de alto a baixo. — Com tudo isso, o sinhozinho dá trepadinha do mesmo jeito, ?

— Todas as moças chinesas são como você, é?

— Sim — disse ela, calmamente. — A maioria. Como eu, mas não tão boas. Eu espero. — Ela riu. — Acho que você deve ser muito especial. Eu também sou especial.

— E modesta.

— Maldito seja esse tipo de modéstia. Eu sou honesta, Tai-Pan. Os chineses são honestos. Por que eu não apreciaria a mim mesma? E a você. Eu gosto de você, como você gosta de mim. É estúpido fingir que não. — Ela deu uma espiada para dentro da panela e pegou um pedaço de carne com os pauzinhos, provando-o em seguida. Depois, tirou a panela do fogo e colocou-a perto das chamas o bastante para mantê-la aquecida. Abriu a porta e sussurrou algo para Ah Gip. Ela se afastou, arrastando-se. May-may voltou para o fogo.

— Onde ela foi?

— Descobrir um lugar para nos escondermos.

— Eu vou fazer isso.

— Ela sabe fazer isso melhor do que você. Primeiro, vamos comer, depois você decide a respeito de Brock.

— O que quer dizer?

— Ele não vai deixar você se esconder e ficar aqui assim facilmente, não é?

— Já decidi o que fazer com ele. — O rosto de Struan enrugou-se, com o amplo sorriso que deu. -— Você é muito, muito especial, May-may.

— Especial o suficiente para você fazer de mim Tai-tai? Sua Suprema Senhora, de acordo com seu costume.

— Vou decidir a respeito disso, depois que tiver realizado três coisas.

— Que três coisas?

— A primeira é levar as barras a salvo para o China Cloud.

— E a outra?

— A segunda é garantir uma segurança absoluta para Hong Kong.

— A última?

— Não tenho certeza. Você vai ter de ser paciente com relação a esta.

— Vou ajudar você nas duas primeiras. A última eu não entendo. Sou chinesa. Os chineses são muito pacientes. Mas também sou uma mulher.

— Sim — disse ele, depois de um longo momento.


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