Quando tudo, para satisfação sua, estava pronto, ele se levantou pesadamente e ergueu a mão. Os criados correram para suas posições e ficaram em pé, como estátuas, enquanto ele fazia uma última inspeção. Outro aceno de sua mão e um criado saiu correndo do círculo de luz na escuridão da praia, com uma vela na mão.
Houve, então, um monstruoso espocar de bichas, que durou vários minutos, e todos na frota e na praia correram para ver. Em seguida, surgiram bolas de fogo, luzes coloridas, mais barulho, fumaça, trovões e novas bichas. E rodas de fogo, e vulcões de fogo colorido. O trovejar continuou durante vários minutos e houve um ruído parecido com o de uma surriada da frota e uma centena de foguetes explodiu no céu. Suas caudas se ergueram e desapareceram. Depois de um momento de silêncio, todo céu explodiu em plumas escarlates, verdes, brancas e douradas. As penas foram caindo, majestosamente, e mergulharam no mar.
O criado acendeu a última vela e saiu às pressas. Fogo vermelho e verde serpenteou no grande andaime de bambu que logo estava em chamas, mostrando o Leão e o Dragão. A bandeira ardeu durante minutos e se extinguiu, com uma grande explosão, tão repentinamente como surgira.
Durante um momento, fez-se escuridão, enquanto um forte viva ecoava pelos morros em torno. Quando os olhos se ajustaram à escuridão, as luzes convidativas da pista de danças brilharam outra vez. E uma alegria expectante tomou conta de Hong Kong.
***
Shevaun gemia de agonia.
— Chega — ela implorou.
Sua criada apertou com mais força ainda os cordões do espartilho e colocou o joelho no traseiro de Shevaun.
— Solte a respiração — ordenou. E, quando Shevaun obedeceu, ela deu um puxão final nos cordões e os amarrou. Shevaun arquejou. — Pronto, querida — disse a empregada, que usava uma touca. — Está tudo pronto.
Era uma pequena e limpa irlandesa, com punhos de aço, e seu nome era Kathleen O’Rouke. Era babá e criada de Shevaun desde que esta usava cueiros, e ela a adorava. Seu cabelo castanho-escuro emoldurava um rosto agradável, com olhos sorridentes e queixo com covinha. Tinha trinta e oito anos.
Shevaun segurou-se numa cadeira, na cabina, e gemeu, mal conseguindo respirar.
— Vou desmaiar, antes do fim da festa. Kathleen pegou a fita e mediu a cintura de Shevaun.
— Dezessete polegadas e meia, minha Virgem Maria! E, quando você desmaiar, queridinha, caia bem graciosamente, e numa hora em que todos estiverem observando.Shevaun estava vestida com calças cheias de babados, as pernas metidas em meias de seda. O espartilho com ossos de baleia apertava-lhe os quadris, afinava violentamente sua cintura e subia até o busto, aumentando-o, forçando-o para cima.
— Preciso sentar um minuto — disse ela, com voz fraca. Kathleen pegou os sais perfumados e os agitou sob o nariz de Shevaun.
— Pronto, meu amorzinho. Logo que aquelas prostitutas a virem, você não vai se sentir fraca, de maneira nenhuma. Pela Virgem Santa Mãe de Deus e por José, você vai ser a mais bela do baile.
Houve uma forte batida à porta.
— Você não está pronta ainda, Shevaun? — gritou Tillman.
— Não, titio. Não vou demorar.
— Bom, se apresse, querida. Precisamos chegar lá antes de Sua Excelência! — saiu pisando forte. Kathleen deu uma risadinha baixa.
— Que homem tolo, minha queridinha. Ele não percebe que a pessoa precisa causar boa impressão.
***
Quance afastou suas tintas.
— Aí está!
— Excelente, Aristotle — disse Robb, e ergueu a pequena Karen, para ela olhar seu retrato. — Não é, Karen?
— Eu sou assim? — perguntou Karen, desapontada. — Está horrível.
— Está imortal, Karen — disse Quance, chocado. Ele tirou-a dos braços de Robb e segurou-a com força. — Olhe para o brilho soberbo de suas faces, a luz em seus olhos lindos, a felicidade que rodeia você como uma auréola. Pelas barbas de Alcazabedabra, está tão bom quanto você.
— Ah, bom. — Ela lhe deu um abraço, ele a colocou no chão, e ela olhou para a pintura outra vez. — Quem é Alcaza... de quem você falou?
— Um amigo meu — disse Quance, com gravidade. — Um amigo barbado que cuida dos pintores e das crianças bonitas.
— Está muito, muito bonito — disse Sarah, com o rosto distendido. — Agora vá embora, já passou da hora de ir dormir.
— É cedo — disse Karen, com um amuo. — E você prometeu que eu podia ficar acordada até papai ir. Quance sorriu, limpou os dedos com terebintina e despiu seu camisolão de pintor.
— Virei pegar minhas tintas amanhã, Robb.
— Claro.
— Bom, é melhor sairmos. — Quance alisou o seu espalhafatoso colete bordado em púrpura e vestiu seu casaco de seda dourada.
— Gosto do senhor, Sr. Quance — disse Karen. — O senhor é muito bonito, embora o quadro seja horrível. Ele riu, deu-lhe um abraço e colocou sua cartola.
— Vou ficar esperando na chalupa, Robb.
— Por que não mostra ao Sr. Quance o caminho, Karen? — disse Robb.
— Ah, sim — ela respondeu, e foi dançando para a porta. Quance seguiu-a com um pavão.
— Está se sentindo bem, Sarah? — perguntou Robb, com solicitude.
— Não — disse Sarah, friamente. — Mas isso não tem importância. É melhor você ir. Vai chegar atrasado.
— Eu fico, se isso ajudar para alguma coisa — disse Robb, tenso.
— A única coisa que ajuda é a chegada do bebê e do navio para voltar para casa. — Sarah, mal-humoradamente, afastou dos olhos uma mecha de cabelo liso. — E ir embora desta maldita ilha!
— Ah, não seja ridícula! — disse ele, sem conseguir conter-se, com a raiva engolindo sua decisão de não discutir. — Não tem nada a ver com Hong Kong!
— Desde que passou a ser nossa, não pararam os problemas — disse ela. — Você mudou, Dirk mudou, Culum, eu. Pelo amor de Deus, o que está acontecendo? Decidimos, finalmente, partir e entramos em bancarrota. Todos ficamos mortalmente assustados, brigando terrivelmente, e a pobre Ronalda e a família de Dirk morrem. Depois, as barras de prata nos salvam mas, ah, não, Dirk acua você, e você é fraco demais para escapar, então jura que vai ficar. Culum odeia Dirk e Dirk odeia Culum, e você fica estupidamente no meio, sem coragem de reivindicar os seus direitos e ir embora, para aproveitar a vida lá em nosso país. Nunca me atrasei num parto mas, desta vez, estou atrasada. Nunca me senti mal, antes, mas agora me sinto morta. Se você quer uma data para o início de todos os nossos problemas, é 26 de janeiro de 1841!
— Isso é uma tolice completa — ele retorquiu, furioso por ela ter articulado o que há muito estava fervendo, em fogo lento, em sua cabeça, e percebendo que, igualmente, amaldiçoara aquele dia, durante longas insônias, a meditar. — Tolice, superstição — acrescentou, mais para convencer a si mesmo do que a ela. — A peste aconteceu no ano passado. A corrida ao banco foi no ano passado. Simplesmente, não tivemos as notícias antes de chegar a Hong Kong. E não sou estúpido. Precisamos ter dinheiro, muito dinheiro, e um ano não é tanto tempo assim. Estou pensando em você e nas crianças. Preciso ficar. Já está tudo resolvido.
— Você já reservou nossa passagem para casa?
— Não.
— Então eu ficaria satisfeita se você providenciasse tudo, imediatamente. Não vou mudar de idéia, se é isso que você pensa.
— Não, Sarah — disse Robb, em tom gélido. — Não acho que você vá mudar de idéia. Estava esperando para ver como se sentia. Temos muitos navios disponíveis. Como você bem sabe.
— Daqui a um mês, eu estarei em condições e...
— Não estará, e ir depressa assim é perigoso. Tanto para você como para a criança.
— Então, talvez seja melhor você nos acompanhar até em casa.
— Não posso.
— Claro que não. Você tem coisas mais importantes para fazer. — O mau gênio de Sarah se manifestou. — Talvez você tenha outra puta paga pronta, à sua espera.
— Ah, cale a boca, pelo amor de Deus. Eu já lhe disse mais de mil vezes...
— Dirk já tem uma na ilha. Por que você seria diferente?
— Ele tem?
— E não tem?
Ficaram olhando um para o outro, a se detestarem.
— É melhor você ir — ela disse, e deu a volta.
A porta se abriu e Karen entrou, dançando, no quarto. Pulou nos braços do pai, depois correu para Sarah e beijou-a.
— Paizinho está acertando nosso navio para casa, querida — disse Sarah, sentindo que o bebê dava chutes violentos em seu útero. Sua hora estava, afinal, muito próxima, e ela foi apunhalada por um medo descabido. — Passaremos o Natal em casa, este ano. Não será maravilhoso? Haverá neve, cantos de Natal e presentes maravilhosos. E Papai Noel.
— Ah, que ótimo, adoro Papai Noel. O que é neve?
— Fica tudo branco... as árvores e as casas... é uma chuva que se torna gelo. É muito bonito e as lojas estarão cheias de brinquedos e de coisas lindas. — A voz de Sarah tremeu e Robb sentiu a punhalada que era seu tormento. — Será tão bom estar numa
cidade de verdade outra vez... e não num descampado.
— Vou sair agora — disse Robb, consumido de pesar, Ele beijou Sarah, de leve, e ela, imperceptivelmente, desviou o rosto, enfurecendo-o mais uma vez. Ele abraçou Karen e saiu.
***
Mary Sinclair deu os toques finais em seu penteado e pregou com alfinetes, no lugar certo, a pequena coroa de flores campestres que Glessing enviara.
Seu vestido — de xantungue de seda negra como azeviche, com pufes, muito gracioso — era usado sobre inúmeras anáguas, que farfalhavam quando ela se movimentava. O decote era elegante, exibindo suaves ombros nus e seios firmes.
Ela estudou a própria imagem, imparcialmente.
O rosto que a olhava do espelho, era estranho. Havia uma beleza imprópria nos olhos, e nenhuma cor nas faces. Os lábios estavam muito vermelhos e brilhantes.
Mary sabia que nunca estivera mais linda.
Ela suspirou e pegou o calendário. Mas já sabia que não havia mais necessidade de tornar a contar os dias. O total seria sempre o mesmo e a descoberta que a aturdira, aquela manhã, seria também a mesma — você está grávida.
Meu Deus, meu Deus, meu Deus.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Culum fez uma polida curvatura.
— Boa-noite — disse, automaticamente, e outro convidado se dissolveu na multidão festiva. Por quase uma hora estivera em pé, ao lado de seu pai e do tio, recebendo formalmente os convidados, e estava impaciente para que o ritual terminasse.
Observou a pista de dança. Entre os ombros nus, trajes multicoloridos, resplandecentes uniformes e os leques que se agitavam constantemente, espiou Mary Sinclair. Por um momento, ficou aborrecido de ver que ela estava conversando com Glessing. Mas ora, pensou, você não devia ter ciúmes. Mary é, obviamente, a mulher mais bonita entre as presentes, e George tem toda razão de estar com ela. Não o culpe nem um pouquinho.
Dois coretos haviam sido construídos de cada lado do círculo, um para a banda da Marinha e outro para a do Exército. Quando o general ouviu dizer que o almirante concordara em emprestar sua banda para a noitada, fizera o mesmo.
Os soldados, com uniformes escarlates, estavam tocando, agora. Todos se sentiam ansiosos para começar a dançar, mas tinham de esperar até Longstaff chegar. E ele estava atrasado, o que era uma prerrogativa sua.
Culum fez novas curvaturas para os convidados e notou, com alívio, que a fila estava escasseando. Deu uma olhada em direção à praia, onde uma fileira de lanternas guiava os convidados ao saírem de seus botes, e viu o escaler de Longstaff chegar à areia. Longstaff, o arquiduque e o almirante foram ajudados a desembarcar. Ótimo, pensou Culum. Não vai demorar muito, agora. Novamente, seus olhos vaguearam pela pista, e, desta vez, detiveram-se em Manoelita de Vargas. Ela o observava, por cima de seu leque.
Era muito bonita — pele alvíssima, olhos escuros, uma mantilha sobre o cabelo negro. Culum sorriu e fez uma leve curvatura. Os olhos de Manoelita semicerraram-se e ela agitou o leque, depois deu as costas. Culum prometeu a si mesmo que dançaria com ela pelo menos uma vez.
Ele espanou um pouco de poeira de suas lapelas, consciente de que estava vestido de acordo com a última moda inglesa, bem à frente da maioria dos homens, aquela noite. Seu casaco era azul-celeste, com lapelas de seda azul-escura, apertado na cintura e alargandose sobre os quadris. A calça azul-clara, bem apertada, estava enfiada em meias-botas negras e macias. Seu cabelo descia em cachos sobre as orelhas e sobre o colarinho alto e engomado. O alfaiate de Robb fizera um trabalho muito bom, pensou. E tão barato! Ora, com cento e cinqüenta guinéus por mês poderia comprar dezenas de soberbos ternos e botas. A vida era maravilhosa.
Curvou-se para outro grupo de convidados que passava, deixando atrás um cheiro ácido de antigo suor coberto com perfume. Estranho, pensou. Agora sentia o cheiro das outras pessoas, e elas realmente fediam. Ficou espantado de não ter notado isto antes. Decerto se sentia melhor, muito melhor, desde que começara a tomar banho todo dia e a trocar de roupa. O Tai-Pan tinha razão.
Olhou para o pai, que estava absorto numa conversa com Morley Skinner. Culum teve consciência de que as pessoas o espiavam e sua expressão era hostil. No tocante aos convidados, não havia nenhum sinal de que o antagonismo entre pai e filho se abrandara. Na verdade, ele se aprofundara numa polidez fria. Desde que o jogo começara, Culum ia achando cada vez mais fácil levar avante o engodo em público. Seja honesto, Culum, disse a si mesmo. Você não o idolatra mais. Você ainda o respeita — mas ele é um herege, adúltero, uma influência perigosa. Então, você não está fingindo — você está frio. Frio e cauteloso.
— Vamos, Culum, rapaz — Robb sussurrou, desajeitadamente.
— O que é, tio?— Ah, nada. Só que esta noite é de comemoração.
— Ah, sim, é.
Culum percebeu a expressão perturbada nos olhos de Robb, nas nada disse e lhe deu as costas para cumprimentar outros convidados e espiar Mary e, ocasionalmente, Manoelita. Decidiu que não diria a Robb o que acontecera entre o Tai-Pan e ele, no alto da montanha.
— Você ainda não conhece meu sobrinho, Culum — ouviu Robb dizer. — Culum, esta é a Srta. Tess Brock.
Culum se virou. Seu coração deu um salto e ele se apaixonou.
Tess fazia uma mesura. A saia de seu vestido era ampla e fofa, de brocado de seda
branca, sobre anáguas cascateantes que irrompiam como espuma sob a bainha. Sua cintura era incrivelmente fina, abaixo do corpete decotado e empinado. Seu cabelo louro caía em macios cachos sobre os ombros nus. Culum viu que os olhos dela eram azuis e os lábios convidativos. E ela estava olhando para ele, como ele estava olhando para ela.
— É uma honra conhecê-la — ouviu a si próprio dizer, em voz irreal. — Talvez possa dar-me a honra da primeira dança.
— Obrigada, Sr. Struan — ouviu-a dizer, com a voz como um soar de sinos, e ela foi embora.
Liza estivera observando, cuidadosamente. Vira a expressão de Culum e a reação de Tess. Ah, Senhor, deixai que aconteça, fazei que aconteça, pensou, enquanto seguia Brock pela pista.
— Eu não reconheci a pequena Tess, e você? — Struan dizia a Robb.
Ele também observara o encontro entre seu filho e a garota dos Brocks, e sua mente estava fervendo, com as vantagens e perigos inerentes a uma união Culum-Tess. Meu Deus do céu!
— Não. Olhe para Brock. Ele está inchado de orgulho.
— Sim.
— E olhe para Mary. Eu jamais teria pensado que ela pudesse ficar tão... tão maravilhosa, também.
— Sim.
Struan observou Mary, por um momento. O vestido negro realçava a palidez luminosa e etérea de sua pele. Depois, ele examinou Manoelita. Em seguida, Tess outra vez. Ela sorria para Culum, que lhe respondia ao sorriso, com o mesmo ar abstrato. Meu Deus, pensou ele, Culum Struan e Tess Brock.
— Maldito Shakespeare — ele disse, involuntariamente.
— O que, Dirk?
— Nada. Eu diria que Mary está disputando mesmo o prêmio, com toda justiça.
— Ela não está na mesma classe, por Deus! — disse Quance, enquanto passava por perto, piscando. — Não com a Manoelita de Vargas.
— Ou Shevaun, eu aposto — disse Struan — quando se dignar a nos honrar com sua presença.
— Ah, a adorável Srta. Tillman. Ouvi dizer que está usando apenas calças e um tecido transparente. Nada mais! Grandes esferas de Júpiter, hein?
— Ah, Aristotle — disse Jeff Cooper, aproximando-se. — Posso falar rapidamente com você? É a respeito de uma encomenda de pintura.
— Que Deus abençoe a minha pobre alma! Realmente, não entendo o que deu em todo mundo — disse Quance, suspeitosamente. — O dia inteiro estou recebendo encomendas de pinturas.
— Percebemos de repente a perfeição do seu trabalho — disse Cooper, depressa.
— E já era tempo, por Deus, esta é a imortal verdade. Meu preço aumentou. Cinqüenta guinéus.
— Vamos discutir isso tomando um champanha, hein? — Cooper piscou subrepticiamente para Struan, por sobre a cabeça de Quance, e arrastou o homenzinho.
Struan deu uma risadinha. Ele espalhara a notícia de que era preciso manter Quance ocupado e longe de tagarelas — até a hora do julgamento. E conseguira prender Maureen Quance a bordo do pequeno pontão, retirando todas as chalupas.
Naquele momento, Longstaff, o arquiduque e o almirante chegaram ao círculo de luz.
Houve um rufar de tambores e todos se levantaram, enquanto as bandas tocavam Deus Salve a Rainha. Em seguida executaram, vacilantes, o hino nacional russo, e afinal, Rule Britannia. Houve uma irrupção de aplausos.
— Foi muita consideração sua, Sr. Struan — disse Zergeyev.
— É um prazer. Alteza. Queremos que se sinta em casa. Struan sabia que todos os olhares estavam fixos em ambos e tinha certeza de que escolhera bem as suas roupas. Em contraste com todos os demais, usava negro, com exceção de uma pequena fita verde que prendia, na nuca, o seu cabelo comprido.
— Talvez queira abrir a primeira dança.
— Seria uma honra. Mas temo não conhecer nenhuma das damas.
Zergeyev usava um brilhante uniforme dos cossacos, com a túnica elegantemente colgada num ombro, uma espada embainhada no cinto cravejado de jóias. Dois criados em libré estavam obsequiosamente a serviço.— Isso será remediado com facilidade — disse Struan, alegremente. — Talvez queira escolher. Eu ficaria satisfeito em fazer a apresentação formal.
— Não seria cortês de minha parte. Talvez queira decidir quem me dará essa honra.
— Para me arrancarem os olhos? Está bem.
Ele se virou e começou a cruzar a pista. Manoelita seria a melhor escolha. Isto honraria muito a sociedade portuguesa, na qual a Casa Nobre e todos os negociantes confiavam, para fornecer funcionários, guarda-livros, almoxarifes — todos aqueles que fazem as companhias funcionarem. Mary Sinclair seria uma escolha quase igualmente boa, pois estava estranhamente misteriosa aquela noite, e era a mulher mais bela do salão. Mas nada seria ganho escolhendo-a, com exceção do apoio de Glessing. Struan notara como Glessing estava próximo, a seu serviço. Desde que se tornara mestre do porto, sua posição de influência aumentara. E ele seria um aliado muito útil.
Struan viu os olhos de Manoelita se arregalarem e Mary Sinclair prender a respiração, quando ele se encaminhou na direção das duas. Mas ele parou diante de Brock.
— Com sua permissão, Tyler, talvez Tess possa abrir a primeira dança, com o arquiduque? — Struan ficou satisfeito com a agitação provocada pelo espanto, que pôde perceber.
Brock fez um sinal afirmativo com a cabeça, corado de orgulho. Liza ficou extasiada. Tess corou e quase desmaiou. E Culum amaldiçoou e detestou seu pai e o abençoou por dar a honra a Tess. E todos os negociantes ficaram imaginando se o Tai-Pan estaria fazendo as pazes com Brock. E, se assim era, por quê?
— Eu não acredito — disse Glessing.
— Sim — concordou Cooper, preocupado, sabendo que a paz entre Brock e Struan não poderia ser benéfica para ele. — Não faz o menor sentido.
— Faz muito sentido — disse Mary. — Ela é a mais jovem e deve ter a honra.
— Há mais alguma coisa nisso, Srta. Sinclair — disse Glessing. — O Tai-Pan jamais faz nada sem pensar. Talvez ele espere que ela caia e quebre uma perna, ou algo assim. Ele odeia Brock.
— Acho que esse pensamento é muito pouco generoso, Capitão Glessing — disse Mary, abruptamente.
— Sim, é, e peço desculpas por dizer alto o que todo mundo está pensando. — Glessing lamentou sua estupidez, deveria ter percebido que uma inocência tão maravilhosa defenderia aquele demônio. — só estou irritado por que você é a mais bonita dama presente e, sem dúvida, deveria ter a honra.— É muito gentil. Mas não deve pensar que o Tai-Pan faz as coisas por maldade. Não é assim.
— Tem razão, e eu estou errado — disse Glessing. — Talvez eu possa ter a primeira dança... e levá-la para jantar. Então saberei que estou perdoado.
Há mais de um ano ela considerava George Glessing como um possível marido. Gostava dele, mas não o amava. Mas, agora estava tudo arruinado, pensou.
— Obrigada — disse ela. Baixou os olhos e agitou o leque. — Se prometer ser mais... mais gentil.
— Feito — disse Glessing, todo feliz. Struan conduzia Tess através da pista.
— Sabe valsar, garota?
Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça e tentou afastar os olhos do filho do Tai-Pan.
— Posso apresentar-lhe a Srta. Tess Brock, Alteza? Arquiduque Alexi Zergeyev.
Tess ficou paralisada, com os joelhos tremendo. Mas, lembrar Culum, e a maneira como a olhara, aumentou sua confiança e restabeleceu sua pose.
— Estou honrada, Alteza — disse, fazendo uma mesura.
O arquiduque curvou-se e, com galanteria, beijou-lhe a mão.
— A honra é minha, Srta. Brock.
— Fez uma viagem agradável? — ela perguntou, abanando-se.
— Sim, obrigado. — Ele olhou para Struan. — As jovens inglesas são todas assim tão lindas?
Mal ele acabara de falar, Shevaun irrompeu à luz, de braços dados com Tillman. Seu vestido era uma névoa de gaze verde, com a saia ampla, em forma de sino. A parte externa do traje tinha o comprimento do joelho, para destacar as fileiras formadas por uma dúzia de anáguas cascateantes, cor de esmeralda. Ela usava longas luvas verdes e havia penas de aves do paraíso em seu cabelo ruivo. Inacreditavelmente, seu corpete não tinha alças para sustentá-lo.
— Desculpe estarmos atrasados, Excelência, Sr. Struan — disse ela, fazendo uma mesura, em meio ao silêncio. — Mas quebrei uma fivela do sapato, exatamente na hora de sair.
Longstaff afastou os olhos curiosos do decote e ficou imaginando, como todo mundo, como diabo o vestido era sustentado, e se iria cair.
— A hora de sua chegada é sempre perfeita, Shevaun. — Ele se virou para Zergeyev. — Quero apresentar-lhe a Srta. Shevaun Tillman, da América. Ah, e o Sr. Tillman. Sua Alteza, Arquiduque Alexi Zergeyev.Ali em pé, esquecida, Tess observou Shevaun fazer nova mesura, e a detestou por tirar-lhe seu momento de glória. Era a primeira vez em que sentia ciúme de outra mulher. E a primeira em que pensava em si mesma como mulher, não como menina.
— Que belo vestido, Srta. Tillman — disse, com doçura. — Foi a senhorita mesma quem fez? Os olhos de Shevaun dardejaram raios, mas ela replicou, com a mesma doçura:
— Ah, não, querida, acho que não tenho o seu talento. — Sua cachorrinha safada.
— Pode me dar a honra da primeira dança, Shevaun? — perguntou Longstaff.
— É um prazer, Excelência. — Ela estava exultante com a inveja e ciúme que tinha provocado. — Tudo parece tão lindo, Tai-Pan. — Ela sorriu para Struan.
— Ah... obrigado — disse Struan. Ele se virou e fez sinal para o regente da banda da Marinha. O bastão baixou e então começaram os primeiros acordes excitantes de uma valsa vienense. Embora as valsas não fossem bem-vistas, eram as danças mais populares.
O arquiduque conduziu Tess para o centro da pista e Shevaun rezou para que Tess tropeçasse e caísse ou, melhor ainda, dançasse como uma vaca. Mas Tess flutuava como uma folha. Longstaff conduziu Shevaun. Enquanto ela girava, com maravilhosa graça, notou que Struan se dirigia para uma beldade portuguesa de olhos escuros, a quem nunca vira antes, e ficou furiosa. Mas, ao girar outra vez, viu que Struan levara Liza Brock para a pista e pensou. Ah, Tai-Pan, você é um homem esperto. Eu o amo por isto. Então seus olhos viram Tess e o arquiduque no centro da pista e ela guiou Longstaff, que dançava muito bem, para lá, sem que ele percebesse estar sendo guiado.
Culum, em pé a um canto, observava. Ele pegou uma taça de champanha e bebeu-a, sem lhe sentir o gosto, e, em seguida, curvou-se diante de Tess, convidando-a para a segunda dança.
Ele não notou que Brock franzia a testa e Liza, apressadamente, distraía-o. Nem a súbita curiosidade de Gorth.
Houve valsas, polcas, contradanças e galopes. Shevaun era cercada, no final de cada dança, e Manoelita também — mas com mais cautela. Culum dançou com Tess pela terceira vez, e quatro vezes por noite era o máximo permitido pelas convenções.
Na última dança antes da ceia, Struan abriu caminho através da multidão que cercava Shevaun.
— Senhores — disse ele com calma determinação — sinto muito, mas esta dança é prerrogativa do anfitrião.Os homens se lamentaram e deixaram que a levasse. Ele não esperou pela música e começou a conduzi-la para a pista. Jeff Cooper observava, com ciúme. A dança era sua.
— Eles combinam — disse ele a Tillman.
— Sim. Por que não faz logo seu pedido? Conhece meus pontos de vista. E os do meu irmão.
— Há tempo.
— Agora que Struan está descasado, não. Os olhos de Cooper se estreitaram.
— Você encorajaria essa união?
— Claro que não. Mas parece bastante evidente para mim que Shevaun está apaixonada pelo homem. — Depois, Tillman acrescentou, com irritação: — Já é tempo para ela se aquietar. Não tenho tido senão problemas, desde que ela chegou, e estou cansado de bancar o cão de guarda. Sei o que pensa, e então peça formalmente sua mão, vamos acabar com isso.
— Não, até eu ter certeza de que ela está pronta para me aceitar... e satisfeita com isto, por sua livre vontade. Ela não é uma escrava, para ser comprada e vendida.
— Concordo. Mas, ainda assim, é uma fêmea, uma menor, e fará o que seu pai e eu considerarmos ser do seu interesse. Devo confessar que não aprovo sua atitude, Jeff. Você está procurando problemas.
Cooper não respondeu. Olhou para Shevaun, com uma dor nos rins.
— Eles formam um casal perfeito — disse Mary, querendo desesperadamente ser Shevaun.
E, naquele momento, de repente, se sentiu impura — por causa de sua vida secreta, do filho e de Glessing. Ele fora tão terno aquela noite, terno e masculino, e muito inglês e muito puro. E ela quase chorou de dor, por causa de seu inútil amor pelo Tai-Pan.
— É verdade — disse Glessing. — Mas se houver justiça nesta terra, ganhará o prêmio, Srta. Sinclair.
Ela conseguiu sorrir e, outra vez, tentou descobrir quem seria o pai da criança — não que isto tivesse importância, porque o pai era chinês. Ter um bastardo chinês! Morrerei antes disto, disse a si própria. Daqui a dois ou três meses, vai começar a aparecer. Mas eu não estarei viva, para ver o horror e a reprovação nos rostos de todos. Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Ora, Mary, o que é isso — disse Glessing, tocando-lhe no braço, com afeto. — Não deve chorar porque lhe fiz um elogio. Você é realmente a pessoa mais bonita aqui... e a mais bonita que eu já vi. É verdade.Ela enxugou as lágrimas, atrás do leque. E, através da névoa de terror, lembrou-se de May-may. Quem sabe May-may poderia ajudar? Talvez os chineses tenham remédios para abortar uma criança. Mas isto é assassinato. Assassinato. Não, é meu corpo, Deus não existe e se tiver o filho estarei perdida.
— Desculpe, George, querido — disse ela, mais em paz consigo mesma, agora que tomara a decisão. — Eu me senti mal, por um momento.
— Tem certeza de que está bem, agora?
— Ah, sim.
Glessing estava cheio de um amor protetor. Pobre menininha frágil, ele pensou. Precisa de alguém para tomar conta dela, e esse alguém sou eu. Só eu.
***
Struan parou no centro da pista.
— Eu estava imaginando quando teria a honra, Tai-Pan — Shevaun irradiava travessura.
— Esta dança é em sua honra, Shevaun — disse ele, com doçura.
Os primeiros acordes da música mais eletrizante da terra começaram a ser executados. Era a Kankana. Uma dança selvagem, buliçosa, barulhenta, de passos rápidos, que entrara rapidamente em voga em Paris e, na década de trinta, tomara de assalto as capitais da Europa, mas era proibida, como escandalosa, nos círculos mais seletos.
— Tai-Pan — ela disse, assombrada.
— Subornei o regente da banda — sussurrou Struan.
Ela hesitou mas, sentindo todos os olhares escandalizados fixados em si, descontraidamente pegou nos braços de Struan, com o ritmo da música a tomar conta de seu corpo.
— Bom, espero que nada vá cair — disse Struan.
— Se cair, você me protegerá, espero.
E os dois começaram a dar os passos movimentados. Shevaun se soltou dos braços de Struan, ergueu as saias e deu chutes para o alto, mostrando as calças. Houve um grito de alegria e todos os homens correram em busca de pares. Agora, todos dançavam e davam chutes, possuídos pelo ritmo contagiante e desenfreado.
A música os dominava. A todos.
Quando terminou, houve uma irrupção de aplausos e gritos contínuos de bis, e a banda voltou a tocar o mesmo número. Mary esqueceu o filho e Glessing decidiu que aquela noite ele pediria — exigiria, por Deus — que Horatio abençoasse o casamento. Os pares continuaram a girar, chutar, cheios de uma arquejante animação, até a música acabar. Os jovens se apinharam em torno de Struan e Shevaun, agradecendo a ele e parabenizando-a. Ela segurou o braço dele, possessivamente, e se abanou, muito satisfeita consigo mesma. Ele enxugou o suor da testa e ficou muito feliz porque os dois jogos dele haviam dado certo — Tess e a Kankana.
Todos voltaram para seus assentos e os criados começaram a carregar bandejas de comida para as mesas. Salmão defumado presunto defumado, peixe, ostras, mexilhões e salsichas. Frutas frescas que Chen Sheng transportara de uma lorcha recém-chegada de uma perigosa viagem de Manilha. Quartos de boi que acabara de ser abatido, comprados da Marinha, e assados em fogueiras ao ar livre. Porquinhos de leite. Pés de porco ao picles, em geléia doce.
— Juro — disse Zergeyev — jamais vi tanta comida e nem me divertia assim há anos, Sr. Struan.
— Ah, Alteza — disse Shevaun, erguendo uma sobrancelha — isto é positivamente comum para a Casa Nobre.
Struan riu, com os demais, e se sentou à cabeceira de uma mesa. Zergeyev estava à sua direita e Longstaff à esquerda, Shevaun ao lado do arquiduque e Mary Sinclair ao lado de Longstaff, Glessing atenciosamente perto. Na mesma mesa, encontravam-se Horatio, Aristotle, Manoelita e o almirante. Em seguida, Brock e Liza, e Jeff Cooper. Robb e Culum eram os anfitriões em mesas próprias.
Struan deu uma olhada em Aristotle e ficou imaginando como ele conseguira convencer Vargas a permitir que Manoelita fosse sua acompanhante, no jantar. Meu Deus, pensou, será que Manoelita é quem está posando para o quadro?
— A Kankana — dizia Longstaff — puxa vida. Um jogo diabólico e perigoso, TaiPan.
— Para muitas pessoas modernas, não, Excelência. Todos pareceram gostar muito.
— Mas, se a Srta. Tillman não tomasse a iniciativa — disse Zergeyev — duvido que qualquer um de nós tivesse a coragem.
— Que outra coisa poderia uma pessoa fazer, Alteza? — disse Shevaun. — A honra estava em jogo. — Ela se virou para Struan.
— Foi uma travessura muito grande, Tai-Pan.
— Sim — disse ele. — Com licença um momento, tenho de ver se meus convidados estão sendo bem atendidos.
Caminhou por entre as mesas, cumprimentando a todos. Quando chegou à mesa de Culum, houve um ligeiro silêncio e Culum ergueu os olhos... — Olá — disse ele.
— Está tudo bem, Culum?
— Sim, obrigado — Culum foi perfeitamente cortês, mas não havia calor. Gorth, sentado diante de Tess na mesa de Culum, riu por dentro. Struan se afastou.
***
Quando o jantar terminou, as damas se retiraram para a grande tenda que fora instalada para elas. Os homens reuniram-se às mesas e fumaram, beberam Porto, encantados por ficarem sós um momento. Relaxaram, falaram a respeito do aumento do preço das especiarias, e Robb e Struan fizeram acordos lucrativos com relação a elas e ao espaço para carga. Todos decidiram que Shevaun era a vencedora, mas Aristotle não parecia convencido.
— Se não der o prêmio a ela — disse Robb — ela o matará.
— Ah, Robb, querido inocente! — disse Aristotle. — Você está petrificado diante dos peitos dela... claro, são impecáveis... mas o concurso é para a mais bem-vestida, e não para a menos vestida!
— Mas o vestido dela é maravilhoso. De longe, o melhor.
— Pobre homem, você não tem olhos de pintor... e nem a responsabilidade de uma escolha imortal.
As apostas eram maiores em Shevaun. Mary era uma das favoritas. E Manoelita tinha seus adeptos.
— Você é a favor de quem, Culum? — perguntou Horatio.
— Da Srta. Sinclair, é claro — disse Culum, com galanteria, embora, segundo seu modo de ver, só uma dama merecesse a honra.
— Você é muito generoso — disse Horatio. Ele se virou, quando Mauss o chamou.
— Com licença, um momento.
Culum ficou sentado numa das mesas, contente de estar a sós com seus pensamentos. Tess Brock. Que belo nome! Como ela era bonita! Que bela dama. Ele viu Gorth, aproximando-se.
— Posso falar-lhe em particular, Struan? — disse Gorth.
— Claro. Por que não se senta? — Culum tentou esconder seu constrangimento.
— Obrigado. — Gorth sentou-se. Ele pôs suas mãos enormes sobre a mesa. — É melhor eu falar de maneira direta. Só sei fazer assim. É a respeito do meu pai e do seu. Eles são inimigos, isto é um fato. Não há nada que possamos fazer quanto a isso, eu e você. Mas, só porque são inimigos, não é necessário que nós também tenhamos de ser. Pelo menos, penso assim. A China é grande o suficiente para você e para mim. Pelo menos, é o que Penso. Estou cansado de ver os dois agindo de maneira estúpida. Como no caso do outeiro... por que cada qual tinha de arriscar o futuro da casa, por uma questão de prestigio? Se não tivermos cuidado, vamos ser arrastados para essa inimizade, você e eu, sem ter nenhum motivo para ódio. O que você diz? Vamos julgar por nós mesmos. O que meu pai acha, ou o que seu pai acha... bom isso é com eles. Vamos começar de maneira honesta, você e eu. Aberta. Talvez a gente possa ser amigo, quem sabe? Mas acho que não é uma coisa cristã nós nos odiarmos, só por causa de nossos pais. O que você diz?
— Concordo — disse Culum, perplexo com o oferecimento de amizade.
— Não estou dizendo que meu pai está errado, e o seu certo. Só digo que temos de tentar, como homens, viver a nossa própria vida, da melhor maneira que pudermos. — O rosto rude de Gorth se abriu num sorriso. — Você parece bastante chocado, rapaz.
— Desculpe. É só que... bom, sim, eu gostaria que fôssemos amigos. Nunca esperei que... bom, que você tivesse uma mente aberta.
— Está vendo? É exatamente isso que quero dizer, por Deus. Nós nunca dissemos um ao outro mais do que quatro palavrinhas em toda nossa vida e você já está pensando que eu o detesto. Ridículo.
— Sim.
— Não é fácil, o que nós vamos tentar. Não esqueça, nós viemos de vidas diferentes. Minha escola foi um navio. Eu já estava junto ao mastro com dez anos. Então, você tem de desculpar minhas maneiras e meu jeito de falar. Mesmo assim, sei mais a respeito do comércio na China do que a maioria das pessoas, e sou o melhor marinheiro nessas águas. Com exceção de meu pai... e daquele filho da mãe, Orlov.
— Orlov é tão bom assim?
— Sim. Aquele maldito foi gerado por um tubarão e parido por uma sereia. — Gorth pegou um pouco de sal derramado e, supersticiosamente, atirou-o por sobre o ombro. — Aquele patife me causa arrepios.
— A mim também — concordou Culum.
Gorth ficou silencioso por um momento e depois disse:
— Nossos pais não vão gostar nem um pouco de nós sermos amigos.
— Sim. Eu sei.
— Vou ser sincero com você, Struan. Foi Tess quem disse que esta noite era uma boa oportunidade para falar em particular com você. A idéia não foi inicialmente minha. De falar abertamente nesta noite. Mas fiquei satisfeito por isto ter sido dito. O que você acha? Vamos tentar, hein? Aqui está minha mão.
Culum apertou alegremente a mão oferecida.
***
Glessing estava bebendo conhaque, cheio de irritação, na pista, esperando com impaciência. Ele estivera à beira de interromper Horatio e Culum, quando Mauss o chamou. Por que você está assim tão diabolicamente nervoso? — perguntou a si mesmo. Não estou. Só ansioso para dizer logo isso. Por Júpiter, Mary está maravilhosa.
— Com licença, Capitão Glessing — disse o Major Turnbull, com firmeza, aproximando-se dele. Era um homem de olhos cinzentos, meticulosamente limpo, que levava seu cargo de primeiro magistrado de Hong Kong muito a sério. — Boa festa, não?
— Sim.
— Acho que agora é a oportunidade. Sua Excelência está livre. É melhor falarmos com ele, aproveitando a oportunidade.
— Está bem. — Glessing, automaticamente, ajeitou sua espada à cinta e seguiu Turnbull por entre as mesas, até interceptarem Longstaff.
— Pode nos dar um momento de atenção, Excelência? — disse Turnbull.
— Certamente.
— Desculpe trazer questões oficiais para um encontro social, mas é algo importante. Uma de nossas fragatas em patrulha capturou um bando de velhacos piratas.
— Excelente. Um caso evidente?
— Sim, Excelência. A Marinha apanhou os patifes ao sul, ao largo de Aberdeen. Estavam atacando um junco. Assassinaram a tripulação.
— Porcos malditos — disse Longstaff. — Já os julgou?
— Este é o problema — disse Turnbull. — O Capitão Glessing acha que deveria ser um Supremo Tribunal da Marinha... e eu acho que é um julgamento civil. Mas minha autoridade não abrange senão crimes menores e, certamente, não crimes capitais, de nenhum tipo. Este caso deverá ter juiz e júri próprios, e requer um inquérito judicial.
— É verdade. Mas não podemos ter um juiz, até sermos oficialmente uma colônia. E isto ainda vai demorar meses. Não podemos deixar ninguém acusado de qualquer crime na cadeia, sem um julgamento rápido e justo... isto é ilegal. — Longstaff pensou Por um momento. — Eu diria que é uma questão civil. Se o júri condenar, enviem-me os papéis e eu confirmarei a sentença. É melhor erigir o patíbulo em frente à cadeia.
— Não posso fazer isso, Excelência. Não seria legal. A lei é muito clara... só um juiz adequado poderia julgar um caso assim.
— Bom, não podemos manter homens acusados de crimes trancafiados indefinidamente, sem lhes dar um julgamento aberto e justo. O que sugere?
— Não sei, senhor.
— Que coisa aborrecida! — disse Longstaff. — Você está certo, naturalmente.
— Talvez seja o caso de entregá-los às autoridades chinesas, para que cuidem deles
— disse Glessing, ansioso para ter a questão resolvida, a fim de poder conversar com Horatio.
— Desaprovo isso — disse Turnbull, bruscamente. — O crime foi cometido em águas britânicas.
— Concordo plenamente — disse Longstaff. — Por enquanto, mantenha presos todos os acusados, enquanto envio um despacho urgente para o Ministério de Relações Exteriores, pedindo orientação.
— Sim, Excelência. — Turnbull fez uma pausa. — E eu gostaria então, de receber fundos, para aumentar a prisão. Tenho dúzias de casos de roubo com violência e um deles de arrombamento e invasão com arma mortífera.
— Está bem — disse Longstaff, preguiçosamente. — Vamos discutir isso amanhã.
— Também gostaria de ter um encontro com V. Exa. amanhã — disse Glessing. — Preciso de algum dinheiro para contratar pilotos, e necessitamos estabelecer as tarifas para o porto e acostagem. Quero também autoridade para requisitar alguns rápidos caçapiratas. Há fortes rumores de que aquele demônio, Wu Fang Choi, está com uma frota no norte. Também preciso de autoridade para estender jurisdição sobre todas as águas de Hong Kong. Há necessidade urgente de padronizar as licenças do porto e questões similares.
— Muito bem, Capitão — disse Longstaff. — Ao meio-dia.
— E, em seguida, para Turnbull: — Às nove horas?
— Obrigado, Excelência.
Para lástima de Glessing, Longstaff se virou e caminhou em direção a Horatio. Meu Deus, pensou ele, nunca o encontrarei sozinho, esta noite.
***
Struan estava observando os navios ancorados e examinando o céu. Bom tempo, disse a si mesmo.
— É um belo porto, Sr. Struan — disse Zergeyev, em tom amistoso caminhando casualmente em sua direção.
— Sim. É bom termos nossas próprias águas, afinal. — Struan estava em guarda, mas suas maneiras eram descontraídas. — Hong Kong será, um dia, uma jóia perfeita na coroa da rainha.
— Vamos caminhar um pouco?
Struan começou a andar no mesmo ritmo do arquiduque, enquanto este seguia em direção ao mar.
— Pelo que soube, só obtiveram a ilha há pouco mais de dois meses. — O arquiduque fez um aceno de mão em direção ao início dos prédios em todo Vale Feliz. — Entretanto, têm quase uma cidade. Sua energia e indústria são espantosas.
— Bom, Alteza, se há algo a ser feito, não adianta esperar, não é?
— Não. Mas acho curioso, sendo a China tão fraca, que tenham tomado apenas um rochedo árido. Deve haver muitos outros prêmios importantes.
— Não estamos atrás de prêmios, na China. Apenas uma pequena base para querenar e reparar nossos navios. E eu diria que uma nação de trezentos milhões de habitantes nada tem de fraca.
— Então, com a guerra sem acabar, suponho que estão esperando reforços substanciais. Exércitos, não apenas alguns poucos milhares de homens. Frotas... e não trinta e tantos navios.
— Sua Excelência deve saber mais a respeito disso do que eu. Mas eu diria que qualquer potência que enfrenta a China terá diante de si uma longa luta. Sem os planos necessários e os homens necessários. — Struan fez um sinal em direção ao continente, do outro lado do porto. — A terra não tem limites.
— A Rússia não tem limites — disse Zergeyev. — Mas só em termos simbólicos. Na realidade, até mesmo a Rússia tem fronteiras. Com o Ártico, com o Himalaia. Com o Báltico e o Pacífico.
— Vocês tomaram terras ao norte? — Struan tentou disfarçar o pasmo em sua voz. Onde, pelo amor de Deus? Ao norte da Manchúria? A Manchúria? Ou a China, minha China?
— A Mãe Rússia se estende de um mar a outro. Governada por Deus, Tai-Pan — disse Zergeyev, com simplicidade. — Devia ver a terra da Mãe Rússia, para entender o que eu quero dizer. É negra e rica, cheia de vida. Entretanto, devastamos cento e cinqüenta milhas de nosso território, para conter Bonaparte e a Grande Armêe. O senhor pertence ao mar. Mas eu pertenço à terra. Eu lhe concedo o mar, Tai-Pan. — Os olhos de Zergeyev pareceram empanar-se. — Foi uma grande luta, a desta tarde. E um desafio interessante. Muito interessante.As rugas do rosto de Struan se aprofundaram, com seu sorriso.
— Pena que fosse empate. Agora jamais saberemos... não é, Alteza?... quem era o melhor homem.
— Gosto do senhor, Sr. Struan. Gostaria de ser seu amigo. Poderíamos prestar grandes serviços um ao outro.
— Será uma honra para mim ajudá-lo, de qualquer maneira.
Zergeyev riu, com os dentes reluzindo, muito brancos.
— Há tempo bastante. Uma vantagem que a Ásia tem sobre a Europa é sua avaliação de tempo. Minha família vem de Karaganda. Fica deste lado dos Urais, de modo que, talvez, em parte, eu seja asiático. Somos Kazaki. Algumas pessoas nos chamam “cossacos”.
— Não entendo. Os Urais?
— Uma cadeia de montanhas que corre do Ártico até o Mar Cáspio. Divide a Rússia em duas partes... leste e oeste.
— Sei muito pouco a respeito da Rússia.. . ou da Europa, diga-se de passagem — falou Struan.
— Deveria ir à Rússia. Dê-me seis meses de seu tempo e me deixe ser seu anfitrião. Há muita coisa para ver... cidades e mares de grama. Poderia ser uma experiência muito proveitosa. Grandes mercados para o chá e sedas e todo o tipo de mercadoria. — Seus olhos cintilaram. — E as mulheres são lindas.
— Estou um pouco ocupado esta semana, mas quem sabe na próxima?
— Ora, não vamos brincar, mas falar um pouco a sério. Por favor, examine o assunto. No próximo ano, no subseqüente. Acho que é muito importante. Para o senhor, para seu país e para o futuro. A Rússia e a Inglaterra jamais guerrearam uma com a outra. Durante séculos, fomos aliados, e temos diferenças com a França, nosso inimiga hereditária. A Rússia possui grandes recursos terrestres e milhões de pessoas, pessoas fortes. Vocês têm pouca terra, então precisam de seu Império, e nós somos a favor. Vocês governam os mares, e somos a favor. Vocês têm seu espantoso poderio industrial e a riqueza que ele traz. Estamos muito satisfeitos. Vocês têm mercadorias comerciais e os meios de entregá-las, e nós temos mercados. Mas também temos mercadorias que vocês podem usar; matéria-prima de que precisam para alimentar suas incríveis máquinas, e dar comida ao seu surpreendente povo. Juntos, somos imbatíveis. Juntos, podemos dominar a França. E o Sacro Império Romano, a Prússia e a infiel Turquia. Juntos, podemos manter a paz. E crescer e prosperar, para o benefício de todos.
— Sim — disse Struan, com a mesma seriedade. — Sou a favor disso. Mas você está falando em nível nacional. De um ponto de vista histórico. Isto não é prático. E eu não creio que possa culpar os franceses pela ambição de seus reis. Ou justificar a transformação dos turcos em cristãos com o uso da espada. Eu já dei minha opinião, durante o almoço. Em nível internacional, sem alguma forma de controle sobre os reis e rainhas, sempre teremos guerras. Sua Excelência disse muito bem. Os reis, e qualquer tipo de líderes, derramam o sangue dos outros. Para ser prático, há pouca coisa que eu possa fazer. Não opero em nível nacional e não tenho nenhum poder real no Parlamento, como sabe muito bem...
— Mas, a respeito da Ásia, sua opinião é cuidadosamente ouvida. E eu tenho grande poder em São Petersburgo. Struan deu uma longa tragada em seu charuto e, depois, soprou a fumaça.
— O que quer na Ásia?
— O que quer na China?
— Comerciar — disse Struan, imediatamente, mas muito em guarda, e com cuidado para não revelar seu verdadeiro objetivo. Existe uma diferença diabólica, disse ele a si próprio, entre a Ásia e a China.
— Eu poderia, talvez, garantir que a Casa Nobre tivesse uma autorização exclusiva de importar chá para o mercado de todas as Rússias. E, na viagem de volta, ficaria com todas as exportações de pele e trigo de todas as Rússias.
— Em troca de quê? — perguntou Struan, esmagado pela enormidade da oferta. Um monopólio assim significaria milhões. E uma posição de tal poder o situaria em boa colocação nos círculos políticos ingleses, dando-lhe enorme prestígio.
— Amizade — disse Zergeyev.
— Esta palavra tem uma variedade de significados, Alteza.
— Tem apenas um significado, Sr. Struan. Claro que há muitas maneiras através das quais um amigo pode ajudar o outro.
— Que ajuda específica iria especificamente, desejar, em troca de um acordo comercial específico, com a minha companhia? Zergeyev riu.
— São especificidades demais para uma noite só. Sr. Struan. Mas vale a pena pensar a respeito, e vale a pena considerar. E discutir numa oportunidade específica, hein? — Ele olhou o porto, e os navios que seguiam para o continente. — O senhor deveria ir à Rússia — repetiu.
***
— Quando quer isto traduzido. Excelência? — Horatio ergueu os olhos do papel que Longstaff lhe entregara.— A qualquer momento, querido amigo. Dentro dos próximos dias, que tal? Mas coloque os caracteres chineses sobre as palavras inglesas, hein?
— Sim, senhor. Deve ser enviado a alguém?
— Não. Simplesmente, devolva-o a mim. Claro, é um assunto particular.
Longstaff se afastou, satisfeito com a maneira como o projeto ia progredindo. A carta dizia: “Sua Excelência o Capitão Superintendente do Comércio Inglês quer comprar sementes de amora, num peso de cinqüenta libras, ou mil mudas, para serem entregues o mais rápido possível. “Tudo que ele teria de fazer, quando Horatio devolvesse o texto traduzido, era substituir “amoras” por “chá”. Ele podia fazer isto sozinho; os caracteres chineses que significavam chá estavam escritos em todas as caixas exportadas. Então, esperaria até decidir quem mereceria confiança suficiente para receber o papel.
Sozinho, Horatio leu outra vez a carta. Ora, por que Longstaff iria querer amoras? Havia dezenas de milhares de amoreiras, com seus bichos-da-seda, no sul da França, e seria simples conseguir sementes de lá. Mas não tão simples consegui-las na China. Será que Longstaff está planejando plantar um pomar com essas árvores, aqui? Mas, por que cinqüenta libras? É uma quantidade fantástica de sementes, e ele não é nenhum jardineiro. E por que dizer, bruscamente: “Claro que é um assunto particular”?
— Horatio?
— Ah, olá, George. Como vai?
— Bem, obrigado.
Horatio notou que Glessing estava suando, e pouco à vontade.
— O que há?
— Nada. É apenas que... bom... chega uma hora na vida de todo homem... quando ele deve... bom... a gente encontra alguém a quem... eu não estou explicando direito. É Mary. Quero me casar com ela, e desejo a sua bênção.
Horatio acalmou-se com esforço e disse o que decidira, antecipadamente, falar. Estava muito consciente da atenção de Glessing a Mary, aquela noite, e lembrava do olhar que tivera, naquele primeiro dia. Ele odiou Glessing por ousar complicar a sua vida e a de Mary, e ousar ter a impertinência de pensar que Mary consideraria, por um só instante, a sua proposta.
— Estou muito lisonjeado, Glessing. E Mary ficará também. Mas ela, bom, não creio que ela esteja ainda preparada para o casamento.
— Mas claro que está. E eu tenho belas perspectivas, meu avô vai deixar para mim a herdade. Ficarei em boas condições financeiras, e minhas expectativas quanto ao serviço são excelentes e...
— Calma, George. Precisamos considerar as coisas com muito cuidado. Você já discutiu o assunto com Mary?
— Meu Deus, não. Queria primeiro saber sua impressão. Claro.
— Bom, por que você não deixa o assunto comigo? Eu não tinha idéia de que suas intenções eram sérias. Acho que você vai precisar ter paciência comigo... sempre pensei em Mary como sendo mais jovem do que realmente é. Claro que ela não tem ainda a idade mínima para o consentimento — acrescentou, em tom despreocupado.
— Então você aprova, de maneira geral?
— Ah, sim... mas jamais me ocorreu que... bom, no devido tempo, quando ela tiver idade, tenho certeza de que receberá bem o seu pedido e ficará honrada com ele.
— Você acha que eu deveria esperar até ela ter vinte e um aos?
— Bom, só tenho em meu coração os interesses dela. É minha única irmã e, bom, somos muito unidos. Desde que papai morreu, eu a criei.
— Sim — disse Glessing, sentindo-se lisonjeado. — Foi um ótimo trabalho que você fez. E é muito decente de sua parte me considerar, ela é tão... bom, eu acho que ela é maravilhosa.
— Ainda assim, é melhor ser paciente. O casamento é um ato tão definitivo. Particularmente para alguém como Mary.
— Sim. Tem toda razão. Bom, vamos brindar ao futuro, hein? Não tenho pressa de... bom, mas gostaria de uma resposta formal. É preciso fazer planos, não?
— Claro. Vamos brindar ao futuro.
***
— Diabo — disse Brock, quando Gorth se aproximou dele. — Struan vai ficar com todos os centímetros de espaço de carga fora dos nossos navios. Como eles conseguiram isso? Esta manhã? Não é razoável!
— É quase como se ele tivesse sabido as notícias com antecipação... mas isto é impossível.
— Bom, não importa, por Deus — disse Brock, enfatuado por saber que tinha um navio viajando velozmente para Manilha, mas ignorando que o navio de Struan estava com horas de vantagem.
— Que dança, hein?
— Culum está muito encantado com a nossa Tess, papai.
— Sim... também notei isso. Está na hora de ela ir para casa.
— Não antes do julgamento. — Os olhos de Gorth arderam dentro dos de seu pai.
— Uma união entre eles seria muito boa para nós.
— Nunca, por Deus — disse Brock, severamente, com o rosto avermelhando-se.
— Eu digo sim, por Deus! Ouvi um boato... um de nossos funcionários portugueses escutou a notícia entre os Struans, o Tai-Pan vai voltar para a Inglaterra dentro de seis meses.
— O quê?
— Vai embora para sempre.
— Eu não acredito.
— Com aquele demônio fora, quem será o Tai-Pan, hein? Robb? — Gorth cuspiu, acintosamente. — Podemos engolir Robb. Antes do leilão de terras, eu diria que poderíamos mastigar Culum como porco salgado. Agora, não tenho certeza. Mas se Tess fosse a mulher dele... então seria Brock-Struan e Companhia. Depois de Robb. Culum será o Tai-Pan.
— Dirk nunca irá embora. Nunca. Você está louco. Só porque Culum dançou com ela, isto não quer dizer...
— Meta isto em sua cabeça, papai — interrompeu Gorth. — Um dia, Struan irá embora. Todo mundo sabe que ele quer ir para o Parlamento. Como você vai querer se aposentar. Um dia.
— Haverá tempo suficiente para isso, por Deus!
— Sim, mas um dia você vai se aposentar, não? Então, eu serei o Tai-Pan. — A voz de Gorth não era rude, mas calma e determinada. — Serei o Tai-Pan da Casa Nobre, por Deus, e não da segunda casa. O casamento de Culum e Tess ajeitará tudo de uma maneira inteligente.
— Dirk jamais irá embora — disse Brock, odiando Gorth por deixar implícito que ele falhara, onde Gorth seria bem-sucedido.
— Estou pensando em nós, papai! E em nossa casa. E em como você e eu andamos trabalhando noite e dia para derrotá-lo. E a respeito do futuro. Culum e Tess, seria perfeito — acrescentou Gorth, inflexivelmente.
Brock eriçou-se, com o desafio. Ele sabia que, no devido tempo, teria de passar as rédeas. Mas não tão rapidamente, por Deus! Porque, sem a casa, e sem ser o Tai-Pan da Brock, ele feneceria e morreria.
— O que faz você pensar que seria Brock-Struan? Por que não Struan-Brock, e ele sendo Tai-Pan, e você de fora?
— Não se preocupe, papai. Com você e aquele demônio Struan, é como a luta de hoje. Vocês são páreo, um para o outro. Ambos igualmente fortes e espertos. Mas eu e Culum? É diferente.
— Vou pensar a respeito do que você disse. E então decidirei.
— Claro, papai. Você é o Tai-Pan. Com pagode, será o Tai-pan da Casa Nobre antes de mim. — Gorth sorriu e caminhou em direção a Culum e Horatio.
Brock afrouxou o penso sobre o olho e observou o filho, tão alto, dinâmico e forte. Olhou para Culum e, depois, deu uma olhada em torno, procurando Struan. Viu o Tai-Pan em pé, sozinho, lá na praia, observando o porto. O amor de Brock por Tess e seu desejo de que ela fosse feliz estava contraposto à verdade do que Gorth dissera. E ele sabia, com igual verdade, que Gorth devoraria Culum, se surgisse um conflito entre eles — Gorth forçaria a disputa, no devido tempo. E isto era certo? Deixar Gorth devorar o marido que talvez Tess amasse?
Ficou imaginando o que realmente faria, se o amor florescesse — o que Struan faria. Isto resolveria nossa situação, disse a si mesmo. E não seria uma coisa errada, não é mesmo? Sim. Mas você sabe que o velho Dirk jamais sairá de Cathay — e nem você — e haverá um acerto de contas entre vocês dois.
Endureceu o coração, odiando Gorth por fazê-lo sentir-se velho. Sabendo que, mesmo assim, deveria acertar contas com o Tai-Pan. Porque Gorth contra Culum, com Struan vivo, não era páreo. Sabendo que, mesmo assim, deveria acertar contas com o Tai-Pan.
***
Struan dançou primeiro com Mary e ela gostou muito; sua força a acalmava e lhe dava coragem.
Em seguida, escolheu Shevaun. Ela se comprimia contra ele, para excitá-lo, mas não ao ponto de ser indelicada. Seu calor e perfume cercavam-no. Ele notou distraidamente que Mary era conduzida para fora da pista por Horatio e, quando se virou outra vez, viu que eles caminhavam em direção à praia. Então, ouviu as sinetas do navio. Onze e meia.
Hora de ver May-may. Quando a dança terminou, ele acompanhou Shevaun de volta à mesa.
— Você me desculpa por um momento, Shevaun?
— Claro, Dirk. Mas volte logo.
— Voltarei — ele disse.
***
— É uma bela noite — disse Mary, desajeitadamente.
— Sim. — Horatio segurava-lhe levemente o braço. — Queria dizer-lhe algo divertido. George me puxou de lado e pediu, formalmente, sua mão em casamento.
— Você está espantado por alguém querer casar comigo? — ela perguntou, friamente.
— Claro que não, Mary. Quero dizer que é absurdo ele pensar que você iria considerar um idiota como ele, é isso. Ela examinou seu leque e, depois, olhou para a noite, perturbada.
— Eu disse que achava que ele...
— Eu sei o que você disse, Horatio. — Ela o interrompeu, bruscamente. — Você foi gentil e se livrou dele falando em “tempo” e “minha querida irmã”. Acho que vou casar com George.
— Você não pode fazer isso! Você não pode gostar daquele chato o suficiente para pensar nele nem um só momento.
— Acho que vou casar com George. No Natal. Se houver um Natal.
— O que você quer dizer com isso... se houver um Natal?
— Nada, Horatio. Gosto dele o suficiente para casar com ele e eu... bom, acho que é tempo de partir. . — Não acredito nisso.
— Eu também não acredito. — Sua voz tremeu. — Mas, se George quer casar comigo... decidi que George é uma boa escolha para mim.
— Mas, Mary, eu preciso de você comigo. Eu a amo e você sabe...
Os olhos dela tiveram um relâmpago repentino e toda a amargura e a agonia contida há anos sufocaram-na.
— Não fale de amor comigo!
O rosto dele se tornou mortalmente pálido e seus lábios tremeram.
— Eu já pedi a Deus um milhão de vezes para nos perdoar.
— É um pouco tarde para pedir a Deus para “nos” perdoar, não?
Tudo começara depois de uma surra de chicote, quando ele era um menino e ela muito criança. Os dois subiram juntos na cama, agarrando-se um ao outro, para apagar o horror e a dor. Ela ficou confortada pelo calor de seus corpos e sentiu uma nova dor, que a fez esquecer o espancamento. Houve outras ocasiões, ocasiões felizes — ela criança demais para entender, mas Horatio, não. Depois, ele partira, para estudar na Inglaterra. Quando voltou, jamais se referiram ao que acontecera. Pois ambos já sabiam o significado daquilo.
— Juro por Deus que implorei perdão.
— Estou tão satisfeita, querido irmão. Mas não existe Deus — ela disse, com voz impessoal e cruel. — Eu lhe perdôo. Mas isto não me transforma numa virgem, não é?
— Mary, eu lhe suplico, por favor, pelo amor de Deus, por favor...
— Eu lhe perdôo tudo, querido irmão. Só não perdôo sua lamentável hipocrisia. Nós não pecamos... você pecou. Reze por sua própria alma... não pela minha.
— Rezo mais pela sua do que pela minha. Nós pecamos, que Deus nos ajude. Mas o Senhor perdoará. Ele perdoará, Mary.
— Este ano, com pagode, eu me casarei com George e esquecerei você, e esquecerei a Ásia.
— Você não tem a idade mínima para o consentimento. Você não pode ir. Sou seu tutor, de acordo com a lei. Não posso deixar você ir. Em tempo, você verá como isto é aconselhável. É o melhor para você. Proíbo você de partir. Aquele patife, não é suficientemente bom para você, está ouvindo? Você não irá!
— Quando eu decidir casar-me com Glessing — ela sibilou, com a voz a dilacerá-lo
— é melhor você dar sua maldita “aprovação” depressa porque, se não der, vou contar a todo mundo... não, contarei ao Tai-Pan primeiro, e ele irá atrás de você com um chicote. Nada tenho a perder... nada. E todas as suas malditas preces para um Deus não existente e para o doce Cristo de papai não vão ajudá-lo em nada. Porque Deus não existe, nunca existiu, nunca existirá, e Cristo era apenas um homem... um santo mas, ainda assim, um homem!
— Você não é Mary; você é — a voz dele fraquejou — você é o mal. Claro que Deus existe. Claro que temos almas. Você é uma herege. Você é um demônio! Foi você, e não eu! Ó Senhor Deus, perdoai-nos...
Mary esbofeteou-o.
— Pare, querido, irmão. Estou cansada de suas inúteis orações. Está ouvindo? Você fez minha carne ferver, durante anos. Porque eu sabia, pela luxúria em seus olhos, que você ainda desejava ir para a cama comigo. Ainda assim, entendia o que era incesto, e entendia antes mesmo de ter começado. — Ela riu, uma risada terrível. — Você é pior do que papai. Ele estava louco, com sua crença, mas você... você só finge acreditar. Espero que seu Deus exista. Porque ele vai fazer você arder no fogo do inferno para sempre. E que bons ventos o levem.
Ela se afastou. O irmão ficou a procurá-la com o olhar e depois correu, cegamente, pela noite adentro.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
— Olá, senhor! — disse Lim Din, abrindo a porta com uma mesura.
— Olá, Lim Din — disse Struan, observando o barômetro. Bom tempo, 29.8. Excelente.
Começou a caminhar pelo corredor, mas Lim Din ficou no caminho e fez sinal, com ar importante, em direção à sala de estar.
— Senhola disse pia ir ali. Pode?
— Pode — Struan grunhiu.
Lim Din deu-lhe o conhaque, que já estava servido, e convidou-o, com outra mesura, a se sentar na cadeira de couro de encosto alto, afastando-se às pressas, em seguida. Struan colocou os pés sobre o escabelo estofado. A cadeira cheirava ligeiramente a mofo, a coisa velha e confortável, um odor que se misturava, agradavelmente, ao perfume de Shevaun, ainda parecendo rodeá-lo.
O relógio sobre o consolo da lareira marcava vinte minutos para as doze.Struan começou a trautear uma canção naval. Ouviu uma porta se abrir e um roçagar de seda que se aproximava. Esperando que May-may aparecesse à porta, ele outra vez a comparou com Shevaun. Estivera comparando as duas a noite inteira, tentando avaliá-las de maneira desapaixonada. Shevaun era um belo brinquedo, dinâmica, certamente, e cheia de vitalidade. Uma mulher que ele gostaria de domesticar, sim. E, como esposa, Shevaun seria uma soberba anfitriã — segura de si, inteligente e com a capacidade de abrir muitas portas. May-may constituía um jogo arriscado na Inglaterra — como esposa. Como amante, não. Sim, ele disse a si próprio. Ainda assim, vou casar com ela. Com o poder da Casa Nobre atrás de mim e uma autorização russa exclusiva em meu bolso, posso me arriscar a ignorar uma convenção e romper uma barreira quase intransponível entre Ocidente e Oriente. May-may provará, para além de todas as dúvidas — para sempre — entre as pessoas que realmente contam na sociedade, que o oriental é completamente digno de respeito. May-may, por si, apressará o dia da igualdade. E isto vai acontecer ainda durante minha vida.
Sim, ele exultou, de si para consigo, May-may é uma aposta maravilhosa. Juntos, poderemos fazer isso. Para sempre. Com pagode, Londres inteira cairá a seus pés.
E, então, a alegria dele se espatifou.
May-may estava em pé à porta, com um sorriso radiante no rosto, rodopiando. Seu vestido europeu era violentamente multicolorido, sobrecarregado de jóias, com a saia grande e cheia de pufes. Seu cabelo caía em cachos sobre os ombros nus e tinha um chapéu de plumas no cabelo. Estava horrorosa. Um pesadelo.
— Pelo sangue de Cristo!
Houve um silêncio horrível, enquanto eles olhavam um para o outro.
— É muito... bonito — ele disse, com voz pouco convincente, esmagado pela dor que apareceu nos olhos de May-may.
May-may estava fantasmagoricamente pálida, agora, a não ser pelas duas manchas escarlates que tinha no alto das faces. Sabia que perdera prestígio terrivelmente, diante de Struan. Cambaleou, quase desmaiando. Depois, gemeu e fugiu.
Struan saiu correndo atrás dela, pelo corredor. Invadiu os aposentos particulares de May-may. Mas o quarto de dormir estava trancado, para ele não entrar.
— May-may, garota, abra a porta!
Não houve resposta. Ficou furioso consigo mesmo, por não ter conseguido mascarar seus sentimentos, e por ter sido tão estúpido e despreparado. Claro que May-may desejaria ir ao baile, é lógico que todas as suas perguntas deveriam tê-lo advertido disto, naturalmente ela mandaria fazer um vestido de baile e — ah, Jesus Cristo!
— Abra a porta!
Outra vez, não houve resposta. Ele bateu os pés na porta, com toda força. Esta se abriu e ficou precariamente pendurada nas dobradiças quebradas. May-may estava em pé ao lado da cama, olhando para o chão.
— Você não devia ter trancado a porta, garota. Bom... bom, você... o vestido e você simplesmente me espantaram, por um momento. — Sabia que tinha de lhe devolver seu prestígio, senão ela morreria. Morreria de infelicidade, ou então se mataria. — Vamos — ele disse. — Nós vamos para o baile.
Quando ela caiu de joelhos, para se prosternar diante dele e lhe implorar perdão, o vestido atrapalhou-a e a fez tropeçar. May-may abriu a boca para falar, mas não saiu nenhum som. O chapéu de penas escorregou.
Struan correu para ela e começou a erguê-la. — Vamos, May-may, garota, você não deve fazer isso. Mas ela não queria ser ajudada a se levantar. Enterrou o rosto mais fundo no tapete e tentou enfiar as unhas no tecido.
Ele a levantou, desajeitadamente, e segurou-a. Ela não o olhava. Ele lhe segurou a mão, com firmeza.
— Vamos.
— O quê? — ela disse, estupidamente.
— Vamos para o baile.
Ele sabia que isto seria um desastre, para ele e para ela. Sabia que seria socialmente destruído e ela ridicularizada. Mas sabia também que deveria levá-la, senão o seu espírito morreria.
— Vamos — ele repetiu, com um toque de dor na voz. Mas ela continuou a olhar para o chão, tremendo.
Puxou-a, suavemente, mas ela quase caiu. Então ele, sombriamente, a levantou, e ela ficou em seus braços, um peso morto. Começou a carregá-la.
— Vamos, e este é o fim da questão.
— Espere — ela resmungou — eu preciso, eu, eu, o chapéu. Ele a pôs no chão e ela voltou para o quarto de dormir, com o andar trôpego enfeado pelo vestido. Struan sabia que nada seria outra vez exatamente como antes, entre eles. Ela cometera um erro horrível. Ele deveria ter previsto, sim, mas...
Viu que ela se lançava sobre o estilete, afiado como uma navalha, que usava para bordar. Alcançou-a exatamente quando ela começava a virá-lo em direção a si mesma, e agarrou o punho da faca. A ponta resvalou pelo osso de baleia no corpete de May-may. Ele atirou a faca para um lado e tentou segurá-la mas, vociferando em chinês, ela o empurrou e meteu as unhas no vestido, rasgando-o. Struan, depressa, virou-a e abriu os colchetes de gancho. May-may rompeu a parte da frente e lutou para sair do vestido e do corpete, rasgando em seguida as calças. Quando estava livre, pisoteou o vestido, gritando.
— Pare! — ele gritou, e a agarrou, mas ela o empurrou, tomada de fúria cega. –
Pare!
Ele lhe bateu no rosto, com a mão aberta. Ela cambaleou, como se estivesse bêbada, e caiu atravessada na cama. Seus olhos se reviraram, e ela perdeu a consciência.
Struan levou um momento para se recuperar das marteladas nos ouvidos. Puxou as roupas de cama e cobriu May-may.
— Ah Sam! Lim Din!
Os dois rostos petrificados apareceram à porta quebrada.
— Chá... depressa! Não. Tragam conhaque.
Lim Din voltou com a garrafa. Struan ergueu May-may gentilmente e ajudou-a a beber. Ela ficou meio sufocada. Depois, seus olhos tremeram e se abriram. Olhou para ele, sem reconhecê-lo.
— Está bem, garota? Você está bem, May-may?
Ela não deu nenhum sinal de tê-lo escutado. Seu olhar assustado caiu sobre o vestido rasgado e ela se encolheu, deploravelmente. Um gemido lhe escapou dos lábios, e murmurou alguma coisa em chinês. Ah Sam avançou relutantemente, consumida pelo terror. Ela se ajoelhou e começou a pegar a roupa.
— O que ela disse? O que a senhora disse? — Struan mantinha os olhos em May-may, sem se desviarem.
— Para tocar fogo nas roupas endemoninhadas, senhor.
— Não toque fogo, Ah Sam. Ponha no meu quarto. Escondidas. Escondidas. Entendido?
— Entendido, senhor.
— Depois volte.
— Está bem, senhor.
Struan fez um aceno de mão, para Lim Din sair, e ele se afastou correndo.
— Vamos, garota — disse bondosamente, aterrorizado com a fixidez e a loucura do olhar dela. — Vista-se com suas roupas habituais. Você precisa ir ao baile. Eu quero que você conheça meus amigos.
Ele deu um passo em direção a ela, que recuou abruptamente, como uma cobra prestes a dar o bote. Ele parou. O rosto dela estava contorcido e seus dedos pareciam garras. Uma gota de saliva se formara num canto de sua boca. Seus olhos estavam aterrorizadores.
Sentiu medo dela. Vira o mesmo olhar em outros olhos. Nos olhos do fuzileiro, pouco antes de seu cérebro ser despedaçado, naquele primeiro dia em Hong Kong. Fez uma oração silenciosa ao Infinito e reuniu todas as suas forças.
— Eu a amo, May-may — ele disse suavemente, vezes repetidas, enquanto caminhava devagar de um lado para outro do quarto.
Cada vez mais perto. Devagar, tão devagarzinho. Ele se inclinou sobre ela, agora, e viu as garras prontas para atacarem. Ergueu as mãos e, suavemente, tocou-lhe o rosto.
— Eu a amo — repetiu. Seus olhos, perigosamente desprotegidos, sugestionavam-na com a imensidão de seu poder. — Preciso de você, garota, preciso de você.
A loucura que havia nos olhos dela transformou-se em agonia e May-may caiu soluçando em seus braços. Ele a segurou e agradeceu a Deus, fracamente.
— Sinto muito — ela gemeu.
— Não sinta, garota. Tudo bem, tudo bem.
Ele a carregou para a cama e ficou sentado com ela nos braços, embalando-a como se fosse uma criança.
— Tudo bem, tudo bem.
— Me deixe, agora. Está... tudo bem.
— Não vou fazer isso — ele disse. — Primeiro, se recomponha, depois você vai se vestir para ir ao baile. Ela abanou a cabeça, chorando.
— Não, não... posso. Eu... por favor...
Ela parou de chorar e, saindo de seus braços, ficou de pé, cambaleando. Struan pegou-a e a conduziu para a cama, ajudando-a a tirar o resto das roupas esfarrapadas. Cobriu-a bem com os lençóis. Ela ficou caída na cama, e fechou os olhos, exausta.
— Por favor. Estou bem, agora. Preciso... dormir. Vá embora.
Ele lhe acariciou a cabeça, gentilmente, afastando de seu rosto os cachos obscenos. Mais tarde, ele teve consciência de que Ah Sam estava à porta. A moça entrou no quarto, com as lágrimas a lhe escorrerem pelas faces.
— Pode ir, senhor — sussurrou. — Ah Sam vigia, não se incomode. Não tenha medo. Pode.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, cheio de cansaço. May-may estava profundamente adormecida. Ah Sam ajoelhou-se ao lado da cama e suavemente, com ternura, acariciou a cabeça de May-may.
—Não tenha medo, senhor. Ah Sam vigia muito bem, até o senhor voltar. Struan saiu do quarto, nas pontas dos pés.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Culum foi o primeiro a cumprimentar Struan, quando ele voltou para o baile.
— Podemos começar o julgamento? — perguntou, bruscamente. Nada poderia destruir sua euforia com o amor recém-descoberto, e com o irmão dela, seu novo amigo. Mas ainda fazia o jogo.
— Você não devia ter esperado — respondeu Struan, com dureza. — Onde está Robb? Pelo sangue de Cristo, tenho de fazer tudo?
— Ele teve de ir embora. Chegou notícia de que as dores de parto de tia Sarah haviam começado. Parece que há algum problema.
— O quê?
— Não sei. Mas a Sra. Brock foi com ele, para ver se podia ajudar.
Culum se afastou. Struan mal notou que ele se fora. Sua preocupação com May-may voltou e, agora, estava sobrecarregada com a preocupação com Sarah e Robb. Mas Liz Brock era a melhor parteira da Ásia e, se fosse necessária qualquer ajuda, Sarah a teria.
Shevaun se aproximou, trazendo-lhe conhaque. Ela lhe entregou o copo sem uma só palavra e deu-lhe o braço, com delicadeza. Sabia que não havia necessidade de conversa. Numa ocasião assim, era melhor não dizer nada — pense quanto quiser, mas nada de perguntas. Pois mesmo a pessoa mais poderosa, ela sabia, precisava de um apoio silencioso, compreensivo e paciente, de vez em quando. Então, ficou à espera, deixando que sua presença o envolvesse.
Struan bebeu o conhaque, devagar. Seus olhos vaguearam pela multidão e ele viu que tudo estava bem — risos aqui e acolá, leques adejando, espadas a reluzirem. Observou Brock, em conversa particular com o arquiduque. Brock escutava e, ocasionalmente, acenava afirmativamente com a cabeça, por completo concentrado. Será que Zergeyev lhe oferecia a autorização? Mary abanava-se, ao lado de Glessing. Algo está errado ali, disse a si próprio. Tess, Culum e Gorth riam entre si. Ótimo.
E, quando Struan acabou o conhaque e se recompôs, olhou para Shevaun.
— Obrigado — disse, comparando o ridículo de May-may, em trajes e penteado europeus, com a perfeição de Shevaun. — Você é muito bonita e muito compreensiva.
Sua voz estava soturna e ela sabia que deveria ter sido algo relativo à sua amante. Não importa, pensou e segurou o braço dele, compassivamente.
— Estou bem, agora — disse ele.
— O Sr. Quance se aproxima — ela o advertiu, gentilmente. — Está na hora do julgamento. A luz verde dos olhos dele escureceu.
— Você é muito sensata, Shevaun, além de ser bonita.
Um agradecimento veio-lhe à ponta da língua, mas ela nada disse, limitando-se a mover ligeiramente o leque. Sentia que o conhaque, o silêncio e a compreensão — e, acima de tudo, o fato de não ter feito perguntas — haviam contribuído muito para levá-lo à beira de uma decisão.
— Ah, Tai-Pan, meu caro amigo — disse Quance, ao se aproximar, com os olhos cheios de alegria, um rubor alcoólico a envolvê-lo. — Está na hora do julgamento!
— Muito bem, Aristotle.
— Então, faça a comunicação, vamos saber o resultado!
— Sr. Quance! — Como um trovão, as palavras rasgaram a noite.
Todos se viraram, espantados. Quance gemeu alto.
Maureen Quance estava ali em pé, com seus olhos a reduzi-lo a pó. Era uma irlandesa alta, de ossos grandes, com um rosto como um pedaço de couro, nariz enorme e pernas sólidas como carvalhos. Tinha a mesma idade de Quance, mas era forte como um touro, o cabelo grisalho preso num coque desarrumado. Quando jovem, era atraente, mas agora, com a pança provocada pelas batatas e pela cerveja, tornara-se esmagadora.
— Muito boa-noite, Sr. Quance, meu bom rapaz — disse. — Sim, sou eu mesma, que Deus seja louvado!
Ela se arrastou pela pista de danças, sem se importar com os olhares e com o silêncio embaraçado, e ficou em pé diante de seu marido.
— Andei procurando por você, meu bom rapaz.
— Ah? — disse ele, com a voz num trêmulo falsete.
— Ah, sim. — Ela virou a cabeça. — Muito boa-noite, Sr. Struan, quero agradecerlhe pela hospedagem e comida. Deus seja louvado, peguei o malvado.
— A senhora, ah... está com bom aspecto, Sra. Quance.
— Sim, na verdade me sinto maravilhosamente bem. Foi um abençoado milagre de São Patrício que enviou o navio nativo até onde eu me achava, e me guiou os passos a este recanto imortal. — Ela virou os olhos lúgubres para Aristotle, e ele tremeu. — Vamos nos despedir, meu querido!
— Mas, Sra. Quance — disse Struan, depressa, lembrando o julgamento. — O Sr. Quance tem algo que...
— Vamos dizer boa-noite — ela grunhiu. — Diga boa-noite, meu rapaz. — Boa-noite, Tai-Pan — guinchou Aristotle. Mansamente, deixou que Maureen o levasse pelo braço. Depois que haviam partido, todos morreram de rir.
— Pelo sangue de Cristo — disse Struan. — Pobre Aristotle.
— O que aconteceu com o Sr. Quance? — perguntou Zergeyev.
Struan explicou as tribulações domésticas de Aristotle.
— Talvez nós devêssemos socorrê-lo — disse Zergeyev. — Eu gostei muito dele..— Mas não podemos nos meter em briga de marido e mulher, não é?
— Acho que não. Mas quem julgará o concurso?
— Creio que vou ter de fazer isso.
Os olhos de Zergeyev semicerraram-se.
— Posso me apresentar como voluntário? Sendo um amigo?
Struan examinou-o. Depois, deu uma volta sobre os calcanhares e caminhou para o centro da pista. As bandas tocaram um alto acorde.
— Sua Excelência, Sua Alteza, senhoras e cavalheiros. Há um concurso para julgar a dama mais bem-vestida da noite. Temo que nosso imortal Quance tenha outro compromisso. Mas Sua Alteza o Arquiduque Zergeyev apresentou-se como voluntário para fazer a escolha. — Struan olhou para Zergeyev e começou a bater palmas. Seus aplausos foram acompanhados e houve um rugido de aprovação, enquanto Zergeyev avançava.
Zergeyev pegou a bolsa com os mil guinéus.
— A quem devo escolher, Tai-Pan? — perguntou, falando pelo canto da boca. — A Tillman para você, a Vargas para mim, a Sinclair porque é a mais misteriosa? Escolha quem deve ganhar.
— A escolha é sua, meu amigo — disse Struan e, com um sorriso calmo, se afastou.
Zergeyev esperou um momento, gozando o suspense da escolha. Sabia que devia escolher quem o Tai-Pan queria. Decidiu-se, atravessou a pista, curvou-se e depôs a bolsa de ouro aos pés dela.
— Acredito que isto lhe pertence, Srta. Brock.
Tess olhou para o arquiduque, atônita. Depois, corou, quando o silêncio foi rompido.
Houve um aplauso forte, e os que haviam apoiado Tess, em suas apostas, gritaram de satisfação. Shevaun aplaudiu junto com a multidão e conteve seu ressentimento. Sabia que era uma escolha sábia.
— A escolha política ideal, Tai-Pan — sussurrou, calmamente. — Você é muito esperto.
— A decisão foi do arquiduque, não minha.
— Outra razão para eu gostar de você, Tai-Pan. Você é um grande jogador e seu pagode é inacreditável.
— E você é uma mulher maravilhosa.
— Sim — ela disse, sem vaidade. — Compreendo a política muito bem. Meu pai, ou um de meus irmãos, será presidente dos Estados Unidos, um dia.
— Você devia estar na Europa — ele disse. — Aqui, você se desperdiça.
oSerá mesmo? — os olhos dela o desafiaram.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Struan entrou tranqüilamente em casa. O amanhecer principiava. Lim Din dormia junto da porta e acordou espantado.
— Chá, senhor? Desjejum? — perguntou, sonolento.
— Vá para a cama, Lim Din — disse Struan, gentilmente. Enquanto Struan atravessava o corredor, deu uma olhada nasala de visitas e parou. May-may, pálida e imóvel, estava sentada na cadeira de couro, observando-o.
Quando ele entrou na sala, ela levantou-se e se curvou, graciosamente. Seu cabelo estava suspenso, puxado para trás, seus olhos amendoados eram delicados e tinha as sobrancelhas arqueadas. Usava um longo e flutuante vestido chinês.
— Como vai, moça? — ele perguntou.
— Obrigada, esta escrava está bem, agora. — A palidez e o verde-claro de seu vestido de seda aumentavam a imensidão de sua dignidade. — Quer beber conhaque?
— Não, obrigado.
— Chá?
Ele abanou a cabeça, pasmado com sua majestade. — Estou satisfeito de você se sentir melhor. Devia estar na cama.
— Esta escrava pede que lhe perdoe. Esta escrava...
— Você não é escrava, e nunca foi. E não há nada a perdoar, garota, então vá para a cama. Ela esperou, pacientemente, até ele terminar.
— Esta escrava lhe implora para escutar. Ela precisa dizer, à sua maneira, o que é preciso ser dito. Por favor, sente-se. Uma lágrima deslizou pelo canto de cada olho e escorreu sobre a brancura de suas faces. Ele se sentou, quase hipnotizado por ela.
— Esta escrava implora a seu amo para vendê-la.
— Você não é escrava, e não pode ser vendida ou comprada.
— Por favor, venda. Para qualquer pessoa. Para um bordel, ou para outro escravo.
— Você não está à venda.
— Esta escrava ofendeu-o além do suportável. Por favor, venda.
— Você não me ofendeu. — Ele se levantou, e sua voz estava metálica. — Agora, vá para a cama.
Ela caiu de joelhos e tocou a testa no colchão. .— Esta escrava sente vergonha diante de seu amo e senhor. Ela não pode viver aqui. Por favor, venda!
— Levante-se! — O rosto de Struan se endureceu.
Ela se levantou. Seu rosto estava cheio de sombras, etéreo.
— Você não está à venda, porque ninguém a possui. Você vai ficar aqui. Você não me ofendeu. Você me surpreendeu, só isso. Roupas européias não ficam bem em você. Das roupas que você usa, eu gosto. E gosto de você como você é. Mas, se não quer ficar, você é livre para ir embora.
Struan estava quase explodindo. Controle-se, disse a si mesmo, desesperado. Se perder a cabeça, agora, você a perderá para sempre.
— Vá para a cama.
— Deve vender esta escrava. Venda esta escrava ou lhe ordene para ir embora.
Struan percebeu que era inútil argumentar ou discutir com May-may. Você não pode tratá-la como européia, disse a si mesmo. Trate-a como se você fosse chinês. Mas como vou fazer isso? Não sei. Trate-a como uma mulher, ele ordenou a si mesmo, decidindo-se por uma tática.
Então explodiu, com raiva fingida.
— Você é uma miserável escrava, por Deus! E estou pensando em vender você na Rua das Lanternas — gritou, citando a pior das ruas com bordéis para marinheiros de Macau — muito embora eu não saiba quem vai querer comprar uma escrava sem préstimo feito você. Você só dá problema e estou pensando em entregar você aos leprosos. Sim, por Deus! Paguei oito mil taéis de boa prata por você, e como ousa me aborrecer? Fui enganado, por Deus! Você não vale nada! Escrava suja... não sei como suportei você todos esses anos! — Sacudiu o punho junto ao seu rosto, e ela se encolheu. — Não sou bom para você? Hein? Generoso? Hein? Hein? — Ele rugiu e ficou satisfeito, ao descobrir medo nos olhos dela — Diga lá!
— Sim, senhor — ela sussurrou, mordendo os lábios.
— Você ousa arranjar roupas feitas sem eu saber, e ousa usar essas roupas sem minha aprovação, por Deus? Responda, ousa?
— Sim, senhor.
— Vou vender você amanhã. Estou pensando em expulsá-la agora, sua miserável prostituta filha da mãe! Ajoelhe-se! Vamos, ajoelhe-se, por Deus! Ela empalideceu, diante da fúria dele, e se ajoelhou, depressa.
— E fique aí ajoelhada, até eu voltar!
Ele saiu correndo da sala e foi para o jardim. Puxou a faca e escolheu um bambu fino, de um bosque recém-plantado. Cortou-o brandiu-o no ar e voltou correndo para a sala de visitas.
— Tire a roupa, escrava miserável! Vou açoitar você até meus braços ficarem doendo.
Tremendo, ela tirou a roupa. Ele tomou o vestido de suas mãos e atirou para um canto.
— Deite-se aí. — Apontou para o escabelo estofado. Ela fez como ele lhe ordenara. — Por favor, não bata em mim com força demais... estou grávida de dois meses. — Ela enterrou a cabeça no escabelo.
Struan queria tomá-la nos braços, mas sabia que isto o faria perder prestígio diante dela. E chicoteá-la era a única maneira de devolver-lhe a dignidade.
Então bateu-lhe nas nádegas com o bambu. O suficiente para doer, mas não para causar danos. Logo ela estava gritando, chorando e se contorcendo, mas ele continuou. Duas vezes, deliberadamente, errou o alvo e bateu no couro, violentamente, causando um barulho terrificante, para impressionar Lim Din e Ah Sam que, ele sabia, deviam estar à escuta.
Depois de dez pancadas, fez uma pausa e disse a ela para ficar onde estava, indo, então, pegar a garrafa de conhaque. Bebeu muito, atirou a garrafa contra a parede e recomeçou a açoitá-la. Mas, sempre com muito cuidado.
Afinal, parou e levantou-a no ar.
— Vista-se, sua escrava miserável! — Quando ela já estava vestida, ele berrou: — Lim Din! Ah Sam!
Instantaneamente, eles apareceram à porta, tremendo.
— Por que não trazem chá e nem comida, seus miseráveis escravos! Vão pegar comida! Atirou o bambu para o lado da porta e se virou outra vez para May-May.
— Ajoelhe-se, sua filha da mãe!
Aterrorizada com a imensidão da fúria dele, ela obedeceu depressa.
— Limpe-se e volte para cá. Em trinta segundos, senão eu começo tudo de novo!
Lim Din serviu o chá e, embora estivesse perfeito, Struan disse que estava frio demais e jogou o bule contra a parede. May-may, Lim Din e Ah Sam saíram correndo e trouxeram mais.
A comida veio também com incrível velocidade, e Struan permitiu que May-may o servisse. Ela gemeu de dor e ele gritou: — Cale a boca, senão vou chicoteá-la para sempre!
Depois, ele ficou agourentamente silencioso e comeu, deixando a quietude torturálos.
— Pegue o bambu! — ele gritou, quando terminou. May-may pegou o bambu e entregou-o a ele. Ele o empurrou contra seu estômago.
— Cama! — ordenou, com dureza, e Lim Din e Ah Sam fugiram, sentindo-se seguros por saber que o Tai-Pan perdoara sua Tai-tai, tendo esta ganho um prestígio ilimitado por suportar sua justa fúria.
May-may virou-se chorosa e seguiu pelo corredor, em direção aos seus aposentos, mas ele rosnou: — Minha cama, por Deus!
Ela correu para o quarto dele. Ele a seguiu, bateu a porta e trancou-a.
— Então, você está grávida. De quem é o filho?
— Seu, senhor — ela gemeu.
— Ele se sentou e estendeu um pé calçado com a bota.
— Vamos, depressa.Ela caiu de joelhos e puxou as botas, e depois ficou em pé, ao lado da cama.
— Como você ousa pensar que eu queria que você conhecesse meus amigos? Quando quiser levar você para fora da casa, eu lhe digo, por Deus!
— Sim, senhor.
— Lugar de mulher é em casa. Aqui!
— Sim, senhor.
Ele permitiu ao seu rosto abrandar-se um pouquinho.
— Assim é melhor, por Deus!
— Eu não queria ir para o baile — ela disse, num sussurro tímido. — Só queria me vestir como... Eu não queria ir para o baile. Quanto a ir para o baile... eu nunca quis. Só agradar. Desculpe. Sinto muito.
— Por que eu deveria perdoar você, hein? — Ele começou a se despir. — Hein?
— Não há razão. Nenhuma. — Agora ela estava chorando de causar dó, em silêncio. Mas ele sabia que, agora, em breve aquilo iria parar completamente.
— Talvez como você está grávida, eu possa lhe dar outra oportunidade. Mas é melhor ser filho homem, não uma menina inútil.
— Ah, sim... por favor, por favor. Por favor, perdoe. — Ela se ajoelhou e bateu a cabeça no chão.
Seu choro lhe despedaçava o coração, mas ele continuou a se despir, com ar sombrio. Depois, apagou a lanterna e se deitou. Ele a deixou em pé. Depois de um minuto ou dois, ele disse, asperamente:
— Venha para a cama. Estou com frio.
Mais tarde, quando não podia mais suportar vê-la chorando abraçou-a ternamente e a beijou.
— Você está perdoada, garota.
Ela chorou até dormir, nos braços dele.
LIVRO IV
Passaram-se semanas e a primavera se transformou em começo de verão. O sol ia ficando mais forte e a atmosfera tornava-se pesada de umidade. Os europeus, com seus trajes habituais e grossa roupa interna de lã — e vestidos cheios de pufes e espartilhos — sofriam muito. O suor secava nas axilas e nas virilhas e provocava o aparecimento de feridas inflamadas. Começaram as costumeiras doenças de verão — a diarréia de Cantão, a gripe de Macau, o mal asiático. Os que morriam eram pranteados. Os vivos, estoicamente, suportavam seus tormentos como se fossem tribulações inevitáveis, enviadas pelo bom Deus para atormentar a humanidade, e continuavam a fechar suas janelas para se proteger do ar que, todos acreditavam, carregava os gases nocivos emanados da terra no verão; e continuavam a permitir que seus médicos lhes receitassem purgantes, e lhes aplicassem sanguessugas, pois todos achavam ser aquela a única cura real para a doença; e continuavam a beber a água contaminada pelas moscas e a comer carnes infectadas; e continuavam a evitar o banho que, todos achavam, era perigoso para a saúde; e continuavam a rezar pelo frio do inverno, que outra vez purificaria a terra de seus venenos mais letais.
Por volta de junho, as epidemias tinham dizimado as fileiras do Exército. A temporada comercial quase terminara. Aquele ano, seriam ganhas grandes fortunas. Com pagode. Pois jamais a compra e a venda haviam sido tão extravagantes na Colônia de Cantão. Os negociantes, seus funcionários portugueses e compradores chineses, e os mercadores da Co-hong estavam todos exaustos com o calor, mas ainda mais devido às semanas de frenética atividade. Todos estavam prontos para relaxar, até começarem as compras de verão.
E aquele ano, afinal ao contrário de todos os anteriores, os europeus estavam ansiosos para passar o verão em seus próprios lares, em suas próprias terras em Hong Kong.
Suas famílias, em Hong Kong, já se haviam mudado das atravancadas cabinas dos navios para o Vale Feliz. A construção tivera um boom. A Cidade da Rainha já tomava forma — ruas, armazéns, prisão, docas, dois hotéis, tavernas e casas.
As tavernas que supriam os soldados ficavam perto das tendas, no Cabo Glessing. As que serviam aos marinheiros se situavam diante do ancoradouro, na Estrada da Rainha. Algumas eram mesmo tendas, estruturas toscas e provisórias. Outras, tinham caráter mais permanente.
Da Grã-Bretanha chegavam navios trazendo abastecimentos, parentes e amigos, e muitos estrangeiros. E cada maré trazia mais gente de Macau — portugueses, chineses, eurasianos, europeus -. mestres de velas, tecelões, alfaiates, funcionários, criados, negociantes, compradores e vendedores, cules, gente à procura de emprego ou cujos empregos os haviam forçado a ir para Hong Kong — todos os que serviam ao comércio da China, todos os que dele viviam ou tiravam seu sustento, artífices, jogadores e contrabandistas, punguistas e seqüestradores, ladrões, mendigos, piratas -. a escória de todas as nações. Eles também procuravam casa, ou começavam a construir casas e lojas. Botequins, bordéis, locais para fumar ópio começaram a infestar a Cidade da Rainha e a macular a Estrada da Rainha. O crime aumentou violentamente e a força policial, sendo
o que era, foi engolfada. A quarta-feira se tornou o dia dos açoites. Para divertimento dos justos, os criminosos presos eram publicamente açoitados, em frente à cadeia, como advertência para os maus.
A justiça britânica, embora rápida e dura, não parecia cruel aos chineses. Torturar publicamente, espancar até à morte, comprimir os polegares, mutilar, causar a perda de um ou dois olhos, uma ou duas mãos, um ou dois pés, marcar a ferro em brasa, cortar pedaços de carne, garrotear, cegar, arrancar a língua, esmagar os órgãos genitais — tudo isso eram punições chinesas convencionais. Os chineses não tinham julgamento por júri. Como Hong Kong estava além dos limites da justiça chinesa, todos os criminosos do continente que podiam escapar fugiam para a segurança do Tai Ping Shan e zombavam da moleza da lei bárbara.
E, enquanto a civilização florescia na ilha, o lixo começou a se juntar. E, com o lixo, vieram as moscas.
A água começou a se estagnar em barris atirados fora, em vasos e panelas quebrados. Ela se acumulava nos andaimes de bambu, nos jardins inacabados e no pântano raso na bacia do vale. Essas pequenas águas pútridas começaram a fervilhar de vida: larvas, que se tornavam mosquitos. Eram pequenos, frágeis e muito especiais — tão delicados que só voavam quando o sol se punha: o Anofeles.
E a população do Vale Feliz começou a morrer.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
— Pelo amor de Deus, Culum, nada sei além do que você sabe. Há uma febre mortífera na Cidade da Rainha. Ninguém sabe o que a provoca e, agora, a pequena Karen contraiu a doença. Struan estava muito infeliz. Há uma semana não tinha notícias de May-may. Partira de Hong Kong há quase dois meses e só voltara numa rápida visita de dois dias, fazia algumas semanas, quando sua necessidade de ver May-may dominou-o. Ela florescia, sua gravidez não tinha nenhum enjôo e eles estavam mais satisfeitos um com o outro do que nunca.
— Graças a Deus nosso último navio foi embora e vamos deixar a Colônia amanhã!
— Tio Robb diz que é malária — disse Culum, exasperado, brandindo a carta de Robb que acabara de chegar.
Estava frenético de preocupação por causa de Tess. Ainda na véspera, recebera uma carta sua, dizendo que ela e sua irmã, bem como a mãe, se haviam mudado do navio para a feitoria de Brock, parcialmente pronta. Mas não fora feita nenhuma menção à malária.
— Qual a cura da malária?
— Que eu saiba, nenhuma. Não sou médico. E Robb diz que apenas poucos médicos acham que é malária. — Struan sacudiu o espanta-moscas com irritação. — “Malária” é a palavra latina que significa “mau ar”. É tudo que eu sei... ou qualquer pessoa sabe. Mãe de Deus, se o ar do Vale Feliz for ruim, estamos arruinados!
— Eu lhe disse para não construir ali — disse Culum enfurecido. — Detestei aquele vale desde a primeira vez em que o vi!
— Pelo sangue de Cristo, você está dizendo que já sabia antecipadamente da ruindade do ar?
— Não. Não quis dizer isso. Quis dizer... bom, detestei o lugar, é tudo.
Struan fechou violentamente a janela, para se proteger contra o mau cheiro que vinha da praça da Colônia e afastou mais moscas, com o abano. Rezou para que a febre não fosse malária. Se fosse, a epidemia poderia atingir a todos que dormissem no Vale Feliz. Todos sabiam que a terra, em alguns lugares do mundo, era envenenada pela malária e, por razão desconhecida, emitia à noite gases letais.
Segundo Robb, a febre começara misteriosamente há quatro semanas. Primeiro, atingira os trabalhadores chineses. Depois, acometera outras pessoas — um negociante europeu ali, uma criança acolá. Mas só no Vale Feliz. Em nenhum outro lugar de Hong Kong. Agora, quatrocentos ou quinhentos chineses estavam contaminados, e vinte ou trinta europeus. Os chineses se sentiam supersticiosamente assustados, certos de que os deuses os puniam por trabalharem em Hong Kong contra o decreto do imperador Só um aumento de salário os persuadira a voltar.
E, agora, a pequena Karen fora atingida. Robb terminava a carta assim: “Sarah e eu estamos desesperados. O curso da doença é insidiosa. Primeiro, uma febre horrível, durante meio-dia, depois uma recuperação, em seguida, uma recaída mais séria da febre, dentro de dois ou três dias. O ciclo é repetido inúmeras vezes sendo cada ataque pior do que o anterior. Os médicos deram a Karen o purgante calomelano mais forte que ousaram. E sangraram a pobre criança, mas não esperamos grandes resultados. Os cules morreram depois do terceiro ou quarto ataque. E Karen está tão fraca, depois do purgativo e da sangria, tão fraquinha. Que Deus nos ajude, mas acho que Karen está perdida.”
Struan caminhou em direção à porta. Meu Deus, primeiro o bebê, agora Karen! Sarah dera à luz um filho, Lochlin Ross, no dia seguinte ao baile, mas a criança nascera doente, com o braço esquerdo aleijado. O parto fora muito difícil e ela quase morrera. Mas escapara à temida enfermidade do pós-parto e, embora seu leite tivesse azedado e seu cabelo se tornasse grisalho, sua força aos poucos voltara. Quando Struan voltou para ver May-May, visitou Sarah. As rugas de angústia e amargura lhe marcavam profundamente o rosto e ela parecia uma velha. Struan ficou mais triste quando viu o bebê: com o braço esquerdo inutilizado, ele era doentio, chorava deploravelmente, e não havia expectativa de sobrevida. Fico imaginando se o bebê está morto, pensou Struan, ao abrir violentamente a porta; Robb não fala nele:
— Vargas!
— Sim, senhor?
— Já houve malária aqui em Macau?
— Não, senhor. — Vargas empalideceu. Seu filho e seu sobrinho trabalhavam para a Casa Nobre e agora viviam em Hong Kong. — Tem certeza de que é malária?
— Não. Apenas alguns dos médicos pensam assim. Nem todos. Vá procurar Mauss. Diga-lhe que quero ver Jin-qua, imediatamente. Com ele.
— Sim, senhor. Sua Excelência quer que jante com ele e com o arquiduque esta noite, às nove horas.
— Aceite, em meu nome.
— Sim, senhor.Struan fechou a porta e se sentou, sombriamente Usava uma camisa leve, sem gravata, bem como calças é botas leves. Os outros europeus achavam que ele estava louco por se arriscar a pegar os diabólicos resinados que, todos achavam, eram trazidos pelos ventos de verão.
— Não pode ser malária — disse ele. — Não é malária. Alguma outra coisa.
— A ilha é amaldiçoada.
— Agora, você está pensando como uma mulher — disse Struan.
— A febre não estava lá, antes dos cules chegarem. Livre-se dos cules e se livrará da epidemia. Eles a estão levando consigo. São os culpados.
— Como sabe disso, Culum? Admito que começou entre os cules. E concordo que vivem nas regiões baixas. E concordo que, como sabemos, só se pode pegar malária, respirando o ar noturno envenenado. Mas, por que só há febre no vale? Só o Vale Feliz tem ar ruim? Ar é ar, pelo amor de Cristo, e há uma ótima brisa soprando ali, a maior parte do dia e da noite. Não faz sentido.
— Faz muito bom sentido. É a vontade de Deus.
— Maldita seja uma resposta assim!
Culum se levantou.
— Eu lhe agradeceria se não blasfemasse.
— E eu lhe agradeceria se lembrasse que, não faz tanto tempo assim, os homens foram queimados na fogueira só por dizerem que a terra girava em torno do sol! Não é a vontade de Deus!
— Pense o que pensar, Deus tem uma interferência vital e contínua em nossas vidas. O fato de que a febre está no lugar onde escolhemos viver na Ásia é, eu acho, a vontade de Deus. Você não pode negar isso, porque não pode provar algo diferente, da mesma maneira como eu também não posso provar que isto é verdade. Mas acredito que é... a maioria acredita, e acho que devíamos abandonar o Vale Feliz.
— Se fizermos isso, abandonaremos Hong Kong.
— Podemos construir no terreno próximo ao Cabo Glessing.
— Você sabe quanto dinheiro nós, e todos os comerciantes, investimos no Vale Feliz?
— Sabe quanto dinheiro se pode gastar, quando se está a seis pés de profundidade no chão?
Struan observou friamente seu filho. Já fazia semanas que fora percebendo ser a hostilidade de Culum cada vez mais verdadeira. Mas não se incomodou com isso. Sabia que, quanto mais Culum aprendesse, mais procuraria pôr suas próprias idéias em prática e mais lutaria pelo poder. É justo, pensou, e ficou muito satisfeito com o desenvolvimento de Culum. Ao mesmo tempo sentiu-se preocupado com a segurança de Culum. Culum passava tempo demais em companhia de Gorth, com a mente perigosamente aberta.
Há dez dias, houvera uma briga cruel, que não levara a conclusão alguma. Culum declamara algumas teorias a respeito de navegação — obviamente opiniões de Gorth — e Struan discordara. Então, Culum falara na disputa entre Brock e Struan, e dissera que a geração mais jovem não cometeria os erros da mais velha. Que Gorth sabia não ser necessário para a geração mais jovem ficar aprisionada pela mais velha. Que Gorth e ele haviam concordado em esquecer toda inimizade, e ambos tentariam fazer as pazes entre seus pais. E, quando Struan começou a argumentar, Culum recusou-se a ouvir e saiu, furioso.
Além disso, havia o problema de Tess Brock.
Culum jamais falara dela a Struan. E nem ele com o filho. Mas sabia que Culum estava desesperado de saudade por ela e isto lhe obscurecia a mente. Struan lembrou-se de sua própria juventude e de como ansiara por Ronalda. Tudo parecia tão nítido, tão importante e tão limpo, naquela idade.
— Ah, Culum, rapaz, não se canse — ele disse, sem querer discutir com Culum. — O dia está quente e todos os ânimos exaltados. Sente-se e procure se acalmar. A pequena Karen está doente, e muitos de nossos amigos. Ouvi dizer que Tillman está com a febre, quem sabe quantos mais?
— E a Srta. Tillman?
— Acho que não.
— Gorth disse que vão fechar a feitoria deles amanhã. Ele vai passar o verão em Macau. Todos os Brocks vão.
— Nós vamos para Hong Kong. A feitoria aqui fica aberta.
— Gorth disse que seria melhor passar o verão em Macau. Ele tem uma casa lá.
Ainda temos propriedade lá, não? Struan remexeu-se em sua cadeira.
— Sim. Passe uma semana ou duas, se quiser. Passe em Macau. Mas quero você na Cidade da Rainha. E lhe direi outra vez, cuidado com as costas. Gorth não é seu amigo.
— E eu devo lhe dizer outra vez, acho que é.
— Ele está tentando enfraquecer você para, um dia, reduzi-lo a pó.
— Você está enganado. Eu o entendo. Eu gosto dele. Nós nos damos muito bem. Descobri que posso conversar com ele e aprecio sua companhia. Ambos sabemos que é difícil para você, e para o pai dele, compreender isso, mas... bom, é difícil de explicar.
— Eu compreendo Gorth muito bem, por Deus!
— Não vamos discutir isso — disse Culum.
— Acho que deveríamos discutir. Você está sob o fascínio de Gorth. Isto é fatal para um Struan.
— Você vê Gorth com outros olhos. Ele é meu amigo.
Struan abriu uma caixa, escolheu um charuto Havana e decidiu que chegara a hora.
— Acha que Brock aprovará que você se case com Tess?
Culum corou e disse, impulsivamente:
— Não vejo por que não. Gorth é a favor.
— Você discutiu o assunto com Gorth?
— Não discuti com você. E nem com ninguém. Então, por que deveria falar a respeito com Gorth?
— Então, como sabe que ele aprova?
— Não sei. Simplesmente, ele diz sempre como eu e a Srta. Brock parecemos nos dar bem, como ela gosta de minha companhia, encorajando-me a escrever para ela, esse tipo de coisa.
— Você acha que eu não tenho direito algum de perguntar suas intenções para com Tess Brock?
— Tem o direito, certamente. Só que... bom, sim, pensei em casar com ela. Mas nunca disse isto a Gorth.
Culum parou, desajeitadamente, e esfregou a sobrancelha. Ficara abalado com a rapidez com que o Tai-Pan tocara no que era mais importante em sua mente, e, embora quisesse falar a respeito, não queria ver o seu amor maculado. Diabo, eu deveria estar preparado, pensou, e ouviu a si mesmo prosseguir, apressadamente, incapaz de parar.
— Mas não creio que meu... meu afeto pela Srta. Brock seja do interesse de ninguém, no momento. Nada foi dito, e não há nada... bom, o que sinto pela Srta. Brock é assunto meu.
— Sei que sua opinião é essa — disse Struan — mas isto não significa que você tenha razão. Já considerou que pode estar sendo usado?
— Pela Srta. Brock?
— Por Gorth. E por Brock.
— Você já considerou que seu ódio por eles contamina todos os seus julgamentos?
— Culum estava furioso.
— Sim. Já considerei isso. Mas e você, Culum? Já pensou que podem estar usando você?
— Vamos dizer que você tenha razão. Vamos dizer que eu me case com a Srta. Brock. Não será vantajoso, comercialmente, para você? Struan estava satisfeito por ver o problema abordado abertamente.
— Não. Porque Gorth o devorará, quando você for Tai-Pan. Ele tomará tudo que temos e destruirá você... para ficar com a Casa Nobre.
— Por que iria ele destruir o marido de sua irmã? Por que não juntaríamos as duas companhias... Brock e Struan? Eu dirijo os negócios, ele dirige os navios.
— E quem será o Tai-Pan?
— Podemos dividir isso, Gorth e eu.
— Só pode haver um Tai-Pan. Este é o próprio significado da palavra. É a lei.
— Mas sua lei não é, necessariamente, a minha lei. E nem a de Gorth. Podemos aprender com os erros dos outros. Fundir nossas companhias nos daria imensas vantagens.
— É o que Gorth tem em mente?
Struan ficou imaginando se cometera um erro, com relação a Culum. A fascinação de seu filho por Tess e sua confiança em Gorth seriam a chave para destruir a Casa Nobre e dar a Brock e Gorth tudo que eles queriam. Só faltam três meses para eu partir para a Inglaterra. Meu Deus!
— Ah, é? — ele perguntou.
— Nunca discutimos isso. Conversamos a respeito de comércio, navegação e companhias, esse tipo de coisa. E como fazer as pazes entre vocês dois. Mas uma fusão seria vantajosa, não?
— Com aqueles dois, não. Você não está na mesma classe. Ainda.
— Mas, um dia, estarei?
— Talvez. — Struan acendeu o charuto. — Você realmente acha que poderia controlar Gorth?
— Talvez eu não precisasse controlá-lo. Como ele não precisaria me controlar. Vamos dizer que eu, realmente, me case com a Srta. Brock. Gorth tem a sua companhia, nós temos a nossa. Separadas. Podemos ainda competir. Mas amistosamente. Sem ódio.
— O tom de voz de Culum se endureceu. — Vamos pensar, por um momento, em termos de um Tai-Pan. Brock tem uma filha adorada. Eu ganho as suas boas graças e também as de Gorth. Casando-me com ela, só estarei amaciando a animosidade de Brock com relação a mim, enquanto ganho experiência. Sempre acenando com a isca da fusão das companhias. Depois, posso espezinhá-los, quando eu estiver preparado. Uma manobra segura e bem armada. A moça que se dane. Apenas usá-la... para maior glória da Casa Nobre.
Struan não disse nada.
— Você não considerou essas possibilidades imparcialmente? — prosseguiu Culum. — Ah, esqueci que você é inteligente demais a não ter notado que estou apaixonado por ela.
— Sim — disse Struan. Ele sacudiu cuidadosamente a cinza do charuto, num cinzeiro de prata. — Pensei em você e em Tess “imparcialmente”.
— E qual foi sua conclusão?
— Que os perigos, para você, superam as vantagens.
— Então você desaprova totalmente que eu me case com ela?
— Desaprovo que você a ame. Mas o fato é que você a ama, ou acha que ama. E outro fato é que você se casará com ela, se puder. — Struan sugou, longamente, o charuto. — Acha que Brock aprovará?
— Não sei. Não creio que aprove, por Deus.
— Acho que sim, por Deus. -. Mas você, não?
— Eu já lhe disse uma vez, antes: sou o único homem nesta terra em que você pode confiar completamente. Desde que não se coloque deliberadamente contra a Casa.
— Mas acha que tal casamento é contra os interesses da companhia.
— Eu não disse isso. Disse que você não entendia os perigos. — Struan apagou o charuto e se levantou.
— Ela não tem idade. Você vai esperá-la, por cinco anos?
— Sim — disse ele, horrorizado com a enormidade de tempo. — Sim, por Deus! Você não sabe o que ela significa para mim. Ela é... bem, ela é a única moça que poderei realmente amar. Não vou mudar e você não entende, não pode entender. Sim, esperarei cinco anos. Estou apaixonado por ela.
— Ela está apaixonada por você?
— Não sei. Eu... ela parece gostar de mim. Rezo para que esteja. Ah, meu Deus do céu, o que vou fazer?
Graças a Deus eu não sou novamente jovem, Struan pensou, com pena. Agora eu sei que o amor é como o mar, algumas vezes calmo e outras tempestuoso; é perigoso, belo, mata e dá vida. Mas nunca o mesmo, sempre mutável. E único apenas por um curto período, diante do tempo.
— Você não fará nada, rapaz. Mas eu vou falar com Brock esta noite.
— Não — disse Culum, ansiosamente. — A vida é minha. Não quero que você...
— O que você quer fazer tem a ver com a minha vida, e a de Brock — interrompeu Struan. — Falarei com Brock.
— Então, você vai me ajudar?
Struan espantou uma mosca que lhe pousara no rosto.— E os vinte guinéus, Culum?
— O quê?
— O dinheiro para o meu caixão. As vinte moedas de ouro que Brock me deu e você guardou. Já esqueceu? Culum abriu a boca para dizer não, mas mudou de idéia.
— Sim, eu esqueci. Pelo menos, tinham saído de minha cabeça. — Sua angústia apareceu nas profundezas de seus olhos. — Por que eu mentiria para você? Quase menti. Isto é terrível.
— Sim — disse Struan, satisfeito por Culum ter passado por outro teste e aprendido outra lição.
— E as moedas?
— Nada. A não ser que deve lembrá-las. Brock é assim. Gorth é pior, porque ele não tem sequer a generosidade do pai.
***
Era quase meia-noite.
— Sente-se, Dirk — disse Brock, esfregando a barba. — Grogue, cerveja ou conhaque?
— Conhaque.
— Traga conhaque — ordenou Brock ao criado, e depois fez um sinal em direção à comida que estava na mesa, à luz trêmula das velas. — Coma alguma coisa, Dirk. — Cocou as axilas, que estavam grossas comas erupções chamadas de “brotoejas”. — Maldito clima! Por que diabo você não está sofrendo, como todos nós?
— Vivo de maneira correta — disse Struan, e estirou confortavelmente as pernas. — Eu já lhe disse um milhão de vezes. Se você tomar banho quatro vezes por dia, não vai ficar com brotoejas. Os piolhos desaparecerão e...
— Isso não tem nada a ver — disse Brock. — É tolice. É contra a natureza, por Deus! — Ele riu. — Aqueles que o consideram um parceiro do demo talvez estejam descobrindo por que você é do jeito que é. Hein? — Empurrou seu canecão de prata, de meio galão, em direção ao criado, que imediatamente o encheu, tirando cerveja do pequeno barril encostado a uma parede. Mosquetes e espadas estavam em armeiros, nas proximidades. — Mas você logo terá sua recompensa, hein, Dirk? — Brock apontou bruscamente o polegar para baixo.
Struan pegou o grande copo de cristal em forma de balão e cheirou o conhaque.
— Todos temos nossas recompensas, Tyler.
Struan manteve o conhaque próximo ao nariz para neutralizar o fedor da sala. Ficou imaginando se Tess fedia, como seu pai e sua mãe, e se Brock sabia a razão de sua visita. As janelas estavam bem fechadas, como proteção contra a noite e o monstruoso zumbido da praça lá embaixo.
Brock resmungou, ergueu o canecão bem cheio e bebeu avidamente. Estava usando seu habitual casaco naval de lá, roupa interna grossa, gravata alta e colete. Observou Struan, com frieza. Struan parecia não sentir calor e irradiava força, com sua camisa leve, calças brancas e meias-botas, os pêlos vermelhos-dourados de seu largo peito iluminados pelas velas.
— Você parece nu, rapaz. Que coisa desagradável.
— É a próxima moda, Tyler. Saúde! — Struan ergueu o copo e beberam.
— Por falar no diabo, ouvi dizer que Maureen Quance dobrou o pobre velho Aristotle. Segundo os boatos, vão embora na próxima maré.
— Ele fugirá, ou cortará a garganta, antes de fazer uma coisa dessas.
Brock gargalhou.
— Quando ela apareceu, de repente, no baile, eu ri como não ria desde que Mamãe prendeu os peitos na calandra da roupa lavada. — Fez um aceno de mão para o criado, que foi embora.
— Ouvi dizer que todos os navios já partiram.
— Sim. Uma grande temporada, não?
— Sim. E será melhor quando o Blue Witch chegar primeiro na cidade de Londres. Ouvi dizer que leva um dia de vantagem.
— Brock bebeu muita cerveja e suou copiosamente. — Jeff Cooper disse que seu último navio partiu, e então Whampoa está vazia.
— Você vai ficar em Cantão?
Brock abanou a cabeça.
— Vamos embora amanhã. Para a Cidade da Rainha e, depois, para Macau. Mas vamos manter este lugar aberto, não será como antes.
— Longstaff vai ficar. As negociações prosseguirão, suponho.
— Struan sentiu uma tensão no ar e sua inquietação aumentou.
— Você sabe que não serão alcançadas conclusões aqui. — Brock brincava com o penso que tinha sobre o olho. Soergueu-o e esfregou a órbita irregular, marcada por cicatrizes. O cordão que prendia o penso há anos cavara um nítido sulco vermelho em sua festa. — Gorth disse que a filha mais nova de Robb está com febre.
— Sim. Suponho que Culum tenha dito a ele.
— Sim. — Brock notou a aspereza na voz de Struan. Bebeu muita cerveja e enxugou a espuma dos bigodes com as costas da mão. — Senti muito ao saber. Mau pagode. — Bebeu outra vez.
— Seu garoto e o meu são como velhos companheiros de bordo.
— Vou ficar satisfeito ao embarcar outra vez. — Struan ignorou o escárnio. — Conversei longamente com Jin-qua, esta tarde. A respeito da febre. Nunca deu em Cantão, pelo que ele saiba.
— Se for verdadeiramente malária, então estamos com uma porção de problemas pela frente. — Brock estendeu o braço e pegou um peito de frango. — Sirva-se. Ouvi dizer que os preços dos cules subiram. Os custos estão subindo terrivelmente em Hong Kong.
— Não o suficiente para prejudicar. E a febre vai passar. Brock movimentou a pança, penosamente, e esvaziou o canecão.
— Queria falar comigo em particular? Para conversar sobre a febre?
— Não — disse Struan, sentindo-se sujo com o fedor, o perfume que Brock estava usando e o cheiro de cerveja velha. — Era a respeito de uma promessa há muito tempo feita por mim, de sair atrás de você com um chicote.
Brock pegou a campainha na mesa e a tocou com veemência. O som ecoou nas paredes. Quando a porta não se abriu imediatamente, tocou de novo.
— Aquele maldito macaco — disse. — Vai precisar de um bom chute no traseiro.
Aproximou-se do barril de cerveja e, após tornar a encher seu canecão, sentou-se outra vez e observou Struan. E esperou.
— De que se trata? — disse Brock, afinal.
— De Tess Brock.
— Hein? — Brock ficou pasmado com o fato de Struan querer precipitar a decisão com relação à que ele e, sem dúvida, também Struan, se haviam atormentado por tantas noites.
— Meu filho está apaixonado por ela.
Brock deu mais alguns goles na cerveja e enxugou a boca outra vez.
— Eles só se encontraram uma vez. No baile. Depois, houve passeios à tarde, com Liza e Lilibeth. Três.
— Sim. Mas ele está apaixonado por ela. Tem certeza de que está apaixonado por ela...
— Você tem certeza?
— Sim.
— E qual a sua impressão?
— De que é melhor falarmos sobre o assunto. Abertamente.
— Por que agora? — perguntou Brock, com suspeita, sua mente tentando descobrir a verdadeira resposta. — Ela é muito jovem, como sabe.
— Sim. Mas tem idade suficiente para casar.
Brock, pensativamente, brincava com o canecão, olhando para seu reflexo na prata polida. Ficou imaginando se decifrara corretamente Struan.
— Você está pedindo formalmente a mão de Tess para seu filho?
— É dever dele, não meu... fazer o pedido formal. Mas precisamos conversar informalmente. Primeiro.
— O que você pensa? — perguntou outra vez Brock. — Dessa união?
— Você já sabe. Sou contra. Não confio em você. Não confio em Gorth. Mas Culum pensa por si e ele se impôs a mim, e um pai não pode sempre fazer o filho agir como ele quer.
Brock ficou pensando a respeito de Gorth. Sua voz estava áspera, quando ele falou.
— Se você é tão contra ele, então meta um pouco de senso em sua cabeça ou então o mande embora para a Inglaterra, embarque-o. É fácil se livrar daquele jovem janota.
— Você sabe que estou preso numa armadilha — disse Struan, com amargura. — Você tem três filhos — Gorth, Morgan, Tom. Só tenho Culum, agora. Então, é ele quem tem de me suceder.
— Há Robb e seus filhos — disse Brock, satisfeito por ter interpretado corretamente o pensamento de Struan, e brincando com ele, agora, como se fosse um peixe no anzol.
— Você sabe a resposta para isso. Fiz a Casa Nobre, não foi Robb. O que você acha, hein?
Brock esvaziou o canecão, pensativamente. Outra vez, tocou a sineta. E, outra vez, nenhuma resposta.
— Eu vou fazer das tripas daquele macaco jarreteiras! — Levantou-se e começou a encher de novo seu canecão. — Também sou contra a união — disse Brock, asperamente. Viu um relâmpago de surpresa no rosto de Struan. — Mesmo assim — acrescentou Brock
— aceitarei seu filho, quando ele me pedir.
— Eu achei que aceitaria, por Deus! — Struan levantou-se, com os punhos cerrados.
— O dote dela será o mais rico da Ásia. Eles se casarão no próximo ano.
— Primeiro, quero ver você no inferno.
Os dois homens se encararam, agourentamente.
Brock viu o mesmo rosto cinzelado de há trinta anos, com a mesma vitalidade impregnando-o. A mesma qualidade indefinível que fazia todo seu ser reagir tão violentamente. Por Jesus Nosso Senhor, praguejou, não entendo como Vós pusestes este demônio em meu caminho. Só sei que o pusestes aí para ser destruído.
— Mais tarde, Dirk — disse ele. — Primeiro, eles se casam, tudo certinho. Você está numa armadilha, é certo. Não por minha causa, não fui eu quem atirou este mau pagode em sua cara. Mas andei pensando muito... como você... a respeito dos dois e de nós, e acho que é melhor para eles e melhor para nós.
— Sei o que tem em mente. E Gorth também.
— Quem sabe o que acontecerá, Dirk? Talvez haja uma fusão, no futuro.
— Enquanto eu estiver vivo, não.
— Por outro lado, talvez não haja fusão, e você conserva o que é seu e nós o que é nosso.
— Você não vai tomar a Casa Nobre e destruí-la, usando as saias de uma moça!
— Agora, me escute, por Deus! Você foi quem começou toda essa conversa! E disse para se falar abertamente, e eu não acabei. Então, você vai escutar, por Deus! A não ser que tenha perdido a coragem, como perdeu as boas maneiras e a cabeça.
— Está bem, Tyler. — Struan se serviu de outro conhaque, — Diga o que tem na cabeça. Brock relaxou um pouco, sentou-se e emborcou sua cerveja.
— Eu o odeio, e sempre odiarei. Também não confio em você. Estou mortalmente cansado de matar, mas juro por Jesus Cristo que o matarei, no dia em que o vir caminhando contra mim com um chicote na mão. Mas não vou começar essa briga. Não. Não quero matar você, só botar você nos eixos. Mas andei pensando que talvez os mais moços estejam endireitando o que nós... o que nós não pudemos endireitar. Então eu digo, seja o que tiver de ser. Se houver uma fusão, então haverá uma fusão. Vai depender deles... e não de mim e de você. Se não houver fusão... que eles também decidam isso. O que fizeram dependerá deles. Não de nós. Então eu digo que o casamento é bom.
Struan esvaziou seu copo e o empurrou sobre a mesa.
— Nunca pensei que você fosse tão desalmado a ponto de usar Tess, quando é tão contra a união quanto eu. Brock tornou a olhar para ele, sem raiva, agora.
— Não estou usando Tess, Dick. Esta é a verdade, diante de Deus. Ela está amando Culum, e esta é a mortal verdade. É a única razão por que estou falando assim. Estamos ambos na armadilha. Vamos dizer o óbvio. Ela é como Julieta, para seu Romeu, sim, por Deus, e é disso que eu tenho medo. E você também, se considerarmos a verdade. Eu não quero que a minha Tess acabe numa tumba de mármore porque eu o odeio. Ela o ama. E estou pensando nela!
— Não acredito nisso.
— E nem eu, por Deus! Mas Liza já me falou mais de meia dúzia de vezes a respeito de Tess. Ela disse que Tess está sonhando, suspirando e conversando a respeito do baile, mas só por causa de Culum. Tess já falou mais de dezesseis vezes ou mais a respeito do que Culum disse e Culum deixou de dizer, e o que ela disse a Culum, e como Culum estava ou deixava de estar, o que ele respondeu, até eu quase estourar. Ah, sim, ela o ama.
— Amor de adolescente. Não significa nada.
— Pelo Senhor Jesus Cristo, você é um homem duro de se convencer das coisas. Você está errado, Dirk. — Brock de repente se sentiu muito cansado e muito velho. Queria acabar com isso. — Se não fosse o baile, jamais teria acontecido. Você a escolheu para abrir a dança. Você a escolheu para ganhar o prêmio. Você...
— Eu não! A escolha foi de Zergeyev, não minha!
— Isso é verdade, por Deus?
— Sim.
Brock olhou demoradamente para Struan.
— Então talvez haja a mão de Deus nisto tudo. Tess não era a mais bem-vestida do baile. Eu sabia disso, todos sabiam disso, menos Culum e Tess. — Ele acabou seu canecão, e o depôs. — Eu lhe faço uma oferta: você não ama Culum como eu amo Tess, mas dê aos dois um bom vento, mar aberto e porto seguro, e eu farei a mesma coisa. O rapaz merece isso... ele salvou seu pescoço naquela questão do outeiro, porque, juro por Cristo que eu o teria estrangulado, por causa daquilo. Se é uma briga que você quer, você tem. Se eu conseguir um instrumento para quebrar você juro por Cristo que ainda quebro. Mas não aqueles dois. Vamos dar a eles bom vento, mar aberto e porto seguro, que Deus seja testemunha, hein?
Brock estendeu a mão.
A voz de Struan estava irritada.
— Vou apertar por Culum e Tess. Mas não por Gorth.
A maneira como Struan disse “Gorth” deu calafrios em Brock. Mas ele não retirou sua mão, embora soubesse que o acordo estava cheio de perigos. Apertaram-se as mãos, com firmeza.
— Vamos tomar mais uma bebida, para deixar as coisas bem firmadas — disse Brock — e então você pode ir para o inferno. — Ele pegou a sineta, tocou pela terceira vez e, quando ninguém apareceu, atirou-a contra a parede. — Lee Tang! — rugiu.
Sua voz teve um eco estranho.
Houve o som de passos a subir correndo a grande escadaria e o rosto assustado de um funcionário português apareceu.— Os criados todos desapareceram, senhor. Não consigo encontrá-los em parte alguma.
Struan correu para a janela. Os vendedores ambulantes, tendeiros, transeuntes e mendigos saíam silenciosamente da praça. Grupos de negociantes no jardim inglês estavam em pé, completamente imóveis, escutando e observando.
Struan virou-se e correu para os mosquetes e ele e Brock chegaram ao armeiro no mesmo instante.
— Mande todos descerem! — gritou Brock para o funcionário.
— Na minha feitoria, Tyler. Faça soar o alarma — disse Struan, e foi embora.
***
Dentro de uma hora, todos os negociantes e seus funcionários estavam aglomerados na feitoria de Struan e no jardim inglês, que ficava em frente. O destacamento de cinqüenta soldados estava armado, em posição de combate, junto ao portão. Seu oficial, o Capitão Oxford, mal completara vinte anos, e era um rapaz esguio e elegante, com um fino bigode louro.
Struan, Brock e Longstaff estavam no centro do jardim. Jeff Cooper e Zergeyev se encontravam próximos. A noite estava úmida, quente e pressaga.
— É melhor ordenar uma evacuação imediata, Excelência — disse Struan.
— Sim — concordou Brock.
— Não há necessidade de nos precipitarmos, cavalheiros — disse Longstaff. — Isto já aconteceu antes, não foi?
— Sim. Mas sempre tivemos algum tipo de advertência, da Co-hong ou dos mandarins. Jamais foi assim tão repentino. — Struan escutava atentamente os ruídos da noite, mas seus olhos contavam as lorchas ancoradas no cais. Bastantes para todos, pensou. — Não gosto do jeito da noite.
— Nem eu, por Deus — Brock cuspiu, furiosamente. — Vamos embarcar, eu digo.
— Não pensam, é claro, que haja algum perigo? — disse Longstaff.
— Não sei, Excelência. Mas algo me diz para sair daqui — disse Struan. — Ou, pelo menos, para embarcar. O comércio terminou, esta temporada, então podemos ir embora ou ficar, como preferirmos.
— Mas eles não ousariam nos atacar — zombou Longstaff. — Por que iriam fazer isso? O que ganhariam? As negociações estão indo tão bem. Ridículo.
— Estou apenas sugerindo que ponhamos em prática aquilo que está sempre dizendo, Excelência: é melhor estar preparado para qualquer eventualidade. Longstaff fez um sinal contrafeito para o oficial.
— Divida seus homens em três grupos. Guarde as entradas a leste e oeste e a Rua Hong. Impeça o acesso à praça até novas ordens.
— Sim, senhor.
Struan viu Culum, Horatio e Gorth juntos, perto de uma lanterna. Gorth explicava a Culum como carregar um mosquete, e o segundo ouvia atentamente. Gorth parecia forte, cheio de vitalidade e poderoso, perto de Culum. Struan desviou o olhar e viu Mauss nas sombras, conversando com um chinês alto a quem Struan jamais vira. Curioso, Struan se aproximou.
— Ouviu alguma coisa, Wolfgang?
— Não, Tai-Pan. Nenhum boato, nada. Horatio também não. Gott im Himmel, não entendo.
Struan examinava o chinês. O homem usava sujas roupas de camponês e parecia estar no início da casa dos trinta. Seus olhos tinham grossas pálpebras e eram penetrantes, e ele examinava Struan com igual curiosidade.
— Quem é ele?
— Hung Hsu Ch'un — disse Wolfgang, com muito orgulho. — Ele é Hakka. É batizado, Tai-Pan. Eu o batizei. É o melhor que eu já tive, Tai-Pan. Inteligente, estudioso e, entretanto, um camponês. Afinal, tenho um convertido, que espalhará a palavra de Deus... e me ajudará em Seu trabalho.
— É melhor dizer a ele que vá embora. Se houver problemas e os mandarins o pegarem conosco, você terá um convertido de menos.
— Eu já disse, mas ele respondeu: “Os caminhos do Senhor são estranhos e os homens de Deus não viram as costas para os pagãos.” Não se preocupe. Deus o protegerá e eu cuidarei dele com o risco de minha própria vida.
Struan fez um aceno de cabeça para o homem e voltou para junto de Longstaff e Brock.
— Eu vou para bordo — disse Brock — sem a menor dúvida.
— Tyler, mande Gorth e os homens dele reforçarem os soldados, ali. — Struan apontou para o centro da Rua Hong. — Eu irei para leste e darei cobertura a vocês, se houver problema. Você Pode recuar para cá.
— Cuide dos seus — disse Brock — que eu cuidarei dos meus. Você não é comandante-chefe, por Deus. — Fez sinal a Gorth. — Venha comigo. Almeida, você e o restante dos funcionários vão pegar os livros e se dirijam para bordo. — Ele e seu grupo saíram do jardim e atravessaram a praça.
— Culum!
— Sim, Tai-Pan?
— Limpe o cofre e vá para bordo da lorcha.
— Está bem. — Culum baixou a voz. — Falou com Brock?
— Sim. Agora não, rapaz. Depressa. Conversaremos mais tarde.
— Foi sim ou não?
Struan sentiu que os outros o observavam e, embora quisesse muito dizer a Culum o que fora conversado, o jardim não era o lugar para aquilo.
— Pela morte de Cristo, quer fazer o que eu lhe disse?
— Quero saber — disse Culum, com os olhos em brasa.
— E eu não estou preparado para, discutir seus problemas agora. Faça o que eu lhe disse! — Struan saiu correndo para a porta da frente. Jeff Cooper o deteve.
— Por que evacuar? Qual o motivo de toda essa pressa, Tai-Pan? — ele perguntou.
— Só cautela, Jeff. Você tem uma lorcha?
— Sim.
— Ficarei satisfeito em dar espaço a qualquer um de seus homens que não tenha onde ficar. — Struan olhou para Zergeyev. — A vista do rio é bastante agradável, Alteza, se quiser vir conosco.
— Você sempre corre, quando a praça se esvazia e os criados desaparecem?
— Só quando tenho vontade. — Struan voltou, abrindo caminho entre a massa de homens. — Vargas, traga os livros para bordo, e todos os funcionários. Armados.
— Sim, senhor.
Quando os outros negociantes viram que Struan e Brock se preparavam para uma rápida retirada, apressadamente voltaram para suas feitorias, reuniram seus livros, registros de embarques e tudo que representava prova de suas temporadas de comércio — e, portanto, de seu futuro — e começaram a colocar tudo em seus barcos. Havia poucos tesouros com que se preocupar, pois a maior parte do comércio era feita com letras de câmbio — Brock e Struan já haviam mandado suas barras de prata de volta para Hong Kong.
Longstaff limpou sua escrivaninha particular e colocou seu livro de código e papéis secretos na caixa de despachos, unindo-se em seguida a Zergeyev, no jardim.
— Já fez as malas, Alteza?
— Não há nada de importância. Acho tudo isso extraordinário. Ou há perigo, ou não há. Se há perigo, por que seus soldados não estão aqui? Se não há nenhum, por que correr?
Longstaff riu.
— A mentalidade dos pagãos, meu caro senhor, é muito diferente da civilizada. O Governo de Sua Majestade lida com ela há mais de um século. Então, aprendemos a tratar dos negócios chineses. Claro — acrescentou, secamente — não estamos preocupados com a conquista, apenas com o comércio pacífico. Muito embora consideremos que esta área se encontra sob total influência britânica.
***
Struan examinava seu cofre, verificando se todos os papéis vitais estavam a bordo.
— Já fiz isso — disse Culum, ao entrar, pesadamente, no aposento, e bater a porta.
— Agora, qual foi a resposta, por Deus?
— Você está noivo — disse Struan, brandamente — por Deus! Culum ficou estupefato demais para conseguir falar.
— Brock está encantado em tê-lo por genro. Você pode casar-se no próximo ano.
— Brock disse sim?
— Sim. Parabéns. — Struan calmamente examinou a gaveta de sua escrivaninha e a trancou, satisfeito por sua conversa com Brock ter decorrido como ele planejara.
— Quer dizer que ele diz sim? E você diz sim?
— Sim. Você terá de lhe fazer o pedido formalmente, mas ele disse que o aceitará.
Temos de discutir o dote e detalhes mas, segundo ele, você poderá casar no próximo ano. Culum abraçou impulsivamente os ombros de Struan.
— Ah, papai, obrigado, obrigado. — Ele não notou que dissera “papai”. Mas Struan, sim.
Uma explosão de disparos rompeu o silêncio da noite. Struan e Culum correram para a janela em tempo de ver os primeiros integrantes de uma turba, na entrada oeste da praça, cambaleando sob a fuzilaria. As centenas de pessoas atrás empurravam os que se encontravam na dianteira e os soldados eram pateticamente engolfados, enquanto a torrente de chineses, aos gritos, jorrava para a extremidade da praça.
A multidão carregava tochas, machados e lanças — e estandartes da Tríade. Eles se lançaram sobre a feitoria situada mais a oeste, que pertencia aos americanos. Uma tocha foi atirada através de uma janela e as portas foram forçadas. A multidão começou a pilhar, incendiar e saquear o prédio.
Struan agarrou seu mosquete.
— Nenhuma palavra a respeito de Tess... mantenha tudo em grande segredo, até encontrar com Brock. — Eles correram para o saguão. — Mande isso para o inferno, Vargas — gritou, ao vê-lo vergado ao peso de duplicatas de faturas. — Vamos para bordo!
Vargas saiu correndo.
A praça, em frente à feitoria de Struan, e o jardim estavam cheios de negociantes em plena fuga para as lorchas. Alguns dos soldados encontravam-se estacionados no muro do jardim, prontos para se entrincheirarem, como recurso final, e Struan uniu-se a eles, a fim de ajudar a cobrir a retirada. Pelo canto do olho, viu Culum correr de volta para a feitoria, mas se distraiu quando a vanguarda da segunda turba irrompeu na Rua Hog. Os soldados que protegiam a entrada de sua feitoria dispararam um tiro e se retiraram, em boa ordem, para o jardim inglês, onde assumiram suas posições junto aos outros soldados, na defesa dos últimos negociantes que corriam para as embarcações. Os que já se encontravam nos navios tinham mosquetes prontos, mas a multidão só se concentrava nas feitorias da extremidade da praça e, o que era espantoso, prestava pouca atenção aos negociantes.
Struan ficou aliviado ao ver Cooper e os americanos a bordo de uma das lorchas. Pensara que se encontravam ainda em sua feitoria.
— Puxa vida, olhem para aqueles malandros — disse Longstaff, sem se dirigir a ninguém em particular, enquanto permanecia em pé, fora do jardim, e espiava a multidão marchando, de porretes na mão. Sabia que isto significava o fim das negociações, a guerra era inevitável. — As forças de Sua Majestade logo colocariam um ponto final a esta loucura.
Ele voltou para o jardim, pisando forte, e encontrou Zergeyev observando o tumulto, com seus dois criados de libré armados e nervosos a seu lado.
— Talvez queira se unir a mim a bordo, Alteza — ele disse, falando alto por causa do barulho. Longstaff sabia que, se Zergeyev fosse ferido, isto representaria um incidente internacional, que daria ao tzar um pretexto perfeito para mandar belonaves e exércitos, em represália, às águas chinesas. E isto não vai acontecer, disse a si próprio.
— Só há uma maneira de lidar com essa carniça. Acha que sua democracia irá funcionar com eles?
— Claro. É preciso dar-lhes tempo, não é? — Longstaff respondeu, descontraidamente. — Vamos para bordo, agora. Temos sorte, a noite está amena.Um dos criados russos disse algo a Zergeyev, que simplesmente olhou para ele. O criado empalideceu e ficou em silêncio.
— Se quiser, Excelência. — disse Zergeyev, para não ser derrotado pelo óbvio desprezo de Longstaff diante da multidão. — Mas acho que prefiro esperar pelo Tai-Pan.
— Tirou sua caixa de rapé e ofereceu-o, ficando satisfeito ao ver que seus dedos não estavam tremendo.
— Obrigado. — Longstaff pegou um pouco de rapé. — Maldito negócio, não é? — Caminhou até Struan. — Que diabo fez tudo isso começar, Dirk?
— Foram os mandarins, com certeza. Nunca houve uma multidão como essa antes. Nunca. É melhor ir para bordo.
Struan observava a praça. Os últimos negociantes embarcavam. Só Brock não aparecia. Gorth e seus homens ainda estavam protegendo a porta de sua feitoria, do lado leste, e Struan ficou enfurecido ao ver Gorth disparar contra a multidão saqueadora, que não o ameaçava diretamente.
Ficou tentado a ordenar uma retirada imediata; e então, na confusão, erguer seu mosquete e matar Gorth. Sabia que ninguém notaria, em meio ao pandemônio. Isto iria poupar-lhe um assassinato, no futuro. Mas Struan não disparou. Queria o prazer de ver o terror nos olhos de Gorth, quando o matasse.
Aqueles que se encontravam nas lorchas desatracaram, apressadamente, e muitas das embarcações seguiram pela correnteza. Estranhamente, a multidão ainda os ignorava.
Jorrava fumaça da feitoria Cooper-Tillman. O prédio todo acendeu como um pavio, quando uma rajada de vento o varreu, e as chamas lamberam a noite.
Struan viu Brock sair correndo de sua feitoria, com um mosquete numa mão, uma espada na outra, os bolsos inchados de papéis. Seu principal funcionário, Almeida, corria em frente, na direção da embarcação, vergado ao peso dos livros, com Brock, Gorth e os outros homens a protegê-lo, e então outra multidão chegou à entrada leste, engolfando os soldados, e Struan percebeu que era hora de correr.
— Vamos para bordo! — rugiu, virando-se para o portão do jardim. Parou, no meio do caminho. Zergeyev estava encostado no muro do jardim, com uma pistola numa mão e sua espada na outra. Longstaff encontrava-se a seu lado.
— Está na hora de correr! — gritou, por sobre o tumulto. Zergeyev riu.
— Qual é o caminho?
Houve uma violenta explosão, quando as chamas chegaram ao arsenal americano, eo prédio se espatifou, a cuspir destroços inflamados sobre a multidão, matando alguns e mutilando outros. Bandeiras da Tríade cruzaram a Rua Hog, e a multidão enlouquecida que fazia a pilhagem seguiu-as, invadindo sistematicamente as feitorias situadas a leste. Struan atravessava o portão, quando se lembrou de Culum. Gritou para seus homens que dessem cobertura e voltou correndo.
— Culum! Culum!
Culum desceu velozmente as escadas.
— Esqueci uma coisa — disse, e disparou para a lorchas. Zergeyev e Longstaff ainda estavam à espera, com os homens junto ao portão. Sua fuga foi bloqueada por uma terceira multidão, que irrompeu através da praça e caiu sobre a feitoria ao lado da deles, Struan apontou para o muro, e o escalaram, Culum caiu, mas Struan agarrou-o e o ergueu, e correram juntos para os barcos, com Zergeyev e Longstaff bem próximos.
A multidão deixou-os passar mas, quando começaram a correr pela praça, deixando livre o caminho para a feitoria, os líderes invadiram o jardim. Muitos levaram tochas. E caíram sobre a Casa Nobre.
Agora jorravam chamas da maior parte das feitorias, um teto afundou, com um grande suspiro, e mais chamas caíram sobre milhares de pessoas na praça.
Brock se encontrava no convés superior de sua lorcha, exortando, com xingamentos, a tripulação. Todos estavam armados e seus canhões apontavam para terra.
Em pé, à popa, Gorth viu as amarras serem soltas, dianteiras e traseiras. Quando a lorcha começou a se afastar do cais, Gorth pegou um mosquete, fez pontaria para os chineses apinhados à entrada de sua feitoria, e puxou o gatilho. Viu um homem cair e sorriu, diabolicamente. Pegou outro mosquete; então viu Struan e os outros correndo para a lorcha — com os chineses rodopiando na frente e atrás. Certificou-se de que ninguém o observava e fez pontaria, cuidadosamente. Struan estava entre Culum e Zergeyev, Longstaff ao lado. Gorth puxou o gatilho.
Zergeyev girou sobre si mesmo e caiu no chão.
Gorth pegou outro mosquete, mas Brock subiu correndo para a popa.
— Vá para a frente e ocupe posição junto aos canhões dianteiros! — gritou. — Não haverá tiros, até eu ordenar! — Empurrou Gorth, rugindo para seus homens. — Virem esse timão, por Deus! Soltem as rizes, vamos seguir a todo pano!
Ele olhou em direção à terra e viu Struan e Longstaff curvados sobre Zergeyev, com Culum ao lado dele, e a multidão investindo em direção a eles. Agarrou o mosquete que Gorth deixara cair, fez pontaria e disparou. Um dos líderes tombou e a multidão hesitou.
Struan içou Zergeyev num ombro.
— Disparem por sobre as cabeças deles! — ordenou.
Seus homens deram a volta, colocando-se em posições protetoras, e dispararam um tiro à queima-roupa. Os chineses que estavam à frente recuaram e os que se encontravam atrás fizeram pressão para a frente. A confusão histérica que se seguiu deu a Struan e aos seus homens tempo suficiente para chegarem ao barco.
Mauss estava esperando no cais, junto à lorcha, com o estranho convertido chinês nas imediações. Ambos se achavam armados. Mauss tinha uma Bíblia numa das mãos e uma espada na outra, e gritava:
— Bendito seja o Senhor, que Ele perdoe esses pobres pecadores. — Perfurava o ar com a lâmina e a multidão evitava-o.
Quando estavam todos a bordo e a lorcha no meio das águas, olharam para trás.
Toda a Colônia estava em chamas. As labaredas dançantes, a fumaça aos jorros e os
gritos diabólicos, tudo se misturava num verdadeiro inferno. Longstaff encontrava-se ajoelhado junto a Zergeyev, este deitado no tombadilho. Struan correu para eles.
— Vá para a frente! — rugiu para Mauss. — Fique de vigia!
Zergeyev estava branco de susto e segurava o lado direito da virilha. Sangue gotejava sob sua mão. Os criados gemiam de terror. Struan empurrou-os, para tirá-los do caminho, e rasgou a frente das calças de Zergeyev. Cortou a perna da calça. A bala de mosquete cortara fundo o estômago, obliquamente, descendo até uma fração de polegada acima de seu sexo, e depois entrara na coxa direita. O sangue escorria muito, mas não jorrava. Struan agradeceu a Deus porque a bala não havia perfurado o estômago, como pensara. Virou Zergeyev e o russo sufocou um gemido. A parte posterior de sua coxa estava ferida e sangrenta, no ponto em que a bala saíra. Struan, cautelosamente, sondou a ferida e tirou um pequeno pedaço de osso quebrado.
— Pegue lençóis, conhaque e um braseiro — gritou Struan para um marinheiro. — Alteza, pode movimentar sua perna direita?
Zergeyev mudou-a ligeiramente de posição e piscou de dor, mas a perna se moveu.
— Seu quadril está bem, eu acho, rapaz. Fique quieto, agora.
Quando os cobertores foram trazidos, envolveu neles Zergeyev e acomodou-o mais confortavelmente no assento atrás do timoneiro, dando-lhe, em seguida, conhaque.Quando o fogareiro chegou, Struan expôs a ferida ao ar e inundou-a com conhaque. Aqueceu sua faca nos carvões do braseiro.
— Segure-o, Will! Culum, ajude aqui. — Eles se ajoelharam, Longstaff junto aos pés, e Culum à cabeça.
Struan colocou a faca em brasa na ferida dianteira, o conhaque se inflamou e Zergeyev desmaiou. Struan cauterizou a ferida da frente e fez nela uma sondagem profunda e rápida, querendo agir bem rápido, agora que Zergeyev estava inconsciente. Ele
o virou e fez nova sondagem. O.cheiro de carne queimada encheu o ar. Longstaff voltouse para o lado e vomitou, mas Culum resistiu e ajudou, até Longstaff tornar à posição anterior.
Struan tornou a aquecer a faca e despejou mais conhaque sobre o ferimento posterior, cauterizando-o em seguida de maneira profunda e completa. Sua cabeça doía com o mau cheiro e o suor escorria-lhe pelo queixo, mas suas mãos estavam firmes e ele sabia que, se não realizasse a queima com cuidado, o ferimento apodreceria e Zergeyev, certamente, morreria. Com tal ferida, nove entre dez homens morreriam.
Então, ele terminou sua tarefa.
Pôs ataduras em Zergeyev e lavou a própria boca com conhaque; seus eflúvios afastaram o cheiro de sangue e de carne queimada. Então ele deu grandes goles e examinou Zergeyev. Seu rosto estava acinzentado e lívido.
— Agora, ele está entregue ao seu próprio pagode — disse. — Você está bem, Culum?
— Sim. Acho que sim.
— Desça. Providencie rum quente para todos os homens. Verifique os abastecimentos. Você é o número dois a bordo, agora. Distribua tarefas para todos.
Culum saiu da popa.
Os dois criados russos estavam ajoelhados ao lado de Zergeyev. Um deles tocou
Struan e falou entrecortadamente, tudo indicava que estava lhe agradecendo. Struan lhes fez sinal para que ficassem junto de seu amo. Ele se espichou, cansadamente, colocou a mão no ombro de Longstaff, afastando-o, e se curvou sobre o ouvido de Longstaff.
— Viu mosquetes entre os chineses? Longstaff abanou a cabeça.
— Nenhum.
— E nem eu — disse Struan.
— Havia armas disparando por toda parte. — Longstaff estava pálido e muito preocupado. — Um desses acidentes infelizes. Struan nada disse, por um momento.
— Se ele morrer, haverá grandes problemas, hein?
— Vamos esperar que não morra, Dirk. — Longstaff mordeu o lábio. — Terei de avisar imediatamente do acidente o Ministro de Relações Exteriores. Vou ter de abrir um inquérito.
— Sim.
Longstaff olhou para o rosto cinzento como o de um cadáver. A respiração de Zergeyev era fraca.
— Que coisa mais aborrecida, não é?
— Pela posição do ferimento, e de onde ele estava quando caiu, não há dúvida de que a bala partiu de um dos nossos.
— Foi um desses infelizes acidentes.
— Sim. Mas a bala pode ter sido disparada com pontaria.
— Impossível. Quem iria querer matá-lo?
— Quem iria querer matar você? Ou Culum? Ou talvez eu? Estávamos todos muito próximos.
— Quem?
— Tenho uma dúzia de inimigos.
— Brock não mataria você a sangue-frio.
— Eu nunca disse isso. Ofereça uma recompensa a quem der informações. Alguém pode ter visto algo.
Juntos, observaram a Colônia. Estava bem distante, à popa, agora — apenas chamas e fumaça sobre os telhados de Cantão.
— É uma loucura uma pilhagem assim. Jamais aconteceu antes. Por que eles fariam isso? Por quê? — perguntou Longstaff.
— Não sei.
— Logo que chegarmos a Hong Kong, iremos para o norte... desta vez para os portões de Pequim, por Deus. O imperador vai lamentar muito ter ordenado isso.
— Sim. Mas, primeiro, organize um ataque imediato contra Cantão.
— Mas é uma perda de tempo, não é?
— Ataque ainda esta semana. Você não terá tempo de comunicar o fato ao nosso país. Sitie Cantão, outra vez. Seis milhões de taéis de resgate.
— Por quê?
— Você precisa de um mês ou mais para aprontar a frota, a fim de atacar o norte. O tempo não está bom ainda. Terá de esperar até os reforços chegarem. Quando deverão estar aqui?
— Dentro de um mês, ou de seis semanas.
— Ótimo. — O rosto de Struan se endureceu. — Enquanto isso, a Co-hong terá de encontrar seis milhões de taéis. Isto lhes ensinará a não nos fazerem advertências, por Deus! Você terá de fincar a bandeira aqui, antes de ir para o norte, senão perderemos prestígio. Se eles queimam a Colônia e tudo fica por isso mesmo jamais teremos segurança, no futuro. Ordene ao Nemesis que permaneça ao largo da cidade. Um ultimato de doze horas, senão você deixará Cantão em ruínas.
Zergeyev gemeu, e Struan se aproximou dele. O russo ainda estava em estado de choque, quase inconsciente.
Então Struan notou o chinês convertido de Mauss observando-o. O homem estava em pé no convés superior, ao lado da amurada a estibordo. Ele fez o sinal-da-cruz sobre Struan e fechou os olhos, começando silenciosamente a rezar.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Struan pulou do escaler sobre o novo cais da companhia, na Cidade da Rainha, e correu sobre ele em direção ao grande prédio de três andares, quase pronto. Sua coxeadura estava mais pronunciada, sobre o céu branco de calor. O Leão e o Dragão drapejavam no alto do mastro.
Notou que muitos prédios e casas menores estavam prontos, por todo Vale Feliz, e começara a edificação da igreja, sobre o outeiro; o ancoradouro de Brock, do outro lado da baía, estava concluído e a feitoria adjacente quase pronta. Outros prédios e residências ainda se encontravam envoltos por altos andaimes de bambu. A Estrada da Rainha era pavimentada com pedras.
Mas havia muito poucos cules trabalhando, embora a tarde mal começasse. O dia estava quente e muito úmido. Um agradável vento leste principiava a tocar o vale, levemente.
Entrou no saguão principal do prédio com a camisa colada às costas. Um funcionário português suado ergueu os olhos, espantado.
— Madre de Deus, Sr. Struan! Bom-dia, senhor. Não o esperávamos.
— Onde está o Sr. Robb?
— Lá em cima, senhor, mas lá...
Mas Struan já subia a escada correndo. O corredor do primeiro andar levava para norte, leste e oeste, dentro das profundezas do edifício. Muitas janelas davam para o mar e outras para a terra. A frota estava silenciosamente ancorada, e sua lorcha fora a primeira a voltar de Cantão.
Virou-se para leste e passou pela sala de jantar ainda não finada, com o ruído de seus passos provocando um efêmero eco na pedra não carpetada. Bateu numa porta e abriu-a.
A porta dava para uma espaçosa suíte. Estava apenas meio mobiliada — cadeiras, sofás, chão de pedra e pinturas de Quance na parede, belas tapeçarias, uma lareira vazia. Sarah estava sentada numa cadeira de encosto alto, junto a uma das janelas, com um leque de treliça de bambu na mão. Olhava para ele.
— Olá, Sarah.
— Olá, Dirk.
— Como vai Karen?
— Karen está morta.
Os olhos de Sarah eram azul-pálido e firmes, seu rosto estava corado e lustroso de suor. Seu cabelo tinha mechas brancas em torno das feições envelhecidas.
— Sinto muito, sinto muito — ele disse.
Sarah se abanava, distraidamente. A leve brisa causada pelo leque impeliu sobre seu rosto alguns fios de cabelo liso, mas ela não os afastou.
— Quando aconteceu? — ele perguntou.
— Há três dias. Talvez dois — ela disse, com a voz impassível. — Eu não sei.
O leque continuava a se movimentar, para adiante e para trás, como se tivesse mobilidade própria.
1.— E o menino?
2.— Ainda vivo. Lochlin ainda está vivo.
3.Struan limpou uma gotícula de suor do queixo, com os dedos.
— Somos os primeiros a voltar de Cantão. Incendiaram a Colônia. Recebemos a carta de Robb pouco antes de partirmos. Acabei de chegar.
— Eu vi seu escaler chegar à praia — ela disse.
— Onde está Robb? — ele perguntou. Ela fez sinal com o leque para uma porta e ele observou a magreza de seus pulsos estriados de veias azuis. Struan entrou no quarto de dormir. O aposento era amplo e a cama de armação, com dossel, havia sido feita com um desenho especial.
Robb jazia na cama, com os olhos fechados, o rosto cinzento e emaciado sobre o travesseiro manchado de suor.
— Robb? — chamou Struan. Mas seus olhos não se abriram, e ele tinha os lábios entreabertos. A alma de Struan se contorceu.
Tocou o rosto do irmão. Frio. A frieza da morte.
Um cão latiu próximo, e uma mosca adejou de encontro á vidraça. Struan virou-se e saiu do quarto, fechando silenciosamente .a porta. Sarah ainda estava sentada na cadeira de encosto alto. O leque se movimentava, lentamente. Para adiante e para trás. Para adiante e para trás. Ele a odiou, por não ter-lhe dito.
— Robb morreu há uma. hora — ela falou. — Há duas ou três horas, ou uma hora. Não me lembro. Antes de morrer, ele me deu um recado para você. Foi hoje de manhã, eu acho. Talvez de noite. Acho que foi esta manhã. Robb falou: “Diga a Dirk que eu nunca quis ser Tai-Pan.”
— Farei os acertos necessários, Sarah. É melhor você e os meninos irem para bordo do Resting Cloud.
— Eu fechei os olhos dele. E fechei os olhos de Karen. Quem vai fechar seus olhos, Tai-Pan? E quem fechará os meus?
***
Ele tomou as providências e, depois, subiu a pequena elevação que conduzia à sua casa. Estava pensando no primeiro dia em que Robb chegara a Macau.
— Dirk! Todos os seus problemas acabaram, eu cheguei! — dissera Robb, com seu maravilhoso sorriso. — Vamos destruir a Companhia das índias Orientais e esmagar Brock. Seremos verdadeiros nobres e iniciaremos uma dinastia que governará a Ásia para sempre! Há uma moça com quem vou casar! Sarah McGlenn. Tem quinze anos agora e me foi prometida. Vamos nos casar dentro de dois anos.
Diga-me, meu Deus, perguntou Struan, o que fizemos de errado? Como aconteceu? Por que as pessoas mudam? Por que as brigas, a violência, o ódio e a dor nascem da doçura, juventude, ternura e amor? E por quê? Assim acontece sempre. Com Sarah. Com Ronalda. E será a mesma coisa com Culum e Tess. Por quê?
Ele estava no portão do muro alto que rodeava sua casa. Abriu-o e olhou para a casa. Tudo estava silencioso: agourentamente silencioso. A palavra “malária” passou-lhe pela mente. Um vento leve mexeu com os altos bambus. O jardim estava bem plantado, agora: flores, arbustos, com abelhas em torno.
Subiu as escadas e abriu a porta. Mas não entrou logo. Ficou à escuta, no degrau de entrada. Não havia nenhuma risada de boas-vindas, e nem se ouvia a abafada ladainha da conversa dos criados. A casa parecia vazia.
Ele olhou para o barômetro — 29.8, bom tempo. Seguiu lentamente pelo corredor, o ar estranhamente carregado de incenso. Notou poeira onde não havia nenhuma, antes. O quarto das crianças se encontrava vazio. Nem camas e nem brinquedos.
Então, ele a viu através das janelas. Ela vinha do lado escondido do jardim, com flores cortadas na mão e uma sombrinha alaranjada a lhe proteger o rosto. Logo ele estava do lado de fora, e a apertava nos braços.
— Pelo sangue de Cristo, Tai-Pan, você esmagou minhas flores. — May-may depôs as flores e passou-lhe os braços pelo pescoço. — De onde você vem, hein? Tai-Pan, você está me apertando com força demais! Por favor. Por que está com uma cara tão estranha?
Ele a carregou e sentou-a num banco, ao sol. Ela ficou satisfeita em seus braços, feliz com a força dele e com o seu alívio ao vê-la. Sorriu para ele.
1.— Ah, sim. Você sentiu uma falta louca de mim, hein?
2.— Sim. Senti uma falta louca de você.
— Ótimo. Por que está infeliz? E por que, quando vejo você, você está sempre como quem viu um fantasma?
— Problemas, May-may. E pensei que tinha perdido você. Onde estão as crianças?
— Em Macau. Mandei-as para a casa de Chen Sheng, a fim de que a Irmã Mais Velha tomasse conta delas. Quando a febre começou, achei que isto seria aconselhável. Mandei-as com Marrr-rry Sinclair. Por que pensou que me tinha perdido, hein?
— Por nada. Quando as crianças partiram?
— Há uma semana. Marrr-rry ia tomar conta delas. Ela volta amanhã.
— Onde estão Ah Sam e Lim Din?
— Mandei os dois comprarem comida. Quando vimos sua lorcha, eu pensei, ayeee yah, a casa está terrivelmente suja e sem comidas, e então mandei que limpassem a casa depressa e fossem comprar comida, não se preocupe. — Ela atirou a cabeça para Irás. — Aqueles imprestáveis preguiçosos precisam de uma surra. Estou muito feliz por você ter voltado, Tai-Pan, ah, sim. O preço de tudo aumentou e não tenho dinheiro, então você precisa me dar mais, porque sustento todo clã de Lim Din e de Ah Sam. Ah, não me incomodo com a família deles, mas o clã inteiro? Mil vezes não, por Deus! Somos ricos, sim, mas não tão ricos assim, e precisamos guardar nossa riqueza, senão logo ficaremos sem tostão! — Ela franziu a testa, observando-o. — Que problemas?
— Robb morreu. E a pequena Karen.
Os olhos dela se arregalaram e sua felicidade acabou.
— Eu sabia a respeito da menina. Mas não do Irmão Robb Ouvi dizer que ele estava com febre... há três ou quatro dias. Mas não que tinha morrido. Quando aconteceu isso?
— Há algumas horas.
— É um terrível pagode. É melhor partirmos deste maldito vale.
— Não é maldito, garota. Mas, realmente, aqui existe a febre.
— Sim. E me perdoe por falar nisso outra vez, mas não esqueça que vivemos no globo ocular do dragão. — Seus olhos se reviraram para o alto e ela proferiu uma torrente de súplicas em cantonês e mandarim. Quando se acalmou outra vez, disse: -. Não se esqueça de que o nosso feng-shui aqui é horroroso e terrível.
Struan tinha de enfrentar o dilema que o sacudia há semanas. Se saísse do vale, todos sairiam; se ficasse, May-may poderia pegar a febre e morrer e ele jamais se arriscaria a isto. Se ele ficasse e ela fosse para Macau, morreriam outros, que poderiam ser poupados. Como salvar a todos da febre e, ao mesmo tempo, preservar a Cidade da Rainha e Hong Kong?
1.— Tai-Pan, ouvi dizer que você teve muitos problemas em Cantão.
2.Ele lhe contou o que acontecera.
3.— Que loucura. Por que a pilhagem, hein?
4.— Sim.
— Mas foi muito sábio não incendiarem a Colônia antes de terminada a temporada de comércio. Muito aconselhável. O que acontecerá agora? Vocês vão atacar Pequim?
— Primeiro, esmagaremos Cantão. Depois, Pequim.
2.— Por que Cantão, Tai-Pan? Foi o imperador, não foram eles. Apenas cumprem ordens.
3.— Sim. Mas deveriam ter-nos avisado de que havia problemas. Pagarão seis milhões de resgate, e depressa, senão ficarão sem a cidade, por Deus! Primeiro Cantão, depois o norte.
A testa de May-may se franziu mais. Sabia que deveria mandar um aviso ao seu avô, Jin-qua, a fim de preveni-lo. Porque a Co-hong deveria reunir toda a soma do resgate e, se Jin-qua não estivesse preparado, ficaria arruinado. Ela jamais mandara qualquer informação para seu avô, antes, e nunca usara seus conhecimentos clandestinamente. Mas, desta vez, sentiu que deveria. E o pensamento de que faria parte de uma intriga excitou-a muito. Afinal, disse a si própria, sem intrigas e sem segredos perde-se grande parte da alegria de viver. Fica imaginando por que aquela multidão saqueou, quando não havia necessidade de saquear. Que estupidez.— Prantearemos durante cem dias seu irmão? — ela perguntou.
— Não posso prantear tanto assim, garota — ele disse, exausto.
1.— Cem dias é o costume. Combinarei um funeral chinês com Gordon Chen. Cinqüenta pranteadores profissionais. Com tambores, matracas e bandeiras. Tio Robb terá um funeral lembrado durante anos. Não pouparemos gastos para isso. Então você ficará satisfeito, e os deuses ficarão satisfeitos.
2.— Não podemos fazer uma coisa dessas — disse ele, chocado. — Isto não é um funeral chinês. Não podemos contratar pranteadores profissionais!
— Então, como você honrará publicamente seu amado irmão, e lhe dará prestígio diante dos moradores de Hong Kong? Claro que deve haver pranteadores. Não somos a Casa Nobre? Podemos perder prestígio diante do mais insignificante cule? Além de ser uma inexplicável falta de educação e mau pagode, você simplesmente não pode fazer uma coisa dessas!
— Não é nosso costume, May-may. Fazemos as coisas de maneira diferente.
3.— Claro — ela disse, alegremente. — É justamente isso que eu quero dizer, Tai-Pan. Você cuida de seu prestígio com os bárbaros, mas eu farei o mesmo com meu povo. Prantearei em particular durante cem dias, pois claro que não posso ir a público, no seu funeral ou no funeral chinês. Vou me vestir com roupas brancas, que é a cor do luto. Mandarei fazer uma placa, como de hábito, e nos prosternaremos sobre ela, todas as noites. Então, no final dos cem dias, queimaremos a placa, como de hábito, e a alma do Irmão Robb renascerá em segurança, como de hábito. É pagode, Tai-Pan. Os deuses precisam disso, pode ter certeza.
Mas ele não a escutava. Estava dando tratos à bola, em busca de uma solução — como combater a febre, como manter o vale e como proteger Hong Kong?
CAPÍTULO VINTE E OITO
Três dias depois, Robb foi enterrado, ao lado do túmulo de Karen. Wolfgang Mauss oficiou o serviço na igreja sem teto, sob um céu sem nuvens.Todos os tai-pans estavam presentes, exceto Wilf Tillman, que ainda se encontrava no pontão da Cooper-Tillman,
mais morto do que vivo, com a febre do Vale Feliz. Longstaff não foi ao serviço fúnebre.
Ele, o general e o almirante já haviam navegado para Cantão — com a frota, os navios para transporte de tropas e todos os soldados aptos. A disenteria dizimara suas fileiras. O
H.M.S Nemesis fora mandado antes.
Sarah estava sentada no primeiro banco de igreja falquejado Vestia-se de negro e seu véu era negro. Shevaun também estava de negro. Assim como Mary e Liza, Tess e as outras. Os homens também vestiam roupas escuras e suavam profusamente.
Struan levantou-se para ler o sermão e Shevaun fitou-o, intencionalmente. Ela lhe dera os pêsames na véspera, e sabia que nada mais havia a ser feito, agora. Dentro de uma ou duas semanas, tudo estaria bem outra vez. Agora que Robb morrera, ela teria de rever seus planos. Planejara casar-se com Struan rapidamente, e depois levá-lo embora: primeiro a Washington, para encontrar pessoas de grande importância, e depois a Londres, ao Parlamento — mas com a força somada a laços próximos com os americanos. Mais tarde, de volta a Washington, embaixador. Mas, agora, o plano seria retardado, porque ela sabia que ele não poderia partir, até Culum estar pronto para assumir.
Simultaneamente ao silencioso e sombrio funeral em que todos se vestiam de negro, no Vale Feliz, e do cortejo ao longo da Estrada da Rainha até o cemitério, uma ensurdecedora procissão fúnebre chinesa, todos com roupas brancas, percorria as ruelas do Tai Ping Shan, gritando aos deuses sobre a grande perda da Casa Nobre, berrando, gemendo, lamentando-se, com seus integrantes a rasgarem as próprias roupas e batucarem tambores.
E os moradores do Tai Ping Shan ficaram muito impressionados com as maneiras do Tai-Pan e a generosidade de sua casa. A estrutura de Gordon Chen aumentou, com o prestígio ganho por seu pai, pois nenhum dos habitantes do morro teria adivinhado que o Tai-Pan honraria assim os seus deuses e os seus costumes. Não que Gordon Chen precisasse de um aumento de prestígio. Já não era o maior proprietário de terras de Hong Kong, e os tentáculos de seu negócio não se estendiam em todas as direções? Já não possuía a maior parte dos prédios? E não explorava o negócio das liteiras? E três lavanderias? E catorze sampanas de pesca? Duas farmácias? Seis restaurantes? Dezenove bancas de engraxates? E lojas de roupas e sapatarias e oficinas para a fabricação de facas? E não possuía cinqüenta e um por cento da primeira fábrica de jóias com peritos entalhadores de Kwangtung, tanto trabalhando em metal como em madeira?Tudo isso além de seu grande negócio de agiotagem. Ayeee yah, e que agiota! Era quase inacreditável, mas ele era tão rico a ponto de emprestar dinheiro a um e meio por cento menos do que o habitual, tendo assim monopolizado o negócio. E se dizia que era sócio do próprio Tai-Pan e, com a morte de seu tio bárbaro, novas imensas riquezas iriam para suas mãos.
Entre os Tríades, Gordon Chen não precisava de nada para melhorar sua posição. Sabiam quem ele era e o obedeciam sem questionar. Mesmo assim, os Tríades que estavam na indústria da construção, no negócio da estiva, da limpeza e no recolhimento noturno de esterco humano, bem como nos negócios da pesca, cozinha e venda ambulante, lavanderias, criadagem e cules – eles também precisavam tomar dinheiro emprestado, de vez em quando, e necessitavam de casas onde morar; conseqüentemente, também ficaram cheios de dor com o fato do tio bárbaro de seu líder ter morrido e, com boa vontade, pagaram uma semana extra de impostos. Sabiam que era aconselhável ficar do lado do Tai-Pan do Tai Ping Shan; sabiam que parte do dinheiro era para pagar oferendas aos deuses — porquinhos de leite, pastéis, carne doce, carne cozida em inúmeras variedades, sampanas cheias de lagostas, camarões grandes, peixe e caranguejos, além de pães e montanhas de arroz; sabiam que, logo após os deuses terem benignamente olhado tal magnificência, as ofertas seriam distribuídas e eles próprios se banqueteariam, para satisfação até mesmo dos mais famintos.
Então, todas as pessoas gemiam alto, com os pranteadores, gozando muitíssimo o drama da morte, abençoando seu pagode por estarem vivos para prantear, para comer, para fazer amor, para ganhar dinheiro, para se tornar, talvez — com pagode — igualmente ricos e assim terem um prestígio tão colossal na morte, perante os seus vizinhos.
Gordon Chen acompanhou o cortejo. Estava muito solene e rasgou as roupas — mas com grande dignidade — e lamentou bem alto, perante os deuses, a grande perda que sofrera. O Rei dos Mendigos o acompanhou e, assim, ambos ganharam prestígio. E os deuses sorriram.
***
Quando o túmulo estava cheio com a seca terra estéril, Struan acompanhou Sarah ao escaler.
— Irei a bordo esta noite — disse.
Sem responder, Sarah sentou-se à popa do bote e virou as costas à ilha.
Quando o cúter ganhava distância, Struan dirigiu-se para o Vale Feliz.
Mendigos e cules com liteiras infestavam a rodovia. Mas não incomodaram o Tai-Pan; ele continuara a pagar o imposto mensal ao Rei dos Mendigos. Struan viu Culum sentado ao lado de Tess, no meio de todo o clã de Brock. Ele se aproximou do grupo e tirou o chapéu, cortesmente, para as senhoras. Olhou para Culum.
— Quer me acompanhar, Culum?
— Decerto — disse Culum.
Ele não falara com o pai desde a volta dos dois — inclusive a respeito de coisas importantes, como a maneira pela qual a morte de tio Robb afetaria seus planos, ou quando o noivado seria oficializado. Não era mais segredo que ele pedira, formalmente, a mão de Tess, em Whampoa, após a retirada de Cantão, e fora mal-humoradamente aceito. Também não era segredo que, por causa da repentina tragédia, os planos para o anúncio do compromisso haviam sido adiados.
Struan tirou o chapéu outra vez e se afastou, com Culum a seu lado.
Caminharam silenciosamente pela estrada. Outros que os haviam visto com os Brocks abanaram a cabeça, pasmados, mais uma vez, por Brock ter concordado com um casamento que, seguramente, era uma manobra do Tai-Pan.
— Bom-dia, Mary — disse Struan, quando Mary Sinclair se aproximou, tendo ao lado Glessing e Horatio. Parecia exausta e adoentada.
— Bom-dia, Tai Pan. Será que eu poderia fazer-lhe uma rápida visita, esta tarde? — ela perguntou. — Poderia dar-me alguns minutos de seu tempo?
— Sim, naturalmente. Por volta do entardecer? Em minha casa?
— Obrigada. Não posso dizer-lhe quanto senti... senti a perda que sofreu.
— Sim — disse Glessing. — Foi uma terrível falta de sorte. De algumas semanas para cá, ele fora ficando cada vez mais impressionado com Struan. Diabo, uma pessoa que pertencera à Marinha Real, que carregara pólvora em Trafalgar, merecia o maior respeito, por Deus! Quando Culum lhe contara, ele imediatamente indagou: “Em que navio?” E ficou espantado quando Culum disse: “Não sei, não perguntei.” Imaginou se o Tai-Pan não servira com seu pai. A pergunta lhe veio à ponta da língua, mas ele não podia fazê-la, porque Culum lhe contara o fato em particular.
— Sinto muitíssimo, Tai-Pan.
— Obrigado. Como vão as coisas com você?
— Muito bem, obrigado. Há um trabalhão dos diabos para fazer, isto é verdade.
— Talvez fosse uma boa idéia colocar âncoras de tempestade para água profunda, nas naus capitanias. Glessing ficou de repente atento.
— Você pressente uma tempestade?
— Não. Mas é temporada de tufões. Algumas vezes chegam cedo, outras vezes tarde.
— Obrigado pela sugestão. Vou mandar começar a fazer isso, esta tarde.
Muito bem pensado, disse Glessing a si mesmo. O homem suporta bem tanta tragédia. E ele é tão esperto quanto o melhor dos marinheiros que já navegou pelos mares afora. Mary pensa maravilhas a respeito dele, e a opinião dela é valiosa, por Júpiter! E, por causa dele, a frota atacará Cantão, por Deus! Poucos dias após aqueles demônios ousarem incendiar a Colônia. Maldito seja o almirante! Por que aquele patife não me manda de volta para meu navio? Fico imaginando se eu ousaria pedir ao Tai-Pan que interferisse a meu favor.
— Vai unir-se à frota?
— Não sei. — Struan olhou para Horatio. — Quando você voltou, rapaz?
— A noite passada, Tai-Pan. Sua Excelência me mandou de volta, a fim de representá-lo no funeral. Tenho a honra de lhe dar os meus pêsames. Voltarei com a maré.
— Foi gentil da parte dele, e é uma gentileza sua. Cumprimente-o em meu nome.
— Ele estava muito ansioso para descobrir como está Sua Alteza.
— Passa razoavelmente. Encontra-se a bordo do China Cloud. Por que não lhe faz uma visita? Acho que tem o quadril lesado, mas não se pode afirmar isto, por enquanto. Verei você mais tarde, Mary.
Ele tirou o chapéu outra vez, e partiu com Culum. Struan ficou pensando em Mary. Suponho que ela quer falar-me a respeito das crianças. Espero que não haja nada errado. O que há com Horatio e Glessing? Parecem tensos e agitados.
***
— Posso visitá-la no hotel, Srta. Sinclair? — Glessing dizia. — Talvez queiram ambos almoçar comigo no cais.
— Gostaria de fazer isso, querido George — disse Mary — Mas Horatio não poderá nos acompanhar. — Antes de Horatio poder dizer qualquer coisa, acrescentou, tranqüilamente: — Meu querido irmão me disse que você lhe pediu formalmente minha mão em casamento.
Glessing ficou espantado.
— Ah, sim, é verdade. Espero... bom, sim.
— Eu gostaria de lhe dizer que aceito.
— Por Júpiter! — Glessing pegou-lhe a mão e a beijou. — Juro por Deus, Mary, por Lord Harry, por Júpiter! Juro... — Ele se virou para agradecer a Horatio. Sua alegria desapareceu — Pela morte de Cristo, o que há?
Os olhos de Horatio estavam malevolamente fixos em Mary Ele forçou um sorriso amarelo, mas não afastou os olhos da irmã
— Nada.
— Você não aprova? — a voz de Glessing estava tensa.
— Ah, sim, ele aprova, não é, querido irmão? — Mary interveio.
— É que... você é muito... muito jovem e...
— Mas aprova, não? E nos casaremos três dias antes do Natal. Será que isso lhe convém, George? Glessing ficou gelado, com a evidente animosidade entre irmão e irmã.
— Não é satisfatório, Horatio?
— Tenho certeza de que o Tai-Pan apreciará sua aprovação, Horatio.
Mary ficou satisfeita, por ter decidido casar com George. Agora, ela teria de se livrar do bebê. Se May-may não pudesse ajudar, precisaria pedir ao Tai-Pan o favor que ele lhe devia.
— Aceito, George — ela disse, num desafio, escondendo seu medo.
— Malditos sejam ambos! — Horatio se afastou.
— Em nome de Deus, o que há com ele? Isto significa que ele aprova? Ou não? — George perguntou, irado.
— Ele aprova, querido George. Não se preocupe. E, por favor, perdoe-me por ser tão brusca, mas eu queria que isto fosse dito agora.
— Não, Mary. Sinto muito. Não tinha idéia de que seu irmão fosse tão contrário. Se eu tivesse pensado, por um momento... bom, não teria sido tão precipitado.
Sua alegria por ser aceito foi sufocada pela dor que viu no rosto de Mary. E por sua fúria, sempre presente, de não se encontrar com a frota. Maldito almirante! Maldito seja este cargo em terra e maldito seja Sinclair. Como diabo posso um dia ter gostado daquele filho da mãe! Como ousou ele ser tão rude?
— Estou tão satisfeita por você se encontrar aqui, George — ele a ouviu dizer.Viu-a enxugar algumas lágrimas e sua felicidade voltou. Sem cargo em terra, não poderia jamais passar tanto tempo com Mary — Abençoou sua sorte. Ela o aceitara, e isto era tudo que importava. Deu-lhe o braço.
— Não chore mais — disse. — Este é o dia mais feliz de minha vida, vamos almoçar e comemorar. Jantaremos juntos esta noite... e almoçaremos e jantaremos juntos sempre, de agora em diante. Faremos a comunicação no próximo mês. De agora em diante, eu cuidarei de você. Se alguém a perturbar, terá de me dar satisfações, por Deus!
***
Struan e Culum bebiam conhaque no escritório situado na feitoria. A sala era grande, com chão de pedra. Havia nela uma escrivaninha lustrosa de teca e lanternas de navio, um barômetro num balanceiro, perto da porta de teca. Pinturas de Quance nas paredes, cadeiras e sofá de couro bem encerados, com um cheiro bom.
À janela, Struan observava o porto. A calma extensão parecia vazia, sem a frota e os navios para transporte de soldados. Dos clíperes, só permaneciam o China Cloud e o White Witch. Havia poucos navios mercantes que ainda não tinham encontrado carga completa para a Inglaterra, e vários navios em viagem de volta, recém-chegados com mercadorias encomendadas no ano passado.
Culum examinava a pintura sobre o consolo da lareira. Era o retrato de uma barqueira chinesa, usando casaco; sua beleza surpreendia. Carregava uma cesta sob o braço, e sorria.
Culum ficou imaginando se o boato era verdadeiro — aquela era a amante de seu pai, que vivia em sua casa, a algumas centenas de metros de distância.
— Não posso ir embora agora, como planejamos. Decidi ficar — disse Struan, sem
se virar da janela. Culum sentiu uma pontada de desapontamento.
— Eu poderia administrar as coisas. Tenho certeza de que poderia.
— Sim. No devido tempo.
Culum ficou maravilhado, outra vez, com a sabedoria de seu amigo Gorth. A noite passada, no tombadilho do White Witch, Gorth dissera:
— Tome nota, meu amigo. Ele jamais partirá, agora. Aposto o que você quiser, mas ele chamará você e lhe dirá que não vai embora. É terrível dizer uma coisa dessas, mas vamos ter de esperar pelo legado dos mortos.
— Mas eu não poderia resolver tudo sozinho. Como Tai-Pan, sozinho.
— Claro que poderia. Ora, se precisar de ajuda, eu o ajudarei em tudo. E papai também. Afinal de contas, Culum, você agora faz parte da família. Claro que resolveria tudo, por Deus! •Mas, se você disser isso, o Tai-Pan responderá: “Claro que pode, Culum. No devido tempo.”
— Acha, realmente, que eu poderia?
— Não tenho a menor sombra de dúvida. Qual é a dificuldade, hein? Você compra e vende, e seu compradore assume a maior parte do risco. Navios são navios, chá é chá e ópio é ópio. Um Tai-Pan toma decisões, apenas isso. É, principalmente, uma questão de bom senso. Ora, veja o que você fez com o outeiro! Decidiu de uma maneira muito inteligente. Você decidiu, não foi outra pessoa. E forçou-o a conversar com papai a respeito de Tess, e papai forçou-o a dar a você e a Tess uma oportunidade.
— Talvez eu pudesse dirigir a casa, se tudo estivesse tranqüilo. Mas não com Longstaff, com uma guerra e com Jin-qua.
— Eles não têm importância. E a guerra está fora de nosso controle, por mais que seu pai goste de fingir outra coisa. Quanto àquela velha raposa, Jin-qua, eu posso ajudar você a manter o macaco no seu galho. Não, Culum, temos de esperar até eles morrerem e isto é terrível, quando se é jovem, com novas idéias e tudo mais. Se nos dessem as rédeas agora, o que haveria de tão errado nisso? Nossos pais protegeriam nossa retaguarda, lá da Inglaterra e nós pediríamos ajuda, em qualquer necessidade. Não seria como se nós os expulsássemos. A casa seria deles, claro. Mas, jamais iriam acreditar nisso. Têm cocô nos miolos. Precisam conservar tudo para si mesmos, só assim serão felizes. Ele vai acalmar você, dizendo: “Você vai precisar de experiência, dois ou três anos”. Mas isto significa para sempre...
Culum olhou para as costas do pai.
— Eu poderia assumir, Tai-Pan. Struan virou-se para ele.
— E Longstaff? E Jin-qua, e a guerra?
— A guerra não depende de você, não é?
— Não. Mas, sem orientação, Longstaff nos teria destruído, já há uns dois anos.
— Se você partisse, bom... não estaria lavando as mãos com relação à casa, não é? Se acontecesse alguma coisa que eu não pudesse resolver, pediria imediatamente ajuda.
— Quando eu partir, rapaz, você terá de resolver tudo. A correspondência leva seis meses para ir à Inglaterra e voltar. Coisas demais poderiam ocorrer neste espaço de tempo. Você precisa de experiência. Não está preparado ainda.
— E, quando estarei?
— Depende de você.
— Você prometeu que eu seria Tai-Pan um ano depois... bom, um ano depois do tio Robb.
— Sim. Se estivesse preparado. Mas não está preparado para eu partir, como foi planejado. Brock e Gorth engoliriam você. Sim, disse Culum a si mesmo, Gorth tem razão, outra vez. Só esperando pela morte.
— Muito bem. O que posso fazer, para provar que sou capaz? .
— Nada mais do que está fazendo, rapaz. Você precisa de mais experiência. Dois anos, três... eu lhe direi, quando tiver certeza. Culum sabia que nada ganharia discutindo, naquela ocasião.
— Quer que eu assuma os departamentos do tio Robb?
— Sim. Mas, no momento, não encomende nada, na venda, e tampouco demita alguém sem a minha aprovação. Eu lhe darei uma carta específica, com instruções. Ajude Vargas a avaliar nossas perdas na Colônia e a pôr em ordem os livros.
— Quando acha que seria bom anunciar o noivado?
— Já discutiu o assunto com Brock?
— Só quando o encontrei em Whampoa. Ele sugeriu a noite do Festival de Verão.
Struan, repentinamente, lembrou-se de Scragger e do que dissera a respeito de Wu Kwok: que Wu Kwok cairia facilmente numa emboscada em Quemoy, no noite do Festival de Verão. Sabia que agora não tinha outra alternativa senão acreditar que Scragger falara a verdade, e ir atrás de Wu Kwok. A morte de Wu Kwok significaria um risco a menos para Culum se preocupar. E as outras três metades de moedas? Que favores maquiavélicos iriam pedir-lhe? E quando? Olhou para o calendário sobre sua escrivaninha. Aquele dia era 15 de junho. A noite do Festival de Verão seria dali a nove dias.
— Deixe para a noite do Festival. Mas, reunindo apenas um pequeno grupo. Só a família. — Acrescentou, com sutil ironia.
— Pensamos a respeito do presente de casamento que queremos que nos dê. Foi idéia de Tess. — Entregou uma folha de papel a Struan.
— Só um contrato solene de esquecer o passado e iniciar uma amizade. Para ser assinado pelos Brocks e pelos Struans.
— Já fiz a única barganha que farei com aqueles dois — disse Struan, devolvendo o papel, sem lê-lo.
— Gorth quer assinar, e ele disse que seu pai também.
— Aposto que Gorth quer mesmo, por Deus! Mas Tyler não assinará um papel desses.
— Se ele assinar, você assina?
— Não.
— Por favor.
— Não.
— Nossos filhos pertencerão a vocês dois e...
— Considerei os filhos com cuidado, Culum — interrompeu Struan. — E uma porção de outras coisas. Duvido muito que seus filhos vão ter um tio e um avô por parte de mãe, quando estiverem suficientemente crescidos para entender o que são essas coisas.
Culum caminhou irritado para a porta.
— Espere, Culum!
— Quer fazer o favor de nos dar o presente que pedimos, que imploramos?
— Não posso. Eles jamais honrarão um compromisso assim. Gorth e Brock querem tirar seu couro e... Culum bateu a porta na cara dele.
Struan bebeu outro conhaque e, depois, atirou o copo na lareira.
***
Aquela noite, Struan ficou acordado na cama de dossel, ao lado de May-may. As janelas estavam abertas para a lua e a brisa que trazia um cheiro estimulante de sal. Do lado de fora da grande rede que envolvia a cama, uns poucos mosquitos tentavam, incansavelmente, encontrar caminho para a comida do lado de dentro. Ao contrário da maioria dos europeus, Struan sempre usara um mosquiteiro. Jin-qua advertira-o de que era bom para a saúde, há muitos anos.
Struan estava pensando a respeito dos gases noturnos da malária, com medo de que ele e May-may os estivessem respirando, agora.
E ele estava preocupado com Sarah. Quando a vira, há algumas horas, ela lhe dissera que estava decidida a partir no primeiro navio.
— Você ainda não está bastante forte — comentara. — Nem Lochlin.
— Mesmo assim, vamos partir. Você acertará tudo, ou terei de fazer isto eu mesma? Tem uma cópia do testamento de Robb?
— Sim.
— Acabei de lê-la. Por que você deveria ficar como curador de suas ações na companhia, e não eu?
— Não é tarefa para uma mulher, Sarah! Mas você não precisa se preocupar. Receberá cada tostão.
— Meus advogados vão tratar disso, Tai-Pan.
Ele controlara sua raiva com esforço.
— A temporada é de tufões. Uma má ocasião para viajar para a Inglaterra. Espere até o outono. Estarão ambos mais fortes então.
— Partiremos imediatamente.
— Faça como quiser.
Ele fora ver Zergeyev. O ferimento do russo estava inflamado, mas não dera gangrena. Então, havia esperança. Em seguida, voltara a seu escritório e escrevera um despacho para Longstaff, informando-lhe ter ouvido dizer que o pirata Wu Kwok estaria em Quemoy, na noite do Festival de Verão, e que fragatas deveriam esperá-lo. Ele conhecia aquelas águas muito bem, e ficaria satisfeito de liderar a expedição, se o almirante assim o desejasse. Enviara o despacho a Horatio. E, pouco antes de partir para casa, os médicos do Exército foram vê-lo. Disseram-lhe que não, havia mais dúvidas. A febre do Vale Feliz era malária...
***
Ele se contorcia espasmodicamente na cama.
— Gosta de jogar gamão? — perguntou May-may, tão cansada e inquieta quanto ele.
— Não, obrigado, garota. Você também não consegue dormir?
— Não. Não se incomode — respondeu.
Estava preocupada com o Tai-Pan. Ele estava estranho, aquele dia. E ela se preocupava com Mary Sinclair. Aquela tarde, Mary chegara cedo, antes de Struan voltar. Mary contara-lhe a respeito do bebê e de sua vida secreta em Macau. Até mesmo sobre Horatio. E Glessing.
— Sinto muito — Mary dissera, em prantos. Ambas falavam mandarim, que preferiam ao cantonês. — Eu tinha de contar a alguém. Não há ninguém a quem eu possa pedir ajuda. Ninguém.
— Acalme-se, Marrr-rry, minha querida — dissera May-may. — Não chore. Primeiro, vamos tomar um pouco de chá e, depois, decidiremos o que fazer.
Então tomaram chá e May-may ficou espantada com os bárbaros e a maneira como encaravam a vida e o sexo.
— Que ajuda você precisa?
— Ajuda para... para me livrar da criança. Meu Deus, já está começando a aparecer.
— Mas, por que você não me pediu isso há semanas?
— Não tive coragem. Se eu não tivesse forçado a decisão, perante Horatio, ainda não teria coragem. Mas agora... o que posso fazer?
— Há quanto tempo está em seu útero?
— Quase três meses, menos uma semana.
— Não é bom, Marrr-rry. Pode ser muito perigoso, depois de dois meses. — May-may considerara as possíveis soluções para o problema de Mary e os perigos que acarretavam. — Vou mandar Ah Sam ao Tai Ping Shan. Ouvi dizer que existe ali um herbanário que poderá ajudá-la. Mas, entende que talvez seja muito perigoso?
— Sim. Se puder me ajudar, eu farei tudo. Tudo.
— Você é minha amiga. Os amigos devem ajudar um ao outro. Mas você não deve nunca, nunca contar a ninguém.
— Prometo, juro por Deus.
— Quando eu tiver as ervas, mandarei Ah Sam procurar sua criada, Ah Tat. Pode confiar nela?
— Sim.
— Quando é seu aniversário, Marrr-rry?
— Por quê?
— O astrólogo terá de descobrir um dia auspicioso para tomar o remédio, claro. Mary dissera-lhe o dia e a hora.
— Onde você tomará o remédio? Não pode fazer isso no hotel... e nem aqui. Poderá demorar dias para você se recuperar.
— Em Macau. Irei para Macau. Para minha... casa particular. Será seguro lá. Sim, estarei segura lá.
— Esses remédios nem sempre funcionam, minha querida. E não são fáceis.
— Não tenho medo. Vai dar certo. Tem de dar certo — dissera Mary.
***
May-may revirava-se na cama.
— O que há de errado? — perguntou Struan.
— Nada, é só o bebê se mexendo.
Struan pôs a mão sobre a pequena redondeza em sua barriga.
— É melhor procurarmos um médico, para tomar conta de você.
— Não, obrigada, Tai-Pan, não se incomode. Nenhum desses demônios bárbaros, obrigada. Com relação a isso eu serei, como sempre, chinesa.
May-may ficou deitada de costas, aprazivelmente, satisfeita com seu bebê, triste por causa de Mary.
— Marrr-rry não parecia bem, não é? — disse, numa sondagem.
— Não. E aquela moça tem alguma coisa na cabeça. Ela lhe disse o que era? May-may não queria mentir, mas estava hesitante em contar a Struan algo que poderia, realmente, não ter nada a ver com ele. — Acho que ela está preocupada com o irmão.
— O que há com ele?
— Ela disse que quer casar com Glessing.
— Ah, sim. — Struan sabia que Mary viera, principalmente, ver May-may e não a ele. Mal lhe falara, a não ser para lhe agradecer por ter levado as crianças para Macau. — Suponho que Horatio não aprova, e então ela quer que eu converse com ele? Foi isso que veio falar?
— Não. O irmão aprova — disse May-may.
— É surpreendente.
— Por quê? Esse Glessing é um homem ruim?
— Não, garota. É só porque Mary e Horatio vivem muito unidos, há vários anos. Ele vai achar a vida muito solitária sem ela, aqui. — Struan ficou imaginando o que diria May-may, se soubesse da casa secreta de Mary em Macau. — Ela, provavelmente, está triste porque se preocupa com ele.
May-may nada disse e abanou a cabeça, tristemente, por causa dos problemas do homem e da mulher.
— Como vão os jovens namorados? — perguntou, tentando descobrir o que realmente o incomodava.
— Muito bem. — Nunca lhe contara o que ele e Brock tinham dito um ao outro.
— Decidiu o que fazer a respeito da febre diabólica?
— Ainda não. Acho que você deveria voltar para Macau.
— Sim, por favor, Tai-Pan. Mas não antes de você decidir a respeito de Hong Kong.
— Aqui é perigoso. Não quero que lhe aconteça nada.
— Pagode — ela disse, com um encolher de ombros. — Claro mie nosso feng-shui é muito ruim. — Pôs a mão sobre o peito dele e o acariciou, depois beijou-o suavemente.
— Uma vez você disse que havia três coisas que precisava fazer, antes de decidir a respeito de uma Tai-tai. Duas, eu sei. Qual era a terceira?
— Passar a Casa Nobre para mãos seguras — ele disse. Depois, contou-lhe o que Brock dissera, e sua discussão com Culum, naquele dia.
Ela ficou silenciosa, por um longo tempo, pensando com cuidado a respeito do problema que representava a terceira coisa. E, como a solução era tão fácil, escondeu-a profundamente no coração e falou, inocentemente:
— Eu disse que ajudaria você, com relação às duas primeiras, e pensaria a respeito da terceira. Esta terceira é demais para mim, não posso ajudar, como gostaria.
— Sim — disse Struan. — Não sei o que fazer. Pelo menos — ele acrescentou — só há uma solução.
— A solução do assassinato não é aconselhável — ela disse, com firmeza. — Perigosamente desaconselhável. Os Brocks vão esperar por isso. Todos. E você se arrisca a uma vingança de sua lei terrível, que pede estupidamente olho por olho, mesmo que alguém tenha olhos de louco. Para que serviria o dinheiro? Você não deve fazer isso, Tai-Pan. E lhe aconselho, aliás, a dar a seu filho e à nova filha o presente que eles desejam.
— Não posso fazer isso, por Deus! É como se eu próprio estivesse cortando a garganta de Culum.
— Ainda assim, é o meu conselho. E aconselho, além disso, um casamento o mais rápido possível.
— Isso está fora de questão — ele explodiu. — É de muito mau gosto, um insulto à memória de Robb, e ridículo.
— Concordo plenamente, Tai-Pan — disse May-may. — Mas segundo me lembro, de acordo com o costume bárbaro... que, desta vez, é igual ao sábio costume chinês, a moça vai para a casa do marido. Não é o contrário, hein? Então, quanto mais rápido a garota Brock se libertar do domínio de Gorth, logo os Brocks perderão o controle sobre seu filho.
— O quê?
— Claro! Por que o seu filho está assim louco? Ele precisa ir para a cama com ela o mais rápido possível. — A voz dela se elevou, quando Struan se sentou na cama. — Agora, não me dê argumentos, por Deus, mas escute e, depois, eu escutarei atentamente. É isso que o deixa completamente louco... o pobre rapaz está com frio e cansado, não tem ninguém com quem ir para a cama, à noite. É um fato. Por que não diz abertamente, hein? Eu digo abertamente. Ele está ardendo, freneticamente. Então escuta, babando-se, toda a conversa maluca de Gorth. Eu se fosse ele, faria a mesma coisa, porque irmão tem poder sobre irmã! Mas deixe seu filho Culum possuir a moça, e então será que vai passar hora após maldita hora escutando o irmão Gorth? Por Deus, não! Vai passar cada minuto na cama, trepando, se cansando, fazendo bebês, e detestará interrupções suas, de Brock ou de Gorth. — Ela o olhou, com doçura. — Não é?
— Sim — disse ele. — Eu a amo porque você é esperta.
— Você me ama porque eu ponho você maluco, mas eu sei fazer você dormir, eu ponho você para dormir, até você estourar. — Riu, muito satisfeita consigo mesma. — Em seguida: faça com que eles comecem a construir sua casa. Amanhã. Desvie os pensamentos deles para isso, afastando-os do fan-quai Gorth. Ela è jovem, hein? Então, pensar em sua própria casa será uma ocupação fantástica para sua mente. Isso irritará os Brocks e eles começarão a decidir que tipo de casa, etc, o que a aborrecerá, e a trará para mais perto de você, que lhe dá sua casa. Gorth vai se opor completamente a um casamento rápido, fazendo, assim, Culum voltar-se contra ele, porque perderá, como vocês dizem?... seu tronfo.
— Trunfo. — Ele a abraçou, encantado. — Você é fantástica! Eu deveria ter pensado nisso. Há outra venda de terras, na próxima semana. Vou comprar para você um lote marinho. Porque é sábia.
— Ora! — ela disse, zangada. — Acha que eu protejo meu homem em troca da suja terra de Hong Kong? Um único e miserável lote suburbano? Por taéis de prata? Por jades? O que você acha que é esta valiosíssima Tchung May-may, hein? Uma puta qualquer?
Ela tagarelou sem parar mas, com hesitação, acabou permitindo-lhe presenteá-la, orgulhosa por ele entender o valor da terra para uma pessoa civilizada, e grata por ele lhe dar tal prestígio, fingindo que não sabia como ela estava satisfeita.
O quarto se achava silencioso, agora, a não ser pelo zunir dos mosquitos.
May-may aninhou-se contra Struan e desviou seus pensamentos para uma solução da terceira coisa. Decidiu pensar a respeito em mandarim, e não em inglês, porque não sabia palavras suficientes para os matizes certos de significado. Como nuance, pensou ela. Como se iria dizer isso em bárbaro? Ou finesse? A solução para a terceira coisa requeria uma verdadeira nuance chinesa e perfeita finesse.