CAPÍTULO SEIS
Struan sentou-se na liteira e ficou a se balançar, descontraidamente, ao sabor de suas oscilações, enquanto os cules que a carregavam iam trotando pelas vielas silenciosas. O interior do compartimento, fechado com cortinas, estava encardido e com manchas de suor. De vez em quando, ele espiava as vielas através das janelas laterais, que eram simples aberturas vedadas pelas cortinas. Não conseguia ver o céu, mas sabia que o amanhecer estava próximo. O vento carregava o fedor de frutas podres, de fezes, lixo, de cozinha e de temperos e, misturado com ele, o cheiro do suor dos cules.
Ele elaborara com Jin-qua um plano seguro para fazer as barras de ouro chegarem a Hong Kong. Combinara que Jin-qua as colocaria, em seus engradados, numa lorcha armada. Em duas noites, a lorcha deveria ser levada secretamente às docas da Colônia. Exatamente à meia-noite. Se isto não fosse possível, a lorcha deveria ser deixada perto da extremidade sul do cais, com uma lanterna no mastro dianteiro e outra na proa. Para garantir que não haveria erro, Jin-qua dissera que, como sinal, pintaria o olho do lado esquerdo da lorcha de vermelho. Toda lorcha tinha dois olhos entalhados na teca de suas proas. Os olhos eram para dar pagode e também para ajudar a alma do barco a ver em frente. Os chineses achavam que era essencial um barco ter olhos, para enxergar com eles.
Mas, por que Jin-qua me deixou ter Hong Kong segura? — perguntou a si mesmo. Certamente, Jin-qua deve perceber a importância de um mandarim. E por que desejará um filho educado em Londres? Será que Jin-qua, entre todos os chineses que conhecia, era o único com uma visão tão ampla a ponto de entender que, a longo prazo, haveria uma ligação permanente entre os destinos da China e os destinos da Grã-Bretanha?
Ele ouviu cachorros latindo e, através das cortinas, viu-os atacarem as pernas do cule da frente. Mas o cule, que carregava a lanterna adiante da liteira, correu para trás e, com uma habilidade advinda da prática, furou os cães com sua vara de ponta de ferro. Os cachorros fugiram correndo, a ganir, para dentro da escuridão.
Então Struan notou um grupo de bandeireiros desmontados — talvez cem deles — sentados num cruzamento distante. Estavam armados e tinham lanternas. Permaneciam agourentamente quietos. Vários dos homens levantaram-se e começaram a caminhar em direção à liteira. Os cules desviaram-se por uma viela, fazendo Struan sentir um grande alívio. Agora, tudo que você tem de fazer, rapazinho, ele disse a si próprio, é garantir a chegada das barras de prata a Hong Kong em segurança. Ou a Whampoa, de onde você pode transferi-las para o China Cloud. Mas até estarem em segurança a bordo, você não está seguro, rapazinho.
A liteira deu uma guinada, quando um cule quase tropeçou num dos buracos que pontilhavam o leito da estrada. Struan balançou-se dentro do espaço confinado, tentando segurar-se. Mais tarde viu mastros de navios, meio escondidos por choupanas. Em frente, não havia ainda nada reconhecível. A cadeira virou numa esquina, encaminhando-se em direção ao rio, depois cruzou uma estreita viela e entrou em outra. Afinal, mais adiante, por sobre as coberturas das choupanas, ele descortinou parte das edificações da Colônia, banhadas pelo luar.
Abruptamente, a liteira parou e foi posta no chão, atirando Struan para um lado. Ele abriu bruscamente as cortinas e saltou, com a faca na mão, justamente quando três lanças atravessavam os frágeis lados da cadeira.
Os três lanceiros tentavam desesperadamente libertar suas armas, quando Struan se atirou sobre o mais próximo, enfiou sua faca entre as costelas do homem e rodopiou, enquanto outro o atacava com um machado militar de lâmina dupla. A lâmina do machado cortou-lhe o ombro e ele fez uma careta de dor, mas desviou-se para um lado e lutou com o homem pela posse do machado. Arrancou-o da mão do homem e ele gritou, quando uma lança dirigida contra Struan espetou-o. Struan encostou-se à parede. O lanceiro restante cercou-o, arquejando e a praguejar. Struan negaceou e investiu contra ele com o machado, mas não acertou o alvo e o homem arremeteu. Sua lança furou o casaco de Struan, mas Struan rasgou-o, libertando-se, e enterrou sua faca até o cabo no estômago do homem e a torceu, estripando-o.
Struan pulou por sobre os corpos, mantendo as costas protegidas contra a parede, e ficou esperando. O homem que ele esfaqueara estava gemendo. Outro permanecia inerte. O que ele estripara, estava segurando o estômago e rastejava para mais longe.
Struan esperou um instante, recobrando as forças, e então uma flecha bateu no muro acima de sua cabeça. Ele pegou uma das lanças e desceu correndo a viela, em direção à Colônia. Ouviu ruídos de passos atrás dele, e correu mais depressa. Ao virar na esquina, viu que a Rua da Décima Terceira Feitoria estava logo adiante. Jogou fora a lança e ziguezagueou pela rua, entrando na Rua Hog, que percorreu até à praça, mais cheia de bandeireiros do que antes.
Antes que os bandeireiros pudessem interceptá-lo, cruzou o portão do jardim. Um mosquete deu-lhe uma pancada no estômago.
— Ah, é você, Dirk — disse Brock. — Onde diabo você estava?
— Fora. — Struan arquejava, procurando recuperar o fôlego. — Pelo sangue de Cristo, fui atacado por malditos salteadores de estrada.
— Esse sangue é seu, ou deles?
À luz de lanterna, Struan rasgou o casaco e a camisa, descobrindo o ombro ferido. O corte era nítido e raso, através do músculo do ombro.— Uma mordida de inseto — zombou Brock. Ele pegou uma garrafa de rum e derramou um pouco na ferida, sorrindo quando Struan piscou. Quantos eram?
— Três.
— E você deixou cortarem seu ombro? Está ficando velho! — Brock encheu dois copos de rum. Struan bebeu e se sentiu melhor.
— Pensei que você estava dormindo. Sua porta estava trancada. Para onde foi?
— O que está acontecendo aqui?
— Os criados sumiram há cerca de uma hora. É isso. Achei melhor não trazer todo mundo para cá antes do amanhecer. Quase meia centena de armas de fogo estavam cobrindo você, enquanto corria.
— Então, por que diabo enfiar um mosquete em minha barriga?
— Só queria lhe dar uma boa acolhida. — Brock tomou uns goles de rum. — Só queria que você soubesse que estávamos acordados.
— Alguém sabe por que os criados foram embora?
— Não. — Brock se aproximou do portão. Os bandeireiros se preparavam para voltar a dormir. Um nervoso amanhecer hesitava no horizonte. — O negócio parece muito ruim — disse ele, com o rosto sombrio. — Não gosto disso aqui nem um pouquinho. Esses filhos da mãe não fazem nada, mas ficam ali sentados e, de vez em quando, batem seus tambores. Acho melhor nos retirarmos, enquanto ainda podemos.
— Estamos seguros por uns poucos dias. Brock abanou a cabeça.
— Tenho um mau pressentimento. Alguma coisa está completamente errada. Melhor a gente ir embora.
— É uma manobra, Brock. — Struan arrancou um pedaço da camisa e enxugou com ele o suor do rosto.
— Talvez. Mas tenho esse pressentimento e, quando eu tenho um pressentimento assim, é melhor dar o fora. — Brock apontou com o polegar os bandeireiros. — Nós os contamos. Cento e cinqüenta. How-qua disse que deve ter mais uns mil, espalhados em torno da Colônia.
— Eu vi talvez duzentos ou trezentos. A leste.
— Onde você esteve?
— Fora. — Struan teve a tentação de contar a ele. Mas isso não vai ajudar, pensou. Brock fará tudo a seu alcance para impedir as barras de chegarem em segurança. E, sem as barras, você está mais morto do que nunca. — Tem uma garota ali do outro lado — ele disse em tom petulante.
— Maldita seja uma garota! Não pensei que você fosse tão estúpido a ponto de sair por causa de alguma putinha. — Brock puxou a barba, mal-humorado. — Pode me substituir, dentro de uma hora?
— Sim.
— Ao meio-dia, vamos embora.
— Não.
— Ao meio-dia, estou dizendo.
— Não.
Brock franziu a testa.
— O que está segurando você aqui?
— Se sairmos antes de haver algum problema concreto, perdemos muito prestígio.
— Sim, eu sei. Não me agrada fugir. Mas alguma coisa me diz que é melhor.
— Vamos esperar alguns dias.
Brock estava cheio de suspeitas.
— Você sabe que eu nunca me enganei a respeito da hora de fugir. Por que quer ficar?
— É apenas mais um dos velhos truques de Ti-sen. Desta vez, você está errado. Venho substituir você dentro de uma hora — disse Struan, e foi para dentro.
Ora, em que Dirk estará metido? Brock ficou matutando. Ele pigarreou alto, odiando o fedor de perigo que parecia vir da noite agonizante.
***
Struan subiu a escadaria de mármore até seus aposentos. As paredes estavam cheias de pinturas de Quance e rolos de seda chineses. Nos patamares, havia gigantescos dragões Ming em teca e arcas de teca. Os corredores que começavam no primeiro patamar tinham pinturas de navios e batalhas navais e, sobre um pedestal, estava um modelo bem proporcionado do H.M.S. Victory. Struan encontrou trancada a sua porta.
— Abram a porta — disse ele, e esperou. Ah Gip conduziu-o para dentro.
— Onde diabo esteve você, May-may? — disse ele, tentando não demonstrar seu alívio.
Ela estava em pé, nas sombras próximas à janela. Falou com Ah Gip e depois fezlhe sinal para sair. Struan aferrolhou a porta.
— Onde diabo estava você?
Ela se movimentou para a luz da lanterna e ele ficou chocado com a sua palidez.
— O que há de errado?
— Há muitos boatos, Tai-Pan. Dizem que todos os bárbaros vão ser mortos a espada.
— Não há nenhuma novidade nisso. Onde você esteve?
— Os bandeireiros são uma novidade. Há rumores de que Ti-sen caiu em desgraça. De que ele foi condenado à morte.
— Isso é tolice. Ele é primo do imperador e o segundo homem mais rico da China.
— Dizem os boatos que o imperador ficou tão aborrecido, porque Ti-sen fez um tratado, que Ti-sen vai ser torturado publicamente.
— Isso é loucura. — Struan ficou em pé junto ao fogo e tirou o casaco e a camisa.
— Onde você esteve?
— O que aconteceu com você? — ela exclamou, vendo o corte.
— Fui atacado por salteadores de estrada.
— Você se encontrou com Jin-qua?
Struan ficou pasmo.
— Como sabe a respeito de Jin-qua?
— Fui prosternar-me, e apresentar meus respeitos, diante de sua Suprema Senhora. Ela me disse que ele acabara de voltar e mandara chamar você.
Struan esquecera que May-may conhecia a primeira mulher de Jin-qua, mas ficou tão furioso que tirou isso da cabeça.
— Por que diabo você não me disse para onde ia?
— Porque você teria proibido — retrucou May-may. — Eu queria encontrar com ela. Também tinha de fazer meu cabelo e consultar o astrólogo.
— O quê?
— Há uma cabeleireira ótima, à qual vão as mulheres de Jin-qua. Ela é maravilhosa para fazer o cabelo. Essa mulher é famosa em toda Kwangtung. Muito cara. Já o astrólogo disse que o pagode era bom. Muito bom. Mas para ter cuidado com a construção das casas.
— Você arrisca a vida para falar com adivinhos e tratar do cabelo? — ele bradou.
— Que diabo há com seu cabelo? Está ótimo, como sempre!
— Você não entende dessas coisas, Tai-Pan — ela disse, com frieza. — Foi lá que ouvi os rumores. No cabeleireiro. — Ela pegou na mão dele, e o fez tocar em seu cabelo.
— Veja. Está muito mais macio, não?
— Não! Não está! Deus do céu, se você tornar a sair sem primeiro me dizer para onde vai, eu lhe dou uma surra tão forte que você vai ficar sem poder se sentar por uma semana.
— Ah, experimente só, Tai-Pan — disse ela, e devolveu o olhar que ele lhe lançava.
Ele a agarrou depressa e a carregou, lutando, para a cama, arrancou-lhe o vestido e a anágua e lhe deu uma palmada nas nádegas que lhe fez doer a mão, atirando May-may, em seguida, na cama. Ele jamais lhe batera antes. May-may pulou da cama e investiu contra ele, arranhando-lhe perversamente o rosto, com suas longas unhas. Uma lanterna caiu no chão, quebrando-se, quando Struan a ergueu outra vez e recomeçou seu espancamento. Ela lutou para se libertar de seu braços e suas unhas projetaram-se em direção aos olhos dele, errando o alvo por uma fração de polegada e cortando-lhe o rosto. Ele prendeu-lhe os pulsos, virou-a de costas, rasgou-lhe o vestido e a roupa interna, e bateu em suas nádegas nuas com a palma da mão. Ela lutou ferozmente, dando-lhe uma cotovelada na virilha e arranhando outra vez o rosto dele. Reunindo todas as suas forças, ele a prendeu na cama, mas ela livrou a cabeça e afundou os dentes em seu braço. Ele arquejou de dor e lhe bateu nas nádegas outra vez, com a palma da mão livre. Ela mordeu com mais força.
— Por Deus, nunca mais me morda outra vez — disse ele, através dos dentes cerrados.
Os dentes dela afundaram mais, porém ele, deliberadamente, não retirou o braço. A dor fazia seus olhos lacrimejarem, mas ele batia em May-may cada vez com mais força, sempre nas nádegas, até sua mão doer. Finalmente, ela abriu os dentes.
— Pare... não bata mais... por favor, por favor — ela soluçou e abriu em prantos, com o rosto enfiado no travesseiro, indefesa. Struan recuperou o fôlego.
— Agora, peça desculpas por ter saído sem permissão.
As nádegas dela, sarapintadas e avermelhadas, endureceram-se, e ela se retraiu como quem se protege da esperada pancada, mas ele não levantara a mão. Sabia que o temperamento de um puro-sangue deve ser apenas domado, nunca quebrado.
— Eu lhe dou três segundos.
— Desculpe... desculpe. Você está me magoando... você está me magoando — ela soluçou.
Ele saiu da cama e, segurando o braço sob a luz, examinou a ferida. Os dentes de May-may tinham penetrado profundamente, e o sangue escorria.
— Venha cá — disse ele, tranqüilamente. Ela não se moveu, mas continuou a chorar. — Venha cá — ele repetiu, mas desta vez sua voz era um açoite, e ela deu um pulo. Ele não a olhou. Ela, rapidamente, enrolou em torno de si o que restava do vestido e começou a sair da cama.
— Eu não lhe disse para se vestir! Eu disse venha cá. Ela se aproximou dele às pressas, com os olhos vermelhos e o pó-de-arroz e a maquilagem dos olhos manchados.
Ele firmou o braço contra a mesa, limpou o sangue que escorria e despejou conhaque em cada ferida. Acendeu um fósforo e entregou a ela. — Toque fogo nas feridas, uma a uma.
— Não!
— Uma por uma — ele disse. — A mordida humana é tão venenosa como a de um cão raivoso. Depressa.
Foram precisos três fósforos e, de cada vez, ela chorava um pouco mais, nauseada com o cheiro da carne queimada, mas manteve a mão firme. E em todas as ocasiões em que o conhaque se inflamava, Struan cerrava os dentes e nada dizia.
Quando tudo terminou, ele derramou mais conhaque sobre as feridas enegrecidas e May-may pegou um urinol, sentindo-se muito enjoada. Struan, rapidamente, despejou um pouco de água quente da chaleira numa toalha e deu pancadinhas no traseiro de May-may, suavemente. Quando ela terminou, ele lhe lavou o rosto, com ternura, e fez com que ela lavasse a boca com um pouco da água quente. Depois, ergueu-a e a colocou na cama, e se preparou para ir embora. Mas ela agarrou-se a ele e começou a chorar, com aquele profundo choro interior que limpa o ódio.
Struan a acalmou e acariciou, até ela dormir. Então saiu e substituiu Brock na vigília.
***
Ao meio-dia, houve outro encontro. Muitos queriam partir imediatamente. Mas Struan dominou Brock e persuadiu os mercadores a esperarem até o dia seguinte. Eles concordaram relutantes, e decidiram mudar-se para a feitoria, a fim de se protegerem mutuamente. Cooper e os americanos foram para sua própria feitoria.
Struan voltou para sua suíte.
May-may deu-lhe boas-vindas apaixonadas. Mais tarde, dormiram, em paz. Quando acordaram juntos, ela o beijou, sonolenta, e sussurrou:
— Você tinha razão de me bater. Eu estava errada, Tai-Pan. Mas nunca me bata, quando eu não estiver errada. Porque, em alguma ocasião, você pode dormir, e então eu o matarei. No meio da vigília, a paz de ambos foi interrompida. Wolfgang Mauss batia à porta.
— Tai-Pan! Tai-Pan!
— Sim?
— Depressa! Lá embaixo! Depressa!
Agora eles podiam ouvir a turba aglomerando-se na praça.