Ele gostava do cheiro do mar. Tinha crescido em Sydney, sempre com a visão do mar. Depois da guerra, tinha se instalado lá de novo. Pelo menos, disse a si mesmo, eu ia para lá entre um trabalho e outro e a mulher e as crianças viviam lá, e ainda vivem, mais ou menos. Seu filho e suas duas filhas já estavam casados e tinham filhos. Sempre que ia para casa de licença, talvez uma vez por ano, ele os via. Tinham um relacionamento distante e amigável.

Nos primeiros anos, sua esposa e filhos vieram morar no golfo. Mas no fim de um mês voltaram para Sydney.

— Nós estaremos em Bondi, Scrag — dissera Nell. — Chega de lugares estranhos para nós, rapaz. — Durante um dos seus longos períodos de serviço no Kuwait, ela tinha encontrado outro homem. Quando Scragger voltou, na vez seguinte, ela lhe disse: — Acho que é melhor nos divorciarmos, rapaz. É melhor para as crianças, e também para você e para mim. — E então eles o fizeram. O novo marido dela viveu mais alguns anos e depois morreu. Scragger e ela voltaram ao seu antigo padrão de amizade. Não que tenhamos deixado de ser amigos, pensou. Ela é uma ótima pessoa, as crianças estão felizes e eu estou voando. Ele ainda lhe mandava dinheiro todos os meses. Ela sempre dizia que não precisava de dinheiro.

— Então guarde-o para uma época de dificuldade, Nell — sempre respondia. Até agora, deixa eu bater na madeira, eles ainda não tinham tido nenhum período de necessidade, nem ela nem as crianças e nem seus netos.

A madeira mais próxima era a coronha do rifle que o revolucionário segurava. O homem o olhava com ar de ódio. Maldito filho da mãe, você não vai estragar o meu dia. Sorriu para ele, depois virou de costas, se espreguiçou e olhou em volta.

Este é um ótimo local para uma refinaria, disse a si mesmo, fica bastante perto de Abadan, dos oleodutos principais que ligam os campos de petróleo do norte aos do sul. É uma grande idéia tentar economizar todo esse gás que está sendo queimado, bilhões de toneladas no mundo todo. É um desperdício criminoso, pensando bem.

A refinaria ficava num promontório, com seu próprio ancoradouro que se estendia por quatrocentos metros golfo adentro, e que Kasigi dissera ser capaz de suportar dois superpetroleiros ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu tamanho. Em volta dos campos de pouso para helicópteros havia muitos hectares de instalações para destilação do petróleo e edifícios, tudo aparentemente interligado por quilômetros de canos de plástico e de aço de todos os tamanhos, um verdadeiro labirinto, com enormes torneiras e válvulas, estações de bombeamento e, em toda a parte, guindastes, tratores e enormes pilhas de todo o tipo de materiais de construção, montanhas de concreto e areia, malhas de aço reforçadas, além de áreas para entulho do tamanho de campos de futebol, de caixotes e recipientes protegidos por lonas plastificadas, e estradas, fundações, ancoradouros e escavações semiterminados. Mas quase tudo parado, homens e máquinas.

Quando pousaram, havia um comitê de recepção de uns vinte ou trinta japoneses esperando no campo de pouso, reunidos apressadamente, e uns cem grevistas iranianos e guardas islâmicos armados, alguns usando braçadeiras da OILP, as primeiras que Scragger vira. Depois de muitos gritos e ameaças e de examinar os papéis deles e a licença pelo radar de Kish, o intérprete dissera que podiam ficar, mas que nenhum dos dois poderia partir, nem o helicóptero poderia decolar, sem permissão do komiteh.

A caminho dos escritórios, o engenheiro-chefe Watanabe, que sabia falar inglês, explicara que o komiteh de greve já dava as ordens lá há mais de dois meses. Durante esse tempo quase nada progredira e todo o trabalho tinha cessado.

— Eles não permitem nem mesmo que façamos a manutenção do nosso equipamento. — Era um homem rude, de rosto severo e cabelos grisalhos, de uns sessenta anos, com mãos fortes de operário. Acendeu outro cigarro na ponta do que tinha acabado de fumar.

— E o rádio de vocês?

— Há seis dias eles trancaram a sala de rádio, proibindo o seu uso, e confiscaram a chave. Os telefones estão mudos há semanas, é claro, e o telex não funciona há mais de uma semana. Ainda temos cerca de mil japoneses aqui, dependentes nunca foram permitidos, é claro, as provisões de comida estão no fim e não recebemos nenhuma correspondência há mais de seis semanas. Não podemos sair, não podemos trabalhar. Somos quase prisioneiros e não podemos fazer nada sem muito aborrecimento. Mas, pelo menos, estamos vivos para proteger o que construímos e para esperar pacientemente até que eles nos deixem prosseguir. Estamos realmente muito honrados em vê-lo, Kasigi-san, e ao senhor, capitão.

Scragger deixara-os a tratar dos negócios, sentindo a tensão entre os dois homens, por mais que eles tentassem ocultá-la. À noite, ele tinha feito uma refeição leve, como sempre, permitindo-se apenas uma cerveja japonesa bem gelada. Ora bolas, ela não é tão boa quanto a Foster's. Depois tinha feito seus 11 minutos de exercícios da Força Aérea canadense e fora para cama.

Poucos antes da meia-noite, enquanto ele ainda estava lendo, alguém batera de leve na porta. Kasigi entrara nervoso, pedindo desculpas por incomodá-lo, mas achava que Scragger devia tomar conhecimento, imediatamente, de que ele acabara de ouvir uma transmissão feita por um porta-voz de Khomeini em Teerã, dizendo que todas as Forças Armadas tinham-se declarado a favor dele, que o primeiro-ministro Bakhtiar renunciara e que agora o Irã estava totalmente livre da corja do xá, que por ordens pessoais de Khomeini toda luta deveria cessar, todas as greves deveriam ser interrompidas, que a produção de petróleo deveria recomeçar, que todos os bazares e lojas deveriam reabrir, que todos os homens deveriam entregar suas armas e voltar ao trabalho e, acima de tudo, que todos deveriam agradecer a Deus por ter-lhes concedido a vitória.

— Agora podemos começar de novo. Graças a todos os deuses, hein? Agora as coisas vão voltar ao normal. — E Kasigi sorrira radiante.

Depois que Kasigi saiu, Scragger ficara deitado, com a luz acesa, e a mente trabalhando, imaginando o que poderia acontecer agora. Como tudo aconteceu rápido, pensou. Teria apostado que o xá nunca seria expulso, apostaria mais ainda que Khomeini nunca teria permissão para voltar, e apostaria tudo num golpe militar.

— Isso só serve para mostrar, Scrag, meu velho, que você não sabe nada. — E tinha apagado a luz.

De manhã, tinha acordado cedo, aceitara o chá verde no lugar do chá que costumava tomar de manhã — indiano, muito forte, e sempre com leite condensado — e fora checar, limpar e reabastecer o helicóptero e agora, depois de tudo pronto, estava com muita fome. Cumprimentou levemente o guarda, que não lhe deu nenhuma atenção, e caminhou em direção ao prédio de escritórios.

Kasigi estava em pé diante de uma das janelas do último andar onde ficavam os escritórios dos executivos. Estava na sala de reuniões, um escritório espaçoso, de esquina, com uma mesa enorme e lugar para vinte pessoas sentadas, e tinha estado observando o 206 e Scragger distraidamente, com a cabeça num turbilhão, determinado a conter a raiva. Desde cedo, nessa manhã, ele verificara projeções de custos, relatórios, quantias a serem recebidas, projeções de trabalho, e assim por diante, e tudo isso se resumia num único fato: mais um bilhão de dólares e mais um ano para iniciar a produção. Esta era apenas a segunda vez que ele visitava a refinaria, que não estava na sua esfera de responsabilidades, embora fosse um dos diretores e membro do comitê executivo da presidência, que era o escalão mais alto de poder decisório do conglomerado.

Atrás dele, o engenheiro-chefe Watanabe estava sentado sozinho na ampla mesa, parecendo paciente, mas fumando sem parar como sempre. Ele fora o responsável nos últimos dois anos, chefe adjunto desde que o projeto começara em 1971 — um homem de grande experiência. O antigo engenheiro-chefe morrera na refinaria, de um ataque cardíaco.

Não é de admirar, pensou Kasigi, furioso. Há dois anos — talvez quatro — ele deve ter visto que o nosso orçamento limite, de três e meio bilhões de dólares, não seria suficiente, que já fora ultrapassado e que os prazos de entrega estavam totalmente fora da realidade.

— Por que o engenheiro-chefe Kasusaka não nos informou? Por que ele não fez um relatório especial?

— Ele fez, Kasigi-san — disse educadamente Watanabe —, mas por ordem da direção do convênio aqui. todos os relatórios têm que passar pelos nossos sócios indicados pela corte. E uma praxe iraniana, embora o empreendimento seja sempre considerado uma joint venture, meio a meio, com divisão de responsabilidades, aos poucos os iranianos conseguem manobrar as reuniões, os contratos e as cláusulas, geralmente usando a corte ou o xá como desculpa, até terem o controle de fato e então... — Ele deu de ombros.

"O senhor não tem idéia de como eles são espertos... piores do que um comerciante chinês, muito piores. Concordam em comprar o animal inteiro, mas dão para trás e levam só o filé, deixando o resto da carcaça nas suas mãos.

— Apagou o cigarro fumado pela metade e acendeu outro. — Houve uma reunião de diretoria com todos os sócios, com Gyokotomo-sama, o próprio Yoshi Gyokotomo, presidente do Sindicato, aqui neste escritório, pouco antes do engenheiro-chefe Kasusaka-san morrer. Eu estava presente. Kasusaka-san avisou a todo mundo que os atrasos e complicações burocráticas dos iranianos, pressão é a palavra certa, iriam atrasar o início da produção e causar um grande aumento nos custos. Eu estava presente, eu o ouvi dizer isso com meus próprios ouvidos, mas ele foi vencido pelos sócios iranianos que garantiram ao presidente que tudo seria reformulado, que Kasusaka-san não entendia o Irã nem o modo deles fazerem negócios no Irã. — Watanabe examinou a ponta do seu cigarro. — Kasusaka-san até disse a mesma coisa em particular para Gyokotomo-sama, implorando-lhe para tomar cuidado, e lhe deu um relatório detalhado por escrito.

— Você esteve presente a esse encontro? — perguntou Kasigi fechando a cara.

— Não, mas ele me contou o que tinha dito, que Gyokotomo-sama aceitara o relatório e dissera que ele mesmo o entregaria aos mais altos escalões, em Teerã e no Japão. Mas nada aconteceu, Kasigi-san. Nada.

— Onde está a cópia do relatório?

— Não há nenhuma cópia. No dia seguinte, antes de partir para Teerã, Gyokotomo ordenou que as cópias fossem destruídas. — Mais uma vez o homem deu de ombros. — A obrigação do engenheiro-chefe Kasusaka, e a minha, era e é construir a refinaria, quaisquer que fossem os problemas, e não interferir com o trabalho do Sindicato. — Watanabe acendeu outro cigarro com a ponta do anterior, tragou profundamente, apagou o outro delicadamente, com vontade de esmagá-lo, e de esmagar o cinzeiro, a mesa, o edifício e a refinaria, junto com aquele intruso do Kasigi que ousava interrogá-lo, que não sabia de nada, que nunca tinha trabalhado no Irã, e que tinha essa posição na companhia porque era parente dos Toda. — Ao contrário do engenheiro-chefe Kasusaka — ele acrescentou suavemente —, eu venho guardando as cópias dos meus relatórios mensais.

— So ka? — disse Kasigi, tentando parecer natural.

— Sim — Watanabe confirmou. E há cópias dessas cópias guardadas em lugar bem seguro, pensou, apanhando uma pasta grossa na sua maleta e colocando-a em cima da mesa, caso você tente responsabilizar-me pelos fracassos. — O senhor pode lê-los se quiser.

— Obrigado — com esforço, Kasigi resistiu à tentação de agarrar a pasta imediatamente.

Watanabe esfregou o rosto fatigado. Tinha ficado acordado a maior parte da noite, preparando-se para este encontro.

— Quando voltarmos ao normal, o trabalho vai progredir rapidamente. Estamos com oitenta por cento do trabalho prontos. Estou confiante de que poderemos terminar, com planejamento correto. Está tudo nos meus relatórios, inclusive a questão do encontro de Kasusaka com os sócios e depois com Gyokotomo-sama.

— O que você sugere como uma solução global para a Irã-Toda?

— Não pode haver nenhuma enquanto não voltarmos ao normal.

— Estamos voltando agora. Você ouviu a transmissão.

— Eu ouvi, Kasigi-san, mas normal para mim significa quando o governo de Bazargan estiver inteiramente sob controle.

— Isso acontecerá em poucos dias. E a sua solução?

— A solução é simples: arranjar novos sócios que queiram cooperar, arranjar o financiamento de que precisamos, e dentro de um ano, em menos de um ano, estaremos produzindo.

— Os sócios podem ser mudados?

— Os antigos foram todos apontados ou aprovados pela corte, portanto homens do xá, agora, portanto, suspeitos e inimigos — disse Watanabe com uma voz tão fina quanto os seus lábios. — Nós não vimos nem um deles depois que Khomeini voltou, nem ouvimos falar mais deles. Ouvimos boatos de que tinham todos fugido mas... — Watanabe sacudiu seus ombros enormes. — Não tenho nenhum meio de checar sem telex, sem telefones, sem transporte. Duvido que os novos 'sócios' tenham uma atitude diferente.

Kasigi concordou com a cabeça e olhou pela janela, sem ver nada. Era fácil culpar iranianos e homens mortos e reuniões secretas e relatórios destruídos. O presidente Yoshi Gyokotomo nunca mencionara nenhum encontro com Kasusaka nem nenhum relatório por escrito. Por que Gyokotomo omitiria um relatório tão vital? Ridículo, porque ele e sua companhia estão correndo o mesmo risco que a nossa. Por quê? Se Watanabe estiver dizendo a verdade, e seus relatórios puderem provar isso, por quê?

Então, por um momento que Watanabe notou, o rosto de Kasigi desmoronou ao perceber a resposta: porque o enorme orçamento e o fracasso gerencial do complexo Irã-Toda, somado ao desastroso declínio da frota mercante mundial, levarão à falência as Indústrias Toda de Navegação, levarão à falência o próprio Hiro Toda e nos deixarão prontos para sermos encampados! Por quem? Evidentemente por Yoshi Gyokotomo. É claro que por aquela família de camponeses enriquecidos que nos detestam por termos uma origem nobre, por descendermos de samurais...

Então, mais uma vez, Kasigi pensou que seu cérebro iria explodir: É claro que por Yoshi Gyokotomo, mas ajudado e acobertado pelos nossos arqui-rivais, as Indústrias Mitsuwari! Oh, Gyokotomo vai perder uma fortuna, mas eles podem agüentar esta perda enquanto molharem as mãos certas sugerindo que irão, em conjunto, absorver as perdas da Toda, desmembrá-la e, com a benevolência do Ministério de Indústria e Comércio, colocá-la sob uma outra administração. Junto com os Toda irão os seus parentes: os Kasigi e os Kayama. Bem que eu queria estar morto.

Oh ko!

E agora sou eu que terei que levar estas terríveis notícias. Os relatórios de Watanabe não provarão nada, pois é claro que Gyokotomo vai negar tudo, amaldiçoando-me por tentar acusá-lo e gritando que os relatórios de Watanabe provam conclusivamente a má administração de Hiro Toda durante todos aqueles anos. Então eu vou ter problemas de qualquer maneira. Talvez o plano de Hiro Toda tenha sido colocar-me no meio desta confusão! Talvez ele queira substituir-me por um dos seus irmãos ou dos seus sobri...

Neste instante houve uma batida na porta e esta foi aberta violentamente. O jovem assistente de Watanabe entrou correndo, desculpando-se profusamente por interrompê-los.

— Oh, sinto muito, Watanabe-san, oh, sinto muito.

— O que é? — Watanabe disse, interrompendo-o.

— Há um grande komiteh chegando, Watanabe-San, Kasigi-sama! Olhem! — O jovem, pálido, apontou para as outras janelas que davam para a frente do prédio.

Kasigi chegou lá primeiro. Diante da porta principal havia um caminhão cheio de revolucionários, e outros caminhões e carros vinham atrás. Saltaram vários homens deles e começaram a se juntar em grupos.

Scragger estava se aproximando e eles o viram parar, depois continuar em direção à porta principal, mas fizeram sinal para ele se afastar enquanto uma grande Mercedes se aproximava. Do banco de trás saltou um homem robusto vestido de preto, com um turbante preto e uma barba branca, acompanhado por outro homem bem mais jovem, de bigode, vestido com roupas leves, com a camisa aberta no pescoço. Todos dois usavam óculos. Watanabe prendeu a respiração.

— Quem são eles? — perguntou Kasigi.

— Não sei, mas um aiatolá significa encrenca. Mulás usam turbantes brancos, aiatolás usam turbantes pretos. — Cercados por meia dúzia de guardas, os dois homens entraram no prédio. — Traga-os aqui em cima, Takeo, com toda a cerimônia. — O rapaz saiu correndo no mesmo instante. — Nós até hoje só fomos visitados por um aiatolá uma vez, no ano passado, um pouco antes do incêndio de Abadan. Ele chamou todo o nosso pessoal iraniano para uma reunião, discursou para eles por uns três minutos, e depois mandou que entrassem em greve em nome de Khomeini. — Seu rosto virou uma máscara. — Esse foi o começo dos nossos problemas aqui. Nós, estrangeiros, temos tentado fazer o melhor possível desde então.

— E desta vez? — perguntou Kasigi.

Watanabe deu de ombros, foi até uma escrivaninha e apanhou uma fotografia de Khomeini que Kasigi não tinha notado, pendurado-a na parede.

— Apenas por delicadeza — disse com um sorriso sardônico. — Vamos nos sentar? Eles esperam que sejamos formais. Por favor, sente-se na cabeceira.

— Não, Watanabe-san, por favor. O encarregado é você. Eu sou apenas um visitante.

— Como quiser. — Watanabe sentou-se no seu lugar de sempre e olhou para a porta.

— Como foi isso, sobre o incêndio de Abadan? — perguntou Kasigi, quebrando o silêncio.

— Ah, desculpe — disse Watanabe, sentindo-se na verdade indignado pelo fato de Kasigi ignorar um fato assim tão importante. — Foi em agosto passado, durante o mês sagrado de Ramadan quando nenhum crente pode comer nem beber desde o nascer até o pôr-do-sol e os ânimos geralmente ficam exaltados. Nessa época houve apenas algumas demonstrações de protesto contra o xá, principalmente em Teerã e em Qom, mas nada de sério, e os tumultos foram facilmente contidos pela polícia e pela Savak. No dia 15 de agosto, incendiários puseram fogo num cinema, o Cinema Rex, em Abadan. Todas as portas, 'por acaso', estavam trancadas ou obstruídas, os bombeiros e a polícia, 'por acaso', custaram a chegar, e no pânico morreram quase quinhentas pessoas, na maioria mulheres e crianças.

— Que horror!

— Sim. A nação inteira ficou indignada. Na mesma hora a Savak foi acusada, e portanto o xá, o xá pôs a culpa nos esquerdistas e jurou que a polícia e a Savak não tinham nada a ver com aquilo. É claro que ele determinou um inquérito que se arrastou por semanas. Infelizmente, a questão da responsabilidade não foi esclarecida. — Watanabe estava prestando atenção no barulho de passos. — Esta foi a centelha que uniu as oposições sob o comando de Khomeini e arrancou os Pahlavi do trono.

— Na sua opinião, quem foi que pôs fogo no cinema? — perguntou Kasigi, depois de uma pausa.

— Quem é que queria destruir os Pahlavi? É tão fácil acusar a Savak! — Watanabe ouviu o elevador parar. — O que significam quinhentas mulheres e crianças para um fanático... de qualquer seita?

A porta foi aberta pelo assistente Takeo. O aiatolá e o civil entraram com um ar importante, com seis homens armados em volta. Watanabe e Kasigi levantaram-se educadamente e se curvaram.

— Sejam bem-vindos — Watanabe disse em japonês embora soubesse falar farsi muito bem. — Eu sou Naga Watanabe, o encarregado daqui, este é o sr. Kasigi da nossa matriz no Japão. A quem eu tenho o prazer de me dirigir, por favor?

Takeo, que falava farsi perfeitamente, começou a traduzir, mas o civil, que já tinha sentado, o interrompeu.

— Vous parlez français? — perguntou com rudeza a Watanabe.

— Iye. Não — disse Watanabe, em japonês.

— Bien sür, m'sieur — disse Kasigi, hesitante, pois seu francês era medíocre. — Je parle un peu, mais je parle anglais mieux et m 'sieur Watanabe aussi. Eu falo um pouco de francês, mas falo melhor inglês e o sr. Watanabe também.

— Muito bem — disse o homem secamente, em um inglês com sotaque parisiense. — Então falaremos em inglês. Eu sou Muzadeh, encarregado da região de Abadan pelo primeiro-ministro Bazargan e...

— Mas Bazargan não faz a lei, quem faz é o imã — o aiatolá o interrompeu vivamente. — O imã nomeou temporariamente Bazargan como primeiro-ministro, até que, com a Vontade de Deus, nosso Estado islâmico seja formado. — Ele tinha sessenta e muitos anos, um rosto redondo, sobrancelhas e barba brancas e usava uma roupa preta bem cortada. — Sob a liderança do imã — acrescentou significativamente.

— Sim, é claro — disse Muzadeh, depois continuou a falar como se não tivesse havido nenhuma interrupção —, e devo informar-lhes oficialmente que a Irã-Toda está, a partir de agora, sob nosso controle direto. Haverá uma reunião dentro de três dias para organizar as formas de controle e as futuras operações. Todos os antigos contratos, feitos pelos xá e portanto ilegais, estão suspensos. Eu vou indicar uma nova junta fiscalizadora da qual serei presidente, com representantes dos operários, um operário japonês e o senhor mesmo. O senhor...

— E eu mesmo e um mulá de Bandar Delam — disse o aiatolá, olhando fixamente para ele.

— Nós podemos discutir a formação do comitê mais tarde. — Muzadeh falava zangado, em farsi, e havia uma certa tensão na sua voz. — O importante é que os operários estejam representados.

— O importante é fazer o Trabalho de Deus.

— Nisso o trabalho do povo e o Trabalho de Deus são iguais.

— Não se o 'trabalho do povo' for um disfarce para o trabalho de Satã!

Os seis guardas iranianos mudaram de posição, inquietos. Inconscientemente, eles se reagruparam em dois grupos, quatro de um lado e dois do outro. No silêncio que se seguiu, seus olhos examinaram um a um todos os homens sentados na mesa. Um dos guardas calmamente destravou uma arma.

— O senhor estava dizendo? — Watanabe disse rapidamente e quase acrescentou Banzai, aliviado, quando viu todos voltarem a prestar atenção nele.

— O senhor quer formar um novo comitê?

— Sim. — Com algum esforço, Muzadeh tirou os olhos do aiatolá e continuou: — Você deverá ter todos os livros preparados para serem examinados por nós e será considerado responsável por qualquer... qualquer problema que possa ocorrer, e por crimes passados ou futuros contra o Irã, passados ou futuros.

— Nós temos trabalhado em conjunto com o governo do Irã desde o...

— Com o xá, não com o povo iraniano — Muzadeh interrompeu. Atrás dele, os guardas, rapazes, alguns adolescentes, alguns quase imberbes, começaram a cochichar.

— É verdade, sr. Muzadeh — disse Watanabe, imperturbável. Eleja tinha passado por este tipo de confronto muitas vezes nos últimos meses. — Mas nós somos japoneses. A Irã-Toda está sendo construída por técnicos japoneses com a maior ajuda possível de operários iranianos, e é financiada inteiramente com dinheiro japonês.

— Isso não tem nada...

— Sim, nós sabemos — disse alto o aiatolá, mas Simpaticamente, adiantando-se ao outro —, nós sabemos disto e vocês são bem-vindos no Irã. Nós sabemos que os japoneses não são americanos canalhas, nem ingleses mentirosos, e embora vocês não sejam muçulmanos, para infelicidade de vocês, seus olhos não estando ainda abertos para Alá, nós os consideramos bem-vindos. Mas agora, com a ajuda de Deus, temos o nosso país de volta, agora temos que fazer... que fazer novos acordos para futuras operações. O nosso povo vai ficar aqui, fazendo perguntas. Por favor, cooperem com ele... vocês não têm nada a temer. Lembrem-se, nós queremos esta obra pronta e operando tanto quanto vocês. Meu nome é Ismael Ahwazi, e eu sou o aiatolá desta região. — Ele se levantou com uma rapidez que fez alguns dos homens darem um pulo.

— Nós voltaremos dentro de quatro dias.

Muzadeh falou veementemente em farsi.

— Há outras ordens para estes estran...

Mas o aiatolá já tinha saído. Furioso, Muzadeh se levantou e saiu pisando duro, seguido pelos seus homens.

Quando ficaram sozinhos, Kasigi permitiu-se apanhar um lenço e enxugar a testa. O jovem Takeo ainda estava em estado de choque. Watanabe revistou os bolsos à procura de cigarros, mas o maço estava vazio. Ele o amassou. Takeo despertou e correu até uma gaveta e trouxe um maço novo, abriu-o e ofereceu-o.

— Obrigado, Takeo — disse Watanabe e aceitou fogo. — Pode ir agora.

— Ele olhou para Kasigi. — Então, tudo vai começar de novo.

— Sim — respondeu Kasigi, compreendendo as implicações de um novo komiteh empenhado em terminar a obra. — Esta foi a melhor notícia que poderíamos receber. Isto será muito bem recebido no Japão. — De fato, pensou, cada vez mais animado, esta notícia vai neutralizar o relatório de Watanabe e talvez, de algum modo, nós, Hiro Toda e eu, possamos, juntos, neutralizar Gyokotomo. E se, o que seria ainda melhor, Hiro renunciasse em favor do seu irmão, seria perfeito!

— O quê? — perguntou, vendo que Watanabe estava olhando para ele.

— Eu não quis dizer que o trabalho vai recomeçar, Kasigi-san — disse o engenheiro-chefe, rispidamente. — O novo komiteh não vai ser melhor do que os outros; de fato, será pior. Com os sócios, o inevitável pishkesh abria portas e você sabia em que pé estava. Mas com esses fanáticos, com esses amadores? — Irritado, Watanabe passou a mão nos cabelos. Que os deuses e os espíritos me dêem forças para não xingar este idiota pela sua estupidez, pensou. Seja esperto. Acalme-se, ele não passa de um macaco, não tão bem-nascido quanto você, que é um descendente direto dos senhores do norte.

— Então o aiatolá mentiu? — A alegria de Kasigi evaporou-se.

— Não. Aquele pobre idiota acreditava no que estava dizendo, mas nada disso vai acontecer. A polícia e a Savak, qualquer que seja o seu novo nome, ainda controlam Abadan e esta área. Os habitantes locais são na maioria árabes, sunitas, não iranianos xiitas. Eu estava querendo dizer que a matança vai começar de novo. — Watanabe explicou a discussão que os dois homens tinham tido em farsi. — Agora vai ser muito pior com cada facção tentando conseguir o poder.

— Estes bárbaros não vão obedecer a Khomeini? Não vão depor as armas?

— Eu estou dizendo que os esquerdistas como Muzadeh vão continuar com a guerra, ajudados e acobertados pelos soviéticos, que estão loucos para tomar o Irã, eles sempre quiseram o Irã, sempre desejarão o Irã. Não por causa do petróleo, mas por causa do estreito de Ormuz. Pois com um pé no estreito, eles tomam conta do mundo ocidental... e do Japão. Pelo que me diz respeito, o Ocidente, a América e o resto do mundo podem apodrecer, mas nós seremos obrigados a entrar em guerra se o estreito for proibido para os nossos navios.

— Concordo. É claro que eu concordo. — Kasigi também estava irritado. — Nós todos sabemos disto. É claro que isso significa guerra, enquanto formos dependentes com relação ao petróleo.

— Sim — Watanabe sorriu melancolicamente. — Dez anos, não mais do que isso.

— Sim.

Os dois homens estavam a par do enorme esforço nacional em projetos de pesquisa, conhecidos e secretos, para desenvolver as fontes alternativas de energia que tornariam o Japão auto-suficiente — o Projeto Nacional. As fontes* o sol e o mar.

— Dez anos, sim, só mais dez anos. — Kasigi estava confiante. — Se tivermos dez anos de paz e de acesso livre ao mercado americano, então teremos a nossa fonte alternativa e então seremos os donos do mundo. Mas enquanto isso — acrescentou, com a raiva aumentando —, durante os próximos dez anos teremos que nos submeter a bárbaros e bandidos de toda a espécie.

— Khrushchev não disse que não tinham que fazer nada a respeito do Irã porque "o Irã é uma maçã podre que vai cair nas nossas mãos"? — Watanabe estava furioso. — Eu garanto que aqueles comedores de merda estão sacudindo a árvore com toda a força.

— Nós os derrotamos uma vez — Kasigi disse sombriamente, lembrando-se da guerra naval de 1904, de que seu avô tinha participado. — Poderemos derrotá-los de novo. Aquele homem... Muzadeh? Talvez ele seja apenas progressista e antimulá; nem todos eles são partidários fanáticos de Khomeini

Eu concordo, Kasigi-san. Mas alguns são igualmente fanáticos pelo seu Deus Lenin-Marx e igualmente estúpidos. Aposto como Muzadeh é um desses pseudo-intelectuais, antigo aluno de uma universidade francesa, cujos estudos foram pagos com bolsas de estudo dadas pelo xá, que foi adotado, treinado e adulado por professores de esquerda na França. Passei dois anos na Sorbonne fazendo um curso de pós-graduação. Eu conheço esses intelectuais, esses cretinos e alguns dos professores. Eles tentaram me catequisar uma vez... Um tiroteio lá fora o interrompeu. Por um momento, os dois homens ficaram imóveis, depois correram para a janela. Lá embaixo, o aiatolá e Muzadeh estavam parados nos degraus da frente. Abaixo deles, no pátio, um homem os ameaçava com um rifle automático, sozinho no meio de um semi-círculo de outros homens armados, os outros estavam espalhados, perto dos caminhões, alguns gritando e todos hostis. Scragger estava ali perto e viram-no procurar um lugar melhor para se proteger. O aiatolá levantou os braços e falou com eles. Watanabe não podia ouvir o que o homem estava dizendo. Cuidadosamente, abriu a janela e espiou para fora.

— Ele está dizendo: "Em Nome de Deus, entreguem suas armas, o imã o ordenou. Todos vocês ouviram a transmissão da mensagem dele. Vou repetir, obedeçam-no e entreguem suas armas".

Houve mais gritos zangados, com homens ameaçando uns aos outros. Na confusão, ele viu Scragger se esgueirar e desaparecer atrás de um edifício. Watanabe se debruçou mais, tentando ouvir melhor.

— O homem que os está ameaçando com a arma, não consigo ver se ele está usando uma braçadeira ou não... ah, não está, então deve serfedayin ou tudeh... — Fez-se um grande silêncio no pátio. Imperceptivelmente, os homens começaram a procurar posições melhores, todos armados, cada um vigiando o seu vizinho, todos com os nervos à flor da pele. O homem que ameaçava os dois levantou a arma e berrou para o aiatolá:

— Mande seus homens largarem as armas!

Muzadeh deu um passo à frente, sem querer um confronto ali, sabendo que estava em desvantagem.

— Pare com isto Hassan! Você vai...

— Nós não lutamos, e nem os nossos irmãos morreram para entregarmos as nossas armas e o poder para os mulás!

— O governo tem poder! O governo! — Muzadeh aumentou ainda mais o tom da voz. — Todos podem ficar com suas armas agora, mas deverão entregá-las no meu escritório, já que eu represento o novo governo e o...

— Você não representa — gritou o aiatolá. — Em primeiro lugar, em Nome de Deus, todos os guardas não-islâmicos vão colocar as suas armas no chão e partir em paz. Em segundo lugar, o governo está subordinado ao komiteh revolucionário que está ligado diretamente ao imã, e este homem Muzadeh ainda não foi confirmado, portanto não tem nenhuma autoridade! Obedeçam ou serão desarmados!

— Eu sou o governo aqui. — Não é não!

— Allah-u Akbarrr! — alguém gritou e puxou o gatilho e Hassan, o jovem que estava no centro, foi atingido nas costas e dançou a dança da morte. Imediatamente, outras armas foram disparadas e os homens correram para se abrigar ou se voltaram contra o vizinho. A batalha foi curta e terrível. Muitos morreram, mas os homens de Muzadeh estavam em minoria. Os Faixas Verdes foram impiedosos. Alguns tinham agarrado Muzadeh e agora o mantinham de joelhos no chão, implorando piedade.

Sobre os degraus estava o aiatolá. Uma rajada de balas o atingira no peito e no estômago e agora ele estava caído nos braços de um homem, com o sangue manchando suas vestes. Um filete de sangue escorreu pela sua barba.

— Deus é Grande... Deus é Grande... — murmurou, e depois deu um gemido rouco de dor.

— Mestre — disse o homem que o estava segurando, com lágrimas correndo pelo rosto —, diga a Deus que nós tentamos protegê-lo, diga ao Profeta.

— Deus... é... Grande — murmurou.

— E quanto a Muzadeh? — perguntou alguém. — O que vamos fazer com ele?

— Faça o trabalho de Deus. Mate-o... mate-o como devem matar todos os inimigos do islã. Não existe nenhum outro deus além de Deus...

A ordem foi obedecida imediatamente. Cruelmente. O aiatolá morreu sorrindo, com o Nome de Deus nos lábios. Os outros soluçavam abertamente — invejando-lhe o paraíso.


24


NA BASE DA FORÇA AÉREA DE KOWISS: 14:32H. Manuela Starke estava na cozinha do bangalô fazendo chili. Música country enchia o pequeno aposento, vinda de um toca-fitas de pilha, colocado no parapeito da janela. No fogão a gás butano havia um panelão cheio de caldo e de alguns dos ingredientes, e quando começou a ferver, ela diminuiu o fogo e deu uma olhada no relógio para calcular o tempo. Bem na hora, pensou. Vamos comer por volta das sete e as velas vão embelezar a mesa!

Havia cebolas e outras coisas para picar e carne de cabra para moer e ela continuou a trabalhar alegremente, cantarolando distraída ou dando uns passos de dança ao som da música. A cozinha era pequena e difícil para se trabalhar, ao contrário da enorme cozinha da velha e linda hacienda espanhola que sua família possuía há quase um século, onde ela, seu irmão e sua irmã foram criados. Mas ela não se importava de estar apertada nem de cozinhar sem os utensílios apropriados. Estava satisfeita de ter alguma coisa para fazer para não pensar em quando tornaria a ver seu marido.

Foi no sábado que Conroe partiu para Bandar Delam com o mulá, pensou, tentando tranqüilizar-se. Hoje é terça-feira, então só se passaram três dias e o dia hoje ainda nem acabou. Na noite passada ele lhe falara pelo rádio: "Oi, querida, está tudo bem aqui, não precisa se preocupar. Desculpe, mas tenho que ir. O tempo de transmissão está controlado no momento, eu te amo e estarei aí logo". A voz dele parecia firme e confiante, mas, mesmo assim, ela teve certeza de ter percebido um nervosismo que tomara conta de sua mente e permeara seus sonhos. Isso é imaginação sua. Ele vai voltar logo — deixe os sonhos para a noite e concentre-se pensando que está tudo bem. Concentre-se na cozinha!

Trouxera os pacotes de chili em pó de Londres, junto com temperos, páprica, pimenta-malagueta, gengibre, alho fresco e pimentas de chili secas e feijões secos e pouca coisa mais, além de uma maleta com roupas de dormir e papel higiênico, que pudera carregar no 747. Trouxera os ingredientes para o chili porque Starke adorava comida mexicana, principalmente chili, e ambos achavam que, fora o caril, era a única forma de tornar a carne de cabra suportável. Não teve necessidade de trazer roupas nem qualquer outra coisa porque ainda tinha algumas coisas no apartamento de Teerã. Além disso, o único presente que trouxe foi uma pequena garrafa de Marmite, que ela sabia que Genny e Duncan McIver adoravam passar na torrada amanteigada feita com o pão que Genny assava — quando ela conseguia comprar farinha e fermento.

Hoje Manuela tinha feito pão. As três fôrmas estavam esfriando na prateleira, cobertas com um pano para evitar as moscas. Malditas moscas, pensou. As moscas estragam o verão, mesmo em Lubbock... Ah, Lubbock, imagino como estarão as crianças.

Billyjoe, Conroe Júnior e Sarita. Sete, cinco e três. Ah, meus amores, pensou satisfeita. Estou tão contente de ter mandado vocês para casa, para o meu pai e os nossos cinco mil hectares de terreno para vocês se esbaldarem, e com o vovô Starke por perto: "Mas não deixem de usar botas por causa das cobras, estão ouvindo?" — com aquela sua voz rude e tão terna.

— Texas para sempre — disse em voz alta e riu sozinha, com os dedos ágeis cortando, moendo e mexendo, provando o cozido de vez em quando, pondo mais sal ou alho. Pela janela, viu Freddy Ayre cruzando a pequena praça para subir para a torre de rádio. Com ele estava Pavoud, o chefe dos empregados. Ele é um homem simpático, pensou. Temos sorte de ter empregados leais. Mais além, ela podia ver a pista principal e grande parte da base, coberta de neve, com o céu coberto de nuvens que ocultavam os cumes das montanhas. Alguns pilotos e mecânicos jogavam bola distraidamente. Marc Dubois, que tinha transportado o mulá de volta de Bandar Delam, estava entre eles.

Não havia mais nada acontecendo ali, apenas manutenção dos aparelhos, verificação de peças, pintura — nenhum vôo desde domingo, quando houve o ataque à base. E o motim. No domingo à noite, três amotinados, um piloto e dois sargentos do regimento de tanques, foram submetidos à corte marcial e, de madrugada, foram mortos. Durante todo o dia de ontem e de hoje a base estivera calma. Ontem eles viram passar dois aviões de combate, mas nenhum outro avião, o que era estranho, pois era uma base de treinamento e geralmente havia muito movimento. Nada parecia mover-se. Apenas uns poucos caminhões, nenhum tanque nem soldados — nem visitantes do lado de cá. Durante a noite tinha havido tiros e gritaria, mas durara pouco.

Ela se olhou criticamente no espelho que estava pendurado num prego sobre a pia, cheia de pratos e panelas sujas, além de talheres e copos. Virou o rosto de um lado para o outro e examinou o que pôde enxergar do seu corpo.

— Você está muito bem, querida — disse para o seu reflexo — mas é melhor você se mexer e começar a dar umas corridas e largar o pão, o chili, o vinho, as torradas, a manteiga, os tacos, os feijões e as panquecas da mamãe cheias de mel, os ovos fritos, o bacon e as batatas fritas...

O ensopado começou a transbordar, distraindo-a. Ela diminuiu mais o fogo, provou o caldo grosso e avermelhado, ainda forte demais por não estar totalmente cozido.

— Puxa vida — disse satisfeita —, isto vai fazer Conroe mais feliz do que um porco na lama... — Sua expressão mudou. Faria, pensou, se ele estivesse aqui. Não faz mal, os rapazes vão gostar.

Começou a lavar a louça, mas não conseguia deixar de pensar em Bandar Delam. Sentiu as lágrimas caindo.

— Oh, merda! Controle-se!

— Emergência! — O grito que foi dado lá fora a assustou e ela olhou pela janela. O futebol tinha parado. Todos os homens estavam olhando para Ayre que corria pelas escadas externas da torre, gritando por eles. Ela os viu juntarem-se em volta dele, e depois se espalharem. Ayre dirigiu-se para o bangalô. Apressadamente, tirou o avental, ajeitou o cabelo, limpou os olhos e foi encontrá-lo na porta.

— O que foi, Freddy?

— Não quis deixar de contar-lhe que a torre deles se comunicou comigo e mandou que eu aprontasse um 212 para uma emergência em Isfahan — disse sorrindo. — Eles conseguiram o consentimento da IranOil.

— Isto não é um tanto longe?

— Oh, não. Fica apenas a trezentos quilômetros, umas duas horas, e ainda está bem claro. Marc vai passar a noite lá e volta amanhã. — Mais uma vez Ayre sorriu. — É bom ter alguma coisa para fazer. Curiosamente, eles pediram que Marc fosse o encarregado.

— Por que ele?

— Não sei. Talvez porque ele seja francês e foram os franceses que ajudaram Khomeini. Bem, tenho que ir. O seu chili está com um cheiro maravilhoso. Marc vai ficar danado por perdê-lo. — E saiu em direção ao escritório, alto e bonito.

Ela ficou parada na porta. Os mecânicos estavam tirando um 212 do hangar e Marc Dubois, fechando seu macacão de vôo, acenou alegremente e correu para observar a verificação do aparelho. Então, viu quatro carros em procissão se aproximando pela estrada. Freddy Ayre também viu. Franziu a testa e entrou no escritório.

— O senhor está com a licença de vôo pronta, sr. Pavoud?

— Sim, Excelência. — Pavoud estendeu-a.

Ayre não notou a tensão do homem, nem que suas mãos estavam tremendo.

— Obrigado. É melhor o senhor vir também, caso eles só falem farsi.

— Mas, Excel...

— Venha! — Abotoando a jaqueta por causa do vento, Ayre saiu apressado. Pavoud enxugou as mãos suadas. Os outros iranianos o observavam, também ansiosos.

— Seja como Deus quiser — disse um deles, agradecendo a Deus por ser Pavoud e não ele.

No 212, a verificação prosseguia. Ayre chegou lá junto com os carros. Seu sorriso desapareceu. Os carros estavam cheios de homens armados, Faixas Verdes, e eles cercaram o helicóptero, com alguns aviadores uniformizados no meio deles.

O mulá Hussein Kowissi saltou do banco da frente do primeiro carro, com um turbante branco e roupas escuras bem novas, e botas velhas e gastas. No seu ombro havia um AK47. Era óbvio que ele estava no comando. Outros homens abriram as portas traseiras do primeiro carro e puxaram o coronel Peshadi para fora, e depois sua esposa. Peshadi gritou com eles, xingando-os, e eles recuaram um pouco. O coronel ajeitou o casaco do uniforme e seu quepe. Sua mulher usava um pesado casacão de inverno e luvas, além de um pequeno chapéu e uma bolsa a tiracolo. Seu rosto estava pálido e abatido, mas, como o marido, mantinha a cabeça orgulhosamente erguida. Ela se voltou para apanhar a maleta que estava no carro, porém um dos Faixas Verdes agarrou-a mas, depois de uma ligeira hesitação, entregou a ela.

— O que está havendo, senhor? — Ayre tentou disfarçar o choque.

— Nós... nós estamos sendo mandados para Isfahan sob escolta! Sob escolta! Minha base... minha base foi traída e está nas mãos de rebeldes! — O coronel não disfarçou sua fúria ao gritar para Hussein em farsi: — Estou-lhe dizendo de novo, o que é que a minha mulher tem a ver com isso? Hein? — acrescentou com um rugido. Um dos nervosos Faixas Verdes empurrou um rifle nas costas dele. Sem desviar os olhos, o coronel empurrou o rifle. — Filho de uma cadela!

— Pare! — Hussein disse em farsi. — São ordens de Isfahan. Eu lhe mostrei as ordens de que o senhor e sua mulher deviam ser enviados imediatamente...

— Ordens? Um pedaço de papel imundo com uma letra ilegível e assinado por um aiatolá de quem eu nunca ouvi falar?

— Entrem no aparelho, todos dois, ou serão arrastados para lá — disse Hussein indo até ele.

— Quando o aparelho estiver pronto! — Insolentemente, o coronel apanhou um cigarro. — Dê-me fogo — ordenou ao homem que estava mais perto, e quando o homem hesitou, ele berrou: — Você é surdo? Fogo!

O homem sorriu com timidez e pegou um fósforo, e todos em volta mostraram sua aprovação, até o mulá, admirando a coragem em face da morte — e do inferno, pois sem dúvida este homem era um homem do xá e iria para o inferno. É claro que sim! Ele não tinha gritado "Longa vida para o xá" há apenas duas horas, durante a noite, quando nós invadimos e ocupamos o campo e sua bela residência, ajudados por todos os soldados e aviadores da base e por alguns dos oficiais, sendo que o resto dos oficiais estava agora atrás das grades? Deus é Grande! Foi a Vontade de Deus, um milagre que os generais tenham desmoronado como o monte de merda que os mulás diziam que eles eram. O imã estava certo de novo, que Deus o proteja.

Hussein foi até Ayre, que estava rígido, perplexo com o que estava acontecendo, tentando compreender. Marc Dubois estava ao seu lado, igualmente chocado, e o exame do aparelho fora interrompido.

— Salaam — disse o mulá, tentando ser educado. — Vocês não têm nada a temer. O imã ordenou que tudo voltasse ao normal.

— Normal? — repetiu Ayre, com raiva. — Este é o coronel Peshadi, comandante de tanques, herói da força expedicionária iraniana enviada a Oman para sufocar uma rebelião apoiada pelos marxistas e uma invasão do Iêmen do Sul! — Isso acontecera em 1973, quando o sultão de Oman pediu ajuda ao xá. — O coronel Peshadi não recebeu o Zolfaghar, sua medalha mais importante, concedida apenas por heroísmo em combate?

— Sim. Mas agora precisam que o coronel Peshadi responda perguntas relativas a crimes contra o povo iraniano e contra as leis de Deus! Salaam, capitão Dubois, fico satisfeito de que seja o senhor que vai nos levar.

— Eu fui solicitado para uma emergência. Isso não é uma emergência — retrucou Dubois.

— É uma evacuação de emergência. O coronel e sua mulher devem ser evacuados para o quartel-general de Isfahan. — Hussein acrescentou com um sorriso sardônico. — Talvez eles sejam emergências.

— Sinto muito — disse Ayre —, mas os nossos aparelhos estão a serviço da IranOil. Não podemos fazer o que estão pedindo.

— Excelência Esvandiary! — gritou o mulá.

Kuram Esvandiary, ou 'Pé-quente' como era apelidado, tinha cerca de trinta anos, era muito popular com os estrangeiros, muito eficiente e treinado pela S-G. Estivera por dois anos em treinamento no QG da S-G em Aberdeen, com uma bolsa concedida pelo xá. Ele veio lá de trás e, por um momento, nenhum dos homens da S-G reconheceu seu administrador. Normalmente, ele se vestia meticulosamente e andava bem barbeado, mas agora estava com uma barba de três ou quatro dias, e usava roupas grosseiras, com uma braçadeira verde, um chapéu mole e um M16 pendurado no ombro.

— A permissão para a viagem está aqui — disse, entregando a Ayre os formulários habituais. — Eu os assinei e estão carimbados.

— Mas, 'Pé-quente', não está vendo que não é uma verdadeira emergência?

— Meu nome é Esvandiary, sr. Esvandiary — disse sem sorrir e Ayre enrubesceu. — E é uma ordem legítima da IranOil que o tem sob contrato aqui no Irã. — Seu rosto endureceu. — Se o senhor recusar uma ordem legítima, em boas condições de vôo, estará quebrando o contrato. Se fizer isso sem motivo, então teremos o direito de nos apoderar de todos os aparelhos, hangares, peças, casas, equipamentos, além de expulsá-los do Irã, imediatamente.

— Você não pode fazer isto.

— Eu agora sou o representante da IranOil aqui — disse Esvandiary, secamente. — A IranOil pertence ao governo. O komiteh revolucionário, sob a liderança do imã Khomeini, que a paz esteja com ele, é o governo. Leia o seu contrato com a IranOil... e também o contrato entre a S-G e a Irã Helicópteros. Vocês vão fazer o vôo ou se recusam a fazê-lo?

— E quanto... — E Ayre controlou a raiva. — Quanto ao primeiro-ministro Bakhtiar e o gov...

— Bakhtiar? — Esvandiary e o mulá olharam-no espantados. — Você ainda não soube? Ele renunciou e fugiu, os generais capitularam ontem de manhã, o imã e o komiteh revolucionário são o governo do Irã agora.

Ayre e Dubois e os estrangeiros que estavam perto ficaram sem fala. O mulá disse alguma coisa em farsi que eles não compreenderam. Os homens riram.

— Capitularam? — foi tudo o que Ayre conseguiu dizer.

— Foi a Vontade de Deus que os generais caíssem em si — disse Hussein, com os olhos brilhando. — Todo o Estado-Maior foi preso. Todos eles. Assim como todos os inimigos do islã serão presos agora. Nós também pegamos Nasiri, já ouviu falar nele? — perguntou exultante o mulá. Nasiri era o odiado chefe da Savak, que o xá tinha mandado prender há poucas semanas atrás e que estava na prisão aguardando julgamento. — Nasiri foi julgado, considerado culpado de crimes contra a humanidade e executado, junto com outros três generais, Rahimi, o chefe da lei marcial de Teerã, Naji, governador-geral de Isfahan, e o comandante dos paraquedistas, Khosrowdad. Vocês estão perdendo tempo. Vão fazer o vôo ou não?

Ayre mal era capaz de pensar. Se o que eles dizem é verdade, então Peshadi e sua mulher estão praticamente mortos. É tudo tão rápido, tão impossível.

— Nós... é claro que faremos um vôo legal. O que vocês querem exatamente?

— Transportar Sua Excelência o mulá Hussein Kowissi para Isfahan, imediatamente. Com o seu pessoal. Imediatamente — disse Esvandiary, impaciente. — Com o prisioneiro e sua esposa.

— Eles... O coronel Peshadi e sua mulher não estão citados na licença. Ainda mais impacientemente, Esvandiary arrancou-lhe o papel das mãos e escreveu alguma coisa nele:

— Agora estão! — Fez um sinal para onde Manuela estava, um pouco mais atrás, com o cabelo enfiado dentro de um chapéu, usando um macacão. Ele a notara assim que ela chegou, atraente como sempre, perturbadora como sempre. — Eu deveria prendê-la por invasão — disse com voz rouca. — Ela não tem o direito de estar nesta base. Não há alojamento para casais, nem estes são permitidos, de acordo com as regras da base e da S-G.

Perto do 212, o coronel Peshadi gritou, zangado, em inglês:

— Vocês vão voar hoje ou não? Estamos ficando com frio. Depressa, Ayre. Quero passar o mínimo de tempo possível com esses vermes.

Esvandiary e o mulá enrubesceram. Ayre respondeu, sentindo-se melhor com a coragem do homem:

— Sim, senhor. Sinto muito. OK, Marc?

— Sim. — Dubois voltou-se para Esvandiary: — Onde está minha permissão militar?

— Anexa à licença. Vale também para sua volta amanhã. — Esvandiary acrescentou em farsi para o mulá: — Sugiro que o senhor embarque, Excelência.

O mulá se adiantou. Os guardas fizeram sinal para Peshadi e sua mulher subirem a bordo. Com as cabeças erguidas, eles subiram os degraus com firmeza. Homens armados entraram no aparelho atrás deles e o mulá sentou-se na frente, ao lado de Dubois.

— Um momento! — disse Ayre, já passado o choque. — Não vamos transportar homens armados. É contra os regulamentos... os seus e os nossos. Esvandiary gritou uma ordem, e fez um sinal na direção de Manuela. Imediatamente, quatro homens armados a cercaram. Outros se aproximaram de Ayre.

— Agora, faça sinal para Dubois partir.

Consciente do perigo, Ayre obedeceu. Dubois respondeu e começou a subir. Em pouco tempo estava no ar.

— Agora para o escritório — disse Esvandiary, acima do ruído dos motores. Mandou que os homens se afastassem de Manuela e voltassem para os carros. — Deixem um carro aqui e quatro guardas. Tenho mais algumas ordens para dar a estes estrangeiros. Você — acrescentou severamente para Pavoud —, verifique todos os aparelhos que existem aqui, todas as peças, todos os tipos de transporte, bem como a quantidade de gasolina, e também o número de empregados, estrangeiros e iranianos, seus nomes, profissões, números de passaporte, vistos de residência, vistos de trabalho, permissões para pilotar. Entendido?

— Sim, sim, Excelência Esvandiary. Sim, cer...

— E eu quero ver todos os passaportes e vistos amanhã. Ande!

O homem saiu apressadamente. Esvandiary foi na frente até o escritório de Starke e sentou-se na cadeira maior, atrás da escrivaninha, seguido por Ayre.

— Sente-se.

— Obrigado, você é muito gentil — disse ironicamente Ayre, sentando-se em frente a ele. Os dois homens eram da mesma idade e ficaram se estudando mutuamente.

— De agora em diante este será o meu escritório. — O iraniano apanhou um cigarro e o acendeu. — Agora que finalmente o Irã está outra vez em mãos iranianas, podemos começar a fazer as mudanças necessárias. Durante as próximas duas semanas você vai agir sob minhas ordens, até que eu tenha certeza de que os nossos hábitos foram entendidos. Eu sou a autoridade mais alta da IranOil em Kowiss e eu é que darei todas as permissões de vôo; ninguém decola sem uma aprovação por escrito e sempre com um guarda armado e...

— É contra a lei aérea e contra a lei iraniana e está proibido. Além disso é muito perigoso. E fim!

Houve um longo silêncio. Então Esvandiary concordou.

— Vocês levarão guardas armados, mas sem munição. — E sorriu. — Está vendo, nós podemos chegar a um acordo. Nós podemos ser razoáveis, oh, sim. Você vai ver, a nova era vai ser boa para vocês também.

— Espero que sim. Para vocês também.

— O que você está querendo dizer?

— Estou querendo dizer que toda revolução de que já ouvi falar sempre acaba por se desgastar, os amigos se transformam rapidamente em inimigos e morrem mais depressa ainda.

— Não a nossa. — Esvandiary estava totalmente confiante. — Não vai ser assim conosco. Nossa revolução é uma revolução realmente popular, de todo o povo. Todo mundo queria a saída do xá. E dos seus patrões estrangeiros.

— Espero que você tenha razão. — Seu filho da mãe imbecil, pensou Ayre, tendo gostado dele um dia. Se os seus líderes podem julgar, condenar e executar quatro generais, todos homens bons com exceção de Nasiri, em menos de 24 horas, podem prender e maltratar bons patriotas como Peshadi e sua mulher, que Deus nos ajude. — Você já terminou comigo por ora?

— Quase. — Esvandiary sentiu uma onda de raiva. Pela janela viu Manuela voltando para o bangalô com alguns dos pilotos, e o desejo aumentou-lhe a raiva. — Seria bom que aprendesse bons modos e que o Irã é um país asiático, oriental, uma potência mundial e que nunca mais será explorado por ingleses, americanos ou mesmo soviéticos. Nunca mais. — Ele se recostou na cadeira e pôs os pés sobre a mesa, como tinha visto Starke e Ayre fazerem uma centena de vezes, as solas dos pés viradas para Ayre, o que sempre fora considerado um insulto daquele lado do mundo. — Os ingleses foram piores do que os americanos. Eles foram motivo de vergonha nacional por 150 anos, tratando o Trono do Pavão e o nosso país como se fossem um feudo deles, usando a defesa da índia como desculpa. Eles deram ordens aos nossos governantes, ocuparam o nosso país três vezes, nos obrigaram a assinar tratados injustos, subornaram os nossos líderes para conceder-lhes vantagens. Durante 150 anos os ingleses e os russos dividiram o meu país, os ingleses ajudaram aquelas outras hienas a roubar as nossas províncias do norte, o nosso Cáucaso, e ajudaram a colocar Reza Khan no trono. Eles nos invadiram, junto com os soviéticos, durante a sua guerra mundial e só os nossos grandes esforços conseguiram partir os grilhões e expulsá-los. — Repentinamente, o rosto do homem se contorceu e ele gritou: — Não é verdade?

Ayre não tinha se mexido e nem piscado.

— 'Pé-quente', e eu prometo que nunca mais vou chamá-lo assim — disse tranqüilamente —, não quero discursos, vou apenas fazer o meu trabalho. Se não conseguirmos um método de trabalho satisfatório, isto é outra coisa. Aí teremos que ver. Se quer este escritório, fique com ele. Se quer fazer uma cena, faça. Dentro dos limites, você tem direito de comemorar. Você venceu, tem o poder, e agora é o encarregado. E você está certo, este é o seu país. Então vamos ficar por aqui, hein?

Esvandiary ficou olhando para ele, com a cabeça doendo do ódio acumulado durante anos e que agora não precisava mais ser reprimido. E embora soubesse que a culpa não era de Ayre, também sabia que há poucos instantes atrás o teria enchido de balas e a todos os outros, se não tivessem obedecido e levado o mulá e o traidor Peshadi para o julgamento e o inferno que ele merecia. Eu não me esqueci do soldado que Peshadi assassinou — aquele que queria abrir os portões para nós — nem os outros, assassinados há dois dias atrás, quando Peshadi nos derrotou e centenas morreram, meu irmão e dois dos meus melhores amigos entre eles. E todos os outros, centenas, talvez milhares deles que morreram em todo o Irã... Não me esqueci de nenhum deles.

Um fio de saliva escorria-lhe pelo queixo e ele o limpou com as costas da mão, recuperando o controle ao lembrar-se da importância de sua missão.

— Está bem, Freddy. — Disse 'Freddy' involuntariamente. — Está bem... esta é a última vez que eu chamo você assim. Está bem, vamos ficar por aqui.

Ele se levantou, muito cansado, mas orgulhoso pelo modo como os dominara e muito confiante de que conseguiria fazer esses estrangeiros trabalharem e se comportarem até serem expulsos. Isto está bem perto, agora, pensou. Não terei dificuldades em colocar em prática o plano a longo prazo dos sócios aqui. Concordo com Valik. Temos muitos pilotos iranianos e não precisamos de estrangeiros. Posso dirigir esta operação — como um dos sócios. Louvado seja Deus por Valik ter sido sempre um partidário secreto de Khomeini! Logo terei uma casa grande em Teerã e meus dois filhos irão para a universidade lá, bem como minha querida Fatmeh, embora talvez ela também deva passar um ou dois anos na Sorbonne.

— Voltarei às nove horas. — Não fechou a porta ao sair.

— Maldição! — resmungou Ayre. Uma mosca começou a se debater contra a vidraça. Ele não a notou e nem o barulho que fazia. Tendo uma idéia súbita, foi para o outro gabinete. Pavoud e os outros estavam nas janelas, vendo a saída dos estrangeiros. — Pavoud!

— Sim... sim, Excelência?

Ayre notou que o rosto do homem estava cinzento e que ele parecia muito mais velho do que habitualmente.

— Você sabia sobre os generais, que eles tinham capitulado? — perguntou, sentindo pena dele.

— Não, Excelência. — Pavoud mentiu com facilidade, acostumado a mentir. Ele estava fechado em si mesmo, tentando recordar, apavorado, se teria escorregado nos últimos três anos e se traído para Esvandiary, sem nunca ter sonhado que o homem pudesse ser, secretamente, um guarda islâmico. — Nós... nós tínhamos ouvido boatos acerca da capitulação deles, mas o senhor sabe como os boatos circulam.

— Sim, sim, tem razão.

— Eu... o senhor se importa que eu me sente?

Pavoud agarrou uma cadeira, sentindo-se muito velho. Ele vinha dormindo muito mal nesta última semana e o trajeto de três quilômetros de bicicleta até ali nesta manhã, da pequena casa de quatro cômodos em Kowiss que ele dividia com a família do irmão — cinco adultos e seis crianças — tinha sido mais cansativa do que o normal. É claro que ele e todo o povo de Kowiss tinham ouvido falar na rendição covarde dos generais. As primeiras notícias tinham vindo da mesquita, espalhadas pelo mulá Hussein, que disse tê-las recebido pelo rádio, secretamente, do quartel-general de Khomeini em Teerã, então devia ser verdade.

Imediatamente, o seu líder do Tudeh tinha convocado uma reunião, todos eles perplexos com a covardia dos generais:

— Isto só demonstra a péssima influência dos americanos, que os traíram e os enfeitiçaram de tal maneira que eles se castraram e cometeram suicídio, pois é evidente que todos eles têm que morrer, seja pelas nossas mãos ou pelas daquele louco do Khomeini.

Todos estavam decididos mas, ao mesmo tempo, tinham medo da luta que se aproximava contra os fanáticos e os mulás, o ópio do povo, e o próprio Pavoud sentiu-se imensamente aliviado quando o líder disse que eles ainda não deveriam sair para as ruas, mas permanecer escondidos e esperar, esperar até vir uma ordem para a revolta geral.

— Camarada Pavoud, é vital que você mantenha o melhor relacionamento possível com os pilotos estrangeiros da base aérea. Nós vamos precisar deles e dos seus helicópteros; ou vamos precisar impedir o seu uso pelos inimigos do povo. Nossas ordens são para calar a boca e esperar, ter paciência. Quando finalmente recebermos ordem de tomar as ruas contra Khomeini, os nossos camaradas do norte virão através da fronteira com suas legiões... Ele viu Ayre observando-o.

— Eu estou bem, capitão, só estou preocupado com tudo isso, e com a... com a nova era.

— Simplesmente faça tudo o que Esvandiary pedir. — Ayre refletiu por um momento. — Vou até a torre para comunicar ao QG o que aconteceu. Você tem certeza de que está bem?

— Sim, sim, obrigado.

Ayre franziu a testa, depois caminhou pelo corredor e subiu as escadas. A espantosa mudança de Esvandiary, que fora afável durante anos, que fora simpático, sem demonstrar nada do ódio que havia dentro dele contra os ingleses. Pela primeira vez desde que estava no Irã, sentiu o futuro deles ameaçado.

Para sua surpresa, a torre estava vazia. Desde o motim de domingo, tinha havido uma guarda permanente lá. Ao justificar a guarda, o major Changiz tinha dado de ombros, com sangue manchando o uniforme:

— Tenho certeza que vocês compreendem, 'emergência nacional'. Muitos homens leais foram mortos aqui hoje e nós não encontramos nenhum traidor, ainda. Até novas ordens, o senhor só deverá transmitir durante o dia, e só o que for absolutamente necessário. Todos os vôos estão cancelados até decisão posterior.

— Está bem, major. Por falar nisso, onde está nosso operador de rádio, Massil?

— Ah, sim, o palestino. Ele está sendo interrogado.

— Posso perguntar por quê?

— Ligações com a OLP e atividades terroristas.

Ontem ele fora informado de que Massil confessara e que fora executado — sem uma chance de ver as provas nem de vê-lo. Pobre infeliz, Ayre pensou, fechando a porta da torre e ligando o equipamento. Massil foi sempre leal a nós e agradecido pelo emprego, mesmo sendo superqualificado — diploma de engenheiro de comunicações da Universidade do Cairo, primeiro da classe, mas sem ter onde praticar e sem pátria. Maldição! Nós não damos valor aos nossos passaportes. Como seria não ter passaporte e ser, digamos, palestino? Deve ser terrível não saber o que vai acontecer em cada fronteira, onde cada funcionário da Imigração, policial, burocrata ou empregado é um inquisidor em potencial.

Graças a Deus eu nasci britânico e isto nem mesmo a Rainha da Inglaterra pode me tirar, embora o maldito governo trabalhista esteja alterando nossa herança ultramarina. Malditos sejam por cada australiano, canadense, neozelandês, africano, queniano, chinês e centenas de outros cidadãos britânicos que dentro em breve terão que ter um maldito visto para entrar em casa!

— Imbecis — resmungou. — Será que eles não percebem que esses são os filhos e filhas de homens que construíram o Império e morreram por ele, em muitos casos?

Esperou os rádios esquentarem. O zumbido deu-lhe prazer, luzes verdes e vermelhas piscando, e não se sentiu mais afastado do mundo. Espero que Angela e o pequeno Frederick estejam bem. Que droga não ter correio nem telefone e o telex estar mudo. Bem, talvez dentro em breve tudo esteja funcionando de novo.

Ligou o botão de transmissão, esperando que McIver ou alguém estivesse na escuta. Então notou que, por hábito, junto com o UHF e o HF, tinha ligado o radar. E se debruçou para desligá-lo. Nesse momento, um pequeno sinal apareceu na margem externa — na linha de trinta quilômetros a noroeste, quase oculto no meio da pesada cortina de montanhas. Perplexo, ele o estudou. A experiência mostrou-lhe logo que era um helicóptero. Certificou-se de que estava ligado em todas as freqüências e quando tornou a olhar, viu o sinal desaparecer. Esperou, mas o sinal não tornou a aparecer. Ou ele desceu ou foi abatido, ou está se mantendo fora do alcance do radar, pensou.

Os segundos se arrastaram. Nenhuma mudança, só as linhas passando. Ainda nenhum sinal.

Seus dedos ligaram o botão de transmissão do UHF, e ele trouxe o microfone mais para perto, então hesitou, mudou de idéia e desligou-o. Não há necessidade de alertar os operadores da torre da base, se houver alguém de serviço lá, pensou. Franziu a testa para a tela. Com um lápis vermelho macio marcou a possível rota de aproximação a oitenta nós. Os minutos se passaram. Podia ter mudado para uma varredura a curta distância, mas não o fez, caso o sinal não estivesse se aproximando, mas sim, e isso era altamente irregular, estivesse se esgueirando por aquela área.

Agora ele deve estar a uns oito ou dez quilômetros, pensou. Apanhou o binóculo e começou a examinar o céu, de norte para oeste até o sul. Seus ouvidos ouviram passos leves na escada. Com o coração disparando, desligou o radar. A tela começava a ficar branca quando a porta se abriu.

— Capitão Ayre? — perguntou o aviador, vestido com um uniforme bem arrumado, um rosto persa, forte, bem barbeado, de vinte e tantos anos, e uma carabina do exército americano nas mãos.

— Sim, sou eu.

— Eu sou o sargento Wazari, o novo controlador de tráfego aéreo. — O homem encostou a carabina na parede, estendeu a mão e cumprimentou Ayre. — Olá, eu recebi um treinamento de três anos na Força Aérea americana e sou controlador militar. Cheguei a trabalhar seis meses no aeroporto Van Nuys. — Seus olhos tinham examinado todo o equipamento. — Isto aqui é bem completo.

— Sim, ahn, sim, obrigado. — Ayre se atrapalhou com o binóculo e finalmente se livrou dele. — O que, ahn, acontece no aeroporto Van Nuys?

— É uma pequena pista em San Fernando Valley, em Los Angeles, mas é o terceiro aeroporto mais movimentado dos Estados Unidos e deixa qualquer um maluco! — Wazari sorriu. — O tráfego é amador, a maioria dos caras são alunos que ainda não aprenderam a distinguir entre o próprio rabo e uma hélice, você tem que lidar com uns vinte ao mesmo tempo, oito no mínimo, todos querendo bancar o ás da aviação. — Ele riu. — É um grande lugar para se aprender controle de tráfego, mas depois de seis meses você está biruta.

— Este lugar aqui é bem tranqüilo. Mesmo em épocas normais. Nós, ahn, nós não temos vôos para fora, como você sabe. Acho que você não vai ter muito o que fazer. — Ayre forçou um sorriso, controlando-se para não examinar o céu.

— Claro. Eu só queria dar uma olhada já que vamos começar bem cedo amanhã. — Tirou do bolso do uniforme um papel e entregou-o a Ayre. — Temos três vôos marcados para as plataformas locais, começando às oito horas, certo? — Sem pensar, ele apanhou um pano e limpou a tela do radar, arrumando também a mesa. O lápis vermelho voltou para o estojo.

— Estes vôos foram autorizados por Esvandiary? — E Ayre tornou a examinar a lista.

— Quem é ele? Ayre lhe disse.

— Bem, capitão — disse o sargento sorrindo —, o major Changiz ordenou-os pessoalmente, então pode apostar que eles estão confirmados.

— Ele... ele não foi preso junto com o coronel?

— É claro que não, capitão. O mulá Hussein Kowissi, indicou o major Changiz para ser o comandante temporário da base, dependendo de confirmação de Teerã. — Ele mexeu com segurança nos canais, ligando o rádio na freqüência da base. — Alô, base, aqui é Wazari na S-G. Precisamos da autorização de Esvandiary, da IranOil, para os vôos de amanhã?

— Negativo — ouviu-se pelo alto-falante, de alguém com um sotaque americano. — Está tudo bem por aí?

— Sim. A decolagem foi realizada sem incidentes. Eu estou com o capitão Ayre agora. — O sargento examinou o céu enquanto falava.

— Ótimo. Capitão Ayre, aqui é o controlador-chefe de tráfego. Qualquer vôo autorizado pelo major Changiz está automaticamente aprovado pela IranOil.

— Eu poderia ter isso por escrito, por favor?

— O sargento terá isso para você, com cópia, às oito horas da manhã, certo?

— Obrigado.

— Obrigado, base — disse Wazari, começando a desligar, então seus olhos se fixaram em alguma coisa. — Espere, base, temos um pássaro se aproximando. Helicóptero, 270 graus...

— Onde? Onde... Estou vendo! Como foi que ele passou pelo radar? Vocês estão com o radar ligado?

— Negativo. — O sargento ajeitou o binóculo. — Bell 212, registro... Não consigo ver, ele está de frente para nós. — Ligou o UHF. — Aqui é o controle militar de Kowiss! Helicóptero se aproximando, qual é o seu registro, qual é o seu destino e qual foi o seu ponto de embarque?

Silêncio, exceto pelo ruído de estática. A mesma coisa foi repetida pela base. Nenhuma resposta.

— Aquele filho da puta está em apuros — resmungou Wazari. Mais uma vez ele ajeitou o binóculo.

Ayre estava com um outro binóculo e seu coração disparara. Quando o helicóptero começou as manobras de pouso, ele leu o registro:

— EP-HBX.

— Eco Peter Hotel Boston Xadrez! — disse o sargento, ao mesmo tempo.

— HBX — confirmou a base. Mais uma vez eles tentaram contato pelo rádio. Nenhuma resposta.

— Ele está dentro dos padrões regulares de pouso. Ele é daqui? Capitão Ayre, ele é um dos seus?

— Não, senhor, não é um dos meus, não está baseado aqui — acrescentou cautelosamente Ayre. — Mas HBX pode ser um registro da S-G.

— Baseado aonde?

— Não sei.

— Sargento, assim que esse sujeito pousar, prenda-o e a todos os passageiros, mande-os para o QG sob escolta, depois faça-me um relatório rápido dizendo quem, por quê e de onde.

— Sim, senhor.

Pensativamente, Wazari escolheu um lápis vermelho e traçou na tela do radar a mesma linha que Ayre tinha desenhado e apagado. Ficou olhando para ela por um momento, sabendo que Ayre o observava atentamente. Mas não disse nada, apenas tornou a limpar a tela e voltou a atenção para o 212.

Em silêncio, os dois homens na torre viram o aparelho fazer uma volta normal e depois frear corretamente e se dirigir para eles. Mas o helicóptero não fez nenhuma tentativa de pousar, apenas permaneceu na altitude correta e fez uma volta bem menor, balançando-se para os dois lados.

— O rádio não está funcionando. Ele quer uma permissão — disse Ayre, e estendeu a mão para as luzes de sinalização. — Certo?

— Claro, pode dar permissão, mas ele ainda está encrencado.

Ayre verificou se as luzes estavam ligadas no verde, permissão para pousar. Dirigiu-as para o helicóptero e acendeu-as. O helicóptero fez um sinal, balançando para os dois lados e começou a se aproximar. Wazari apanhou a carabina e saiu. Mais uma vez Ayre ajustou o binóculo, mas não conseguiu reconhecer o piloto nem o homem que estava ao lado dele, os dois com roupas de inverno e óculos de vôo. Então desceu correndo as escadas.

Outros funcionários da S-G, pilotos e mecânicos, tinham-se juntado para ver. Do lado da base, um carro se aproximava velozmente pela estrada. Manuela estava parada na porta do bangalô. As pistas de aterrissagem ficavam em frente ao prédio de escritórios. Agachados, sob um abrigo, estavam os quatro Faixas Verdes que tinham ficado para trás, com Wazari entre eles. Ayre notou que um deles era muito jovem, quase um adolescente, se atrapalhando com a metralhadora. No seu nervosismo, o rapaz deixou-a cair no chão, com o cano apontando diretamente para Ayre. Mas ela não disparou. Enquanto olhava, o garoto apanhou-a pelo cabo, bateu com a coronha no chão para tirar a neve, e retirou descuidadamente um pouco mais de neve do gatilho. Havia algumas granadas penduradas no seu cinto — pelos pinos. Apressadamente, Ayre foi para perto dos mecânicos, protegendo-se.

— Maldito garoto! — disse um deles, nervosamente. — Ele vai mandar a ele mesmo para o inferno e nós vamos junto. O senhor está bem, capitão? Nós ouvimos 'Pé-quente' gritando como um louco.

— É, foi mesmo. HBX, de onde é ele, Benson?

— De Bandar Delam — respondeu Benson. Era um inglês gorducho, de cara vermelha. — Aposto que é Duke.

Quando o 212 baixou os deslizadores e cortou os motores, Wazari liderou a correria, com alguns dos guardas gritando "Allah-u Akbarrr!" Cercaram o aparelho, com as armas apontadas.

— Malditos imbecis! — disse nervosamente Ayre. — Parecem personagens de comédia-pastelão.

Ainda não conseguia ver o piloto claramente, então se aproximou, rezando para ser Starke. As portas da cabine se abriram. Homens armados pularam lá de dentro, indiferentes aos rotores que ainda estavam girando, gritando saudações, dizendo aos outros para abaixarem as armas. No meio do pandemônio, alguém deu uma rajada de boas-vindas para o ar. Momentaneamente, todo mundo começou a se espalhar, depois, com mais gritos, se agruparam em frente às portas quando o carro chegou e mais homens correram para se juntar aos outros. Várias mãos ajudaram a retirar um mulá. Ele estava gravemente ferido. Depois saiu uma maca. Depois mais feridos e Ayre viu Wazari correndo em sua direção.

— Vocês têm algum médico aqui? — perguntou com urgência na voz.

— Sim. — Ayre virou-se e pôs as mãos em volta da boca. — Benson, vá buscar o doutor e o assistente bem depressa. — Depois disse para o sargento, que voltava junto com ele para perto do helicóptero: — Que diabo está acontecendo?

— Eles estão vindo de Bandar Delam. Houve uma contra-revolução lá, os malditos fedayins...

Ayre viu a porta do piloto se abrir e Starke sair, e não ouviu o resto do que Wazari disse, correndo para a frente.

— Alô, Duke, meu velho. — Deliberadamente, manteve o rosto impassível e a voz normal, embora estivesse tão feliz por dentro que sentiu que podia explodir. — Por onde andou?

— Pescando, meu velho — disse Starke sorrindo, acostumado com a reserva britânica. — De repente, Manuela apareceu correndo no meio da multidão e caiu nos braços dele. Ele a levantou com facilidade e girou com ela.

— Ora, querida — disse com uma voz arrastada —, estou vendo que você gosta de mim, afinal.

Ela estava rindo e chorando ao mesmo tempo e ficou abraçada nele.

— Oh, Conroe, quando eu vi você tive vontade de morrer...

— Nós quase morremos mesmo, querida — disse involuntariamente, mas ela não ouviu e ele a abraçou mais uma vez e colocou-a no chão. — Fique aqui um instante enquanto eu ajeito as coisas. Venha, Freddy.

Ele foi na frente, no meio da confusão. O mulá ferido estava no chão, encostado num dos deslizadores, inconsciente. O homem da maca já estava morto.

— Ponham o mulá na maca — Starke ordenou em farsi. Os Faixas Verdes que ele trouxera no helicóptero obedeceram imediatamente. Wazari, o único de uniforme ali, e os outros homens da base estavam estarrecidos. Nenhum deles se dera conta da presença de Zataki, o líder revolucionário sunita que comandara a resistência em Bandar Delam e que agora estava encostado no helicóptero, observando tudo cautelosamente, disfarçado pela jaqueta de vôo da S-G.

— Deixe-me dar uma olhada, Duke — disse o médico, sem fôlego por causa da corrida, com um estetoscópio pendurado no pescoço. — Estou feliz por você estar de volta. — O dr. Nutt tinha uns cinqüenta anos, era muito corpulento, tinha pouco cabelo e um nariz de beberrão. Ele se ajoelhou ao lado do mulá e começou a examinar o seu peito que estava empapado de sangue.

— É melhor o levarmos para a enfermaria o mais rápido possível. E os outros também.

Starke mandou dois homens que estavam perto carregarem a maca e seguirem o médico. Mais uma vez ele foi obedecido sem discussão pelos homens que trouxera com ele; os outros Faixas Verdes ficaram olhando para ele. Agora havia nove deles, incluindo Wazari e os quatro que tinham ficado.

— O senhor está preso — disse Wazari. Starke olhou para ele.

— Sob que acusação? — perguntou Starke, encarando-o.

— Ordens superiores, capitão. Eu apenas cumpro ordens — respondeu Wazari, hesitante.

— Eu também. Estarei aqui se quiserem conversar comigo, sargento. — Starke sorriu tranqüilizadoramente para Manuela que tinha empalidecido. — Volte para casa, querida. Não há motivo para se preocupar. — Ele se virou e foi para perto da porta lateral para olhar o que acontecia lá dentro.

— Sinto muito, capitão, mas o senhor está preso. Entre no carro. O senhor tem que ir para a base imediatamente.

Quando Starke se virou, deu de cara com o cano de uma arma. Dois Faixas Verdes pularam sobre ele, agarraram-lhe os braços, imobilizando-o. Ayre lançou-se para a frente, mas um dos Faixas Verdes enfiou-lhe um revólver no estômago. Os dois homens começaram a arrastar Starke para o carro. Outros vieram ajudar enquanto ele lutava, amaldiçoando-os. Manuela olhava, em pânico.

Então ouviu-se um berro de raiva e Zataki avançou, arrancou a carabina da mão de Wazari e lançou-a contra a cabeça dele. Só os ótimos reflexos de Wazari, bem treinado em boxe, fizeram com que ele desviasse a cabeça bem a tempo. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Zataki gritou:

— O que é que este cão está fazendo com uma arma? Vocês, seus idiotas, não sabem que o imã ordenou que todos os soldados depusessem as armas?

— Ouça, eu estou autorizado a... — Wazari parou, em pânico. Agora havia uma pistola na sua garganta.

— Você não está autorizado nem mesmo a cagar, até que o komiteh dê licença — disse Zataki. — Você já foi aprovado pelo komiteh!

— Não... não, mas...

— Então, por Deus e pelo Profeta, você é suspeito! — Zataki apertou a pistola contra a garganta de Wazari, depois fez um sinal com a outra mão. — Soltem o piloto e larguem as armas, ou por Deus e pelo Profeta, eu matarei todos vocês. — Quando ele agarrou a arma de Wazari, seus homens já tinham cercado os outros e agora os cobriam por trás. Nervosamente, os dois homens que mantinham Starke imobilizado o soltaram.

— Por que deveríamos obedecê-lo? — perguntou um deles. — Hein? Quem é você para nos dar ordens?

— Eu sou o coronel Zataki, membro do komiteh revolucionário de Bandar Delam, com a graça de Deus. O americano ajudou a nos salvar de um contra-ataque dos fedayins e trouxe o mulá e os outros que precisavam de assistência médica para cá. — Subitamente, sua raiva passou. Ele empurrou Wazari e o sargento se esparramou no chão. — Deixem o piloto em paz! Estão ouvindo? — Apontou e puxou o gatilho e a bala atravessou a gola do casaco de um dos homens que estavam ao lado de Starke. Manuela quase desmaiou e todos se espalharam. — Da próxima vez eu enfio uma bala no meio dos seus olhos! Você — ele rosnou para Wazari —, você está preso. Acho que você é um traidor, portanto vamos investigar. O resto pode ir com Deus, digam ao seu komiteh que eu terei prazer em vê-los. Aqui.

Fez sinal para que fossem embora. Os homens começaram a cochichar e Ayre aproveitou para se aproximar de Manuela e pôr a mão no seu ombro.

— Vá para dentro — murmurou. — Está tudo bem agora. — Viu Starke fazer sinal para eles saírem. Concordou com a cabeça. — Vamos, Duke está dizendo para sairmos.

— Não... por favor, Freddy, eu... eu estou bem, juro. — Ela forçou um sorriso e continuou a rezar para que o homem com a pistola conseguisse dominar os outros e que tudo aquilo terminasse. Por favor, meu Deus, faça com que isso termine.

Todos ficaram observando em silêncio enquanto Zataki esperava, com a pistola na mão, o sargento ao chão, perto dos seus pés, aqueles que eram contra ele olhando-o fixamente, e Starke em pé no meio deles, sem saber se Zataki venceria. Zataki examinou o tambor da arma.

— Vão com Deus, todos vocês — disse de novo, com mais dureza desta vez, enfurecendo-se. — Vocês estão surdos?

Relutantemente, eles saíram. O sargento se levantou, lívido, e ajeitou o uniforme. Ayre viu que ele tentava, bravamente, esconder o terror.

— Você fique ali até eu dizer que pode se mexer. — Zataki olhou para Starke, que observava Manuela. — Piloto, temos que acabar de descarregar o aparelho. Depois os meus homens precisam comer.

— Sim. E obrigado.

— De nada. Essas pessoas não sabiam, eles não têm culpa. — Mais uma vez ele olhou para Manuela, com os olhos escuros examinando-a. — Sua mulher, piloto?

— Minha esposa — respondeu Starke.

— Minha esposa está morta, morreu no incêndio de Abadan com meus dois filhos. Foi a Vontade de Deus.

— Às vezes a Vontade de Deus é insuportável.

— A Vontade de Deus é a Vontade de Deus. Vamos terminar de descarregar.

— Sim. — Starke subiu para a cabine, com o perigo afastado apenas por enquanto, uma vez que Zataki era tão volátil quanto nitroglicerina. Dois feridos ainda estavam amarrados nos assentos bem como duas maças. Ele se ajoelhou ao lado de um deles. — Como está, meu velho? — perguntou baixinho, em inglês.

Jon Tyrer abriu os olhos e piscou, com uma bandagem suja de sangue em volta da cabeça.

— Bem... sim, bem. O que... o que aconteceu?

— Você está enxergando?

Tyrer pareceu surpreso. Olhou para Starke, depois esfregou os olhos e a testa. Para alívio de Starke, ele disse:

— Claro, só que você está um pouco fora de foco e minha cabeça está doendo um bocado, mas posso vê-lo bem. É claro que posso vê-lo, Duke. O que foi que aconteceu?

— Durante o contra-ataque fedayim, hoje de madrugada, você foi apanhado por um fogo cruzado, uma bala pegou sua cabeça de raspão e você começou a correr em círculos como uma galinha degolada, gritando: "Não consigo enxergar... Não consigo enxergar..." Aí você desmaiou e ficou inconsciente até agora.

— Até agora? Maldição! — O americano espiou pela porta da cabine. — Onde estamos?

— Em Kowiss, achei melhor trazer você e os outros para cá depressa.

— Eu não me lembro de nada. Nada. Fedayins! Pelo amor de Deus, Duke, eu não me lembro nem de ter sido trazido para bordo.

— Fique quieto, meu velho. Eu explico mais tarde. — Ele se virou e chamou: — Freddy, arranje alguém para carregar Jon Tyrer para o médico

— acrescentando em farsi, para Zataki, que olhava da porta: — Excelência Zataki, por favor, arranje gente para carregar seus homens para a enfermaria.

— Fez uma pausa. — Meu lugar-tenente, capitão Ayre, vai providenciar comida para todo mundo. O senhor gostaria de comer comigo? Na minha casa?

Zataki deu um sorriso estranho e sacudiu a cabeça.

— Obrigado, piloto — disse em inglês. — Vou comer com os meus homens. Esta noite nós precisamos conversar. O senhor e eu.

— Quando quiser. — Starke saltou para o chão. Os homens começaram a levar todos os feridos. Ele apontou para o bangalô. — Aquela é minha casa, o senhor é bem-vindo lá, Excelência.

Zataki agradeceu e foi embora, empurrando o sargento Wazari na frente. Ayre e Manuela juntaram-se a Starke. Ela tomou-lhe a mão.

— Quando ele puxou o gatilho, eu pensei... — Ela sorriu de leve e mudou para farsi. — Ah, meu amado, como o dia ficou belo agora que você está em segurança ao meu lado.

— E você ao meu lado — Starke sorriu para ela.

— O que aconteceu? Em Bandar Delam? — perguntou em inglês.

— Houve uma maldita batalha entre Zataki e seus homens e uns cinqüenta esquerdistas, na base. Ontem Zataki tomou a base em nome de Khomeini e da revolução. Eu tive um pega com ele quando cheguei lá, mas agora está tudo mais ou menos bem, embora ele seja psicótico, e mais perigoso que uma víbora. Mas o fato é que, de madrugada, os fedayins esquerdistas invadiram o aeroporto em caminhões e a pé. Zataki estava dormindo, bem como o resto dos seus homens, não havia sentinelas, nada. Você já soube que os generais capitularam e que Khomeini é o novo ditador?

— Sim, acabamos de saber.

— Quando percebi o ataque, já estava um pandemônio, balas por todo lado, entrando pelas paredes dos trailers. Eu, você me conhece, eu me abaixei e me arrastei para fora do trailer. Você está com frio, querida?

— Não, não querido. Vamos para casa. Estou precisando de um drinque... Oh, meu Deus...

— O que foi?

Mas ela já estava correndo para casa.

— O chili — eu deixei o chili no forno.

— Jesus Cristo — murmurou Ayre —, pensei que iam atirar em nós ou algo parecido.

— Vamos ter chilfl — perguntou Starke rindo.

— Sim. Bandar Delam?

— Não há muito o que contar, Freddy. — Eles começaram a caminhar para casa. — Eu evacuei o trailer. Acho que os atacantes imaginaram que Zataki e seus homens estavam dormindo lá, mas Zataki tinha posto todo mundo para dormir nos hangares, guardando os helicópteros. Freddy, eles são paranóicos em relação aos helicópteros, acham que vamos fugir neles, ou usá-los para retirar a Savak, os generais ou os inimigos da revolução. De qualquer modo, o velho Rudi e eu, nós estávamos abrigados atrás de um reservatório de lama, então alguns daqueles novos filhos da mãe, não se conseguia distinguir uns do outros, exceto pelo fato dos homens de Zataki gritarem "Allah-u Akbar" enquanto morriam, alguns dos fedayins começaram a atirar nos hangares bem na hora em que Jon Tyrer saía do trailer. Eu o vi cair e fiquei louco. Não vá contar para Manuela. Aí tirei o revólver de um deles e comecei minha guerrinha particular para chegar até Jon. Rudi... — Starke começou a rir. — Aquele é um filho da puta! Rudi também conseguiu uma arma e nós parecíamos Butch Cassidy e Sundance Kid...

— Deus Todo-Poderoso, vocês deviam estar malucos!

— E estávamos, mas conseguimos tirar Jon da linha de fogo e então Zataki e três dos seus homens saíram de um hangar e atacaram como selvagens. Mas, que diabo, ficaram sem munição. Os pobres filhos da mãe ficaram lá parados e eu nunca vi ninguém tão desprotegido. — Ele deu de ombros. — Rudi e eu achamos que não era justo deixar que eles fossem mortos como patos e Zataki tinha sido legal depois que o mulá Hussein saiu, e nós, ahn, chegamos a um acordo. Então atiramos por cima da cabeça dos atacantes e isso deu uma chance a Zataki e aos outros para se abrigarem. — Mais uma vez ele deu de ombros. — Foi isso o que aconteceu — disse. Estavam perto do bangalô. Starke farejou o ar. — Vamos ter chili mesmo, Freddy?

— Sim, a não ser que tenha queimado. Foi só o que aconteceu?

— Claro, exceto que quando o tiroteio acabou achei melhor que viéssemos para Kowiss e para o doutor Nutt. O mulá parecia mal e eu estava assustado com Jon. Zataki disse: "Claro, por que não, eu preciso ir para Isfahan" e aqui estamos. O rádio escangalhou no caminho; eu podia ouvir mas não podia transmitir. Só isso.

Ayre viu-o farejar o ar de novo, sabendo que um psicopata como Zataki jamais teria dado a Starke a autoridade que lhe dera — nem o teria protegido — por tão pouco.

O texano abriu a porta do bangalô. Imediatamente, o cheiro gostoso dos temperos o invadiu, transportando-o para casa, para o Texas, a terra de Deus, e milhares de refeições. Manuela tinha um drinque pronto para ele, do jeito que ele gostava. Mas não bebeu, foi direto para a cozinha, apanhou a colher de pau e provou o ensopado. Manuela ficou olhando, quase sem respirar. Ele provou uma segunda vez.

— O que acham disso? — disse alegremente. Era o melhor chili que ele já tinha comido.


25


EM DEZ DAM: 16:31H. O 212 de Lochart estava estacionado do lado de fora do barracão que servia de hangar, perto de uma área de pouso bem cuidada que ficava ao lado do pátio de pedras da casa. Lochart estava trepado no helicóptero, checando a coluna do rotor com a sua infinidade de juntas, pinos de segurança — e pontos perigosos — mas não encontrou nada de errado. Cuidadosamente, desceu e limpou as mãos sujas de graxa.

— Tudo bem? — perguntou Ali Abbasi, estendido ao sol. Ele era o jovem e bonito piloto de helicóptero iraniano que ajudara a soltar Lochart na base aérea de Isfahan pouco antes do amanhecer, e viera com ele na cabine até aqui. — Está tudo bem?

— Claro — disse Lochart. — Está perfeito e pronto para partir.

Era um dia bonito, quente e sem nuvens. Quando o sol se pusesse, dentro de uma hora mais ou menos, a temperatura cairia uns vinte graus ou mais, mas isso não tinha importância. Ele sabia que não sentiria frio porque os generais sempre se cuidam — e cuidam daqueles que são necessários à sua sobrevivência.

No momento eu sou necessário para Valik e para o general Seladi, mas só no momento, pensou.

Risos abafados vieram da casa e também dos que estavam tomando sol ou nadando nas águas azuis do lago, lá embaixo. A casa parecia incongruente no meio daquele deserto — um bangalô moderno, de um só andar, espaçoso, com quartos, e aposentos separados para empregados. Localizava-se numa pequena elevação dando para o lago e para a represa, e era a única naquela região. Em volta do lago e da represa havia uma zona árida — com colinas rochosas protejando-se de um platô alto, desprovido de vegetação. Os únicos meios de acesso eram a pé ou por ar, de helicóptero ou num avião leve, que pudesse pousar na estreita pista de terra que fora aberta no terreno acidentado.

Duvido que um pequeno avião de dois motores consiga pousar aqui, pensara Lochart, ao vê-la pela primeira vez. Tem que ser de um monomotor. E não há jeito de subir de novo — se descer tem que ficar. Mas é um ótimo esconderijo, quanto a isto não há dúvida — simplesmente ótimo.

Ali se levantou e se espreguiçou.

Tinham chegado lá de manhã, depois de um vôo sem incidentes. Seguindo as ordens e as instruções do general Seladi, modificadas em voz baixa pelo capitão Ali, Lochart se mantivera perto do chão, esgueirando-se pelos desfiladeiros, evitando todas as cidades e aldeias. O rádio ficara ligado todo o tempo. A única transmissão que escutaram foi um comunicado maldoso de Isfahan, repetido várias vezes, sobre um 212 cheio de traidores que estava fugindo em direção ao sul e que deveria ser interceptado e abatido.

— Eles não deram os nossos nomes, nem o nosso registro — disse excitadamente Ali. — Devem ter esquecido de anotá-los.

— E que diferença faz? — retrucara Lochart. — Devemos ser o único 212 no céu.

— Não faz mal. Mantenha-se no máximo a trinta metros e vire para oeste. Lochart ficara estarrecido, pois pensara estarem se dirigindo para Bandar

Delam, que ficava quase na rota sui.

— Para onde estamos indo?

— Esqueça-se das marcações, eu vou guiá-lo daqui em diante.

— Para onde estamos indo?

— Para Bagdá. — Ali rira.

Ninguém dissera a ele para onde estavam indo até estarem prontos para pousar, e nessa altura, a pouco mais de trezentos quilômetros de Isfahan, voando muito baixo o tempo todo, com ventos contrários, consumindo exageradamente combustível, muito além do máximo previsto — com o ponteiro no vazio. Ali rezava abertamente.

— Se nós pousarmos neste ermo, nunca mais sairemos daqui, e quanto ao combustível?

— Há muito combustível lá, quando chegarmos... Deus seja louvado! — Dissera Ali, excitado quando passaram sobre um cume e viram o lago e o dique. — Deus seja louvado!

Lochart repetira o agradecimento e pousara rapidamente. Ao lado da pista de pouso havia um tanque subterrâneo de vinte mil litros e o barracão-hangar. Lá havia algumas ferramentas e bombas de ar para os pneus, e esquis aquáticos e equipamentos de barco.

— Vamos guardar o aparelho — disse Ali. Juntos, empurraram o 212 para o barracão, onde ele entrou com dificuldade, colocando calços nas rodas. Enquanto Lochart ajustava a tranca do rotor, notou três asas voadoras numa prateleira. Estavam cobertas pela poeira e rasgadas.

— De quem são?

— Este costumava ser o local de fim-de-semana do general da Força Aérea Imperial, Hassayn Aryani. Eram dele.

Lochart assoviou. Aryani era o chefe lendário da Força Aérea que, segundo boatos, também fora uma espécie de capitão da Guarda Pretoriana do tempo dos romanos para o xá, seu confidente e casado com uma de suas irmãs. Ele tinha morrido num acidente com uma asa voadora há dois anos.

— Foi aqui que ele morreu?

— Sim. — Ali apontou para o outro lado do lago. — Dizem que ele pegou uma turbulência e caiu naqueles penhascos.

— Dizem? Você não acredita nisto? — perguntou Lochart.

— Não. Tenho certeza de que ele foi assassinado. Na Força Aérea a maioria pensa como eu.

— Você quer dizer que a asa dele foi sabotada?

— Não sei. — Ali deu de ombros. — Talvez sim, talvez não, mas ele era muito cuidadoso e era um piloto bom demais para entrar numa turbulência. Aryani nunca voaria com mau tempo. — Lá embaixo, podiam ouvir vozes e risos e ver os filhos de Valik brincando perto do lago. — Ele usava um barco a motor para levantar vôo. Colocava esquis aquáticos, segurava numa corda comprida, amarrada ao barco que corria pelo lago e quando já estava a grande velocidade, largava os esquis e subia até uns duzentos, trezentos metros, depois descia em espiral até pousar a poucos centímetros daquele flutuador.

— Ele era assim tão bom?

— É, era sim. Era bom demais e por isso é que foi assassinado.

— Por quem?

— Não sei. Se eu soubesse, ele ou eles já estariam mortos há muito tempo.

— Você o conhecia, então? — perguntou Lochart, percebendo o tom de adoração na voz dele.

— Fui seu ajudante-de-ordens, um dos seus ajudantes-de-ordens, durante um ano. Ele foi o homem mais fantástico que conheci... o melhor general, o melhor piloto, o melhor esportista, esquiador, tudo. Se estivesse vivo agora, o xá nunca teria sido enganado por estrangeiros ou enfeitiçado pelo nosso arquiinimigo Carter, o xá nunca teria partido, o Irã não mergulharia no abismo e os generais não nos teriam traído. — O rosto de Ali Abbasi contorceu-se de raiva. — É impossível conceber que pudéssemos ser atraiçoados desse modo, com ele vivo.

— Então quem o matou? Os partidários de Khomeini?

— Não, não há três anos atrás. Ele era notoriamente nacionalista, xiita, embora moderno. Quem? O Tudeh, os fedayins ou qualquer fanático da esquerda, da direita ou do centro que quisesse ver o Irã enfraquecido. — Ali olhou para ele, olhos escuros num rosto esculpido em pedra. — Existem até os que dizem que certas pessoas em altos postos temiam seu poder e sua popularidade crescentes.

Você quer dizer que o xá poderia ter ordenado a sua morte?

— Não. Não, é claro que não, mas ele era uma ameaça para aqueles que desencaminharam o xá. Ele era um farmandeh, um comandante do povo. Era uma ameaça para muita gente: para os interesses britânicos, porque apoiou o primeiro-ministro Mossadegh que nacionalizou a Petróleo Anglo-Iraniana, apoiou o xá e a OPEP quando quadruplicaram o preço do petróleo. Ele era pró-Israel, embora não antiárabe, era, portanto, uma ameaça para a OLP e para Yasir Arafat. Também podia ser considerado uma ameaça aos interesses americanos... para uma ou todas as Sete Irmãs, porque não ligava a mínima para elas nem para ninguém. Ninguém. Pois era, acima de tudo, um patriota.

— Ali tinha um olhar estranho. — O assassinato é uma arte antiga no Irã. Ibn-al-Sabbah não foi um de nós? — Sorriu com os lábios, mas não com os olhos.

— Nós somos diferentes aqui.

— Desculpe, quem é Ibn-al-Sabbah?

— O Velho Homem das Montanhas, Hassan ibn-al-Sabbah, o líder religioso Isma'ili que criou, no século XI, os Assassinos, e o culto ao assassinato político.

— Oh, claro, desculpe, não estava raciocinando. Ele não era amigo de Ornar Khayyãm?

— Algumas lendas dizem que sim. — A expressão de Ali era dura. — Ayrani foi assassinado, por quem, ninguém sabe. Ainda. — Juntos, fecharam a porta do barracão.

— E agora? — perguntou Lochart.

— Agora nós vamos esperar. Depois prosseguimos. — Para o exílio, pensou Ali. Não importa, será apenas temporário e pelo menos eu sei para onde estou indo, não como o xá, pobre homem, que é um proscrito. Eu posso ir para os Estados Unidos.

Só ele e seus pais sabiam que ele tinha um passaporte americano. Como papai foi esperto, ele pensou:

— Nunca se sabe, meu filho, o que Deus nos reserva — dissera seu pai em tom grave. — Eu o aconselho a pedir um passaporte enquanto pode. As dinastias nunca duram, só as famílias. Os xás vêm e vão, devoram-se uns aos outros, e os dois Pahlavi juntos somam apenas 54 anos como Suas Majestades Imperiais. Quem era Reza Khan antes de se coroar Rei dos Reis? Um soldado aventureiro, filho de camponeses analfabetos de Mazandaran, perto do Cáspio.

— Mas, papai, não há dúvida de que Reza Khan foi um homem especial. Sem ele e Muhammad Reza nós ainda seríamos escravos dos ingleses.

— Os Pahlavi foram úteis para nós, meu filho, de muitas maneiras. Más o Rez Xá falhou, ele falhou consigo mesmo e conosco, por acreditar estupidamente que os alemães ganhariam a guerra e por tentar apoiar o Eixo, dando aos ingleses uma desculpa para depô-lo e exilá-lo.

— Mas, papai, o Muhammad Xá não pode falhar! Ele é mais forte do que seu pai jamais o foi. Nossas Forças Armadas causam inveja ao mundo todo. Temos mais aviões que os ingleses, mais tanques que os alemães, mais dinheiro que Creso, a América é nossa aliada, somos a maior potência militar e política do Oriente Médio e Próximo, e os líderes estrangeiros se curvam diante dele... até Brezhnev.

— Sim, mas ainda não sabemos qual é a Vontade de Deus. Consiga o passaporte.

— Mas um passaporte americano pode ser muito perigoso, você sabe como dizem que quase tudo passa pela Savak e chega até o xá! E se ele ficasse sabendo, ou o general Aryani? Isto seria a minha ruína na Força Aérea.

— E por quê? Pois é claro que você lhes diria orgulhosamente que tinha tirado o passaporte e o mantivera em segredo para o dia em que pudesse usá-lo para o bem dos Pahlavi. Hein?

— É claro!

— Abra os olhos para o mundo, meu filho, as promessas dos reis não têm nenhum valor, elas são feitas por conveniência. Se este xá ou o próximo, ou mesmo o seu grande general tivessem que escolher entre a sua vida e alguma coisa de mais valor para eles, o que escolheriam? Não confie em príncipes, nem em generais, nem em políticos, eles o venderão, a você, à sua família, à sua herança por uma pitada de sal para pôr num prato de arroz que nem se darão ao trabalho de provar...

Como isso era verdade! Carter vendeu a nós e também seus generais, depois vendeu o xá e seus generais, e nossos generais fizeram o mesmo conosco. Mas como puderam ser tão estúpidos a ponto de decretar seu próprio fim? Ele se perguntou, estremecendo ao pensar no quanto estivera perto da morte em Isfahan. Devem ter enlouquecido!

— Está frio na sombra — disse Lochart.

— Sim, está. — Ali o olhou e tentou esquecer a ansiedade. Os generais são todos iguais. Meu pai tinha razão. Mesmo estes dois filhos da mãe, Valik e Seladi, eles nos teriam vendido a todos se fosse necessário, e ainda são capazes disso. Precisam de mim porque sou o único que pode pilotar para eles, fora esse pobre idiota que não sabe da encrenca em que está metido.

— Livre-se deste Lochart — dissera Seladi. — Por que levá-lo para um lugar seguro? Ele deveria ter-nos deixado em Isfahan, por que não deixá-lo aqui? Morto. Não podemos deixá-lo vivo, ele nos conhece e nos trairia.

— Não, meu tio Excelência — respondera Valik. — Ele nos é mais útil como presente para os kuwaitianos ou os iraquianos, eles podem prendê-lo ou extraditá-lo. Foi ele quem roubou um helicóptero iraniano e concordou em transportar-nos por dinheiro. Não foi?

— Sim. Mesmo assim, ele ainda pode dar os nossos nomes para os revolucionários.

— Nessa hora já estaremos em segurança com nossas famílias.

— Eu digo para acabar com ele... ele nos teria sacrificado. Acabe com ele e vamos para Bagdá, não para o Kuwait.

— Por favor, Excelência, reconsidere. Lochart é o piloto mais experiente..

Ali olhou para o relógio. Só faltavam trinta minutos para a partida. Viu Lochart olhar para a casa onde Valik e Seladi estavam. Eu me pergunto quem venceu, Valik ou Seladi? É uma prisão kuwaitiana ou iraquiana para este pobre imbecil bu uma bala na cabeça? Imagino se o enterrarão depois de matá-lo ou se apenas o deixarão para os abutres.

— O que foi? — perguntou Lochart.

— Nada. Nada, capitão, só estava pensando como tivemos sorte em escapar de Isfahan.

— Sim, e ainda acho que lhe devo a vida. — Lochart estava certo de que se Ali e o major não o tivessem libertado ele teria acabado diante de um tribunal do komiteh. E se ele fosse apanhado agora? A mesma coisa. Não se permitira pensar em Xarazade nem em Teerã e nem em um plano. Isso vem depois, tornou a dizer a si mesmo. Depois que você vir o que vai acontecer e onde você vai parar.

Para onde eles estão planejando ir? Para o Kuwait? Ou talvez saltar rapidamente sobre a fronteira até o Iraque? O Iraque geralmente é hostil com os iranianos, isso seria arriscado. O Kuwait é fácil de alcançar daqui e a maioria dos kuwaitianos é sunita e portanto anti-Khomeini. Mas para chegar lá, você tem que atravessar um bocado de espaço aéreo problemático com iranianos ou iraquianos nervosos, agitados e rápidos no gatilho. Nos próximos cem quilômetros deve haver umas vinte bases aéreas iranianas, prontas para o combate, com aviões preparados e dezenas de pilotos apavorados, loucos para provar sua lealdade ao novo regime.

E quanto à sua promessa a McIver de não levá-los na última parte da viagem?

Por causa de Isfahan, você agora está marcado. Não há chance dos revolucionários terem esquecido seu nome e seu registro. Viu alguém anotar seu nome? Não, acho que não. Mesmo assim, é melhor dar o fora enquanto pode, você está envolvido numa fuga, homens foram mortos em Isfahan. Para qualquer lado que se vire, você está marcado.

E quanto a Xarazade? Não posso deixá-la.

Talvez tenha que fazê-lo. Ela está a salvo em Teerã.

E se eles forem procurá-lo e Xarazade abrir a porta e eles quiserem levá-la em seu lugar?

— Gostaria de uma bebida gelada — disse, com a boca subitamente seca. — Poderia tomar uma Coca, ou algo assim?

— Vou ver. — Ambos viraram a cabeça quando os filhos de Valik vieram correndo pelo caminho que dava no lago, seguidos de perto por Annoush.

— Ah — ela lhes disse com seu sorriso alegre, mas com olheiras fundas em volta dos olhos. —, está um dia maravilhoso, não é? Estamos com muita sorte.

— Sim — responderam e ficaram imaginando como uma mulher como ela podia ter casado com um homem daqueles. Ela era uma mulher agradável de se olhar e uma mãe maravilhosa.

— Capitão Abbasi, onde está meu marido?

— Está na casa, Alteza, junto com os outros — disse Ali. — Posso acompanhá-la? Estava indo para lá.

— O senhor poderia procurá-lo, por favor, e pedir-lhe para vir falar comigo?

Ali não queria deixá-la sozinha com Lochart, pois ela estava presente quando Valik e Seladi contaram seu plano a ele, pedindo-lhe conselho quanto ao destino da viagem — embora não tivessem mencionado a eliminação de Lochart, isso fora dito mais tarde.

— Não gostaria de incomodar o general sozinho, Alteza, talvez pudéssemos ir juntos.

— Por favor, encontre-o para mim. — Ela era tão autoritária quanto o general, embora falasse educadamente e sem ofender.

Ali deu de ombros. Insha'Allah, pensou, e afastou-se. Quando estavam a sós, com as duas crianças correndo em volta do barracão, brincando de esconder, Annoush tocou gentilmente em Lochart.

— Ainda não lhe agradeci pelas nossas vidas, Tommy.

Lochart ficou perplexo. Era a primeira vez que ela o chamava pelo nome. Ele tinha sido sempre 'capitão Lochart' ou 'meu primo' ou 'Sua Excelência, o marido de Xarazade'.

— Fiquei feliz em poder ajudar.

— Sei que você e o velho Mac fizeram isso pelas crianças e por mim. Não fique tão surpreso, meu caro, eu conheço os pontos positivos do meu marido e... e as suas fraquezas. Qual é a mulher que não conhece? — Seus olhos encheram-se de lágrimas. — Sei o que isso significa para você. Você arriscou a vida, a de Xarazade, o seu futuro no Irã e talvez a sua companhia.

— Não a de Xarazade. Não, ela está perfeitamente segura. Seu pai, Excelência Bakravan, vai mantê-la em segurança até que ela possa sair. É claro que está segura. — Ele viu os olhos castanhos de Annoush e o que leu neles fez seu coração se contrair.

— Rezo por isso com toda a minha alma, Tommy, e peço a Deus que me conceda este desejo. — Ela afastou as lágrimas. — Nunca me senti tão triste em toda a minha vida. Nunca pensei que pudesse sentir tanta tristeza. Tristeza por estar fugindo, por aquele pobre soldado morrendo na neve, pela nossa família e pelos nossos amigos que têm que ficar, tristeza por ninguém estar mais seguro no Irã. Tenho tanto medo de que todo o nosso círculo vá ser perseguido pelos mulás, nós sempre fomos, como posso dizer? Modernos demais e... progressistas demais. Ninguém mais está seguro aqui. Nem mesmo o próprio Khomeini.

Lochart viu-se respondendo Insha'Allah, mas já não estava prestando atenção nela, subitamente apavorado com a idéia de nunca mais tornar a ver Xarazade, de nunca mais poder voltar ao Irã ou conseguir tirá-la de lá.

— Tudo vai voltar ao normal em breve, poderemos viajar e tudo o mais. É claro que vai. Em poucos meses, tem que ser. É claro que tudo vai voltar ao normal em breve.

— Espero que sim, Tommy, pois eu amo a sua Xarazade e odiaria não poder tornar a vê-la e nem ao pequenino.

— Hein? — Ele a olhou embasbacado.

— Oh, mas é claro que você ainda não sabe — disse ela, depois enxugou o resto das lágrimas. — Era muito cedo para você saber. Xarazade me disse que tinha certeza que estava carregando o seu primogênito.

— Mas... mas, bem ela... — Não pôde continuar, ao mesmo tempo horrorizado e extasiado. — Ela não pode estar!

— Oh, ela ainda não tinha certeza, Tommy, mas sentia que sim. Às vezes uma mulher sabe. A gente se sente tão diferente, tão diferente e tão bem, tão realizada — acrescentou, agora com uma voz plena de felicidade.

Lochart tentava fazer a cabeça trabalhar, completamente consciente de que seria impossível para ela compreender o turbilhão que criara dentro dele. Deus Todo-Poderoso, pensou, Xarazade?

— Ainda faltam alguns dias para ela ter certeza — dizia Annoush. — Acho que três ou quatro. Deixe-me pensar. Sim, incluindo hoje, terça-feira, mais

quatro dias para ter certeza. Seria no dia seguinte à visita ao pai dela — disse delicadamente. — Você deveria vê-lo neste dia santo, sexta-feira, dia 16, pelas suas contas, não é?

— Sim — disse Lochart. Como se eu pudesse esquecer. — A senhora sabia disso?

— É claro. — Annoush ficou espantada com a pergunta. — Um pedido tão extraordinário como este, e uma decisão tão importante teriam que ser conhecidos por todos nós. Oh, não seria maravilhoso se ela estivesse esperando bebê? Você não disse a Excelência Bakravan que queria filhos? Espero que ela tenha sido abençoada por Deus, pois isto certamente fará com que ela fique feliz durante o tempo que levarmos para tirá-la de lá. O Kuwait não é longe. Só lamento que ela não tenha vindo conosco. Isso teria tornado as coisas perfeitas.

— Kuwait?

— Sim, mas não ficaremos lá. Iremos para Londres. — Mais uma vez ela mostrou tristeza. — Não quero deixar a nossa casa e os nossos amigos e... eu não...

Atrás dela, Lochart viu a porta da casa se abrir. Valik e Seladi saíram acompanhados por Ali. Ele notou que os três homens estavam usando armas agora. Devia haver um esconderijo de armas aqui, pensou distraidamente enquanto Ali batia continência e corria pelo caminho em direção ao lago. Radiantes, as duas crianças vieram correndo de trás do barracão e se jogaram nos braços de Valik. Ele girou a garotinha no ar e colocou-a no chão.

— Sim, Annoush? — perguntou à esposa.

— Você queria que eu e as crianças estivéssemos aqui exatamente nesta hora.

— Sim. Por favor arrume Setarem e Jalal. Partiremos em breve. — Imediatamente, as crianças saíram correndo para dentro da casa. — Capitão, o helicóptero está pronto?

— Sim, está.

— Por favor, apronte-se, querida.

— Eu só preciso apanhar o meu casaco. Estou pronta para partir. — Ela sorriu e não se moveu. O resto dos oficiais vinha se aproximando. Vários car regavam rifles automáticos.

Lochart tirou da cabeça Xarazade e o dia santo e mais quatro dias e que brou o silêncio.

— Qual é o plano?

— Bagdá. Nós partiremos em poucos minutos — respondeu Valik

— Pensei que fôssemos para o Kuwait — disse Annoush.

— Decidimos ir para Bagdá. O general Seladi acha que será mais seguro do que se dirigir para o sul. — Valik não parava de observar Lochart. — Quero estar no ar dentro de dez minutos.

— Eu o aconselharia a esperar até duas ou três horas da manhã e..

— Nós poderíamos ficar presos aqui. — Seladi interrompeu friamertte. — Soldados poderiam preparar-nos uma emboscada. Há uma base aérea aqui perto, eles poderiam mandar uma patrulha. Você não entende de assuntos militares. Vamos partir imediatamente para Bagdá.

O Kuwait é melhor e mais seguro, mas em ambos os lugares o helicóptero será apreendido sem uma certidão iraniana. — disse Lochart.

— Talvez sim, talvez não — respondeu Valik, calmamente. — Baksheesh e algumas ligações farão muita diferença. — Você, intruso na minha família, pensou satisfeito, você e mais a oferta do 212 serão um presente que satisfará até os iraquianos, pois nós certamente concordamos que você o pilotou ilegalmente. Até mesmo o certificado que você conseguiu em Teerã foi ilegal. Os iraquianos vão compreender e não nos molestarão. A maioria deles odeia e teme Khomeini e a sua versão do Islã. Com você, o 212 e um pouco mais por fora, por que eles me criariam problemas?

Percebeu que Lochart o observava.

— Sim?

— Eu acho Bagdá uma má escolha.

— Vamos partir agora. — Disse o general Seladi, com rispidez. Lochart enrubesceu com a grosseria. Alguns dos outros homens se mexeram nervosamente.

— Não há dúvida que o senhor vai partir quando o aparelho estiver pronto e o piloto também. O senhor já voou por estas montanhas?

— Não... não, nunca, mas o 212 tem teto e é para Bagdá que nós vamos. Agora!

— Então eu lhe desejo sorte. Eu ainda aconselho o Kuwait e que partam mais tarde, mas o senhor faça como quiser, porque não vou levá-los.

Houve um silêncio ainda mais longo. Seladi ficou vermelho.

— Você vai se preparar para partir, agora.

— No caminho para Isfahan — Lochart disse a Valik —, eu lhe informei que não faria a última parte da viagem. Não vou levá-los para fora do país. Ali pode fazer isso, ele é perfeitamente qualificado.

— Mas agora você está sendo tão procurado quanto nós — disse Valik, estarrecido com a estupidez dele. — É claro que você vai pilotar na última parte da viagem.

— Não, não vou. Vou sair daqui a pé. É claro que vocês não podem perder tempo deixando-me em algum lugar. Ali pode levá-los, ele esteve baseado nesta região e conhece o radar. Deixe-me apenas um rifle e eu vou para Bandar Delam. Certo?

Os outros olharam de Lochart para Seladi e Valik. Esperando.

Valik refletiu sobre este novo problema. Seladi também. Os dois homens chegaram à mesma conclusão: Insha'Allah\ Lochart escolhera ficar e portanto escolhera as conseqüências.

— Muito bem — disse calmamente Valik. — Ali vai nos levar. — Ele sorriu e então, porque respeitava Lochart como piloto, acrescentou rapidamente: — Como somos um povo muito democrático, eu sugiro que votemos: Iraque ou Kuwait?

— Kuwait — disse imediatamente Annoush, e os outros fizeram coro com ela antes que Seladi pudesse interromper.

Ótimo, Valik pensou, eu me deixei convencer porque Seladi afirmou conhecer o chefe de polícia de Bagdá e disse que uma permissão de trânsito para mim e minha família e para ele não custaria mais de vinte mil dólares em moeda americana, o que seria muito mais barato do que no Kuwait. Quanto os outros terão que pagar é problema deles: espero que tenham dinheiro com eles ou uma maneira de arranjá-lo rapidamente.

— O senhor concorda, é claro, meu tio Excelência? Kuwait. Obrigado, capitão. Talvez o senhor possa comunicar a Ali que ele vai pilotar. Ele está lá embaixo no lago.

— Claro. Vou apanhar as minhas coisas. O senhor vai me deixar um rifle?

— É claro.

Lochart entrou no barracão.

— Tirem o helicóptero para podermos partir — disse Seladi. Eles foram cumprir as ordens. Lochart saiu, colocou sua mochila de vôo e sua mala ao lado da porta e foi andando em direção ao lago. Seladi ficou observando-o, depois caminhou impaciente em direção ao 212.

— Sim, Annoush? — perguntou Valik, ao perceber que sua mulher o observava.

— O que está planejado para o capitão Lochart? — Ela perguntou baixinho embora ninguém pudesse ouvi-los.

— Ele... você ouviu o que ele disse. Ele se recusa a nos levar e quer ficar. Ele vai sair daqui a pé.

— Eu sei como a sua cabeça trabalha, querido. Você vai mandar matá-lo? — Havia um sorriso gentil no seu rosto. — Assassiná-lo?

— Assassinato não seria a palavra correta. — Ele sorriu. — Tenho certeza que você concorda que Lochart representa um grande perigo agora. Eles nos conhece, sabe os nossos nomes. As nossas famílias vão sofrer quando ele for preso, torturado e condenado. É a Vontade de Deus. Ele fez a escolha. Seladi queria que isto fosse feito de qualquer maneira. Uma decisão militar. Eu disse que não, que ele nos levaria adiante.

— Para ser sacrificado no Kuwait, ou em Bagdá?

— Seladi deu as ordens para Ali, não eu. Lochart está marcado, pobre homem. É trágico mas necessário. Você concorda, não?

— Não, meu querido, sinto muito mas não concordo... Então, se ele for ferido, se tocarem nele aqui, muita gente vai se arrepender. — O sorriso de Annoush não mudou. — Você também, meu querido.

O rosto dele ficou vermelho. Os homens já tinham puxado o 212 para fora e agora o empurravam. Ele baixou a voz.

— Você não ouviu, Annoush querida, ele é uma ameaça! Ele não é um de nós, Jared mal o tolera e eu juro que ele é um grande perigo para nós, para aqueles que ficaram para trás. Tanto para a sua família quanto para a minha,

— Você não ouviu o que eu disse, marido? Eu juro que conheço muito bem os perigos, mas se ele for morto aqui, assassinado, você também será morto.

— Não seja ridícula!

— Um dia você vai dormir e não vai acordar. Será a Vontade de Deus. — Seu sorriso não mudou e nem a douçura da sua voz.

Valik hesitou, depois fechou a cara e se dirigiu apressadamente para o lago. As crianças vieram correndo da casa e ela disse gentilmente:

— Esperem aqui, meus queridos, eu volto num instante. Projetada sobre o lago, apoiada em estacas, havia uma área aberta dos lados para churrasco e bar, sob uma cobertura elegante, com alguns degraus que iam até a água para esquiadores ou para o barco a motor que estava amarrado ali perto.

Lochart estava na beira da água, de mãos para cima.

Ali estava com a automática apontada. As ordens de Seladi tinham sido claras: "Vá para o lago e espere. Ou nós o chamaremos de volta ou mandaremos o piloto buscá-lo. Se o piloto for procurá-lo, mate-o e volte imediatamente."

Ele detestara aquela ordem. Bombardear ou atacar revolucionários ou revoltosos de cima de um helicóptero de combate não era assassinato, mas isto era assassinato. Seu rosto estava pálido, ele nunca tinha matado antes e pediu perdão a Deus, mas uma ordem era uma ordem.

— Sinto muito — disse, quase sem poder falar e começou a puxar o gatilho.

Neste instante, as pernas de Lochart pareceram ceder e ele caiu de lado na água. Automaticamente, Ali seguiu-lhe o movimento, mirou no meio das costas como se estivesse praticando tiro ao alvo, sabendo que nunca poderia errar daquela distância. Fogo!

— Pare!

A fração de segundo em que ele hesitou foi tempo suficiente para que o seu cérebro ouvisse a ordem e a obedecesse de boa vontade. Aliviado, sentiu o dedo aliviar a pressão no gatilho. Valik correu até ele e os dois examinaram a água, escura e profunda. Esperaram. Lochart não apareceu.

— Talvez ele esteja debaixo dos degraus, ou do flutuador — disse Ali, enxugando o suor do rosto e das mãos, e agradecendo a Deus por não ter o sangue do piloto na consciência.

— Sim — Valik também estava suando, mas de medo.

Ele nunca vira aquele olhar no rosto de sua mulher antes, o sorriso que prometia a morte durante a noite. São os seus ancestrais assassinos, pensou. Ela é uma qajar, na sua linhagem estão os qajars que cegavam ou matavam os seus rivais ao trono — ou os filhos dos seus rivais — não é verdade que apenas um dos xás qajar, numa dinastia que durou 146 anos, deixou o trono por morte natural? Valik olhou em volta, viu-a em pé no alto do caminho, e então virou-se para Ali.

— Dê-me a arma.

Tremendo, Valik colocou a arma sobre o chão de madeira e gritou:

— Lochart, deixei uma arma aqui para você. Tudo isso foi um erro. O capitão estava enganado.

— Mas, general...

— Suba no helicóptero — ordenou Valik, em voz alta. — Seladi é um idiota. Nunca deveria ter-lhe dado ordens para matar o pobre homem. Vamos partir para o Kuwait imediatamente e não para Bagdá. Ali, vá ligar o aparelho.

Ali saiu. Quando passou perto de Annoush, ele a olhou com curiosidade, depois continuou depressa. Ela desceu e se juntou a Vaiik.

— Você viu? — Ele perguntou.

— Sim.

Esperaram. Não se ouvia nenhum som, não havia nenhuma onda batendo nos pilares. Estava bonito e tranqüilo, a superfície do lago transparente e parada.

— Eu... eu rezo para que ele esteja escondido em algum lugar — disse ela, sentindo um grande vazio na alma, mas agora estava na hora de fazer as pazes. — Estou contente do sangue dele não estar nas nossas mãos. Seladi é um monstro.

— É melhor voltarmos. — Estavam ocultos do helicóptero e da casa. Ele tirou a sua automática e deu um tiro para o chão. — Para Seladi. Eu, ahn, acho que atingi Lochart quando... quando ele veio à tona. Hein?

— Você é um homem bom e inteligente. — Ela lhe deu o braço e eles voltaram de braços dados. — Sem você, sem a sua coragem e a sua esperteza, nunca teríamos escapado de Isfahan. Mas o exílio? Por...

— Exílio temporário — corrigiu jovialmente, sentindo-se enormemente aliviado por ter passado o momento de tensão entre eles. — Depois tornaremos a voltar para casa.

— Seria maravilhoso — disse, forçando-se a acreditar. Tenho que acreditar, ou então vou ficar maluca. Tenho que acreditar por causa das crianças! — Estou contente por você ter escolhido o Kuwait. Jamais gostei de Bagdá e daqueles iraquianos, arg! — Ainda havia sembras nos seus olhos. — Aquilo que Lochart disse sobre esperar até anoitecer estava errado?

— Há uma base aérea a poucas milhas daqui. Nós poderíamos ter sido vistos pelo radar, Annoush, ou por observadores nas montanhas. Nisso Seladi tem razão. A base vai mandar uma patrulha atrás de nós. — Eles chegaram ao topo. As crianças esperavam por eles na porta da cabine e todo mundo já embarcara. Apertaram o passo. — O Kuwait é muito mais seguro. Eu já tinha resolvido ignorar aquele idiota do Seladi. Não se pode confiar nele.

Em poucos minutos estavam no ar, rumando para o norte margeando as montanhas, costeando os penhascos, mantendo-se perto do chão para evitar o perigo da base aérea. AH Abbasi era um bom piloto e conhecia bem a região. Uma vez passada a cadeia de montanhas, desceram sobre o vale e viraram para oeste, esgueirando-se por um desfiladeiro para evitar o perímetro externo do campo de aviação, com a fronteira iraquiana a uns oitenta quilômetros à frente. Os cumes das montanhas estavam cobertos de neve bem como parte das encostas, embora o chão de alguns vales estivesse verde, no meio do deserto de rochas. Passaram sobre uma aldeia inesperada e desconhecida, depois desviaram-se quase que para o sul, mais uma vez seguindo o rio, correndo paralelamente à fronteira que ficava à direita. O vôo devia durar apenas duas horas, dependendo dos ventos, e os ventos eram favoráveis.

Os que estavam na cabine perto das janelas observavam satisfeitos a paisagem que passava depressa, as crianças nos melhores lugares, o major segurando Jalal, Valik com a filha no colo, ao lado de Annoush. Todos estavam contentes, alguns rezavam silenciosamente. Não faltava muito para o pôr-do-sol e este seria bonito, com as nuvens coloridas de vermelho — céu vermelho à noite, felicidade para os pastores — Annoush cantou para Setar em em inglês — e, lá na frente, os motores funcionavam bem, com todos os mostradores no verde.

Ali estava contente de estar pilotando, contente por não ter matado Lochart, que tinha ficado diante dele, sem dizer nada, sem implorar por sua vida e sem rezar, apenas lá, em pé, com as mãos levantadas, esperando. Tenho certeza de que ele está a salvo sob os pilares, graças a Deus...

Deu uma olhada rápida no mapa, refrescando a memória. Mas não precisava olhar, tinha passado muitos anos ali, voando pelos despenhadeiros. Em breve sairia das montanhas e desceria para as planícies pantanosas do Tigre e do Eufrates, ficando perto do chão, costeando Dezful, depois Ahwaz e Khor-ramshahr, depois atravessaria o estuário do Shatt-al-Arab e a fronteira, chegando ao Kuwait e à liberdade.

Na sua frente estava a elevação com o cume saliente que estava esperando, e ele subiu, saindo de um vale para entrar em outro, possuído pela alegria de voar. Então a frase "HBC, suba para trezentos metros e reduza a velocidade" encheu os seus fones e o seu cérebro. Ele não estava no ar nem há seis minutos.

A ordem fora dada em farsi e foi repetida em inglês e depois em farsi e mais uma vez em inglês, e durante todo o tempo em que escutava ele tinha mantido o aparelho baixo, tentando desesperadamente fazer a cabeça funcionar.

— Helicóptero HBC, você está ilegal, saia do vale e reduza a velocidade. Ali Abbasi olhou para cima, examinando o céu, mas não viu nenhum avião. O chão do vale passava vertiginosamente. À sua frente havia outra cadeia de montanhas e depois haveria uma sucessão de vales e montanhas que levavam até às planícies. A fronteira do Iraque ficava a oeste, a uns sessenta quilômetros de distância — vinte minutos.

— Helicóptero HBC, pela última vez, você está ilegal, saia do vale e reduza a velocidade!

Seu cérebro gritou: Você tem três opções: obedeça e morra, tente escapar ou desça e espere cair a noite e tente voar assim que o dia começar a clarear. Se você sobreviver aos foguetes e balas.

Na sua frente, à esquerda, ele viu as árvores e a paisagem descendo, com os lados do vale precipitando-se numa garganta, então lançou-se para lá, decidindo-se pela fuga. Agora sua mente trabalhava bem. Arrancou os fones e se colocou nas mãos de Deus, sentindo-se melhor por causa disto. Diminuiu a velocidade ao se aproximar do final da garganta, desviou-se de algumas árvores e se enfiou em outro vale pequeno, reduzindo ainda mais a velocidade, acompanhando cautelosamente o leito do rio. Surgiram mais árvores e arbustos e o helicóptero se esgueirou entre eles.

Mantenha-se baixo e devagar, poupe combustível e vá com calma para o sul, pensou, mais confiante. Aproxime-se da fronteira quando puder, não se afobe. Eles nunca o pegarão se você usar a cabeça. Vai escurecer dentro em breve e você sabe o bastante de vôo por instrumento para chegar ao Kuwait. Mas como foi que eles nos localizaram? Como souberam? É como se estivessem esperando. Será que eles nos viram no radar indo para Dez Dam? — Cuidado!

As árvores eram mais densas ali e ele contornou um grupo delas na encosta da montanha, chegou mais perto das rochas e subiu para o topo em direção ao próximo vale. Passou sobre ele e desceu para a proteção das rochas, com os olhos examinando à frente e acima, procurando sempre um bom lugar para descer caso o motor falhasse. Estava atento e confiante e fazia bem o seu trabalho. Todos os instrumentos estavam dentro da margem de segurança. Os minutos passavam e embora examinasse cuidadosamente o céu, não viu nada.

No início do próximo vale, girou o helicóptero num ângulo de 360° e examinou novamente o céu. Não havia nada lá em cima.

Salvos! Escapamos dele! Insha'Allah! Respirou fundo e, muito satisfeito, tornou a rumar para o sul. Passou pelo próximo cume. E pelo seguinte e lá na frente estavam as planícies. Os dois aviões de combate estavam esperando. Eram F14.


26


NO AEROPORTO DE TEERÃ — ESCRITÓRIO DA S-G: 17:48H. —...você não tem permissão para aterrissar! — ouviu-se pelo HF, junto com um bocado de estática. Gavallan, McIver e Robert Armstrong estavam agrupados em volta do rádio, escutando atentamente; pelas janelas, a vista era cansativa e pesada, a noite se aproximava.

A voz apagada de John Hogg tornou a soar, vinda do 125 que se aproximava:

— Controle de Teerã, aqui é Eco Tango Lima Lima, como ontem, nós temos permissão de Kish para pousar e...

— ETLL, você não pode pousar! — A voz do controlador de tráfego estava rouca e assustada e McIver praguejou baixinho. — Vou repetir: negativo, todo o tráfego aéreo civil está retido em terra e todas as chegadas canceladas até novas ordens do imã... — No fundo, eles podiam ouvir outras vozes conversando em farsi, vários microfones abertos para aquela freqüência. — Volte ao ponto de partida.

— Repito, nós temos permissão do radar de Kish para pousar, ele nos passou para o controle de tráfego aéreo de Isfahan, que confirmou a permissão. Longa vida para o aiatolá Khomeini e para a vitória do Islã. Estou a sessenta quilômetros ao sul do posto de controle de Varamin, pronto para descer na pista 29, esquerda. Por favor, confirme se o seu ILS está funcionando. Vocês têm mais tráfego no sistema?

Por alguns momentos, vozes em farsi dominaram a torre, e depois ouviu-se:

— Tráfego negativo, ETLL, ILS negativo, mas você não pode... — A voz em inglês com sotaque americano foi interrompida bruscamente, ouvindo-se uma voz zangada, com um sotaque carregado, dizendo: — Pousos não! Komiteh dá ordens Teerã! Kish não Teerã. Isfahan não Teerã. Nós damos ordens Teerã! Se pousar, você preso.

A voz alegre de John Hogg respondeu imediatamente:

— Eco Tango Lima Lima. Compreendo que vocês não querem que nós pousemos, torre de Teerã, e querem rejeitar as nossas permissões, o que eu acredito que seja um erro de acordo com os regulamentos de tráfego aéreo. Alerta Um, por favor. — Então, imediatamente, na freqüência particular da S-G, misturada com a estática, veio a sua voz tensa: — Chamando QG!

Imediatamente, McIver trocou de canal e falou ao microfone:

— Três sessenta, Alerta Um — o que significava: dê uma volta e aguarde uma resposta. Olhou para Gavallan, que estava com a fisionomia preocupada. Robert Armstrong assoviava baixinho. — É melhor o mandarmos voltar. Se pousar, podem prendê-lo e apreender o aparelho — disse McIver.

— Com permissões oficiais? — perguntou Gavallan. — Você disse à torre que nós temos a carta do embaixador britânico aprovada pelo gabinete de Bazargan...

— Mas não pelo próprio Bazargan, senhor — disse Robert Armstrong —, e mesmo assim, para todos os efeitos, aqueles patifes da torre são a lei no momento. Eu sugiro que... — Ele parou e apontou, com o rosto ainda mais preocupado. — Olhem lá! — Dois caminhões e um carro equipado com rádio, com sua longa antena balançando, estavam se aproximando pela estrada. Enquanto olhavam, os caminhões foram diretamente para a pista 29 esquerda e estacionaram bem no meio dela. Faixas Verdes armados saltaram e tomaram posições defensivas. O carro com rádio continuou andando na direção deles.

— Merda! — resmungou McIver.

— Mac, você acha que eles estão controlando a nossa freqüência?

— É mais seguro presumir que sim, Andy. Gavallan apanhou o microfone.

— Interrompa. B repito B.

— Eco Tango Lima Lima! — Então, na freqüência da torre, ouviu-se uma voz simpática e gentil: — Torre de Teerã: nós concordamos com o seu pedido para cancelar a nossa licença e solicitamos formalmente permissão para pousar amanhã ao meio-dia para entregar peças de reposição urgentes, repetimos urgentes, requisitadas pela IranOil, e desembarcar tripulação com licença vencida, e retornar imediatamente.

— Johnny foi sempre rápido nas suas respostas — resmungou McIver, e depois disse para Armstrong: — Nós vamos colocá-lo...

— Alerta Um, Eco Tango Lima Lima. — Sua voz foi abafada pela torre.

— Nós vamos colocá-lo na lista de passageiros quando pudermos, sr. Armstrong. Sinto, mas hoje não deu certo. E quanto aos seus papéis?

Armstrong tirou os olhos do carro que se aproximava.

— Eu, ahn, eu preferiria ser um consultor da S-G, saindo em licença, se você não se importar. Sem salário, evidentemente. — Ele olhou para Gavallan.

— O que é B repito B?

— Tente outra vez amanhã, à mesma hora.

— E se eles concordarem com o pedido do ETLL?

— Então será amanhã. Você vai ser um consultor.

— Obrigado. Vamos torcer para ser amanhã. — Armstrong olhou para o carro que se aproximava e acrescentou rapidamente: — O senhor vai estar em casa por volta das dez da noite, sr. Gavallan? Talvez eu pudesse dar uma passada por lá. Só para conversar, nada importante.

— Claro. Estarei esperando. Nós já nos encontramos antes, não?

— Sim. Se eu não estiver lá até dez e quinze é que eu me atrasei e não pude ir. O senhor sabe como é. E então me comunicarei com o senhor de manhã.

— Armstrong levantou-se para sair. — Obrigado.

— Está bem. Onde foi que nos encontramos?

— Em Hong Kong. — Robert Armstrong cumprimentou educadamente e saiu, alto e elegante. Eles o viram atravessar o escritório e abrir a porta que levava ao hangar e à porta dos fundos que dava para o estacionamento da S-G, onde ele deixara o seu indescritível carro. O carro de McIver estava parado na frente.

— É como se ele já tivesse estado aqui antes — disse McIver, Pensativamente.

— Hong Kong? Não me lembro dele de jeito nenhum. Você se lembra?

— Não. — McIver franziu a testa. — Vou perguntar a Gen, que tem uma boa memória para nomes.

— Não estou certo de gostar ou de confiar neste tal de Robert Armstrong, não importa o que Talbot diga.

Ao meio-dia, eles tinham ido ver Talbot para descobrir quem era esse Armstrong. Tudo o que George Talbot disse foi:

— Oh, ele é um bom sujeito, e nós, ahn, nós apreciaríamos muito se vocês lhe dessem uma carona, sem fazer muitas perguntas. Vocês ficam para almoçar, é claro? Nós ainda temos um bom filé de linguado de Dover, congelado, bastante caviar ou salmão defumado se quiserem, duas garrafas de La Doucette 76 no gelo, ou salsichas com purê de batata e o vinho da casa, que eu recomendo se vocês preferirem. Pudim de chocolate ou torta de cerejas, e ainda temos metade de um bom Stilton. O mundo pode pegar fogo, mas pelo menos nós podemos vê-lo queimar como cavalheiros. Que tal um gim antes do almoço?

O almoço tinha sido muito bom. Talbot informara que Bakhtiar estava deixando o terreno para Bazargan e que Khomeini poderia evitar mais problemas.

— Agora que não há mais chance de golpe, as coisas vão acabar voltando ao normal.

— Quando você acha que isso vai acontecer?

— Quando 'eles', seja lá quem forem 'eles', ficarem sem munição. Mas, meu velho, o que eu acho não importa. O que importa é o que Khomeini acha, e só Deus sabe o que ele acha.

Gavallan recordou a gargalhada que Talbot tinha dado da sua própria piada e sorriu.

— O que foi? — perguntou McIver.

— Eu estava me lembrando de Talbot no almoço. — O carro ainda estava a uns cem metros de distância. — Talbot está escondendo uma montanha de segredos. Sobre o que você acha que Armstrong quer 'conversar'?

— Provavelmente quer distrair a nossa atenção um pouco mais. Afinal de contas, Mac, nós fomos à embaixada para nos informar sobre ele. Curioso! Geralmente eu não esqueço... Hong Kong? Eu o associo com as corridas em Happy Valley. Vou acabar me lembrando. Uma coisa é preciso dizer a favor dele: é pontual. Eu disse cinco horas e ele estava aqui, embora parecesse ter saído de dentro da parede. — Os olhos de Gavallan brilharam sob as espessas sobrancelhas, depois ele tornou a olhar para o carro que estava estacionado do lado de fora. — Tão certo quanto Deus ter criado a Escócia, ele não quis se encontrar com o nosso simpático komiteh. Eu me pergunto por quê.

O komiteh consistia de dois rapazes armados, um mulá — não o mesmo da véspera — e de Sabolir, o suado funcionário da imigração, ainda muito nervoso.

— Boa noite, Excelências — disse McIver, com as narinas se rebelando contra o cheiro de suor rançoso. — Os senhores gostariam de um pouco de chá?

— Não, não obrigado — respondeu Sabolir. Ele ainda estava muito em guarda, embora tentasse esconder isso sob uma máscara de arrogância. Sentou-se na melhor cadeira. — Nós temos novos regulamentos para vocês.

— Oh? — McIver tinha feito negócios com ele há uns dois anos e de vez em quando dava-lhe uma caixa de uísque, fornecia-lhe gasolina e, uma vez ou outra, passagens e acomodações para ele e a família, para passarem as férias de verão em diversos locais no mar Cáspio: "Nós reservamos acomodações para alguns dos nossos executivos e eles não podem ir, caro sr. Sabolir. É uma pena desperdiçar os quartos, não é?" Uma vez ele tinha arranjado uma viagem de uma semana para duas pessoas, para Dubai. A garota era muito jovem e muito bonita, e por sugestão de Sabolir fora colocada na folha de pagamento da S-G como uma especialista iraniana. — O que podemos fazer pelos senhores?

Para surpresa deles, Sabolir apanhou o passaporte de Gavallan e o formulário de permissão anterior e colocou-os sobre a mesa.

— Aqui estão o seu passaporte e os formulários, ahn, aprovados — disse, com a voz automaticamente untuosa do funcionalismo. — O imã ordenou que as operações normais começassem imediatamente. O, ahn, o Estado islâmico do Irã está de volta à normalidade e o aeroporto será reaberto dentro de três dias, para todo o tráfego normal, já estabelecido. Vocês agora devem voltar a operar normalmente.

— Nós vamos recomeçar a treinar a Força Aérea iraniana? perguntou McIver, quase sem conseguir disfarçar o contentamento, pois este era um contrato muito grande e muito lucrativo.

Sabolir hesitou.

— Sim, eu suponho que s...

— Não — disse firmemente o mulá, em bom inglês. — Não. Não até que o imã ou o Komiteh Revolucionário concorde. Vou providenciar para que o senhor tenha uma resposta certa. Não acho que esta parte da sua operação vá começar agora. Enquanto isso, o trabalho normal: transporte de peças para as bases, vôos destinados a ajudar a IranOil e retomar a sua produção de petróleo, ou para a Madeira Iraniana, e assim por diante. Desde que os vôos sejam aprovados com antecedência, podem começar depois de amanhã.

— Excelente — disse Gavallan, e McIver concordou.

— Os vôos para substituição de pessoal, tanto da tripulação dos aviões quanto do pessoal das plataformas, desde que aprovados com antecedência e caso os papéis estejam em ordem — o mulá continuou — serão reiniciados depois de amanhã. A produção de petróleo será uma prioridade. Um guarda islâmico acompanhará cada um dos vôos internos.

— Se isto for solicitado com antecedência e se o homem chegar na hora. Mas não armado — disse educadamente McIver, preparando-se para a inevitável discussão.

— Guardas islâmicos armados serão levados para a proteção de vocês, para evitar seqüestros por parte dos inimigos do Estado — disse rispidamente o mulá.

— Teremos muito prazer em cooperar, Excelência — Gavallan interrompeu calmamente — muito prazer mesmo, mas estou certo de que o senhor não vai querer arriscar vidas nem colocar em risco o Estado islâmico. Peço formalmente ao senhor para pedir ao imã para concordar com a proibição de armas. É evidente que o senhor tem acesso direto a ele. Enquanto isso, todos os nossos aparelhos ficarão em terra até que eu obtenha uma licença, ou permissão do meu governo.

— Os aparelhos não ficarão em terra, e o senhor voltará a operar normalmente! — O mulá estava furioso.

— Talvez possamos fazer um acordo até a decisão do imã: os seus guardas levam as armas, mas o capitão fica com a munição durante o vôo. De acordo?

O mulá hesitou.

— O imã ordenou que TODAS as armas fossem devolvidas, não foi?

— Sim. Muito bem, eu concordo.

— Obrigado. Mac, prepare um papel para Sua Excelência assinar e informe a todos os nossos rapazes. Agora, nós vamos precisar de novas licenças de vôo, Excelência. As que temos são as velhas, ahn, sem valor, do antigo regime. O senhor nos dará a autorização necessária? O senhor mesmo, Excelência? Obviamente, o senhor é um homem importante e sabe o que está acontecendo. — Ele observou o mulá, que pareceu aumentar de estatura com o elogio. O homem tinha uns trinta anos, sua barba era gordurosa e a roupa puída. Pelo seu sotaque, Gavallan calculou que ele tivesse estudado na Inglaterra, um dos milhares de iranianos que o xá tinha mandado para o estrangeiro com bolsas de estudo, para obterem uma educação ocidental. — O senhor sem dúvida nos dará papéis novos imediatamente, para nos tornar legais com a nova era?

— Bem, ahn, nós forneceremos novos documentos para cada um dos nossos aparelhos, é claro. — O mulá tirou alguns papéis da sua pasta e pôs uns óculos velhos, de lentes grossas, uma delas rachada. O papel que ele procurava estava no fundo. — O senhor tem em sua guarda treze 212 iranianos, sete 206 e quatro Alouettes espalhados por diversos lugares, todos com registro iraniano e pertencentes à Companhia de Helicópteros Iraniana. Está correto?

— Não exatamente. — Gavallan sacudiu a cabeça. — No momento, eles ainda pertencem à S-G Helicópteros de Aberdeen. A Companhia de Helicópteros Iraniana, a nossa sociedade com iranianos, só tomará posse dos aparelhos depois que eles forem pagos.

O mulá franziu a testa, depois aproximou o papel dos olhos.

— Mas o contrato dando a posse dos aparelhos à Companhia Iraniana está assinado, não?

— Sim, mas está sujeito a pagamentos que estão... estão atrasados.

— O imã disse que todas as dívidas serão pagas, então eles serão pagos.

— É claro, mas enquanto isso a posse definitiva depende do pagamento. — Gavallan continuou, cautelosamente, esperando ao mesmo tempo que a torre concordasse com a inteligente solicitação feita por Johnny Hogg de pousar no dia seguinte. Será que este cretino hipócrita poderia ordenar uma permissão? Se Khomeini ordenou que tudo voltasse ao normal, tudo voltará ao normal e eu poderei voltar para Londres em segurança. Com um pouco de sorte, poderia fechar o contrato da ExTex, que cobre as prestações dos novos X63, durante o fim-de-semana.

— Há meses que fazemos os pagamentos destes aparelhos pela CHI, com juros, bancando os custos com os nossos próprios fundos e...

— O Islã proíbe a usura e o pagamento de juros — disse o mulá, com uma determinação que abalou a Gavallan e McIver. — Os bancos não podem cobrar juros. De nenhum tipo. Isto é agiotagem.

Gavallan olhou para McIver, depois voltou a dar toda a atenção ao mulá.

— Se os bancos não podem cobrar juros, como é que os negócios vão funcionar interna e externamente?

— De acordo com a lei islâmica. Só com a lei islâmica. O Corão proíbe a agiotagem. — O mulá acrescentou aborrecido. — O que os bancos estrangeiros fazem é diabólico. Foi por causa deles que o Irã teve tantos problemas. Os bancos são instituições diabólicas e não serão tolerados. Quanto à Companhia de Helicópteros Iraniana, o Komiteh Revolucionário islâmico ordenou que todas as sociedades fossem suspensas, dependendo de uma revisão. — O mulá sacudiu os papéis. — Todos estes aparelhos são iranianos, com registro iraniano, iranianos! — Mais uma vez ele examinou os papéis. — Aqui em Teerã, vocês têm três 212, quatro 206 e um 47G4 aqui no aeroporto, não é?

— Eles estão espalhados — McIver disse cautelosamente —. Aqui, em Doshan Tappeh e em Galeg Morghi.

— Mas estão todos aqui, em Teerã?

McIver o avaliara enquanto Gavallan conversava, tentando, ao mesmo tempo, ler os papéis de cabeça para baixo. O que estava na mão do mulá continha uma lista de todos os aparelhos deles com seus números de registro e era uma cópia da relação que ficavam na torre, que a S-G era obrigada a manter sempre atualizada. Seu estômago revirou quando ele viu um círculo vermelho em volta do EP-HBC — o 212 de Lochart — e também do EP-HFC, o 206 de Pettikin.

— Nós temos um 212 que está emprestado em Bandar Delam — disse, resolvendo se precaver, maldizendo Valik e torcendo para que Tom Lochart estivesse a salvo em Bandar Delam ou voltando de lá. — Os outros estão aqui.

— Emprestado... será o EP... EP-HBC? — disse o mulá, muito satisfeito consigo mesmo. — Agora, por...

— A voz do controlador de tráfego interrompeu-o:

— Eco Tango Lima Lima, pedido recusado. Chame Isfahan em 118.3. Bom dia.

— Correto. Ótimo. — O mulá balançou a cabeça, satisfeito.

Gavallan e McIver praguejaram por dentro e Sabolir, que estivera silencioso, observando a conversa, entendendo perfeitamente que os dois homens tentavam manobrar o mulá, riu consigo mesmo, evitando cuidadosamente cruzar os olhos com qualquer um deles, olhando, por segurança, para o chão. Uma vez, há poucos instantes, quando o mulá estava prestando atenção em outra coisa, ele tinha encarado McIver e sorrira para ele, encorajadoramente, fingindo amizade, temeroso que McIver pudesse acabar com todos os favores anteriores que foram apenas um pagamento por ter facilitado a entrada das peças e a saída do pessoal. Naquela manhã, pelo rádio, um porta-voz do Komiteh Revolucionário islâmico incitara todos os cidadãos leais a denunciar qualquer pessoa que tivesse cometido crimes "contra o Islã". Durante o dia, três dos seus colegas foram presos, o que causou uma onda de horror em todo o aeroporto. Os guardas islâmicos não deram nenhuma razão específica, apenas arrastaram os homens e os colocaram na prisão Evin, a temida prisão da Savak, onde, dizia-se, meia centena de 'inimigos do Islã' tinham sido fuzilados hoje, depois de julgamentos sumários. Entre os detidos estava um dos seus homens, que aceitara os dez mil riais e os três tambores de vinte litros de gasolina do depósito de McIver, ontem. O homem guardara um, e os outros dois ele próprio levara para casa na noite passada, como era seu direito. Oh, Deus, fazei com que eles não revistem a minha casa.

Pelo HF, ouviu-se a voz ainda distante de Johnny Hogg:

— Eco Tango Lima Lima, obrigado. Viva a revolução e bom dia. — Depois, no canal deles, nervosamente: — QG, confirme!

McIver estendeu a mão e mudou de canal.

— Alerta Um! — ordenou, profundamente consciente da presença do mulá. — Você acha...

— Ah. Você fala diretamente com o aparelho; é um canal particular?

— Canal da companhia, Excelência. E a prática habitual.

— Habitual. Sim. Então o EP-HBC está em Bandar Delam? — perguntou o mulá e leu no papel: — Entregando peças. Correto?

— Sim. — Disse McIver, rezando.

— Quando ele deve retornar?

McIver podia sentir o peso da atenção do mulá sobre ele.

— Não sei. Não consegui comunicar-me com Bandar Delam. Assim que souber, comunicarei ao senhor. Agora, Excelência, com relação às autorizações para os nossos diversos vôos, o senhor ach...

— EP-HFC. EP-HFC está em Tabriz?

— Está na pequena pista de Forsha. — Disse McIver, não se sentindo nada à vontade, rezando para que a loucura que tinha acontecido na barreira de Qazvin não tivesse sido comunicada e fosse esquecida. Mais uma vez, ele imaginou onde estaria Erikki que devia ter ido encontrá-los no apartamento às três horas para vir para o aeroporto, mas não tinha aparecido.

— Pista de Forsha?

Ele viu o mulá olhando-o fixamente e fez um esforço para se concentrar.

— O EP-HFC foi para Tabriz no sábado, para entregar peças de reposição e apanhar pessoal. Voltou na noite passada. Estará na nova relação que será entregue amanhã.

— Mas qualquer aparelho que chegue ou que parta deve ser comunicado imediatamente. Nós não temos registro de nenhuma permissão de chegada dada ontem — disse o mulá, aborrecido.

— O capitão Pettikin não conseguiu se comunicar com a torre de controle de Teerã ontem. Os militares estavam tomando conta, acho. Ele tentou se comunicar várias vezes. — McIver acrescentou rapidamente: — Se temos que retomar as operações, quem vai autorizar os nossos vôos para a IranOil? O sr. Darius, como de costume?

— Ahn, sim, presumo que sim. Mas por que a chegada deste vôo não foi comunicada hoje?

— Estou muito impressionado com a sua eficiência, Excelência. — Gavallan falou com uma animação forçada. — É uma pena que os controladores de tráfego, militares, que estavam de serviço ontem não partilhassem desta eficiência. Estou vendo que a nova república islâmica vai suplantar qualquer operação ocidental. Será um prazer servir aos nossos novos patrões. Viva os novos patrões! Posso saber o seu nome?

— Eu, meu nome é Muhammad Tehrani — disse o homem, distraindo-se de novo.

— Então, Excelência Tehrani, posso pedir-lhe para nos conceder o benefício da sua autoridade? Se o meu Eco Tango Lima Lima pudesse ter a sua permissão para pousar amanhã, poderíamos melhorar imensamente nossa eficiência para igualar a sua. Poderei então certificar-me de que a nossa companhia dê ao aiatolá Khomeini e aos seus assistentes pessoais, como o senhor, o serviço a que têm direito. As peças que o ETLL vem buscar porão dois 212 a mais em funcionamento e eu poderei voltar a Londres para intensificar o nosso apoio à Grande Revolução. O senhor concorda, não é mesmo?

— Isso não é possível. O komiteh...

— Estou certo de que o komiteh aceitará o seu conselho. Oh, eu notei que o senhor teve a infelicidade de quebrar os seus óculos. É terrível. Eu mal consigo enxergar sem os meus. Talvez eu pudesse mandar o 125 trazer-lhe um novo par amanhã, de Al Shargaz?

O mulá ficou indeciso. Sua vista era muito ruim. O desejo de uns óculos novos, bons óculos, quase o subjugou. Oh, seria um tesouro inacreditável, um presente de Deus. É claro que Deus é que tinha posto este pensamento na cabeça do estrangeiro.

— Eu não acho... Eu não sei. O komiteh não poderia fazer o que o senhor está pedindo assim tão depressa.

— Eu sei que é difícil, mas se o senhor interceder por nós junto ao seu komiteh, eles certamente vão ouvir. Isto nos ajudaria imensamente e nós ficaríamos em débito com o senhor — Gavallan acrescentou, usando a expressão consagrada pelo tempo que, em qualquer língua, significava: o que o senhor deseja em troca? Ele viu McIver trocar para a freqüência da torre e oferecer-

lhe o microfone. — O senhor aperta o botão para falar, Excelência. Se o senhor nos quiser honrar com a sua ajuda...

O mulá Tehrani hesitou, sem saber o que fazer. Enquanto ele olhava para o microfone, McIver lançou um olhar significativo para Sabolir.

Sabolir compreendeu imediatamente, com os reflexos perfeitos.

— É claro que o seu komiteh vai concordar com qualquer decisão sua, Excelência Tehrani — disse, com sua voz untuosa. — Mas amanhã, pelo que eu entendi, o senhor tem que visitar os outros campos de aviação para se certificar de quantos helicópteros civis estão na sua área, que compreende toda Teerã, e onde eles estão. Não é?

— Minhas ordens são essas, sim — concordou o mulá. — Eu e alguns membros do meu komiteh temos que visitar os outros campos de aviação amanhã.

Sabolir suspirou profundamente, fingindo decepção, e McIver teve dificuldade em prender o riso, tão forçada era a sua performance.

— Infelizmente, não seria possível o senhor visitar todos eles de carro ou a pé e ainda estar de volta para supervisionar, pessoalmente, a chegada e o retorno imediato deste aparelho que, sem nenhuma culpa, foi recusado por causa de controladores de tráfego arrogantes, em Kish e em Isfahan, que ousaram não consultá-lo primeiro.

— É verdade — concordou o mulá. — A culpa foi deles!

— Sete horas seria conveniente para o senhor, Excelência Tehrani? — disse imediatamente McIver. — Nós teríamos prazer em ajudar o seu komiteh de aeroportos. Eu lhe darei o meu melhor piloto e o senhor estará de volta com tempo de sobra para, ahn, para supervisionar a operação. Quantos homens iriam com o senhor?

— Seis... — disse distraidamente o mulá, radiante com a idéia de ser capaz de executar as suas ordens, trabalho de Deus, de uma forma tão conveniente e confortável, como um verdadeiro aiatolá. — Isto... isto poderia ser feito?

— É claro! — disse McIver. — Às sete horas, aqui. O capitão, ahn, o capitão Nathaniel Lane terá um 212 pronto. Sete pessoas incluindo o senhor, e no máximo sete esposas. O senhor, evidentemente, voará na cabine junto com o piloto. Considere tudo combinado.

O mulá só tinha voado duas vezes na vida: para a universidade na Inglaterra e de volta para casa, apertado num vôo especial de estudantes da Iran Air. Ele sorriu e estendeu a mão para o microfone:

— Às sete horas.

McIver e Gavallan não demostraram o seu alívio pela vitória. Nem Sabolir.

Sabolir estava satisfeito pelo mulá ter sido enrolado. Como Deus quiser! Agora, se eu for acusado falsamente, terei um aliado, disse a si mesmo. Este idiota, este falso mulá filho de um cão, não aceitou um suborno? Não um pishkesh , mas dois: óculos novos e uma viagem aérea desnecessária e não autorizada. Ele não permitiu deliberadamente que esses ingleses mentirosos, que ainda pensam que podem seduzir-nos com quinquilharias e roubar as nossas riquezas por uns poucos riais, o fizessem de bobo? Escutem só o idiota, dando aos estrangeiros o que eles desejam!

Ele olhou para McIver, significativamente. E encarou-o. Depois, mais uma

vez, tornou a olhar para o chão. Agora, você, seu ocidental arrogante, filho de um cão, ele pensou, qual o favor que me prestará em troca da minha ajuda?

NO CLUBE FRANCÊS: 19:10H. Gavallan aceitou o copo de vinho tinto e McIver o de vinho branco, que o garçom francês, uniformizado, ofereceu-lhes.

Brindaram e beberam satisfeitos, cansados depois da viagem de volta do aeroporto. Estavam sentados com outros convidados, na maioria europeus, homens e mulheres, no salão que dava para os jardins cobertos de neve e para as quadras de tênis, cheio de cadeiras modernas e confortáveis, com um bar completo. Havia muitas outras salas para banquetes, bailes, jantares, jogos, e sauna em outras partes deste edifício que ficava na melhor região de Teerã. O clube francês era o único clube de estrangeiros que ainda estava em funcionamento. O clube americano, com seu enorme complexo de diversões, campos de esporte e de beisebol, bem como os clubes britânico, alemão e muitos outros tinham sido fechados, seus bares e estoques de bebida destruídos.

— Meu Deus, isso é bom — disse McIver, com o vinho branco gelado livrando-o do cansaço. — Não conte a Gen que paramos aqui.

— Não é preciso, Mac, ela vai saber.

— Você tem razão, não faz mal. Consegui reservar lugar para jantar aqui esta noite. Custa os olhos da cara, mas vale a pena. Antes, só havia lugar em pé, a esta hora da noite... — Ele virou a cabeça ao ouvir uma gargalhada de algum francês do outro lado da sala. — Por um instante, pensei que fosse Jean-Luc. Parece que já se passaram anos desde a festa natalina que ele deu aqui. Eu me pergunto se algum dia teremos outra.

— É claro que sim — disse Gavallan, para animá-lo, preocupado porque o amigo parecia ter perdido toda a animação. — Não deixe aquele mulá entristecê-lo.

— Ele me deu arrepios. E Armstrong também, pensando bem. E Talbot. Mas você tem razão, Andy, não devo deixar isso me abater. Estamos em melhor situação do que estávamos há dois dias atrás... — Mais risadas o distraíram e ele começou a pensar em todas as vezes que tinha se divertido ali com Genny, Pettikin e Lochart... não vou pensar nele agora... e com todos os outros pilotos e seus muitos amigos, ingleses, americanos, iranianos. Todos tinham partido, a maioria deles. Costumava ser assim: "Gen, vamos até o clube francês, as finais de tênis são hoje à tarde"... Ou: "Valik está dando um coquetel, a partir das oito horas, no clube de oficiais iranianos"... Ou: "Há um jogo de pólo, um jogo de beisebol, uma competição de natação, uma competição de esqui"... Ou: "Sinto muito, este fim-de-semana nós não podemos, vamos para a casa do embaixador, no Cáspio"... Ou: "Eu adoraria, mas Genny não pode ir, ela está comprando tapetes em Isfahan"...

— É que nós tínhamos tanta coisa para fazer aqui, Andy, a vida social era a melhor possível, quanto a isso não há dúvida. Agora é duro ficar só tentando entrar em contato com os nossos operadores.

— Mac — disse bondosamente —, responda francamente: você quer sair do Irã e deixar uma outra pessoa assumir?

— Meu Deus, onde você foi buscar essa idéia? Não, absolutamente. Só porque eu estava um pouco deprimido você pensou que... Meu Deus, não — ele disse, mas sua mente foi subitamente sacudida pela mesma indagação, impensável há alguns dias atrás: você está perdendo a força de vontade, o controle, a necessidade de seguir em frente. Está na hora de largar? Não sei, pensou, dolorosamente abalado pela verdade, mas seu rosto sorriu. — Está tudo bem, Andy. Nada que não possamos resolver.

— Ótimo. Desculpe, espero que não tenha se importado com a pergunta. Acho que me senti encorajado pelo mulá. A não ser quando ele falou a respeito "dos nossos aparelhos iranianos".

— A verdade é que Valik e os sócios agiram como se os aparelhos fossem deles desde a assinatura do contrato.

— Graças a Deus é um contrato britânico, que vigora sob leis britânicas. — Gavallan olhou por sobre o ombro de McIver e arregalou os olhos. A moça que estava entrando na sala tinha vinte e tantos anos, cabelos e olhos escuros e era estonteante. McIver seguiu-lhe o olhar, animou-se e levantou-se.

— Alô, Sayada — disse, acenando para ela. — Posso apresentar-lhe Andrew Gavallan? Andy, esta é Sayada Bertolin, uma amiga de Jean-Luc. Você gostaria de se sentar conosco?

— Obrigada, Mac, mas não posso, só vim aqui para jogar squash com uma amiga. Você está ótimo. Prazer em conhecê-lo, sr. Gavallan. — Ela estendeu a mão para ele. — Sinto muito, tenho que correr, dê lembranças a Genny.

— O mesmo, garçom, por favor — disse Gavallan, e tornaram a sentar-se. — Mac, aqui entre nós, essa beldade me deixou fraco.

— Geralmente é o contrário. — McIver riu. — Ela é muito popular, trabalha na embaixada do Kuwait, é libanesa e Jean-Luc está enfeitiçado.

— E não é para menos... — O sorriso de Gavallan murchou. Robert Armstrong estava entrando pela porta do lado oposto, com um iraniano alto, de feições marcadas, de uns cinqüenta anos. Ele viu Gavallan, cumprimentou-o rapidamente e continuou a conversar, dirigindo-se para o andar de cima onde havia outras salas. — Que diabo será que esse homem... — Gavallan parou, lembrando-se de repente de quem ele era. — Robert Armstrong, superintendente-chefe da Scotland Yard em Kowloon, é isto que ele é, ou foi!

— Scotland Yard? Você tem certeza?

— Tenho, Scotland Yard ou Departamento Especial... espere um minuto... ele, sim, está certo, ele era amigo de Ian, foi lá que eu o conheci, na Casa Grande da montanha, não nas corridas, embora eu possa tê-lo visto lá também com Ian. Se me lembro bem, foi na noite em que Quillan Gornt chegou como um convidado indesejável... não consigo me lembrar exatamente, mas acho que era a festa de aniversário de casamento de Ian e Penélope, pouco antes de eu sair de Hong Kong... meu Deus, isto foi há quase 16 anos, não admira que eu não me lembrasse dele.

— Tive a sensação de que ele se lembrou de você no momento em que nos encontramos no aeroporto ontem.

— Eu também. — Eles terminaram os drinques e saíram, ambos estranhamente inquietos.

UNIVERSIDADE DE TEERÃ: 19:32H. O comício de mais de mil estudantes esquerdistas no pátio quadrangular estava barulhento e perigoso, com facções demais, fanáticos demais e armas demais. Estava frio e úmido, ainda não havia escurecido, mas algumas luzes e tochas já brilhavam no lusco-fusco.

Rakoczy estava atrás, misturado no meio da multidão, vestido como os outros, parecendo-se com eles, embora agora o seu disfarce tivesse mudado e ele não fosse mais nem Smith nem Fedor Rakoczy, o muçulmano russo, o simpatizante islâmico-marxista, mas, aqui em Teerã, tivesse virado Dimitri Yazernov, representante soviético no Comitê Central do Tudeh — um papel que ele assumia de vez em quando nos últimos anos. Estava em pé num dos cantos do pátio com cinco dos líderes estudantis do Tudeh, ao vento cortante, com o rifle pendurado no ombro, armado e atento, e esperava pelo primeiro tiro.

— A qualquer momento agora — disse baixinho.

— Dimitri, quem eu pego primeiro? — perguntou um dos líderes, nervoso.

— O mujhadin, aquele filho da mãe, aquele que está ali — disse, calmamente, apontando para um homem de barba negra, muito mais velho do que os outros. — Não tenha pressa, Farmad, e siga o meu comando. Ele é profissional e pertence à OLP.

Os outros o encararam, perplexos.

— Por que ele, se pertence à OLP? — perguntou Farmad. Ele era atarracado, quase disforme, com uma cabeça grande e olhos pequenos e inteligentes. — A OLP tem sido nossa amiga durante todos esses anos, dando-nos treinamento, apoio e armas.

— Porque agora a OLP vai apoiar Khomeini — explicou pacientemente. — Khomeini não convidou Arafat para vir aqui na próxima semana? Ele não deu as instalações da missão israelense para a OLP? A OLP pode fornecer todos os técnicos que Bazargan e Khomeini precisam para substituir os israelenses e os americanos, especialmente nos campos de petróleo. Você não quer ver Khomeini forte, quer?

— Não, mas a OLP tem sido...

— O Irã não é a Palestina. Os palestinos devem ficar na Palestina. Vocês venceram a revolução. Por que entregar a vitória para os estrangeiros?

— Mas a OLP tem sido nossa aliada — insistiu Farmad, e Rakoczy ficou satisfeito de perceber-lhe os defeitos antes que esse homem obtivesse algum poder.

— Os aliados que se tornam inimigos não têm nenhum valor. Lembre-se do objetivo.

— Eu concordo com o camarada Dimitri — disse um outro, com a voz tensa, os olhos frios e muito duros. — Nós não queremos a OLP dando ordens aqui. Se você não quiser pegá-lo, Farmad, eu o farei. Todos eles, e todos os cães Faixas Verdes também.

— Não se pode confiar na OLP. — disse Rakoczy, continuando a mesma lição, plantando as mesmas sementes. — Olhe como eles vacilaram e mudaram de posição mesmo em casa, num momento dizendo que eram marxistas, no outro que eram muçulmanos, no outro flertando com o arquitraidor Sadat, depois o atacando. Nós temos documentos que provam isso — acrescentou, com a informação truncada encaixando-se perfeitamente —, e documentos que provam que eles planejam assassinar o rei Hussein e tomar a Jordânia, e fazer a paz em separado com Israel e com a América. Eles mantêm encontros secretos com a CIA e com Israel. Eles não são verdadeiramente anti-Israel...

Ah, Israel, ele pensava, enquanto continuava a lição bem preparada, o quanto você é importante para a mãe Rússia, tão bem localizado ali no meio do caldeirão, uma maneira sempre garantida de enfurecer todos os muçulmanos, especialmente os xeques milionários do petróleo, uma forma garantida de jogar todos os muçulmanos contra todos os cristãos, nossos maiores inimigos — seus aliados americanos, ingleses e franceses — e assim restringir o seu poder e mantê-los, e a todo o Ocidente, desequilibrados, enquanto conquistamos prêmios vitais — o Irã este ano, o Afeganistão também, a Nicarágua no próximo ano, depois o Panamá e o resto, sempre com o mesmo plano: apoderar-nos do estreito de Ormuz, do Panamá, de Constantinopla, e do cofre dos tesouros da África do Sul. Ah, Israel, você é o nosso coringa do jogo mundial de Monopólio. Mas nunca para ser descartado ou vendido! Nós não o abandonaremos! Oh, nós deixaremos que você perca muitas batalhas, mas nunca a guerra, permitiremos que você passe fome, mas não que morra, permitiremos que seus compatriotas banqueiros nos financiem e portanto financiem sua própria destruição. Nós o apoiaremos para sangrar a América até a morte, fortaleceremos os nossos inimigos — mas não demais — e assistiremos à sua devastação. Mas não se preocupe, nunca deixaremos que você desapareça. Oh, não! Nunca. Você é valioso demais.

— Os membros da OLP são arrogantes e cheios de si — um estudante alto disse soturnamente —, e nunca são educados, nem têm noção da importância do Irã no mundo e não conhecem nada do nosso passado.

— É verdade! Eles são camponeses e têm agido como parasitas por todo o Oriente Médio e o nosso Golfo, roubando os melhores empregos.

— Sim — um outro concordou. — Eles são piores que os judeus...

Rakoczy riu consigo mesmo. Ele gostava muito do seu trabalho, gostava de trabalhar com estudantes universitários — sempre um campo fértil — gostava de ensinar. Mas é isso o que eu sou, pensou satisfeito, um professor de terrorismo, de poder e de como tomar o poder. Talvez eu seja mais como um agricultor: planto a semente, alimento-a, protejo-a e depois colho os frutos, trabalhando em qualquer hora e em qualquer estação, como devem fazer os agricultores. Alguns anos são bons e alguns são ruins, mas a cada ano eu avanço um pouco, ganho mais experiência, fico conhecendo um pouco melhor a terra, cada vez mais paciente — primavera verão outono inverno — sempre a mesma terra, o Irã, sempre com o mesmo objetivo: na melhor das hipóteses, o Irã se transformar em solo russo, na pior, transformar-se num satélite russo, para proteger a sagrada terra da Rússia. Com o nosso pé no estreito de Ormuz...

Ah, pensou, com fervor religioso, se eu pudesse dar o Irã para a mãe Rússia, minha vida não teria sido vivida em vão.

O Ocidente merece perder, particularmente os americanos. São tão imbecis, tão egocêntricos, mas principalmente tão estúpidos. É inconcebível que este Carter não enxergue o valor de Ormuz em geral e do Irã em particular e a catástrofe que será para o Ocidente a sua perda. Mas os fatos estão aí: para todos os efeitos ele nos deu o Irã.

Rakoczy recordou o choque de incredulidade que sentiu quando os seus contatos em Washington murmuraram que Carter abandonaria o xá. Ah, que aliado Carter foi para nós. Se acreditasse em Deus, eu rezaria: Deus é Grande, Deus é Grande, proteja o nosso melhor aliado, o presidente amendoim, e permita que ele consiga se reeleger! Com ele reeleito, nós conquistaremos a América e dominaremos o mundo! Deus é Grande, Deus é...

De repente, ele sentiu um calafrio. Fingia ser muçulmano há tanto tempo que às vezes o disfarce virava o seu verdadeiro eu, e ele começava a se questionar e a ter dúvidas.

Eu ainda sou Igor Mzytryk, capitão da KGB, casado com a minha querida Delaurah, minha linda armênia, que está esperando por mim em casa, em Tbilisi? Ela estará em casa, ela que, secretamente, acredita em Deus — o Deus dos cristãos, que é o mesmo Deus dos muçulmanos e dos judeus?

Deus. Deus que tem mil nomes. Existirá um Deus?

Não há nenhum Deus, disse a si mesmo como uma ladainha, e guardou de volta esse pensamento no seu compartimento e se concentrou na batalha que estava por acontecer.

Em volta deles, a tensão estava crescendo no meio da massa estudantil, com gritos zangados de todos os lados:

— Nós não derramamos o nosso sangue para que os mulás ficassem com todo o poder! Unam-se, irmãos e irmãs! Unam-se sob a divisa do Tudeh...

— Abaixo o Tudeh! Unam-se pela causa sagrada islãmico-marxista, nós, mujhadins, derramamos o nosso sangue e somos os mártires do imã Ali, Senhor dos Mártires, e de Lenin...

— Abaixo os mulás e Khomeini, arquitraidor do Irã...

Grandes aplausos acompanhavam esses gritos e outros juntavam-se a eles, então aos poucos, mais uma vez, a palavra que prevalecia era:

— Unam-se, irmãos e irmãs, unam-se aos verdadeiros líderes da revolução, o Tudeh, unam-se para proteger o...

Rakoczy observou a multidão criticamente. Ela ainda estava fragmentada, amorfa, não era ainda uma massa que pudesse ser comandada e usada como uma arma. Alguns espectadores, islâmicos, observavam com graus variados de descontentamento ou raiva. Os poucos moderados balançavam a cabeça e se afastavam, deixando o palco para a grande maioria que estava profundamente comprometida e era anti-Khomeini.

Em volta deles, os edifícios eram altos, de tijolos, a universidade tinha sido construída pelo Reza Xá na década de 30. Há cinco anos, Rakoczy passara algum tempo ali, fingindo ser natural do Azerbeijão, embora os membros do Tudeh o conhecessem como Dimitri Yazernov e soubessem que ele fora enviado — continuando um modelo — para organizar células estudantis. Desde o início, a universidade foi sempre um lugar de oposição, antixá, embora o Muhammad Xá, mais do que qualquer monarca na história da Pérsia, tivesse dado todo o apoio à educação. Os estudantes de Teerã tinham sido a vanguarda da rebelião, muito antes de Khomeini ter-se transformado no seu pólo aglutinador.

Sem Khomeini, nós nunca teríamos conseguido, pensou. Khomeini foi a chama em torno da qual todos nós pudemos nos unir para tirar o xá do trono e expulsar os Estados Unidos. Ele não é nem senil nem fanático como muitos dizem, mas um líder impiedoso, com um plano perigosamente claro, um enorme carisma e um enorme poder entre os xiitas. E agora está na hora dele se juntar ao Deus que nunca existiu.

Rakoczy riu de repente.

— O que foi? — perguntou Farmad.

— Eu só estava pensando no que Khomeini e todos os mulás vão dizer quando descobrirem que não existe e que nunca existiu nenhum Deus. Que não existe nem céu, nem inferno, nem huris e que tudo isso não passa de um mito.

Os outros riram também. Menos um deles. Ibrahim Kyabi. Não havia mais nenhuma alegria nele, só o desejo de vingança. Quando ele fora em casa na véspera, tinha achado sua casa em polvorosa, sua mãe prostrada, chorando, seus irmãos e irmãs desesperados. Acabara de chegar a notícia de que seu pai, engenheiro, tinha sido assassinado por guardas islâmicos do lado de fora do QG da IranOil em Ahwaz e que seu corpo fora abandonado aos abutres.

— Por que razão? — ele gritara.

— Por... por crimes contra o Islã — disse seu tio, Dewar Kyabi, que trouxera a terrível notícia, através das lágrimas. — Foi isso que eles nos disseram... os seus assassinos. Eles eram de Abadan, fanáticos, quase todos analfabetos, e nos disseram que ele era um traidor vendido aos americanos, que durante anos ele tinha colaborado com os inimigos do Islã, ajudando-os a roubar o nosso petróleo, o...

— Mentira, tudo mentira — gritara Ibrahim. — Papai era anti-xá, um patriota, um crente! Quem são esses cães? Quem? Eu vou queimá-los e a seus pais. Como eles se chamam?

— Foi a Vontade de Deus, Ibrahim. Insha'Allah\ Oh, meu pobre irmão! A Vontade de Deus...

— Não existe nenhum Deus!

Os outros tinham olhado para ele, chocados. Era a primeira vez que Ibrahim exprimia um pensamento que vinha sendo construído há anos, alimentado por colegas que voltavam do estrangeiro, amigos da universidade, por alguns dos professores que nunca tinham dito isso abertamente, apenas encorajado-os a questionar tudo.

— Insha'Allah é para os idiotas — ele dissera —, uma blasfêmia supersticiosa que serve de proteção para os idiotas.

— Você não deve dizer isso, meu filho! — exclamara sua mãe, assustada. — Vá até a mesquita, peça perdão a Deus. O fato de seu pai estar morto é a Vontade de Deus, nada mais. Vá até a mesquita.

— Eu irei — ele disse, mas no seu coração sabia que sua vida tinha mudado. Nenhum Deus poderia ter permitido que isso acontecesse. — Quem eram os homens, tio? Descreva-os.

— Eles eram comuns, Ibrahim, como eu já lhe disse, mais moços do que você, a maioria deles. Não havia nenhum líder ou mulá com eles, embora houvesse um no helicóptero dos estrangeiros que veio de Bandar Delam. Mas o meu pobre irmão morreu maldizendo Khomeini; se ao menos ele não tivesse voltado no helicóptero dos estrangeiros, se ao menos... não importa, Insha'Allah, eles estavam esperando por ele de qualquer jeito

— Havia um mulá no helicóptero?

— Sim, havia.

— Você vai à mesquita, Ibrahim? — Sua mãe tinha tornado a perguntar.

— Sim — ele tinha respondido, a primeira mentira que lhe dizia. Ele não demorara a encontrar os líderes universitários do Tudeh e Dimitri Yazernov, para jurar fidelidade, conseguir uma metralhadora e, acima de tudo, pedir-lhes para descobrir o nome do mulá que estava no helicóptero de Bandar Delam. E agora estava ali esperando, desejando vingança, com a alma gritando contra o ultraje cometido contra seu pai em nome do falso Deus.

— Dimitri, vamos começar! — disse, sua fúria espicaçada pela gritaria da multidão.

— Nós temos que esperar, Ibrahim — disse delicadamente Rakoczy, muito satisfeito por ter o jovem com eles. — Não se esqueça de que a multidão não passa de um meio para um determinado fim. Lembre-se do plano! — Quando ele o relatara, há uma hora atrás, eles tinham ficado estarrecidos.

— Atacar a embaixada americana?

— Sim — dissera calmamente —, um ataque rápido, entrar e sair, amanhã ou depois. Esta noite, o comício vai se transformar numa batalha. A embaixada fica a pouco mais de um quilômetro de distância. Vai ser fácil mandar a multidão enfurecida avançar naquela direção. Que disfarce pode ser mais perfeito para um ataque do que um tumulto? Nós deixamos os mujhadins e os fedayins lutarem contra os guardas islâmicos e matarem-se uns aos outros enquanto tomamos a iniciativa. Esta noite vamos plantar mais sementes. Amanhã ou depois atacaremos a embaixada dos Estados Unidos.

— Mas isso é impossível, Dimitri, impossível.

— É fácil. É só um ataque, não uma tentativa de tomar a embaixada, isso virá mais tarde. Um ataque será uma coisa inesperada, simples de executar. Pode-se prender facilmente o embaixador e todas as outras pessoas durante uma hora mais ou menos, enquanto se saqueia a embaixada. Os americanos não têm capacidade de resistência. Esta é a chave para chegar a eles! Aqui estão as plantas do edifício e o número de fuzileiros e eu estarei lá para ajudar. A ação de vocês será importantíssima. Ela irá para as manchetes mundiais e deixará Khomeini e Bazargan, e principalmente os americanos, numa situação terrivelmente embaraçosa. Não se esqueçam de quem é o verdadeiro inimigo e que agora vocês têm que agir depressa para tirar a iniciativa de Khomeini...

Tinha sido fácil convencê-los. Será fácil criar a oportunidade, ele pensou. E será fácil ir diretamente para o escritório da CIA no porão, e para a sala de rádio, explodir e limpar o cofre e limpá-lo de todos os documentos e livros de códigos, depois subir as escadas dos fundos até o segundo andar, virar à esquerda, ir até o terceiro quarto à esquerda, o quarto do embaixador, e explodir o cofre que fica atrás do quadro pendurado sobre a cama. Súbito, rápido e violento — se não houver nenhuma oposição.

— Dimitri! Olhe!

Rakoczy virou-se rapidamente. Centenas de jovens vinham descendo a rua, com Faixas Verdes e mulás na frente. Imediatamente, Rakoczy urrou:

— Morte a Khomeini! — e deu uma rajada de tiros para o ar. Aqueles tiros inesperados fizeram com que todo mundo ficasse frenético, com gritos e tiros por toda parte, e a multidão começou a se espalhar, tropeçando uns nos outros e gritando.

Antes que pudesse detê-lo, viu Ibrahim mirar nos Faixas Verdes que se aproximavam e atirar. Alguns homens da fila da frente caíram, um urro de raiva explodiu no meio deles e começaram também a atirar naquela direção. Ele mergulhou no chão, praguejando. A torrente de balas não o atingiu, mas pegou Farmad e outros que estavam perto, mas não Ibrahim nem os outros três líderes do Tudeh. Ele gritou e todos se atiraram no chão, enquanto estudantes apavorados abriam fogo com carabinas e pistolas.

Muitos ficaram feridos antes que o grande mujhadin que Rakoczy tinha marcado para ser executado juntasse seus homens e atacasse os guardas islâmicos, fazendo-os recuar. Imediatamente, outros vieram em sua ajuda e o recuo se transformou em fuga, os estudantes soltaram um urro triunfante e o comício se transformou numa batalha.

Rakoczy agarrou Ibrahim, que já ia começar a atirar a esmo.

— Siga-me — ordenou, e foi empurrando Ibrahim e os outros para o abrigo do prédio, depois, quando se certificou de que estavam todos com ele, saiu correndo numa retirada desesperada.

Numa encruzilhada no meio dos jardins cobertos de neve, ele parou um instante para recobrar o fôlego. O vento estava gelado e a noite já tinha caído.

— E Farmad? — perguntou Ibrahim, sem fôlego. — Ele foi ferido!

— Não — respondeu —, ele estava morrendo. Vamos!

Mais uma vez ele disparou pelo jardim, continuou pela rua que ficava perto da faculdade de Ciências, atravessou o estacionamento e só parou quando o ruído do tumulto ficou distante. Sentia uma pontada do lado e quase não conseguia respirar. Quando conseguiu falar, disse:

— Não se preocupem com nada. Voltem para suas casas ou para seus dormitórios. Façam com que todos fiquem preparados para o ataque amanhã ou depois. O comitê dará a ordem. — E se afastou no meio da noite.

NO APARTAMENTO DE LOCHART: 19:30H. Xarazade estava deitada numa banheira de espuma, com a cabeça enfiada num travesseiro à prova d'água, os olhos fechados, com uma toalha em volta da cabeça.

— Oh, Azadeh, minha querida — disse sonolenta, com o suor escorrendo pela testa —, estou tão feliz.

Azadeh também estava na banheira e estava deitada com a cabeça para o outro lado, desfrutando do calor, da intimidade, da água docemente perfumada e do conforto. Seus longos cabelos também estavam envoltos por uma toalha branca e a banheira era grande, funda e confortável. Mas ainda havia círculos escuros sob os seus olhos, e ela não conseguia livrar-se dos terrores da véspera na estrada e no helicóptero. Lá fora, a noite tinha chegado. Tiros soavam ao longe. Nenhuma das duas deu atenção a eles.

— Eu gostaria que Erikki voltasse — disse Azadeh.

— Ele não vai demorar, ainda há muito tempo, querida. O jantar não será antes das nove, temos quase duas horas para nos aprontarmos. — Xarazade abriu os olhos e pôs a mão na coxa esguia de Azadeh, feliz em tocá-la. — Não se preocupe, querida Azadeh, ele vai voltar logo, o seu gigante de cabelos vermelhos. E não se esqueça de que vou passar a noite com os meus pais, assim vocês poderão andar nus por aí a noite inteira! Desfrute do nosso banho, alegre-se e desmaie quando ele voltar. — Elas riram juntas.

— Está tudo maravilhoso agora, você está em segurança, nós todos estamos seguros, o Irã está salvo. Com a ajuda de Deus o imã venceu e o Irã está livre e salvo.

— Eu gostaria de poder acreditar nisso, gostaria de poder acreditar como você acredita — disse Azadeh. — Não consigo explicar o quanto aquelas pessoas lá na estrada eram horríveis. Era como se eu estivesse sendo sufocada pelo ódio delas. Por que elas odiariam, a mim e ao Erikki? O que fizemos contra elas? Nada, e no entanto elas nos odiavam.

— Não pense mais nisso, querida. — Xarazade abafou um bocejo.

— Os esquerdistas são todos loucos, dizendo-se muçulmanos e ao mesmo tempo marxistas. Eles são contra Deus e portanto amaldiçoados. Os camponeses? Eles são ignorantes, como você sabe muito bem, e simplórios na maioria. Não se preocupe. Isso ficou para trás, agora tudo vai melhorar, você vai ver.

— Eu espero, oh, como espero que você tenha razão. Eu não quero que melhore, só quero que volte a ser como era, como sempre foi.

— Oh, voltará — Xarazade sentia-se tão bem, a água estava tão agradável, tão macia, como um útero. Ah, ela pensou, só faltam três dias para que eu tenha certeza e então Tommy diz a papai que é claro que ele deseja filhos e então, no dia seguinte, o grande dia, eu vou ter certeza, embora já tenha certeza agora. Não fui sempre tão regular? Então poderei dar a Tommy o meu presente de Deus e ele ficará muito orgulhoso. — O imã faz o trabalho de Deus. Como pode deixar de ser bom?

— Eu não sei, Xarazade, mas na nossa história os mulás nunca foram dignos de confiança. Eram apenas parasitas dos camponeses.

— Ah, mas agora é diferente — disse Xarazade, sem querer realmente discutir questões assim tão sérias. — Agora nós temos um líder de verdade. Agora ele tem o Irã sob controle pela primeira vez. Ele não é o mais piedoso dos homens, o que mais conhece o Islã e a lei? Ele não faz o trabalho de Deus? Ele não conseguiu o impossível, expulsando o xá e sua terrível corrupção, impedindo os generais de darem um golpe aliados aos americanos? Papai diz que nós estamos mais seguros agora do que jamais estivemos.

— Estamos mesmo? — Azadeh lembrou-se de Rakoczy no helicóptero e do que ele dissera acerca de Khomeini e do retrocesso na história, e ela sabia que muitas vezes ele falara a verdade, e ela o atacara, odiando-o, desejando que ele estivesse morto, pois é claro que ele era um daqueles que usariam os imbecis dos mulás para escravizar todo mundo. — Você quer ser governada por leis islâmicas do tempo do Profeta, de quase mil e quinhentos anos? Ser forçada a usar o chador, perder seu direito de votar, tão duro de conseguir, de trabalhar, de ser tratada como igual?

— Eu não quero votar nem trabalhar nem ser igual. Como pode uma mulher ser igual a um homem? Eu só quero ser uma boa esposa para Tommy, e no Irã, eu prefiro usar o chador na rua. — Delicadamente, Xarazade disfarçou outro bocejo, sonolento por causa do calor. — Insha'Allah, Azadeh querida. É claro que tudo será como antes, mas papai diz que vai ser melhor porque agora nós somos donos de nós mesmos, da nossa terra, do nosso petróleo, de tudo o que existe na terra. Não haverá nenhum general nem político estrangeiro para nos arruinar, e com o malvado xá fora daqui, nós todos viveremos felizes para sempre, você com o seu Erikki, eu com Tommy e muitos e muitos filhos. Como poderia ser diferente? Deus está com o imã e o imã está conosco. Nós temos muita sorte. — Ela sorriu e abraçou afetuosamente a perna da amiga. — Estou tão contente em ter você aqui, Azadeh. Faz tanto tempo que você não vinha a Teerã!

— Sim. — Elas eram amigas há muitos anos. Primeiro na Suíça, onde tinham se conhecido no colégio, embora Xarazade só tivesse ficado um período, infeliz por estar longe da família e do Irã, depois, mais tarde, na universidade, em Teerã. E agora, há pouco mais de um ano, como ambas tinham se casado com estrangeiros que trabalhavam na mesma companhia, elas se aproximaram ainda mais, como duas irmãs, ajudando-se mutuamente a se adaptar às esquisitices estrangeiras:

— Às vezes eu não consigo entender o Tommy, Azadeh — dissera Xarazade chorando no começo. — Ele gosta de ficar sozinho, sozinho mesmo, só eu e ele, a casa vazia, até mesmo sem os empregados. Ele me disse até que gosta de ficar só, lendo, sem ninguém por perto, sem a família, sem os filhos, sem amigos, sem conversar. Oh, às vezes é horrível.

— Erikki é igualzinho — dissera Azadeh. — Os estrangeiros não são como nós. Eles são muito estranhos. Eu gosto de passar dias com amigos, crianças, família, mas o Erikki não. É bom que Erikki e Tommy trabalhem durante o dia. Você tem mais sorte, o Tommy fica fora duas semanas de cada vez e você pode agir normalmente. Aliás, outra coisa, Xarazade, eu levei meses para me acostumar a dormir numa cama e...

— Eu nunca consegui! Oh, fica tão acima do chão, tão fácil de se cair, sempre com uma enorme depressão do lado deles, de modo que a gente fica muito desconfortável e acorda com dor nas costas. Uma cama é horrível, comparada com almofadas macias em lindos tapetes sobre o chão, tão mais confortável e civilizado.

— Sim, mas Erikki não quer usar almofadas nem tapetes. Ele insiste numa cama. Ele simplesmente não quer mais tentar. Às vezes, é um alívio quando ele está fora.

— Oh, nós agora dormimos direito, Azadeh. Eu acabei com aquela besteira de uma cama ocidental depois do primeiro mês.

— Como você conseguiu?

— Oh, eu suspirava a noite inteira e não deixava o pobrezinho dormir. Depois eu dormia de dia, para poder estar descansada de novo para suspirar a noite inteira. — Xarazade rira, encantada. — Depois de sete noites, o pobrezinho cedeu, dormiu como um bebê por três noites seguidas da maneira correta, e agora ele sempre dorme como uma pessoa civilizada. Até quando está em Zagros! Por que você não experimenta? Eu garanto que você vai conseguir, querida, especialmente se também reclamar um pouco que a cama lhe deu dor nas costas e que é claro que você ainda adora fazer amor mas que ele, por favor, tenha cuidado.

— O meu Erikki é mais esperto do que o seu Tommy — Azadeh riu. — Quando o Erikki experimentou dormir nas almofadas em cima do tapete, foi ele que suspirou a noite inteira e ficou se virando de um lado para o outro e não me deixou dormir. Fiquei tão exausta que depois de três noites passei a gostar da cama. Quando visito minha família, eu durmo civilizadamente, embora quando Erikki está no palácio a gente use uma cama. Sabe querida, há outro problema: eu adoro o meu Erikki, mas às vezes ele é tão grosseiro que eu quase morro. Ele fica repetindo 'sim' e 'não' quando pergunto alguma coisa. Como se pode conversar só com sim e não?

Ela sorriu para si mesma. Sim, é muito difícil viver com ele, mas viver sem ele agora é inimaginável. Todo o seu amor, o seu bom humor, o seu tamanho e a sua força, e sempre fazendo o que eu quero, só que com muita facilidade, de modo que eu tenho pouca chance de afiar as minhas garras.

— Nós duas temos muita sorte, Xarazade, não é verdade?

— Oh, sim, querida. Você pode ficar aqui uma ou duas semanas? Mesmo que Erikki tenha que voltar, você fica, por favor?

— Eu gostaria de ficar. Quando Erikki voltar... talvez eu peça a ele. Xarazade se mexeu dentro d'água, fazendo a espuma subir sobre os seios, soprando-a das mãos.

— Mac disse que eles viriam direto do aeroporto para cá, se estivessem atrasados. Genny vem direto do apartamento, mas não antes das nove. Eu também convidei Paula, a garota italiana, mas não para Nogger, para Charlie. — Ela riu. — Charlie quase desmaia quando ela o olha.

— Charlie Pettikin? Oh, mas isso é maravilhoso. Então temos que ajudá-lo. Nós devemos tanto a ele! Vamos ajudá-lo a enfeitiçar a italiana sexy.

— Ótimo! Vamos planejar como dar Paula a ele.

— Como amante ou como esposa?

— Amante. Bem... deixe-me pensar. Quantos anos ela tem? Deve ter no mínimo 27. Você acha que ela daria uma boa esposa para ele? Ele devia ter uma esposa. Todas as garotas que Tommy e eu mostramos discretamente para ele, apenas ele sorri e sacode o ombro. Eu trouxe até a minha prima em terceiro grau que tem 15 anos, achando que isso iria tentá-lo, mas que nada. Oh, que ótimo, agora nós temos algo para planejar. Temos bastante tempo para planejar, e para nos vestirmos e nos aprontarmos. E eu tenho uns vestidos lindos para você escolher.

— É tão estranho, Xarazade, não ter nada. Nada. Nem dinheiro, nem documentos... — Por um momento, Azadeh viu-se de volta ao Land Rover, perto do bloqueio da estrada, e diante dela estava o mujhadin gordo que roubara seus documentos, com sua metralhadora atirando enquanto Erikki o jogava de encontro ao outro carro, esmagando-o como a uma barata, com sangue e porcaria saindo-lhe da boca. — Não ter nada — disse, tentando não lembrar —, nem mesmo um batom.

— Não faz mal, eu tenho tudo isso aos montes. E Tommy vai ficar tão contente em ter você e Erikki aqui. Ele não gosta que eu fique sozinha. Pobre querida, não se preocupe. Agora você está em segurança.

Eu não me sinto nada segura, pensou Azadeh, odiando o medo, que era completamente desconhecido para ela e que, mesmo agora, parecia tirar o calor da água. Não me sinto segura desde que deixamos Rakoczy em terra e mesmo então durara apenas um momento, o êxtase de escapar daquele demônio: eu, Erikki e Charlie ilesos. Mesmo a alegria de achar um carro com gasolina na pequena pista não me livrou do medo. Detesto sentir medo.

Ela se enfiou mais na banheira, depois estendeu o braço e abriu a torneira de água quente, fazendo a água circular.

— Está tão bom aqui — murmurou Xarazade, sentindo a espuma densa e a sensualidade do contato com a água. — Estou muito contente que você queira ficar.

Na noite anterior, quando Azadeh, Erikki e Charlie chegaram ao apartamento de McIver, já estava escuro. Tinham encontrado Gavallan lá, de modo que não havia lugar para eles. Azadeh estava assustada demais para ficar no apartamento do pai, mesmo estando junto com Erikki. Então perguntara a Xarazade se podiam ficar com ela até Lochart voltar. Xarazade ficara encantada, feliz por ter companhia. Tudo começara a ficar bem de novo, mas, durante o jantar, ouviram-se tiros por perto, que a fizeram saltar.

— Não precisa se preocupar, Azadeh — dissera McIver. — São só uns arruaceiros, provavelmente comemorando. Você não ouviu Khomeini ordenar que depusessem todas as armas? — Todo mundo concordara e Xarazade afirmara:

— O imã será obedecido. — Sempre se referindo a Khomeini como 'imã', associando-o, assim, aos 12 imãs dos xiitas, os descendentes diretos de Maomé, o Profeta, quase uma divindade, certamente um sacrilégio: — Mas o que o imã conseguiu foi quase um milagre, não foi? — Xarazade tinha dito isso com sua cativante inocência. — Não há dúvida de que nossa liberdade é uma dádiva de Deus.

Depois estava tão bom na cama com Erikki, mas ele estava estranho e preocupado, não como o Erikki que ela conhecia.

— O que há de errado, o quê?

— Nada, Azadeh, nada. Amanhã eu vou pensar num plano. Não houve tempo esta noite para conversar com Mac ou Gavallan. Amanhã vamos planejar. Agora durma, querida.

Duas vezes durante a noite ela acordara com terríveis pesadelos, tremendo e gritando por Erikki.

— Está tudo bem, Azadeh, eu estou aqui. Foi só um sonho, agora você está em segurança.

— Não, não, não estamos, eu não me sinto segura, Erikki. O que está acontecendo comigo? Vamos voltar para Tabriz, ou então vamos embora para longe dessas pessoas horríveis.

De manhã, Erikki deixara-a para se encontrar com McIver e Gavallan, e ela dormira mais um pouco, mas isso não fez com que ela se sentisse mais descansada. Tinha passado o resto da manhã pensando ou ouvindo as novidades de Xarazade a respeito da sua ida a Galeg Morghi, ou escutando os últimos boatos contados pelos empregados: mais generais fuzilados, novas prisões, a multidão invadindo as prisões, hotéis ocidentais incendiados ou atacados. Boatos de que Bazargan tomara as rédeas do governo, de que os mujhadins tinham-se rebelado no sul, de que os curdos se rebelaram no norte, que o Azerbeijão declarara-se independente, que as tribos nômades dos kash kai e dos bakhtiaris queriam livrar-se do jugo de Teerã; que todo mundo estava depondo as armas ou que ninguém depusera as armas. Rumores de que o primeiro-ministro Bakhtiar fora capturado e morto ou de que escapara para as montanhas, para a Turquia ou para a América; de que o presidente Carter estava preparando uma invasão ou de que Carter reconhecera o governo de Khomeini; de que havia tropas soviéticas na fronteira, prontas para invadir ou de que Brejnev estava vindo para Teerã para cumprimentar Khomeini; de que o xá iria pousar no Curdistão, apoiado pelas tropas americanas, ou de que ele fora morto no exílio.

Depois ela tinha ido almoçar com os pais de Xarazade na casa dos Bak-ravan, perto do bazar, mas só depois de Xarazade ter insistido para que usasse o chador, ela que odiava o chador e tudo o que ele representava. Mais rumores na enorme casa, mas lá eles eram favoráveis, não havia medo, mas uma confiança absoluta. Muita abundância, como sempre, exatamente como em sua própria casa, em Tabriz, com os empregados sorrindo, sentindo-se seguros e dando graças a Deus pela vitória. Jared Bakravan dissera a eles, jovialmente, que agora que o bazar ia ser reaberto, e todos os bancos estrangeiros fechados, os negócios voltariam a ser maravilhosos como eram antes das maléficas leis que o xá tinha instituído.

Depois do almoço, elas voltaram para o apartamento de Xarazade. A pé. Envoltas no chador. Não houvera qualquer problema e todos os homens trataram-nas com deferência. O bazar estava apinhado de gente, com pouca coisa para vender, embora cada comerciante anunciasse uma abundância de mercadorias prontas para serem embarcadas por caminhão, trem ou avião, dizendo que os portos estavam abarrotados de navios carregados de mercadorias. Nas ruas, milhares de pessoas andavam de um lado para o outro, o nome de Khomeini estava nos lábios de todo mundo, entoando Allah-u Akbarr, quase todos os homens e rapazes armados — mas nenhum velho. Em algumas áreas, Faixas Verdes, em vez da polícia, dirigiam o tráfego amadoristicamente, ou ficavam por ali, loucos por uma briga. Em outras áreas, havia a polícia, como sempre. Dois tanques passaram por elas, dirigidos por soldados, com montes de guardas e civis em cima, acenando para os pedestres que aplaudiam.

Mesmo assim, todo mundo estava tenso sob essa capa de alegria, principalmente as mulheres, enroladas em suas mortalhas. Num determinado momento, ao virarem uma esquina, viram um grupo de rapazes cercando uma mulher de cabelos escuros, vestida com roupas ocidentais, debochando dela, gritando insultos, fazendo gestos obscenos, muitos deles se exibindo, sacudindo os pênis para ela. A mulher tinha cerca de trinta anos, estava elegantemente vestida, com um casaco curto e uma saia, pernas e cabelos compridos e um pequeno chapéu. De repente, um homem abriu caminho no meio da multidão e juntou-se a ela, gritando que eles eram ingleses e que os deixassem em paz, mas os homens não lhe deram atenção, empurrando-o e concentrando-se na mulher. Ela estava apavorada.

Não havia nenhuma maneira de Xarazade e Azadeh contornarem a multidão, que crescia rapidamente, e elas se viram obrigadas a presenciar tudo, até que apareceu um mulá que disse à multidão para ir embora, e fez uma preleção para os dois estrangeiros sobre a necessidade de obedecerem aos costumes islâmicos. Quando, finalmente, chegaram em casa, estavam cansadas e se sentiam sujas. Tiraram a roupa e se atiraram na cama.

— Estou satisfeita de ter saído hoje — dissera Azadeh, com uma voz cansada, profundamente preocupada. — É melhor que nós, mulheres, organizemos um protesto antes que seja tarde demais. É melhor que marchemos pelas ruas, sem véu nem chador, para mostrarmos aos mulás o nosso ponto de vista: que não somos escravas, que temos direitos, e que usar o chador é uma coisa que depende de nós e não deles.

Загрузка...