LIVRO TRÊS

QUINTA-FEIRA

22 de fevereiro42


A NOROESTE DE TABRIZ: 11:20H. De onde estava sentado, nos degraus da cabine do 212 estacionado no alto da montanha, Erikki podia divisar o território da União Soviética. Lá embaixo, o rio Aras corria para leste em direção ao mar Cáspio, serpenteando através de gargantas e formando a maior parte da fronteira Irã-URSS. Para a esquerda, ele podia ver a Turquia, até onde se elevava o monte Ararat, a cinco mil metros de altura, e o 212 não estava parado muito longe da entrada da caverna onde havia o posto americano de escuta secreto.

Onde havia, pensou com um sorriso. Ao pousar ali na tarde da véspera — com o altímetro marcando 2. 825 metros — o bando de combatentes esquerdistas fedayins que levara com ele invadiu a caverna, mas não encontrou nenhum americano e quando Cimtarga revistou-a, viu que todo o equipamento importante tinha sido destruído e que não havia nenhum livro de códigos. Havia evidências de uma partida apressada, mas nada de valor para ser confiscado.

— Vamos esvaziá-la de qualquer maneira — dissera Cimtarga para seus homens, como fizeram com os outros. E perguntara a Erikki: — Você pode pousar ali? — E apontou lá para baixo, onde estavam os mastros com os radares. — Eu quero desmontá-los.

— Não sei — respondera Erikki. A granada que Ross lhe dera ainda estava presa debaixo do seu braço esquerdo. Cimtarga e seus captores não o haviam revistado e sua faca pukoh ainda estava nas costas. — Vou dar uma olhada.

— Nós vamos dar uma olhada, capitão. Vamos juntos — dissera Cimtarga, com uma gargalhada. — Assim você não ficará tentado a nos deixar.

Eles voaram até lá. Os mastros estavam presos em bases de concreto na face norte da montanha, numa pequena área plana em frente.

— Se o tempo estiver como hoje, tudo bem, mas se começar a ventar, não dá. Eu poderia planar e içá-lo para baixo. — E sorrira ferozmente.

— Não, obrigado. Eu não quero morrer cedo — rira Cimtarga.

— Para um soviético, especialmente da KGB, você não é um mau sujeito.

— Nem você, para um finlandês.

Desde domingo, quando Erikki começara a pilotar para Cimtarga, tinha começado a gostar dele — não que se pudesse realmente gostar de qualquer pessoa da KGB ou confiar nela, pensou. Mas o homem fora gentil e justo, dera-lhe uma porção correta de todos os alimentos, e na noite anterior, dividira uma garrafa de vodca com ele e dera-lhe o melhor lugar para dormir. Eles tinham dormido numa aldeia vinte quilômetros ao sul, em cima de tapetes sobre um chão de terra. Cimtarga dissera que embora aquele fosse em grande parte um território curdo, a aldeia era secretamente fedayim e segura.

— Então por que me manter sob vigilância?

— É segura para nós, capitão, não para o senhor.

Há duas noites atrás, no palácio do khan, quando Cimtarga e os guardas foram buscá-lo, logo depois de Ross ter partido, ele fora levado para a base aérea e, no escuro e contra os regulamentos do DAC tinha voado para as montanhas a norte de Khoi. Lá, ao amanhecer, recolhera um carregamento completo de homens armados e voara para o primeiro dos dois postos de radar americanos. O posto estava destruído e vazio, como este aqui.

— Alguém deve ter avisado a eles que nós estávamos vindo — disse Cimtarga, aborrecido. — Espiões matyeryebyets!

Mais tarde, Cimtarga lhes disse que os nativos informaram que os americanos tinham partido há duas noites atrás, levados por helicópteros muito grandes e sem identificação.

— Teria sido muito bom apanhá-los espionando. Muito bom. Dizem que os filhos da mãe conseguem ver o que se passa a mil quilômetros no interior do nosso território.

— Você teve sorte deles não estarem aqui, vocês poderiam ter se envolvido numa luta que teria criado um incidente internacional.

— Não teria nada a ver conosco, nada — rira Cimtarga. — Teriam sido os curdos novamente, mais um trabalhinho deles, um bando de assassinos, hein? Eles teriam levado a culpa. Malditos yezdvas, hein? Eventualmente, os corpos seriam encontrados, em território curdo. Isso seria prova suficiente para Carter e a sua CIA

Erikki se mexeu nos degraus do helicóptero, com o assento gelado por causa do metal, deprimido e cansado. Na noite anterior, ele tinha tornado a dormir mal, com pesadelos sobre Azadeh. Ele não dormia bem desde o aparecimento de Ross.

Você é um idiota, pensou pela milésima vez. Eu sei, mas isso não adianta. Nada parece adiantar. Talvez o trabalho o esteja deixando esgotado. Você tem pilotado horas demais em condições ruins, muitos vôos durante a noite. E também há a preocupação com Nogger — e Rakoczy e as mortes. E Ross. E principalmente Azadeh. Será que ela está em segurança?

Ele tentara fazer as pazes com ela a respeito do seu Johnny na manhã seguinte.

— Eu admito que fiquei com ciúmes. É estúpido ficar com ciúmes. Eu jurei pelos antigos deuses dos meus antepassados que poderia viver com a lembrança dele. Eu posso e o farei — dissera, mas dizer isso não o apaziguara. — Apenas não pensei que ele fosse tão... tão homem e tão... tão perigoso. Aquele kookri é páreo para a minha faca.

— Nunca, meu querido, nunca. Eu estou muito feliz por você ser você e eu ser eu e por estarmos juntos. Como poderemos sair daqui?

— Nem todos juntos nem ao mesmo tempo — respondera com sinceridade. — É melhor os soldados darem o fora enquanto podem. Com Nogger e eles, e enquanto você está aqui... eu não sei, Azadeh. Eu não sei como poderemos fugir, por enquanto. Vamos ter que esperar. Talvez pudéssemos entrar na Turquia...

Ele agora estava olhando para a Turquia, tão perto e tão longe, com Azadeh ainda em Tabriz — trinta minutos por ar até lá. Mas quando? Se entrássemos na Turquia e o meu helicóptero não fosse apreendido, e se eu pudesse reabastecer e conseguíssemos voar até Al Shargaz, costeando a fronteira. Se se se! Deuses dos meus ancestrais, ajudem-me!

Tomando vodca na noite anterior, Cimtarga estivera tão taciturno como sempre, mas bebera bastante e eles partilharam a garrafa, de copo em copo, até a última gota.

— Tenho outra para amanhã à noite, capitão.

— Ótimo. Quando você terá terminado comigo?

— Vamos levar dois ou três dias para terminar aqui, depois vamos voltar para Tabriz.

— E depois?

— Depois eu vou saber.

Se não fosse pela vodca, Erikki teria praguejado. Ele se levantou e observou os iranianos empilhando o equipamento para ser embarcado. A maioria parecia ser bem comum. E quando ele caminhou pelo terreno incerto, com as botas esmagando a neve, o seu guarda foi junto. Não havia nenhuma chance de escapar; durante todos os cinco dias, ele não tivera nenhuma chance.

— Nós gostamos da sua companhia — dissera Cimtarga, lendo-lhe os pensamentos, com seus olhos orientais brilhando.

Mais acima, ele podia ver alguns homens trabalhando nos mastros de radar, desmontando-os. Perda de tempo, pensou. Até eu sei que não há nada de especial com relação a eles.

— Isso não importa, capitão — dissera Cimtarga. — O meu mestre gosta de quantidade. Ele disse para levar tudo. É melhor demais do que de menos.

Por que você se preocupa? Você é pago por hora. — Mais uma vez ele rira, sem provocação.

Sentindo os músculos do pescoço endurecidos, Erikki esticou os braços e tocou a ponta dos pés e, nesta posição, deixou os braços e a cabeça ficarem pendurados, depois girou a cabeça o mais que pôde, deixando o peso da cabeça esticar os tendões e ligamentos e músculos e estender as juntas, sem forçar nada, usando apenas o peso.

— O que está fazendo? — perguntou Cimtarga, aproximando-se dele

— Isso é ótimo para dor no pescoço. — Ele tornou a colocar os óculos escuros. Sem eles a luz refletida pela neve era desconfortável. — Se você fizer isso duas vezes por dia, jamais terá dor no pescoço.

— Ah, você também tem dores no pescoço? Eu estou sempre atacado. Tenho que ir a um quiroprático pelo menos três vezes por ano. Isso ajuda?

— É garantido. Uma garçonete me ensinou. Carregar bandejas o dia inteiro dá muita dor no pescoço e nas costas, como os pilotos; é uma maneira de viver. Experimente só. — Cimtarga curvou-se como Erikki tinha feito e moveu a cabeça. — Não, você está fazendo errado. Deixe solta a cabeça, os braços e os ombros, você está duro demais.

Cimtarga obedeceu e sentiu o pescoço estalar e as juntas se soltarem e quando tornou a se levantar, disse:

— Isso é maravilhoso, capitão, estou-lhe devendo um favor.

— Foi em troca da vodca.

— Vale mais do que uma garrafa de vod...

Erikki ficou olhando para ele, espantado, enquanto o sangue jorrava do peito de Cimtarga, causado pela bala que o apanhara pelas costas. Então ouviu-se um urro acompanhado de outros enquanto nativos saíam dos esconderijos no meio das rochas e das árvores soltando gritos de combate e "Allah-u Ak-barrr" — atirando enquanto avançavam. O ataque foi breve e violento e Erikki viu os homens de Cimtarga caindo por todo o platô, rapidamente derrotados. O seu próprio guarda, um dos poucos que estava carregando uma arma, começara a atirar, mas foi imediatamente atingido, e agora um nativo barbado estava em pé sobre ele, terminando de matá-lo com a coronha do rifle. Outros entraram nas cavernas. Houve mais tiroteio, depois silêncio outra vez.

Dois homens correram em sua direção e ele levantou as mãos, sentindo-se nu e idiota, com o coração disparado. Um desses virou Cimtarga de frente e tornou a atirar nele. O outro passou por Erikki e entrou na cabine do 212 para certificar-se de que não havia ninguém escondido lá. Agora o homem que tinha atirado em Cimtarga estava parado diante de Erikki, respirando com dificuldade. Ele era pequeno, de barba, com a pele cor de azeitona, olhos e cabelos escuros, usava roupas rasgadas e fedia.

— Abaixe as mãos — disse num inglês carregado. — Eu sou o xeque Bayazid, o chefe daqui. Nós precisamos de você e do seu helicóptero.

— O que vocês querem de mim?

Em volta deles, os nativos matavam os feridos e tiravam tudo o que os mortos possuíam de valor.

— Emergência. — Bayazid sorriu de leve ao ver o ar de espanto de Erikki. — Muitos de nós trabalham nas plataformas. Quem é este cão? — Ele fez um gesto na direção de Cimtarga, caído a seus pés.

— Ele dizia chamar-se Cimtarga. Era um soviético. Acho que era da KGB

— É claro que era soviético — disse o homem, grosseiramente. — É claro que era da KGB. Todos os soviéticos no Irã são da KGB. Papéis, por favor. — Erikki entregou-lhe sua identidade. O nativo leu-a e balançou a cabeça. E para surpresa de Erikki, devolveu-a. — Por que você está pilotando para o cão soviético? — E ouviu silenciosamente, com a fisionomia ficando mais fechada à medida que Erikki contava como Abdullah Khan armara-lhe uma cilada. — Abdullah Khan não é homem para a gente se meter. O braço de Abdullah, o Cruel, atinge muito longe, mesmo nas terras dos curdos.

— Vocês são curdos?

— Curdos — disse Bayazid, pois a mentira era conveniente. Ele se ajoelhou e revistou Cimtarga. Não havia nenhum documento, só um pouco de dinheiro, que ele guardou. Além da automática e da munição, que também tomou. — Você está com o tanque cheio?

— Três quartos.

— Eu quero ir trinta quilômetros ao sul. Eu mostro o lugar. Apanhar uma emergência e depois ir para Rezaieh, para o hospital de lá.

— Por que não Tabriz? É muito mais perto.

— Rezaieh é no Curdistão. Os curdos estão seguros lá, em geral. Tabriz pertence aos nossos inimigos: iranianos, o xá ou Khomeini, não faz nenhuma diferença. Vá para Rezaieh.

— Está bem. O Hospital Overseas seria melhor. Eu já estive lá antes e eles têm uma pista para helicópteros. Eles estão acostumados com emergências. Nós podemos reabastecer o aparelho lá. Eles têm combustível para helicóptero, pelo menos tinham nos... nos velhos tempos.

Bayazid hesitou.

— Bom. Sim. Vamos imediatamente.

— E depois de Rezaieh?

— E depois, se nos ajudar, talvez você seja solto para tirar a sua mulher do Gorgon Khan — o xeque Bayazid virou-se e gritou para os seus homens se apressarem e entrarem no helicóptero. — Ligue os motores, por favor.

— E quanto a ele? — Erikki apontou para Cimtarga. — E os outros?

— Os animais e os pássaros vão limpar isto logo.

Eles levaram algum tempo para embarcar e partir, com Erikki agora cheio de esperança. Não houve problema para encontrar o lugar na pequena aldeia. A emergência era uma mulher idosa.

— Ela é o chefe do nosso clã — disse Bayazid.

— Eu não sabia que as mulheres podiam ser chefes.

— Por que não, desde que sejam bastante sábias, bastante fortes, bastante espertas e venham de famílias certas? Nós somos muçulmanos ortodoxos não esquerdistas ou xiitas hereges que põem os mulás entre o homem e Deus. Deus é Deus. Vamos partir imediatamente.

— Ela fala inglês?

— Não.

— Ela parece estar muito doente. Talvez não agüente a viagem.

— Seja como Deus quiser.

Mas ela agüentou a viagem de uma hora e Erikki pousou na pista do hospital. O Hospital Overseas fora construído, equipado e era sustentado pelas companhias de petróleo. Ele voara baixo o tempo todo, evitando Tabriz e os campos de aviação militares. Bayazid fora na frente com ele, e seis guardas armados tinham ido atrás com a chefe. Ela estava deitada na maca, acordada mas imóvel. Sentindo muitas dores, mas sem se queixar.

Segundos depois de pousarem, já havia um médico e alguns ajudantes perto do helicóptero. O médico usava um casaco branco com uma grande cruz vermelha na manga, por cima de pesados suéteres, aparentava cerca de trinta anos, era americano, e tinha círculos negros em volta dos olhos injetados de sangue. Ele se ajoelhou ao lado da maca enquanto os outros esperavam em silêncio. Ela gemeu um pouco quando ele tocou no seu abdômen, embora as suas mãos fossem experientes. Um instante depois, ele falou com ela num turco hesitante. Ela deu um pequeno sorriso e balançou a cabeça, agradecendo. Ele fez um sinal para os ajudantes e eles levantaram a maca e a levaram embora. Obedecendo a uma ordem de Bayazid, dois dos seus homens foram junto com ela.

O médico disse para Bayazid num dialeto hesitante:

— Excelência, eu preciso de nome e idade e... — ele procurou a palavra certa. — História. História médica.

— Fale em inglês.

— Ótimo. Obrigado, aga. Eu sou o dr. Newbegg. Temo que ela esteja no fim, aga, o pulso dela é quase zero. É velha e eu diria que está tendo uma hemorragia, sangrando, por dentro. Ela levou alguma queda recentemente?

— Fale mais devagar, por favor. Queda? Sim, sim, há dois dias atrás. — Bayazid parou por causa do barulho de tiros ali perto, depois continuou: — Sim, há dois dias atrás. Ela escorregou na neve e caiu em cima de uma pedra, bateu com o lado numa pedra.

— Acho que ela está sangrando por dentro. Vou fazer o possível, mas... sinto muito, não posso prometer boas notícias.

— Insha'Allah.

— Vocês são curdos?

— Curdos. — Novo tiroteio, ainda mais perto desta vez. Todos eles olharam na direção de onde veio o barulho. — Quem são?

— Não sei, são os mesmos, eu acho — falou o médico, inquieto. — Faixas Verdes contra esquerdistas, esquerdistas contra Faixas Verdes, contra curdos, muitas facções, e todos estão armados. — Ele esfregou os olhos. — Eu farei o que puder pela senhora. Talvez seja melhor o senhor vir comigo, aga, o senhor pode ir me dando os detalhes enquanto andamos. — E saiu andando depressa.

— Doutor, o senhor ainda tem combustível aqui? — perguntou Erikki. O médico parou e olhou para ele sem entender.

— Combustível? Oh, combustível para helicóptero? Eu não sei. Os tanques de gasolina ficam nos fundos. — Ele subiu as escadas até a entrada principal, com as abas do casaco batendo.

— Capitão — disse Bayazid —, o senhor vai esperar aqui até eu voltar.

— Mas e o combustível? Eu...

— Espere aqui. Aqui. — Bayazid foi rapidamente atrás do médico. Doi"s dos seus homens foram com ele. Dois ficaram com Erikki.

Enquanto Erikki esperava, checou tudo. Os tanques estavam quase vazios. De vez em quando, carros e caminhões chegavam com feridos para serem recebidos por médicos e estudantes. Muitos olhavam com curiosidade para o helicóptero, mas nenhum se aproximou. Os guardas cuidaram disso. Durante a viagem até ali, Bayazid tinha dito:

— Durante séculos, nós, os curdos, temos tentado ser independentes. Nós, um povo diferente, com uma língua diferente e costumes diferentes. Agora existem talvez seis milhões de curdos no Azerbeijão, no Curdistão, na fronteira soviética, deste lado do Iraque e na Turquia. — Ele tinha quase cuspido esta palavra. — Durante séculos nós temos lutado contra eles, juntos ou sozinhos. Nós dominamos as montanhas. Nós somos bons lutadores. Salah-al-din, ele era curdo. Você o conhece? Salah-al-din... Saladino foi o cavaleiro muçulmano, oponente de Ricardo Coração de Leão durante as Cruzadas no século XII, que se fez sultão do Egito e da Síria e capturou o Reino de Jerusalém em 1187, depois de esmagar as forças aliadas dos cruzados.

— Sim, eu o conheço.

— Hoje há outros Salah-al-dins entre nós. Um dia nós tornaremos a conquistar os lugares santos. Depois que Khomeini, o traidor do Islã, for atirado na sarjeta.

— Vocês armaram uma cilada para Cimtarga e para os outros e os mataram só por causa da emergência? — perguntara Erikki.

— É claro. Eles eram inimigos. Seus e nossos. — Bayazid sorrira o seu sorriso torto. — Nada acontece nas nossas montanhas sem que saibamos. A nossa chefe estava doente e vocês por perto. Nós vimos os americanos partirem, vimos os carniceiros chegarem, e você foi reconhecido.

— Oh? Como?

— O Ruivo da Faca? O infiel que mata assassinos como piolhos e depois ganha uma filhote de Gorgon como recompensa! Piloto de emergências? — Os olhos escuros, quase pretos, estavam achando graça. — Oh, sim, capitão, nós o conhecemos bem. Muitos de nós trabalham com madeira e também com petróleo... um homem tem que trabalhar. Mesmo assim, é bom que o senhor não seja nem soviético nem iraniano.

— Depois da emergência, você e seus homens me ajudarão contra o Gorgon Khan?

— Essa maldita desavença é sua, não nossa — rira Bayazid. — Abdullah está conosco, por enquanto. Nós não somos contra ele. O que você fizer é lá com Deus.

Estava frio no pátio do hospital, um vento leve ainda aumentava mais o frio. Erikki andava para cima e para baixo para manter o sangue circulando. Eu tenho que voltar para Tabriz. Tenho que voltar e arranjar um jeito de apanhar Azadeh e partir com ela para sempre.

Um tiroteio ali perto o assustou e também aos guardas. Fora dos portões do hospital o tráfego ficou mais lento, com as buzinas tocando com irritação, depois engarrafou rapidamente. As pessoas começaram a passar correndo. Houve novo tiroteio e os que foram apanhados nos seus veículos saltaram para se proteger ou fugir. Do lado de dentro dos portões, havia uma área grande, o 212 estava parado de um dos lados. O tiroteio estava pior agora e muito mais perto. Algumas janelas de vidro no último andar do hospital se estilhaçaram. Os dois guardas deitaram na neve atrás do helicóptero, Erikki estava uma fera pelo fato do seu aparelho estar tão exposto e não sabia para onde correr nem o que fazer, sem tempo para decolar e sem combustível suficiente para ir a lugar nenhum. Algumas balas ricochetearam e ele se abaixou enquanto a batalha prosseguia do lado de fora dos portões. Então ela terminou tão rapidamente como tinha começado. As pessoas começaram a sair de onde estavam, as buzinas começaram a tocar e logo o tráfego estava tão normal e horrível como sempre.

— Insha'Allah — disse um dos nativos, depois empunhou o rifle e se pôs em guarda. Um pequeno caminhão de gasolina se aproximava, vindo de trás do hospital, dirigido por um jovem iraniano com um largo sorriso. Erikki foi ao encontro dele.

— Oi, capitão — disse alegremente o motorista, com um sotaque carregado de Nova York. — Eu vou abastecer o seu aparelho. O seu destemido líder, xeque Bayazid, arranjou isto. — Ele cumprimentou os nativos num dialeto turco. Imediatamente eles relaxaram e o cumprimentaram de volta. — Capitão, vamos encher até a boca. O senhor tem algum tanque de reserva?

— Não. Só o normal. Eu sou Erikki Yokkonen.

— Claro. O Ruivo da Faca. — O rapaz sorriu. — O senhor é uma espécie de lenda por aqui. Eu abasteci o seu aparelho uma vez, há mais ou menos um ano. — Ele estendeu a mão. — Eu sou Ali 'Gasolina'... isto é, Ali Reza.

Eles trocaram um aperto de mão e, enquanto conversavam, o rapaz começou a encher o tanque.

—Você freqüentou uma escola americana? — Erikki perguntou.

— Não. Eu fui adotado, por assim dizer, pelo hospital, há anos, muito antes deste aqui ter sido construído, quando eu era um garoto. Nos velhos tempos, o hospital atendia a um dos Guetos Dourados da parte leste da cidade. O senhor sabe, capitão, Apenas Pessoal Americano, um depósito da ExTex. — O rapaz sorriu, tampou cuidadosamente o tanque e começou a encher o outro. — O primeiro médico que me adotou foi Abe Weiss. Grande sujeito, grande. Ele me colocou na folha de pagamento, me ensinou a respeito de sabão, meias, Colheres e banheiros... diabo, todo o tipo de utensílios não-iranianos para ratos de rua como eu, sem família, sem casa, sem nome, sem nada. Ele costumava dizer que eu era o seu hobby. Ele me deu até o nome. Então, um dia, ele partiu.

Erikki viu a tristeza nos olhos do rapaz, rapidamente disfarçada.

— Ele me passou para o doutor Templeton e este fez o mesmo. Às vezes é meio difícil saber quem eu sou. Sou curdo mas não sou. Sou ianque mas não sou, sou judeu mas não sou, sou muçulmano mas não sou. — Ele deu de ombros. — É um pouco confuso, capitão. O mundo e tudo o mais, hein?

— Sim. — Erikki deu uma olhada na direção do hospital. Bayazid estava descendo as escadas com seus dois soldados, ao lado dos ajudantes que carregavam uma maca. A velha estava coberta agora, dos pés à cabeça.

— Vamos partir assim que estivermos abastecidos — disse Bayazid, secamente.

— Sinto muito — disse Erikki.

— Insha'Allah. — Eles ficaram olhando os ajudantes colocarem a maca na cabine. Bayazid agradeceu-lhes e eles foram embora. Em pouco tempo o aparelho estava abastecido.

— Obrigado, sr. Reza — Erikki estendeu a mão — Obrigado.

O rapaz olhou fixamente para ele.

— Ninguém nunca me chamou de senhor antes, capitão, nunca. — Ele apertou a mão de Erikki. — Obrigado. A qualquer hora que o senhor precisar de gasolina, eu estou às ordens.

Bayazid subiu na cabine ao lado de Erikki, amarrou o cinto e colocou os fones no ouvido, com o motor esquentando.

— Agora vamos voltar para a aldeia de onde saímos.

— E depois? — perguntou Erikki.

— Vou consultar o novo chefe — disse Bayazid, mas ele estava pensando, este homem e o helicóptero devem valer um bom resgate, talvez para o khan, talvez para os soviéticos ou talvez para o seu próprio povo. O meu povo precisa de cada tostão que puder conseguir

PERTO DE TABRIZ UM — NA ALDEIA DE ABU MARD: 18:16H. Azadeh apanhou a tigela de arroz e a tigela de horisht, agradeceu à mulher do senhorio e atravessou a neve suja, coberta de lixo, até a cabana que ficava um pouco afastada. Seu rosto estava magro, sua tosse não era nada boa. Ela bateu na porta e depois entrou.

— Alô, Johnny, Como você se sente? Melhorou um pouco?

— Estou bem — ele disse. Mas não estava.

A primeira noite eles tinham passado numa caverna não muito longe dali, encolhidos, tremendo de frio.

— Não podemos ficar aqui, Azadeh — ele dissera ao amanhecer. — Vamos morrer congelados. Vamos ter que tentar a base.

Eles tinham caminhado através da neve e observado às escondidas. Viram os dois mecânicos e até Nogger Lane de vez em quando — e o 206 — mas havia homens armados por toda a base. Dayati, o gerente da base, tinha se mudado para a cabana de Azadeh e Erikki — ele, sua mulher e seus filhos.

— Filhos e filhas de um cão — Azadeh sibilou, vendo a mulher usando um par de botas suas. — Talvez pudéssemos nos esgueirar para as cabanas dos mecânicos. Eles nos protegerão.

— Eles só andam escoltados; eu aposto que eles são vigiados até de noite. Mas quem são os guardas, são Faixas Verdes, são os homens do khan, quem são?

— Eu não conheço nenhum deles, Johnny.

— Eles estão atrás de nós — disse, sentindo-se muito deprimido, sofrendo muito com a morte de Gueng. Tanto Gueng quanto Tenzing estavam com ele desde o começo. E tinha havido Rosemont. E agora Azadeh. — Mais uma noite desabrigados e estamos fritos.

— A nossa aldeia, Johnny. Abu Mard. Ela pertence à nossa família há mais de um século. Eles são leais, eu sei que são. Nós estaríamos seguros lá por um dia ou dois.

— Com a minha cabeça a prêmio? E a sua também? Eles mandariam avisar ao seu pai.

— Eu pediria a eles para não fazerem isso. Eu diria que os soviéticos estavam tentando raptar-me e que você estava me ajudando. Isso é verdade. Eu diria que precisamos nos esconder até o meu marido voltar. Ele sempre foi muito popular, Johnny, os seus vôos de emergência salvaram muitas vidas ao longo dos anos.

Ele a olhou, pensando numa dúzia de contras.

— A aldeia fica na estrada, quase na beira da estrada e...

— Sim, é claro que você tem toda a razão e faremos o que você achar melhor, mas a aldeia se estende para dentro da floresta. Nós poderíamos nos esconder lá. Ninguém esperaria isso.

Ele percebeu-lhe o cansaço.

— Como você se sente? Você se sente forte?

— Não me sinto forte, mas estou bem.

— Nós poderíamos pegar uma carona, seguir adiante mais algumas milhas. Teríamos que evitar as barreiras, é muito menos perigoso do que a aldeia, o que acha?

— Eu... eu preferia não ir. Eu poderia tentar. — Ela hesitou e depois disse: — Eu preferia não ir, hoje não. Você vai. Eu fico esperando. Erikki pode voltar hoje.

— E se ele não voltar?

— Eu não sei. Vai você.

Ele tornou a olhar para a base. Um ninho de víboras. Era suicídio ir para lá. De onde eles estavam, numa elevação, ele podia divisar a estrada principal. Ainda havia homens vigiando a barreira — ele supunha que fossem Faixas Verdes e a polícia — uma fila de automóveis estava parada, esperando para deixar a área. Ninguém vai nos dar uma carona agora, pensou, a não ser que seja para receber a recompensa.

— Você vai para a aldeia. Eu vou esperar na floresta.

— Sem você, eles simplesmente me devolverão a meu pai. Eu os conheço, Johnny.

— Talvez eles traiam você de qualquer jeito.

— Seja como Deus quiser. Mas nós poderíamos conseguir um pouco de comida e de calor, talvez até uma noite de descanso. Ao amanhecer, nós poderíamos fugir. Talvez possamos conseguir um carro ou um caminhão com eles. O calênder tem um velho Ford. — Ela abafou um bocejo. Os homens armados não estavam muito longe. Era mais do que provável que houvesse patrulhas na floresta. Ao ir para lá eles tiveram que fazer um desvio para evitar uma. A aldeia é uma loucura, pensou. Rodear a barreira vai levar horas à luz do dia, e de noite... mas nós não podemos passar outra noite ao relento.

— Vamos para a aldeia — disse.

E eles foram, no dia anterior, e Mustafá, o calênder, escutara a história dela e evitara olhar para Ross. A notícia da chegada deles tinha corrido de boca em boca e em poucos minutos toda a aldeia sabia, e essas notícias foram somadas a outras, sobre a recompensa oferecida pelo Sabotador e raptor da filha do khan. O calênder tinha dado à Ross uma cabana de um só cômodo com chão de terra e velhos tapetes. A cabana ficava bem afastada da estrada, do outro lado da aldeia, e ele notou os olhos de aço, os cabelos emaranhados e a barba pontuda, e também sua carabina, o kookri e a mochila cheia de munição. Ele convidou Azadeh para ficar na sua casa. Era uma cabana de dois cômodos. Não tinha eletricidade nem água corrente. A vala era o banheiro.

Ao anoitecer, uma velha levara comida quente e uma garrafa de água para Ross.

— Obrigado — ele agradeceu, com a cabeça doendo e já com febre. — Onde está Sua Alteza? — A mulher deu de ombros. Ela era corpulenta, com a cara marcada de varíola e cacos marrons de dentes. — Por favor, peça-lhe para me receber.

Mais tarde, mandaram chamá-lo. Na casa do chefe, vigiado pelo chefe, sua esposa, alguns dos seus filhos e uns poucos anciãos, ele cumprimentou Azadeh cautelosamente — como um estranho cumprimentaria um nobre. Ela estava usando o chador evidentemente, e estava ajoelhada sobre tapetes virados para a porta. Seu rosto tinha uma palidez amarelada, doentia, mas ele achou que poderia ser da luz da lamparina.

— Salaam, Alteza, a senhora está bem de saúde?

— Salaam, aga, sim, obrigada, e o senhor?

— Estou com um pouco de febre, eu acho.

Ela viu os seus olhos se levantarem do tapete por um instante.

— Eu tenho remédio. O senhor está precisando?

— Não. Não, obrigado.

Com tantos olhos e ouvidos atentos, o que ele queria dizer era impossível.

— Talvez eu possa cumprimentá-la amanhã — disse. — Que a paz esteja com a senhora, Alteza.

— E com o senhor também.

Ele levara algum tempo para dormir. E ela também. A aldeia despertou ao amanhecer, as fornalhas foram atiçadas, as cabras ordenhadas, o horisht de legumes foi posto para cozinhar — com pouca coisa para torná-lo mais nutritivo, exceto um pedaço de galinha, em algumas cabanas um pedaço de cabrito ou carneiro, a carne velha, dura, rançosa. Tigelas de arroz, mas nunca em número suficiente. Comiam duas vezes por dia nas épocas melhores, de manhã e antes do anoitecer. Azadeh tinha dinheiro e pagou pela sua comida. Isso não passou despercebido. Ela pediu que fosse colocada uma galinha inteira no horisht da noite para ser partilhada por todos da casa e pagou por isso. O que também não passou despercebido.

Antes do anoitecer, ela disse:

— Agora eu vou levar comida para ele.

— Mas, Alteza, não está certo a senhora servi-lo — disse a esposa do calênder. — Eu carrego as tigelas. Podemos ir juntas se a senhora quiser.

— Não, é melhor que eu vá sozinha porq...

— Deus nos proteja, Alteza. Sozinha? Ver um homem que não é seu marido? Oh, não, isto seria escandaloso, isto seria muito escandaloso. Venha. Eu carrego.

— Ótimo. Obrigada. Seja como Deus quiser. Na noite passada ele disse que estava com febre. Pode ser a peste. Eu sei que os infiéis carregam doenças ruins a que não estamos acostumados. Eu só queria poupá-la de uma provável agonia. Obrigada por me poupar.

Na noite anterior todo mundo vira o filete de suor no rosto do infiel. Todo mundo sabia como os infiéis eram maus, a maioria deles adoradores de Satã e feiticeiros. Quase todo mundo acreditava secretamente que Azadeh tinha sido enfeitiçada, primeiro pelo Gigante da Faca, e agora outra vez pelo Sabotador.

Silenciosamente, a mulher do chefe entregara as tigelas a Azadeh e ela caminhou através da neve.

Agora ela o olhava na semi-escuridão do quarto, que tinha como janela um buraco na parede de barro, sem vidro, coberto apenas por um saco. O ar estava pesado com o cheiro de urina e lixo da vala lá fora.

— Coma, coma enquanto está quente. Eu não posso ficar muito tempo.

— Você está bem? — Ele estivera deitado sob o único cobertor, inteiramente vestido, cochilando, mas agora sentava-se com as pernas cruzadas e alerta. A febre diminuíra um pouco com a ajuda de remédios que ele trazia no estojo de primeiros socorros, mas seu estômago estava embrulhado. — Você não parece muito bem.

— Nem você. — ela sorriu. — Eu estou bem. Coma.

Ele estava com muita fome. A sopa era rala, mas ele sabia que isso era melhor para o seu estômago. Sentiu outro espasmo começando mas controlou-o e passou.

— Você acha que poderíamos fugir? — disse, entre uma colherada e outra, tentando comer devagar.

— Você poderia, eu não.

Enquanto cochilava durante o dia, tentando recuperar as forças, ele tinha tentado fazer um plano. Uma vez tentara sair da aldeia caminhando. Apareceram cem olhos em cima dele, todo mundo vigiando. Ele foi até o final da aldeia e depois voltou. Mas tinha visto o velho caminhão.

— E quanto ao caminhão?

— Eu perguntei ao chefe. Ele disse que estava enguiçado. Não sei se estava mentindo ou não.

— Não podemos ficar aqui por muito mais tempo. Uma patrulha vai acabar aparecendo. Ou o seu pai vai ouvir falar sobre nós ou então alguém vai contar a ele. A nossa única esperança é fugir.

— Ou seqüestrar o 206 junto com Nogger.

— Com todos aqueles homens lá?

— Uma das crianças me contou que eles voltaram para Tabriz hoje.

— Você tem certeza?

— Não tenho certeza, Johnny. — Uma onda de ansiedade invadiu-a. — Mas não há nenhum motivo para a criança mentir. Eu... eu costumava ensinar aqui antes de me casar. Eu fui a única professora que eles jamais tiveram e sei que eles gostavam de mim. A criança disse que só ficaram um ou dois lá. — Ela sentiu mais um arrepio de frio que a enfraqueceu. Tantas mentiras, tantos problemas nas últimas semanas, pensou. Foram apenas semanas? Tanto terror desde que Rakoczy e o mulá irromperam na nossa sauna. Está tudo tão difícil agora. Erikki, onde está você? Ela teve vontade de gritar, onde está você?

Ele terminou a sopa e o arroz e catou o último grão, pesando os prós e os contras, tentando planejar. Ela estava ajoelhada em frente e ele viu o seu cabelo emaranhado, a sua sujeira, a sua exaustão e a sua gravidade.

— Pobre Johnny — ela murmurou e tocou-o. — Eu não lhe trouxe muita sorte, trouxe?

— Não seja boba. Nada disso é culpa sua. — Ele sacudiu a cabeça. — Nada disso. Ouça, nós vamos fazer o seguinte: vamos ficar aqui esta noite. Amanhã, assim que clarear, vamos sair daqui. Vamos tentar a base; se isto não funcionar, então pegamos uma carona. Você tenta fazer o chefe nos ajudar mantendo a boca fechada, a mulher dele também. Os resto dos aldeões deve se comportar se ele mandar, pelo menos para nos dar uma chance. Prometa-lhes uma grande recompensa quando as coisas estiverem normais de novo, e olhe aqui... — Ele enfiou a mão no esconderijo da sua mochila, encontrou as rúpias de ouro, dez delas. — Dê-lhe cinco e guarde as outras cinco para uma emergência.

— Mas... mas e quanto a você? — perguntou, com os olhos arregalados e mais esperançosa com tanto pishkesh potencial.

— Eu tenho mais dez — disse, mentindo com facilidade. — Fundos de emergência, cortesia do governo de Sua Majestade.

— Oh, Johnny, eu acho que agora temos uma chance. Isso é muito dinheiro para eles.

Os dois olharam pela janela quando começou a ventar, levantando o saco que cobria a janela. Ela se levantou e ajustou o saco o melhor que pôde. Mas não conseguiu cobrir toda a abertura.

— Não tem importância — ele disse. — Venha cá e sente-se. — Ela obedeceu, sentando-se mais perto dele. — Tome. Por via das dúvidas. — Ele lhe entregou a granada. — Abaixe a alavanca, tire o pino, conte até três e atire. Três, não quatro.

Ela balançou a cabeça, levantou o chador e guardou a granada num dos bolsos da sua jaqueta de esqui. Suas calças de esqui estavam enfiadas nas botas.

— Obrigada. Agora eu me sinto melhor. Mais segura. — Involuntariamente, ela o tocou e desejou que não o tivesse feito, pois sentiu o seu fogo. — É... é melhor eu ir. Vou trazer-lhe comida assim que clarear. Depois partiremos.

Ele se levantou e abriu a porta. Lá fora estava escuro. Nenhum dos dois viu a figura se afastando da janela, mas os dois sentiram olhos observando-os de toda a parte.

— E quanto a Gueng, Johnny? Você acha que ele vai nos encontrar?

— Ele estará vigiando, esteja onde estiver. — Ele sentiu um novo espasmo começando. — Boa noite, durma bem.

— Durma bem.

Eles sempre diziam isso um para o outro nos velhos tempos. Seus olhos se trocaram bem como os seus corações e os dois se sentiram aquecidos e ao mesmo tempo cheios de pressentimentos. Então ela se virou, ficando imediatamente invisível por causa do chador escuro. Ele viu a porta da cabana do chefe se abrir, ela entrou e fechou a porta. Ele ouviu um caminhão subindo a estrada não muito longe, depois um carro buzinando, que passou e logo se afastou. O espasmo veio e foi muito forte e ele vomitou. A dor foi muito intensa, mas foi pouco o que ele pôs para fora e se sentiu agradecido por Azadeh já ter ido embora. Ele agarrou um pouco de neve com a mão esquerda e se limpou. Ainda havia olhos observando-o, de todos os lados. Filhos da mãe, pensou, depois tornou a entrar na cabana e se sentou no grosseiro colchão de palha.

Na escuridão, ele lubrificou o kookri. Não havia necessidade de afiá-lo. Já tinha feito isso mais cedo. Luzes refletiam-se na lâmina. Dormiu com ele fora da bainha

NO PALÁCIO DO KHAN: 23:19H. O médico segurava o pulso do khan e tornou a checá-lo.

— O senhor precisa descansar bastante, Alteza — disse, preocupado — e tomar uma pílula destas de três em três horas.

— De três em três horas... está bem. — disse Abdullah Khan, com a voz fraca e respirando com dificuldade. Ele estava apoiado em almofadas na cama que fora feita sobre espessos tapetes. Ao lado da cama estava Najoud, sua filha mais velha, de 35 anos, e Aysha, sua terceira esposa, de 17. As duas mulheres estavam pálidas. Havia dois guardas na porta e Ahmed estava ajoelhado ao lado do médico. — Agora... deixe-me.

— Eu voltarei ao amanhecer com uma ambulância e...

— Nada de ambulância! Eu vou ficar aqui! — O rosto do khan ficou vermelho, e a dor atravessou-lhe o peito. Eles o observaram, mal respirando. Quando conseguiu falar, ele disse com voz rouca: — Eu vou ficar... aqui.

— Mas Alteza, o senhor já teve um ataque cardíaco, graças a Deus um ataque leve — o médico disse com a voz fraquejando. — Não se sabe quando o senhor poderia ter... eu não tenho nenhum equipamento aqui; o senhor precisa de tratamento urgente e de observação.

— Qualquer... qualquer coisa que o senhor precisa, traga para cá. Ahmed, providencie isto.

— Sim, Alteza. — Ahmed olhou para o médico.

O médico guardou o estetoscópio e o aparelho de pressão na sua maleta antiquada. Na porta, ele tornou a calçar os sapatos e saiu. Najoud e Ahmed o seguiram. Aysha hesitou. Ela era pequenina, estava casada há dois anos e tinha um filho e uma filha. O rosto do khan tinha uma palidez doentia e sua respiração era difícil. Ela se ajoelhou perto dele e pegou-lhe a mão, mas ele a empurrou com raiva, esfregando o peito, xingando-a. O medo dela aumentou.

Lá fora no hall, o médico parou. Seu rosto era velho e enrugado, mais velho do que sua idade, seu cabelo era branco.

— Alteza — disse para Najoud —, era melhor ele estar num hospital. Tabriz não serve. Teerã seria muito melhor. Ele deveria ir para Teerã, embora a viagem até lá possa... Teerã é melhor do que aqui. A pressão dele está muito alta, tem estado alta há anos mas, bem, seja como Deus quiser.

— Qualquer coisa que o senhor precise, nós podemos trazer — disse Ahmed.

O médico retrucou, zangado.

— Idiota, eu não posso trazer uma sala de operação, mais um dispensário e um ambiente esterilizado para cá.

— Ele vai morrer? — perguntou Najoud, com os olhos arregalados.

— Quando Deus quiser, só quando Deus quiser. A pressão dele está alta demais... eu não sou mágico e nós temos poucos recursos. Você tem idéia do que causou o ataque? Houve alguma discussão ou algo assim?

— Não, não houve nenhuma discussão, mas foi Azadeh com certeza. Foi ela de novo, aquela minha meia-irmã. — Najoud começou a torcer as mãos.

— Foi ela, fugindo com o Sabotador ontem de manhã, foi..

— Que Sabotador? — O médico perguntou estarrecido.

— O Sabotador que todo mundo está procurando, o inimigo do Irã. Mas eu tenho certeza que ele não a raptou, eu tenho certeza que ela fugiu com ele. Como ele poderia raptá-la de dentro do palácio? Foi ela que causou toda a raiva de Sua Alteza. Nós estamos todos aterrorizados desde ontem de manhã.

Bruxa idiota! pensou Ahmed. A explosão de ódio foi por causa dos homens de Teerã, Hashemi Fazir e o infiel que falava farsi, e o que eles pediram para o meu mestre fazer e ele concordou. Uma coisa tão insignificante, entregar-lhes um soviético, um pretenso amigo que era um inimigo, isso certamente não é motivo para explodir. Foi esperteza do meu mestre dar início às coisas: depois de amanhã o desgraçado vem para o lado de cá da fronteira e vai cair na teia e os dois inimigos de Teerã vão voltar e também vão cair na teia. O meu mestre vai decidir logo e então eu vou agir. Enquanto isso, Azadeh e o Sabotador estão seguros na aldeia, conforme meu mestre deseja — o chefe mandou-lhe um recado assim que eles chegaram lá. Poucos homens na terra são tão espertos quanto Abdullah Khan e só Deus vai decidir quando ele deve morrer, não este cão deste médico.

— Vamos indo — ele disse. — Por favor, perdoe-me, Alteza, mas nós temos que apanhar uma enfermeira e remédios e alguns equipamentos. Doutor, temos que nos apressar.

A porta no final do corredor se abriu. Aysha estava ainda mais pálida.

— Ahmed, Sua Alteza quer falar um instante com você.

Quando estavam a sós, Najoud segurou o médico pela manga e murmurou:

— Qual é a gravidade do estado de Sua Alteza? O senhor precisa dizer-me a verdade. Eu tenho que saber.

O médico levantou as mãos, impotente.

— Eu não sei, não sei. Eu venho esperando pelo pior há mais de um ano. O ataque foi leve. O próximo pode ser definitivo ou não, dentro de uma hora ou de um ano, eu não sei.

Najoud estivera em pânico desde que o khan desmaiara há duas horas atrás. Se o khan morresse, então Hakim, irmão de Azadeh, seria o seu herdeiro legítimo — os dois irmãos de Najoud tinham morrido na infância. O filho de Aysha ainda não tinha um ano. O khan não tinha nenhum irmão vivo, então o seu herdeiro seria Hakim. Mas Hakim caíra em desgraça e fora deserdado, logo teria que haver um regente. O seu marido, Mahmud, era o mais velho dos genros. Ele seria o regente, a menos que o khan determinasse outra coisa.

Por que ele determinaria outra coisa? pensou, sentindo mais uma vez um buraco no estômago. O khan sabe que eu dirijo o meu marido e fortaleço a todos nós. O filho de Aysha — ora, uma criança doentia, tão doentia quanto a mãe. Seja como Deus quiser, mas os bebês costumam morrer. Ele não é uma ameaça, mas Hakim — Hakim é.

Ela se lembrou de ter ido procurar o khan quando Azadeh voltou da escola na Suíça:

— Pai, eu lhe trago más notícias, mas o senhor precisa saber a verdade. Eu ouvi Hakim e Azadeh conversando. Alteza, ela contou a ele que ficou grávida, mas tirou o filho com a ajuda de um médico.

— O quê?

— Sim... eu a ouvi dizer isso.

— Azadeh não seria capaz... Azadeh não poderia ter feito uma coisa dessas!

— Pergunte a ela. Por favor, não diga quem lhe contou, mas pergunte a ela diante de Deus, pergunte a ela, faça com que um médico a examine, mas espere, isso não é tudo. Contra a sua vontade, Hakim está resolvido a tornar-se pianista e disse a ela que vai fugir e pediu a Azadeh para ir com ele para Paris. "Então você poderá casar-se com o seu amante", ele disse, mas ela disse, Azadeh disse: "Papai vai trazê-lo de volta, ele vai nos obrigar a voltar. Ele nunca nos deixará partir sem a sua permissão, nunca." Então Hakim disse: "Eu irei. Não vou ficar aqui e desperdiçar a minha vida. Eu irei!" E ela disse novamente: "Papai nunca permitirá isso, nunca." "Então é melhor que ele morra", disse Hakim e ela disse: "Eu concordo”.

— Eu... eu não acredito nisso!

Najoud recordou o rosto dele ficando roxo e o terror que ela sentiu.

— Diante de Deus. Eu os ouvi dizendo isso, Alteza, diante de Deus. Então eles disseram que precisavam fazer um plano, nós... — Ela se encolhera quando ele gritou com ela, ordenando-lhe que contasse exatamente o que eles tinham dito.

— Ele disse exatamente, Hakim disse: "Um pouco de veneno no seu halvah, ou numa bebida, podemos subornar um criado, talvez possamos subornar um dos seus guardas para matá-lo ou poderíamos deixar os portões abertos de noite para os assassinos... há centenas de maneiras para que qualquer um dos seus milhares de inimigos faça isso por nós, todo mundo o odeia. Nós precisamos refletir e ter paciência..."

Fora fácil para ela lançar o seu veneno, inventando cada vez mais mentiras, até que em pouco tempo ela própria estava acreditando nelas — mas não inteiramente.

Deus vai me perdoar, disse a si mesma, como costumava dizer sempre. Deus vai me perdoar. Azadeh e Hakim sempre nos odiaram, e a todo o resto da família, sempre quiseram nos ver mortos, banidos, para ficar com a nossa herança, eles e aquela bruxa da mãe deles que lançou um feitiço sobre papai para que ele nos virasse o rosto por tantos anos. Oito anos ele ficou sob o feitiço dela — Azadeh isso, Azadeh aquilo, Hakim isso, Hakim aquilo. Por oito anos ele nos ignorou e a nossa mãe, sua primeira esposa, não tomou nenhum conhecimento de mim, casou-me displicentemente com esse idiota, Mahmud, esse fedorento, impotente, mau, roncador, e arruinou a minha vida. Espero que o meu marido morra, comido pelos vermes, mas não antes de se tornar khan para que o meu filho possa ser khan depois dele.

Papai precisa livrar-se de Hakim antes de morrer. Que Deus o mantenha vivo para fazer isso — ele tem que fazer isso antes de morrer — e Azadeh tem que ser humilhada, expulsa, destruída também — melhor ainda, apanhada em adultério com o Sabotador, oh sim, então a minha vingança estará completa.


SEXTA-FEIRA

23 de fevereiro43


PERTO DE TABRIZ UM, NA ALDEIA DE ABU MARD: 6:17H. Ao amanhecer, o rosto de outro Mahmud, o mulá marxista-islâmico, estava contorcido de raiva.

— Você se deitou com este homem? — gritou. — Diante de Deus, você se deitou com ele?

Azadeh estava de joelhos diante dele, apavorada.

— O senhor não tem nenhum direito de invadir...

— Você se deitou com este homem?

— Eu... eu sou fiel ao meu... meu marido — ela gaguejou. Há poucos segundos atrás, ela e Ross estavam sentados nos tapetes da cabana, comendo apressadamente a refeição que ela trouxera, felizes juntos, prontos para partir imediatamente. O chefe aceitara com humildade e gratidão o pishkesh, quatro rúpias de ouro para ele e uma dada em segredo à sua esposa, e dissera a eles para escaparem da aldeia pelo lado da floresta assim que terminassem de comer, abençoando-a. Então a porta fora aberta com violência, estranhos tinham entrado, dominando-os e arrastando-os para fora, atirando-a aos pés de Mahmud e imobilizando Ross.

— Eu sou fiel, eu juro, eu sou fi...

— Fiel? Por que você não está usando o chador! — Ele gritara para ela, com quase toda a aldeia reunida em volta deles, em silêncio e com medo. Uma meia dúzia de homens armados apoiavam-se nas suas armas, dois dominavam Ross, que estava deitado de bruços na neve, inconsciente, com sangue escorrendo da testa.

— Eu estava... eu estava usando o chador mas eu... eu o tirei enquanto estava comendo...

— Você tirou o seu chador numa cabana com a porta fechada enquanto comia com um estranho? O que mais você tinha tirado?

— Nada, nada — disse mais apavorada ainda, apertando o seu casaco em volta do corpo. — Eu só estava comendo e ele não é um estranho, mas um velho amigo... um velho amigo do meu marido — ela se corrigiu apressadamente, mas o mulá havia notado a hesitação. — Abdullah Khan é meu pai e o senhor não tem nenhum direito...

— Velho amigo? Se você não é culpada, não tem nada a temer! Diante de Deus, você se deitou com ele? Jure!

— Calênder, mande chamar o meu pai, mande chamá-lo! — O calênder não se moveu. Todos os olhos estavam presos nela. Sem poder fazer nada, ela viu o sangue na neve, o seu Johnny gemendo, voltando a si. — Eu juro por Deus que sou fiel ao meu marido! — Ela gritou. O grito atingiu a todos eles e entrou na consciência de Ross e o fez acordar.

— Responda à pergunta, mulher! É sim ou não? Em nome de Deus, você se deitou com ele? — O mulá estava em pé, debruçado sobre ela como um corvo agourento, os aldeões esperando, todo mundo esperando, as árvores e o vento esperando... até mesmo Deus.

— Insha'Allah!

O medo a abandonou. Em seu lugar ficou o ódio. Ela encarou Mahmud enquanto se levantava. — Em nome de Deus, eu sou e sempre fui fiel ao meu marido — ela declarou. — Em nome de Deus, sim, eu amei este homem, há muitos anos atrás.

Suas palavras fizeram estremecer muitos dos que estavam lá e Ross ficou perplexo por ela ter admitido isso.

— Meretriz! Mulher perdida! Você admite abertamente a sua culpa. Você será punida de acordo com...

— Não — Ross gritou para ele. Ele se ajoelhou e embora os dois mujhadins tivessem armas apontadas para a sua cabeça, ele os ignorou. — Não foi culpa de Sua Alteza. O culpado sou eu, só eu, só eu!

— Você será punido, infiel, não se preocupe — disse Mahmud, depois voltou-se para os aldeões. — Todos vocês ouviram a meretriz admitir fornicação, todos vocês ouviram o infiel admitir fornicação. Para ela só existe um castigo. Para o infiel... o que deve acontecer com o infiel?

Os aldeões esperaram. O mulá não era o mulá deles, nem da aldeia, nem era um mulá verdadeiro, mas um marxista-islâmico. Ele viera sem ser convidado. Ninguém sabia por que ele viera, só que ele aparecera subitamente como a fúria de Deus, junto com os esquerdistas, que também não eram da aldeia.

Não eram xiitas verdadeiros, apenas loucos. O imã não dissera cinqüenta vezes que todos esses homens eram loucos, que só fingiam servir a Deus, secretamente adorando o Satã Marx-Lenin?

— Bem? Ele deve partilhar do castigo dela?

Ninguém respondeu. O mulá e seus homens estavam armados.

Azadeh sentiu todos os olhos cravados nela, mas não conseguiu mais se mover nem falar. Ela ficou lá em pé, com os joelhos tremendo, as vozes distantes, até mesmo a de Ross gritando:

— Vocês não têm nenhum direito de julgar a ela nem a mim. Vocês estão desafiando a Deus... — um dos homens lhe deu um empurrão brutal que o fez cair no chão e depois pôs a bota no pescoço dele, imobilizando-o.

— Vamos castrá-lo e terminar com isso — disse o homem e outro retrucou:

— Não, foi a mulher que o tentou. Eu a vi levantar o chador para ele na cabana na noite passada. Olhe para ela agora, tentando-nos a todos. O castigo para ele não são cem chibatadas?

— Ele pôs as mãos nela, cortem as mãos dele — disse um outro.

— Ótimo — concordou Mahmud. — Primeiro as mãos, depois o chicote. Amarrem-no!

Azadeh tentou gritar contra esta maldade, mas nenhum som saiu da sua garganta, o sangue batia nos seus ouvidos, seu estômago estava revirado, sua mente confusa, enquanto eles arrastavam o seu Johnny, lutando e esperneando, para amarrá-lo com os braços e as pernas abertas entre duas estacas — lembrando-se de quando ela e Hakim eram crianças e ele, cheio de audácia, apanhara uma pedra e atirara no gato, e o gato tinha berrado enquanto rolava no chão, ferido, e tentava fugir, berrando o tempo todo até que um guarda atirara nele, mas agora... agora ela sabia que ninguém iria atirar nela. Ela se jogou em cima de Mahmud, com as unhas de fora, mas perdeu as forças e desmaiou.

Mahmud olhou para ela.

— Encostem-na na parede — disse para alguns dos seus homens —, depois tragam o seu chador. — Ele se virou e olhou para os aldeões. — Quem é o açougueiro aqui? Quem é o açougueiro da aldeia? — Ninguém respondeu. Sua voz ficou mais dura. — Calênder, quem é o seu açougueiro?

Rapidamente, o chefe apontou para um homem no meio da multidão, um homem pequeno, vestido com roupas grosseiras.

— Abrim, Abrim é o nosso açougueiro.

— Vá buscar a sua faca mais afiada — disse-lhe Mahmud. Os outros vão apanhar as pedras.

Abrim foi fazer o que ele mandou. Seja como Deus quiser, os outros murmuraram.

— Vocês já assistiram a algum apedrejamento? — perguntou alguém. Uma mulher muito velha respondeu:

— Eu assisti a um, uma vez. Foi em Tabriz, quando eu era menina. — Sua voz tremeu. — A adúltera era esposa de um lojista do bazar, sim, eu me lembro que era a esposa de um lojista. O seu amante também era um lojista e eles cortaram a cabeça dele em frente à mesquita, depois os homens a apedrejaram. As mulheres também podiam jogar pedras se quisessem, mas não jogaram, eu não vi nenhuma mulher fazer isso. O apedrejamento levou muito tempo e durante anos eu ouvi os gritos.

O adultério é um grande mal e tem que ser castigado, quem quer que seja a pecadora, até mesmo ela. O Corão manda cem chicotadas para o homem... o mulá é o juiz, não nós. — disse o calênder

Mas ele não é um mulá de verdade e o imã alertou contra a maldade deles!

— O mulá é o mulá, a lei é a lei — disse sombriamente o calênder, desejando secretamente ver o khan humilhado e esta mulher que ensinara coisas novas e perturbadoras para os seus filhos destruída. — Apanhem as pedras.

Mahmud estava parado na neve, ignorando o frio, os aldeões, o Sabotador que praguejava e gemia e, desesperado, tentava soltar-se das cordas e a mulher inerte no muro.

Naquela manhã, antes do amanhecer, quando viera para tomar a base, ele ouvira dizer que o Sabotador e ela estavam na aldeia. Ela, a da sauna, ele pensara, tomado pela raiva, ela que se exibira, a rameira, filha do maldito khan que finge ser o nosso protetor mas que traiu a nós e a mim, planejando uma tentativa de assassinato contra mim na noite passada, uma rajada de metralhadora do lado de fora da mesquita depois da última oração, que matou a muitos, mas não a mim. O khan quis que eu fosse morto, eu que estou protegido pela Palavra Sagrada de que o Islã junto com Marx-Lenin são a única maneira de ajudar o mundo a se erguer.

Ele a olhou, vendo as pernas longas vestidas com calças azuis de esqui, o cabelo solto, os seios salientes sob a jaqueta azul e branca. Rameira, pensou, odiando-a por tentá-lo. Um dos seus homens atirou o chador em cima dela. Ela gemeu um pouco mas não saiu do seu transe.

— Eu estou pronto — disse o açougueiro, empunhando a faca.

— Primeiro a mão direita — disse Mahmud aos seus homens. — Amarrem-no acima dos pulsos.

Eles amarraram tiras de saco, rasgadas da janela, bem apertadas, com os aldeões se aproximando para ver melhor, e Ross usou toda a sua energia para impedir que o terror o dominasse, vendo apenas a cara marcada de varíola por cima da faca de trinchar, o bigode e a barba desgrenhados, os olhos sem expressão, o polegar do homem experimentando a faca distraidamente. Então os seus olhos entraram em foco. Ele viu Azadeh sair do seu torpor e se lembrou.

— A granada! — berrou. — Azadeh, a granada!

Ela o ouviu claramente e procurou no bolso da jaqueta enquanto ele continuava a berrar, assustando o açougueiro, atraindo a atenção de todo mundo para ele. O açougueiro se aproximou xingando-o, agarrou-lhe a mão direita com firmeza, fascinado por ela, moveu-a de um lado para o outro, com a faca preparada, decidindo onde cortar, dando a Azadeh o tempo necessário para atravessar o pequeno espaço que os separava e atirar-se contra ele, fazendo-o voar pela neve junto com a faca, depois virar-se para Mahmud, tirar o pino e ficar lá, tremendo, segurando a alavanca.

— Afastem-se dele — ela gritou. — Afastem-se!

Mahmud não se moveu. O resto todo se espalhou, alguns tropeçando, correndo através da praça para se abrigar, xingando e gritando.

— Rápido, para cá, Azadeh — gritou Ross. — Azadehl — Ela escutou através do seu torpor e obedeceu, recuando na direção dele, vigiando Mahmud, com bolhas de espuma nos cantos da boca. Então Ross viu Mahmud se virar e caminhar em direção a um dos seus homens que estava fora de alcance e gemeu, sabendo o que ia acontecer. — Rápido, apanhe a faca e solte-me — disse para distrai-la. — Não solte a alavanca — eu os vigio para você.

Atrás dela, ele viu o mulá pegar o rifle de um dos seus homens, destravá-lo e se virar para eles. Agora ela estava com a faca do açougueiro e estendeu a mão para cortar as cordas que lhe prendiam a mão direita e ele sabia que a bala iria matá-la ou feri-la, a alavanca se soltaria, haveria quatro segundos de espera, e depois o esquecimento para ambos, mas rápido e limpo e sem obscenidades.

— Eu sempre a amei, Azadeh — sussurrou e sorriu, e ela levantou a cabeça, espantada, e sorriu de volta.

O rifle disparou, o coração dele parou, depois houve outro tiro e mais outro, mas eles não vieram de Mahmud e sim da floresta, e agora Mahmud gritava e se contorcia na neve. Então uma voz acompanhou os tiros:

— Allah-u Akbarl Morte a todos os inimigos de Deus! Morte a todos os esquerdistas, morte a todos os inimigos do imã!

Com um urro de ódio, um dos mujhadins correu em direção à floresta e morreu. No mesmo instante, os outros fugiram, tropeçando uns nos outros na pressa de se esconder. Em poucos segundos a praça da aldeia estava vazia, exceto pelos uivos de Mahmud, com o turbante fora da cabeça. Na floresta, o líder do grupo de quatro assassinos do Tudeh, que o tinham seguido desde o amanhecer, fez com que ele se calasse com uma rajada de metralhadora, depois os quatro se retiraram tão silenciosamente quanto tinham chegado.

Ross e Azadeh ficaram olhando espantados para a aldeia vazia.

— Não pode ser... não pode ser... — ela murmurou, ainda tonta.

— Não largue a alavanca — ele disse com voz rouca. — Não largue a alavanca. Rápido, solte-me... rápido!

A faca era muito afiada. Suas mãos estavam trêmulas e vagarosas e ela o cortou, mas não muito fundo. Assim que ficou livre, ele agarrou a granada, com as mãos dormentes e doendo, mas segurou a alavanca, começando a respirar de novo. Ele entrou cambaleando na cabana, encontrou o kookri que ficara enrolado no cobertor durante a primeira luta, enfiou-o na bainha e pegou a carabina. Na porta, ele parou.

— Azadeh, rápido, apanhe o seu chador e a mochila e siga-me. — Ela ficou olhando para ele. — Rápido!

Ela obedeceu como um autômato, e ele a levou para fora da aldeia e para dentro da floresta, com a granada na mão direita e a arma na esquerda. Depois de uma corrida de um quarto de hora, ele parou e escutou. Ninguém os seguia. Azadeh ofegava atrás dele. Ele viu que ela trouxera a mochila mas esquecera o chador. Sua roupa de esqui azul-clara sobressaía nitidamente na neve e no meio das árvores. Ele continuou a correr. Ela foi tropeçando atrás dele, sem conseguir falar. Mais cem metros sem problemas.

Não via ainda nenhum lugar para parar. Ele continuou, mais devagar agora, com uma dor violenta do lado, quase vomitando, com a granada ainda pronta. Azadeh fraquejando cada vez mais. Ele encontrou o caminho que levava aos fundos da base. Ainda não estavam sendo perseguidos. Perto da elevação, nos fundos da cabana de Erikki, ele parou, esperando por Azadeh, então seu estômago piorou, ele tropeçou e caiu de joelhos, vomitando. Muito fraco, ele se levantou e subiu a elevação para se proteger melhor. Quando Azadeh o alcançou, respirava com dificuldade. Ela se atirou na neve ao lado dele, vomitando.

Lá embaixo, perto do hangar, ele viu o 206, sendo lavado por um dos mecânicos. Ótimo, pensou, talvez o estejam preparando para voar. Três revolucionários armados estavam numa varanda próxima, sob a projeção de um trailer, fumando, abrigados do vento. Não havia nenhum sinal de vida no resto da base, embora saísse fumaça da chaminé da cabana de Erikki e da que era partilhada pelos mecânicos, e da cozinha. Ele podia ver até a estrada. A barreira ainda estava lá, guardada por alguns homens, e havia alguns caminhões e carros parados.

Seus olhos voltaram-se novamente para os homens na varanda e ele pensou em Gueng e em como o seu corpo fora atirado como um saco de ossos velhos na sujeira da pick-up, debaixo dos pés deles, talvez desses mesmos homens, talvez não. Por um momento, sua cabeça doeu com a força do ódio. Ele olhou para Azadeh. Ela respirava melhor, ainda mais ou menos em choque, sem enxergá-lo de verdade, com um filete de saliva e de vômito escorrendo pelo queixo. Com a manga, ele limpou-lhe o rosto.

— Nós estamos bem agora, descanse um pouco e depois continuamos.

Ela balançou a cabeça e a apoiou nos braços, mais uma vez no seu mundo particular. Ele voltou a se concentrar na base.

Passaram-se dez minutos. Quase nada mudou. Lá em cima, a camada de nuvens era um cobertor sujo, e a neve pesada. Dois dos homens armados entraram no escritório e ele podia vê-los de vez em quando através das janelas. O terceiro homem prestava pouca atenção ao 206. Não havia nenhum outro movimento. Então um cozinheiro saiu da cozinha, urinou na neve, e tornou a entrar. Mais algum tempo. Agora um dos guardas saiu do escritório e foi andando pela neve até o trailer dos mecânicos, com um M16 pendurado no ombro. Abriu a porta e entrou. Alguns instantes depois tornou a sair. Com ele, estava um europeu alto, vestindo roupa de piloto, e um outro homem. Ross reconheceu Nogger Lane e o outro mecânico. O mecânico disse alguma coisa a Lane, depois acenou e tornou a entrar no trailer. O guarda e o piloto foram andando em direção ao 206.

Todo mundo localizado, pensou Ross, com o coração disparado. Desajeitadamente, ele checou a carabina, com a granada na mão direita atrapalhando, depois colocou no bolso os dois últimos cartuchos e a última granada que ficara na mochila. De repente, o medo o invadiu e ele teve vontade de sair correndo, oh, Deus, ajude-me a fugir, a me esconder, a estar em casa, seguro, em qualquer lugar longe dali...

— Azadeh, eu vou até lá agora — ele se forçou a dizer. — Prepare-se para correr para o helicóptero assim que eu acenar ou gritar. Preparada? — E a viu olhar para ele e balançar a cabeça, formulando um sim com os lábios, mas ele não tinha certeza se ela realmente compreendera. Ele tornou a repetir e sorriu encorajadoramente. — Não se preocupe — Ela concordou com a cabeça.

Então abriu a bainha do kookri e saiu correndo como um animal selvagem atrás de alimento.

Ele deslizou por trás da cabana de Erikki, protegido pela sauna. Lá dentro havia barulho de crianças e uma voz de mulher. A boca seca, a granada morna nas mãos. Esgueirando-se de abrigo em abrigo, enormes tambores, pilhas de canos e serrotes e toras de reserva, sempre mais para perto do treiller-escritório. Olhando em volta para ver o guarda e o piloto aproximando-se do hangar, o homem da varanda observando-os preguiçosamente. A porta do escritório se abriu, um outro guarda saiu tendo ao seu lado um novo homem, mais velho, maior, sem barba, possivelmente europeu, usando roupas de melhor qualidade e armado com uma arma Sten. No cinto de couro grosso em volta da cintura dele, havia um kookri dentro da bainha.

Ross soltou a alavanca, ela pulou.

— Um, dois, três — e ele saiu de onde estava, atirou a granada nos homens que estavam na varanda, a quarenta metros de distância, e tornou a se abaixar atrás do tanque, já preparando outra.

Eles o tinham visto. Por um momento ficaram paralisados, depois enquanto se atiravam no chão para se proteger, a granada explodiu, destruindo a maior parte da varanda, matando um deles, atordoando o outro e mutilando o terceiro. No mesmo instante, Ross correu, com a carabina apontada, com a nova granada na mão direita, o dedo indicador no gatilho. Não havia nenhum movimento na varanda, mas perto do hangar o mecânico e o piloto se atiraram na neve e puseram os braços sobre a cabeça, em pânico, o guarda correu para o hangar e, por um momento, ficou desprotegido. Ross atirou e errou, correu para o hangar, notou uma porta nos fundos e desviou-se para lá. Ele abriu a porta e pulou para dentro. O inimigo estava do outro lado, atrás de um motor, com a arma apontada para a outra porta. Ross estourou a cabeça dele, com o tiro ecoando nas paredes de chapa ondulada, depois correu para a outra porta. Através dela, ele podia ver o mecânico e Nogger Lane deitados na neve, perto do 206. Ainda protegido, ele gritou para eles:

— Rápido! Quantos inimigos há aqui? — Nenhuma resposta. — Pelo amor de Deus, respondam!

Nogger Lane levantou a cabeça, com o rosto branco.

— Não atire, nós somos civis, ingleses, não atire!

— Quantos inimigos existem aqui?

— Havia... havia cinco... cinco... este aqui e o resto no escritório... eu acho que no escritório...

Ross correu para a porta traseira, atirou-se no chão e espiou para fora, no nível do chão. Nenhum movimento. O escritório estava a cinqüenta metros de distância — a única proteção era rodeando o caminhão. Ele ficou em pé e atirou-se para lá. Balas arrancaram pedaços de metal e depois pararam. Ele tinha visto o clarão saindo de uma janela quebrada do escritório.

Depois do caminhão havia um espaço aberto, e neste espaço, um fosso que se estendia a perder de vista. Se eles continuarem lá dentro, eu os pego. Se eles saírem, e devem sair, sabendo que estou sozinho, as chances são maiores para eles.

Ele se arrastou para a frente, de barriga, pronto para a batalha. Estava tudo quieto, o vento, os pássaros, o inimigo. Estavam todos esperando. Dentro do fosso agora. Avançando devagar. Chegando mais perto. Vozes e uma porta rangendo. Silêncio de novo. Mais um metro. Mais um. Agora! Ele preparou os joelhos, enfiou os dedos dos pés na neve, soltou a alavanca da granada, contou até três, ficou em pé de um salto, escorregou mas conseguiu manter o equilíbrio, e atirou a granada pela janela quebrada, mais à frente do homem que estava lá em pé, com a arma apontada para ele, e tornou a se atirar na neve. A explosão fez cessar a rajada de metralhadora, quase explodiu os seus próprios tímpanos e mais uma vez ele estava de pé, correndo em direção ao trailer, atirando enquanto corria. Pulou por cima de um cadáver e continuou, ainda atirando. De repente, a sua arma parou e o seu estômago revirou-se, até conseguir tirar o cartucho usado e enfiar um novo. Ele tornou a atirar no cara da metralhadora e depois parou.

Silêncio. Depois um grito ali perto. Cautelosamente, ele deu um chute na porta quebrada e saiu para a varanda. O que tinha gritado estava sem as pernas, enlouquecido, mas ainda vivo. Em volta da sua cintura estava o cinto de couro e o kookri que tinham sido de Gueng. Ross ficou cego de fúria, e arrancou o kookri da bainha.

— Você conseguiu isto na barreira? — gritou em farsi.

— Ajude-me ajude-me ajude-me... — Um paroxismo em alguma língua estrangeira e depois: — Quem é você quem... ajude-me... — O homem continuou a gritar e misturado com os gritos exclamava: — Ajude-me... sim eu matei o Sabotador... ajude-me...

Com um berro de gelar o sangue, Ross atirou-se sobre ele e quando sua vista clareou, ele estava olhando para a cabeça que pendia da sua mão esquerda. Enojado, ele a deixou cair e virou-se. Por um momento, não soube onde estava, depois sua mente clareou, suas narinas encheram-se com o cheiro de sangue e pólvora, ele se viu nos destroços do trailer e olhou em volta.

A base estava paralisada, mas havia homens correndo em direção a ela, vindos da barreira. Perto do helicóptero, Lane e o mecânico ainda estavam imóveis na neve. Correu para eles, procurando proteger-se.

Nogger Lane e o mecânico Arberry o viram chegando e ficaram apavorados — o maníaco nativo, fedayim ou mujhadin, de barba pontuda, cabelos desgrenhados e olhos selvagens, que falava um inglês perfeito, cujas mãos estavam manchadas de sangue da cabeça que há poucos instantes eles o viram arrancar de um único golpe e com um urro alucinado, a faca manchada de sangue ainda nas mãos, outra na bainha, a carabina na outra mão. Eles ficaram de joelhos, com as mãos para cima.

— Não nos mate. Nós somos amigos, civis, não nos ma...

— Calem a boca! Preparem-se para decolar. Rápido! — Nogger Lane ficou estarrecido.

— O quê?

— Pelo amor de Deus, ande logo! — Ross disse zangado, furioso peio pavor do rosto deles, completamente esquecido da sua própria aparência. — Você — ele apontou para o mecânico com a faca de Gueng. — Você está vendo aquela elevação ali?

— Sim... sim, senhor — Arberry respondeu.

— Vá até lá o mais depressa que puder, há uma moça lá, traga-a até aqui... — Ele parou ao ver Azadeh sair da beirada da floresta e começar a correr pela colina em direção a eles. — Esqueça, vá buscar o outro mecânico, depressa pelo amor de Deus, os filhos da mãe da barreira estarão aqui a qualquer momento

— Vá, ande! — Arberry saiu correndo, apavorado, mas mais apavorado ainda com os outros homens que podia ver vindo pela estrada. Ross virou-se para Nogger Lane: — Eu lhe disse para ligar o motor.

— Sim... sim senhor... aquela... aquela mulher... não é Azadeh, a Azadeh de Erikki, é?

— Sim. Eu lhe disse para ligar os motores.

Nogger Lane nunca decolou com um 206 tão depressa, nem os mecânicos nunca correram tanto. Azadeh ainda tinha que atravessar uns cem metros e os inimigos já estavam muito perto. Então Ross se abaixou sob as hélices e se pôs entre ela e eles, esvaziando a arma na direção deles. Eles abaixaram as cabeças e se espalharam, e ele atravessou o espaço vazio na direção deles com um berro. Algumas cabeças se levantaram. Mais uma rajada de balas e mais outra, economizando munição, fez com que eles conservassem as cabeças baixas, Azadeh se aproximando agora, mas mais devagar. Ela conseguiu fazer um último esforço e passou por ele, cambaleando em direção à cabine, sendo puxada para dentro pelos mecânicos. Ross tornou a atirar, recuando, pulou para o assento da frente e eles subiram.


44


BASE AÉREA DE KOWISS: 17:20H. Starke pegou a carta que tinha recebido e olhou para ela. O ás de espadas. Ele resmungou, supersticioso como a maioria dos pilotos, mas colocou-a na mão junto com as outras cartas. Os cinco estavam no seu bangalô, jogando pôquer: Freddy Ayre, Doe Nutt, Pop Kelly e Tom Lochart, que chegara de Zagros Três na véspera com mais um carregamento de peças, prosseguindo com a evacuação, mas tarde demais para a volta. Por causa da ordem proibindo vôos hoje, dia santo, ele estava retido lá até a madrugada do dia seguinte. Havia fogo na lareira, a tarde estava fria. Em frente a eles havia uma pilha de dinheiro, a maior era de Kelly, a menor de Doe Nutt.

— Quantas cartas, Pop? — perguntou Ayre.

— Uma — Kelly disse sem hesitação, descartou e colocou as quatro que conservara na mesa, viradas para baixo. Ele era um homem alto, magro, com o rosto enrugado, cabelos louros e ralos, ex-RAF e com cerca de quarenta anos. Seu apelido era 'Pop' porque ele tinha sete filhos e mais um a caminho.

Ayre entregou-lhe a carta fazendo um floreio. Kelly simplesmente olhou-a por um momento, depois, sem virá-la, misturou-a vagarosamente com as outras e, com muito cuidado e bem devagar, levantou as cartas, deu uma olhadinha no canto direito de cada carta e suspirou alegremente.

— Merda! — disse Ayre e todos riram. Exceto Lochart, que olhava sombriamente para as suas cartas. Starke franziu a testa, preocupado com ele mas muito contente de que estivesse lá. Havia a mensagem secreta de Gavallan, que Jonh Hogg trouxera no 125, para ser discutida.

— Eu abro com mil riais — disse Doe Nutt e todo mundo o olhou. Normalmente, ele apostava no máximo cem riais.

Distraidamente, Lochart estudou as suas cartas, sem muito interesse no jogo, com a mente em Zagros e em Xarazade. Na noite anterior, a BBC tinha relatado grandes agitações durante as marchas de protesto das mulheres em Teerã, Isfahan e Meshed, com novas marchas marcadas para hoje e amanhã.

— É muito para mim — ele disse, e jogou as cartas na mesa.

— Eu vou, Doe, e aumento para dois mil — disse Starke e a confiança de Doe Nutt desapareceu. Nutt tinha pedido duas cartas, Starke uma e Ayre três.

Kelly olhou para a sua seqüência, de quatro a oito.

— Os seus dois mil, Duke, e aumento para três mil.

— Desisto — disse Ayre, na mesma hora, atirando na mesa dois pares, de reis e dez.

— Desisto — disse Doe Nutt, com um suspiro de alívio, chocado consigo mesmo por ter sido tão ousado e atirou na mesa as três damas que recebera, certo de que Starke tinha uma seqüência, um flush ou um full.

— Os seus três mil, Pop e aumento para trinta... mil — disse Starke, suavemente, sentindo-se bem por dentro. Ele desistira de um par de seis para manter quatro copas, tentando um flush. Com o ás de espadas tinha apenas um flush incompleto, mas que se tornaria uma mão vitoriosa caso pudesse blefar e fazer Kelly recuar.

Todos os olhos estavam em Kelly. O aposento estava silencioso. Até Lochart ficou interessado.

Starke esperou pacientemente, controlando o rosto e as mãos, inquieto com o ar de confiança que cercava Kelly e imaginando o que faria se Kelly tornasse a aumentar a aposta, sabendo o que Manuela diria se descobrisse que ele estava disposto a colocar uma semana de salário num flush incompleto.

Ela ia ter um ataque, ele pensou e sorriu.

Kelly estava suando. Ele tinha visto o ligeiro sorriso de Starke. Já o apanhara blefando uma vez, mas isso fora há muitas semanas atrás e não por trinta mil, só por quatro. Não posso me arriscar a perder o salário de uma semana, mas esse sem-vergonha pode estar blefando. Alguma coisa me diz que o velho Duke está blefando e eu bem que estou precisando de um salário extra. Kelly tornou a verificar as cartas para ter certeza de que a sua seqüência era uma seqüência — é claro que é uma maldita seqüência, pelo amor de Deus, e Duke está blefando. E começou a dizer:

— Eu aceito os seus trinta mil — mas parou e disse: — Pode levar, Duke. — Jogou as cartas na mesa e todo mundo riu. Exceto Starke. Ele pegou o baralho e enfiou as cartas lá dentro e embaralhou para ter certeza de que não seriam vistas.

— Eu aposto como você estava blefando, Duke — disse Lochart e riu.

— Eu? Com um straight flush? — disse Starke, inocentemente, dando uma risadinha. Ele olhou as horas. — Eu tenho que fazer a ronda. Vamos parar e continuar depois do jantar, certo? Tom, você quer vir comigo?

— Claro. — Lochart vestiu o casaco e saiu com Starke.

Esta era a melhor hora do dia para eles em épocas normais — pouco antes de escurecer, todos os vôos terminados, todos os helicópteros lavados e reabastecidos, prontos para o dia seguinte, a expectativa de um drinque, tempo para ler um pouco, escrever algumas cartas, ouvir música, comer, ligar para casa e depois dormir.

A base estava em ordem.

— Vamos dar uma volta, Tom — disse Starke. Quando é que você vai voltar para Teerã?

— Que tal hoje à noite?

— Está mal, hein?

— Pior. Eu sei que Xarazade esteve na Marcha das Mulheres, embora eu tivesse dito a ela para não ir, além de tudo mais.

Na noite passada, Lochart contara a ele a respeito do pai dela, e tudo sobre a perda do HBC. Starke ficara estarrecido, ainda estava, e mais uma vez deu graças a Deus por não saber de nada quando foi levado para interrogatório por Hussein e seus Faixas Verdes.

— Mac já deve estar cuidando de Xarazade, Tom. Ele vai providenciar para que ela fique bem.

Quando Lochart chegou lá, eles conseguiram falar com McIver no HF, com a recepção boa para variar, e tinham pedido a ele para ver se ela estava bem. Dentro de poucos minutos, eles tornariam a fazer a sua única ligação diária para o QG em Teerã.

— As chamadas estão restritas, mas só até a situação se normalizar, então vocês poderão ligar quantas vezes quiserem. Dentro em breve — dissera o comandante da base, major Changiz. E embora eles estivessem monitorizados pela torre principal que ficava na base da Força Aérea, o vínculo mantinha a sanidade deles e dava uma aparência de normalidade.

— Depois que Zagros Três estiver vazio, no domingo, e vocês todos estiverem aqui, por que não levar o 206 logo cedo na segunda-feira? Eu vou arranjar isto com Mac — disse Starke.

— Obrigado, seria ótimo. — Agora que a sua base estava fechada, Lochart estava nominalmente sob o comando de Starke.

— Você já pensou em dar o fora, pilotar o 212 no lugar de Scot? Uma vez fora de Zagros ele deverá ficar em segurança. Ou melhor ainda, vocês dois partirem? Eu vou falar com Mac.

— Não, obrigado, Xarazade não pode deixar a família neste momento.

Eles continuaram a caminhar mais um pouco. A noite estava caindo depressa, fria mas seca, o ar cheirando a gasolina por causa da enorme refinaria que ficava ali perto e que ainda estava quase que totalmente desativada e às escuras, exceto pelas altas chaminés queimando gás de petróleo. Na base, as luzes já estavam acesas na maioria dos bangalôs, hangares e na cozinha — eles tinham os seus próprios geradores para o caso de faltar eletricidade na base. O major Changiz dissera a Starke que não havia mais nenhuma possibilidade do sistema de geradores da base ser prejudicado.

— A revolução já acabou, capitão, o imã está no governo

— E os esquerdistas?

— O imã ordenou que eles fossem eliminados a menos que se adaptassem ao nosso Estado islâmico — respondera o major Changiz, com voz dura e ameaçadora. — Esquerdistas, curdos, baha'is, estrangeiros, qualquer inimigo. O imã sabe o que fazer.

Imã. Foi a mesma coisa durante o interrogatório de Starke diante do komiteh de Hussein. Quasxi como se ele fosse um semideus, pensara Starke. Hussein fizera o papel de juiz e promotor e a sala, no prédio da mesquita, estava lotada de homens hostis de todas as idades, todos Faixas Verdes, cinco juizes — nenhum advogado.

— O que você sabe sobre a fuga dos inimigos do Islã de Isfahan, de helicóptero?

— Nada

Imediatamente, um dos outros quatro Juizes, todos jovens, rudes e quase analfabetos, disse:

— Ele é culpado de crimes contra Deus e de crimes contra o Irã por ser um explorador a serviço dos demônios americanos. Culpado.

— Não — atalhou Hussein. — Isto é um tribunal, um tribunal corânico. Ele está aqui para responder a perguntas, não para ser acusado de crimes, ainda não. Ele não é acusado de crime algum. Capitão, diga-nos tudo o que sabe sobre q crime de Isfahan.

O ar da sala era fétido. Starke não viu nem um rosto simpático e, no entanto, todos sabiam quem ele era, todos sabiam sobre a sua batalha contra os fedayins em Bandar Delam. E seu medo era como uma dor incômoda, por saber que estava sozinho agora, à mercê deles.

Tomou fôlego e escolheu as palavras cuidadosamente.

— Em nome de Deus, o misericordioso, o compassivo — disse, começando do jeito que começam todas as surás do Corão, e uma agitação de surpresa percorreu a sala. — Eu mesmo não sei de nada, não testemunhei nada, nem tive nada a ver com isso. Eu estava em Bandar Delam na ocasião. Pelo que eu saiba, nenhum dos meus homens teve nada a ver com isso. Eu só sei o que Zataki de Abadan me contou quando voltou de Isfahan. Ele disse exatamente o seguinte: "Nós ouvimos dizer que na terça-feira alguns partidários do xá, todos oficiais, fugiram para o sul num helicóptero pilotado por um americano. Que Deus amaldiçoe todos os adoradores de Satã." Foi só isso o que ele disse. Isto é tudo o que sei.

— Você é um adorador de Satã — interrompeu um dos outros juizes triunfantemente —, você é americano. Você é culpado.

— Eu sou um seguidor do Livro e já provei que não sou nenhum adorador de Satã. Se não fosse por mim muitos aqui nesta sala estariam mortos.

— Se nós tivéssemos morrido na base estaríamos agora no paraíso — gritou um Faixa Verde, zangado, lá do fundo da sala. — Nós estávamos fazendo o trabalho de Deus. Não tinha nada a ver com você, infiel — gritos de apoio. Subitamente, Starke soltou um urro de raiva.

— Por Deus e pelo Profeta de Deus — gritou — eu sou um seguidor do Livro e o Profeta nos concedeu privilégios e proteções especiais! — Ele estava tremendo de raiva, seu medo desaparecera, ele estava com ódio deste tribunal ilegal e da sua cegueira, estupidez, ignorância e intolerância. — O Corão diz; "Oh, Povo do Livro, não saia dos caminhos da verdade da sua religião; nem siga os desejos daqueles que já se perderam e que fizeram com que muitos outros se perdessem". Eu não o fiz — ele terminou com a voz áspera, erguendo o punho — e que Deus amaldiçoe aquele que disser o contrário.

Estarrecidos, todos ficaram olhando para ele, até Hussein.

Um dos juizes quebrou o silêncio.

— Você... você citou o Corão? Você lê árabe tão bem quanto fala farsi?

— Não, não, mas...

— Então você teve um professor, um mulá?

— Não, não, eu li...

— Então você é um feiticeiro! — Um outro gritou. — Como você pode conhecer o Corão se não teve professor nem sabe ler árabe, a língua sagrada do Corão?

— Eu o li em inglês, na minha própria língua.

O espanto e o descrédito foram maiores ainda, até que Hussein falou:

— O que ele diz é verdade. O Corão está traduzido em muitas línguas estrangeiras.

Espanto ainda maior. Um jovem olhou para ele com os olhos míopes por trás de lentes grossas e rachadas, com o rosto marcado de varíola.

— Se está traduzido em outras línguas, Excelência, por que não foi traduzido para o farsi para que pudéssemos ler — caso soubéssemos ler?

— A língua do Sagrado Corão é o árabe — disse Hussein. — Para conhecer direito o Sagrado Corão o crente tem que ler o árabe. Os mulás de todos os países aprendem árabe por este motivo. O Profeta, cujo nome seja louvado, era árabe, Deus falou com ele nesta língua para outros escreverem. Para conhecer verdadeiramente o Sagrado Corão, ele precisa ser lido da forma como foi escrito. — Hussein virou seus olhos negros para Starke. — Uma tradução fica sempre a dever ao original, não é verdade?

Starke notou a expressão estranha do mulá.

— Sim — disse, com a sua intuição dizendo-lhe para concordar. — Sim, sim, é verdade. Eu gostaria de poder lê-lo no original.

Houve outro silêncio. O jovem de óculos disse:

— Se você conhece tão bem o Corão que é capaz de citá-lo como se fosse um mulá, por que você não é muçulmano, por que não é um crente?

Uma agitação percorreu a sala. Starke hesitou, quase em pânico, sem saber como responder mas certo de que uma resposta errada o mandaria para a forca! O silêncio aumentou, então ele ouviu a própria voz dizendo:

— Porque Deus ainda não retirou a pele que cobre os meus ouvidos, nem abriu ainda o meu espírito — depois acrescentou involuntariamente: — Eu não resisto e espero. Espero pacientemente.

A atmosfera da sala mudou. Agora o silêncio era gentil. Compassivo. Hussein falou baixinho:

— Vá até o imã e sua espera estará terminada. O imã abriria o seu espírito para a glória de Deus. O imã abriria o seu espírito. Eu sei. Eu já me sentei aos pés do imã. Eu ouvi o imã pregando a Palavra, ensinando a Lei, espalhando a Calma de Deus. — Um suspiro percorreu a sala e agora todos estavam concentrados no mulá, observavam seus olhos e a luz que havia neles, percebiam a modificação da sua voz e o êxtase que havia nela. Até Starke se sentia abatido e ao mesmo tempo exaltado. — O imã não veio para abrir o espírito do mundo? O imã não apareceu no meio de nós para limpar o Islã da maldade e para espalhar o Islã pelo mundo, para carregar a mensagem de Deus... como foi prometido? O imã é.

A palavra ficou soando na sala. Todos eles entenderam. E também Starke. Mahdi! ele pensou, disfarçando o seu choque. Hussein está dando a entender que Khomeini é, na realidade, o Mahdi, o legendário décimo-segundo imã que desapareceu há séculos e que os xiitas acreditam que esteja apenas oculto da vista humana — o Imortal, que Deus prometeu que reapareceria algum dia para reinar sobre um mundo perfeito.

Viu todos eles olhando para o mulá. Muitos balançando a cabeça, com as lágrimas rolando pelo rosto, todos enlevados e satisfeitos e nenhum cético no meio deles. Meu Deus, pensou, atônito, se os iranianos cobrirem Khomeini com este manto, o seu poder não terá limites, haverá vinte, trinta milhões de homens, mulheres e crianças desesperados para cumprir as suas ordens, que caminharão alegremente para a morte a um sinal dele — e por que não? Mahdi poderia garantir-lhes um lugar no paraíso, garantir!

— Deus é grande — disse alguém e outros repetiram e começaram a conversar entre si, guiados por Hussein, esquecidos de Starke. Finalmente, se lembraram dele e o deixaram partir, dizendo:

— Procure o imã, olhe e acredite...

Ao caminhar de volta para o acampamento, seus pés estavam estranhamente leves e ele agora recordava que o ar nunca lhe parecera tão perfumado, que nunca se sentira tão cheio da alegria de viver. Talvez seja porque eu estive muito perto da morte, pensou. Eu era um homem morto e de alguma forma recebi de volta o dom da vida. Por quê? E Tom, por que ele escapou de Isfahan, de Dez Dam e até o próprio HBC? Haverá uma razão? Ou foi apenas sorte?

E agora, no lusco-fusco, ele observava Lochart, muito preocupado com ele. Foi terrível o que houve com o HBC, terrível o que houve com o pai de Xarazade, terrível o beco sem saída em que ele e Xarazade se encontram. Em breve eles terão que escolher: irem juntos para o exílio, de onde provavelmente jamais poderão voltar — ou se separarem, provavelmente para sempre.

— Tom, existe algo de muito especial, muito secreto, só entre nós dois. Johnny Hogg trouxe uma carta de Andy Gavallan. — Eles estavam a uma distância segura da base, caminhando pela estrada, ao longo da cerca de arame farpado, e sem perigo de serem ouvidos. Mesmo assim, ele manteve a voz baixa. — Basicamente, Andy está muito pessimista com relação ao nosso futuro aqui e diz que está pensando em retirar tudo para diminuir o prejuízo.

— Não há necessidade disso — Lochart respondeu depressa, com uma certa impaciência. — As coisas vão voltar ao normal. Têm que voltar. Andy tem que fazer força para isso. Nós estamos fazendo, então ele também pode.

— Ele está fazendo uma força danada, Tom. É apenas uma questão de finanças, você sabe disso melhor do que ninguém. Nós não estamos sendo pagos pelo trabalho feito há meses, não temos trabalho suficiente agora para os aparelhos e os pilotos que estão aqui estão sendo pagos com dinheiro de Aberdeen, o Irã está uma bagunça c nós estamos passando maus bocados aqui.

— Você está dizendo isso porque Zagros Três foi desativado e portanto vai dar um enorme prejuízo? Não é culpa minha se...

— Acalme-se, Tom. Andy foi informado de que todas as companhias estrangeiras, associadas ou sejam lá o que forem, especialmente de helicópteros, serão nacionalizadas muito breve.

Lochart encheu-se de esperança. Isso não me daria uma desculpa perfeita para ficar? Se eles roubarem — nacionalizarem — os nossos aparelhos, vão precisar de pilotos treinados, eu sei falar farsi, poderia treinar iranianos, o que deve ser o objetivo deles e — e quanto ao HBC? Sempre de volta ao HBC, pensou desanimado, sempre de volta ao HBC.

— Como é que sabe disso, Duke?

— Andy disse que foi informado de fonte 'seguríssima'. O que ele está nos pedindo... a você, Scrag, Rudi e eu, é que se ele e Mac conseguirem arquitetar um plano viável, nós e quantos pilotos mais forem necessários saiamos daqui com os nossos aparelhos através do golfo.

Lochart olhou para ele de boca aberta.

— Jesus, você quer dizer simplesmente decolar, sem autorização nem nada?

— Claro... mas fale baixo.

— Ele está louco! Como conseguiríamos coordenar Lengeh, Bandar Delam, Kowiss e Teerã? Todo mundo teria que partir ao mesmo tempo e as distâncias são diferentes.

— De alguma forma isso terá que ser feito, Tom. Andy disse que é isso ou fechar.

— Eu não acredito! A companhia está operando no mundo inteiro.

— Ele diz que se perdermos o Irã estaremos acabados.

— É fácil para ele — Lochart disse com amargura. — É só dinheiro. É fácil forçar a nossa barra quando ele está bem e em segurança e só o que tem a arriscar é dinheiro. Ele está dizendo que se retirar só o pessoal e deixar o resto aqui a S-G vai estourar?

— Sim, é isso o que ele está dizendo.

— Eu não acredito nisso.

Starke deu de ombros. Seus ouvidos perceberam o suave lamento do banshee e eles se viraram para olhar para o outro lado da base, lá no fundo do campo. No lusco-fusco, eles puderam ver Freddy Ayre com suas gaitas de fole onde, com o consentimento de todos, ele tinha permissão para praticar.

— Maldição — Starke disse azedo —, esse barulho me deixa maluco. Lochart ignorou-o.

— Não é possível que você vá concordar com um maldito seqüestro, porque é isso que vai ser! Eu não concordo com isso de jeito nenhum. — Ele viu Starke dar de ombros. — O que dizem os outros?

— Eles ainda não sabem e não serão consultados por enquanto. Como eu disse, isto fica só entre nós, no momento. — Starke consultou o relógio. — Está quase na hora de ligar para o Mac. — Ele viu Lochart estremecer. O lamento das gaitas de fole era levado pelo vento. — Não sei como alguém pode dizer que isso é música — disse. — A idéia de Andy merece ser levada em consideração, Tom. Como um plano extremo.

Lochart não respondeu, sentindo-se mal, achando tudo ruim. Até o ar cheirava mal, poluído pela refinaria ao lado e ele desejou estar de volta a Zagros, lá perto das estrelas, onde o ar e a terra não eram poluídos, mas desejando também, desesperadamente, estar em Teerã que era ainda mais poluída — mas onde ela estava.

— Não conte comigo — disse.

— Pense nisso, Tom.

— Já pensei e estou fora, é loucura, a idéia toda. Assim que você pensar melhor, vai ver que é um plano maluco.

— Claro, meu velho. — Starke imaginou quando o seu amigo iria perceber que ele, Lochart, dentre todos eles, era o que teria mais necessidade de participar, de uma forma ou de outra.


45


NO HOTEL INTERNACIONAL, AL SHARGAZ: 18:42H. —Você poderia fazer isso, Scrag? — perguntou Gavallan, quase ao pôr-do-sol.

— Para mim seria fácil retirar secretamente os meus homens e os meus cinco aparelhos de Lengeh, Andy — respondeu Scragger. — Teria que ser no dia certo e nós teríamos que nos esgueirar por baixo do radar de Kish, mas poderíamos fazê-lo, se os rapazes quisessem tomar parte na brincadeira. Mas levando também todas as peças sobressalentes? Não há jeito, é impossível.

— Você o faria se fosse possível? — perguntou Gavallan. Ele tinha chegado hoje de Londres e todas as notícias de negócios que recebera de Aberdeen eram horríveis. A Imperial Air estava aumentando a pressão, boicotando-o no mar do Norte, as companhias de petróleo o estavam espremendo e Linbar pedia uma reunião especial de diretoria para investigar o 'possível' desmando da S-G. — Você o faria, Scrag?

— Apenas eu no meu pássaro e todo mundo em segurança fora daqui? Como um relâmpago.

— Os seus rapazes o fariam?

Scragger pensou por um momento e tomou um gole de cerveja. Eles estavam sentados numa mesa de um dos imaculados terraços que cercavam a piscina do hotel, um dos mais novos do pequeno domínio, com outros hóspedes espalhados ali por perto mas nenhum muito próximo, o ar perfumado e com uma brisa suficiente apenas para balançar as folhas das palmeiras e trazer a promessa de uma noite perfeita.

— Ed Vossi faria. — Ele riu. — Ele tem bastante de malandragem austríaca e da impetuosidade ianque. Não acho que Willi Neuchtreiter o fizesse Seria duro para ele quebrar tantas regras quando não é ele quem está sendo ameaçado. O que diz Duke Starke? E Tom Lochart e Rudi?

— Ainda não sei. Eu mandei uma carta para Duke, via Johnny Hogg, na quarta-feira.

— Isso não é um tanto perigoso?

— Sim e não. Johnny Hogg é um mensageiro de confiança, mas este é um grande problema... conseguir comunicar-me em segurança. Tom Lochart estará em Kowiss em breve. Você soube a respeito de Zagros?

— Se soube! Aquele pessoal da montanha é todo doido. E quanto ao velho Rudi?

— Ainda não sei como contactá-lo em segurança. Talvez Mac tenha alguma idéia. Vou viajar no 125 que vai de manhã para Teerã e nós vamos conversar no aeroporto. Depois eu torno a voltar para cá e tenho uma reserva no vôo noturno para Londres.

— Você está exagerando um pouco, não está, meu velho?

— Estou com alguns problemas, Scrag.

Gavallan ficou olhando para o copo, girando distraidamente o uísque em volta dos cubos de gelo. Outros hóspedes passavam de um lado para o outro Três eram moças, de biquíni, com a pele dourada, longos cabelos pretos, com as toalhas jogadas displicentemente nos ombros. Scragger viu-as, suspirou e depois tornou a concentrar a atenção em Gavallan.

— Andy, talvez eu tenha que levar Kasigi de volta para a Irã-Toda dentro de um ou dois dias... O velho George está lambendo os pés de Kasigi desde que ele concordou em pagar dois dólares a mais sem reclamar Kasigi acha que o barril vai subir para vinte dólares até o Natal

A preocupação de Gavallan aumentou

— Se isto acontecer, vai repercutir em todas as nações industrializadas A inflação vai tornar a subir. Acho que ninguém sabe disso melhor do que eles — Mais cedo, assim que Scragger falara em Kasigi e em Toda, ele reagira imediatamente, uma vez que a Struan's forneceu pessoal e fretou muitos dos navios construídos pela Toda e eram velhos associados.

— Há anos, eu conheci o patrão desse Kasigi, um homem chamado Hiro Toda. Ele alguma vez mencionou isso?

— Não, não. Nunca. Onde você o conheceu? No Japão?

— Não, em Hong Kong. Toda estava tratando de negócios com a Struan's, a companhia para a qual eu trabalhava, naquela época era a Navegação Toda, construtores de navios, não o enorme conglomerado que é hoje. — O rosto de Gavallan endureceu. — Eu venho de uma família de antigos comerciantes de Xangai. A nossa companhia foi mais ou menos exterminada durante a Primeira Guerra, então nós nos juntamos à Struan's. O meu velho estava em Nanquim em 1931 quando os japoneses a saquearam e ele foi preso em Xangai logo depois de Pearl Harbor e nunca chegou a sair do campo de prisioneiros. — Ele observou os reflexos no seu copo, com a melancolia aumentando. — Nós perdemos bons amigos em Xangai e em Hong Kong. Eu não poderei jamais perdoa-los pelo que fizeram na China, mas a vida continua, não é? A gente tem que enterrar o passado algum dia, embora seja bom conservar as cicatrizes.

— Comigo é a mesma coisa — Scragger deu de ombros. — Kasigi parece ser um bom sujeito.

— Onde ele está agora?

— No Kuwait. Ele vai voltar amanhã e eu tenho que levá-lo para Lengeh de manhã.

— Se você for até a Irã-Toda, acha que pode dar um jeito de se encontrar com Rudi? Quem sabe sondá-lo um pouco?

— Claro. É uma boa idéia, Andy

— Quando você estiver com Kasigi, diga-lhe que eu conheço o seu presidente.

— Claro, claro que sim. Eu poderia perguntar-lhe se.. — ele parou e olhou por cima do ombro de Gavallan: — Veja Andy, que colírio para os olhos!

Gavallan olhou em direção ao poente. O pôr-do-sol estava maravilhoso — vermelhos, roxos, marrons e dourados colorindo as nuvens distantes, o sol já quase todo sob o horizonte, colorindo de sangue as águas do golfo, a brisa fazendo tremular a luz das velas sobre as mesas postas para o jantar no terraço.

— Você tem razão, Scrag — disse imediatamente. — É a hora errada para se falar em coisas sérias, isso pode esperar. Não há nada no mundo que se compare a um pôr-do-sol.

— Hein? — Scragger olhou para ele sem compreender. — Pelo amor de Deus, eu não estava me referindo ao pôr-do-sol, eu estava me referindo à garota.

Gavallan suspirou. A garota era Paula Giancani, que tinha acabado de sair da piscina, com um biquíni mínimo, as gotas de água brilhando na sua pele cor de azeitona. Ela enxugou as pernas, os braços e as costas e tornou a enxugar as pernas, vestindo um roupão atoalhado, totalmente consciente de que não havia nenhum homem nas redondezas que não estivesse apreciando a sua performance — e nenhuma mulher que não estivesse com inveja - Você é um tremendo filho da mãe, Scrag

Scragger riu e carregou no sotaque

— E a minha única alegria na vida, seu bode velho! Cristo, essa Paula é demais!

Gavallan examinou-a.

— Bem, as garotas italianas geralmente têm algo de especial, mas esta jovem... ela não é uma beleza estonteante como Xarazade nem tem o mistério exótico de Azadeh, mas eu concordo, Paula é demais.

E como os demais, eles ficaram olhando enquanto ela caminhava por entre as mesas, acompanhada pelo desejo e pela inveja, até desaparecer no vasto saguão do hotel. Eles iam jantar todos juntos mais tarde, Paula, Genny, Manuela, Scragger, Gavallan, Sandor Petrofi e John Hogg. O jumbo da Alitalia de Paula estava outra vez em Dubai, a poucos quilômetros dali, aguardando autorização para seguir para Teerã e buscar mais um carregamento de italianos, e Genny

McIver tinha-se encontrado com ela por acaso, fazendo compras. Scragger suspirou.

— Andy, meu velho, não há dúvida de que eu gostaria de ir para a cama com ela.

— Não lhe faria o menor bem, Scrag.

Gavallan deu uma risada e pediu mais um uísque com soda a um garçom paquistanês sorridente, impecavelmente vestido, que veio na mesma hora. Alguns dos outros hóspedes já estavam elegante e luxuosamente vestidos para jantar, na última moda de Paris, com muitos decotes, dinner jackets brancos e engomados — junto com roupas mais esportivas e igualmente caras. Gavallan usava um terno de tropical bem cortado, Scragger estava de uniforme, camisa branca de manga curta com dragonas, calças e sapatos pretos.

— Cerveja, Scrag?

— Não, obrigado, companheiro. Eu vou acabar esta e me preparar para a Estonteante Paula.

— Sonhador! — Gavallan tornou a se virar na direção do pôr-do-sol, sentindo-se melhor, mais confiante, na companhia desse velho amigo. O sol já estava quase todo abaixo do horizonte, mais lindo do que nunca, fazendo-o lembrar dos entardeceres da China nos velhos tempos, levando-o de volta a Hong Kong e Kathy e Ian, para a alegria da Casa Grande do Penhasco, a família inteira forte e saudável, a casa deles num promontório em Shek-o, quando eles eram jovens e estavam todos juntos, Melinda e Scot ainda crianças, amahs indo e vindo, sampanas, traineiras e navios de todos os tamanhos lá embaixo, ao pôr-do-sol, num mar sem perigos.

O restinho de sol desapareceu sob o mar. Com grande solenidade, Gavallan bateu palmas baixinho.

— Por que isso, Andy?

— Hum? Oh, sinto muito, Scrag. Nos velhos tempos nós costumávamos aplaudir o sol, Kathy e eu, assim que ele desaparecia. Para agradecer ao sol por existir, pelo espetáculo ímpar e por estarmos vivos e podermos desfrutá-lo... aquele pôr-do-sol estava sendo visto pela última vez. Como hoje. Você nunca mais vai tornar a ver este pôr-do-sol. — Gavallan tomou um gole do seu uísque, admirando o entardecer. — A primeira pessoa que me fez pensar nisso foi um cara maravilhoso, nós nos tornamos grandes amigos... ainda o somos. Um grande homem, sua mulher também é formidável. Algum dia vou contar-lhe a respeito deles. — Ele virou as costas para o poente, inclinou-se e disse baixinho: — Lengeh, você acha que é possível?

— Oh, sim, se fôssemos apenas nós em Lengeh. Ainda assim teríamos que planejar cuidadosamente, o radar de Kish está mais sensível do que nunca, mas poderíamos esgueirar-nos por baixo dele no dia certo. O grande problema é que o nosso pessoal iraniano, bem como o nosso atualmente simpático mas zeloso komiteh e o nosso novo palhaço antipático da IranOil saberiam em poucos minutos do nosso golpe, não poderiam deixar de saber com todos os aparelhos no ar. Eles se comunicariam imediatamente com o DAC e eles mandariam um alerta para Dubai, Abu Dhabi, para cá, de fato desde Omã até a Arábia Saudita, Kuwait e Bagdá, ordenando que eles apreendessem os aparelhos assim que chegássemos. Mesmo que todos nós conseguíssemos chegar até aquibem, o velho xeque é um grande sujeito, um liberal e um amigo, mas que diabo, ele não poderia ir contra o DAC iraniano, se este estivesse com a razão... e mesmo que não estivesse. Ele não poderia comprar uma briga com o Irã, ele tem uma boa percentagem de xiitas entre os ortodoxos, não tão numerosos quanto outros Estados do golfo, mas em número maior do que muitos.

Gavallan levantou-se e caminhou até a beirada do terraço e olhou para a velha cidade lá embaixo — antigamente um porto de pérolas, um domínio de piratas e um mercado de escravos, um centro de comércio e como Sohar no Omã, chamada de Porto da China. Desde a antigüidade, o golfo era o traço de união marítimo entre o Mediterrâneo — na época o centro do mundo — e a Ásia. Mercadores fenícios dedicados à navegação, que vinham originalmente de Omã, dominavam esta rota de comércio incrivelmente rica, descarregando as mercadorias da Ásia e da índia em Shatt-al-Arab, e dali por uma curta rota de caravana até os seus mercados, eventualmente construindo os seus próprios impérios no Mediterrâneo, fundando cidade-estado como Cartago, que ameaçaram a própria Roma.

A velha cidade murada estava linda ao escurecer, com seus telhados chatos, protegida de construções modernas, com a fortaleza do xeque dominando-a. Ao longo dos anos, Gavallan passara a conhecer e admirar o velho xeque. O domínio estava cercado pelos Emirados mas era um território independente e soberano com pouco mais de trinta quilômetros de profundidade e dez quilômetros de costa. Mas no fundo do mar, numa extensão de 150 quilômetros até águas iranianas, havia uma lagoa de petróleo de muitos bilhões de barris, de extração fácil. Assim, Al Shargaz tinha a cidade velha e uma cidade nova com uma dúzia de hotéis modernos e arranha-céus e um aeroporto que podia receber um jumbo. Em riqueza, não era nada comparada aos Emirados ou à Arábia Saudita ou ao Kuwait, mas havia abundância de tudo, se se escolhesse com sabedoria. O xeque era tão experiente quanto os seus ancestrais fenícios, tão ferozmente independente quanto eles, e embora ele próprio não soubesse ler nem escrever, seus filhos eram formados pelas melhores universidades do mundo. Ele, sua família e sua tribo eram os donos de tudo, a sua palavra era lei, ele era sunita, não um fundamentalista, e tolerante com os seus súditos e hóspedes estrangeiros, desde que estes se comportassem.

— Ele também detesta Khomeini e todos os fundamentalistas, Scrag.

— Sim, mas não vai ter coragem de comprar uma briga com Khomeini. Isso não vai nos ajudar.

— Mas também não vai nos prejudicar. — Gavallan sentia-se revigorado pelo pôr-do-sol. — Eu estou planejando fretar dois jumbos de carga, mandá-los para cá, e quando os nossos helicópteros chegarem, nós desmontamos os rotores, enchemos os jumbos e damos o fora. A chave é a rapidez da operação, e o planejamento.

Scragger assoviou.

— Você está realmente disposto a fazer isso?

— Estou disposto a ver se podemos fazer isso, Scrag, e quais são as chances. Esta é a questão mais importante, se perdermos todos os nossos helicópteros iranianos, equipamentos e peças, teremos que fechar. Nenhum seguro vai cobrir tudo isso e nós ainda temos que pagar o que devemos. Você é um dos sócios, vai poder ver os números hoje à noite. Eu os trouxe para você e para Mac.

Scragger pensou a respeito da sua participação na companhia, todo o interesse que ele tinha, e em Nell e nos seus filhos e nos filhos destes lá em Sydney, e na fazenda de Baldoon que fora durante um século a fazenda de criação dê gado e ovelhas da família mas que tinha sido perdida na grande seca, e na qual ele estava de olho há anos e anos, querendo recuperar para eles.

— Eu não preciso olhar os números, Andy. Se você diz que está assim tão ruim é porque está. — Ele observava as cores do céu. — Vou lhe dizer uma coisa, eu cuido de Lengeh se você conseguir armar um plano e se os outros concordarem. Depois do jantar, talvez a gente pudesse discutir a logística por uma hora e terminar a discussão no café da manhã. Kasigi não estará de volta do Kuwait antes das nove. Nós vamos pensar em alguma coisa.

— Obrigado, Scrag. — Gavallan deu-lhe um tapa no ombro, inclinando-se para ele. — Estou muito contente por você estar aqui, por você ter estado conosco por todos esses anos. Pela primeira vez eu acho que temos uma chance e não estou sonhando.

— Com uma condição, meu velho — acrescentou Scragger. Gavallan ficou imediatamente em guarda, e disse:

— Eu não posso consertar o seu exame médico se ele não estiver bom Não há nenhuma maneira de...

— Você me dá licença? — Scragger ficou triste. — Não tem nada a ver com o Dirty Duncan e o meu exame médico ele estará bom até eu ter 73 anos. Não, a condição é que no jantar você me ponha sentado ao lado da estonteante Paula, com Genny ao lado dela e Manuela do meu lado, e aquele húngaro chifrudo, Sandor, no outro extremo junto com Johnny Hogg.

— Feito!

— Grande! Agora, não se preocupe, meu velho. Eu já fui suficientemente sacaneado por generais de cinco estrelas para ter aprendido alguma coisa. Está na hora de trocar de roupa para o jantar. Lengeh já está ficando chata. — Ele se afastou, magro, ereto e animado.

Gavallan entregou o seu cartão de crédito para o sorridente garçom paquistanês.

— Não há necessidade, sahib, basta assinar a nota — disse o homem. Depois acrescentou suavemente: — Se me permite uma sugestão, effendi, quando o senhor pagar, não use o American Express, é o mais caro para a direção.

Espantado, Gavallan deixou uma gorjeta e se afastou.

Do outro lado do terraço, dois homens ficaram observando ele se afastar. Ambos estavam bem vestidos e tinham cerca de quarenta anos, um era americano, o outro do Oriente Médio. Ambos estavam usando pequenos aparelhos de surdez. O homem do Oriente Médio brincava com uma caneta-tinteiro antiquada, e quando Gavallan passou por um árabe bem vestido e uma jovem européia muito atraente, o homem com a caneta-tinteiro ficou curioso, apontou a caneta para eles e a manteve apontada. Imediatamente, os dois homens ouviram nos seus fones de ouvido:

— Minha querida, quinhentos dólares americanos está muito acima do preço de mercado — o homem estava dizendo.

— Isso depende do mercado a que você esteja se referindo, meu querido ela respondeu, com um agradável sotaque da Europa Central, e eles a viram sorrir docemente. — O preço inclui a roupa de baixo da melhor seda que você tem vontade de rasgar e o instrumento que você deseja inserido no momento apropriado. Eficiência é eficiência e serviços especiais exigem um tratamento especial e se a sua agenda só permite que seja executado entre seis e oito da noite de amanhã...

As vozes sumiram quando o homem virou a tampa e colocou a caneta na mesa com um sorriso irônico. Ele era bonito e tinha a pele cor de azeitona, trabalhava em importação e exportação de tapetes como gerações de antepassados seus, fora educado na América e seu nome era Aaron Ben Aaron — mas sua principal ocupação era no Serviço Secreto israelense.

— Eu nunca teria imaginado que Abu bin Talak fosse tão tarado — disse secamente.

O outro homem resmungou.

— Eles são todos tarados. Eu não teria imaginado que a garota fosse uma prostituta.

Os longos dedos de Aaron brincaram com a caneta, relutando em largá-la.

— Aparelhinho bom este, Glenn, poupa um bocado de tempo. Gostaria de ter tido um desses a mais tempo.

— A KGB lançou um novo modelo este ano, com um alcance de cem metros. — Glenn Wesson tomou um gole do seu bourbon com gelo. Ele era americano, um antigo negociante de petróleo. Sua profissão verdadeira era agente da CIA — Não é tão pequena quanto esta mas funciona.

— Você pode arranjar-nos algumas?

— É mais fácil você fazer isso. Faça os seus amigos pedirem a Washington. — Eles viram Gavallan desaparecer no saguão. — Interessante.

— O que você acha? — perguntou Aaron.

— Acho que poderíamos atirar uma companhia britânica de helicóptero aos lobos de Khomeini quando quiséssemos, junto com todos os seus pilotos. Isto faria Talbot ter um ataque, assim como Robert Armstrong e todo o M16, o que não é uma má idéia. — Wesson riu baixinho. — Talbot precisa de um bom susto de vez em quando. Qual é o problema com a S-G? Você acha que eles são uma operação disfarçada do M16?

— Não temos certeza do que eles estão tramando, Glenn. Nós suspeitamos exatamente do contrário, foi por isso que eu achei que deveríamos investigar. Coincidências demais. Aparentemente eles são legítimos, no entanto eles têm um piloto francês, Sessonne, que está dormindo com uma mensageira muito bem relacionada da OLP, Sayada Bertolin; eles têm um finlandês, Erikki Yokkonen, intimamente associado com Abdullah Khan, e este é com toda a certeza um agente duplo inclinando-se mais para a KGB do que para o nosso lado e que é franca e violentamente anti-semita; Yokkonen é muito amigo do homem do Serviço Secreto da Finlândia, Christian Tollonen, que é suspeito por definição, as ligações familiares de Yokkonen na Finlândia colocam-no na posição certa para ser um perfeito agente soviético disfarçado e nós acabamos de receber uma informação de que ele está lá em Sabalan com o seu 212, ajudando os soviéticos a desmontar todos os postos de radar de vocês.

— Jesus. Você tem certeza?

— Não. Eu disse que foi uma informação. Mas nós estamos checando. Em seguida, o canadense Lochart: Lochart é casado com uma moça de uma conhecida família anti-sionista de lojistas do bazar, agentes da OLP estão morando no seu apartamento atualmente, e...

— Sim, mas nós soubemos que o lugar foi confiscado e não se esqueça de que ele tentou ajudar aqueles oficiais pró-xá e pró-Israel a escapar.

— Sim, mas eles foram abatidos lá em cima, estão todos mortos e, curiosamente, ele está vivo. Valik e o general Seladi estariam certamente incluídos ou apoiando qualquer gabinete formado no exílio. Nós perdemos mais dois aliados muito importantes. Lochart é suspeito, sua mulher e a família dela são pró-Khomeini, o que significa contra nós. — Aaron sorriu sardonicamente. — Nós não somos o grande Satã depois de vocês? Depois: o americano Starke ajudou a sufocar um ataque fedayim a Bandar Delam, e se tornou muito amigo de outro feroz inimigo do xá e de Israel, o fanático Zataki que...

— Quem?

— Um inimigo do xá, intelectual, muçulmano sunita que organizou as greves dos campos de petróleo de Abadan, que explodiu três postos policiais e que agora está comandando o Komiteh Revolucionário de Abadan e que não deverá viver muito. Uma bebida?

— Claro, obrigado. O mesmo. Você mencionou Sayada Bertolin. Ela também está sendo vigiada por nós. Você acha que ela pode mudar de lado?

— Eu não confiaria nela. A melhor coisa a fazer com ela é simplesmente vigiá-la e ver a quem ela pode levar. Nós estamos atrás do seu controlador. Ainda não conseguimos identificá-lo. — Aaron pediu a bebida de Wesson e uma vodca para ele. — Vamos voltar à S-G. Então Zataki é um inimigo. Starke fala farsi, como Lochart. Ambos andam em más companhias. Depois vem Sandor Petrofi: dissidente húngaro com a família ainda morando na Hungria, outro agente em potencial da KGB ou pelo menos um instrumento da KGB Rudi Lutz, alemão, com família do outro lado da Cortina de Ferro, sempre um suspeito; Neuchtreiter, em Lengeh, a mesma coisa. — Ele fez um sinal para onde Scragger estivera sentado. — O velho é simplesmente um assassino treinado, um mercenário capaz de apontar para nós, para você, para qualquer um com o mesmo resultado. Gavallan? Você deveria mandar o seu pessoal em Londres vigiá-lo. Não se esqueça de que foi ele quem escolheu todos os outros, não se esqueça de que ele é britânico possivelmente a sua operação não passa de um disfarce para uma operação da KGB e...

— De jeito nenhum — disse Wesson, subitamente irritado. Maldição, pensou, por que esses sujeitos são tão paranóicos?, até o velho Aaron, que é um dos melhores. — É conveniente demais. De jeito nenhum.

— Por que não? Ele poderia estar enganando-os. Os britânicos são mestres nisso, como Philby, McLean, Blake e todo o resto.

— Como Crosse. — Os lábios de Wesson estreitaram-se. — Nisso você está certo, meu velho.

— Quem?

— Roger Crosse. Há uns dez anos atrás, o Senhor Espião-Mestre, mas morto e enterrado com toda a habilidade que os ingleses têm. Ele é um daqueles do clube dos Velhos Camaradas, o pior traidor de todos.

— Quem foi Crosse?

— O antigo patrão e amigo de Armstrong do Setor Especial de Hong Kong nos velhos tempos. Oficialmente um diretor sem importância do M16, mas na verdade o chefe das suas operações mais importantes, do Serviço Secreto Especial, traidor, executado pela KGB a seu próprio pedido pouco antes de o pegarmos.

— Vocês provaram isto? Que eles o executaram?

— Claro. Um dardo envenenado a curta distância, foi isso que o matou. Nós o havíamos encurralado, não havia nenhum modo dele poder escapar como os outros. Nós o tínhamos nas mãos, agente triplo. Nessa época, nós tínhamos um informante dentro da embaixada soviética em Londres, um cara chamado Brodnin. Ele nos entregou Crosse e desapareceu, pobre infeliz, alguém deve tê-lo entregue.

— Malditos britânicos, eles cultivam espiões como se fossem pulgas.

— Não é verdade, eles têm também alguns grandes pegadores. Todos nós temos traidores.

— Nós não temos.

— Não aposte nisso, Aaron. — Wesson disse com amargura. — Há traidores em toda parte. Com todos os vazamentos de informação que tem havido no Irã, antes e depois da saída do xá, tem que haver algum outro traidor muito bem posicionado do nosso lado.

— Talbot ou Armstrong? Wesson estremeceu.

— Se for um dos dois é melhor a gente pedir demissão.

— É isso que o inimigo quer que você faça, peça demissão e dê o fora do Oriente Médio. Mas nós não podemos fazer isso, por isso é que pensamos de modo diferente — disse Aaron, com os olhos escuros e frios, o rosto determinado, observando-o cuidadosamente. — Por falar nisso, por que o nosso velho amigo coronel Hashemi Fazir deveria escapar impune do assassinato do novo chefão da Savama, general Janan?

Wesson empalideceu.

— Janan está morto? Tem certeza?

— Uma bomba no carro, segunda à noite. — Os olhos de Aaron estreitaram-se. — Por que tanta tristeza? Ele era um dos seus?

— Poderia ter sido. Nós, ahn, estivemos negociando. — Wesson hesitou, depois suspirou. — Mas Hashemi ainda está vivo? Pensei que ele estivesse na lista de condenações prioritárias do Komiteh Revolucionário.

— Ele esteve, mas não está mais. Ouvi dizer esta manhã que o nome dele foi retirado, o seu posto confirmado, reintegrado no Serviço Secreto, tudo isto, supostamente, com a aprovação lá do alto.

Aaron tomou um gole do seu drinque.

— Se ele está outra vez por cima, depois de tudo o que fez pelo xá e por nós, ele tem que ter um protetor muito forte.

— Quem? — Wesson viu o outro dar de ombros, examinando o terraço com os olhos. O seu sorriso desapareceu. — Isso pode significar que ele esteve trabalhando para Khomeini o tempo todo.

— Talvez. — Aaron tornou a brincar com a caneta-tinteiro. — Uma outra curiosidade. Na terça-feira, Hashemi foi visto embarcando no 125 da S-G junto com Armstrong, no aeroporto de Teerã; eles foram para Tabriz e voltaram três horas depois.

— Não é possível!

— O que significa tudo isso?

— Jesus, eu não sei, mas acho melhor descobrirmos. — Wesson baixou ainda mais a voz. — Uma coisa é certa, para Hashemi ter recuperado o prestígio, ele tem que saber onde estão enterrados cadáveres muito importantes, hein? Uma informação dessas seria muito valiosa... muito valiosa, digamos! para o xá.

— O xá? — Aaron esboçou um sorriso mas parou quando viu a expressão de Wesson. — Você não imagina seriamente que o xá tenha alguma chance de voltar, não é?

— Coisas mais estranhas têm acontecido, meu velho — disse Wesson, Confiantemente, e terminou o seu drinque. Por que será que esses caras não entendem o que está acontecendo no mundo?, pensou. Já estava na hora deles ficarem mais espertos, de pararem de só pensar em Israel, a OLP e o Oriente Médio, e dar-nos espaço para manobrar. — É claro que o xá tem uma chance, embora a chance do seu filho seja maior. Assim que Khomeini estiver morto e enterrado, haverá uma guerra civil, o exército assumirá e eles precisarão de um governante. Reza daria um bom monarca constitucional.

Aaron Ben Aaron disfarçou com dificuldade a sua descrença, espantado por Wesson ser tão ingênuo. Depois de todos os anos que você passou no golfo e no Irã, pensou, como consegue se enganar tanto a respeito das forças que estão destruindo o Irã? Se ele fosse um homem diferente, teria xingado Wesson pela estupidez que ele representava, deixando de perceber as centenas de sinais de alarme, as montanhas de relatórios do serviço secreto, reunidos a custa de tanto sangue e deixados de lado sem serem lidos, os anos de súplicas a políticos, generais e serviços de espionagem — americanos e iranianos — avisando-os da revolução que estava se formando.

Tudo sem resultado. Durante anos e anos. É a Vontade de Deus, pensou Deus não quer que as coisas sejam fáceis para nós. Fáceis? Ao longo de toda a história, as coisas nunca foram fáceis para nós. Nunca.

Ele viu Wesson observando-o.

— O quê?

— Espere e verá. Khomeini é um homem velho, não vai durar até o fim do ano. Ele está velho e o tempo está a nosso favor. Espere e verá.

— Vou esperar. — Aaron desistiu de discutir. — Enquanto isso, o problema que temos nas mãos é o seguinte: a S-G poderia ser uma fachada para células inimigas. Pensando bem, pilotos de helicóptero especializados em apoiar a indústria de petróleo seriam trunfos valiosos para todo tipo de sabotagens, se as coisas piorarem.

— Claro. Mas Gavallan quer sair do Irã. Você ouviu.

— Talvez ele soubesse que estávamos ouvindo, ou seja uma cilada que ele está armando.

— Vamos, Aaron. Eu acho que ele está limpo, e o resto é coincidência. — Wesson suspirou. — Está bem, eu vou mandar vigiá-lo e ele não vai nem cagar sem você ficar sabendo, mas que diabo, meu velho, os seus amigos vêem inimigos até debaixo da cama, no telhado e debaixo do tapete.

— Por que não? Eles estão em toda parte: conhecidos, desconhecidos, ativos e passivos. — Aaron observava metodicamente à sua volta, checando os recém-chegados, esperando por inimigos, consciente da multidão de agentes inimigos em Al Shargaz e no golfo. E nós sabemos que há inimigos aqui, na cidade velha e na nova, subindo a estrada para Omã e descendo para Dubai, Bagdá e Damasco, para Moscou, Paris e Londres, do outro lado do mar em Nova York, indo para o sul em direção aos dois cabos, e para o norte em direção ao Círculo Ártico, onde quer que existam pessoas que não são judias. Só um judeu não é automaticamente suspeito e mesmo assim, hoje em dia, você precisa ser cuidadoso.

Há muitos entre os escolhidos que não querem o sionismo, que não querem ir para a guerra nem pagar por ela, que não querem entender que Israel está pendurado na balança junto com o xá, o nosso único aliado no Oriente Médio e o único fornecedor da OPEP para os nossos tanques e aviões e que foi posto para fora, não querem saber que as nossas costas estão voltadas para o Muro das Lamentações e que nós temos que lutar e morrer para proteger a nossa terra sagrada de Israel, que recuperamos à custa de tantos sacrifícios, com a ajuda de Deus.

Ele olhou para Wesson, com amizade, perdoando-o pelos seus erros, admirando-o como profissional, mas com pena dele: ele não era um judeu e portanto era suspeito.

— Eu estou contente por ter nascido judeu, Glenn. Isso torna a vida muito mais fácil.

— Como?

— Você sabe onde está pisando.

NA DISCO TEX, HOTEL SHARGAZ: 23:52H. Americanos, britânicos e franceses dominavam a sala — com alguns japoneses e outros asiáticos. A maioria era européia, com muito mais homens do que mulheres, as idades variando entre 25 e 45 anos: a mão-de-obra estrangeira do golfo tinha que ser jovem, forte e de preferência solteira, para sobreviver à vida dura e solitária. Alguns bêbados, outros barulhentos. Feios e não tão feios, gordos e não tão gordos, a maioria deles elegantes, frustrados e vulcânicos. Alguns de Shargaz e de outras partes do golfo, mas só os ricos, os ocidentalizados, os sofisticados e os homens. Esses, em sua maioria, estavam sentados no nível superior tomando refrigerantes e apreciando as mulheres, e os poucos que dançavam, no pequeno salão lá embaixo, o faziam com mulheres européias: secretárias, funcionárias de embaixadas, enfermeiras ou funcionárias do hotel — muito disputadas. Nenhuma mulher árabe ou de Shargaz ia lá.

Paula estava dançando com Sandor Petrofi, Genny com Scragger e Johnny Hogg estava de rosto colado com a moça com quem estivera conversando no terraço, dançando bem devagar.

— Quanto tempo você vai ficar aqui, Alexandra? — murmurou.

— Até a próxima semana, só até a próxima semana. Depois eu preciso me encontrar com meu marido, no Rio.

— Oh, mas você é tão jovem para ser casada! Você vai ficar aqui sozinha?

— Sim, sozinha, Johnny. É triste, não?

Ele não respondeu, apenas apertou-a um pouco mais e agradeceu a sorte de ter apanhado o livro que ela deixara cair no saguão. As luzes estroboscópicas o deixaram tonto por um momento, depois viu Gavallan no nível superior, em pé perto da grade, pensativo e mais uma vez sentiu pena dele. Mais cedo, providenciara para ele, relutantemente, o vôo noturno para Londres, tentando persuadi-lo a descansar mais um dia.

— Eu sei como os atrasos dos aviões o prejudicam, senhor.

— Não há problema, Johnny, obrigado. A nossa partida para Teerã ainda está marcada para as dez horas?

— Sim, senhor. Ainda temos prioridade para decolar. Assim como o vôo para Tabriz.

— Vamos torcer para que corra tudo bem, e possamos chegar lá e voltar imediatamente.

John Hogg sentiu o corpo da moça de encontro ao seu.

— Você quer jantar amanhã? Eu devo estar de volta lá pelas seis.

— Talvez. Mas não antes das nove.

— Perfeito.

Gavallan olhava os pares que dançavam, mal enxergando-os, depois virou-se, desceu a escada e saiu para o terraço. A noite estava linda, uma lua enorme, sem nuvens. Em volta havia uma grande extensão de jardins bem tratados, delicadamente iluminados, cercados de muros, com alguns dos chafarizes ligados.

O Shargaz era o maior hotel do país, de um lado o mar, do outro o deserto, sua torre tinha 18 andares, com cinco restaurantes, três bares, salão para coquetéis, café, discoteca, duas piscinas, saunas, salas de vapor, quadras de tênis, salão de ginástica, um local para compras com uma dúzia de butiques e antiquários, uma loja de tapetes Aaron, salões de cabeleireiros, uma sala de vídeo, padaria, jogos eletrônicos, escritórios de telex, um grupo de datilógrafas e, como todos os modernos hotéis europeus, todos os quartos tinham ar-condicionado, banheiros completos, serviço de quarto 24 horas por dia — geralmente feito por sorridentes paquistaneses — lavagem de roupa para o mesmo dia, serviço instantâneo de passar roupa, uma TV a cores em todos os quartos, cinema, um canal ligado com o mercado de ações e ligações por satélite com todas as capitais do mundo.

É verdade, pensou Gavallan, mas ainda assim é um gueto. E embora os governantes de Al Shargaz, Dubai e Sharjah sejam liberais e tolerantes, os estrangeiros possam beber nos hotéis, e possam até comprar bebidas, que Deus o ajude se você revendê-las para muçulmanos. As nossas mulheres podem dirigir, fazer compras e passear, mas não há nenhuma garantia de que isso vá durar. A poucas centenas de metros de distância, os habitantes de Shargaz estão vivendo como têm vivido há séculos, a poucos quilômetros de distância, do outro lado da fronteira, a bebida é proibida, uma mulher não pode dirigir nem andar sozinha na rua e tem que cobrir o cabelo e os braços e ombros e usar calças folgadas, e lá no deserto verdadeiro, as pessoas levam uma vida miserável.

Há alguns anos, ele tinha alugado um Range Rover e um guia e, junto com McIver e Genny e sua nova mulher, Maureen, fora para o deserto para passar a noite num dos oásis na beira do Rub'al-Khali, a Região Vazia. Tinha sido um dia de primavera perfeito. Poucos minutos depois deles terem passado pelo aeroporto, a estrada transformara-se numa trilha que terminou rapidamente e eles se viram viajando através da vasta extensão de pedras, sob o céu. Fizeram um piquenique e depois continuaram, algumas vezes em terreno arenoso, ou-

trás vezes em terreno rochoso, atravessando uma região selvagem onde não chovia nunca e não crescia nada. Nada. Quando pararam e desligaram o motor, o silêncio chegou até eles como se fosse uma presença física, o sol se pôs e o espaço os envolveu.

A noite era negra, as estrelas enormes, as tendas boas, os tapetes macios e o silêncio ainda maior, o espaço ainda maior, era inconcebível todo aquele espaço.

— Eu odeio isso, Andy — murmurara Maureen. — Isso me assusta barbaramente.

— A mim também. Não sei por que, mas assusta. — Em torno das palmeiras do oásis, o deserto se estendia em direção a todos os horizontes, ameaçador e sobrenatural. — A imensidão parece sugar a sua vida. Imagine como será no verão!

— Isto me faz sentir menos que um grão de areia — ela tremeu. — Está me esmagando, me fazendo perder o equilíbrio. Bem, rapaz, uma vez é o bastante para mim. O que serve para mim é a Escócia. Londres um pouquinho, e aqui nunca mais.

E ela nunca mais tinha voltado. Como a Nell de Scrag, pensou. Eu não as culpo. Já é bastante duro para os homens aqui no golfo, imagine para as mulheres... Ele olhou em volta. Genny estava saindo do salão pelas janelas francesas, abanando-se, parecendo muito mais jovem do que em Teerã.

— Olá, Andy. Você é que é esperto, está tão abafado lá dentro, e a fumaça, ugh!

— Eu nunca fui muito de dançar.

— Eu só danço quando Duncan não está comigo. Ele é tão antiquado. — Ela hesitou. — No vôo de amanhã, você acha que eu po...

— Não — ele disse bondosamente. — Ainda não. Daqui a uma semana, mais ou menos. Deixe a poeira assentar.

Ela concordou, sem esconder a decepção.

— O que foi que Scrag disse?

— Sim, se os outros concordarem e se for viável. Nós tivemos uma boa conversa e vamos tomar café juntos amanhã. — Gavallan pôs o braço em volta dela e deu-lhe um abraço. — Não se preocupe com Mac, eu vou me certificar de que ele esteja bem.

— Eu tenho outra garrafa de uísque para ele, você não se importa, não é?

— Vou colocar na minha valise. Nós recebemos ordens do DAC para não carregar bebidas no compartimento de bagagem dos aviões, mas não há problema, eu levo na bagagem de mão.

— Então talvez seja melhor não levar, não desta vez. — Ela ficou perturbada pela seriedade dele, tão pouco comum. Pobre Andy, todo mundo pode ver que ele está fora de si de tão preocupado. — Andy, posso fazer uma sugestão?

— É claro, Genny.

— Use esse coronel e Robert, quer aízer, Armstrong, esse pessoal importante que você tem que transportar para Tabriz. Por que não pedir a elas para deixarem você voltar por Kowiss? Diga que você tem que apanhar alguns motores para consertar. Então você pode falar diretamente com Duke.

— Muito boa idéia. Você vai ser a primeira da classe.

Ela se inclinou e lhe deu um beijo fraterno.

— Você também não é assim tão mau. Bem, vou voltar para o baile. Desde a guerra que não sou tão popular. — Ela riu e ele também. — Boa noite, Andy.

Gavallan voltou para o seu hotel, que ficava um pouco adiante. Ele não notou os homens que o seguiam, nem que o seu quarto tinha sido revistado, seus papéis lidos, nem que tinham colocado aparelhos de escuta no quarto e no telefone.


SÁBADO

24 de fevereiro46


NO AEROPORTO INTERNACIONAL DE TEERÃ: 11:58H. A porta da cabine do 125 fechou-se atrás de Robert Armstrong e do coronel Hashemi Fazir. Lá da cabine do piloto, John Hogg levantou os polegares para Gavallan e McIver, que estavam em pé na pista, ao lado do carro, e saiu taxiando, em direção a Tabriz. Gavallan tinha acabado de chegar de Al Shargaz e este era o primeiro momento que ele tinha a sós com McIver.

— Como estão as coisas, Mac? — perguntou, com o vento gelado levantando as suas roupas de inverno e fazendo a neve rodopiar em volta deles.

— Problemas, Andy.

— Eu sei disso. Conte-me rapidamente. McIver aproximou-se.

— Eu acabei de saber que temos menos de uma semana antes que segurem os nossos aparelhos no chão aguardando a nacionalização.

— O quê? — Gavallan ficou subitamente estatelado. — Foi Talbot quem lhe contou?

— Não, Armstrong, há poucos minutos atrás, quando o coronel foi ao banheiro e nós ficamos sozinhos. — O rosto de McIver contorceu-se. — O filho da mãe me contou isso com aquela sua gentileza fingida: "Eu não contaria com mais de dez dias se fosse você. Uma semana seria mais seguro. E não se esqueça, sr. McIver, em boca fechada não entra mosca."

— Meu Deus, ele sabe que estamos planejando algum? coisa? — Uma rajada de vento cobriu-os de neve.

— Eu não sei, simplesmente não sei, Andy.

— E quanto ao HBC? Ele disse alguma coisa?

— Não. Quando eu perguntei sobre os papéis, ele só disse: "Eles estão em segurança”.

— Ele disse onde deveríamos nos encontrar hoje? McIver sacudiu a cabeça.

— "Se eu voltar em tempo, entrarei em contato". Filho da mãe. — E puxou com violência a porta do carro.

Nervoso, Gavallan limpou a neve da roupa e entrou. As janelas estavam fechadas. McIver ligou o descongelador e o ventilador no máximo, o aquecimento também no máximo, depois colocou um cassete para tocar, aumentou o volume e depois tornou a baixar, praguejando.

— O que houve mais, Mac?

— Tudo — McIver explodiu. — Erikki foi seqüestrado pelos soviéticos ou pela KGB e está em algum lugar perto da fronteira da Turquia com o 212, fazendo sabe Deus o quê. Nogger acha que ele foi forçado a ajudá-los a esvaziar os postos secretos de radar dos americanos. Nogger, Azadeh, dois dos nossos mecânicos e um capitão britânico escaparam vivos de Tabriz por um triz, eles chegaram ontem e estão na minha casa... pelo menos estavam quando saí hoje de manhã. Meu Deus, Andy, você precisava ter visto o estado em que eles estavam quando chegaram. O capitão é o mesmo que salvou a vida de Charlie em Doshan Tappeh e que Charlie deixou em Bandar-e Pahlavi...

— Ele o quê?

— Foi uma operação secreta. Ele é um capitão dos gurkhas... o nome é Ross, John Ross, ele c Azadeh estavam bastante incoerentes, Nogger também estava um bocado nervoso, e, bem, pelo menos eles estão seguros agora... — A voz de McIver falseou. — Sinto dizer que perdemos um mecânico em Zagros, Effer Jordon, ele levou um tiro e...

— Jesus Cristo! O velho Effer está morto?

— Sim... sim, temo que sim e o seu filho foi atingido... nada de grave — McIver acrescentou apressadamente ao ver Gavallan empalidecer. — Scot está bem, ele...

— Como foi?

— A bala entrou na carne do ombro direito. Nenhum osso foi atingido, foi só uma ferida na carne. Jean-Luc disse que eles têm penicilina, um médico e a ferida está limpa. Scot não poderá pilotar o 212 amanhã para Al Shargaz, então eu pedi a Jean-Luc para fazê-lo e levar Scot com ele, depois voltar para Teerã no próximo vôo do 125 e então nós o faremos voltar para Kowiss.

— Que diabo aconteceu?

— Não sei exatamente. Recebi uma mensagem atrasada de Starke, esta manhã, e ele tinha acabado de receber a notícia de Jean-Luc. Parece que há terroristas agindo em Zagros, suponho que seja o mesmo bando que atacou

Bellissima e Rosa, eles deviam estar emboscados na floresta ao redor da nossa base. Effer Jordon e Scot estavam levando peças para embarcar no 212 logo depois do amanhecer e foram atingidos. O pobre Effer levou a maior parte dos tiros, e Scot apenas um... — Mais uma vez McIver acrescentou apressadamente, vendo a expressão de Gavallan: — Jean-Luc me assegurou que Scot está bem, Andy, juro por Deus.

— Eu não estava pensando só em Scot — Gavallan falou sombriamente. — Effer estava conosco desde o começo. Ele não tem três filhos?

— Sim, sim, tem. É terrível. — McIver engrenou e saiu com o carro através da neve, em direção ao escritório. — Eles ainda estão no colégio, eu acho.

— Vou fazer algo por eles assim que voltar. Continue e falar sobre Zagros.

— Não há muito mais o que dizer. Tom Lochart não estava lá. Ele teve que passar a noite em Kowiss na sexta-feira. Jean-Luc disse que eles não viram nenhum dos atacantes, ninguém viu, os tiros saíram da floresta. A base está um caos com os nossos aparelhos fazendo hora-extra, trazendo homens das plataformas e transportando-os em grupos para Shiraz, todo mundo se matando de trabalhar para tirar tudo antes do prazo final: amanhã ao pôr-do-sol.

— Eles vão conseguir?

— Mais ou menos. Vamos tirar todos os nossos operários e companheiros, a maior parte das peças mais valiosas e todos os helicópteros e mandá-los para Kowiss. O equipamento de apoio da plataforma terá que ser deixado, mas isso não é responsabilidade nossa. Deus sabe o que vai acontecer com a base e as plataformas, sem manutenção.

— Vai tudo voltar a ser um deserto.

— Vai mesmo, que maldito desperdício! Que estupidez! Eu perguntei ao coronel Fazir se havia algo que ele pudesse fazer. O filho da mãe apenas deu aquele seu sorriso safado e disse que já era difícil descobrir o que estava acontecendo no escritório ao lado em Teerã, imagine lá no sul. Eu perguntei a ele sobre o komiteh no aeroporto, se eles não poderiam ajudar? Ele disse que não, que os komitehs não têm quase nenhuma ligação com ninguém, nem mesmo em Teerã. Ele disse exatamente o seguinte: "Lá em Zagros, no meio de nômades semicivilizados e nativos, a menos que você tenha armas, que seja iraniano, de preferência um aiatolá, o melhor que você tem a fazer é obedecer." — McIver tossiu e assou o nariz com irritação. — O desgraçado não estava rindo de nós, Andy. Mas também não estava infeliz.

Gavallan sentia-se desanimado, tantas perguntas a serem respondidas, tudo ameaçado, aqui e em casa. Uma semana até o dia fatal, Graças a Deus que Scot... pobre Effer... Meu Deus, Scot ferido! Ele olhou sombriamente para fora e viu que estavam se aproximando da área de carga.

— Pare o carro um minuto, Mac, é melhor conversar em particular, não?

— Desculpe, sim, eu não estou raciocinando com clareza.

— Você está bem, isto é, a sua saúde?

— Oh, estou ótimo, se ao menos eu conseguisse me livrar dessa tosse... É só que... é só que estou com medo. — McIver disse isso sem se alterar, mas o fato dele admitir isso perturbou Gavallan. — Eu estou descontrolado, já perdi um homem, há o problema do HBC como uma espada sobre as nossas cabeças, o velho Erikki está em perigo, todos nós estamos em perigo, a S-G e tudo o que lutamos para construir. — Ele brincou com a direção. — Gen está bem?

— Sim, está — Gavallan respondeu pacientemente, preocupado com ele. Era a segunda vez que respondia a essa pergunta. McIver havia-lhe perguntado isso assim que ele descera os degraus do 125. — Genny está ótima, Mac — respondeu, repetindo o que já dissera antes. — Estou trazendo uma carta dela, ela conversou com Hamish e com Sarah, as duas famílias estão bem e o jovem Angus já tem o seu primeiro dente. Está tudo bem em casa e eu estou com uma garrafa de Loch Vay na minha maleta, que ela mandou para você. Ela tentou entrar no 125 sem que Johnny Hogg percebesse, para se esconder no banheiro, mesmo depois de eu ter dito que não. — Pela primeira vez ele viu a sombra de um sorriso no rosto de Mac.

— Genny é intratável, não há dúvida. Estou contente que ela esteja lá e não aqui, muito contente, mas é estranho como sentimos falta delas. — McIver ficou olhando para a frente. — Obrigado, Andy.

— De nada. — Gavallan pensou por um momento. — Por que mandar o Jean-Luc levar o 212? Por que não Tom Lochart? Não seria melhor tirá-lo daqui?

— É claro, mas ele não sai do Irã sem Xarazade... este é outro problema.

— A música do cassete acabou e ele pôs para tocar o outro lado. — Eu não consigo encontrá-la. Tom estava preocupado com ela, pediu-me para ir até a casa da família dela perto do bazar, o que fiz. Não obtive resposta, não parecia haver ninguém lá, Tom tem certeza que ela foi à Marcha de Protesto das mulheres.

— Cristo! Nós soubemos dos tumultos e das prisões pela BBC, e das agressões de uns loucos contras algumas das mulheres. Será que ela foi presa?

— Espero que não. Você soube do que aconteceu com o pai dela? Oh, é claro que sim, eu mesmo lhe contei da última vez que você esteve aqui, não foi? — McIver limpou distraidamente o vidro da frente. — O que você quer fazer? Esperar aqui até o avião voltar?

— Não. Vamos para Teerã. Nós temos tempo? — Gavallan deu uma olhada no relógio. Eram 12:25h.

— Oh, sim. Nós temos uma carga de 'mercadorias supérfluas' para embarcar. Dará tempo se formos agora.

— Ótimo. Eu gostaria de ver Azadeh e Nogger, e este homem, Ross, e principalmente Talbot. Poderíamos passar pela casa dos Bakravan para ver se temos sorte. O que acha?

— Boa idéia. Estou contente que esteja aqui, Andy, muito contente. — Ele engrenou o carro e saiu, com as rodas derrapando.

— Eu também, Mac. Na verdade, eu também nunca estive tão deprimido. McIver tossiu e pigarreou.

— As notícias de casa são muito ruins?

— Sim. — Gavallan limpou lentamente o vidro da janela do seu lado com as costas da luva. — Vai haver uma reunião especial de diretoria da Struan's na segunda-feira. Eu terei que aparecer com respostas a respeito do Irã. Uma chateação!

— Linbar estará lá?

— Sim. Aquele desgraçado vai arruinar a Casa Nobre antes de sair. É uma burrice expandir a companhia para a América do Sul quando a China está prestes a se abrir.

McIver franziu a testa ao perceber a tensão na voz de Gavallan, mas não disse nada. Há muito que sabia da rivalidade e do ódio que existia entre eles, das circunstâncias da morte de David MacStruan e da surpresa de todo mundo em Hong Kong por Linbar ter conseguido o posto mais alto. Ele ainda tinha muitos amigos na colônia que lhe enviavam recortes com os últimos boatos ou fofocas — a alma de Hong Kong — sobre a Casa Nobre e seus rivais. Mas ele nunca os discutira com o amigo.

— Sinto muito, Mac — Gavallan dissera rispidamente —, eu não quero discutir esse tipo de coisa, nem nada que diga respeito a Ian, Quillan, Linbar ou qualquer outra pessoa ligada à Struan's. Oficialmente, eu não estou mais com a Casa Nobre. Vamos deixar as coisas como estão.

É justo, McIver pensara na época e tinha continuado a manter o acordo. Ele olhou para Gavallan. Os anos tinham sido bondosos com Andy, disse a si mesmo, ele ainda é um homem bastante atraente, mesmo com todos esses problemas.

— Não se preocupe, Andy. Não há nada que você não possa resolver.

— Eu gostaria de poder acreditar nisso nesse momento, Mac. Sete dias representam um enorme problema, não?

— Problema é brincadeira — McIver notou que o marcador de gasolina estava no vazio e explodiu: — Alguém deve ter roubado gasolina enquanto estávamos estacionados. — Ele parou, saltou do carro e tornou a voltar, batendo a porta. — O maldito filho da mãe quebrou a fechadura. Vou ter que reabastecer. Felizmente nós ainda temos alguns tambores de vinte litros e o tanque do subsolo ainda está pelo meio com combustível de helicóptero para emergências. — E tornou a ficar em silêncio, com a mente perturbada por Zagros, Jordon, o HBC e os sete dias. Quem será que vamos perder em seguida? Silenciosamente, começou a praguejar e então ouviu a voz de Genny dizendo: "Nós podemos fazê-lo se quisermos, eu sei que podemos, eu sei..."

Gavallan pensava no filho. Eu não vou sossegar enquanto não o vir com os meus próprios olhos. Amanhã, se tudo der certo. Se Scot não estiver de volta antes da hora do meu avião para Londres, eu cancelo e volto no domingo. E tenho que dar um jeito de ver Talbot — talvez ele possa me dar alguma ajuda. Meu Deus, só sete dias...

McIver reabasteceu o carro rapidamente, depois saiu do aeroporto e entrou no tráfego. Um grande jato de transporte da Força Aérea dos Estados Unidos passou voando baixo, pronto para aterrissar.

— Eles estão fazendo a manutenção de cerca de cinco jumbos por dia, com supervisores militares e Faixas Verdes 'supervisionando', todo mundo dando ordens, cancelando-as, e ninguém prestando atenção — disse McIver. — A BA me prometeu três lugares em cada um dos seus vôos para os nossos compatriotas. Com bagagem. Eles esperam pousar um jumbo aqui dia sim, dia não.

— E o que eles querem em troca?

— As jóias da Coroa! — disse McIver, tentando melhorar o ânimo deles, mas a piada soou sem graça. — Não, nada, Andy. O gerente da BA, Bill Shoesmith, é um grande amigo meu e está fazendo um grande trabalho. — Ele desviou o carro da carcaça queimada de um ônibus, que estava de lado tomando metade da estrada, como se estivesse perfeitamente bem estacionado. — As mulheres vão tornar a marchar hoje. Há rumores de que vão continuar até Khomeini ceder.

— Se elas permanecerem unidas, ele vai ter que ceder.

— Eu não sei mais o que pensar atualmente. — McIver continuou dirigindo por mais algum tempo e depois fez um sinal mostrando os pedestres que passavam para um lado e para o outro. — Eles parecem achar que está tudo bem. As mesquitas estão lotadas, as marchas de apoio a Khomeini atraem multidões, os Faixas Verdes estão combatendo destemidamente os esquerdistas, que também os combatem com a mesma coragem. — Ele tossiu. — Os nossos empregados, bem, eles me tratam com a costumeira gentileza e adulação iranianas e nunca se sabe o que eles estão realmente pensando. Mas tenho certeza que eles querem ver a gente F-O-R-A! — E subiu na calçada para evitar colidir com um carro que vinha pela contramão, tocando a buzina, andando depressa demais para as condições da estrada, depois prosseguiu. — Maldito idiota — disse. — Se não fosse pelo fato de que eu amo o velho Lulu, eu iria atrás deles e lhes daria uma lição! — Olhou para Gavallan e sorriu. — Andy, estou muito contente por você estar aqui. Obrigado. Sinto-me melhor agora. Desculpe.

— Não há problema — Gavallan disse calmamente, mas por dentro estava fervendo. — E quanto a Turbilhão? — perguntou, incapaz de se conter.

— Bem, sejam sete dias ou setenta... — McIver desviou para evitar outro acidente, devolveu o gesto obsceno e continuou. — Vamos fingir que estamos todos de acordo e que poderíamos apertar o botão no dia D se quiséssemos, dentro de sete dias. Não, Armstrong disse que é melhor não contar com mais de uma semana, então vamos dizer seis dias a partir de hoje, na próxima sexta-feira. Uma sexta-feira seria o melhor dia de qualquer modo, não?

— Por ser o dia santo deles, sim, eu também pensei nisso.

— Então, resumindo o que Charlie e eu conseguimos imaginar: Fase Um: De hoje em diante, mandaremos para fora todos os estrangeiros e peças que pudermos, de todas as maneiras que pudermos, no 125, de caminhão para o Iraque ou a Turquia, ou como bagagem e excesso de bagagem pela BA. De algum modo, eu vou fazer Bill Shoesmith aumentar as nossas reservas de lugares e nos dar prioridade no espaço de carga. Nós já retiramos dois dos nossos 212 'para reparos' e o de Zagros está marcado para sair amanhã. Ainda temos cinco aparelhos aqui em Teerã, um 212, dois 206 e dois Alouettes. Vamos mandar o 212 e os Alouettes ostensivamente para atender ao pedido de helicópteros feito por 'Pé-quente', embora só Deus saiba para que ele os está querendo. Duke diz que não está usando todos os aparelhos. De qualquer maneira, vamos deixar os dois 206 aqui para disfarçar.

— Deixá-los?

— Não há nenhum modo de retirar todos os nossos helicópteros, Andy, não importa o tempo de que dispomos. Agora, no dia D menos dois, na quarta-feira, o resto do pessoal aqui do QG, Charlie, Nogger, o resto dos pilotos e mecânicos, e eu; nós embarcamos no 125 na quarta-feira e nos mandamos para Al Shargaz, a menos, é claro, que possamos retirar alguns pela BA. Não se esqueça que pensam que estamos trabalhando com força total, entra um, sai um. Depois nós...

— E quanto a papéis, vistos de saída?

— Vou tentar conseguir alguns em branco com Ali Kia. Vou precisar de alguns cheques em branco da Suíça, ele compreende pishkesh mas também é membro do conselho, muito esperto, louco por dinheiro, mas não está disposto a arriscar a pele. Se ele não puder, então nós vamos simplesmente utilizar o pishkesh para embarcar no 125. A nossa desculpa para os sócios, Ali Kia ou quem quer que seja, quando eles descobrirem que nós partimos, é que você convocou uma conferência urgente em Al Shargaz. É uma desculpa fraca, mas isso não importa. Assim termina a Fase Um. Se formos impedidos de partir, então aqui termina o Turbilhão, porque seremos usados como reféns para a devolução dos aparelhos, e eu sei que você não vai concordar em nos sacrificar. Fase Dois: nós nos esta...

— E quanto aos pertences de vocês? E de todos os caras que têm apartamentos e casas em Teerã?

— A companhia vai ter que pagar uma indenização justa. Será parte dos lucros e prejuízos do Turbilhão. De acordo?

— Ê a quanto vai esse total, Mac?

— Não muito. Nós não temos outra opção.

— Sim, sim. Eu concordo.

— Fase Dois: Nós nos estabelecemos em Al Shargaz, e aí muita coisa já terá acontecido. Você já terá providenciado para que os jumbos 747 de carga cheguem a Al Shargaz na tarde do dia D menos um. Nessa ocasião, de alguma forma, Starke já terá escondido tambores de duzentos litros, em número suficiente para que eles atravessem o golfo. Outra pessoa terá escondido mais combustível em alguma ilha deserta perto da Arábia Saudita ou dos Emirados para Starke, caso ele necessite, e para Rudi e seus rapazes de Bandar Delam que precisarão dele com certeza. Scrag não tem problemas de combustível. Enquanto isso, você terá conseguido registros britânicos para todos os aparelhos que estamos planejando 'exportar', e terá conseguido permissão para atravessar o espaço aéreo do Kuwait, da Arábia Saudita e dos Emirados. Eu ficarei encarregado da operação Turbilhão propriamente dita. Na madrugada do dia D, você me diz sim ou não. Se for não, é definitivo. Se for sim, eu ainda posso cancelar esta ordem se achar prudente, e então também será definitivo. De acordo?

— Com duas condições, Mac: você me consultará antes de cancelar, da mesma forma que eu o consultarei antes de decidir sim ou não, e segundo, se não conseguirmos no dia D, tornaremos a tentar em D mais um e D mais dois.

— Está bem. — McIver deu um profundo suspiro. — Fase Três: na madrugada do dia D, ou D mais um ou D mais dois, três dias é o máximo que eu acho que podemos arriscar, nós enviaremos pelo rádio uma mensagem em código que significará 'Vá!' As três bases deverão indicar que receberam a mensagem e, imediatamente, todos os aparelhos deverão decolar e dirigir-se para Al Shargaz. Deverá haver uma diferença de quatro horas entre a chegada de Scrag e a chegada do último aparelho, provavelmente o de Duke, se tudo correr bem. Assim que os aparelhos pousarem em qualquer lugar fora do Irã, nós substituiremos os registros iranianos por registros britânicos e estaremos legais. Assim que pousarem em Al Shargaz, os 747 serão carregados e decolarão com todo mundo a bordo. — McIver soltou o ar. — Simples.

Gavallan não respondeu imediatamente, examinando o plano, procurando os furos — a grande quantidade de riscos.

— Está bom, Mac.

— Não está, Andy, não está nada bom.

— Eu estive com Scrag ontem e tivemos uma longa conversa. Ele diz que para ele Turbilhão é possível e ele participa se pudermos realizá-lo. Disse que sondaria os outros durante o fim-de-semana e se comunicaria comigo, mas tinha certeza de que no dia marcado poderia retirar os seus aparelhos e os rapazes.

McIver balançou a cabeça mas não disse mais nada, apenas continuou a guiar, as ruas cobertas de gelo e perigosas, enfíando-se por ruazinhas para evitar as vias principais que sabia estarem congestionadas.

— Não estamos muito longe do bazar agora.

— Scrag disse que talvez pudesse ir até Bandar Delam nos próximos dias, conversar com Rudi e sondá-lo. Cartas são muito arriscadas. Por falar nisso, ele me deu um bilhete para você.

— O que está escrito, Andy?

Gavallan apanhou a sua maleta no banco de trás. Encontrou o envelope e colocou os óculos.

— Está endereçado a: "D.D. capitão McIver, Esq."

— Qualquer dia eu vou lhe dar uma lição por causa do seu maldito 'Dirty Duncan' — disse McIver. — Leia para mim.

Gavallan abriu o envelope, tirou o papel que tinha um outro preso nele e resmungou.

— A carta diz apenas: "Foda-se." Junto vem um relatório médico... — Deu uma olhada nele — ... assinado pelo dr. G. Gernin, consulado da Austrália, Al Shargaz. O velho filho da mãe está com o colesterol normal, sua pressão arterial é 13 por 8, açúcar normal... tudo normal e tem um P.S. na letra de Scrag: "Eu vou te dar um porre no meu aniversário, quando eu fizer 73 anos, seu velho corno!"

— Espero que sim, mas ele não vai conseguir, o tempo não está do lado dele. Ele... — McIver freou cuidadosamente. A rua ia dar na praça em frente à mesquita do bazar, mas a saída estava bloqueada por homens aos gritos, alguns sacudindo armas. Não havia nenhuma maneira de voltar ou desviar, então McIver diminuiu a marcha e parou. — São as mulheres de novo — disse, ao ver a demonstração mais adiante, com gritos e manifestações de violência. O tráfego dos dois lados da rua engarrafou imediatamente, com as buzinas tocando raivosamente. Não havia calçadas, só as costumeiras valas cheias de detritos e neve, umas poucas barracas de rua e pedestres.

Eles estavam bloqueados de todos os lados. Os assistentes começaram a juntar-se aos que estavam mais adiante, invadindo a rua, no meio dos carros e caminhões. Entre eles, havia garotos e rapazes, e um deles fez um gesto grosseiro para Gavallan pela janela lateral, um outro chutou o pára-lama e depois saíram correndo, rindo.

— Malditos filhos da mãe — McIver podia vê-los pelo espelho, com outros jovens se juntando em volta deles. Mais homens passaram, mais olhares hostis, e alguns bateram nos lados do carro com suas armas. Lá na frente, o grupo de mulheres gritando "Allah-u Akbarrr"... estava passando pela esquina.

O barulho de uma pedra batendo no carro os assustou, por pouco não atingindo a janela, depois o carro inteiro começou a balançar quando os garotos o cercaram, pulando para cima e para baixo nos pára-choques, fazendo mais gestos obscenos. A raiva de McIver explodiu e ele abriu violentamente a porta, atirando no chão uns dois garotos, depois saltou e avançou para o grupo, que se espalhou imediatamente. Gavallan saltou com a mesma rapidez, avançando contra os que estavam tentando virar o carro por trás. Agarrou um deles e o atirou longe. A maioria recuou, escorregando e gritando, em meio aos xinga-mentos de pedestres, mais dois dos maiores atacaram Gavallan por trás. Ele os viu avançando e socou um no peito, empurrou o outro de encontro a um caminhão, deixando-o sem ação, e o motorista do caminhão riu e bateu na carroceria. McIver respirava com força. Os garotos estavam fora do seu alcance, gritando obscenidades.

— Cuidado, Mac!

McIver se abaixou. A pedra por um triz não o atingiu na cabeça e foi bater num caminhão e os garotos, dez ou doze deles, avançaram. Não havia nenhum lugar para onde McIver pudesse ir, e ele ficou firme ao lado do capô e Gavallan encostou as costas no carro, também preparado. Um dos garotos avançou para Gavallan com um pedaço de pau levantado como um cassetete enquanto outros três atacaram pelos lados. Ele se esquivou mas o pau atingiu seu ombro de raspão; ele prendeu a respiração, atirou-se sobre o garoto, atingiu-o no rosto, escorregou e caiu deitado na neve. Os outros vieram correndo para o linchamento. De repente, eleja não estava mais na neve, cercado de pés que chutavam, mas estava sendo ajudado a se levantar. Um Faixa Verde armado o ajudava, os garotos estavam encostados no muro sob a mira de outro, um velho mulá ali perto gritava com eles, zangado, pedestres os cercavam. Apalermado, viu que McIver também estava mais ou menos ileso perto da frente do carro, depois o mulá veio até ele e falou em farsi.

— Man zaban-e shoma ra khoob nami danam, Agha.

— Desculpe, mas não falo a sua língua, Excelência — disse Gavallan, com dor no peito.

O mulá, um velho de barba e turbante brancos e vestes pretas, virou-se e gritou por cima do barulho dos espectadores e das pessoas dos outros carros.

Relutante, um dos motoristas saltou, se aproximou e cumprimentou o mulá com deferência, ouviu o que ele disse, depois falou com Gavallan num inglês bom embora um pouco hesitante:

— O mulá diz que os garotos erraram em atacá-lo, aga, e que desobedeceram à lei, e que o senhor não estava desobedecendo a nenhuma lei nem os estava provocando.

Mais uma vez ele ouviu o que o mulá dizia, depois tornou a voltar-se para Gavallan e McIver.

— Ele quer que vocês saibam que a República Islâmica é obediente às leis eternas de Deus. Os garotos desobedeceram à lei que proíbe que se ataquem estrangeiros desarmados que estão pacificamente ocupando-se dos seus negócios. — O homem, barbado, de meia-idade, com as roupas gastas, voltou-se para o mulá que agora se dirigia em voz alta à multidão e aos garotos e houve aprovação e concordância por parte de todos. — Vocês são testemunhas de que a lei é cumprida, os culpados são punidos e a justiça é feita imediatamente.

O castigo são cinqüenta chicotadas, mas primeiro os garotos vão pedir perdão a vocês e a todos os outros que se encontram aqui.

Em meio ao tumulto da demonstração que acontecia ali ao lado, os garotos aterrorizados foram empurrados e chutados para perto de McIver e de Gavallan, foram colocados de joelhos e pediram perdão servilmente. Depois foram colocados contra o muro e açoitados com chicotes de carroceiros oferecidos prontamente pela multidão que assistia interessada. O mulá, os dois Faixas Verdes e outros escolhidos pelo mulá fizeram cumprir a lei. Sem piedade.

— Meu Deus — murmurou Gavallan, enojado. O motorista-tradutor disse rispidamente:

— Este é o Islã. O Islã tem apenas uma lei para todo o povo, um castigo para cada crime e justiça imediata. A lei é a lei de Deus, intocável, eterna, não como no seu corrupto ocidente onde as leis podem ser distorcidas e a justiça distorcida e demorada, em proveito de advogados que vivem das distorções, corrupções, crimes ou infortúnios dos outros... — Os gritos de alguns dos garotos o interromperam. — Aqueles filhos de um cão não têm orgulho — disse o homem, revoltado, voltando para o seu carro.

Quando o castigo terminou, o mulá advertiu bondosamente os que ainda estavam conscientes, depois mandou-os embora e seguiu com os seus Faixas Verdes. A multidão debandou, deixando McIver e Gavallan ao lado do carro. Os seus atacantes agora eram trouxas patéticas de farrapos, inertes, sujos de sangue ou garotos que gemiam tentando levantar-se. Gavallan se aproximou para ajudar um deles, mas o garoto se afastou aterrorizado e ele parou e voltou. Os pára-lamas estavam amassados, havia arranhões na pintura por causa das pedras que os garotos tinham atirado. McIver parecia mais velho do que antes.

— Não posso dizer que eles não mereceram o castigo — disse Gavallan.

— Nós teríamos sido pisoteados e mortos se o mulá não tivesse aparecido

— McIver falou com a voz rouca, contente por Genny não estar lá. Ela teria sentido cada uma das chicotadas que eles levaram, pensou, com o peito e as costas doendo por causa dos golpes. Ele tirou os olhos do carro, e mexeu com os ombros, sentindo dor. Então notou o homem que traduzira as palavras do mulá para ele ainda preso no tráfego e caminhou com dificuldade através da neve até onde ele estava.

— Obrigado, obrigado por nos ajudar, aga — disse, gritando pela janela, por sobre o barulho. O carro era velho e estava arriado com o peso de mais quatro homens que se apertavam lá dentro.

O homem baixou o vidro.

— O mulá pediu um tradutor, eu estava ajudando a ele, não a vocês — ele disse. — Se vocês não tivessem vindo para o Irã, aqueles garotos idiotas não teriam sido tentados pela sua nojenta exibição de riqueza material.

— Desculpe, eu só queria agradecer...

— E se não fosse pelos seus filmes e programas de televisão igualmente nojentos, que glorificam as suas malditas gangues de rua e os seus estudantes revoltosos, que o xá importou sob a influência dos seus mestres para corromper a nossa juventude, inclusive o meu próprio filho e os meus próprios alunos, aqueles pobres imbecis seriam obedientes à lei. É melhor que vocês partam antes que sejam apanhados desobedecendo à lei. — Ele levantou o vidro e tocou a buzina com raiva.

NO APARTAMENTO DE LOCHART: 14:37H. Ela bateu na porta da cobertura numa rápida sucessão de batidas combinadas. Estava usando um véu e um chador sujo de terra.

Uma série de batidas soou em resposta. Ela deu de novo quatro batidas rápidas e uma lenta. No mesmo instante, a porta se abriu um pouquinho e Teymour apareceu com um revólver na cara dela e ela riu.

— Você não confia em ninguém, meu querido? — disse em árabe, num dialeto palestino.

— Não, Sayada, nem mesmo em você — respondeu, e quando teve certeza de que ela era mesmo Sayada Bertolin e estava sozinha, ele abriu mais a porta, e ela tirou o véu e o lenço e caiu nos braços dele. Ele fechou e trancou a porta. — Nem mesmo em você. — Depois ele a beijou avidamente. — Você está atrasada.

— Não. Você é que está adiantado. — Mais uma vez ela riu, se afastou e entregou-lhe a sacola. — Aqui está a metade, trago o resto amanhã.

— Onde você deixou o resto?

— Num armário do Clube Francês. — Sayada Bertolin tirou o chador e se transformou. Estava usando uma jaqueta de esqui acolchoada, um suéter de gola alta, saia de lã, meias grossas e botas altas forradas de pele, tudo de costureiros famosos. — Onde estão os outros? — perguntou.

— Eu os mandei sair — disse, sorrindo com os olhos.

— Ah, amor na tarde. E quando eles voltam?

— No pôr-do-sol.

— Perfeito. Primeiro uma chuveirada. A água ainda está quente?

— Oh, sim, e o aquecimento central está ligado, assim como o cobertor elétrico. Quanto luxo! Lochart e sua mulher sabiam como viver, esta é uma verdadeira... qual é mesmo a palavra francesa? Ah, sim, garçonnière.

O riso dela o aqueceu.

— Você não tem idéia do pishkesh que é um chuveiro quente, meu querido, muito melhor do que uma banheira. Sem falar no resto. — Ela se sentou numa cadeira para tirar as botas. — Mas quem sabia viver era o velho safado do Bakravan, não Lochart. Originalmente, este apartamento era para uma amante.

— Você? — perguntou sem malícia.

— Não, meu querido, ele gostava delas bem jovens. Eu não sou amante de ninguém, nem mesmo do meu marido. Foi Xarazade quem me contou. O velho Jared sabia viver, é uma pena que não tenha tido mais sorte na morte.

— Ele já tinha cumprido o seu papel.

— Aquela não era a maneira de tratar um homem daqueles. Estupidez!

— Ele era um notório agiota e partidário do xá, apesar de ter dado dinheiro a rodo para Khomeini. Ele tinha ofendido às leis de Deus e...

— As leis dos fanáticos, meu querido, dos fanáticos. Assim como você e eu quebramos todos os tipos de leis, hein? — Ela se levantou e o beijou de leve, caminhou sobre os lindos tapetes do corredor e foi para o quarto de Lochart e Xarazade, atravessou-o e entrou no banheiro coberto de espelhos, ligou o chuveiro e ficou lá esperando a água esquentar. — Eu sempre adorei este apartamento.

Ele se encostou na porta.

— Os meus superiores mandaram agradecer-lhe por tê-lo sugerido. Como estava a marcha?

— Horrível. Os iranianos são uns animais, gritando palavrões e obscenidades para nós, sacudindo os seus pênis para nós, tudo porque queremos um pouco de igualdade, queremos nos vestir ao nosso gosto, para tentarmos ser bonitas por algum tempo, nós só somos jovens tão pouco tempo. — Mais uma vez ela colocou a mão debaixo do chuveiro, experimentando a água. — O seu Khomeini vai ter que ceder.

— Nunca. Esta é a sua força. E só alguns são animais, Sayada, o resto não conhece outra coisa. Onde está a sua civilizada tolerância palestina?

— Os homens daqui transformaram isso num buraco fedorento, Teymour. Se você fosse uma mulher, entenderia. — Ela tornou a experimentar a água e sentiu o calor começando. — Está na hora de voltar para Beirute. Eu nunca me sinto limpa aqui. Há meses que não me sinto limpa.

— Eu também vou ficar feliz em voltar. A guerra aqui está terminada, mas não na Palestina, no Líbano ou na Jordânia. Eles precisam de soldados treinados lá. Há judeus para matar, a maldição do sionismo para destruir e lugares sagrados para recuperar.

— Estou feliz por você voltar a Beirute — disse, com um olhar convidativo. — Eu recebi ordens de voltar para casa também dentro de duas semanas, o que me convém perfeitamente, porque assim eu ainda posso marchar. O protesto marcado para quinta-feira vai ser o maior de todos!

— Eu não entendo por que você se dá ao trabalho, o Irã não é problema seu e todas as suas marchas e protestos não vão levar a nada.

— Você está enganado. Khomeini não é nenhum idiota. Eu tomo parte nas marchas pela mesma razão pela qual trabalho para a OLP: Pela nossa terra, pela igualdade, igualdade para as mulheres da Palestina... e, sim, para as mulheres de toda parte. — Seus olhos castanhos tornaram-se selvagens e ele nunca a tinha visto mais linda. — As mulheres estão marchando, meu querido, e pelo Deus dos coptas, o único Deus, e pelo seu Marx-Lenin que você tanto admira secretamente, os dias da dominação dos homens estão chegando ao fim.

— Eu concordo — ele disse imediatamente e riu. Ela riu junto com ele.

— Você é um chauvinista, você que compreende. — A temperatura da água estava perfeita. Ela tirou a jaqueta de esqui. — Vamos tomar banho juntos.

— Ótimo, conte-me sobre os papéis.

— Depois. — Ela se despiu sem nenhuma vergonha e ele fez o mesmo, ambos excitados mas pacientes, pois eles eram amantes confiantes, amantes há três anos, no Líbano, na Palestina e aqui em Teerã. E eles ensaboaram-se e brincaram um com o outro, cada vez mais intimamente e mais sensualmente e mais eroticamente até que ela gritou e tornou a gritar e então, no momento em que ele a penetrou, eles se fundiram perfeitamente, com uma urgência cada vez maior, implodindo juntos. Depois, mais tarde, em paz juntos, deitados na cama, com o cobertor elétrico os agasalhando, ela perguntou, sonolenta, com um grande suspiro:

— Que horas são?

— Hora de amar.

Calmamente ela estendeu a mão para ele e ele recuou, despreparado, protestando, depois tomou-lhe a mão e abraçou-a.

— Ainda não, nem mesmo com você, meu amor! — ela disse, satisfeita, nos braços dele.

— Cinco minutos.

— Nem daqui a cinco horas, Teymour.

— Uma hora..

— Duas horas — ela disse sorrindo. — Dentro de duas horas você estará pronto outra vez, mas então eu não estarei aqui. Você terá que levar para a cama uma das prostitutas dos seus soldados. — Ela abafou um bocejo, depois espreguiçou-se como um gato. — Oh, Teymour, você é um amante maravilhoso, maravilhoso. — Depois ela escutou um ruído. — Foi o chuveiro?

— Sim, eu o deixei correndo. Que luxo, hein?

— Sim, mas é também um desperdício.

Ela deslizou para fora da cama e fechou a porta do banheiro, usou o bidê, depois entrou no chuveiro e cantou para si mesma enquanto lavava os cabelos, depois se enrolou numa fina toalha, secou o cabelo com um secador elétrico e quando voltou, esperava encontrá-lo adormecido. Mas ele não estava dormindo. Estava deitado na cama com a garganta cortada. O cobertor que o cobria estava empapado de sangue, seus testículos cortados estavam arrumados no travesseiro ao lado dele e dois homens estavam ali olhando para ela. Ambos estavam armados, com os revólveres munidos de silenciadores. Pela porta aberta do quarto, ela viu um outro homem de guarda na porta da frente.

— Onde está o resto dos papéis? — um dos homens disse num inglês com um sotaque estranho, o revólver apontado para ela.

— No... no Clube Francês.

— Em que lugar do Clube Francês?

— Num armário. — Ela estava há muitos anos na OLP e era muito experiente para entrar em pânico. Seu coração batia lentamente e ela tentava decidir o que fazer antes de morrer. Havia uma faca em sua bolsa, mas ela tinha deixado a bolsa na mesinha-de-cabeceira e agora ela estava em cima da cama, com o seu conteúdo espalhado, e não havia nenhuma faca. Não havia nenhuma arma por perto para ajudá-la. Nada a não ser o tempo. Ao entardecer os outros voltariam. Mas ainda não estava perto do entardecer. — Na seção de senhoras — acrescentou.

— Em que armário?

— Não sei. Não há números e o costume é entregar o que se quer guardar para a atendente; assina-se o nome no livro que ela rubrica e ela devolve seja lá o que for quando se pede. Mas só para a própria pessoa.

O homem olhou para o outro que balançou a cabeça de leve. Os dois homens tinham cabelos e olhos escuros, usavam bigodes e ela não conseguiu localizar o sotaque. Eles podiam ser iranianos, árabes ou judeus — e de qualquer lugar, desde o Egito até a Síria ou o Iêmen.

— Vista-se. Se você tentar alguma coisa, não irá para o inferno sem dor como este homem. Nós não o acordamos antes. Está claro?

— Sim. — Sayada voltou e começou a se vestir. Ela não tentou se esconder. O homem ficou na porta e observou-a cuidadosamente, não o seu corpo, mas as suas mãos. Eles são profissionais, pensou, sentindo-se mal.

— Onde você conseguiu os papéis?

— De alguém chamado Ali. Eu nunca o havia visto antes...

— Pare! — A palavra soou cortante como uma faca embora tenha sido dita em voz baixa. — Da próxima vez que você mentir para nós, eu vou cortar fora o lindo bico do seu seio e vou fazê-la comê-lo, Sayada Bertolin. Uma mentira só, para experimentar, está perdoada. Mas nunca mais. Continue.

Ela agora estava com medo.

— O nome do homem era Abdullah bin Ali Sabá, e hoje de manhã ele foi comigo até o velho prédio perto da universidade. Ele mostrou o caminho até o apartamento e nós procuramos onde nos tinham mandado.

— Quem tinha mandado?

— A 'Voz'. A voz no telefone. Eu só o conheço como uma voz. De vez em quando ele liga para mim com instruções especiais.

— E como você o reconhece?

— Pela sua voz, e há sempre um código. — Ela enfiou o suéter pela cabeça e agora estava vestida, exceto pelas botas. A automática com o silenciador não se movera. — O código é que ele sempre menciona o dia anterior de uma forma ou de outra nos primeiros minutos, qualquer que seja o dia.

— Continue.

— Nós revistamos debaixo do assoalho e encontramos o material: cartas, fichas e alguns livros. Eu os coloquei na bolsa e fui para o Clube Francês e... e então, como a alça da bolsa arrebentou, eu deixei a metade lá e vim.

— Quando foi que você conheceu o homem, Dimitri Yazernov?

— Eu não o conheci, apenas me mandaram ir lá com Abdullah e me certificar de que ninguém estava observando, para encontrar os papéis e entregá-los a Teymour.

— Por que Teymour?

— Eu não perguntei, eu nunca pergunto.

— Inteligente de sua parte. O que Teymour faz... fazia?

— Eu não sei exatamente, a não ser que ele era um iraniano, treinado como um Combatente da Liberdade pela OLP.

— Que ramo?

— Não sei. — Por trás do homem, ela conseguia enxergar o quarto, mas manteve os olhos longe da cama e no homem que sabia demais. Pelo interrogatório, eles podiam ser agentes da Savama, da KGB, da CIA, do M16, de Israel, da Jordânia, da Síria, do Iraque, até mesmo dos grupos extremistas da OLP que não reconheciam Arafat como líder. Qualquer um deles gostaria de se apoderar do conteúdo do cofre do embaixador dos Estados Unidos.

— Quando é que o francês, seu amante, volta?

— Não sei — disse imediatamente, deixando transparecer a sua surpresa.

— Onde ele está agora?

— Na sua base, em Zagros. Ela é chamada de Zagros Três. — Onde está o piloto Lochart?

— Eu acho que também está em Zagros.

— Quando é que ele volta para cá?

— Você quer dizer para cá? Para este apartamento? Eu acho que ele não vai mais voltar para cá.

— Para Teerã?

Seus olhos desviaram-se para o quarto apesar dela ter tentado resistir e ela viu Teymour. O seu estômago revirou, ela agarrou o vaso sanitário e vomitou violentamente. O homem observou sem emoção, satisfeito de que uma das suas barreiras tivesse sido rompida. Ele estava acostumado a que os corpos reagissem espontaneamente ao terror. Ainda assim, continuou a cobri-la com o revólver e ficou olhando cautelosamente, com medo de que fosse um truque.

Quando o espasmo passou, ela limpou a boca com um pouco d'água, tentando dominar a náusea, xingando Teymour por ter sido tão estúpido a ponto de mandar os outros embora. Estúpido! Teve vontade de berrar, uma coisa estúpida quando você está cercado de inimigos da direita, da esquerda e do centro. Eu alguma vez me importei de fazer amor quando havia outras pessoas em volta, contanto que a porta estivesse fechada? Ela tornou a se recostar na pia, encarando o seu destino.

— Primeiro nós vamos ao Clube Francês — ele disse. — Você vai apanhar o resto do material e me entregar. Está claro?

— Sim.

— De agora em diante você vai trabalhar para nós. Secretamente. Você vai trabalhar para nós. De acordo?

— Eu tenho escolha?

— Sim. Você pode morrer. Sofrendo. — Os lábios do homem estreitaram-se ainda mais e os seus olhos se tornaram venenosos. — Depois que você morrer, uma criança chamada Yassar Bialik receberá a nossa atenção.

O rosto dela ficou sem cor.

— Ah, bom! Então você se lembra do seu filhinho que mora com a família do seu tio na rua dos Mercadores de Flores de Beirute? — O homem olhou fixamente para ela e depois perguntou: — Bem, de acordo?

— Sim, sim, é claro — ela disse, mal conseguindo falar. É impossível eles saberem do meu querido Yassar, nem mesmo o meu marido sabe...

— O que aconteceu com o pai do garoto?

— Ele... ele foi morto... ele foi... morto.

— Onde?

— Nas colinas de Golan.

— É triste perder um jovem marido alguns meses depois do casamento — disse o homem. — Quantos anos você tinha?

— Dez... dezessete.

— A sua memória não falha. Ótimo. Agora, se você escolher trabalhar para nós, você, seu filho, seu tio e sua família estarão seguros. Se você não nos obedecer cegamente ou se tentar trair-nos, ou cometer suicídio, o menino Yassar deixará de ser um homem e deixará de ver. Está claro?

Ela balançou a cabeça desamparadamente, com o rosto cinzento.

— Se nós morrermos, outros se certificarão de que sejamos vingados. Não tenha dúvidas quanto a isso. Agora, qual é a sua escolha?

— Eu trabalharei para vocês. — E deixarei o meu filho seguro e me vingarei, mas como, como? pensou.

— Ótimo, pelos olhos, testículos e pênis do seu filho, você trabalhará para nós?

— Sim. Por favor... para quem eu vou trabalhar? — Os dois homens sorriram. Sem humor.

— Nunca torne a perguntar isso, nem tente descobrir. Nós lhe diremos quando for necessário, se for necessário. Está claro?

— Sim.

O homem com o revólver retirou o silenciador e guardou-o no bolso, junto com o revólver.

— Nós queremos saber imediatamente quando o francês ou Lochart vão voltar. Será tarefa sua descobrir. E também quantos helicópteros eles têm aqui em Teerã e onde. Está claro?

— Sim. E como eu entro em contato com você, por favor?

— Você receberá um número de telefone. — Os olhos se tornaram ainda mais duros. — Só para você. Está claro?

— Sim.

— Onde Armstrong mora? Robert Armstrong?

— Eu não sei. — Ela ficou atenta. Havia boatos de que Armstrong era um assassino treinado, usado pelo M16.

— Quem é George Talbot?

— Talbot? Ele é um funcionário da embaixada britânica.

— Que tipo de funcionário? Quai é o trabalho dele?

— Não sei, é apenas um funcionário.

— Algum deles é seu amante?

— Não. Eles... eles vão ao Clube Francês algumas vezes. São conhecidos.

— Você vai se tornar amante de Armstrong. Está claro?

— Eu... eu vou tentar.

— Você tem duas semanas. Onde está a esposa de Lochart?

— Eu... eu acho que na casa dos Bakravan, perto do bazar.

— Trate de se certificar disso. E consiga uma chave da porta da frente. — O homem viu os olhos dela pestanejarem e disfarçou o seu divertimento. Se isso for contra os seus princípios, não faz mal. Em breve você estará comendo merda satisfeita, se nós quisermos. — Apanhe o seu casaco, nós vamos sair imediatamente.

Ela estava com os joelhos bambos quando atravessou o quarto em direção à porta da rua.

— Espere! — O homem tornou a enfiar as coisas que estavam espalhadas dentro da bolsa dela e depois, pensando melhor, embrulhou displicentemente o que estava em cima do travesseiro num dos lenços de papel dela e colocou também dentro da bolsa. — Para você se lembrar que deve obedecer.

— Não, por favor. — As lágrimas escorreram. — Eu não posso... isso não.

O homem enfiou-lhe a bolsa nas mãos.

— Então jogue fora.

Ela cambaleou de volta para o banheiro e jogou aquilo na latrina, tornando a vomitar violentamente, mais do que antes.

— Depressa!

Quando recuperou o controle das pernas, ela o encarou.

— Quando os outros... quando eles voltarem e descobrirem... se eu não estiver aqui eles... eles vão saber que... que eu estou trabalhando para aqueles que... que fizeram isto e...

— É claro. Você acha que nós somos idiotas? Você acha que estamos sozinhos? Assim que eles voltarem, serão mortos e este lugar será incendiado.

NO APARTAMENTO DE McIVER: 16:20H. — Eu não sei, sr. Gavallan — disse Ross. — Não me lembro de muita coisa depois que deixei Azadeh na colina e fui para a base, até mais ou menos a hora que chegamos aqui. — Ele estava usando uma das camisas do uniforme de Pettikin, um suéter preto, calças e sapatos pretos e estava limpo e barbeado, mas seu rosto mostrava completa exaustão. — Mas antes disso, tudo aconteceu como... como eu lhe contei.

— Terrível — disse Gavallan. — Mas graças a Deus por você, capitão. Se não fosse por você, os outros estariam mortos. Sem você, todos eles estariam perdidos. Vamos tomar um drinque, está muito frio. Vamos tomar um uísque. — Ele se dirigiu a Pettikin. — Charlie?

Pettikin foi até o aparador.

— Claro, Andy.

— Eu não quero, obrigado, sr. McIver — disse Ross.

— Eu vou querer, e o sol ainda está alto. — atalhou McIver.

— Eu também — disse Gavallan. Os dois tinham chegado há pouco tempo, ainda abalados por causa do incidente e preocupados porque, na casa dos Bakravan, eles bateram várias vezes sem resultado. Depois tinham vindo para cá. Ross, cochilando no sofá, dera um pulo quando a porta da rua se abriu, empunhando ameaçadoramente o seu kookri.

— Desculpe — dissera, tremendo, tornando a guardar a arma.

— Está tudo bem — fingira Gavallan, ainda apavorado. — Eu sou Andrew Gavallan. Oi Charlie! Onde está Azadeh?

— Ela ainda está dormindo, lá dentro — respondeu Pettikin.

— Sinto muito tê-lo assustado — dissera Gavallan. — O que foi que aconteceu em Tabriz, capitão?

Então Ross contara a eles, de uma forma um tanto incoerente, numa narrativa bastante desordenada. O fato de ter sido acordado de um sono pesado o desorientara. Sua cabeça doía, tudo doía, mas ele estava satisfeito por estar contando o que tinha acontecido, reconstituindo tudo, enchendo aos poucos os espaços vazios, pondo as peças no lugar. Com exceção de Azadeh. Não, eu ainda não consigo encaixá-la.

Naquela manhã, ao acordar no meio de um pesadelo, ele estava aterrorizado, com as coisas todas embaralhadas, motores a jato, armas, pedras, explosões e frio, e olhara para as próprias mãos para ter certeza do que era sonho e do que era realidade. Então vira um homem olhando para ele e gritara: Onde está Azadeh?

— Ela ainda está dormindo, capitão Ross, ela está no quarto de hóspedes lá dentro — Pettikin dissera a ele, acalmando-o. — Lembra-se de mim? Charlie Pettikin? Doshan Tappeh?

Vasculhando a sua memória. As coisas voltando aos poucos, coisas medonhas. Grandes lacunas, muito grandes. Doshan Tappeh? O que houve em Doshan Tappeh? Tinha ido até lá para pegar carona num helicóptero e...

— Ah, sim capitão, como vai? Prazer em vê-lo. Ela está dormindo?

— Como um bebê.

— A melhor coisa para ela é dormir — dissera, ainda sem conseguir raciocinar direito.

— Primeiro uma xícara de café. Depois um banho, fazer a barba. Eu vou lhe arranjar algumas roupas e material para se barbear. Você é mais ou menos do meu tamanho. Está com fome? Nós temos ovos e um pouco de pão, o pão está meio azedo.

— Oh, não obrigado, não estou com fome. Você é muito gentil.

— Eu lhe devo um favor. Não, pelo menos dez. Estou muito satisfeito em vê-lo. Ouça, por mais que eu queira saber o que aconteceu... bem, McIver foi ao aeroporto apanhar o nosso patrão, Andy Gavallan. Eles vão voltar logo, você vai ter que contar a eles e então eu vou saber. Portanto, nenhuma pergunta até lá, você deve estar exausto.

— Obrigado, sim... as coisas ainda estão um pouco... eu não consigo me lembrar de quase nada do que aconteceu depois de ter deixado Azadeh na colina, apenas alguns pedaços, como um sonho, até acordar há um momento atrás. Quanto tempo eu dormi?

— Você esteve fora do ar umas 16 horas. Nós, Nogger e nossos dois mecânicos, ajudamos vocês dois a virem até aqui e depois vocês dois adormeceram. Nós pusemos você e Azadeh na cama como se fossem bebês, Mac e eu. Despimos vocês, limpamos parte da sujeira, carregamos vocês para a cama, não com muita delicadeza, aliás, mas vocês não acordaram, nenhum dos dois.

— Ela está bem? Azadeh?

— Oh, sim. Eu fui olhá-la umas duas vezes, mas ela ainda está dormindo. O que... desculpe, nada de perguntas! Primeiro tomar banho e fazer a barba. Desconfio que a água não está muito quente, mas eu coloquei um aquecedor elétrico no banheiro, não está muito ruim...

Agora Ross observava Pettikin, que estava servindo uísque a McIver e a Gavallan.

— Tem certeza de que não quer, capitão?

— Não, não, obrigado. — Sem perceber, ele sentiu o seu pulso direito e o esfregou. O seu nível de energia estava caindo rapidamente. Gavallan notou o cansaço do homem e viu que não tinha muito tempo.

— Quanto a Erikki. Você não consegue lembrar-se de mais nada para nos dar uma idéia de onde ele possa estar?

— Nada mais do que já contei a vocês. Talvez Azadeh possa ajudar. O nome do soviético era algo como Certaga, o homem com quem Erikki foi obrigado a trabalhar na fronteira. Como eu disse, eles a estavam usando para ameaçá-lo e houve alguma complicação a respeito do pai dela e uma viagem que eles iam fazer juntos. Desculpe, não consigo me lembrar exatamente. O outro homem, o que era amigo de Abdullah Khan, chamava-se Mzytryk, Petr Oleg. — Isso fez Ross lembrar-se da mensagem de Vien Rosemont para o khan, mas ele decidiu que isso não era da conta de Gavallan, nem a matança, nem o fato de ter empurrado o velho na frente do caminhão na colina, nem que um dia ele voltaria à aldeia e arrancaria a cabeça do açougueiro e do calênder que, se não fosse pela graça de Deus ou pelos espíritos da montanha, teriam apedrejado a ela e mutilado a ele. Ele faria isso depois de prestar contas a Armstrong, ou a Talbot ou ao coronel americano, mas antes disso, perguntaria a eles quem havia traído a operação em Meca. Alguém traíra. Por um momento, a lembrança de Rosemont, Tenzing e Gueng o cegaram. Quando seus olhos clarearam, ele viu o relógio na lareira.

— Eu tenho que ir a um edifício perto da embaixada britânica. É muito longe daqui?

— Não, nós podemos levá-lo, se quiser.

— Poderia ser agora? Sinto muito, mas acho que vou apagar de novo se não fizer isso logo.

Gavallan olhou para McIver.

— Mac, vamos sair agora... talvez eu consiga encontrar Talbot. Nós ainda teremos tempo de voltar e falar com Azadeh e com Nogger, se ele estiver aqui.

— Boa idéia.

Gavallan se levantou e vestiu o casaco. Pettikin disse para Ross:

— Vou lhe emprestar um casaco e umas luvas. — Ele viu os olhos dele desviarem-se para o corredor. — Você gostaria que eu acordasse Azadeh?

— Não, obrigado. Eu... eu vou só dar uma olhada nela.

— É a segunda porta à esquerda.

Eles o viram caminhar pelo corredor, com seu andar silencioso como o de um gato, abrir a porta sem fazer barulho e ficar lá em pé por um momento e depois tornar a fechá-la. Ele apanhou o seu rifle e os dois kookris, o dele e o de Gueng. Pensou por um momento e depois colocou o dele sobre a lareira.

— Caso eu não volte, diga a ela que é um presente, um presente para Erikki. Para Erikki e para ela.


47


NO PALÁCIO DO KHAN: 17:19H. O calênder de Abu Mard estava de joelhos, apavorado.

— Não, não, Alteza, eu juro que foi o mulá Mahmud quem nos disse...

— Ele não é um mulá verdadeiro, seu filho de um cão, todo mundo sabe disto! Por Deus, vocês... vocês iam apedrejar a minha filha? — O khan berrou, com o rosto vermelho, respirando com dificuldade — vocês decidiram? vocês decidiram que iam apedrejar a minha filha?

— Foi ele, Alteza — gemeu o calênder —, foi o mulá que decidiu depois de interrogá-la e ela ter admitido ter cometido adultério com o Sabotador...

— Seu filho de um cão! Vocês ajudaram e protegeram o falso mulá... Mentiroso! Ahmed contou-me o que aconteceu! — O khan se ergueu nos travesseiros, com um guarda atrás dele e Ahmed e outros guardas perto do calênder que estava em frente a ele, Najoud, sua filha mais velha e Aysha, sua jovem esposa sentadas de um dos lados, tentando esconder o terror e o ódio e apavoradas que ele se virasse contra elas. Ajoelhado ao lado da porta, ainda vestido com as roupas sujas de viagem e cheio de horror, estava Hakim, irmão de Azadeh, que acabara de chegar e fora levado até lá sob escolta, em resposta a um chamado do khan, e que ouvira com igual raiva o relato de Ahmed sobre o que acontecera na aldeia.

— Seu filho de um cão! — O khan tornou a gritar, a saliva escorrendo pela boca. — Você deixou... você deixou o cão do Sabotador escapar... você o deixou arrastar a minha filha com ele... você abrigou o Sabotador e depois... depois ousou julgar alguém da minha... MINHA família e ia apedrejá-la... sem pedir a minha... MINHA aprovação?

— Foi o mulá... — o calênder gritou, e ficou repetindo a mesma coisa.

— Façam-no calar a boca!

Ahmed atingiu-o com força num dos ouvidos, deixando-o momentaneamente tonto. Depois colocou-o de novo de joelhos e sibilou:

— Diga mais uma palavra e eu corto a sua língua. O khan estava tentando recuperar o fôlego.

— Aysha, dê-me... dê-me uma daquelas... daquelas pílulas.

Ela correu para obedecer, ainda de joelhos, abriu o frasco, colocou uma pílula na sua boca e limpou-a para ele. O khan manteve a pílula debaixo da língua como o médico recomendara e logo o espasmo passou, a pressão nos ouvidos diminuiu e o quarto parou de balançar. Seus olhos injetados voltaram a se fixar no velho que tremia e gemia incontrolavelmente.

— Seu filho de um cão! Então você ousa morder a mão do seu dono. Você, o seu açougueiro e a sua aldeia fedorenta. Ibrim — o khan disse para um dos guardas. — Leve-o de volta para Abu Mard e faça com que ele seja apedrejado, que os aldeões apedrejem a ele, depois corte fora as mãos do açougueiro.

Ibrim e outro guarda obrigaram o velho a se levantar, fizeram-no calar a boca e abriram a porta, parando quando Hakim disse severamente:

— E depois ponha fogo na aldeia!

O khan olhou para ele, estreitando os olhos.

— Sim, e depois ponha fogo na aldeia — repetiu e manteve os olhos em Hakim que enfrentou seu olhar, procurando ter coragem. A porta se fechou e o silêncio ficou mais pesado, quebrado apenas pela respiração penosa de Abdullah.

— Najoud, Aysha, saiam! — disse.

Najoud hesitou, querendo ficar, querendo ouvir a sentença que seria pronunciada a respeito de Hakim, vibrando por Azadeh ter sido apanhada em adultério devendo portanto, ser punida quando fosse recapturada. Bom, bom, bom. Junto com Azadeh, eles dois desaparecem: Hakim e o Ruivo da Faca.

— Eu estarei aqui ao lado, Alteza — ela disse.

— Você pode ir para os seus aposentos. Aysha, espere no final do corredor. — As duas mulheres saíram. Ahmed fechou a porta, satisfeito, estava tudo correndo conforme o planejado. Os outros dois guardas esperaram em silêncio.

O khan virou-se com dificuldade, fazendo um sinal para eles.

— Esperem lá fora. Ahmed, você fica. — Depois que todos saíram e só eles três estavam no quarto grande e frio, o khan tornou a olhar para Hakim.

— Ponha fogo na aldeia, você disse. Foi uma boa idéia. Mas isso não desculpa a sua traição, nem a da sua irmã.

— Nada desculpa a traição contra um pai, Alteza. Mas nem Azadeh nem eu traímos nem planejamos nada contra o senhor.

— Mentiroso! Você ouviu Ahmed! Ela admitiu ter dormido com o Sabotador, ela o admitiu.

— Ela admitiu 'amá-lo' Alteza, há muitos anos passados. Ela jurou por Deus que nunca cometeu adultério nem traiu o marido. Nunca! Na frente daqueles cães e filhos de cães e pior ainda, daquele mulá da esquerda, o que deveria dizer a filha de um khan? Ela não tentou proteger o seu nome na frente daquela gente maldita?

— Ainda torcendo palavras, ainda protegendo a prostituta em que ela se tornou?

O rosto de Hakim ficou cor de cera.

— Azadeh se apaixonou do mesmo modo que mamãe. Se ela é uma prostituta, então você prostituiu a minha mãe.

O sangue tornou a subir ao rosto do khan.

— Como você ousa dizer uma coisa dessas?

— É verdade. Você dormiu com ela antes de se casarem. Como ela o amava, deixou que você fosse secretamente ao quarto dela e se arriscou a morrer. Ela se arriscou a morrer porque o amava e você implorou. A nossa mãe não convenceu o pai a aceitá-lo como marido dela ao invés do seu irmão mais velho, que a desejava como segunda esposa para ele? — A voz de Hakim falhou, lembrando-se dela ao morrer, quando ele tinha sete anos e Azadeh seis, sem entender muito, só que ela estava sofrendo terrivelmente por causa de uma coisa chamada 'tumor' e que lá fora, no pátio, seu pai Abdullah estava desesperado. — Ela não tomou sempre a sua defesa contra o pai dela e seu irmão mais velho e depois, quando seu irmão foi morto e você se tornou o herdeiro, não foi ela que negociou a paz com o pai?

— Você não pode... não pode saber dessas coisas, você era... era muito pequeno!

— A velha babá Fatemeh nos contou, ela nos contou antes de morrer, ela nos contou tudo o que conseguiu lembrar...

O khan mal ouvia, recordando também, recordando o acidente que o irmão sofrerá numa caçada e que ele arquitetara com tanta habilidade — a velha babá devia saber disso também e se ela sabia, então Hakim e Azadeh sabiam, e era mais um motivo para silenciá-los. Recordando, também, todo o tempo de magia que ele tivera com Napthala, a Fada, antes e depois do casamento e durante todos os anos até o início da dor. Eles ainda não estavam casados havia um ano quando Hakim nasceu, dois quando veio Azadeh, Napthala tinha apenas 16 anos na época, pequenina, fisicamente do mesmo tipo que Aysha, mas mil vezes mais bonita, seu longo cabelo era como ouro. Mais cinco anos maravilhosos, nenhum outro filho, mas isso nunca importou, ele finalmente não tinha um filho, alto e forte — quando os três filhos que teve com a primeira esposa tinham todos nascido doentes, morrendo logo, suas quatro filhas feias e faladeiras? Sua mulher não estava ainda com 22 anos, em boa saúde, tão forte e maravilhosa quanto as duas crianças que tinha gerado? Havia muito tempo para mais filhos.

Então a dor começara. E a agonia. Nenhuma ajuda de nenhum dos médicos de Teerã.

— Insha'Allah — eles disseram.

Nenhum alívio, exceto as drogas, cada vez mais fortes, enquanto ela se acabava. Que Deus lhe conceda a paz do paraíso e que eu possa me encontrar lá com ela.

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