— Ótimo, capitão Ayre. — Disse McIver, para lhe dar a entender que tinha compreendido. — Ponha o capitão Starke na linha, sim?
— Sinto muito, capitão, mas não é possível. O capitão Starke ainda está em Bandar Delam.
— O que ele está fazendo lá? — Perguntou McIver rispidamente.
— O capitão Lutz ordenou que ele ficasse e mandou que o capitão Dubois completasse a viagem VIP solicitada pela IranOil, e aprovada pelo senhor.
Starke conseguira se comunicar com Teerã antes de partir, para explicar a McIver o problema do mulá Hussein. McIver aprovara a viagem, desde que o coronel Peshadi concordasse, e disse a Starke que o mantivesse informado.
— O 125 é esperado em Kowiss amanhã, capitão McIver?
— É possível — respondeu McIver —, mas nunca se sabe. — Fora programado que o 125 estivesse em Teerã no dia anterior, mas por causa da insurreição no aeroporto, todo o tráfego tinha sido cancelado até o dia seguinte, segunda-feira. — Estamos tentando conseguir licença para um vôo direto até Kowiss. Não é muito provável, porque o controle do tráfego aéreo militar está... está desguarnecido. O aeroporto de Teerã está, ahn, congestionado, e não podemos retirar nenhum dos nossos familiares. Diga a Manuela para estar preparada para o caso de conseguirmos uma desistência. — McIver fez uma careta, tentando decidir o quanto poderia dizer através do rádio, então viu Lochart fazendo um sinal para ele.
— Deixe-me falar, Mac. Freddy sabe falar francês — disse Lochart, baixinho.
McIver animou-se e passou-lhe o microfone, aliviado.
— Écoute, Freddy. — Lochart começou a falar em francês canadense que ele sabia que até Ayre, cujo francês era excelente, tinha dificuldade em compreender. — Os marxistas ainda estão controlando o aeroporto internacional, ajudados pelos revoltosos de Khomeini, supostamente com o apoio da OLP, e ainda controlam a torre. O boato hoje é que vai haver um golpe, que o primeiro-ministro está de acordo, que as tropas estão finalmente se deslocando por toda Teerã, com ordens de terminar com os tumultos e atirar para matar. Qual o problema aí? Você está bem?
— Sim, nada de grave — eles o ouviram responder num francês de sarjeta e cheio de subentendidos. — Eu tenho ordens de não dizer nada, mas não há realmente muito problema aqui, acredite, mas eles estão ouvindo. Em 'Fedorenta' — o apelido que eles davam a Bandar Delam, onde o ar fedia constantemente a gasolina — houve muitos problemas e o patrão foi mandado para o céu antes da sua hora ter chegado...
— Kyabi foi morto — murmurou Lochart, com os olhos arregalados.
— ... mas o velho Rudi manteve tudo sob controle e Duke está bem. É melhor interrompermos aqui, meu velho. Eles estão escutando.
— Compreendo. Fique firme e informe aos outros, se puder; diga também que estamos bem — acrescentou em inglês, sem nenhum intervalo — e repito que estaremos mandando dinheiro para o seu pessoal amanhã.
— Falando sério, meu chapa? — Perguntou Ayre, animando-se.
— Falando sério — riu Lochart, involuntariamente. — Mantenha um operador de rádio de plantão que nós tornaremos a chamar. Aqui está o capitão McIver de novo. Insha'Allah! E devolveu o microfone.
— Capitão, teve notícias de Lengeh, ontem ou hoje?
— Não, nós tentamos nos comunicar com eles mas não obtivemos resposta. Talvez sejam as manchas solares. Vou tentar de novo agora.
— Obrigado. Mande lembranças minhas ao capitão Scragger e lembre a ele o seu exame médico, na próxima semana. — McIver sorriu e depois acrescentou: — Certifique-se de que o capitão Starke se comunique comigo assim que voltar. — Desligou. Lochart contou-lhe o que Ayre dissera. Ele serviu-se de outro uísque.
— E quanto a mim, pelo amor de Deus? — Disse McIver, irritado.
— Mas, Mac, você sa...
— Não comece. Prepare um fraquinho. — Enquanto Lochart servia o drinque, McIver levantou-se, foi até a janela e olhou para fora, sem ver nada.
— Pobre Kyabi. Era um homem bom, dos melhores, bom para o Irã e justo conosco. Por que eles o teriam assassinado? Loucos! Rudi 'dando ordens' a Duke e 'dando ordens' a Marc... que diabo significa isso?
— Apenas que houve problemas mas Rudi controlou a situação. Freddy teria me contado se Rudi não o tivesse feito. Ele é muito esperto, o seu francês é bom e ele teria dado um jeito. Teve bastante tempo, mesmo com eles escutando, quem quer que sejam 'eles' — disse Lochart. — Talvez tenha sido como em Zagros.
Em Zagros, os aldeões de Yazdek chegaram de madrugada, um dia depois de Lochart ter voltado da licença. O mulá da aldeia recebera ordens de Khomeini para iniciar a revolta contra 'o governo ilegal do xá' e para assumir o controle da região. O mulá nascera na aldeia e conhecia os caminhos da montanha que ficavam bloqueados pela neve durante o inverno e pelos quais, durante o ano, só se tinha acesso com muita dificuldade. Além disso, o chefe de polícia, contra o qual teria que liderar a revolta, era seu sobrinho, e Nasiri, o gerente da base, outro dos seus alvos, era casado com a filha de uma irmã de sua mulher, que vivia agora em Shiraz. E mais importante, eles todos eram galezans, uma tribo secundária de nômades kash'kais que se estabelecera há séculos ao longo daquelas pequenas estradas e o chefe de polícia, cujo nome era Nitchak Khan, era também seu kalandar, seu chefe tribal eleito.
Então, corretamente, ele consultara Nitchak Khan e este concordara que deveria haver uma revolta contra seu inimigo hereditário, o xá Pahlavi e que, para comemorar a revolução, quem quisesse poderia descarregar suas armas em direção às estrelas e, ao amanhecer, ele lideraria a tomada do aeroporto estrangeiro.
Tinham chegado de madrugada. Armados. Todos os homens da aldeia Nitchak Khan não estava usando seu uniforme de policial, e sim uma roupa tribal. Ele era muito mais baixo do que Lochart, um homem atarracado, forte, com mãos de ferro e pernas de aço, um cinto de balas passado pelo peito e um rifle nas mãos. Conforme fora previamente arranjado — a pedido do Khan
— Lochart, acompanhado por Jean-Luc Sessonne, encontrou-os em frente às duas colunas de pedra apressadamente feitas e que simbolizavam o portão da base. Lochart cumprimentou-os e concordou que Nitchak Khan tivesse jurisdição sobre a base e as duas colunas de pedra foram formalmente derrubadas. Houve aplausos de ambos os lados e muitas armas foram disparadas para o ar. Depois, Nitchak Khan ofereceu um buquê de flores a Jean-Luc Sessonne como representante da França, agradecendo-lhe, em nome de todos os galezans-kash'kais, por abrigar e apoiar Khomeini, que os livrara do seu inimigo, o xá Pahlavi. "Que Deus seja louvado, pois aquele que ousou se auto-intitular Grande Rei dos Reis, que ousou cometer o sacrilégio de tentar associar sua linhagem aos reis Ciro e Dario, o Grande, homens orgulhosos e de coragem, a Luz dos Arianos, aquele lacaio dos demônios estrangeiros — fugiu, como uma amante pintada, para seu paxá iraquiano."
Houve, então, belos discursos de ambos os lados, a festa começou e Nitchak Khan, com o mulá ao lado, pedira a Tom Lochart, chefe tribal dos estrangeiros em Zagros Três, para continuar como antes sob o novo regime Lochart concordara gravemente.
— Esperemos que Rudi e seus rapazes tenham tido a mesma sorte que você teve em Zagros, Tom. — McIver tornou a virar-se para a janela, sabendo que não havia nada que ele pudesse fazer para ajudá-los. — As coisas estão ficando cada vez piores — murmurou. O assassinato de Kyabi foi terrível, e foi um mau sinal para nós, pensou. Como vou tirar Genny de Teerã, e onde estará Charlie?
Não tinham tido notícias de Pettikin desde que ele partira, na manhã do dia anterior, para Tabriz. Tinham recebido informações trancadas do seu pessoal de terra, em Galeg Morghi — de que Pettikin fora raptado e forçado a partir 'com três pessoas desconhecidas', que 'três pilotos da Força Aérea iraniana tinham seqüestrado o 206 e voado em direção à fronteira', ou que 'os três passageiros eram oficiais de alta patente fugindo do país'. Por que três passageiros em todas as histórias? McIver perguntava a si mesmo. Ele sabia que Pettikin devia ter chegado a salvo no aeroporto porque seu carro ainda estava lá, embora o tanque estivesse vazio, o rádio arrancado, e o carro depredado. Bandar-e Pahlavi, onde deveria ter reabastecido o helicóptero, não respondia
— Tabriz quase nunca era alcançada. Praguejou baixinho. Fora um mau dia para McIver.
O dia todo, credores irritados estiveram lá a aborrecê-lo, os telefones não funcionavam, o telex ficou congestionado e levou horas para ficar livre, e seu encontro do meio-dia com o general Valik que, segundo Gavallan, prometera lhes fornecer dinheiro semanalmente, tinha sido um desastre.
— Assim que os bancos abrirem, pagaremos o que estamos devendo.
— Pelo amor de Deus, você vem dizendo isso há semanas — retrucou McIver, friamente. — Eu preciso do dinheiro agora.
— Nós todos precisamos — tinha respondido o general, tremendo de raiva, mas muito consciente dos empregados iranianos na sala ao lado que, sem dúvida, estavam escutando. — Há uma guerra civil em curso e eu não posso abrir os bancos. Você vai ter que esperar. — Valik era um homem rechonchudo, careca, com a pele morena, um ex-general do Exército, que usava roupas e relógios caros. Ele abaixou ainda mais a voz. — Se não fosse pelos estúpidos americanos que traíram o xá e o convenceram a refrear nossas gloriosas Forças Armadas, não estaríamos nesta confusão.
— Eu sou inglês, como você sabe muito bem, e foram vocês mesmos que causaram esta confusão.
— Inglês, americano, qual é a diferença? A culpa é toda de vocês. Vocês traíram o xá e o Irã e agora vão pagar por isso.
— Com o quê? — perguntou McIver, azedamente. — Todo o nosso dinheiro está com vocês.
— Se não fosse por nós, seus sócios iranianos, eu principalmente, vocês não teriam nenhum dinheiro. Andy não está reclamando. Eu recebi um telex do meu querido colega, general Javadah, dizendo que Andy ia assinar os novos contratos que eram da Guerney esta semana.
— Andy disse que recebeu um telex seu confirmando a promessa que tinha feito a ele de nos fornecer dinheiro toda semana.
— Eu prometi que tentaria. — O general fez um esforço para controlar a raiva, pois precisava da cooperação de McIver. Enxugou a testa e abriu a pasta. Estava cheia de notas grandes de riais, mas ele manteve a tampa levantada para que McIver não pudesse ver o que havia dentro, depois tirou um pequeno maço de notas, tornando a fechar a pasta. Bem devagar, contou quinhentos mil riais — cerca de seis mil dólares. — Aqui está — disse com um grande floreio, colocando as notas em cima da mesa e o resto de volta na pasta. — Na semana que vem, eu ou um dos meus colegas traremos mais. Um recibo, por favor.
— Obrigado. — McIver assinou o recibo. — Quando podemos es...
— Na semana que vem. Se os bancos abrirem, poderemos acertar tudo. Sempre mantivemos nossa palavra. Sempre. Não conseguimos os contratos da Guerney? — Valik inclinou-se para a frente e abaixou ainda mais a voz. — Eu preciso de um vôo especial. Amanhã, quero um 212 para partir na parte da manhã.
— Para ir aonde?
— Tenho que inspecionar algumas instalações em Abadan — disse Valik, e McIver notou o suor.
— E como vou conseguir as licenças necessárias, general? Com todo o espaço aéreo controlado pelos militares e...
— Não se preocupe com licenças, eu só...
— Se não tivermos um plano de vôo aprovado pelos militares, será um vôo ilegal
— Você pode dizer que pediu licença e que ela foi dada verbalmente. Qual é o problema?
— Em primeiro lugar, é contra a lei do Irã, general, a sua lei, em segundo lugar, mesmo com uma licença concedida verbalmente e com a aeronave fora do espaço aéreo de Teerã, ainda é preciso fornecer o número de registro ao controle militar de tráfego aéreo mais próximo... todos os planos de vôo são registrados no QG da sua Força Aérea e eles são ainda mais severos com relação a helicópteros do que os civis. E se não tiver um número, o controlador vai mandá-lo descer na base militar mais próxima e se apresentar à torre. E quando pousar, eles vão recebê-lo muito enfurecidos, e com razão, o aparelho será apreendido e passageiros e tripulação serão mandados para a cadeia.
— Então encontre um jeito. É um vôo muito importante. Os, ahn, os contratos da Guerney dependem disso. Tenha o 212 pronto às nove horas, digamos, em Galeg Morghi.
— Por que lá? Por que não no aeroporto internacional?
— É mais conveniente... e mais tranqüilo, neste momento.
McIver franziu a testa. Valik tinha autoridade para solicitar e autorizar um vôo como esse.
— Muito bem, vou tentar. — Puxou o bloco de formulários de planos de vôo, notou que a última cópia referia-se ao vôo de Pettikin para Tabriz e mais uma vez sua ansiedade cresceu... onde ele se teria metido? Sob 'passageiros' ele escreveu general Valik, presidente da CHI e entregou-lhe o formulário. — Por favor assine no lugar do responsável.
Valik empurrou o formulário de volta, imperiosamente.
— Não há necessidade do meu nome ser colocado aí... ponha apenas quatro passageiros: minha mulher e meus dois filhos estarão comigo, e alguma bagagem. Vamos ficar em Abadan uma semana, depois voltaremos. Apenas faça com que o 212 esteja preparado às nove horas em Galeg Morghi.
— Sinto muito, general, os nomes têm que constar do formulário, senão a Força Aérea nem aceita o plano de vôo. Todos os passageiros têm que ser identificados. Vou pedir uma licença, mas não tenho muita esperança de conseguir. — McIver começou a escrever os outros nomes.
— Não, pare! Não há necessidade de fornecer os nossos nomes. Diga apenas que a viagem é para mandar algumas peças para Abadan. Sem dúvida você precisa enviar algumas peças para lá. — Ele estava coberto de suor.
— Está bem, mas primeiro faça o favor de assinar a autorização, com o nome de todos os passageiros e o seu destino.
— Consiga isso sem me envolver. Imediatamente! — E o rosto do general ficou vermelho.
— Não posso. — McIver também estava ficando impaciente. — Eu repito, os militares vão querer saber todos os 'quem' e os 'onde'. Eles estão grudando mais do que papel de pegar mosca. Vamos ter ainda mais interrogatórios para responder do que normalmente, porque há semanas não temos nenhum tráfego para aquele lado. Teerã não é como o sul, onde voamos o dia inteiro.
— Este será um vôo especial, para levar peças de reposição. Simples.
— Não é nada simples. Os guardas, em Galeg Morghi, não o deixariam embarcar sem papéis, e nem a torre. Eles o veriam subindo a bordo, pelo amor de Deus. — McIver encarou-o, exasperado. — Por que não arranja a licença o senhor mesmo, general? O senhor tem os melhores conhecimentos no Irã. O senhor mesmo deixou isso muito claro. Para o senhor seria fácil.
— Estes aparelhos são todos nossos. Nós somos os donos deles!
— Sim, é verdade — disse McIver, com a mesma impaciência. — Quando vocês tiverem pago por eles. Vocês nos devem quase quatro milhões de dólares de atrasados. Se o senhor quer ir para Abadan, isso é problema seu, mas se eles o apanharem fazendo isso num helicóptero da S-G, com papéis falsos que eu preciso assinar, o senhor vai parar na cadeia, junto com a sua família, comigo e com o piloto, e eles vão apreender os nossos aparelhos e nos proibirão de voar para sempre. — Só em pensar na cadeia ele se sentiu mal. Se um décimo das histórias que contavam sobre a Savak e as cadeias iranianas fosse verdade, elas eram um lugar muito indesejável.
Valik controlou a raiva. Sentou-se e deu um sorriso forçado.
— Não há necessidade de discutirmos, Mac, nós já passamos por muita coisa juntos. Eu, eu vou recompensá-lo por isso, hein? Tanto você quanto o piloto. — E abriu a pasta. — Hein? Doze milhões de riais... para dividir entre os dois.
McIver olhou perplexo para o dinheiro. Doze milhões eram cerca de 150 mil dólares — mais de 100 mil libras esterlinas. Tonto, ele sacudiu a cabeça.
— Está bem — disse Valik, imediatamente. — Doze milhões para cada um, mais as despesas. Metade agora e metade quando estivermos a salvo no aeroporto do Kuwait, hein?
McIver estava em estado de choque, não só por causa do dinheiro, mas porque Valik dissera abertamente 'Kuwait', o que McIver suspeitava mas não queria acreditar. Era uma mudança de 180 graus em relação a tudo o que Valik vinha dizendo há meses: há meses que ele contava vantagem a respeito do xá vencer a oposição e Khomeini. E mesmo depois da inacreditável partida do xá e da espantosa volta de Khomeini a Teerã — meu Deus, isso tinha acontecido apenas há dez dias? — Valik dissera uma dúzia de vezes que não havia nada com que se preocupar, porque Bakhtiar e os generais das forças imperiais tinham o domínio completo do poder e nunca permitiriam que "esta revolução de Khomeini, e secretamente dos comunistas, fosse bem-sucedida". Nem os Estados Unidos permitiriam isso. Nunca. No devido momento, as Forças Armadas tomariam o poder e assumiriam o governo. Ainda na véspera Valik repetira Confiantemente tudo isso e dissera que tinha sido informado que, a qualquer momento, o Exército interviria e que o fato dos Imortais terem dominado o motim da Força Aérea em Doshan Tappeh era o primeiro sinal disso.
McIver desviou o olhar do dinheiro e olhou dentro dos olhos do homem que estava sentado à sua frente.
— O que é que você sabe que nós não sabemos?
— Sobre o que você está falando? — Valik começou a gritar. — Eu não sei de...
— Alguma coisa aconteceu. O que foi?
— Tenho que dar o fora, com a minha família — disse Valik, à beira do desespero. — Os boatos são terríveis: golpe ou guerra civil, e com ou sem Khomeini nós estamos marcados. Você compreende? É a minha família, Mac. Eu tenho que sair, até que as coisas se acalmem. Doze milhões para cada um, hein?
— Que boatos?
— Boatos! — Valik quase cuspiu nele. — Consiga a licença de qualquer maneira. Eu pago adiantado.
— Não vou fazer isso, não importa a quantia que você ofereça. Tem que ser tudo direito.
— Seu imbecil hipócrita! Direito? Como é que você vem operando no Irã durante todos esses anos? Pishkesh! Quanto você mesmo já não pagou por baixo da mesa, ou para os funcionários da alfândega? Pishkesh! Como é que você pensa que nós conseguimos os contratos, hein? Os contratos da Guerney? Pishkesh! Pondo dinheiro nas mãos certas. Será que você é tão imbecil que ainda não conhece o jeito iraniano?
— Eu conheço o pishkesh, não sou imbecil, e sei que o Irã tem o seu jeito de fazer as coisas. Oh, sim, o Irã tem o seu jeito de fazer as coisas. A resposta é não.
— Então o sangue da minha mulher e dos meus filhos sujará as suas mãos, não as minhas.
— Do que é que você está falando9
— Você tem medo da verdade?
McIver olhou-o espantado. A mulher e os dois filhos de Valik eram os preferidos dele e de Genny.
— O que o faz ter tanta certeza?
— Eu... eu tenho um primo na polícia. Ele viu... uma lista secreta da Savak. Eu devo ser preso depois de amanhã junto com muitas outras pessoas importantes para... para acalmar a oposição. E a minha família. E você sabe como eles tratam... como podem tratar mulheres e crianças na frente do... — Valik não pôde continuar.
As defesas de McIver caíram por terra. Todos eles já tinham ouvido as terríveis histórias que contavam a respeito de mulheres e filhos sendo torturados na frente de homens presos, para forçá-los a fazer alguma coisa, ou apenas por maldade.
— Está bem — concordou, sentindo-se derrotado, sabendo que fora apanhado numa armadilha. — Vou tentar, mas não espere conseguir uma licença, e não deveria ir para o sul, para Abadan. Sua melhor chance seria a Turquia. Talvez pudéssemos levá-lo de helicóptero até Tabriz, então você poderia comprar sua passagem pela fronteira, de caminhão. Deve ter amigos lá. E você não pode escapar através de Galeg Morghi. Não há nenhum jeito de você se esgueirar para bordo com Annoush e as crianças, nem mesmo de entrar naquele campo militar, sem ser detido. Você... você teria que ser apanhado fora de Teerã. Em algum lugar longe das estradas e fora da vista do radar.
— Está bem, mas tem que ser Abadan.
— Por quê? Você está reduzindo suas chances à metade.
— Tem que ser. Minha família... meu pai e minha mãe foram para lá por terra. É claro que você tem razão a respeito de Galeg Morghi. Nós poderíamos ser apanhados fora de Teerã e... — Valik pensou por um momento, depois continuou rapidamente: —...na junção do oleoduto sul e do rio Zehsan... é longe da estrada e é seguro. Estaremos lá de manhã, às onze horas. Deus o recompensará, Mac. Se... se você pedir uma licença para transportar peças, eu... eu darei um jeito para que seja concedida. Por favor, eu imploro.
— Mas, e quanto ao reabastecimento? Quando pousarmos para reabastecer, um dos funcionários certamente vai encontrá-los e vocês serão presos em segundos.
— Solicite reabastecimento na base aérea de Isfahan. Eu... eu posso dar um jeito em Isfahan. — Valik enxugou o suor do rosto.
— E se alguma coisa sair errada?
— Insha'Allah! Você vai pedir autorização para transportar peças, não pode haver nenhum nome na licença ou eu estarei morto ou algo pior, bem como Annoush, Jalal e Setarem. Por favor.
McIver sabia que era loucura.
— Eu vou pedir a licença: peças, e apenas para Bandar Delam. Por volta da meia-noite devo saber se a licença foi concedida. Vou mandar alguém ficar esperando para trazê-la ao meu apartamento. Os telefones não estão funcionando, você terá que ir até lá para confirmar. Isto me dará tempo para pensar e decidir sim ou não.
— Mas..
— Meia-noite.
Sim, está bem. Eu estarei lá. — E quanto aos outros sócios?
— Eles... eles não sabem de nada. Emir Paknouri ou um dos outros vai me representar.
— E sobre as quantias semanais?
— Eles providenciarão. — Mais uma vez Valik enxugou a testa. — Que Deus o abençoe. — Vestiu o sobretudo e dirigiu-se para a porta. A pasta ficou sobre a mesa.
— Leve isto com você.
— Ah, você quer que eu pague no Kuwait? Ou na Suíça? Em que moeda?
— Perguntou Valik, voltando-se.
— Não há nenhum pagamento. Você pode autorizar um vôo. Talvez possamos levá-lo até Bandar Delam... depois você estará por sua conta.
— Mas... mas mesmo assim, você precisará de dinheiro para pagar o piloto, ou qualquer outra despesa. — E Valik olhou para ele sem acreditar.
— Não, mas você pode me adiantar cinco milhões de riais do dinheiro que a sociedade nos deve e de que estamos precisando desesperadamente. — McIver rabiscou um recibo e entregou a ele. — Se você não estiver aqui, o Emir ou os outros podem não ser tão generosos.
— Os bancos vão reabrir na próxima semana, temos certeza disso. Oh, sim, temos certeza.
— Bem, vamos esperar que sim e que possamos receber o que nos devem.
— Viu a expressão de Valik, viu-o contar o dinheiro, sabendo que ele o achava louco por não ter aceito o seu pishkesh, sabendo também que, inevitavelmente, Valik tentaria subornar o piloto, quem quer que fosse ele, para levá-los até seu destino se o helicóptero conseguisse sair do espaço aéreo de Teerã, e isso seria um desastre.
E agora, no seu escritório, olhando para a noite com o olhar vazio, sem ouvir o ruído do tiroteio nem ver os clarões ocasionais que iluminavam a cidade escura, ele pensou, meu Deus, Savak? Tenho que tentar ajudá-lo. Aquelas pobres crianças e aquela pobre mulher Tenho que tentar! E quando Valik oferecer suborno ao piloto, mesmo que eu tenha avisado ao piloto quanto a isso, será que ele vai resistir? Se Valik ofereceu 12 milhões agora, em Abadan vai oferecer o dobro. Este dinheiro seria útil para Tom, para Nogger Lane, para mim, para qualquer um. Só por uma curta viagem através do golfo — curta mas sem volta. Onde será que Valik conseguiu todo aquele dinheiro? É claro que de um banco.
Durante semanas tinha havido rumores de que por uma determinada quantia certas pessoas bem relacionadas podiam retirar dinheiro de Teerã, embora os bancos estivessem — oficialmente — fechados. E que por uma quantia ainda maior o dinheiro era transferido para uma conta numerada na Suíça, e que agora os bancos suíços estavam gemendo sob o peso do dinheiro que estava sendo retirado do país. Bilhões. Uns poucos milhões colocados nas mãos certas e qualquer coisa era possível. Não é isso o que acontece em toda a Ásia? Seja honesto, por que só na Ásia? Isso não acontece no mundo inteiro?
— Tom — disse cansado — tente o controle militar de tráfego aéreo e veja se deram licença para o 212, sim? — Tom Lochart pensava que era apenas uma entrega de rotina. McIver só tinha dito a ele que estivera com Valik naquele dia e que o general lhe dera algum dinheiro, nada mais. Ainda precisava decidir que piloto mandaria, desejando poder ir ele mesmo para não pôr em risco a vida de ninguém. Malditos exames médicos! Malditas regras!
Lochart foi até o HF. Naquele momento houve uma confusão na outra sala e a porta se abriu. Dela surgiu um rapaz com um rifle automático no ombro e uma faixa verde no braço. Havia mais uma meia dúzia de jovens com ele. Os funcionários iranianos esperavam, paralisados. O rapaz olhou para McIver e Lochart e depois consultou uma lista.
— Salaam, Aga. Capitão McIver? — perguntou a Lochart, com um inglês hesitante e carregado de sotaque.
— Salaam, Aga. Não, o capitão McIver sou eu — respondeu inquieto, e o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi: Será que eles fazem parte do mesmo grupo que assassinou o pobre Kyabi? O seu segundo pensamento foi, Genny devia ter partido com os outros, eu devia ter insistido, o seu terceiro pensamento foi sobre os rolos de notas que estavam na sua pasta no chão, ao lado do porta-chapéus.
— Ah, bom — disse o rapaz, educadamente. Havia círculos negros em volta dos seus olhos, seu rosto era forte, e embora McIver achasse que ele teria no máximo 25 anos, parecia mais velho. — Perigo aqui. Para vocês aqui. Agora. Por favor saiam. Nós somos o komiteh deste quarteirão. Vocês devem sair, por favor. Agora.
— Está bem. Com certeza, ahn, obrigado.
Já por duas vezes McIver achara prudente evacuar os escritórios por causa dos tumultos nas ruas, embora, espantosamente, considerando seu grande número, as multidões tivessem sido muito disciplinadas e os estragos causados a propriedades ou os atos contra os europeus fossem mínimos — exceto quanto aos carros estacionados nas ruas. Era a primeira vez que alguém ia até lá para avisá-lo pessoalmente. Obedientemente, McIver e Lochart vestiram os sobretudos, McIver fechou a pasta e, junto com os outros, começou a se retirar. Ele apagou as luzes.
— Por que luz aqui e em nenhum outro lugar? — Perguntou o líder.
— Nós temos o nosso próprio gerador. No telhado.
O rapaz deu um sorriso estranho, mostrando uns dentes muito brancos.
— Estrangeiros têm gerador e calor. Iranianos não. McIver ia responder mas pensou melhor e não disse nada.
— Vocês receberam mensagens? Mensagens sobre ir embora? Mensagem hoje?
— Sim — disse McIver. Uma no escritório, uma no apartamento, que Genny tinha encontrado na caixa de correspondência. Elas diziam apenas: "No dia 1º de dezembro vocês foram avisados para partir. Por que ainda estão aqui, a não ser como inimigos? Resta-lhes pouco tempo." E estava assinado: "Os universitários partidários de uma república islâmica no Irã."
— Vocês, ahn, vocês são representantes da universidade?
— Nós somos do seu komiteh. Favor sair agora. Inimigos melhor não voltarem nunca. Não?
McIver e Lochat saíram. Os revolucionários os seguiram pelas escadas. Os elevadores já não funcionavam há semanas.
A rua ainda estava livre, sem multidões, sem fogueiras, e todo o tiroteio acontecia longe dali.
— Não voltar. Três dias.
— Isto não é possível — retrucou McIver. — Eu tenho muitos...
— Perigo. — Os rapazes esperavam, observando-os silenciosamente. Nem todos estavam armados com armas de fogo. Dois deles tinham pedaços de pau. Dois estavam de mãos dadas. — Não voltem. Muito ruim. Três dias diz o komiteh. Entenderam?
— Sim, mas um de nós tem que reabastecer o gerador ou o telex vai parar e então ficaremos sem comunicação e...
— Telex não importante. Não voltem. Três dias. — Pacientemente, o rapaz fez sinal para eles saírem. — Perigo aqui. Não esqueçam por favor. Boa noite.
McIver e Lochart entraram nos carros que estavam trancados na garagem do prédio, muito conscientes dos olhares invejosos. McIver guiava seu Rover Coupe 65 de quatro lugares, que ele chamava de Lulu e mantinha em excelentes condições. Lochart tinha pedido emprestado o carro de Scot Gavallan, um velho Citroen amassado que era mantido assim de propósito, embora o motor estivesse ótimo, os freios perfeitos e que, se fosse preciso, podia ser muito veloz. Eles foram embora, e depois da segunda esquina pararam lado a lado.
— Aqueles chatos estavam falando sério — disse McIver, zangado. — Três dias? Não posso passar três dias fora do escritório.
— Sim, e agora? — Lochart deu uma olhada pelo espelho retrovisor. Os rapazes estavam agrupados na esquina, observando-os. — É melhor sairmos daqui. Encontro você no seu apartamento — disse depressa.
— Sim, mas de manhã, Tom, não há nada que possamos fazer agora.
— Mas eu ia voltar para Zagros; devia ter partido hoje.
— Eu sei. Fique aqui amanhã. Deixe para ir no outro dia. Nogger pode fazer o vôo, se a licença sair, o que eu duvido. Venha lá pelas dez.
McIver viu os rapazes começarem a andar na direção deles.
— Por volta das dez, Tom — disse apressadamente, passou a mudança e se afastou praguejando.
Os rapazes os viram afastar-se e seu líder, Ibrahim, ficou contente, pois não queria se defrontar com estrangeiros, nem matá-los — nem levá-los a julgamento. Só gente da Savak. E policiais culpados. E os inimigos do Irã, dentro do Irã, que queriam trazer o xá de volta. E todos os traidores totalitários marxistas que se opunham à democracia e à liberdade de fé e à liberdade de educação e à universidade.
— Oh, como eu gostaria de um carro daqueles — disse um deles, doente de inveja. — Era 68, não era, Ibrahim?
— Sessenta e cinco — respondeu Ibrahim. — Um dia você vai ter um, Ali, e gasolina para pôr nele. Um dia você vai ser o poeta e escritor mais famoso do Irã.
— É revoltante aquele estrangeiro exibir tanta riqueza quando há tanta pobreza no Irã — disse um outro.
— Logo todos terão partido. Para sempre.
— Você acha que aqueles dois voltarão amanhã, Ibrahim?
— Espero que não — disse, com uma risada cansada — se eles voltarem eu não sei o que faremos. Acho que os assustamos bastante. Mesmo assim, devíamos visitar este quarteirão pelo menos duas vezes por dia.
O jovem que carregava um pedaço de pau pôs o braço, afetuosamente, em volta do seu ombro.
— Estou contente que tenhamos votado em você para nosso líder. Foi uma escolha perfeita.
Todos concordaram. Ibrahim Kyabi ficou muito orgulhoso, e orgulhoso, também, de fazer parte da revolução que iria terminar com todos os problemas do Irã. E orgulhoso também do seu pai, que era um engenheiro do petróleo e um importante funcionário da IranOil, que vinha trabalhando pacientemente, ao longo dos anos, pela democracia no Irã, opondo-se ao xá, e que agora, certamente, seria uma voz poderosa no novo e glorioso Irã.
— Vamos embora, amigos — disse satisfeito. — Temos muitos prédios mais para investigar.
12
NA ILHA SIRI: 19:42H. A pouco mais de mil quilômetros a sudoeste de Teerã, o carregamento do petroleiro japonês de cinqüenta mil toneladas, o Rikomaru, estava quase completo. A lua iluminava o golfo, a noite estava fresca, com muitas estrelas no céu e Scragger concordara em se encontrar com de Plessey e ir a bordo para jantar com Yoshi Kasigi. Agora os três estavam na ponte com o capitão, o tombadilho todo iluminado por holofotes, observando os marujos japoneses e o engenheiro-chefe perto do enorme tubo de sucção ligado ao sistema de válvulas da barcaça de carregamento de petróleo que flutuava ao lado do navio, também iluminada por holofotes.
Estavam a cerca de duzentos metros da ilha Siri, o petroleiro ancorado firmemente, com suas duas correntes de proa presas em bóias à frente e duas âncoras lançadas na popa. O petróleo era bombeado dos reservatórios, que ficavam em terra, através de um duto que vinha pelo fundo do mar até a barcaça, e daí para o navio, através do seu próprio sistema de comunicação com os tanques do navio. Carregar e descarregar eram operações perigosas porque gases voláteis, altamente explosivos, se formavam nos tanques acima do óleo bruto — tanques vazios eram ainda mais perigosos até serem lavados. Nos petroleiros mais modernos, para aumentar a segurança, nitrogênio — um gás inerte — era bombeado no espaço vazio dos tanques, para ser expelido aos poucos. O Rikomaru não possuía este equipamento.
Ouviram o engenheiro-chefe gritar para os homens que estavam na barcaça: "Fechem a válvula", depois virar-se para a ponte e levantar os polegares para o capitão, que viu o sinal, e disse para Kasigi, em japonês:
— Temos permissão para partir, assim que pudermos? — O capitão era um homem magro, de cara esticada, vestido com uma camisa branca e bermudas, meias brancas e sapatos, dragonas e um boné de estilo naval.
— Sim, capitão Moriyama. Quanto tempo vai levar?
— Duas horas, no máximo, para fazer a limpeza e recolher as amarras. — Isto significava enviar o bote para soltar as correntes de proa que estavam presas às bóias, depois tornar a prendê-las nas âncoras do navio.
— Ótimo. — Voltando-se para de Plessey e Scragger, Kasigi disse em inglês: — Estamos com o carregamento completo e prontos para partir. Daqui a umas duas horas estaremos a caminho.
— Excelente — respondeu de Plessey, igualmente aliviado. — Agora podemos relaxar.
A operação correra muito bem. A segurança fora reforçada em toda a ilha e no navio. Tudo que podia ser verificado o foi. Só três iranianos, que eram imprescindíveis, puderam entrar no navio. Todos foram revistados e estavam sendo cuidadosamente vigiados por um tripulante japonês. Não tinha havido qualquer sinal da presença de inimigos entre os iranianos que estavam em terra. Todos os lugares que pudessem esconder explosivos ou armas foram revistados.
— Talvez aquele pobre rapaz de Siri Um tenha se enganado, Scragger, mon ami.
— Talvez — respondeu Scragger. — Mesmo assim, cara, eu acho que o jovem Abdullah Turik foi assassinado. Ninguém fica com o rosto e o olho mutilados daquela maneira por cair de uma plataforma num mar calmo. Pobre infeliz.
— Mas os tubarões, capitão Scragger — disse Kasigi, igualmente inquieto —, os tubarões poderiam ter causado aqueles ferimentos.
— Sim, poderiam. Mas aposto a minha vida que foi por causa da dica que ele me deu.
— Espero que você esteja enganado.
— Aposto que nunca vamos saber a verdade — disse Scragger, tristemente. — Quai foi a palavra que o senhor usou, sr. Kasigi? Carma. O carma daquele pobre infeliz foi curto e não muito doce.
Os outros concordaram. Em silêncio, observaram o navio sendo separado do duto que o ligava à barcaça.
Para ver melhor, Scragger foi para o lado da ponte. Sob a luz dos holofotes, os trabalhadores estavam desatarraxando, com dificuldade, o cano de trinta centímetros do sistema de válvulas da barcaça. Seis homens estavam lá. Dois japoneses, três iranianos, e um engenheiro francês.
Na frente deles estendia-se o tombadilho, no meio do qual estava o seu 206. Ele tinha pousado lá por sugestão de de Plessey e com a permissão de Kasigi.
— Beaut — dissera Scragger ao francês —, eu o levo de volta a Siri, ou Lengeh, como você quiser.
— Yoshi Kasigi sugeriu que passássemos a noite aqui, Scrag, e voltássemos de manhã. Será uma novidade para você. Podemos partir de madrugada e voltar a Lengeh. Venha para bordo. Eu teria muito prazer.
Então ele pousara no petroleiro ao pôr-do-sol, sem saber bem por que aceitara o convite, mas ele tinha feito um pacto com Kasigi e achou que devia honrá-lo. Além disso, sentia-se responsável pelo jovem Abdullah Turik. A visão do corpo do rapaz o abalara muito e o fizera desejar permanecer em Siri até o petroleiro partir. Então ele fora e tentara ser um bom hóspede, concordando em parte com de Plessey que, afinal de contas, a morte do rapaz talvez tivesse sido apenas uma coincidência e que suas precauções de segurança evitariam qualquer tentativa de sabotagem.
Desde que o carregamento começara, no dia anterior, todos tinham estado tensos. Esta noite mais ainda. As notícias da BBC foram novamente muito ruins, com informações de grandes batalhas em Teerã, Meshed e Qom. Além disso, havia o relatório de McIver que Ayre transmitira cuidadosamente de Kowiss, em francês — notícias da invasão do aeroporto internacional de Teerã, do possível golpe e de Kyabi. O assassinato de Kyabi também abalara de Plessey. E tudo isso, associado à boataria entre os iranianos, tornara a noite sombria. Rumores de uma iminente intervenção militar dos Estados Unidos, de uma iminente intervenção da União Soviética, de tentativas de assassinato contra Khomeini, contra Bazargan, o primeiro-ministro escolhido por ele, contra Bakhtiar, o primeiro-ministro legal, contra o embaixador dos Estados Unidos, rumores de que o golpe de estado militar ocorreria naquela noite, em Teerã, de que Khomeini já estava preso, de que todas as Forças Armadas já tinham capitulado e Khomeini já era, de fato, governante do Irã e que o general Nassiri, chefe da Savak, fora capturado, julgado e morto.
— Os boatos não podem ser todos verdadeiros — dissera-lhes Kasigi. — Não há nada que possamos fazer a não ser esperar.
Ble fora um bom anfitrião. Toda a comida era japonesa. Até a cerveja. Scragger tentara disfarçar seu desagrado pelo liors oeuvre de sushi, mas gostou muito da galinha frita com molho agridoce, do arroz, dos camarões fritos e dos legumes na manteiga.
— Mais uma cerveja, capitão Scragger? — oferecera Kasigi.
— Não, obrigado. Eu só me permito uma, embora reconheça que é muito boa. Talvez não tão boa quanto a Foster's, mas quase.
— O senhor não sabe o cumprimento que recebeu, sr. Kasigi. Para um australiano, dizer que uma cerveja é quase tão boa quanto a Foster's é um elogio e tanto — disse de Plessey sorrindo.
— Oh, sim, eu sei, sr. de Plessey. Quando estou na Austrália eu prefiro a Foster's.
— O senhor passa muito tempo lá? — perguntara Scragger.
— Oh, sim. A Austrália é uma das maiores fornecedoras de matéria-prima para o Japão. Minha companhia tem enormes cargueiros para transportar carvão, minério de ferro, trigo, arroz e soja — dissera Kasigi. — Nós importamos quantidades enormes do seu arroz, embora grande parte se destine à fabricação da nossa bebida nacional, o saque. O senhor já experimentou o saque, capitão?
— Sim, uma vez. Mas é uma bebida forte... não gosto muito de saque.
— Eu concordo — disse de Plessey, e acrescentou, em seguida —, exceto no inverno, como chocolate quente. O senhor falava sobre a Austrália?
— Eu gosto muito do país. Meu filho mais velho está na Universidade de Sydney, e nós o visitamos de vez em quando. É uma terra maravilhosa — tão grande, tão rica, tão vazia.
Sim, pensava Scragger, com severidade. Você quer dizer tão vazia e esperando para ser invadida pelas suas milhões de formigas operárias? Graças a Deus, estamos a milhares de quilômetros de distância e os Estados Unidos nunca permitirão que nos controlem.
— Bolas! — dissera-lhe McIver uma vez, durante uma discussão amistosa, quando ele, McIver e Pettikin estavam passando uma semana de licença em Cingapura, há dois anos. — Se em algum momento do futuro o Japão escolhesse a hora certa, digamos quando os Estados Unidos estivessem às voltas com a Rússia, os Estados Unidos não poderiam fazer nada para ajudar a Austrália. Acho que eles fariam um acordo e...
— Dirty Duncan perdeu o juízo, Charlie — dissera Scragger.
— Tem razão — concordara Pettikin. — Ele só está implicando com você, Scrag.
— Oh, não, não estou. O seu verdadeiro protetor é a China. Aconteça o que acontecer, a China estará sempre lá. E só a China sempre terá condições de deter o Japão, caso este fique suficientemente poderoso para se expandir para o sul. Meu Deus, a Austrália é o grande prêmio do Pacífico, a arca do tesouro do Pacífico, mas nenhum dos caras lá se preocupam em planejar para o futuro ou em usar essa vantagem. Tudo o que vocês querem são três dias de folga por semana, com mais salário por menos trabalho, escola gratuita, serviço médico gratuito, previdência gratuita, e que outros idiotas cuidem da defesa. Vocês são piores do que a pobre e velha Inglaterra que não tem nada! O verdadeiro pro...
— Vocês têm o petróleo do mar do Norte. E se isso não é uma sorte dos diabos eu...
— O problema mesmo é que vocês, imbecis, não sabem distinguir entre o seu cú e um buraco na parede.
— Sente-se Scrag! — dissera Pettikin, ameaçadoramente. — Você concordou em não brigar. Tente acertar Mac quando não estiver bêbado, se não vai acabar na sarjeta. Ele pode ter pressão alta, mas ainda é faixa-preta.
— Eu acertar Dirty Duncan? Você deve estar brincando, cara. Eu não bato em velhos...
Scragger sorriu consigo mesmo, relembrando a bebedeira que tomaram para se despedir das bebedeiras. Cingapura é um bom lugar, pensou, depois tornou a prestar atenção no navio, sentindo-se melhor, bem-alimentado e muito satisfeito do navio já estar carregado.
A noite foi ótima. Bem acima dele, viu as luzes de navegação de um avião que ia em direção a oeste e ficou imaginando para onde ele iria, qual seria a linha aérea e quantos passageiros estariam a bordo. Sua visão noturna era excelente e podia ver que, agora, os homens na barcaça tinham quase acabado de desatarraxar o cano. Quando este fosse içado para bordo, o petroleiro poderia partir. De madrugada, o Rikomaru estaria no estreito de Ormuz e ele decolaria e voaria para casa em Lengeh com de Plessey.
De repente, seus olhos alerta viram alguns homens se afastarem correndo do ponto de junção do duto, meio iluminado pelos holofotes, que ficava bem no início da praia. Sua atenção se concentrou neles.
Houve uma pequena explosão e, em seguida, um clarão de fogo quando o óleo incendiou. Todos a bordo observavam perplexos. As chamas começaram a se espalhar, e eles ouviram gritos — em farsi e em francês — vindos de terra. Homens corriam, saindo das barracas e da área dos reservatórios. De repente, o ruído feio de uma metralhadora disparada na escuridão. Pelo sistema de alto-falantes do navio, ouviu-se a voz do capitão falando em japonês:
— Posição de combate!
Imediatamente, os homens na barcaça redobraram seus esforços, apavorados que o fogo pudesse espalhar-se pelo cano até a barcaça e esta explodisse. Assim que o bocal se soltou da válvula, os iranianos pularam para o barco e fugiram, tendo terminado seu trabalho. O engenheiro francês e um marujo japonês correram pela prancha enquanto o guincho do navio começava a arrastar o cano para bordo.
Sob o tombadilho, a tripulação correra para colocar-se em posição de defesa, alguns na casa de máquinas, alguns na ponte, outros nos passadiços principais. Por um momento, os três iranianos que controlavam o fluxo de combustível do navio foram deixados sozinhos. Eles correram para o tombadilho.
Um deles, Said, fingiu que tropeçava e caía perto da entrada do tanque principal. Quando teve certeza de que não estava sendo observado, abriu rapidamente as calças e pegou a pequena bomba de explosivo plástico que passara despercebida quando o revistaram ao subir a bordo. Tinha prendido a bomba na parte interior da coxa, bem em cima, entre as pernas. Rapidamente, ativou o detonador químico que explodiria em uma hora, prendeu a bomba atrás da válvula principal e correu para o passadiço. Quando chegou no tombadilho, ficou perplexo ao ver que os homens que estavam na barcaça não tinham esperado por ele e que o barco já estava quase na praia. Os outros dois iranianos discutiam excitadamente, também enfurecidos por terem sido deixados a bordo. Nenhum deles pertencia à sua organização de esquerda.
Na praia, o óleo derramado estava incendiando, mas o bombeamento fora interrompido e o vazamento isolado. Três homens tinham-se queimado muito, um francês e dois iranianos. O carro de bombeiro despejava água salgada nas chamas, retirando-a do golfo. Não havia vento e a fumaça negra tornava ainda mais difícil o combate ao fogo.
— Despejem um pouco de espuma — gritou Legrande, o administrador francês. Quase louco de ódio, ele tentou conseguir um pouco de ordem, mas todo mundo corria de um lado para o outro sob os holofotes, sem saber o que fazer. — Jacques, junte todo mundo e vamos contar o pessoal. O mais depressa que puder. — Contaram ao todo sete franceses e trinta iranianos na ilha. A equipe de segurança, formada por três homens, saiu correndo no meio da escuridão, sem armas a não ser bastões malfeitos, sem saber qual a próxima sabotagem nem de onde viria.
— M'sieur — acenava o médico iraniano para Legrande. Legrande caminhou em direção à praia, para o sistema de canos e válvulas que ligavam os tanques à barcaça. O médico ajoelhava-se ao lado de dois dos feridos que estavam deitados num pedaço de lona, inconscientes e em choque. Um deles tivera o cabelo inteiramente queimado, bem como a maior parte do rosto, o outro foi atingido por um jato de óleo, na explosão inicial, que incendiara instantaneamente suas roupas, causando-lhe queimaduras de primeiro grau por quase todo o corpo.
— Madonna — murmurou Legrande e fez o sinal-da-cruz, ao ver a pele toda queimada, mal reconhecendo seu capataz iraniano.
Um dos engenheiros franceses estava sentado, dobrado em dois, gemendo baixinho, com os braços e as mãos queimados. Entremeava sua agonia a uma torrente constante de palavrões.
— Vou levá-lo para o hospital o mais depressa que puder, Paul.
— Encontre esses filhos da puta e queime-os — rosnou o engenheiro e depois tornou a se concentrar no seu sofrimento.
— Claro — disse Legrande, sentindo-se impotente, e falou para o médico
— Faça o que puder, vou solicitar uma emergência. — Correu para a sala de rádio que ficava em uma das barracas, com os olhos se ajustando à escuridão. Então notou dois homens do outro lado da pista, subindo pela trilha de uma pequena elevação. Do outro lado da elevação, havia uma enseada com um cais, usado para velejar e nadar. Aposto que os filhos da puta têm um barco lá, pensou na mesma hora. Então, transtornado de raiva, gritou na direção deles:
— Filhos da puuuuta!
Quando houve a primeira explosão, de Plessey tinha corrido para o rádio, localizado na ponte, através do qual o navio se comunicava com a praia.
— Vocês já acharam essa metralhadora? — perguntou ao subgerente da base, em francês. Ao lado dele, Scragger, Kasigi e o capitão estavam igualmente tensos. As luzes da ponte estavam fracas. Lá fora, a lua brilhava alta.
— Não, m'sieur. Depois da primeira rajada, os atacantes desapareceram.
— Quai foi o dano causado ao sistema de bombeamento?
— Não sei. Estou esperando por um... ah, um momento, m'sieur Legrande está aqui. — Depois de um momento ouviu-se de novo em francês:
— Aqui é Legrande. Três queimados, dois iranianos em estado grave, o outro é Paul Beaulieu, mãos e braços. Peçam uma emergência imediatamente. Vi dois homens se dirigindo para a enseada, provavelmente os sabotadores, e eles devem ter um barco lá. Estou reunindo todo mundo para ver quem está faltando.
— Sim, imediatamente. E os danos?
— Não são muito graves. Com sorte, consertaremos tudo em uma semana; com certeza estará tudo consertado para a chegada do próximo petroleiro.
— Irei para terra assim que puder. Espere um momento! — De Plessey olhou para os outros e contou-lhes o que Legrande dissera. Scragger disse imediatamente:
— Eu me encarregarei da emergência, não é preciso solicitá-la.
— Tragam os feridos para o navio; nós temos uma sala de cirurgia e um médico. Ele é muito experiente, especialmente com queimaduras — disse Kasigi.
— Ótimo! — Scragger saiu correndo.
— Nós vamos lidar com a emergência aqui. Ponham os homens em maças.
O capitão Scragger vai trazê-los para bordo imediatamente. Há um médico aqui — disse de Plessey, ao microfone.
Um jovem oficial japonês entrou e falou rapidamente com o capitão, que sacudiu a cabeça, respondeu sumariamente e depois explicou em inglês a de Plessey:
— Os três iranianos que foram deixados a bordo, quando os outros que estavam na barcaça fugiram, querem ser levados para terra imediatamente. Eu disse que eles podiam esperar. — Então chamou a sala de máquinas, preparando-se para avançar.
Kasigi olhava para a ilha. E para os tanques. Preciso daquele óleo, pensou, e preciso que a ilha fique a salvo. Mas ela não está a salvo e nada do que eu possa fazer vai mantê-la a salvo.
— Vou até a praia — disse de Plessey e saiu. Scragger já estava no 206, tirando as portas de trás.
— O que está fazendo, Scrag? — perguntou de Plessey.
— Posso colocar a maca no assento de trás e prendê-la bem. É mais rápido do que montar um guincho para carregar as maças.
— Vou com você.
— Pule para dentro!
Uma algazarra chamou a atenção deles. Eram os três iranianos que tinham vindo correndo e gesticulavam com veemência. Estava claro que queriam ir para terra no helicóptero.
— Vamos levá-los, Scrag?
Scragger já estava sentado no lugar do piloto, com os dedos apertando os botões.
— Não, você tem uma emergência, eles não. Entre, meu velho. — Apontou para o assento da direita e depois fez sinal para os iranianos se afastarem. — Nah, ajaleh daram. Não, estou com pressa — disse, usando uma das poucas expressões em farsi que conhecia. Dois deles recuaram obedientemente. O terceiro, Said, escorregou para o assento traseiro e começou a amarrar o cinto. Scragger sacudiu a cabeça, fazendo sinal para ele descer. O homem não deu atenção, falou rapidamente, forçou um sorriso e apontou para a praia.
Impacientemente, Scragger fez sinal para ele sair, com um dos dedos apertando o botão para ligar o motor. Este pegou instantaneamente. Mais uma vez o homem se recusou a sair e, zangado, apontou para a praia, com a voz abafada pelo barulho do motor. Por um momento, Scragger pensou, sim, por que não? Então notou o suor pingando do rosto do homem, seu macacão ensopado de suor, e como que farejou-lhe o medo.
— Fora! — disse, estudando-o cuidadosamente.
Said não lhe deu atenção. Acima deles, as hélices giravam devagar, ganhando velocidade.
— Deixe-o ficar — gritou de Plessey. — É melhor irmos depressa. Repentinamente, Scragger desligou o motor e com uma força enorme para um homem tão pequeno, soltou o cinto de Said e jogou o homem no tombadilho, meio desmaiado, antes que alguém soubesse o que estava acontecendo. Pôs as mãos em torno da boca e gritou para a ponte:
— Ei, aí em cima! Kasigi! Este cara está ansioso demais para cair fora.
Ele não estava lá em baixo? — Sem esperar pela resposta, tornou a pular para a cabine e ligou o motor.
— O que foi que você viu naquele homem? — perguntou-lhe de Plessey. Scragger deu de ombros. Antes mesmo dos motores terem alcançando força total, os marinheiros já tinham agarrado o homem e mais os outros dois e os levaram para a ponte.
O 206 foi como uma flecha até a praia. Os dois feridos já estavam em maças. Rapidamente, uma das maças foi amarrada no lugar do banco de trás. Scragger ajudou o francês ferido, que estava com as mãos e os braços enfaixados, a se sentar no banco da frente, ao lado dele, e tentando não sentir o mau cheiro, levantou vôo e retornou, pousando como uma pluma. Os enfermeiros e o médico esperavam com plasma e morfina já preparados.
Em segundos, Scragger tornou a ir até a praia. Em mais alguns segundos a outra maca estava no lugar e ele já estava de volta, pousando suavemente. Mais uma vez o médico esperava, com a agulha preparada, e mais uma vez ele se abaixou e correu em direção à maca, sob as hélices que giravam. Desta vez, porém, ele não usou a agulha.
— Sinto muito — disse num inglês hesitante. — Este homem está morto. — Depois, mantendo a cabeça abaixada, ele se dirigiu rapidamente ao seu consultório. Os enfermeiros retiraram o corpo.
Depois que Scragger já tinha parado e estava com tudo desligado e seguro, ele foi até a amurada do navio e vomitou violentamente. Desde que tinha visto, ouvido e cheirado um piloto num bimotor em chamas, há muitos e muitos anos, era um pesadelo para ele pensar que poderia se ver na mesma situação. Nunca fora capaz de suportar o cheiro de queimado de carne e de cabelo humanos.
Depois de algum tempo, enxugou a boca, respirando ar puro, e abençoou a sua sorte. Tinha sido derrubado três vezes, duas delas pegando fogo, mas sempre conseguira escapar são e salvo. Várias vezes tinha sido obrigado a fazer uma cambalhota com o helicóptero para salvar-se e aos passageiros, por duas vezes na selva e sobre as árvores, uma vez com um motor pegando fogo. Mas o meu nome não estava na lista, pensou — pelo menos dessas vezes. Ouviu passos se aproximando. Virou-se e viu Kasigi que atravessava o tombadilho com uma garrafa de cerveja Kirin gelada em cada mão.
— Perdoe-me por favor, mas aqui está — disse Kasigi, gravemente, oferecendo a cerveja. — Queimaduras me causam a mesma coisa. Eu também passei mal. Eu... eu fui até a sala de operações para ver como os feridos estavam e... passei muito mal.
Scragger bebeu agradecido. O líquido gelado, com sabor de lúpulo, com bolhas que faziam cócegas enquanto ele bebia, reanimou-o.
— Jesus Cristo, como isso estava bom. Obrigado, cara. — E tendo dito isso uma vez foi fácil dizer de novo. — Obrigado, cara. — Kasigi ouviu aquilo duas vezes e considerou uma grande vitória. Os dois olharam para o marinheiro que se aproximava rapidamente deles com uma mensagem na mão. Entregou-a a Kasigi, que foi para perto da luz mais próxima, pôs os óculos e leu. Scragger viu-o ofegar e ficar cada vez mais pálido.
— Más notícias?
— Não... só... só problemas — disse Kasigi, hesitante.
— Há alguma coisa que eu possa fazer?
Kasigi não respondeu. Scragger esperou. Podia ver o turbilhão nos olhos do homem embora não no seu rosto, e tinha certeza que Kasigi estava tentando decidir se contava ou não a ele. Então Kasigi disse:
— Acho que não. É... É a respeito do nosso pólo petroquímico em Bandar Delam.
— O que o Japão está construindo? — Como todo mundo no golfo, Scragger sabia a respeito do fabuloso empreendimento de três e meio bilhões de dólares que, quando estivesse pronto, seria o maior complexo petroquímico da Ásia Menor e do Oriente Médio, tendo como setor principal uma fábrica de trezentas mil toneladas de etileno. Vinha sendo construído desde 1971 e estava quase pronto. — É uma fábrica e tanto.
— Sim, mas está sendo construída pela indústria privada japonesa, não pelo governo japonês — disse Kasigi. — A fábrica Irã-Toda está sendo financiada pela iniciativa privada.
— Ah — disse Scragger, entendendo onde ele queria chegar. — Navegação Toda, lrã-Toda? Vocês são uma mesma companhia?
— Sim, mas nós somos apenas uma parte do grupo japonês que forneceu dinheiro e assistência técnica para o xá... para o Irã. — Kasigi corrigiu-se. Que todos os deuses, grandes e pequenos, amaldiçoem esta terra, e todos os que vivem nela, amaldiçoem o xá por criar toda essa crise do petróleo, amaldiçoem a OPEP, amaldiçoem todos os fanáticos e mentirosos que vivem aqui. Olhou para a mensagem outra vez e ficou satisfeito em ver que sua mão não estava mais tremendo. O comunicado, escrito no código particular usado pelo seu presidente, Hiro Toda, dizia:
"URGENTE. Devido à intransigência contínua e absoluta do Irã, ordenei, finalmente, que interrompessem por completo a obra em Bandar Delam. O custo atual ultrapassa 550 milhões de dólares e chegaria, provavelmente, a um bilhão, antes que pudéssemos iniciar a produção. Atualmente, estamos pagando juros de 495 mil dólares por dia. Devido à infame pressão secreta exercida pela 'Espada Partida', o nosso Plano de Contingência 4 foi rejeitado. Vá, com urgência, para Bandar Delam e apresente-me um relatório pessoal. O engenheiro-chefe, diretor Watanabe, o aguarda. Por favor acuse recebimento."
E impossível chegar lá, pensou Kasigi, desanimado. E se o Plano 4 foi rejeitado, estamos arruinados.
O Plano de Contingência 4 recomendava que Hiro Toda tentasse conseguir com o governo japonês empréstimos a juros baixos para cobrir os déficits e, ao mesmo tempo, discretamente, que o primeiro-ministro declarasse o complexo da Irã-Toda em Bandar Delam um 'Projeto Nacional'. 'Projeto Nacional' significava que o governo reconhecia a natureza vital do empreendimento e o patrocinaria até o final. 'Espada Partida' era a expressão que usavam para designar o inimigo pessoal e maior rival de Toda, Hideyoshi Ishida, que liderava o poderosíssimo grupo de companhias conhecidas sob o nome geral de Mitsuwari.
Que todos os deuses amaldiçoem aquele verme ciumento e mentiroso do Ishida, pensava Kasigi, quando disse:
— A minha companhia é apenas uma das muitas do grupo.
— Eu sobrevoei a sua fábrica uma vez — disse Scragger —, indo da nossa base para Abadan. Estava transportando um 212. Você está tendo problemas
— Temporários... — Kasigi parou e olhou para ele. As partes de um plano se encaixaram em sua cabeça. — Alguns problemas temporários... importantes, mas temporários. Como você sabe, temos tido muitos problemas desde o início, e nenhum deles por culpa nossa. Primeiro foi fevereiro de 1971, quando 23 produtores de petróleo assinaram o acordo de preços da OPEP, formaram o seu cartel e dobraram o preço para US$2,16... depois a Guerra do Yom Kippur em 1973, quando a OPEP cortou o fornecimento dos Estados Unidos e elevou o preço para US$5,12. Depois a catástrofe de 1974, quando a OPEP reiniciou o fornecimento mas tornou a dobrar os preços, para US$10,95 e iniciou uma recessão mundial. Por que os Estados Unidos permitiram que a OPEP destruísse a economia mundial, quando só eles tinham o poder de esmagá-los, é uma coisa que nunca saberemos. Baka! E agora nós somos um joguete para a OPEP, o nosso maior fornecedor, o Irã, está vivendo uma revolução, o petróleo está custando quase vinte dólares o barril e nós temos que pagar, não há outro jeito. — Fechou o punho para dar um soco na amurada, depois abriu a mão, aborrecido com sua falta de controle. — Quanto à Irã-Toda — disse, esforçando-se para aparentar calma —, como todo mundo, nós achamos os iranianos muito... muito difíceis de lidar nestes últimos anos. — Apontou para a mensagem. — O meu presidente me ordenou que fosse para Bandar Delam.
— Isso vai ser arriscado e difícil — disse Scragger, depois de um assovio.
— Sim.
— É importante?
— Sim. Sim, é. — Kasigi deixou que isso ficasse pairando no ar, certo de que Scragger sugeriria a solução. Na praia, a área em torno do sistema de válvulas sabotado, encharcada de óleo, ainda queimava. No momento, o carro de bombeiro espalhava espuma. Podiam ver de Plessey ali perto, conversando com Legrande.
— Ouça, meu velho — disse Scragger —, você é um cliente importante de de Plessey, não é? Ele poderia lhe arranjar um vôo. Nós temos um 206 de reserva. Se ele concordasse... todos os nossos aparelhos foram contratados pela IranOil, o que significa por de Plessey, talvez conseguíssemos permissão do controle de tráfego aéreo para levá-lo pela costa; ou se você conseguisse permissão da Imigração em Lengeh, talvez pudéssemos levá-lo através do golfo para Dubai ou Al Shargaz. De lá, talvez você consiga um vôo para Abadan ou Bandar Delam. De qualquer maneira, meu chapa, de Plessey pode conseguir a etapa inicial.
— Você acha que ele o faria?
— Por que não? Você é importante para ele.
Kasigi estava pensando. É claro que somos muito importantes para ele e ele sabe disso. Mas eu nunca vou esquecer aquele ágio de dois dólares por barril.
— Desculpe, o que foi que você disse?
— Eu disse, o que fez vocês iniciarem o projeto, afinal de contas? É bem longe de casa e tinha que trazer muitos problemas. O que fez vocês começarem?
— Um sonho. — Kasigi gostaria de ter acendido um cigarro, mas só era permitido fumar em algumas áreas à prova de incêndio. — Há onze anos, em 1968, um homem chamado Banjiro Kayama, um engenheiro que trabalhava na minha companhia e era parente do nosso presidente, Hiro Toda, estava passando de carro pelos campos de petróleo em volta de Abadan. Era sua primeira visita ao Irã e em toda parte que ele foi, viu jatos de gás natural queimando. De repente, ele teve uma idéia: por que não podemos transformar todo este gás desperdiçado em petroquímicos? Nós temos a tecnologia e a experiência e somos do tipo que planeja a longo prazo. A habilidade e o dinheiro japoneses aliados às matérias-primas iranianas que eram, então, totalmente desperdiçadas! Uma idéia brilhante, rara e pioneira! O planejamento inicial levou três anos, o tempo estritamente necessário, embora rivais ciumentos dissessem que andamos depressa demais, ao mesmo tempo que tentavam roubar nossas idéias e envenenar outras pessoas contra nós. Mas o plano Toda foi para a frente e os três e meio bilhões de dólares foram levantados. Evidentemente, nós somos só uma parte do grupo Gyokotomo-Mitsuwari-Toda, mas os navios Toda transportarão a parte que cabe ao Japão dos produtos que nossas indústrias necessitam desesperadamente. — Se conseguirmos terminar as instalações, pensou desanimado.
— E agora o sonho virou um pesadelo? — perguntou Scragger. — Eu não ouvi... não se disse que o projeto estava sem dinheiro?
— Os inimigos espalham todo tipo de rumores. — Sob o ronco constante dos geradores do navio, seus ouvidos escutaram o início de um grito que ele já estava esperando, surpreso de que tivesse demorado tanto para ouvi-lo. — Quando de Plessey voltar para o navio, você me ajudará?
— Com prazer. Ele é o homem que... — Scragger parou. Mais uma vez o grito. — As queimaduras são terrivelmente dolorosas.
Kasigi balançou a cabeça.
Um novo jato de fogo atraiu a atenção deles para a praia. Observaram os homens que estavam lá. Agora o fogo estava quase sob controle. Outro grito. Kasigi procurou não prestar atenção, com a cabeça em Bandar Delam e na resposta que tinha que mandar para Hiro Toda. Se alguém pode resolver este problema, esse alguém é Hiro Toda. Ele tem que resolver. Se não o fizer, estou arruinado, o fracasso dele é também o meu.
— Kasigi-san! — Era o capitão chamando da ponte.
— Hai!
Scragger escutou a torrente de japonês que vinha do capitão, e o som do japonês não era agradável aos seus ouvidos.
— Domo — Kasigi respondeu, parecendo estarrecido; depois falou com urgência para Scragger, esquecendo tudo o mais — Vamos! — E foi correndo na frente em direção ao passadiço. — O iraniano, você se lembra, o que você expulsou do helicóptero? Ele é um Sabotador e colocou uma bomba lá embaixo.
Scragger seguiu Kasigi através da escotilha, desceu os degraus do passadiço de dois em dois, correu pelo corredor, desceu de um convés para outro e então se lembrou dos gritos. Bem que eu achei que eles vinham da ponte e não lá de baixo!, disse a si mesmo. O que será que fizeram com ele?
Chegaram onde estava o capitão e o engenheiro-chefe. Dois marinheiros furiosos vinham arrastando o aterrorizado Said. Lágrimas corriam pelo seu rosto e ele balbuciava incoerentemente, com uma das mãos segurando as calças. Parou, tremendo e gemendo, e apontou para a válvula. O capitão ficou de cócoras. Com muito cuidado, colocou a mão atrás da enorme válvula. Então levantou-se. O explosivo plástico estava na mão dele. O mecanismo de tempo era químico, um frasco enterrado no explosivo e preso firmemente por uma fita adesiva.
— Desligue-o — disse zangado em farsi e estendeu-o para o homem que recuou, gaguejando e gritando.
— Não se pode desligá-lo. Já está atrasado para explodir... não compreende!
— Ele diz que está atrasado! — Traduziu o capitão, paralisado. Antes que pudesse se mexer, um dos marinheiros tirou o explosivo de suas mãos e arrastando Said com ele, empurrando-o para a frente, correu para o passadiço. Não havia vigias nesse convés mas havia no outro. A vigia mais próxima ficava em um canto do corredor, presa por dois pesados parafusos de borboleta. Ele quase atirou Said sobre ela, gritando que a abrisse. Com a mão livre, começou a desatarraxar um lado. A borboleta caiu, depois a de Said. O marinheiro abriu a vigia. Neste instante, a bomba explodiu e arrancou suas mãos, a maior parte do seu rosto e despedaçou a cabeça de Said, espalhando sangue por toda parte.
Os outros, que estavam subindo, quase foram lançados de volta ao passadiço com a explosão. Kasigi aproximou-se e ajoelhou ao lado dos corpos. Sacudiu a cabeça como se estivesse entorpecido.
— Carma — murmurou o capitão, quebrando o silêncio.
13
EM TEERÃ: 20:33H. Depois de deixar McIver perto do seu escritório, Tom Lochart fora para casa — alguns desvios, alguns policiais zangados, mas nada de muito inconveniente. Morava em um belo apartamento de cobertura num edifício moderno de seis andares, na melhor área residencial da cidade — um presente de casamento do sogro. Xarazade esperava por ele, e se pendurou no seu pescoço, beijando-o apaixonadamente. Pediu que ele sentasse em frente ao fogo, tirou-lhe os sapatos, correu para apanhar um pouco de vinho, que estava exatamente na temperatura que ele gostava, trouxe-lhe uns aperitivos dizendo que o jantar logo estaria pronto, correu para a cozinha e na sua voz suave e cantada, apressou a empregada e o cozinheiro dizendo que o senhor estava em casa e com fome, depois voltou e se sentou aos pés dele — no chão coberto de tapetes luxuosos — com os braços em volta dos joelhos, adorando-o.
— Estou tão feliz em vê-lo, Tommy, senti tanto a sua falta — seu inglês era adorável. — Oh, eu me diverti muito ontem e hoje.
Ela usava calças persas de seda leve e uma blusa comprida e folgada e, para ele, era absolutamente maravilhosa. E desejável. Dentro de poucos dias ela faria 23 anos. Ele tinha 42. Estavam casados há quase um ano e ele ficara enfeitiçado desde o primeiro momento em que a viu.
Isso aconteceu há pouco mais de três anos, num jantar em Teerã dado pelo general Valik. Era início de setembro, exatamente o final das férias de verão na Inglaterra, e Deirdre, a mulher de Tom, estava na Inglaterra com a filha deles, passando as férias, e justamente naquela manhã ele tinha recebido outra carta irritada dela, insistindo que ele escrevesse a Gavallan para solicitar uma transferência imediata: "Eu odeio o Irã, não quero mais viver aí. A Inglaterra é tudo o que quero, tudo o que Mônica quer. Por que você não pensa em nós, para variar, ao invés de pensar nos seus malditos aviões e na sua maldita companhia? Toda a minha família está aqui, todos os meus amigos estão aqui, e todos os amigos de Mônica estão aqui. Já estou farta de morar no estrangeiro e quero ter minha própria casa, perto de Londres, com um jardim, ou até mesmo na cidade — há várias pechinchas em Putney e Clapham Common. Estou farta de estrangeiros e postos no estrangeiro, e não agüento mais a comida iraniana, a sujeira, o calor, o frio, essa língua horrorosa, esses banheiros horrorosos, ter que me agachar como um animal, e os hábitos horríveis, os modos — tudo. Está na hora de resolvermos nossa situação, enquanto ainda sou jovem..."
— Excelência?
O garçom empertigado e sorridente apresentou-lhe uma bandeja de drinques, na maioria bebidas não-alcoólicas. Muitos muçulmanos da classe média e alta bebiam na intimidade de suas casas, poucos em público — havia todo tipo de vinhos e bebidas alcoólicas à venda em Teerã, e também nos bares de todos os hotéis modernos. Não havia nenhum tipo de restrição quanto a estrangeiros beberem em público ou em particular, ao contrário da Arábia Saudita — e alguns dos Emirados — onde qualquer pessoa que fosse apanhada bebendo, qualquer uma, estava sujeita ao castigo do açoite, determinado no Corão
— Mamoonan, obrigado — disse educadamente e aceitou um cálice do vinho branco persa que fora aperfeiçoado por quase três milênios, mal notando o garçom ou os outros convidados, incapaz de se livrar da depressão e irritado por ter concordado em ir à festa substituindo McIver, que fora chamado ao QG, em Al Shargaz, do outro lado do golfo.
— Mas, Tom, você sabe falar farsi — dissera McIver, distraidamente; e alguém tem que ir. Sim, pensou, mas Mac bem que podia ter pedido a Charlie Pettikin.
Já eram quase nove horas, o jantar ainda não fora servido, ele estava em pé, perto de uma das portas que davam para os jardins, olhando para fora, para os candelabros e para os gramados, onde tinham estendido belíssimos tapetes em que alguns convidados sentavam-se ou reclinavam-se, enquanto outros estavam em pé, em grupos, sob as árvores ou perto do pequeno lago. A noite era suave e estrelada, a casa rica e espaçosa — no bairro de Shemiran, ao pé das montanhas Elburz — e a festa lhe parecia igual a quase todas as outras, onde, como ele sabia falar farsi, era sempre bem-vindo. Todos os iranianos estavam muito bem vestidos, havia muita alegria e muitas jóias, comida em abundância nas mesas, tanto européia quanto iraniana, quente e fria, conversava-se sobre a última peça de Londres ou Nova York ou "Você vai esquiar em St. Moritz ou vai passar o verão em Cannes", sobre o preço do petróleo e os mexericos da corte e "Sua Majestade Imperial isso ou Sua Majestade Imperial aquilo", tudo pontilhado pela gentileza, elogios e cumprimentos extravagantes que eram tão necessários na sociedade iraniana — mantendo uma aparência calma, educada e gentil que raramente era penetrada por um estranho, muito menos por um estrangeiro.
Nessa época, ele estava trabalhando em Galeg Morghi, um aeroporto militar em Teerã, treinando pilotos da Força Aérea iraniana. Dentro de dez dias deveria partir para seu novo posto em Zagros, sabendo muito bem que esse novo esquema, de duas semanas em Zagros e uma semana em Teerã, enfureceria ainda mais sua mulher. Naquela manhã, num acesso de raiva, ele respondera à carta dela, enviando-a por entrega especial: "Se você quer ficar na Inglaterra, fique, mas pare de encher e pare de atacar o que não conhece. Compre a sua casa suburbana onde bem quiser — mas eu JAMAIS viverei lá. Jamais. Tenho um bom emprego, sou bem pago e gosto dele. Nós poderíamos ter uma vida boa se você abrisse os olhos. Você sabia que eu era um piloto quando nos casamos, sabia que esta era a vida que eu tinha escolhido, sabia que eu não iria morar na Inglaterra, sabia que é só isto o que sei fazer, de modo que não posso mudar agora. Pare de encher. Se você quer uma mudança, que seja... "
Para o inferno com tudo isso. Eu já estou cheio. Cristo, ela diz que odeia o Irã e tudo o que diz respeito ao Irã, mas não sabe nada a respeito do Irã, nunca saiu de Teerã, não quer sair, nem prova a comida e só visita umas poucas esposas inglesas — sempre as mesmas, uma minoria vulgar e intolerante, limitada, igualmente chateada e chata, com suas intermináveis partidas de bridge, seus intermináveis chás e seus "Mas querida, como você pode tolerar algo que não seja da Fortnums ou da Mark e Sparks?" — que adoram um convite para ir à embaixada britânica jantar mais um gorduroso rosbife com pudim de Yorkshire ou tomar chá com sanduíches de pepino e bolo, todas elas convencidas de que tudo que é inglês é o melhor do mundo, principalmente a cozinha britânica: cenouras cozidas, couve-flor cozida, batatas cozidas, repolho cozido, rosbife malpassado ou carneiro cozido demais como o ápice da perfeição...
— Oh, pobre Excelência, o senhor não parece nada feliz — ela tinha dito baixinho.
Tom olhara para ela e seu mundo se transformara.
— O que houve? — ela perguntou, com uma pequena ruga de preocupação no rosto oval.
— Desculpe — respondeu, por um instante sentindo-se desorientado, o coração disparando e com um aperto na garganta que nunca sentira antes. — Pensei que você fosse uma aparição, algo saído das Mil e uma noites, uma... — interrompeu-se, sentindo-se um tolo. — Sinto muito, estava a milhões de quilômetros daqui. Meu nome é Lochart, Tom Lochart.
— Eu sei — ela disse rindo. Tinha olhos castanhos luminosos. Seus lábios pareciam ter brilho, os dentes eram muito brancos, o cabelo escuro, comprido e ondulado e sua pele era da cor da terra iraniana, cor de oliva. Estava usando seda branca e um pouco de perfume e mal chegava à altura dos ombros dele. — O senhor é o terrível capitão que dá uma bronca no meu pobre primo Karim, pelo menos três vezes por dia.
— O quê? — Lochart estava achando difícil se concentrar. — Quem?
— Lá. — Ela apontou para o outro lado da sala. O jovem estava usando roupas civis e sorria para eles, e Lochart não o reconhecera como um dos seus alunos. Muito bonito, com cabelos escuros e encaracolados, olhos escuros e bem proporcionado. — O meu primo predileto, capitão Karim Peshadi, da Força Aérea Imperial iraniana. — Ela tornou a olhar para Lochart, com seus longos cí1ios negros. E novamente ele sentiu o coração disparar.
Controle-se, pelo amor de Deus! Que diabo está havendo com você?
— Eu, ahn, eu procuro não brigar com eles a não ser, ahn, a não ser que mereçam... é só para salvar a vida deles. — E tentava se lembrar da folha de serviços do capitão Peshadi, mas não conseguiu e, em desespero, passou a falar em farsi. — Mas, Alteza, se me der a estrema honra, se tiver a gentileza de conversar comigo e me conceder a honra de dizer o seu nome, eu prometo que... — Tentou encontrar a palavra certa, não conseguiu e substituiu. serei eterna-mente seu escravo, e é claro que farei com que Sua Excelência, o seu primo, passe com a nota máxima, na frente de todos os outros!
— Oh, Excelência — respondeu em farsi, batendo palmas, encantada. — Sua Excelência o meu primo não me disse que falava nossa língua! Oh, como as palavras ficam bonitas quando o senhor as pronuncia...
Quase fora de si, Lochart escutou os cumprimentos extravagantes que eram normais em farsi e ouviu-se respondendo da mesma forma — abençoando Scragger, que lhe dissera, há muitos anos atrás quando ele tinha entrado para a Sheila Aviation, depois de ter saído da RAF em 1965. “Se você quiser voar conosco, cara, é melhor aprender farsi porque eu não vou aprender!” — Pela primeira vez percebeu como o farsi era uma língua perfeita para falar de amor, para fazer insinuações.
— Meu nome é Xarazade Paknouri, Excelência.
— Então Sua Alteza saiu das Mil e uma Noites, afinal.
— Ah, mas não posso lhe contar nenhuma história, nem que jure que vai cortar minha cabeça! — E acrescentou em inglês, dando uma risada. — Eu era a ultima da minha classe em histórias.
— Impossível! — Contestou imediatamente.
— O senhor é sempre tão galante, capitão Lochart? — Os olhos dela o provocavam.
— Só com a mulher mais linda que eu já vi. — E ele se percebeu respondendo em farsi.
O rosto dela ficou vermelho. baixou os olhos e ele pensou, apavorado, que tinha estragado tudo, mas quando ela tornou a olhar para ele, seus olhos sorriam.
— Obrigada. O senhor tornou feliz uma velha senhora casada...
O copo lhe caiu das mãos e ele praguejou e apanhou-o, desculpando-se, mas ninguém notara, exceto ela.
— Você é casada? — deixou escapar, mas é claro que ela devia ser casada e, de qualquer modo, ele era casado e tinha uma filha de oito anos e não tinha direito algum de ficar aborrecido. Pelo amor de Deus, você está agindo como um lunático. Você enlouqueceu.
Então seus olhos e ouvidos entraram em foco.
— O quê? O que foi que disse?
— Oh, eu disse que fui casada... bem, ainda sou, por mais três semanas e dois dias, e que meu nome de casada é Paknouri. Meu nome de família é Bakravan... — Fez parar um garçom, apanhou um copo de vinho e deu a ele. Mais uma vez a ruga de preocupação — Tem certeza de que está bem, capitão?
— Oh, sim, oh, sim — respondeu rapidamente. — O que era mesmo que estava dizendo? Paknouri?
— Sim. Sua Alteza, emir Paknouri, era tão velho, tinha cinqüenta anos, era amigo do meu pai, e papai e mamãe acharam que seria bom para mim casar com ele e ele concordou, embora eu seja muito magra e não gorda e atraente, por mais que eu coma. É a Vontade de Deus. — Ela deu de ombros e sorriu e o mundo pareceu ficar mais brilhante. — Evidentemente eu concordei, mas com a condição que se não gostasse de estar casada depois de dois anos, nosso casamento terminaria. Então, no dia do meu 17º aniversário, nós nos casamos e eu não gostei logo de saída, e chorei e chorei e então, como não havia filhos depois de dois anos, nem depois do ano extra com que eu concordei, o meu marido, meu senhor, concordou gentilmente em se divorciar de mim e agora ele, graças a Deus, pode tornar a se casar e eu estou livre, mas infelizmente velha e...
— Você não é velha. Você é tão jovem..
— Oh, sim, velha!
Seus olhos estavam dançando e ela fingia estar triste, mas ele percebeu que ela não estava e se viu conversando com ela, rindo com ela, depois fazendo sinal ao seu primo para se juntar a eles, temendo que o primo fosse o homem da escolha dela, conversando com eles, aprendendo que seu pai era um importante bazaari, que sua família era grande, cosmopolita e bem relacionada, que a mãe era doente, que tinha irmãs e irmãos e que estudara na Suíça, mas só por meio ano, porque sentia muita saudade do Irã e da família. Depois jantou com eles, mostrando-se alegre e animado, mesmo com o general Valik, e foi a noite mais divertida que ele já tinha passado.
Ao deixar a festa, naquela noite, não foi para casa; tomou a estrada de Darband, subindo as montanhas, onde havia inúmeros cafés em belos jardins nas margens do rio, com mesas e cadeiras e divas suntuosamente estofados, onde se podia descansar, comer ou dormir, alguns deles projetados por sobre o rio, de modo que a água batia embaixo. E ficou deitado lá, olhando as estrelas, sabendo que estava diferente, sabendo que enlouquecera mas que seria capaz de vencer qualquer obstáculo, enfrentar qualquer provação, para se casar com ela.
E conseguira — embora o caminho tivesse sido duro e, muitas vezes, tivesse gritado de desespero.
— Em que está pensando, Tommy? — perguntou ela, sentando-se a seus pés, no lindo tapete que fora presente de casamento do general Valik.
— Em você — respondeu, adorando-a, sentindo as preocupações desaparecerem diante de sua ternura. A sala estava quente, como todo o enorme apartamento, e suavemente iluminada, com as cortinas fechadas e muitas almofadas espalhadas em volta, o fogo crepitando alegremente. — Mas a verdade é que eu penso em você o tempo todo.
— Isso é maravilhoso — disse, batendo palmas.
— Não vou mais para Zagros amanhã, só depois de amanhã.
— Oh, isto é ainda mais maravilhoso! — Abraçou os joelhos de Tom e encostou a cabeça neles. — Maravilhoso!
— Você disse que teve um dia interessante? — perguntou Tom, acariciando-lhe os cabelos.
— Sim, ontem e hoje. Fui até a sua embaixada e apanhei o passaporte, exatamente como você mandou..
— Ótimo. Agora você é canadense.
— Não, meu amor, iraniana... você é canadense. Ouça, a melhor parte é que fui a Doshan Tappeh — disse com orgulho.
— Cristo — exclamou sem querer, pois ela não gostava que blasfemasse. — Desculpe, mas isso... isso foi loucura, está havendo combate lá, você é louca em se arriscar dessa maneira.
— Oh, eu não estive no meio do combate — retrucou alegremente, e se levantou e saiu depressa, dizendo: — Vou lhe mostrar. — Num instante estava de volta. Tinha vestido um chador cinzento que a cobria dos pés à cabeça, além da maior parte do rosto, e ele detestou aquilo. — Ah, senhor — disse em farsi, fazendo uma pirueta na frente dele. — Não precisa se preocupar comigo. Deus me protege, e também o Profeta, cujo Nome seja louvado. — Parou, ao ver sua expressão. — O que foi? — perguntou em inglês.
— Eu... eu nunca a tinha visto de chador. É... não combina com você.
— Oh, eu sei que é feio e eu nunca o usaria em casa, mas na rua me sinto melhor usando, Tommy. Todos aqueles olhares horríveis dos homens. É tempo de todas nós voltarmos a usá-lo, bem como o véu.
— E todos os direitos que vocês conquistaram, direito de votar, de tirar o véu, de ir onde quiser, de se casar com quem quiser, de não serem mais as escravas que costumavam ser? Se vocês concordarem com o chador, vão perder todo o resto. — Ele estava chocado.
— Talvez sim, talvez não, Tommy.
Estava satisfeita de que estivessem falando em inglês para que ela pudesse discutir um pouco, o que seria inimaginável se se tratasse de um marido iraniano. E estava muito feliz por ter escolhido se casar com este homem que, inacreditavelmente, permitia que tivesse suas próprias opiniões, e o que era ainda mais espantoso, permitia que as expressasse livremente. O vinho da liberdade sobe facilmente à cabeça, pensou, é muito perigoso, muito difícil para uma mulher bebê-lo — como o néctar do jardim do paraíso.
— Quando o Reza Xá tirou o véu dos nossos rostos — disse —, ele também deveria ter tirado a obsessão da mente dos homens. Você não vai ao mercado, Tommy, nem dirige um carro, não como uma mulher. Não faz idéia do que seja. Os homens nas ruas, no bazar, no banco, em toda parte. São todos iguais. Pode-se ver os mesmos pensamentos, a mesma obsessão, em todos eles. Pensamentos a meu respeito que só você devia ter. — Tirou o chador, arrumou-o sobre uma cadeira, e tornou a sentar-se a seus pés. — De hoje em diante, eu o usarei na rua, como minha mãe e a mãe dela o fizeram antes de mim, não por causa de Khomeini, que Deus o proteja, mas por sua causa, meu amado esposo.
Beijou-o de leve e sentou-se nos joelhos dele e Tom percebeu que estava decidido. A não ser que ele ordenasse o contrário. Mas aí haveria problemas em casa, pois era realmente um direito dela decidir sobre isso. Ela era iraniana, seu lar era iraniano, e seria sempre no Irã — isso fazia parte do seu acordo com o pai dela — então o problema seria iraniano e a solução iraniana: dias e dias de longos suspiros e olhares suplicantes, algumas lágrimas, pequenos favores abjetos, de escrava, soluços discretos à noite, nunca uma palavra ou um olhar de raiva para perturbar a paz de um marido, um pai ou um irmão. Lochart às vezes a achava difícil de entender.
Faça como quiser, mas nada de Doshan Tappeh — disse, acariciando-lhe os cabelos. Estes eram finos e sedosos e brilhavam como só na juventude O que houve lá?
— Oh, foi tão excitante. — E seu rosto iluminou-se. — Os Imortais, mesmo eles, a tropa de elite do xá, não conseguiram expulsar os fiéis. Houve tiros por toda parte. Eu estava em segurança, minha irmã Laleh estava comigo, além do meu primo Ali e da esposa dele. O primo Karim também estava lá. Ele se declarou a favor do Islã e da revolução, bem como vários outros oficiais, e ele nos disse onde e como encontrá-lo. Havia umas duzentas mulheres, todas de chador, e nós não paramos de entoar 'Deus é grande, Deus é grande', então alguns soldados se passaram para o nosso lado. Imortais! — Seus olhos se arregalaram. — Imagine, até os Imortais estão começando a enxergar a verdade!
Lochart ficou horrorizado com o risco que ela correra, indo até lá sem pedir ou contar a ele, mesmo estando acompanhada. Até então, a revolução e Khomeini pareciam não afetá-la, exceto no início, quando os problemas realmente começaram e ela ficara aterrorizada com a segurança do pai e dos parentes que eram comerciantes e banqueiros importantes, e bem conhecidos por suas ligações com a corte. Felizmente seu pai sossegara todas as preocupações deles ao cochichar para Lochart que seus irmãos e ele estavam secretamente apoiando Khomeini e a revolta contra o xá e que já vinham fazendo isso há anos. Mas agora, pensou, agora, se os Imortais estão cedendo e jovens oficiais de alto escalão como Karim estão apoiando abertamente a revolta, o derramamento de sangue será incontrolável.
— Quantos se passaram para o outro lado? — perguntou, tentando decidir o que fazer.
— Só três se juntaram a nós, mas Karim disse que isso é um bom começo e que qualquer dia Bakhtiar e os seus canalhas vão fugir como o xá.
— Ouça, Xarazade, o governo britânico e o canadense ordenaram hoje que todos os dependentes saíssem do Irã por algum tempo. Mac está mandando todo mundo para Al Shargaz até que as coisas esfriem um pouco.
— É sensato, sim, muito sensato.
— Amanhã vai chegar o 125. Vai levar Genny, Manuela, você e Azadeh amanhã, então arrume a...
— Oh, eu não vou partir, meu querido, não há necessidade. E por que Azadeh vai embora? Não há nenhum perigo para nós, papai certamente saberia se houvesse perigo. Você não precisa se preocupar... — Ela viu que o copo de vinho dele estava quase vazio, então levantou-se rapidamente, tornou a enchê-lo e voltou. — Eu estou perfeitamente segura.
— Mas acho que você estaria mais segura fora do Irã, por algum tempo.
— É maravilhoso você se preocupar comigo, meu querido, mas não há nenhum motivo para que eu vá, vou perguntar a papai amanhã, ou você pode... — Uma pequena acha de lenha caiu da lareira. Ele começou a se levantar mas ela já estava lá. — Deixe que eu vejo isso. Descanse, meu querido, você deve estar cansado. Talvez amanhã você tenha tempo para ir comigo ver papai. — Rapidamente, ajeitou o fogo. Seu chador estava numa cadeira próxima. Ela viu o olhar de Tom. A sombra de um sorriso passou por seus lábios.
— O que foi?
Em resposta, ela simplesmente sorriu de novo, apanhou o chador e atravessou a sala correndo com vivacidade em direção à cozinha.
Inquieto, Lochart ficou olhando o fogo, tentando pôr em ordem seus argumentos, sem querer impor-lhe nada. Mas eu o farei, se for obrigado. Meu Deus, tantos problemas. Charlie desaparecido, Kowiss numa confusão, Kyabi assassinado, e Xarazade no meio de um conflito! Ela é louca! Que absurdo se arriscar dessa maneira! Se eu a perdesse, morreria. Meu Deus, seja quem for, esteja onde estiver, proteja-a...
A sala era grande. No extremo oposto ficava a mesa e doze cadeiras. Geralmente usavam a sala à maneira iraniana, sentados no chão, com uma toalha aberta para os pratos, encostados em almofadas. Raramente usavam sapatos e nunca saltos que pudessem estragar os grossos tapetes. Havia cinco quartos, três banheiros, duas salas de estar — uma usada por eles, ou quando tinham companhia, a outra, muito menor, no outro extremo do apartamento, era, segundo o costume, para ela ficar quando ele tivesse que discutir negócios ou quando ela recebesse a visita da irmã, das amigas ou de outros parentes, para que pudessem conversar sem perturbá-lo. Em volta de Xarazade havia sempre movimento, a família estava sempre por perto, crianças, babás — exceto depois do pôr-do-sol, embora com freqüência parentes ou amigos se hospedassem lá.
Ele nunca se importou, pois eles eram uma família alegre e unida. Também fazia parte do acordo com o pai dela que ele aprenderia pacientemente os costumes do Irã, viveria pacientemente, segundo os costumes do Irã, por três anos e um dia. Então poderia escolher morar fora do Irã com Xarazade, por algum tempo, se precisasse.
— Porque então — seu pai, Jared Bakravan, dissera gentilmente —, com a ajuda do Verdadeiro Deus e do Profeta de Deus, que suas palavras possam viver para sempre, então você já terá sabedoria suficiente para fazer a escolha correta, pois com certeza vocês já terão filhos e filhas, porque apesar da minha filha ser magra, divorciada e ainda não ter filhos, não acho que ela seja estéril.
— Mas ela ainda é tão jovem. Podemos achar que ainda é muito cedo para ter filhos.
— Nunca é cedo demais — dissera Bakravan com severidade. — Os Livros Sagrados são muito claros. Uma mulher precisa de filhos. Um lar precisa de crianças. Sem filhos, uma mulher segue caminhos fúteis. Este é o maior problema da minha amada Xarazade, nenhum filho. Alguns hábitos modernos eu aprovo. Outros não.
— Mas se nós concordarmos, ela e eu, que é muito cedo...
— Esta decisão não cabe a ela! — Jared Bakravan tinha ficado chocado. Ele era baixo e rechonchudo com cabelos brancos, barba e olhos severos. — Seria monstruoso, um insulto, até mesmo discutir isso com ela. Você tem que pensar como um iraniano ou este casamento não vai durar. Nem mesmo começar. Nunca. Ah, então você não deseja filhos?
— Oh, não, é claro que eu quero filhos, mas tal..
— Ótimo, então fica combinado assim.
— Então pode ficar combinado assim: por três anos e um dia eu posso resolver se é muito cedo?
— É uma idéia idiota. Se você não quer fi..
— Oh, mas é claro que quero, Excelência.
— Só um ano e um dia — concordara, afinal, o velho, com relutância —, mas só se você jurar pelo único Deus que você quer mesmo filhos, que esse espantoso pedido é completamente temporário. Sua cabeça está mesmo cheia de bobagens, meu filho. Com a ajuda de Deus, essas bobagens vão desaparecer como a neve na areia do deserto. É claro que uma mulher precisa de filhos...
Distraidamente, Lochart sorriu para si mesmo. Aquele velho fantástico seria capaz de barganhar com Deus no jardim do paraíso. E por que não? Aquele não era o passatempo nacional dos iranianos? Mas o que vou dizer a ele daqui a alguns dias? O ano e um dia já estão quase no fim. Será que quero suportar o peso de filhos? Não, ainda não. Mas Xarazade quer. Oh, ela concordou com minha decisão, e nunca falou sobre isso, mas não creio que ela jamais tenha estado de acordo.
Podia ouvir o som abafado da voz dela e da empregada na cozinha e pensou que a calma que ela lhe dera fora sempre maravilhosa — um enorme contraste com o galo de briga que era sua outra mulher. As almofadas estavam muito confortáveis e ele observava o fogo. Ouviam-se alguns tiros na noite lá fora, mas isso já era tão comum que mal notavam.
Tenho que tirá-la de Teerã, pensou. Talvez ela esteja mais segura aqui do que em qualquer outro lugar, mas não se continuar se metendo nos conflitos. Doshan Tappeh! Ela é louca, mas todos estão loucos nesse momento. Gostaria muito de saber se o Exército recebeu mesmo ordem de esmagar a revolta. Bakhtiar tem que agir logo ou estará liquidado. Mas se ele o fizer, haverá um banho de sangue porque os iranianos são um povo violento, sanguinário — desde que seja a serviço do Islã.
Ah, Islã! E Deus. Onde estará o Verdadeiro Deus agora?
Em todos os corações e pensamentos dos crentes. Os xiitas são crentes. E Xarazade também. E toda a família dela. E você? Não, ainda não, mas estou me esforçando para isso. Prometi a ele que me esforçaria, prometi que leria o Corão e manteria a mente aberta. E?
Agora não é a hora de pensar nisso. Seja prático, pense de maneira prática. Ela está em perigo. Com ou sem chador ela não vai se envolver, mas por que não? É o país dela.
Sim, mas ela é minha esposa e vou ordenar que fique fora disso. E que tal a propriedade do pai dela no mar Cáspio, perto de Bandar-e Pahlavi? Talvez possam levá-la para lá, ou mandá-la para lá — o tempo agora está bom, não tão frio quanto aqui, embora nossa casa seja quente, com o reservatório de combustível sempre cheio, com lenha para o fogo e comida na geladeira, graças ao pai dela e à família.
Meu Deus, devo tanto a ele, tanto.
Um ligeiro ruído distraiu-lhe a atenção. Xarazade estava em pé na porta vestindo o chador e um véu leve que ele nunca tinha visto antes. Seus olhos nunca foram tão brilhantes. O chador farfalhava à medida que ela se aproximava. Então ela o abriu. Não estava usando nada por baixo. Ao vê-la ele perdeu o fôlego.
— Então? — A voz dela, como sempre, era baixa e palpitante, o farsi soava doce. — E agora, Excelência, meu marido, agora o meu chador o agrada?
Ele estendeu a mão para segurá-la, mas ela recuou um passo, rindo.
— No verão, as prostitutas da noite usam o chador desta maneira, dizem
— Xarazade.
— Não.
Desta vez ele a agarrou com facilidade. O gosto dela, seu brilho, sua maciez.
— Talvez, meu senhor — disse entre um beijo e outro, provocando-o delicadamente —, talvez sua escrava use sempre seu chador assim, nas ruas, no bazar, muitas mulheres o fazem, dizem...
— Não, só em pensar eu fico louco. — Fez menção de carregá-la, mas ela murmurou:
— Não, meu amor, vamos ficar aqui.
— Mas os criados...
— Esqueça-os, eles não vão nos perturbar, esqueça-os, esqueça tudo, eu imploro, meu amor, e só se lembre de que esta casa é sua, este é o seu lar e eu sou sua escrava para sempre.
Ficaram. Como sempre, a paixão dela acompanhou a sua, embora não pudesse entender como ou por que, apenas sentir que com Xarazade ele ia ao paraíso, de verdade, ficava no jardim do paraíso com essa ninfa do paraíso e depois voltava em segurança com ela para a terra.
Mais tarde, durante o jantar, a campainha da porta perturbou-lhes a paz. O criado Hassan atendeu e depois veio até a sala, fechando a porta.
— Senhor, é Sua Excelência, o general Valik — disse em voz baixa. — Ele pede desculpas por ter chegado tão tarde, mas diz que é importante e pergunta se Vossa Excelência pode conceder-lhe alguns minutos.
Lochart deixou transparecer sua irritação, mas Xarazade estendeu a mão, tocou-o suavemente e a irritação desapareceu.
— Receba-o, meu amor. Vou esperar por você na cama. Hassan, traga um prato limpo e esquente o horisht. Sua Excelência deve estar com fome.
Valik desculpou-se profusamente por ter chegado tão tarde, recusou duas vezes a comida mas, afinal, deixou-se persuadir e comeu com voracidade. Lochart esperou pacientemente, cumprindo a promessa feita ao sogro de se lembrar dos hábitos iranianos — que a família vinha em primeiro lugar, que era sinal de boa educação contornar um assunto, não ser nunca contundente nem direto. Em farsi, isso era muito mais fácil do que em inglês. Assim que pôde, mudou para o inglês.
— Estou muito feliz em vê-lo, general. O que posso fazer pelo senhor?
— Eu só soube que você estava de volta a Teerã, há meia hora atrás. Este horisht foi o melhor que já comi nos últimos anos. Sinto muito vir perturbá-lo tão tarde.
— Não tem importância, — Lochart deixou o silêncio prolongar-se. O homem mais velho comeu sem se sentir embaraçado por estar comendo sozinho
Um pedaço de carneiro ficou preso em seu bigode e Lochart o observou fascinado, imaginando quanto tempo ainda demoraria, então Valik limpou a boca.
— Meus cumprimentos a Xarazade... seu cozinheiro é bem treinado. Vou dizer isso a meu primo predileto, Excelência Jared.
— Obrigado — Lochart esperou.
Mais uma vez o silêncio ficou suspenso entre eles. Valik tomou um pouco de chá.
— A licença para o 212 foi entregue?
— Até a hora que saímos não. — Lochart não estava preparado para aquela pergunta. — Sei que Mac mandou um mensageiro esperar. Poderia ligar para ele mas, infelizmente, nosso telefone está com defeito. Por quê?
— Os sócios gostariam que você se encarregasse do vôo.
— O capitão McIver designou o capitão Lane, supondo-se que haja uma licença.
— Será concedida. — Valik tornou a limpar a boca e serviu-se de mais chá. — Os sócios gostariam que você pilotasse. Estou certo que McIver não se importará.
— Sinto muito, mas tenho que voltar para Zagros, quero verificar se está tudo bem. — E contou em poucas palavras o que acontecera lá.
— Tenho certeza que Zagros pode esperar alguns dias. Tenho certeza que Jared ficaria contente que você achasse mais importante fazer o que os sócios pedem.
— Terei prazer em fazer qualquer coisa. O que há de tão importante para os sócios neste vôo, algumas peças sobressalentes, alguns riais? — perguntou Lochart, com a testa franzida.
— Todos os vôos são importantes. Os sócios se preocupam em fornecer o melhor serviço. Então, está tudo certo?
— Bem, em primeiro lugar, eu teria que resolver isso com Mac, em segundo, duvido que o 212 consiga a licença, em terceiro, de fato, eu preciso voltar para minha base.
— Tenho certeza de que Mac dará o seu consentimento. — E Valik deu o seu sorriso mais simpático. — Você terá licença para deixar o espaço aéreo de Teerã. — Ele se levantou. — Vou ver Mac agora e direi a ele que você concordou. Agradeça a Xarazade, e mais uma vez, mil desculpas por vir tão tarde, mas estamos numa época atribulada.
— Ainda quero saber o que há de tão importante a respeito de algumas peças sobressalentes e cem mil riais — disse Lochart, sem se mover de onde estava.
— Os sócios decidiram que é importante, e então meu querido amigo, sabendo que você estava aqui e conhecendo seu relacionamento com minha família, presumi, imediatamente, que você ficaria feliz em fazer isso, se eu, em pessoa, lhe pedisse. Somos da mesma família, não somos? Isso foi dito secamente, embora o sorriso permanecesse.
— Tenho prazer em fazer qualquer coisa para ajudar, mas...
— Ótimo, então está combinado. Obrigado. Não precisa me acompanhar até a porta. — Da porta, o general Valik se virou e olhou em volta intencionalmente. — Você é um homem de sorte, capitão. Eu o invejo.
Depois que Valik saiu, Lochart sentou-se ao lado do fogo que morria, olhando para as chamas. Hassan e uma empregada tiraram os pratos, disseram boa-noite, mas ele não escutou — nem ouviu Xarazade que foi até lá um pouco depois, olhou para ele e depois voltou silenciosamente para a cama, deixando-o em paz com seus pensamentos.
Lochart estava aborrecido. Sabia que Valik estava a par de que tudo que havia de valor no apartamento, além do próprio apartamento, que fora presente de casamento do pai de Xarazade. Jared Bakravan dera-lhe, de fato, todo o edifício — pelo menos a renda dos aluguéis. Poucos sabiam da discussão que tiveram:
— Aprecio muito sua generosidade, mas não posso aceitar tudo isso, senhor — dissera Lochart. — É impossível.
— Mas são coisas materiais, coisas sem importância.
— Sim, mas é demais. Sei que meu salário não é muito, mas podemos nos arranjar. De verdade.
— Sim, é claro. Mas por que o marido de minha filha não poderia viver confortavelmente? De que outra forma você poderá ficar tranqüilo para aprender os costumes iranianos e cumprir sua promessa? Eu lhe asseguro, meu filho, isso tem pouco valor para mim. Agora você faz parte da minha família. A família é a coisa mais importante no Irã. A família zela pela família.
— Sim, mas sou eu que tenho que zelar por ela... eu, não o senhor.
— É claro, e com a Ajuda de Deus, com o tempo, poderá sustentá-la da forma que ela está acostumada. Mas isso agora não é possível pois precisa sustentar sua ex-mulher e sua filha. O que eu quero é ajeitar as coisas de uma forma civilizada, do modo iraniano. Você prometeu viver como nós vivemos, não?
— Sim. Mas por favor, não posso aceitar tudo isso. Dê o que quiser para ela, não para mim. Prometo fazer o melhor que puder.
— Tenho certeza que sim. Mas enquanto isso, é um presente meu para você, não para ela. Isto torna possível dá-la a você.
— Dê a ela, não...
— É a Vontade de Deus que o homem seja o senhor da casa — dissera Jared Bakravan com rispidez. — Se a casa não for sua, então você não será o senhor. Devo insistir. Sou o chefe da família e Xarazade fará o que eu disser, e devo insistir por Xarazade, senão o casamento não poderá se realizar. Percebo o seu dilema ocidental, embora não o compreenda, meu filho. Mas aqui, os costumes iranianos é que mandam, e a família zela pela família...
Na ampla solidão da sala de estar, Lochart balançou a cabeça para si mesmo. Está certo, e eu escolhi Xarazade, aceitei, mas... mas aquele filho da mãe do Valik jogou tudo isso na minha cara e me fez sentir vergonha outra vez e eu o odeio por isso, odeio por não pagar por tudo isso, e sei que o único presente que posso dar a ela é a liberdade que, de outro modo, não teria e a minha vida, se for preciso. Pelo menos ela agora é canadense e não precisa ficar aqui.
Não se iluda, ela é iraniana e sempre será. Será que ela se sentiria em casa em Vancouver, com toda aquela chuva, sem família, sem amigos, sem nada do Irã? Sim, sim, acho que sim; por algum tempo eu compensaria todo o resto. Por algum tempo, é claro, não para sempre.
Era a primeira vez que se defrontava com o problema real que havia entre eles. O nosso Irã desapareceu para sempre, o velho, o do xá. Não importa que o novo talvez seja melhor. Ela vai se adaptar e eu também. Eu falo farsi e ela é minha mulher e Jared é poderoso. Se tivermos que partir temporariamente, vou compensá-la por esta separação temporária, quanto a isso não haverá problema. O futuro ainda é cor-de-rosa, eu a amo muito e Deus seja louvado por ela...
O fogo já estava quase apagado e ele sentiu o cheiro reconfortante de madeira queimada e, junto com ele, um traço do perfume dela. As almofadas ainda guardavam as marcas onde tinham deitado juntos e embora estivesse totalmente satisfeito e saciado, ainda ansiava por ela. Ela é realmente uma huri, um espírito do paraíso, pensou sonolento. Estou enfeitiçado por ela e é maravilhoso, não tenho nenhuma queixa, e se eu morresse hoje já saberia como é o paraíso. Ela é maravilhosa, Jared é maravilhoso, no devido tempo seus filhos serão maravilhosos e sua família...
Ah, família! A família zela pela família, esta é a lei, tenho que fazer o que Valik pediu, gostando ou não. Tenho que fazer, o pai dela deixou isso muito claro.
A última acha crepitou e, antes de morrer, acendeu por um instante.
— O que haverá de tão importante numas poucas peças e nuns poucos riais? — perguntou às chamas.
As chamas não responderam.
SEGUNDA-FEIRA
12 de fevereiro14
EM TABRIZ UM: 7:12H. Charlie Pettikin dormia um sono sobressaltado, encolhido sobre um colchão no chão, coberto apenas por uma manta, com as mãos amarradas para a frente. Acabava de amanhecer e estava muito frio. Os guardas não permitiram que ele levasse o aquecedor portátil e o prenderam na parte da cabana de Erikki Yokkonen que era usada, normalmente, como depósito. O gelo brilhava no interior das vidraças da pequena janela. A janela tinha barras pelo lado de fora. A neve cobria o parapeito.
Ele abriu os olhos e se ergueu, espantado, sem saber, por um momento, onde estava. Então a memória voltou e ele se encolheu contra a parede, com o corpo todo doendo.
— Que maldita confusão! — resmungou, tentando relaxar os ombros. Com ambas as mãos, esfregou desajeitadamente os olhos para espantar o sono, e esfregou o rosto, sentindo-se imundo. A barba crescida estava pontilhada de fios brancos. Detesto ficar barbado, pensou.
Hoje é segunda-feira. Cheguei aqui no sábado, ao cair da noite, e eles me prenderam ontem de manhã. Filhos da mãe!
Sábado à noite tinha havido muitos ruídos em volta da cabana, o que o deixara ainda mais inquieto. Uma vez, teve certeza de ouvir vozes abafadas. Sem fazer barulho, apagou as luzes, destrancou a porta e ficou em pé nos degraus, com a pistola de sinalização nas mãos. Cuidadosamente examinou a escuridão. Então viu, ou achou que viu, um movimento a uns trinta metros de distância, depois outro mais adiante.
— Quem está aí? — gritou, com sua voz ecoando estranhamente. — O que quer?
Ninguém respondeu. Outro movimento. Onde? A trinta, quarenta metros — difícil calcular distâncias à noite. Olhe, lá está outro! Seria um homem? Ou apenas um animal ou a sombra de um galho. Ou talvez... o que era aquilo? Lá perto do pinheiro.
— Você aí! O que quer?
Nenhuma resposta. Não conseguia distinguir se era um homem ou não. Zangado e até um pouco assustado, apontou e puxou o gatilho. O bang pareceu um trovão e ecoou pela montanha, a chama vermelha saltou em direção à árvore, ricocheteou formando uma chuva de faíscas, borrifou em outra árvore e caiu, crepitando e chiando, num monte de neve. Ele esperou.
Não aconteceu nada. Ruídos na floresta, o telhado do hangar rangendo, vento no alto das árvores, às vezes neve caindo de um galho de árvore curvado pelo peso que se endireitava, livre de novo. Fazendo bastante estardalhaço, bateu iradamente com os pés para espantar o frio, acendeu a luz, tornou a carregar a pistola e tornou a trancar a porta.
— Você vai ficar igual a uma velha rabugenta quando ficar velho — disse alto, depois acrescentou: — Merda! Odeio o silêncio, odeio ficar sozinho, odeio a neve, odeio o frio, odeio sentir medo e o que aconteceu de manhã em Galeg Morghi me abalou, maldição... não há dúvida de que se não fosse pelo jovem Ross aquele Savak filho da puta teria me matado!
Checou a porta e todas as janelas para ver se estavam trancadas, fechou as cortinas, depois serviu uma farta dose de vodca e misturou-a com um pouco de suco de laranja que estava no congelador e sentou em frente ao fogo para se recompor. Havia ovos para o café e ele tinha uma arma. O aquecedor a gás funcionava bem. Lá dentro estava confortável. Depois de algum tempo, sentiu-se melhor, mais seguro. Antes de ir para a cama no quarto de hóspedes, tornou a checar as fechaduras. Quando ficou satisfeito, tirou as botas e se deitou na cama. Logo adormeceu.
Pela manhã, o medo noturno desaparecera. Depois de um café com ovos fritos sobre pão frito, exatamente como ele gostava, arrumou o quarto, vestiu a roupa acolchoada de piloto, destrancou a porta e então uma metralhadora foi enfiada na sua cara, seis revolucionários entraram na sala e o interrogatório começou. Foram horas de interrogatório.
— Não sou um espião, não sou americano. Já disse que sou inglês — repetiu mais uma vez.
— Mentiroso, seus papéis dizem que você é sul-africano. Por Alá, eles também são falsos? — O líder, o homem que chamava a si mesmo de Fedor Rakoczy, tinha uma aparência dura, era mais alto e mais velho do que os outros, tinha olhos castanhos e falava inglês com sotaque. As mesmas perguntas, sem parar. — De onde você vem, por que você está aqui, quem é o seu superior na CIA, quem é o seu contato aqui, onde está Erikki Yokkonen?
— Não sei. Já disse cinqüenta vezes que não sei. Não havia ninguém aqui quando pousei ontem ao entardecer. Fui enviado para apanhá-lo, a ele e a sua mulher. Eles tinham coisas para resolver em Teerã.
— Mentiroso! Eles fugiram no meio da noite, há duas noites atrás. Por que eles fugiram se você vinha apanhá-los?
— Já disse a vocês. Ele não estava me esperando. Por que eles fugiriam? Onde estão Dibble e Arberry, os nossos mecânicos? Onde está o nosso gerente, Dayati e...
— Quem é o seu contato da CIA em Tabriz?
— Não tenho nenhum contato. Somos uma companhia britânica e exijo ver o nosso cônsul em Tabriz. Eu...
— Os inimigos do povo não podem exigir nada! Nem mesmo piedade. É pela Vontade de Deus que estamos em guerra. Na guerra as pessoas são mortas.
O interrogatório durara toda a manhã. Apesar dos seus protestos, eles tinham levado todos os seus papéis, seu passaporte e seus vistos de permanência e de saída, que eram vitais, e o amarraram e atiraram ali com ameaças terríveis, caso tentasse fugir. Mais tarde, Rakoczy e dois guardas voltaram.
— Por que não disse que tinha trazido as peças sobressalentes para o 212?
— Vocês não perguntaram — respondera Pettikin, zagando. — Quem são vocês afinal? Devolvam os meus papéis. Exijo que chamem o cônsul britânico. Desamarrem minhas mãos, maldição!
— Deus o castigará se você blasfemar! Fique de joelhos e peça perdão a Deus. — Eles o obrigaram a se ajoelhar. — Peça perdão! — Ele obedeceu, odiando-os.
— Você também pilota um 212, além de um 206?
— Não — disse, levantando-se com dificuldade.
— Mentiroso! Está na sua licença. — Rakoczy jogara a licença sobre a mesa. — Por que está mentindo?
— Que diferença faz? Você não acredita em nada que eu digo. Você não vai acreditar na verdade. É claro que sei que está na minha licença. Então não vi quando vocês a levaram? É claro que piloto um 212 se for escalado.
— O komiteh vai julgá-lo e determinar sua sentença. — Rakoczy dissera isso com tanta dureza que ele sentiu um frio na espinha. Então eles o deixaram sozinho.
Ao entardecer, trouxeram um pouco de arroz e sopa, tornando a ir embora. Ele quase não tinha dormido e agora, ao amanhecer, viu o quanto estava fraco. Seu medo começou a crescer. Uma vez, no Vietnã, tinha sido derrubado, capturado e condenado à morte pelos vietcongues, mas seu esquadrão voltara para libertá-lo com mísseis e Boinas-Verdes e tinham destruído a aldeia e os vietcongues junto com ela. Esta foi outra ocasião em que escapou da morte certa. "Nunca aposte na morte até que esteja morto. Assim, meu velho" dissera seu jovem comandante americano "assim você consegue dormir de noite." — O comandante era Conroe Starke. Seu esquadrão de helicóptero era misto, americanos, britânicos e alguns canadenses, sediados em Da Nang. Ele agora estava metido em outra maldita encrenca.
Imagino como Duke estará se saindo agora, pensou. Filho da mãe sortudo. Sortudo por estar a salvo em Kowiss e sortudo por ter Manuela. Aquela é um estouro e parece um urso koala — aconchegante, com aqueles grandes olhos castanhos, e as curvas na medida certa.
Deixou a mente divagar, pensando nela e em Starke, em onde estariam Erikki e Azadeh, naquela aldeia do Vietnã — e no jovem capitão Ross e nos seus homens. Se não fosse por ele! Ross era outro salvador. Nessa vida você tem que ter salvadores para sobreviver, aquelas pessoas estranhas que apareciam milagrosamente na sua vida sem nenhum motivo aparente, bem na hora, para lhe dar a chance que você necessita desesperadamente, ou para arrancá-lo da desgraça, do perigo ou do mal. Será que aparecem porque você rezou pedindo ajuda? No desespero você sempre reza, de algum modo, mesmo que não seja para Deus. Mas Deus tem muitos nomes.
Ele se lembrou do velho Soames da embaixada com o seu "Não se esqueça, Charlie, Maomé, o Profeta, declarou que Alá — Deus — tem três mil nomes. Mil só são conhecidos pelos anjos, mil pelos profetas, trezentos estão na Tora, o Velho Testamento, outros trezentos no Zabur, que são os Salmos de Davi, outros trezentos no Novo Testamento, e noventa e nove no Corão. Isto dá 2.999. Um nome foi oculto por Deus. Em árabe ele é chamado: Ism Allah ala'zam: o Maior dos Nomes de Deus. Todos os que lerem o Corão o terão lido sem saber. Deus é esperto em esconder o seu Maior Nome, hein?
Sim, se houver um Deus, Pettikin pensou, com dor e com frio.
Pouco antes do meio-dia, Rakoczy voltou com seus dois homens. Surpreendentemente, Rakoczy ajudou-o a se levantar e começou a desamarrá-lo.
— Bom dia, capitão Pettikin. Sinto muito pelo engano. Siga-me por favor. — E mostrou o caminho até a sala principal. Havia café na mesa. — Você toma café preto ou ao estilo inglês, com leite e açúcar?
Pettikin esfregava os pulsos doloridos, tentando pôr a mente para funcionar.
— O que é isso? O prisioneiro está recebendo café reforçado?
— Desculpe, mas não entendi.
— Não foi nada. — Pettikin encarou-o, ainda inseguro. — Com leite e açúcar. — O café estava delicioso e revigorou-o. Serviu-se de mais café. — Então foi um engano, foi tudo um engano?
— Sim, eu, hum, eu chequei a sua história e ela confere. Deus seja louvado. Você partirá imediatamente. Voltará para Teerã.
Pettikin sentiu um nó na garganta pela súbita libertação — pelo menos aparente, pensou desconfiado.
— Preciso de combustível. Todo o nosso combustível foi roubado, não há nenhum no depósito.
— Seu aparelho foi reabastecido. Eu mesmo supervisionei isso.
— Você entende de helicópteros? — Pettikin se perguntava por que o homem parecia tão nervoso.
— Um pouco.
— Desculpe, mas eu, hum, eu não sei o seu nome.
— Smith. Sr. Smith. — Fedor Rakoczy sorriu. — Você vai partir agora, por favor. Imediatamente.
Pettikin encontrou suas botas de pilotar e calçou-as. Os outros homens observaram-no em silêncio. Notou que eles usavam metralhadoras soviéticas.
Sobre a mesa, ao lado da porta, estava a sua maleta e, ao lado, os documentos. Passaporte, visto, carteira de trabalho e o DAC iraniano — a licença para pilotar. Tentando não demonstrar seu espanto, certificou-se de que estavam todos lá e enfiou-os no bolso. Quando se dirigiu para a geladeira, um dos homens ficou na frente e fez sinal para que ele se afastasse.
— Estou com fome — Pettikin disse, ainda desconfiado.
— Tem comida no seu helicóptero. Siga-me, por favor.
Lá fora, o ar tinha um cheiro bom, o dia estava frio e bonito, com um céu azul e limpo. Algumas nuvens estavam se formando a oeste. Na direção do leste, a passagem sobre o desfiladeiro estava clara. Em volta dele, a floresta toda cintilava, com a neve refletindo a luminosidade. O 206 estava em frente ao hangar, com as janelas e o pára-brisa limpos. Lá dentro, tudo parecia normal, embora o estojo com o mapa estivesse agora num bolso lateral e não ao lado do seu assento, onde normalmente o deixava. Cuidadosamente, começou a fazer uma checagem pré-decolagem.
— Apresse-se, por favor — disse Rakoczy.
— É claro.
Pettikin fingiu que se apressava, mas não o fez, não deixando escapar nada em sua inspeção, com todos os sentidos alerta para encontrar uma possível sabotagem, fosse sutil ou grosseira. Checou o combustível, o óleo, tudo. Percebeu que os homens estavam ficando cada vez mais nervosos. Ainda não havia ninguém mais na base. No hangar, ele podia ver o 212 com o motor desmontado. As peças que trouxera tinham sido colocadas sobre um banco perto do motor.
— Você já está pronto — Rakoczy disse isso como se fosse uma ordem.
— Entre, você vai reabastecer em Bandar-e Pahlavi como antes. — Ele se virou para os outros, abraçou-os apressadamente e subiu para o assento da direita.
— Decole imediatamente. Vou com você para Teerã. — Colocou a metralhadora entre os joelhos, apertou o cinto, trancou a porta com cuidado, depois apanhou os fones que estavam pendurados atrás dele e colocou-os no ouvido, mostrando claramente que estava acostumado com o interior de uma cabine.
Pettikin notou que os outros dois tinham-se colocado em posições defensivas, de frente para a estrada. Apertou o botão de partida. Logo o barulho, a familiaridade — e o fato de que 'Smith' estava a bordo e portanto era improvável que houvesse sabotagem — fizeram-no sentir-se mais aliviado.
— Lá vamos nós — disse no microfone e decolou deslizando com rapidez, inclinou suavemente o aparelho e subiu rumo ao desfiladeiro.
— Ótimo — disse Rakoczy —, muito bem. Você pilota muito bem. — Como quem não quer nada, colocou a metralhadora sobre os joelhos, com o cano apontando na direção de Pettikin. — Por favor, não pilote bem demais.
— Coloque a trava de segurança, ou não pilotarei de jeito nenhum.
— Concordo que é perigoso durante o vôo. — E Rakoczy colocou a trava depois de alguma hesitação.
A duzentos metros de altura, Pettikin nivelou o aparelho, então inclinou-o de repente e voltou em direção ao campo de pouso.
— O que está fazendo?
— Estou apenas querendo me orientar.
Estava confiando no fato de que embora 'Smith' estivesse familiarizado com uma cabine, não soubesse pilotar um 206, do contrário, ele mesmo o teria levado. Seus olhos procuravam, lá embaixo, um motivo para o nervosismo do homem e para sua pressa em partir. O campo parecia igual. Perto do entroncamento da estradinha estreita da base com a estrada principal, que ia para noroeste em direção a Tabriz, havia dois caminhões. Os dois se dirigiam para a base. Daquela altura, podia ver facilmente que eram caminhões do Exército.
— Vou pousar para ver o que eles querem.
— Se você o fizer — disse Rakoczy, sem demonstrar nenhum temor —, isso vai-lhe custar muita dor e mutilação permanente. Por favor, vá para Teerã... mas primeiro para Bandar-e Pahlavi.
— Qual é o seu nome verdadeiro?
— Smith.
Pettikin deixou as coisas ficarem como estavam, fez uma curva e depois acompanhou a estrada que seguia a direção sudeste para Teerã, rumando para o desfiladeiro e aguardando o momento propício — confiante agora de que em algum lugar, no meio do caminho, ele teria a sua chance.
15
EM TEERÃ: 8:30H. Tom Lochart passou devagar com o seu velho Citroen através dos escombros causados pelos combates noturnos, rumando para Galeg Morghi. A manhã estava gelada e desagradável, e ele já estava atrasado embora tivesse saído de casa antes do amanhecer.
Tinha passado por muitos cadáveres e por pessoas que choravam seus mortos, por muitas carcaças queimadas de carros e caminhões, algumas ainda fumegantes — despojos dos tumultos da noite. Grupos de civis armados ainda dominavam sacadas ou barricadas e ele tivera que fazer muitos desvios. Agora, vários homens usavam a faixa verde de Khomeini no braço. Todos os Faixas Verdes estavam armados. As ruas pareciam agourentamente sem tráfego. De vez em quando, passavam caminhões da polícia com as sirenes ligadas, e também uns poucos carros e caminhões, mas não prestaram nenhuma atenção nele, exceto para buzinar, mandando-o sair da frente, praguejando. Xingou-os de volta, quase sem se importar com o fato de chegar ou não ao aeroporto, pois essa seria a solução perfeita para o seu dilema. Só a idéia da esposa e dos filhos de Valik nas mãos da Savak é que o fazia prosseguir.
Como uma mulher tão maravilhosa quanto Annoush, que sempre fora tão gentil com ele desde que entrara para a família, podia ter-se casado com um filho da mãe daqueles? E como aquelas duas crianças maravilhosas, que adoravam Xarazade e o chamavam de tio Excelência podiam...
Deu uma guinada para evitar um carro que saiu de uma rua lateral na contramão. O carro não parou e ele xingou o carro, Teerã, o Irã e Valik, e disse:
— Insha'Allah — em voz alta, mas isso não ajudou em nada.
O céu estava coberto de nuvens escuras, carregadas de neve, o que não lhe agradou nem um pouco; tinha detestado sair do calor da sua cama. Pouco antes do amanhecer, o despertador o acordara.
— Pensei que você não ia, querido. Pensei que você tivesse dito que só ia partir amanhã.
— Tenho um vôo imprevisto, pelo menos acho que tenho. Foi por isso que Valik veio aqui. Tenho que ver Mac primeiro, mas se eu tiver que ir, ficarei ausente por alguns dias. Torne a dormir, querida. — Tinha feito a barba e se vestido apressadamente, tomara uma xícara de café e saíra. Lá fora ainda estava escuro, havia apenas um vislumbre de claridade, o ar estava cáustico com a fumaça pesada. Ao longe, ouvia-se o inevitável tiroteio esporádico. De repente, teve um pressentimento.
McIver morava a poucos quarteirões de distância. Lochart ficou surpreso de encontrá-lo completamente vestido.
— Alô, Tom. Entre. A licença chegou à meia-noite, entregue por mensageiro. Valik tem poder; não acreditei que a conseguíssemos. Quer café?
— Obrigado. Ele veio vê-lo ontem à noite?
— Sim. — McIver foi andando na frente para a cozinha. O café estava cheiroso. Não havia nem sinal de Genny, Paula ou Nogger Lane. Ele serviu Lochart. — Valik me disse que esteve com você e que você concordou em ir.
— Eu disse que iria se você concordasse, e depois de falar com você, e se nós conseguíssemos a licença. Onde está Nogger?
— Voltou para o apartamento dele. Eu o dispensei na noite passada. Ele ainda está muito abalado por ter-se envolvido naquele tumulto.
— Posso imaginar. O que aconteceu com a moça? Paula?
— Está no quarto de hóspedes, o vôo dela da Alitalia ainda não saiu, mas provavelmente ela vai partir hoje. George Talbot, da embaixada, passou por aqui ontem à noite e contou que ouviu dizer que os revolucionários foram expulsos do aeroporto e que hoje, se tudo corresse bem, haveria alguns vôos partindo e chegando.
— Então talvez Bakhtiar vença afinal — disse Lochart balançando a cabeça, pensativo.
— Vamos torcer que sim. A BBC, hoje de manhã, informou que Doshan Tappeh ainda está nas mãos de Khomeini e que os Imortais o estão cercando, esperando sentados nos traseiros.
Lochart estremeceu ao pensar em Xarazade lá. Ela prometera não tornar a fazer aquilo.
— Talbot disse alguma coisa a respeito de golpe?
— Apenas que o boato é que Carter se opõe. Se eu fosse iraniano, e general, não hesitaria. Talbot concordou, disse que o golpe deve ser dado nos próximos três dias, tem que ser, os revolucionários estão conseguindo armas demais
Lochart quase podia ver Xarazade entoando aquela ladainha junto com outras milhares de pessoas, o jovem capitão Karim Peshadi declarando-se a favor de Khomeini e três Imortais desertando.
— Não sei o que faria, Mac, se fosse um deles.
— Graças a Deus não somos e isto aqui é o Irã, não a Inglaterra, conosco nas barricadas. De qualquer maneira, Tom, se o 125 chegar hoje, vou colocar Xarazade nele. Ela estará mais segura em Al Shargaz, pelo menos por umas duas semanas. Ela conseguiu o passaporte canadense?
— Sim, mas Mac, acho que ela não vai.
Lochart contou que Xarazade participara da revolta em Doshan Tappeh.
— Meu Deus, ela precisa examinar a cabeça. Vou mandar Gen conversar com ela.
— Genny vai para Al Shargaz?
— Não. Se dependesse de mim, ela já estaria lá, há uma semana. Vou fazer o que puder. Xarazade está bem?
— Maravilhosa, mas eu gostaria muito que Teerã acalmasse. Fico doente de preocupação com ela aqui e eu em Zagros. — Lochart tomou um gole de café. — Se é para ir, é melhor eu andar logo. Fique de olho nela, sim? — E olhou para McIver, com um olhar franco e direto. — Qual é o objetivo deste vôo, Mac?
— Conte-me exatamente o que Valik lhe disse ontem à noite — retrucou McIver, encarando-o.
Lochart contou-lhe. Exatamente.
— Ele é um filho da mãe por diminuí-lo dessa maneira.
— Ele conseguiu me humilhar. Infelizmente, ele é da família e no Irã... bem, você sabe. — Lochart disfarçou a amargura. — Perguntei a ele o que havia de tão importante em algumas peças e alguns riais, e ele me enrolou. — Viu que McIver estava com a cara fechada e parecia mais velho e mais grave do que nunca, até mesmo mais duro. — Mac, o que há afinal de tão importante com essas peças e esse dinheiro?
McIver terminou o café e serviu-se de um pouco mais. Abaixou a voz.
— Não quero acordar nem Genny nem Paula, Tom. Isso é entre nós. — E contou a Lochart o que acontecera no escritório. Exatamente.
— Savak? Ele, Annoush e os pequenos Setarem e Jalal? Meu Deus! — Lochart sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.
— Foi por causa disso que concordei em tentar. É preciso. Também estou num beco sem saída. Nós dois estamos. E tem mais. — McIver contou-lhe a respeito do dinheiro.
— Doze milhões de riais, em dinheiro? Ou o equivalente na Suíça? — perguntou Lochart, quase engasgando.
— Fale baixo. Sim, doze para mim e doze para o piloto. Ontem à noite ele disse que a oferta ainda estava de pé e que eu não fosse ingênuo. — E McIver acrescentou zangado: — Se Gen não estivesse aqui, eu o teria atirado na rua.
Lochart mal o ouvia. Doze milhões de riais ou dinheiro em outro lugar? Mac tem razão. Se Valik ofereceu isso, aqui em Teerã, o que não pagaria quando estivesse perto da fronteira?
— Cristo!
O que você acha, Tom? Você ainda quer ir?
— Não posso recusar. Não posso. Muito menos agora que conseguimos a licença. — Ela estava em cima da mesa da cozinha e ele a apanhou. Estava escrito: EP-HBC permissão para Bandar Delam. Vôo prioritário para transporte de peças de reposição urgentes. Reabastecer na Base II da Força Aérea em Isfahan. Um tripulante: capitão Lane. O nome Lane fora riscado, e tinham escrito: Doente. Piloto substituto________. Havia um espaço em branco que ainda não fora preenchido por McIver.
McIver deu uma olhada em direção à porta da cozinha, que estava fechada, e depois tornou a olhar para Lochart.
— Valik quer ser apanhado fora de Teerã. Em segredo.
— Isso cheira cada vez pior. Qual é o local de embarque?
— Se você conseguir chegar em Bandar Delam, Tom, e nem isso é certo, ele vai pressioná-lo para levá-los até o Kuwait.
— É claro. — Lochart devolveu o olhar de McIver.
— Ele vai usar todo tipo de pressão, a família, Xarazade, tudo. Especialmente dinheiro.
— Milhões. Em dinheiro vivo... que nós dois sabemos que eu estou precisando. — A voz de Lochart não se alterou. — Mas se eu voar para o Kuwait sem uma autorização iraniana, num helicóptero com registro iraniano, sem a aprovação nem do Irã nem da companhia, com passageiros iranianos não-autorizados tentando escapar do seu governo ainda legal, eu serei um seqüestrador, sujeito a Deus sabe quantas acusações criminais aqui e no Kuwait. As autoridades do Kuwait apreenderiam o helicóptero, me atirariam na cadeia, e com certeza me extraditariam para o Irã. De qualquer maneira, teria destruído meu futuro como piloto e jamais poderia voltar para o Irã e para Xarazade. A Savak seria até capaz de agarrá-la, portanto não vou fazer uma coisa dessas.
— Valik é um patife perigoso. Ele vai armado. Poderia colocar uma arma na sua cabeça e obrigá-lo a prosseguir.
— Isso é possível. — A voz de Lochart não se alterou, mas por dentro ele estava fervendo. — Eu não tenho opção. Tenho que ajudá-lo, e vou fazê-lo, mas não sou nenhum imbecil. — Depois de uma pausa, acrescentou: — Nogger está a par disso?
— Não.
Na vigília daquela noite, depois de avaliar os possíveis planos, McIver decidira ir ele mesmo e não arriscar a vida nem de Lane nem de Lochart. Para o diabo com o exame médico e com o fato disso ser ilegal, dissera a si mesmo, este é um vôo maluco, então um pouco mais de loucura não vai fazer mal nenhum.
Seu plano era simples: depois de conversar com Tom Lochart, diria apenas que resolvera não autorizar o vôo, que não assinaria a licença e que iria de carro até o local de embarque com gasolina suficiente para Valik fazer a viagem de carro. Mesmo que Lochart quisesse ir com ele, seria fácil marcar um encontro e não aparecer, e simplesmente ir direto para Galeg Morghi, colocar seu próprio nome na licença como piloto e decolar. No local de embarque...
— O quê? — perguntou.
— Só há três possibilidades — repetiu Lochart. — Você se recusa a autorizar o vôo, você me autoriza ou autoriza uma outra pessoa. Você dispensou Nogger, Charlie não está aqui, então sobramos eu e você. Você não pode ir, Mac. De jeito nenhum, é perigoso demais.
— É claro que eu não iria, a minha licença...
— Você não pode ir, Mac — disse Lochart com firmeza. — Sinto muito. Você simplesmente não pode.
McIver suspirou, sua sabedoria venceu sua obsessão em voar e ele se decidiu pelo segundo plano.
— Sim. Você tem razão. Concordo. Mas ouça com atenção: se você quer ir, isso é com você, eu não estou mandando. Vou autorizá-lo, se é o que você quer, mas sob condições. Se você chegar no local de embarque e estiver tudo limpo, apanhe-os. Então vá para Isfahan. Valik disse que poderia arranjar isso. Se Isfahan estiver OK, prossiga. Talvez o 'sr. Jeitinho' possa ajeitar isso também. É nisso que nós vamos ter que apostar.
— É nisso que eu estou apostando.
— Bandar Delam é o fim da linha. Você não vai atravessar a fronteira. Concorda? — McIver estendeu a mão.
— Combinado — disse Lochart, apertando-lhe a mão e rezando para conseguir manter a promessa.
McIver disse-lhe qual era o lugar combinado, assinou a licença e notou que suas mãos tremiam. Se algo sair errado, adivinhe atrás de quem a Savak virá? De nós dois. E talvez até de Gen, pensou McIver, mais uma vez cheio de horror. Não contou a Lochart que ela tinha ouvido o que Valik dissera na noite anterior e que tinha calculado o resto. "Mas eu estou de acordo, Duncan. É terrivelmente arriscado, mas você tem que tentar ajudá-los, e Tom também, ele também não tem opção."
McIver entregou a licença a Lochart.
— Tom, você tem ordens expressas de não atravessar a fronteira. Se o fizer, acho que você perderá mesmo tudo, inclusive Xarazade.
— Esse esquema é todo doido, mas, é isso.
— Sim, boa sorte.
Lochart balançou a cabeça, devolveu-lhe o sorriso e partiu.
McIver fechou a porta da frente. Espero que tenha sido a decisão correta, pensou, com a cabeça doendo. Era loucura eu mesmo ir, e no entanto... Gostaria que fosse eu que estivesse indo e não ele, gostaria...
— Oh — exclamou, espantado. Genny estava em pé ao lado da porta da cozinha, com um robe quente sobre a camisola. Não estava usando os óculos e olhou para ele apertando os olhos.
— Eu... eu estou muito feliz por você não ter ido, Duncan — disse num fio de voz.
— O quê?
— Ora, vamos, seu bobo, eu conheço você muito bem. Você não pregou olho tentando tomar uma decisão... nem eu, preocupada com você. Sei que se eu fosse você, teria ido, ou querido ir. Mas, Duncan, Tom é forte e vai ficar bem e eu desejo muito que ele leve Xarazade e não volte nunca mais... — As lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. — Estou tão contente que você não tenha ido. — Enxugou as lágrimas e foi para o fogão pôr água para ferver. — Sinto muito, eu às vezes me descontrolo. Desculpe.
— Gen, se o 125 chegar hoje, você vai embora nele? Por favor — pediu, abraçando-a.
— Certamente, querido, se você também for.
— Mas Gen, você tem que ir.
— Duncan, deixe-me falar um instante, por favor. — Ela se virou e pôs os braços em volta dele, descansando a cabeça no seu peito e continuou a falar na mesma vozinha que tanto o perturbava. — Três dos seus sócios já fugiram com as famílias e com todo o dinheiro que conseguiram, o xá e sua família foram embora com todo o dinheiro deles, milhares de outros, a maior parte das pessoas que conhecemos, já partiram, você mesmo disse isso, e agora, se até mesmo o grande general Valik está fugindo, apesar de todos os seus contatos e ele deve tê-los dos dois lados do muro, e... e se nem os Imortais conseguiram esmagar a pequena rebelião de Doshan Tappeh, feita por uns poucos cadetes da Força Aérea e por civis mal armados, praticamente no quintal deles, já está na hora de nós irmos embora.
— Nós não podemos, Gen — explodiu, e ela podia ouvir o coração dele batendo no peito e sua preocupação aumentou. — Isso seria um desastre
— Seria apenas por pouco tempo, até as coisas melhorarem.
— Se eu fugisse do Irã, isso arruinaria a S-G.
— Isso eu não sei, Duncan, mas certamente a decisão depende de Andy, não de você. Foi ele que nos mandou para cá.
— Sim, ele me perguntou o que eu achava e não pude aconselhá-lo a desistir e deixar para trás vinte ou trinta milhões de dólares em helicópteros e peças. Nesta confusão, eles não durariam uma semana, seriam saqueados ou danificados, nós perderíamos tudo, tudo. Não se esqueça, Gen, todo o dinheiro da nossa aposentadoria está empregado na S-G, tudo.
— Mas, Duncan, você não acha que..
— Eu não vou deixar os nossos helicópteros e peças aqui-. — McIver sentiu o sangue subir e ficou momentaneamente em pânico ao pensar nisso. — Eu simplesmente não posso.
— Então leve-os com você.
— Pelo amor de Deus, não podemos tirá-los daqui-, não podemos arranjar as licenças, não podemos tirar os registros iranianos, não podemos. . estamos presos aqui até a guerra acabar.
— Não estamos, não, Duncan. Nem você, nem eu, nem os nossos rapazes, você tem que pensar neles também. Temos que sair. Eles vão nos expulsar de qualquer maneira, quem quer que vença, principalmente Khomeini. — Um arrepio percorreu-a ao pensar no primeiro discurso dele feito no cemitério: "Eu rezo para que Deus corte as mãos de todos os estrangeiros."
16
EM TABRIZ UM: 9:30H. O Range Rover vermelho saiu dos portões do palácio do khan em direção a Tabriz, e à estrada que levava a Teerã. Erikki dirigia e Azadeh estava a seu lado. Fora o primo dela, coronel Mazardi, o chefe de polícia, quem persuadira Erikki a não ir para Teerã na sexta-feira.
— A estrada estaria extremamente perigosa; é ruim durante o dia — ele disse. — Os revoltosos não vão voltar já, vocês estão perfeitamente seguros. É muito melhor ir ver Sua Alteza, o khan, e pedir seu conselho. Seria muito mais sábio.
— Erikki, é claro que faremos o que você decidir, mas eu realmente ficaria mais feliz se passássemos a noite em casa e víssemos papai — dissera Azadeh.
— Minha prima tem razão, capitão; é claro que vocês podem fazer o que quiserem, mas eu juro pelo Profeta, que Deus guarde as Suas palavras eternamente, que a segurança de Sua Alteza é tão importante para mim quanto para você. Se ainda se sente inclinado a partir, parta amanhã. Posso assegurar-lhe que não há perigo aqui. Vou colocar guardas. Se esse tal de Rakoczy ou qualquer outro estrangeiro ou esse mulá chegarem a meio quilômetro daqui ou do palácio Gorgon, vão se arrepender.
— Oh, sim, Erikki, por favor — falou Azadeh, com entusiasmo. — É claro, meu querido, que faremos o que você quiser, mas talvez você desejasse consultar Sua Alteza, meu pai, sobre que atitude tomar.
Com relutância, Erikki concordara. Arberry e o outro mecânico, Dibble, tinham decidido ir para o Hotel Internacional de Tabriz e passar o fim-de-semana lá.
— As peças devem chegar na segunda-feira, capitão. O velho unha-de-fome do McIver sabe que o nosso 212 tem que estar funcionando na quarta-feira ou terá que nos mandar um outro e ele não vai gostar disso. Vamos ficar quietos, fazer o nosso trabalho e colocar o aparelho em condições de voar. O gerente da base pode ir nos buscar. Somos britânicos, não temos com que nos preocupar; ninguém vai tocar em nós. E não se esqueça que estamos trabalhando para o governo deles, quem quer que seja o maldito governo, e não temos nenhuma briga com esses malditos, esses sangüinários, perdoe-me. Não se preocupe conosco, nem o senhor nem a patroa. Vamos ficar quietos e esperar o senhor voltar na quarta-feira. Divirtam-se em Teerã.
Então Erikki fora, acompanhado pelo coronel Mazardi, para Tabriz. O gigantesco palácio dos khans Gorgons localizava-se no sopé das montanhas, e ocultava vários hectares de jardins e pomares por trás de altos muros. Quando chegaram, toda a casa estava acordada e reunida — madrasta, meias-irmãs, sobrinhas, sobrinhos, empregados e filhos dos empregados, mas não Abdullah Khan, seu pai. Azadeh foi recebida de braços abertos, com lágrimas, alegria e mais lágrimas, e fizeram planos imediatos para um grande almoço no dia seguinte para comemorar a sorte de a terem em casa depois de tanto tempo.
— Mas que horror! Bandidos e um mulá vagabundo ousaram entrar na sua propriedade? Mas Sua Alteza, nosso amado pai, não doou um monte de dinheiro e centenas de hectares de terra para diversas mesquitas em Tabriz e nos seus arredores?
Erikki Yokkonen foi recebido com educação, mas com reserva. Todos tinham medo dele, por causa do seu tamanho, da sua rapidez com a faca, da violência do seu temperamento, e não conseguiam compreender a delicadeza dele com os amigos, nem o imenso amor que demonstrava por Azadeh. Ela era a quinta de seis meias-irmãs, e havia um meio-irmão mais moço. Sua mãe, morta há vários anos, fora a segunda mulher de Abdullah. Seu adorado irmão de sangue, Hakim, um ano mais velho do que ela, fora banido por Abdullah Khan e ainda estava em desgraça em Khoi, no noroeste — banido por crimes contra o khan pelos quais tanto ele quanto Azadeh juravam que não era culpado.
— Primeiro um banho — disseram suas meias-irmãs, alegremente —, depois você pode contar-nos o que aconteceu, com todos os detalhes, todos os detalhes. — E rindo, arrastaram Azadeh. No refúgio da sala de banho, quente, aconchegante, luxuosa e completamente fora do alcance de todos os homens, conversaram e fofocaram até de madrugada.
— O meu Mahmud não faz amor comigo há uma semana — disse Najoud, a meia-irmã mais velha de Azadeh.
— Deve ser outra mulher, Najoud querida — alguém disse.
— Não, não é isso. Ele está tendo problemas de ereção.
— Oh, pobre querida! Já tentou dar-lhe ostras...
— Ou experimentou usar óleo de rosas nos seus seios...
— Ou esfregou-o com extrato de jacarandá, chifre de rinoceronte e almíscar...
— É tirado de uma antiga receita do tempo de Ciro, o Grande. Isso é segredo, mas o pênis do Grande Rei era muito pequeno quando ele era jovem, mas depois que conquistou os medas, milagrosamente seu pênis se tornou motivo de inveja. Parece que conseguiu uma poção mágica dos medas que se ele esfregasse por um mês... O sumo sacerdote deles deu-a a Ciro em troca de sua vida, com a condição do Grande Rei jurar manter o segredo dentro da família. E o segredo tem passado de pai para filho, através dos séculos, e agora, queridas irmãs, ele está em Tabriz!
— Oh, com quem, queridíssima irmã Fazulia, com quem? Que as bênçãos de Deus estejam para sempre com você, com quem? O desgraçado do meu marido, Abdullah, que os seus três últimos dentes caiam, não tem uma ereção há anos. Com quem?
— Oh, fique quieta, Zadí, como ela pode dizer se você fica falando? Continue, Fazulia.
— Sim, fique quieta, Zadi, e agradeça a sua sorte. O meu Hussan vive ereto, de manhã, de tarde e de noite, e vive tão cheio de desejo que não me dá tempo nem para escovar os dentes!
— Bem, o segredo do elixir foi comprado pelo tataravô do atual dono por um preço enorme, me disseram que custou um punhado de diamantes...
— Eeeeeeeeeeeeee...
— .. mas agora pode-se comprar um pequeno frasco por cinqüenta mil riais.
— Oh, é muito caro! Onde vou arranjar tanto dinheiro?
— Como sempre, você pode arranjá-lo no bolso dele, e pode, evidentemente, pechinchar. Nada é demais para se ter uma poção dessas, já que não podemos ter outros homens.
— Se funcionar...
— É claro que funciona, oh, onde se compra isso, querida Fazulia?
— No bazar, na loja de Abu Bakra bin Hassan bin Saiidi. Eu sei o caminho! Iremos amanhã. Antes do almoço. Você irá conosco, querida Azadeh!
— Não, obrigada, querida irmã.
Elas deram várias risadas e uma das mais jovens disse:
— Pobre Azadeh, ela não precisa nem de jacarandá nem de armisca, ela precisa do contrário.
— Jacarandá e almíscar, garota, com chifre de rinoceronte — disse Fazulia.
Azadeh riu junto com elas. Todas tinham lhe perguntado, abertamente ou em particular, se o pênis do seu marido era tão grande quanto ele e como podia, sendo tão magra e frágil, lidar com aquilo e suportar seu peso.
— Com mágica — respondera para as mais jovens. — Facilmente — dissera para as mais sérias. — Com um êxtase inacreditável, como deve ser no jardim do paraíso — para as ciumentas e para aquelas que detestava e que queria provocar
Nem todo mundo aprovara seu casamento com esse gigante estrangeiro. Muitos tinham tentado influenciar seu pai contra ele e contra ela. Mas ela vencera e sabia quem eram os seus inimigos: sua meia-irmã Zadi, louca por sexo, a mentirosa prima Fazulia, com seus exageros idiotas, e, principalmente, a víbora do grupo, a irmã mais velha, Najoud, e o seu infame marido, Mahmud, que Deus os castigue pelas suas maldades.
— Najoud, querida, estou muito feliz de estar em casa, mas está na hora de dormir.
E foram para cama. Todas elas. Algumas alegres, outras tristes, algumas odiando, outras amando, algumas com os maridos, outras sozinhas. Os homens podiam ter quatro esposas ao mesmo tempo, de acordo com o Corão, desde que tratassem todas elas com igualdade — só Maomé, o Profeta, tivera permissão para ter quantas esposas desejasse. De acordo com a tradição, o Profeta teve 11 esposas durante sua vida, embora não ao mesmo tempo. Algumas morreram, de outras ele se divorciou, e algumas sobreviveram a ele. Mas todas o honraram para sempre.
Erikki acordou quando Azadeh deitou-se na cama ao seu lado.
— Devemos partir o mais cedo possível, Azadeh, minha querida.
— Sim — concordou, quase dormindo, com a cama tão confortável e ele tão confortável. — Sim, quando você quiser, mas por favor, não antes do almoço, porque a querida madrasta vai chorar rios de lágrimas...
— Azadeh!
Mas ela já estava dormindo. Ele suspirou, também satisfeito, e voltou a dormir.
Eles não partiram no domingo conforme o planejado — o pai dela disse que não era conveniente, pois queria conversar com Erikki primeiro. Hoje de madrugada, segunda-feira, depois das orações conduzidas pelo pai dela, e depois do café — café, pão, mel, iogurte e ovos — tiveram permissão para partir e agora pegavam a estrada principal para Teerã, e na frente deles estava a barreira.
— É estranho — disse Erikki. O coronel Mazardi combinara encontrá-los ali, mas não estava à vista, nem havia ninguém na barreira.
— Polícia — retrucou Azadeh, com um bocejo. — Nunca estão onde se precisa deles.
A estrada subia em direção ao desfiladeiro. O céu estava claro e azul e a luz já banhava os picos das montanhas. Lá embaixo, no vale, ainda estava escuro, frio e úmido; a estrada estava escorregadia, com montículos de neve, mas isso não o preocupou porque o Range Rover tinha tração nas quatro rodas e ele trazia correntes. Mais além, quando chegou ao desvio que ia para a base, ele passou direto. Sabia que a base estava vazia, que o 212 estava a salvo aguardando reparos. Antes de deixar o palácio, tentara entrar em contato com seu administrador, Dayati, sem sucesso. Mas não se importou. Erikki se ajeitou no assento, estava com os tanques cheios e com seis latas de cinco galões de reserva, que apanhara na bomba particular de Abdullah.
Posso chegar facilmente em Teerã ainda hoje, pensou. E voltar na quarta-feira, se voltar. Aquele filho da mãe do Rakoczy deu notícias realmente muito ruins.
— Quer um pouco de café, querido? — perguntou Azadeh.
— Obrigado. Veja se consegue pegar a BBC ou a Voz da América nas ondas curtas. — Aceitou satisfeito o café quente da garrafa térmica, escutando o barulho da estática, do efeito heteródino e das estações soviéticas e quase mais nada. As estações iranianas ainda estavam fora do ar por causa da greve, exceto as que eram operadas pelos militares.
Durante o fim-de-semana, amigos, parentes, vendedores, empregados, tinham trazido boatos a respeito de tudo, desde a iminência de uma invasão soviética até uma também iminente invasão americana, desde golpes militares bem-sucedidos na capital até a covarde rendição de todos os generais a Khomeini e a renúncia de Bakhtiar.
— Asneira! — dissera Abdullah Khan. Ele era um homem corpulento de uns sessenta anos, de barba, com olhos escuros e lábios grossos, coberto de jóias e ricamente vestido. — Por que Bakhtiar iria renunciar? Ele não ganha nada com isso e, por enquanto, não há nenhum motivo.
— E se Khomeini vencer? — perguntara Erikki.
— É a Vontade de Deus. — O khan estava reclinado sobre tapetes no grande salão, Erikki e Azadeh sentavam-se em frente, e seu guarda-costas armado estava em pé, atrás dele. — Mas a vitória de Khomeini será apenas temporária, caso ele a consiga. As Forças Armadas vão dominá-lo, a ele e a seus mulás, mais cedo ou mais tarde. Khomeini é um homem velho. Morrerá logo, e quanto mais cedo melhor, pois embora tenha cumprido a Vontade de Deus e tenha sido o instrumento para expulsar o xá, cuja hora tinha chegado, ele é vingativo, bitolado, e tão megalomaníaco quanto o xá, se não for mais. Ele vai, com toda a certeza, assassinar mais iranianos do que o xá jamais o fez.
— Mas ele não é um homem santo, piedoso e tudo o que um aiatolá deve ser? — perguntou Erikki, cautelosamente, sem saber o que esperar. — Por que Khomeini faria isso?
— É o hábito dos tiranos. — O khan riu e apanhou outro halvah, um doce turco que ele adorava.
— E o xá? O que vai acontecer agora? — Apesar de Erikki não gostar do khan, estava satisfeito pela oportunidade de ouvir a opinião dele. Sua vida e de Azadeh no Irã dependia muito do khan e Erikki não tinha nenhuma vontade de partir.
— Será como Deus quiser. Muhammad Xá fez um bem enorme ao Irã, como seu pai antes dele. Mas nos últimos anos estava totalmente voltado para si mesmo e não queria ouvir ninguém, nem mesmo a xabanu, a imperatriz Farah, que é dedicada a ele e muito inteligente. Se tivesse juízo, abdicaria imediatamente em favor do seu filho Reza. Os generais precisam de um motivo para se unir, eles poderiam treiná-lo até que estivesse preparado para assumir o poder. Não se esqueça de que o Irã tem sido uma monarquia há quase três mil anos, sempre governado por um monarca com poderes absolutos, alguns diriam um tirano, só destituído pela morte. — Ele sorrira, com seus lábios grossos e sensuais. — Dos xás Qajar, nossa dinastia legítima que governou por 150 anos, só um, o último da linhagem, meu primo, morreu de causas naturais. Somos um povo oriental, não ocidental, que entende tortura e violência. A vida e a morte não são julgadas pelos seus padrões. — Seus olhos escuros pareceram ficar ainda mais escuros. — Talvez seja a Vontade de Deus que os Qajars voltem... sob o governo deles o Irã prosperou.
Não foi isso o que eu ouvi dizer, pensara Erikki. Mas se manteve calado. Não me compete julgar o que aconteceu ou o que acontecerá aqui.
Durante todo o domingo houve interferência na transmissão da BBC e da Voz da América, o que não era incomum. A Rádio de Moscou estava alta e clara, como sempre, e a Rádio Iramana Livre que transmitia até Tbilisi, ao norte da fronteira, também estava alta e clara como sempre. Suas transmissões em farsi e em inglês falavam em revolta geral contra "o governo ilegal de Bakhtiar, contra o xá e seus patrões americanos, comandados pelo intrigante e mentiroso presidente Carter. Hoje Bakhtiar tentou obter as boas graças do povo cancelando um total de 13 bilhões de dólares de contratos militares ilegais impostos ao país pelo recém-deposto xá: oito bilhões de dólares com os Estados Unidos, contratos para a compra de tanques centuriões dos ingleses, no valor de dos bilhões e trezentos milhões de dólares, mais dois reatores nucleares franceses, e um da Alemanha, no valor de dois bilhões e setecentos milhões de dólares. Esta notícia colocou em pânico os líderes ocidentais e, sem dúvida, levará a uma merecida crise nas bolsas de valores capitalistas..."
— Perdoe-me por perguntar, pai, mas o Ocidente vai falir? — perguntara Azadeh.
— Não desta vez — respondera o khan e Erikki viu seu rosto ficar mais frio. — A menos que os soviéticos decidam que chegou a hora de suspender o pagamento dos oitenta bilhões de dólares que devem aos bancos ocidentais, e até a alguns bancos orientais. — Ele rira sardonicamente, brincando com o fio de pérolas que usava em volta do pescoço. — É claro que os agiotas orientais são muito mais espertos; pelo menos não são tão gananciosos. Emprestam criteriosamente e exigem garantias e não acreditam em ninguém, muito menos no mito da 'caridade cristã'. — Todo mundo sabia que os Gorgons eram donos de enormes propriedades no Azerbeijão, terra rica em petróleo, de grande parte da Madeira Iraniana, de propriedades costeiras no mar Cáspio, da maior parte do bazar de Tabriz e da maioria dos bancos comerciais de lá.
Erikki lembrou-se dos boatos que ouvira sobre Abdullah Khan quando estava tentando conseguir permissão para se casar com Azadeh, sobre seu pão-durismo e sua falta de compaixão nos negócios: "Um caminho rápido para o paraíso ou para o inferno é dever um rial a Abdullah, o Cruel, não pagar invocando pobreza e ficar em Azerbeijão.
— Pai, permita-me perguntar, o cancelamento de tantos contratos vai causar prejuízos, não vai?
— Não, você não tem permissão para perguntar. Você já fez perguntas demais para um dia. Uma mulher deve refrear a língua e ouvir. Você pode sair agora.
Imediatamente, ela se desculpou pelo seu erro e saiu obedientemente.
— Com licença.
Erikki também se levantou para sair, mas o khan o fez parar.
— Eu ainda não lhe dei licença para sair. Sente-se. Agora, por que você está com medo de um único soviético?
— Não estou com medo dele, mas do sistema. Aquele homem tem que ser da KGB.
— Por que então você não o matou?
— Isso não teria ajudado e sim prejudicado a nós, à base, à Madeira Iraniana, à Azadeh, talvez até ao senhor. Ele me foi enviado por outros. Ele nos conhece, conhece o senhor. — Erikki observara o khan cuidadosamente.
— Eu conheço uma porção deles. Os russos, soviéticos ou czaristas, sempre cobiçaram o Azerbeijão, mas têm sido bons fregueses do Azerbeijão, e nos ajudaram contra os nojentos ingleses. Eu os prefiro aos ingleses, eu os compreendo. — Sorriu ainda mais friamente. — Seria fácil remover este Rakoczy.
— Ótimo, então faça isso, por favor. — Erikki dera uma gargalhada. — E todos os outros também. Isso seria realmente executar o trabalho de Deus.
— Não concordo — dissera o khan, mal-humorado. — Isso seria fazer o trabalho de Satã. Sem os soviéticos contra eles, os americanos e seus cães, os ingleses, dominariam a nós e ao resto do mundo. Eles engoliriam o Irã. Quase o fizeram no governo do Muhammad Xá. Sem a Rússia Soviética, quaisquer que sejam seus defeitos, não haveria resistência às estratégias nojentas da América, à sua arrogância nojenta, aos seus modos infames, seus jeans infames, sua música infame, sua comida infame, sua democracia infame, suas atitudes infames em relação à mulher, à lei e à ordem, sua pornografia nojenta, sua atitude ingênua em relação à diplomacia, e ao seu perverso, sim, esta é a palavra correta, ao seu perverso antagonismo ao Islã.
A última coisa que Erikki queria era um outro confronto. Mas apesar de sua resolução, sentiu a raiva subindo.
— Nos fizemos um açor..
— Por Deus, é verdade! — o khan gritou para ele. — É verdade.
— Não é, e nós fizemos um acordo diante do seu Deus e dos meus espíritos de que não discutiríamos política, nem a do seu mundo nem a do meu.
— É verdade, admita! — Abdullah Khan rosnou, com a cara contorcida de raiva. Uma das mãos dirigiu-se para a faca que estava na cintura, e imediatamente o guarda empunhou sua metralhadora, apontando para Erikki. — Em nome de Alá, você está me chamando de mentiroso, em minha própria casa? — berrou.
— Eu só estou lembrando ao senhor, Alteza, o acordo que fizemos em nome de Alá! — Os olhos escuros injetados de sangue o encararam. Ele o encarou de volta, pronto para sacar sua própria faca e matar ou ser morto; o perigo entre os dois era muito grande.
— Sim, sim, isso também é verdade — resmungou o khan, e o acesso de raiva passou tão depressa quanto começara. Ele olhou para o guarda e mandou-o embora, zangado. — Saia!
A sala agora estava muito silenciosa. Erikki sabia que havia outros guardas por perto e orifícios para observação nas paredes. Sentiu a testa coberta de suor e o peso de sua faca pukoh no meio das costas.
Abdullah Khan sabia que a faca estava lá e que Erikki a usaria sem hesitação. Mas o khan concedera-lhe permissão perpétua para andar armado na presença dele. Há dois anos atrás Erikki salvara-lhe a vida.
Isso aconteceu no dia em que Erikki pediu-lhe permissão para se casar com Azadeh e foi recusado imperiosamente.
— Não, por Alá, eu não quero infiéis na minha família. Saia da minha casa! Pela última vez!
Erikki erguera-se do tapete, com dor no coração. Nesse momento, ouviram ruído de luta do lado de fora da porta, seguido por tiros, então a porta abriu com violência e por ela entraram dois homens, assassinos armados com metralhadoras, enquanto a luta continuava no corredor. O guarda-costas do khan matou um, mas o outro crivou-o de balas e apontou a arma para Abdullah Khan, que estava sentado no tapete, em estado de choque. Antes que o assassino pudesse puxar o gatilho pela segunda vez, ele morreu, com a faca de Erikki atravessada na garganta. Na mesma hora, Erikki saltou em cima dele, arrancou-lhe a metralhadora das mãos e a faca da garganta, no mesmo instante em que outro assassino entrava na sala, atirando. Erikki acertara o rosto do homem com a metralhadora, matando-o, quase arrancando-lhe a cabeça com a força da pancada, depois correu, enfurecido, para o corredor. Três dos atacantes e dois guarda-costas estavam mortos ou morrendo. Os outros dois fugiram, mas Erikki foi atrás deles e os matou, voltando correndo para dentro. E foi só quando encontrou Azadeh, e viu que ela estava bem, que a sede de sangue o abandonou e ele se acalmou.
Erikki recordou como a havia deixado e voltado para o grande salão. Abdullah ainda estava sentado sobre os tapetes
— Quem eram aqueles homens?
— Assassinos. Inimigos, como os guardas que os deixaram entrar — respondera Abdullah Khan, com ódio. — Foi a Vontade de Deus que você estivesse aqui para me salvar, é pela Vontade de Deus que estou vivo. Você pode se casar com Azadeh, sim, mas por eu não gostar de você, nós dois vamos jurar diante do meu Deus e do seu, seja lá o que for que você adore, não discutir nem religião nem política, seja do seu mundo ou do meu, então talvez eu não tenha que mandar matá-lo.
E agora os mesmos frios olhos escuros o observavam. Abdullah Khan bateu palmas. Instantaneamente, a porta se abriu e um criado apareceu.
— Traga café! — O homem saiu rapidamente. — Vou deixar de lado esse assunto sobre o seu mundo e passar para outro que podemos discutir: minha filha, Azadeh.
Erikki colocou-se mais ainda na defensiva, sem saber até que ponto seu pai a controlava, ou quais eram os seus direitos como marido enquanto estivesse no Azerbeijão — um feudo do velho. Se Abdullah Khan ordenasse a Azadeh para voltar para casa e se divorciar dele, será que ela o faria? Acho que sim, temo que sim — ela não vai escutar uma só palavra contra o pai. Ela defendeu até o seu ódio paranóico pela América explicando o que o havia causado:
— Ele foi mandado para lá, para cursar a universidade, pelo seu pai. Ele passou uma fase terrível na América, Erikki, aprendendo a língua e tentando conseguir um diploma em economia como seu pai ordenara antes de ter permissão para voltar para casa. Meu pai odiava os outros estudantes, que zombavam dele porque não sabia jogar os seus jogos, porque era mais pesado do que eles, o que no Irã é um sinal de saúde, mas não na América, e era lento para aprender Mas, principalmente, por causa dos trotes que teve de agüentar; foi obrigado, Erikki, a comer coisas impuras que são contra a nossa religião, como carne de porco, a beber cerveja, vinho e outras bebidas alcoólicas, o que é contra a nossa religião, a fazer coisas indescritíveis e foi chamado de nomes horríveis. Eu também ficaria zangada se fosse comigo. Por favor, seja paciente com ele. Os soviéticos não o fazem ver sangue pelo que fizeram com seu pai, sua mãe e seu país? Tenha paciência com ele, por favor. Ele não concordou com o nosso casamento? Tenha paciência com ele.
Eu tenho sido muito paciente, pensou Erikki, mais paciente do que com qualquer outro homem, louco para a entrevista terminar.
— O que há com minha mulher, Alteza? — Era costume chamá-lo assim, e Erikki o fazia de vez em quando, por educação.
— Naturalmente, o futuro da minha filha me interessa. Qual é o seu plano quando chegar a Teerã?
— Não tenho nenhum plano. Só acho que é prudente tirá-la de Tabriz por alguns dias. Rakoczy disse que eles estavam 'solicitando' os meus serviços. Quando a KGB diz isto no Irã, na Finlândia ou até mesmo na América, é melhor você ficar alerta e se preparar para ter problemas. Se eles a raptassem, eu ficaria nas mãos deles.
— Eles poderiam raptá-la em Teerã muito mais facilmente do que aqui, se este for o plano deles. Você se esquece que está no Azerbeijão — e apertou os lábios com desprezo —, não no país de Bakhtiar.
— Só sei que isso é o que eu acho que é melhor para ela. Eu disse que a protegeria com minha própria vida, e o farei. Até que o futuro político do Irã esteja definido, por você e outros iranianos, acho que isso é a melhor coisa a fazer.
— Neste caso, vá. — O khan falara de uma forma tão brusca que ele tinha ficado assustado. — Se você precisar de ajuda, envie-me o seguinte código...
— Pensou por um momento. Então seu sorriso tornou-se sardônico: — Envie-me a frase: 'todos os homens nasceram iguais'. Esta é outra verdade, não é?
— Não sei, Alteza — disse cuidadosamente. — Seja ou não verdade, é certamente a Vontade de Deus.
Abdullah dera uma gargalhada, levantando-se e deixando-o sozinho no grande salão e Erikki sentira um frio na alma, profundamente perturbado pelo homem cujos pensamentos ele nunca pôde ler.
— Você está com frio, Erikki? — perguntou Azadeh.
— Oh, não, nem um pouco — disse, voltando à realidade, ouvindo o motor funcionando bem enquanto subiam a estrada da montanha em direção ao desfiladeiro. Havia pouco tráfego para ambos os lados. Quando saíram da curva, alcançaram a luz do sol e chegaram ao topo; imediatamente, Erikki mudou suavemente de marcha e ganhou velocidade ao iniciarem a longa descida. A estrada, construída por ordem do Reza Xá, bem como a ferrovia, era uma maravilha da engenharia, com cortes, aterros, pontes e partes íngremes sem nenhuma proteção do lado do precipício, com a superfície escorregadia, cheia de montes de neve. Ele tornou a trocar a marcha, dirigindo depressa mas com prudência, muito satisfeito por não terem saído à noite. — Posso tomar um pouco mais de café?
— Vou gostar de ver Teerã — disse Azadeh, servindo-lhe o café. — Há um monte de compras para fazer, Xarazade está lá, e eu tenho uma lista de coisas para comprar para minhas irmãs, creme facial para minha madrasta...
Ele mal ouvia, com o pensamento em Rakoczy, em Teerã, em McIver, e no próximo passo.
A estrada descia em curvas. Diminuiu a velocidade e passou a dirigir com mais cuidado, vendo algum tráfego pelo retrovisor. Logo atrás havia um carro de passageiros, superlotado como sempre, e o motorista dirigia perto demais, depressa demais e com a mão permanentemente na buzina, mesmo quando era impossível sair da frente. Erikki fechou os ouvidos à impaciência, com a qual ele nunca se acostumara, nem à maneira imprudente dos iranianos dirigirem, até mesmo Azadeh. Fez a curva seguinte com a inclinação mais acentuada, e mais à frente, não muito longe, viu um caminhão cheio de carga subindo e um carro ultrapassando-o pela contramão. Freou, apertando-se contra a encosta. Nesse momento, o carro atrás dele acelerou, passou por ele tocando a buzina, ultrapassando-o sem olhar, saindo pela contramão. Os dois carros bateram e ambos caíram no precipício de 150 metros de altura, pegando fogo. Erikki encostou ainda mais e parou. O caminhão não parou, apenas continuou subindo a montanha como se nada tivesse acontecido e os outros carros fizeram o mesmo.
Ele chegou na beirada e olhou para o vale lá embaixo. Destroços dos carros, ainda incendiando, espalhavam-se pela encosta a duzentos metros, sem possibilidade de haver sobreviventes, e sem nenhuma chance de se descer até lá sem equipamento adequado. Quando voltou para o carro, sacudiu a cabeça com tristeza.
— Insha'Allah, meu querido — disse Azadeh, calmamente. — Foi a Vontade de Deus.
— Não, não foi, foi pura estupidez.
— É claro que você tem razão, querido, foi certamente estupidez — disse imediatamente, na sua voz mais apaziguadora, vendo sua raiva e não entendendo, como não entendia muito do que se passava pela cabeça desse homem estranho que era seu marido. — Você tem toda a razão, Erikki. Foi pura estupidez, mas foi pela Vontade de Deus que a estupidez desses motoristas causou-lhes a morte e daqueles que viajavam com eles. Foi a Vontade de Deus ou a estrada estaria livre. Você tem toda a razão.
— Tenho mesmo? — disse, cansado.
— É claro que sim, Erikki. Toda a razão.
Prosseguiram. As aldeias que ficavam à beira da estrada ou que eram cortadas por ela, eram pobres ou muito pobres, com ruazinhas de terra, choupanas e casas toscas, altos muros, algumas mesquitas sem vida, lojinhas de rua, cabras, ovelhas e galinhas, e as moscas, que ainda não eram a praga em que se tornavam no verão. Havia sempre lixo nas ruas e nos joub — os fossos — e as inevitáveis matilhas de cães sarnentos, abandonados, freqüentemente raivosos. Mas a neve tornava a paisagem e as montanhas pitorescas, e o dia continuou a ser bom, embora frio, com o céu azul e nuvens se formando.
Dentro do Range Rover estava quente e confortável. Azadeh usava uma roupa de esqui acolchoada e um suéter de cashmere por baixo, do mesmo tom de azul, botas curtas. Ela tinha tirado a jaqueta e o gorro de esqui, e seus cabelos cheios, naturalmente escuros e ondulados, caíam-lhe pelos ombros. Perto do meio-dia, pararam para almoçar ao lado de um riacho. No começo da tarde, viajaram através de plantações de maçã, pêra e cereja, no momento desfolhadas e nuas, depois chegaram aos arredores de Qazvin, uma cidade de uns 150 mil habitantes e muitas mesquitas.
— Quantas mesquitas existem ao todo no Irã, Azadeh? — perguntou.
— Uma vez eu ouvi dizer que eram vinte mil — respondeu sonolenta, abrindo os olhos e espiando à sua frente. — Ah, Qazvin! Você fez um bom tempo, Erikki! — Bocejou, ajeitou-se mais confortavelmente e voltou a cochilar. — Há vinte mil mesquitas e cinqüenta mil mulás, segundo dizem. Neste ritmo estaremos em Teerã dentro de duas horas...
Ele sorriu quando ela tornou a cochilar. Estava se sentindo mais seguro agora, satisfeito por já ter vencido a maior parte da viagem. Depois de Qazvin a estrada era boa até Teerã. Em Teerã, Abdullah Khan tinha muitas casas e apartamentos, a maioria alugados para estrangeiros. Alguns, reservava para uso próprio e de sua família, e dissera a Erikki que, desta vez, por causa dos distúrbios, eles podiam ficar num apartamento não muito distante do de McIver.
— Obrigado, muito obrigado — agradecera Erikki e, mais tarde, Azadeh comentara:
— Não sei por que ele foi tão gentil. Não... não é típico dele. Ele odeia você e me odeia por mais que tente agradá-lo.
— Ele não odeia você, Azadeh.
— Peço desculpas por discordar de você, mas ele me odeia. Vou lhe dizer mais uma vez, meu querido, foi minha irmã mais velha, Najoud, quem realmente o envenenou contra mim e contra meu irmão. Ela e o seu maldito marido. Não se esqueça de que minha mãe era a segunda esposa do meu pai, tinha quase a metade da idade da mãe de Najoud e era duas vezes mais bonita e apesar de minha mãe ter morrido quando eu tinha sete anos, Najoud ainda guarda o veneno, não na nossa frente, é claro, ela é muito esperta para isso. Erikki, você não imagina como as mulheres iranianas podem ser sutis, enganadoras e poderosas, ou o quanto podem ser vingativas sob uma aparência tão doce. Najoud é pior do que a serpente do jardim do Éden! Ela é a causa de toda a inimizade. — Seus lindos olhos azuis esverdeados encheram-se de lágrimas. — Quando eu era pequena, meu pai nos amava de verdade, ao meu irmão Hakim e a mim, e nós éramos os seus favoritos. Ele passava mais tempo conosco, na nossa casa, do que no palácio. Então, quando mamãe morreu, fomos morar no palácio, mas nenhum dos nossos meios-irmãos e irmãs gostavam realmente de nós. Quando fomos para o palácio, Erikki, tudo mudou. Foi Najoud.
— Azadeh, você se acaba com esse ódio. É você quem sofre e não ela. Esqueça-a. Agora, ela não tem mais nenhum poder sobre você e vou-lhe dizer mais uma vez: você não tem nenhuma prova.
— Não preciso de provas. Eu sei. E nunca vou esquecer.
Erikki não respondeu. Não havia sentido em discutir, em remexer no que fora a causa de muita violência e muitas lágrimas. É melhor botar para fora do que guardar, é melhor deixá-la enfurecer-se de vez em quando.
A estrada agora deixava os campos e entrava em Qazvin, uma cidade igual a muitas outras cidades iranianas, barulhenta, abafada, suja, poluída e engarrafada. Ao lado da estrada ficavam os joub que contornavam a maioria das estradas do Irã. Aqui, os fossos tinham um metro de profundidade, com partes de concreto, e com lama, gelo e água escorrendo por eles. Árvores cresciam lá dentro, as pessoas lavavam suas roupas neles, às vezes os usavam como reservatório de água para beber, ou como esgoto. Depois dos fossos, começavam os muros. Muros que escondiam casas ou jardins, grandes ou pequenos, ricos ou miseráveis. Nas cidades, as casas em geral tinham dois andares, eram sem graça, com a forma de um caixote, algumas de tijolo, outras de argila, algumas com reboco, mas quase todas escondidas. A maioria tinha chão de terra, poucas possuíam água corrente, eletricidade e algum tipo de instalação sanitária.
O tráfego aumentou com uma rapidez espantosa. Bicicletas, motocicletas, ônibus, caminhões, carros de todos os tamanhos, marcas e idades, desde os mais novos até os mais velhos, quase todos amassados, alguns decorados com pinturas de várias cores e pequenas luzes, de acordo com a fantasia do dono. Erikki passara diversas vezes por ali, nos últimos anos, e conhecia todos os locais de engarrafamento possíveis. Mas não havia nenhum outro caminho, nenhum desvio contornando a cidade, embora houvesse um antigo plano para isso. Sorriu desdenhosamente, tentando ignorar o ruído, e pensou: Nunca farão esse desvio, os moradores não agüentariam o silêncio. Os habitantes de Qazvin e de Rasht, no mar Cáspio, eram alvos de muitas piadas iranianas.
Desviou-se de um destroço queimado, depois colocou uma fita cassete de Beethoven e aumentou o volume para abafar o barulho. Mas não adiantou muito.
— Este tráfego está pior do que o normal! Onde está a polícia? — disse Azadeh, agora totalmente desperta. — Você está com sede?
— Não, obrigado. — Olhou para ela, de suéter e com os cabelos soltos realçando-lhe a beleza. Sorriu. — Mas estou com fome... com fome de você.
— Eu não estou só com fome, estou faminta — disse rindo, e lhe deu o braço.
— Ótimo! — Eles eram felizes juntos.
Como sempre, a estrada estava ruim, com vários buracos — em parte pelo uso, em parte por causa dos reparos e obras infindáveis, embora raramente houvesse sinalização ou barreiras de segurança. Ele se desviou de um buraco bastante fundo e depois passou devagar por outro destroço que fora empurrado de qualquer maneira para um dos lados. Nesse momento, um caminhão amassado veio da direção oposta, com a buzina tocando furiosamente. Estava brilhantemente decorado, tinha os pára-lamas amarrados com arame, a cabine aberta e sem vidro, e a tampa do tanque era um pedaço de pano. Na traseira, uma pilha alta de galhos de árvore, e três passageiros precariamente pendurados. O motorista estava embrulhado num casaco esfarrapado de pele de carneiro. Havia dois outros homens a seu lado. Quando Erikki passou, percebeu, surpreso, que todos o olhavam. Poucos metros adiante, um ônibus amassado e superlotado veio pesadamente em sua direção. Com muito cuidado, desviou para mais perto do fosso, raspando com o lado do carro para dar passagem ao ônibus, suas rodas bem na beirada, e então parou. Mais uma vez, viu que ó motorista e todos os passageiros o olharam ao passar, mulheres de chador, rapazes barbados e bem agasalhados contra o frio. Um deles sacudiu o punho para ele. Um outro gritou um palavrão.
Nós nunca tivemos nenhum problema antes, pensou Erikki, pouco à vontade. Para onde quer que olhasse, via os mesmos olhares zangados. Da rua e dos veículos. Tinha que ir devagar por causa dos enxames de motocicletas e bicicletas que passavam no meio dos carros, dos ônibus e dos caminhões que disputavam espaço na única pista — sem obedecer a nenhuma outra lei de tráfego a não ser às que lhes agradavam — e agora um rebanho de ovelhas saía de uma rua lateral e inundava a estrada, com os motoristas xingando os pastores e os pastores xingando de volta, todo mundo zangado e impaciente, e as buzinas tocando sem parar.
— Maldito tráfego! Ovelhas estúpidas! — disse Azadeh, impaciente-mente, agora bem acordada. — Toque a buzina, Erikki!
— Tenha paciência, volte a dormir. Não há jeito de ultrapassar ninguém — gritou por cima do tumulto, consciente da inimizade que o cercava. — Seja paciente!
Para atravessar outros trezentos metros, levaram meia hora, com mais tráfego vindo de ambos os lados para se juntar ao fluxo que foi ficando cada vez mais lento. Vendedores de rua, pedestres e lixo. Agora ele se arrastava atrás de um ônibus que ocupava quase toda a estrada, quase arranhando os carros do outro lado, andando a maior parte do tempo com uma das rodas sobre a borda do fosso. Os motociclistas passavam sem o menor cuidado, batendo na carroceria do Range Rover e dos outros veículos, xingando-se uns aos outros e a todo mundo que estava em volta, empurrando e chutando as ovelhas, fazendo-as debandar. Vindo de trás, um pequeno carro encostou nele e o motorista enfiou a mão na buzina num paroxismo de raiva que fez o ódio subir à cabeça de Erikki. Feche os ouvidos, ordenou a si mesmo. Tenha calma! Não há nada que você possa fazer! Tenha calma!
Mas achou isso cada vez mais difícil. Depois de meia hora, as ovelhas entraram numa picada e o tráfego andou um pouco mais depressa. Então, depois da curva seguinte, apareceu um conserto na estrada sem nenhuma sinalização, e um buraco com mais de um metro de profundidade, cheio de água, impedia a passagem. Um grupo de trabalhadores insolentes estava agachado ali perto, gritando palavrões e fazendo gestos obscenos.
Era impossível avançar ou recuar. Todo o tráfego foi obrigado a se desviar para uma ruazinha estreita, e o ônibus que estava na frente não conseguiu fazer a curva, tendo que parar e manobrar, causando mais tumulto e mais gritos de raiva, e quando Erikki deu marcha à ré para dar espaço para o ônibus, um carro azul todo amassado que estava atrás dele desviou para o lado oposto da estrada, ultrapassando-o, e enfiando-se na pequena abertura, obrigando o carro que vinha em sentido contrário a frear e derrapar. Uma das rodas do carro entrou no fosso e o carro balançou perigosamente. O tráfego agora estava totalmente enrolado.
Furioso, Erikki puxou o freio de mão, abriu a porta e foi até o carro que estava pendurado no fosso, usando toda a sua força para puxá-lo para a estrada. Ninguém mais ajudou, apenas xingavam e contribuíam para aumentar a confusão. Então Erikki caminhou em direção ao carro azul mas, neste momento, o ônibus fez a curva e houve espaço para andar e o motorista do carro azul engrenou e arrancou com um gesto obsceno.
Com esforço, Erikki relaxou os punhos. Os veículos dos dois lados da estrada buzinavam para ele. Entrou no carro e engrenou.
— Tome — disse Azadeh, inquieta. E lhe passou uma xícara de café.
— Obrigado. — Tomou o café, guiando com uma das mãos, o tráfego mais uma vez ficando lento. O carro azul desaparecera. Quando pôde falar calmamente, ele disse: — Se eu tivesse posto as mãos nele ou no carro, eu os teria feito em pedaços.
— Sim. Sim, eu sei. Erikki, você notou como todo mundo está hostil conosco? Como estão zangados?
— Sim, notei.
— Mas por quê? Nós já passamos por Qazvin mais de vinte ve... — Azadeh recuou involuntariamente quando um monte de lixo bateu de repente na sua janela, e chegou para perto dele, assustada. Erikki praguejou e fechou os vidros, depois estendeu o braço por cima dela e trancou a porta. Um monte de estrume foi jogado no pára-brisa.
— O que está havendo com esses matyeryebyets! — resmungou. — É como se estivéssemos exibindo uma bandeira americana e acenando com retratos do xá. — Uma pedra foi jogada não se sabe de onde e ricocheteou do lado do carro. Então o ônibus que estava na frente deles saiu da ruazinha lateral e entrou na ampla praça com uma mesquita ao fundo, onde havia barracas de feira e duas pistas de tráfego de cada lado. Para alívio de Erikki, puderam aumentar a velocidade. O tráfego ainda estava pesado, mas já começava a fluir e ele colocou em segunda, buscando a saída para Teerã, do outro lado da praça. No meio do caminho, as duas pistas começaram a ficar mais congestionadas à medida que mais veículos se juntavam aos que se dirigiam para a estrada de Teerã.
— Isso nunca esteve tão ruim — resmungou. — O que será que está impedindo o tráfego?
— Deve ser outro acidente — disse Azadeh, muito inquieta. — Ou obras na estrada. Vamos voltar? O tráfego não está tão ruim daquele lado.
— Temos muito tempo — disse para animá-la. — Vamos sair daqui em um minuto. Assim que sairmos da cidade, tudo estará bem. — Lá na frente, estava tudo parado de novo e o barulho aumentou. As duas pistas tornavam a se unir, engarrafando, com muita gritaria, impropérios, com os carros andando, parando e se arrastando a dez quilômetros por hora, as barracas e as carroças invadindo a estrada e subindo pelo fosso. Estavam quase na saída quando alguns jovens começaram a correr ao lado do carro gritando insultos, alguns obscenos. Um dos rapazes bateu na janela.
— Cão americano...
— Porco americano...
A estes homens se juntaram outros e algumas mulheres vestindo o chador, com os punhos levantados. Erikki estava encurralado e não podia sair da estrada nem aumentar a velocidade, nem podia retroceder. Sentiu a raiva crescer com a impotência. Alguns homens batiam no capô, nas laterais e nas janelas do Range Rover. Agora já havia um bando deles e os que estavam do lado de Azadeh provocavam-na, fazendo gestos obscenos, tentando abrir a porta. Um dos rapazes pulou no capô mas escorregou e caiu mas conseguiu sair do caminho antes que Erikki passasse por cima dele.
O ônibus da frente parou. Imediatamente, houve uma confusão frenética de passageiros que queriam entrar e outros que queriam sair. Então Erikki viu uma abertura, pisou no acelerador, atirando um homem no chão, ultrapassou o ônibus, quase atropelando os pedestres que andavam displicentemente pelo meio dos veículos, e entrou numa rua lateral que estava milagrosamente livre, acelerou e entrou em outra, evitou por pouco um bando de motocicletas e prosseguiu. Logo ficou inteiramente perdido, pois a única coisa igual nas cidades grandes ou pequenas eram os vira-latas, o lixo e o tráfego, mas ele se orientou pela sombra do sol e finalmente chegou numa rua mais larga, enfiou o carro no fluxo do tráfego, tornou a sair, e logo chegou a uma rua que reconheceu, uma rua que o levou para outra praça, em frente a outra mesquita e depois de volta à estrada de Teerã.
— Está tudo bem agora, Azadeh, eram apenas uns vândalos.
— Sim — respondeu, abalada. — Deviam ser chicoteados.
Erikki vinha observando as multidões próximas à mesquita, nas ruas e nos veículos, tentando encontrar uma pista para aquela hostilidade inesperada. Há algo de estranho, pensou. O que era? Então sentiu um vazio no estômago.
— Não vi nenhum soldado nem nenhum caminhão do Exército, desde que saímos de Tabriz. Nenhum. Você viu?
— Não, não vi.
— Alguma coisa aconteceu. Alguma coisa séria.
— Guerra? Os soviéticos invadiram a fronteira? — Seu rosto perdeu ainda mais a cor.
— Duvido. Haveria tropas indo para o norte, ou aviões. Não se preocupe — disse, mais para convencer a si mesmo. — Vamos nos divertir em Teerã, Xarazade está lá e também muitos amigos seus. Já estava na hora de você mudar um pouco. Talvez eu tire a licença a que tenho direito. Podíamos ir para a Finlândia por uma ou duas semanas...
Estavam saindo do centro da cidade e entrando nos subúrbios. Os subúrbios estavam em ruínas, com as mesmas casas e muros e ruas esburacadas. Aqui, a estrada para Teerã se alargava em quatro pistas, duas de cada lado, e embora o tráfego ainda estivesse lento e pesado, mal chegando a vinte quilômetros por hora, ele não se importou. Um pouco à frente, a estrada Abadan—Kermanshah bifurcava-se em direção a sudoeste, e ele sabia que ela escoaria bastante o tráfego. Automaticamente, seus olhos examinaram os mostradores da mesma forma que examinariam os instrumentos de sua cabine, e não foi a primeira vez que desejou estar voando, longe de toda aquela bagunça. O mostrador de gasolina registrava menos de um quarto. Em pouco tempo teria que reabastecer, mas isso não seria problema, com tanto combustível de reserva no carro.
Diminuíram a marcha para ultrapassar outro caminhão estacionado displicentemente perto de alguns vendedores de beira de estrada, o ar pesado com o cheiro do diesel. Então mais lixo surgiu não se sabe de onde e se espalhou pelo pára-brisa.
— Talvez fosse melhor voltarmos, Erikki e regressar a Tabriz. Talvez pudéssemos passar por fora de Qazvin.
— Não — disse, estranhando que ela estivesse amedrontada; normalmente, ela não tinha medo de nada. — Não — repetiu com mais delicadeza.
— Vamos para Teerã descobrir qual é o problema, depois decidiremos o que fazer.
Ela chegou mais para perto dele e pôs a mão no seu joelho.
— Aqueles vândalos me assustaram. Que Deus os amaldiçoe — murmurou, os dedos brincando nervosamente com o colar de turquesas que usava em volta do pescoço. A maioria das mulheres iranianas usava turquesas ou contas azuis, ou uma única pedra azul contra o mau-olhado. — Aqueles cães danados! Por que fizeram aquilo? Demônios. Que Deus os amaldiçoe eternamente! — Logo na saída da cidade havia um grande campo de treinamento do Exército e uma base aérea. — Por que não há soldados aqui?
— Eu também gostaria de saber.
O desvio para a estrada Abadan—Kermanshah surgiu à direita. Grande parte do tráfego se dirigia para lá. Cercas de arame farpado dividiam as duas estradas — como em quase todas as rodovias do Irã. As cercas eram necessárias para evitar que ovelhas, bodes, vacas, cachorros — e pessoas — atravessassem as estradas. Os acidentes eram muito freqüentes e a mortalidade alta.
Mas isso é normal para o Irã, pensou Erikki. Como aqueles pobres idiotas que caíram da encosta da montanha. Ninguém para tomar conhecimento, ninguém para comunicar o fato, ninguém para enterrá-los. Exceto os falcões, os animais selvagens e as matilhas de cães danados.
Com a cidade atrás deles, sentiram-se melhor. O campo tornou a surgir, mais uma vez os pomares para além do fosso e do arame farpado. As montanhas Elburz ao norte e os campos se ondulando para o sul. Mas em vez de andar mais depressa, as duas pistas ficaram ainda mais vagarosas e congestionadas, depois fundiram-se outra vez numa só, com mais batidas, gritaria e raiva. Cansado, ele xingou as inevitáveis obras que deviam estar causando a retenção, diminuiu a marcha, suas mãos e pés trabalhando automaticamente, mal notando o anda-pára, anda-pára, com os motores rangendo e esquentando, o barulho e a frustração crescendo em cada veículo. De repente, Azadeh apontou para a frente.
— Olhe!
Uns cem metros à frente havia uma barreira. Grupos de homens a cercavam. Alguns estavam armados, todos eram civis e estavam pobremente vestidos. A barreira ficava próxima a uma pequena aldeia, com barracas na margem da estrada e na campina do lado oposto. Aldeões, mulheres e crianças, se misturavam com os homens. Todas as mulheres usavam o chador negro ou cinzento. A cada carro que parava, papéis eram verificados para que o veículo tivesse permissão de passar. Vários carros tinham sido retirados da estrada e levados para a campina, onde grupos de homens interrogavam os ocupantes. Erikki viu mais armas no meio deles.
— Não são Faixas Verdes — disse.
— Não há nenhum mulá. Você está vendo algum?
— Não.
— Não são nem do Tudeh, nem mujhadins, nem fedayins.
— É melhor você ficar com a carteira de identidade preparada — e sorriu para ela. — Vista o casaco para não se resfriar quando eu abrir a janela, e ponha o chapéu. — Não era o frio que o preocupava. Era a curva dos seus seios, por baixo do suéter, a delicadeza da sua cintura e o seu cabelo solto.
No porta-luvas havia uma faca pukoh pequena, dentro de um estojo. Ele a escondeu na bota direita. A outra, a sua faca grande, estava por baixo do casaco, nas costas.
Quando finalmente chegou a vez deles, homens rudes e barbados cercaram o Range Rover. Alguns tinham rifles americanos, um tinha um AK47. Havia algumas mulheres, apenas rostos dentro do chador, que olharam para Azadeh com reprovação.
— Papéis — um dos homens disse em farsi, estendendo a mão, com um hálito fedorento, e o cheiro desagradável de roupas e corpos sujos invadiu o carro. Azadeh ficou olhando para a frente, tentando não prestar atenção aos olhares e comentários e na proximidade, a que não estava acostumada.
Educadamente, Erikki entregou sua carteira de identidade e a de Azadeh. O homem segurou-as, olhou-as e passou-as para um rapaz que sabia ler. Todos os outros esperaram em silêncio, observando, batendo com os pés por causa do frio. Finalmente, o rapaz disse em farsi:
— Ele é um estrangeiro de algum lugar chamado Finlândia. Vem de Tabriz. Não é americano.
— Ele parece americano — disse alguém.
— A mulher se chama Gorgon, ela é mulher dele... pelo menos é isso que está nos papéis.
— Eu sou mulher dele — disse Azadeh, rispidamente. — Se...
— Quem lhe perguntou alguma coisa? — O primeiro homem interrompeu-a rudemente. — O seu nome de família é Gorgon, que é um sobrenome de latifundiários, e o seu sotaque é sofisticado como os seus modos e é mais do que provável que você seja uma inimiga do povo.
— Eu não sou inimiga de ninguém. Por...
— Cale-se. As mulheres devem ter modos, devem ser castas e cobrir-se e ser obedientes mesmo num Estado socialista. — O homem se virou para Erikki. — Para onde vocês vão?
— O que foi que ele disse, Azadeh? — perguntou Erikki. Ela traduziu.
— Para Teerã — disse calmamente para o sujeito. — Azadeh, diga a ele que estamos indo para Teerã. — Tinha contado seis rifles e uma automática. Estava preso pelo tráfego, não havia nenhuma maneira de escapar. Ainda.
— Meu marido não fala farsi — acrescentou Azadeh, depois de traduzir.
— Como podemos ter certeza disso? E como vamos saber se vocês são mesmo casados? Onde está a certidão de casamento?
— Não está comigo. Na minha carteira de identidade está escrito que eu sou casada.
— Mas esta carteira é do tempo do xá. Uma carteira ilegal. Onde está sua carteira nova?
— Uma carteira dada por quem? Assinada por quem? — retrucou agressivamente. — Devolva os nossos documentos e nos deixe passar!
A firmeza dela perturbou-os. O homem hesitou.
— Você deve compreender que há muitos espiões e inimigos do povo que precisam ser apanhados...
Erikki podia sentir o coração batendo. Caras fechadas, pessoas da Idade Média. Feias. Mais homens se juntaram ao grupo que estava em volta deles. Um deles acenou raivosa e barulhentamente para os carros e caminhões que estavam atrás, mandando-os passar para serem examinados. Ninguém buzinava. Todo mundo esperava pacientemente a sua vez. E por cima de todo o barulho do tráfego, crescia um pavor silencioso.
— O que está havendo aqui? — Um homem atarracado abriu caminho através da multidão. Os outros lhe deram passagem respeitosamente. Sobre o ombro, trazia uma metralhadora tcheca. O outro explicou e entregou-lhe os papéis. O rosto do homem atarracado era redondo e barbado, seus olhos escuros e suas roupas pobres e sujas. Um tiro foi disparado de repente e todas as cabeças se viraram para a campina.
Um homem estava caído no chão ao lado de um carro pequeno que tinha sido retirado da estrada. Um dos rebeldes debruçava-se sobre ele com uma automática na mão. O outro passageiro fora empurrado contra o carro, com as mãos em cima da cabeça. De repente, ele conseguiu se livrar e correu. O homem que tinha a arma levantou-a e atirou, errou e tornou a atirar. Desta vez o homem que corria gritou e caiu, gemendo em agonia, tentando se arrastar, sem poder mais mexer com as pernas. Lentamente, o homem com o revólver foi até lá, esvaziou o tambor em cima dele, matando-o aos poucos.
— Ahmed! — gritou o homem atarracado. — Por que desperdiçar balas quando podia fazer isso com suas botas? Quem são eles?
— Savak! — Um murmúrio de satisfação percorreu a multidão e os aldeões, e alguém bateu palmas.
— Idiota! Então por que matá-los tão depressa? Traga-me os papéis deles.
— Os cães tinham papéis dizendo que eram negociantes de Teerã, mas eu conheço um Savak quando o vejo. Você quer os papéis falsos?
— Não. Rasgue-os. — O homem atarracado tornou a virar-se para Erikki e Azadeh. — É assim que os inimigos do povo serão exterminados.
Ela não respondeu. As identidades deles estavam naquelas mãos pegajosas, E se os nossos papéis também forem considerados falsos? Insha'Allah!
Quando o homem atarracado terminou de examinar as identidades, ele encarou Erikki. Depois a ela.
— Você afirma ser Azadeh Gorgon Yokkonen... mulher dele?
— Sim.
— Ótimo. — Ele enfiou as identidades deles no bolso e fez um sinal com o polegar em direção à campina. — Diga a ele para guiar até lá. Vamos revistar o carro.
— Mas o...
— Faça isso. AGORA! — O homem atarracado subiu no pára-lama, com as botas arranhando a pintura. — O que é aquilo? — perguntou, apontando para a cruz azul sobre fundo branco que estava pintada no teto.
— É a bandeira finlandesa — disse Azadeh. — Meu marido é finlandês.
— Por que ela está lá?
— Porque ele gosta.
O homem atarracado cuspiu, depois tornou a apontar na direção da campina.
— Depressa! Para lá. — Quando chegaram num lugar vazio, com a multidão atrás, ele desceu. — Fora. Quero revistar o carro para ver se tem armas e contrabando.
— Nós não temos nem armas nem...
— Fora! E você, mulher, guarde a língua! — As velhas da multidão o apoiaram. Ele fez um sinal, iradamente, para os dois corpos abandonados na lama. — A justiça do povo é rápida e definitiva, não se esqueça disso. — Apontou para Erikki. — Diga ao gigante do seu marido o que eu falei. Se é que ele é seu marido.
— Erikki, ele está dizendo que a justiça... que a justiça do povoe rápida c definitiva e que não se esqueça disso. Tome cuidado, meu querido. Nós, nós temos que sair do carro. Eles querem revistá-lo.
— Está bem. Mas saia pelo meu lado.
Elevando-se acima da multidão, Erikki saiu. Protetoramente, pôs o braço em volta dela, com homens, mulheres e algumas crianças cercando-os, deixando-lhes pouco espaço. O fedor de corpos sujos era esmagador. Ele podia senti-la tremer, por mais que tentasse ocultá-lo. Juntos, viram o homem atarracado e outros subirem no carro impecável, pisando nos assentos com suas botas enlameadas. Outros destrancaram a porta de trás, tirando e espalhando negligentemente as coisas deles, mãos sujas mexendo em bolsos, abrindo tudo — as malas dele e as dela. Então um dos homens exibiu as roupas de baixo e as camisolas finas de Azadeh para os assovios e zombarias da multidão. As velhas resmungaram sua desaprovação. Uma delas esticou a mão e tocou-lhe o cabelo. Azadeh recuou mas os que estavam atrás não se afastaram. Imediatamente, Erikki se moveu para ajudar, mas a massa não saiu do lugar, embora os que estavam perto dele tenham gritado, quase esmagados, e seus gritos enfureceram os outros que se aproximaram ainda mais, ameaçadoramente, gritando com ele.
De repente, Erikki percebeu, pela primeira vez, que não podia proteger Azadeh. Sabia que podia matar uma dúzia antes que o dominassem e o matassem, mas isso não a protegeria.
Isso o abalou profundamente.
Suas pernas ficaram fracas e ele sentiu uma vontade incontrolável de urinar, o cheiro do seu próprio medo o sufocou e teve que lutar contra o pânico que o invadia. Entorpecido, observou seus pertences serem profanados. Alguns homens se afastavam com os galões de gasolina que eram vitais para eles, sem os quais nunca chegariam a Teerã, uma vez que todos os postos de gasolina estavam em greve. Tentou obrigar as pernas a se mexerem, mas elas não funcionaram, nem sua boca. Então uma das velhas gritou com Azadeh que sacudiu a cabeça como se estivesse tonta, e os homens gritaram junto, empurrando-os, fechando o cerco em volta deles, com seu cheiro fétido enchendo-lhes as narinas, os ouvidos dele entupidos de farsi.
O braço de Erikki ainda estava em volta dela, e no meio do barulho Azadeh olhou para cima e ele percebeu o seu terror, mas não conseguiu ouvir o que ela estava dizendo. Novamente tentou abrir mais espaço para os dois, mas tornou a fracassar. Desesperado, procurou conter o pânico selvagem, claustrofóbico e o desejo crescente de lutar que estavam começando a tomar conta dele, sabendo que se começasse, isso iniciaria o tumulto que os destruiria. Mas não pôde conter-se e atacou cegamente com o cotovelo livre, no exato momento em que uma camponesa robusta, com olhos estranhos e raivosos abriu caminho pela multidão e atirou o chador no peito de Azadeh, despejando um paroxismo de farsi em cima dela, distraindo a atenção do homem que caíra atrás dele, e que agora estava deitado sob seus pés, com o peito amassado pelo golpe de Erikki.