LIVRO DOIS
SÁBADO
17 de fevereiro30
EM KOWISS: 6:38H. O mulá Hussein estava sentado de pernas cruzadas no fino colchão, checando o funcionamento do AK47. Com um movimento experiente, ele colocou no lugar o novo pente de balas.
— Ótimo — disse.
— Vai haver mais luta hoje? — Sua mulher perguntou. Ela estava do outro lado da sala, em pé, ao lado de um fogão a lenha, esquentando uma panela de água para o primeiro café do dia. O seu chador preto farfalhava quando ela se movia, disfarçando o fato dela estar outra vez grávida.
— Seja como Deus quiser.
Ela repetiu as palavras dele, tentando disfarçar o medo, temerosa do que aconteceria com eles quando seu marido obtivesse o martírio que buscava com tanto ardor, desejando do fundo do coração gritar do alto dos minaretes que era demais suportar que Deus exigisse um tal sacrifício dela e dos seus filhos. Sete anos de casamento e três filhos vivos e quatro mortos e a extrema pobreza de todos aqueles anos — um contraste tão grande com sua vida anterior, com sua própria família, que possuía um açougue no bazar, sempre com o suficiente para comer, e alegria e andar sem o chador, piqueniques e até cinema — tudo isso enrugara seu rosto que um dia fora atraente. Seja como Deus quiser, mas não é justo, não é justo! Nós vamos morrer de fome. Quem vai querer sustentar a família de um mulá morto?
O filho mais velho deles, Ali, um garotinho de seis anos, estava agachado ao lado da porta da cabana de um só cômodo que ficava ao lado da mesquita, seguindo atentamente todos os movimentos do seu pai. Seus dois irmãozinhos, de dois e três anos, dormiam num colchão de palha sobre o chão de terra, enrolados num velho casaco do exército. Eles estavam encolhidos como dois gatinhos. No cômodo, havia uma mesa tosca de madeira e dois bancos, algumas panelas, o colchão grande e um pequeno sobre velhos tapetes. Para iluminar, havia uma lamparina a óleo. A vala lá fora era para se fazer as necessidades e para se lavar. Não havia nenhum enfeite nas paredes de barro caiadas de branco. Uma torneira que às vezes funcionava, moscas e insetos e, num nicho, virado para Meca, no lugar de honra, estava o velho e gasto livro do Corão.
Tinha acabado de amanhecer, o dia estava frio e nublado, e Hussein já chamara os fiéis para a oração da manhã na mesquita e limpara e lubrificara cuidadosamente a arma, tirando a pólvora da coronha e tornado a carregar o pente. Agora está ótimo, pensou satisfeito, pronto para fazer de novo o trabalho de Deus e há muita utilidade para uma arma como esta. O AK47 é muito melhor do que o M14, mais simples, mais forte, e tão preciso quanto o outro à queima-roupa. Estúpidos americanos, estúpidos por fabricarem uma arma de infantaria que era complexa e precisa a uma distância de mil metros, quando grande parte da luta era feita a menos de trezentos e você podia arrastar o AK47 na lama o dia inteiro e ele continuava fazendo o que tinha que fazer: matar. Morte a todos os inimigos de Deus!
Já tinha havido alguns conflitos entre os Faixas Verdes e os marxistas-islâmicos e outros esquerdistas em Kowiss, e outros conflitos em Gach Saran, uma cidade a noroeste onde havia uma refinaria de petróleo. Na véspera, depois de escurecer, ele tinha conduzido os Faixas Verdes a um dos esconderijos secretos do Tudeh. A reunião tinha sido denunciada por um dos membros, em troca de piedade. Mas não haveria nenhuma. A batalha foi súbita, rápida e sangrenta. Onze homens foram mortos, ele esperava que alguns fossem líderes. Até agora o Tudeh ainda não tinha se mostrado publicamente, mas tinha marcado uma demonstração para o dia seguinte à tarde, em apoio à demonstração Tudeh de Teerã, embora Khomeini tivesse se mostrado francamente contrário a isto. O confronto já estava planejado. Os dois lados sabiam disso. Muitos irão morrer, pensou implacavelmente. Morte a todos os inimigos do Islã!
— Aqui — disse ela, entregando-lhe o café preto quente e doce, o único luxo que ele se permitia, exceto nas sextas-feiras, Dias Santos, e em outros dias especiais e durante todo o mês sagrado de Ramadan, quando ele desistia de bom grado do café.
— Obrigado, Fátima — disse educadamente. Quando ele foi nomeado mulá, seu pai e sua mãe tinham-na encontrado para ele e seu mentor, aiatolá Isfahani, tinha dito a ele para se casar, então ele obedecera.
Ele tomou o café, com grande prazer, e devolveu-lhe a pequena xícara. O casamento não o desviara do seu caminho, embora de vez em quando ele sentisse prazer em dormir encostado nela, suas nádegas grandes e quentes no frio do inverno, às vezes fazendo-a virar, penetrando-a, e depois dormindo de novo, mas nunca realmente em paz. Eu só estarei em paz no paraíso, só então, ele pensou, com a excitação aumentando, tão perto agora. Agradeço a Deus pelo fato de ter recebido o nome do imã Hussein, Senhor dos Mártires, segundo filho do imã Ali, ele, o do Grande Martírio, há treze séculos atrás na Batalha de Karbala.
Nós nunca o esqueceremos, ele pensou, seu êxtase aumentando, revivendo a dor de Ashura, o décimo dia de Muharram — há poucas semanas atrás — o aniversário daquele martírio, o dia de luto mais sagrado dos xiitas. Suas costas ainda traziam os vergões. Naquele dia ele tinha estado de novo em Qom, como no ano anterior e no outro, tomando parte nas procissões de Ashura, as procissões purificadoras, com dezenas de milhares de outros iranianos — chicoteando a si mesmos para lembrarem-se do divino martírio, açoitando-se com chicotes e correntes, castigando-se com ferros.
Ele levara muitas semanas para se recuperar, para ser capaz de ficar em pé sem sentir dor. Seja como Deus quiser, disse a si mesmo orgulhosamente. A dor não é nada, este mundo não é nada, eu enfrentei Peshadi na base aérea, dominei-o e o levei preso para Isfahan como me ordenaram. E agora, hoje, eu vou à base para investigar os estrangeiros e dobrá-los e a este sunita, Zataki, que pensa que é Gengis Khan, e esta tarde eu vou tornar a conduzir os fiéis contra os ateus do Tudeh, fazendo o trabalho de Deus em obediência ao imã que só obedece a Deus. Rezo para que hoje eu seja admitido no paraíso, "para recostar-me em almofadas enfeitadas com fio de ouro, e o fruto dos dois jardins estará ao meu alcance", as palavras tão familiares do Corão ecoaram em sua cabeça.
— Não temos comida — disse sua mulher, interrompendo-lhe os pensamentos.
— Haverá comida na mesquita hoje — ele disse, e seu filho Ali ficou mais atento, momentaneamente distraído de cocar as feridas de mosca e as mordidas de outros insetos. — De agora em diante você e as crianças não vão mais passar fome. Nós daremos refeições diárias de horisht e arroz para os necessitados como fizemos sempre através da história. — Ele sorriu para Ali, estendeu a mão e despenteou-lhe os cabelos. — Deus sabe que nós estamos entre os necessitados.
Desde a volta de Khomeini, as mesquitas tinham começado outra vez este antigo papel de fornecer refeições diárias de uma comida simples, mas nutritiva, comida que era doada como parte do Zakat — o imposto voluntário a que todos os muçulmanos estavam sujeitos — ou comprada com dinheiro do Zakat que agora era de novo uma prerrogativa exclusiva das mesquitas. Hussein soltou mais imprecações contra o xá, que tinha cancelado o subsídio anual concedido aos mulás e às mesquitas há dois anos, trazendo-lhes tanta pobreza e angústia.
— Junte-se às pessoas que esperam na mesquita — disse a ela. — Quando todos estiverem alimentados, tire o suficiente para você e as crianças. Faça isto diariamente.
— Obrigada.
— Agradeça a Deus.
— Eu agradeço, oh, sim, eu agradeço.
Ele enfiou as botas e pendurou a arma no ombro
— Posso ir com você, pai? — Ali perguntou na sua vozinha fina. — Eu também quero fazer o trabalho de Deus.
— É claro, venha.
Ela fechou a porta e se sentou num banco, com o estômago roncando de fome, sentindo-se fraca e doente, cansada demais para espantar as moscas que pousavam no seu rosto. Estava grávida de oito meses. A parteira tinha lhe dito que desta vez seria mais difícil do que das outras, porque o bebê estava na posição errada. Ela começou a chorar, lembrando-se da agonia do último parto e do anterior.
— Não se preocupe — dissera a velha parteira, complacente —, você está nas mãos de Deus. Um pouco de bosta fresca de camelo espalhada no seu estômago vai livrá-la das dores. É dever de uma mulher ter filhos e você é jovem.
— Jovem? Eu tenho 22 anos e sou velha, velha, velha. Eu sei disso e sei por que, e tenho um cérebro e tenho olhos, sei até escrever meu nome e sei que vamos poder melhorar como o imã sabe, quando os estrangeiros forem expulsos e os seus maus hábitos forem banidos. O imã, que Deus o proteja, é sábio e bom e fala com Deus, só obedece a Deus, e Deus sabe que as mulheres não são escravas para serem exploradas e tratadas como nos tempos do Profeta como alguns fanáticos desejam. O imã nos protegerá dos extremistas e não permitirá que eles revoguem a Lei da Família, do xá, que nos deu o direito de votar e a proteção contra o divórcio sumário — ele não permitirá que os nossos votos e direitos e liberdades nos sejam tirados, ou o nosso direito de escolher se queremos ou não usar o chador, ele nunca o fará quando vir o quanto nós somos contrárias a isso. Não quando ele vir a nossa firmeza inabalável. No país inteiro.
Fátima secou as lágrimas e se sentiu mais feliz ao pensar nas demonstrações que estavam programadas para dali a três dias, e sentiu menos dor. Sim, nós, mulheres, vamos fazer uma demonstração pelas ruas de Kowiss, apoiando orgulhosamente as nossas irmãs das grandes cidades de Teerã, Qom e Isfahan, é claro que eu vou usar o chador por minha livre escolha, por causa de Hussein. Oh, como é maravilhoso poder mostrar a nossa solidariedade tanto como mulheres quanto pela revolução.
A notícia das planejadas demonstrações em Teerã tinham percorrido todo o país, ninguém sabe como. Mas todas as mulheres sabiam. Em toda parte, as mulheres tinham decidido aderir e todas elas aprovavam — mesmo aquelas que não ousavam confessar.
NA BASE AÉREA: 10:20H. Starke estava na torre da S-G observando a chegada do 125 com os flaps todos abertos para pousar, revertendo em seguida os motores para parar. Zataki e Esvandiary também estavam lá com dois Faixas Verdes. Zataki agora estava barbeado.
— Vire à direita no final da pista, Eco Tango Lima Lima — disse o sargento Wazari, o jovem controlador de tráfego aéreo, treinado na Força Aérea dos Estados Unidos, com voz rouca. Ele estava usando roupas civis grosseiras em vez do seu elegante uniforme. Seu rosto estava bem inchado, o nariz amassado, faltavam três dentes e as orelhas estavam inchadas da surra que Zataki dera nele em público. No momento, ele não podia respirar pelo nariz. — Estacione em frente à torre principal.
— Roger. — A voz de John Hogg saiu do alto-falante. — Repito que temos autorização para apanhar três passageiros e para entregar peças urgentes, partindo em seguida para Al Shargaz. Por favor, confirme.
Wazari virou-se para Zataki, nitidamente apavorado.
— Excelência, por favor, desculpe-me, mas o que devo responder?
— Não diga nada, verme. — Zataki apanhou a metralhadora. Para Starke ele disse: — Diga ao seu piloto para estacionar, para desligar os motores e depois colocar todo mundo que está no aparelho no meio da pista. O aparelho vai ser revistado e se for liberado por mim, vai poder prosseguir, se não for, não vai poder. Você vem comigo, e você também — acrescentou para Esvan diary. E saiu.
Starke obedeceu e virou-se para segui-lo, mas por um segundo ele e o sargento ficaram sozinhos. Wazari segurou-o pelo braço e murmurou pateticamente:
— Pelo amor de Deus, ajude-me a embarcar nesse aparelho, capitão, eu farei qualquer coisa, qualquer coisa..
— Eu não posso, é impossível — disse Starke, com pena dele. Há dois dias atrás Zataki tinha enfileirado todo mundo e tinha surrado o homem até ele perder os sentidos, por 'crimes contra a revolução', depois fez com que ele recobrasse os sentidos, obrigou-o a comer lixo e tornou a bater nele até ele perder os sentidos de novo. Só Manuela e os que estavam muito doentes tiveram permissão para não assistir. — Impossível!
— Por favor... Eu lhe imploro, Zataki é louco, ele vai me ma... Wazari voltou-se em pânico quando um Faixa Verde tornou a aparecer na porta Starke passou por ele, desceu as escadas e foi até a pista, disfarçando a inquietação. Freddy Ayre estava na direção de um jipe. Manuela estava lá dentro, junto com um dos pilotos britânicos, e também Jon Tyrer, com uma bandagem nos olhos. Manuela usava umas calças largas, um casaco comprido e seu cabelo estava amarrado sob um boné de piloto.
— Siga-nos, Freddy — disse Starke e entrou ao lado de Zataki no banco de trás do carro. Esvandiary engrenou e saiu para interceptar o 125 que agora estava saindo da pista principal, acompanhado por um enxame de caminhões cheios de Faixas Verdes e de dois motociclistas ziguezagueando perigosamente em volta deles. — Loucos! — resmungou Starke
— Entusiastas, piloto, não loucos. — E Zataki riu, mostrando os dentes muito brancos
— Seja o que Deus quiser
Zataki olhou para ele, sem caçoar mais.
— Você fala a nossa língua, você já leu o Corão e você conhece os nossos costumes. Já era tempo de você recitar o Shahada diante de duas testemunhas e se tornar muçulmano. Eu ficaria honrado em ser uma testemunha.
— Eu também — disse imediatamente Esvandiary, também querendo ajudar a salvar uma alma, embora não pelas mesmas razões: A IranOil iria precisar de pilotos experientes para manter a produção enquanto substitutos iranianos estivessem sendo treinados e um Starke muçulmano poderia ser um deles
Eu também ficaria honrado de servir de testemunha
— Obrigado — respondeu-lhes Starke, em farsi. Ao longo dos anos, essa idéia lhe ocorrera. Uma vez, quando o Irã estava calmo e só o que ele tinha que fazer era pilotar o máximo que podia e tomar conta dos seus homens e rir com Manuela e as crianças. Será que foi mesmo só há seis meses atrás? Ele dissera a Manuela: — Sabe, Manuela, há muita coisa interessante no islamismo.
— Você estaria pensando em quatro esposas, querido? — ela tinha perguntado com uma voz bem doce e no mesmo instante ele se pôs em guarda.
— Vamos, Manuela, eu estava falando sério. Há muita coisa boa no islamismo.
— Para os homens, não para as mulheres. O Corão não diz:' 'E os fiéis'', aliás todos homens, "deitar-se-ão em almofadas de seda e haverá huris que nem homens nem djins jamais tocaram"? Conroe, meu bem, eu nunca consegui entender isso. Por que elas devem ser perpetuamente virgens? Será que isso é muito importante para um homem? E será que as mulheres conseguem a mesma coisa, juventude e tantos jovens com chifres quanto queiram?
— Quer prestar atenção, pelo amor de Deus! Eu estava querendo dizer que se você vivesse no deserto, no deserto da Arábia Saudita ou do Saara — você se lembra da vez que estivemos no Kuwait e fomos, só nós dois, para o deserto, com as estrelas grandes como ostras e o silêncio tão vasto, a noite tão límpida e infinita, e nós tão insignificantes, você se lembra como ficamos tocados pelo infinito? Você se lembra que eu disse que podia entender como um nômade, nascido numa tenda podia ser possuído pelo Islã?
— E você se lembra, querido, que eu disse que nós não tínhamos nascido em nenhuma tenda?
Ele sorriu, lembrando-se de como a havia abraçado e beijado e eles tinham se amado sob as estrelas. Mais tarde ele dissera:
— Eu me referia ao ensinamento de Maomé, ao fato de que num espaço tão grande, tão aterrador na sua vastidão, você precisa de um abrigo seguro e que o Islã pode ser esse abrigo, talvez o único, o seu ensinamento original, não as interpretações distorcidas dos fanáticos.
— Ora, é claro, querido — ela respondera na sua voz mais doce —, mas nós não moramos no deserto, nunca o faremos, e você é Conroe 'Duke' Starke, piloto de helicóptero, e no momento em que começar a pensar nessas quatro esposas eu estou fora, eu e as crianças, e nem o Texas vai ser suficientemente grande para você escapar da lição que vai levar de Manuela Rosita Santa de Cuellar Perez, meu amorzinho querido...
Ele viu Zataki olhando para ele e sentiu o cheiro forte de gasolina, neve e inverno.
— Talvez eu o faça um dia — disse a Zataki e Esvandiary. — Talvez eu o faça. Mas no tempo determinado por Deus, não por mim.
— Que Deus apresse esse tempo. Você está se desperdiçando como infiel. Mas agora toda a atenção de Starke estava no 125 que se aproximava do estacionamento, e em Manuela, que devia partir hoje. Seria difícil para ela, tremendamente difícil, mas ela tinha que ir.
Naquela manhã bem cedo, McIver dissera a Starke, de Teerã, pelo HF, que tinham conseguido autorização para o 125 pousar em Kowss, desde que Kowiss também autorizasse, que o aparelho estaria trazendo peças de reposição e que haveria lugar para três passageiros. No fim, o major Changiz e Esvandiary concordaram, mas só depois de Starke dizer, irritado, na frente de Zataki:
— Vocês sabem que a nossa substituição de pessoal está muito atrasada. Um dos nossos 212 está esperando por peças e dois dos 206 estão prontos para a revisão das mil e quinhentas horas. Se eu não conseguir novas tripulações e peças, não vou poder operar, e serão vocês os responsáveis por não obedecermos às ordens do aiatolá Khomeini, não eu.
O carro parou ao lado do 125, que desacelerava os motores. A porta ainda não estava aberta e ele pôde ver John Hogg espiando pela janela da cabine. Caminhões e armas cercaram o aparelho, com os excitados Faixas Verdes se movimentando em volta.
Zataki tentou fazer-se ouvir, então, exasperado, atirou para o ar.
— Afastem-se do avião — ordenou. — Por Deus e pelo Profeta, só os meus homens irão revistá-lo! Afastem-se! — Mal-humorados, os outros Faixas Verdes recuaram um pouco. — Piloto, diga a ele para abrir a porta depressa, e faça todo mundo sair logo, antes que eu mude de idéia!
Starke fez sinal para Hogg de que estava tudo bem. Num instante a porta foi aberta pelo co-piloto. A escada foi baixada. Imediatamente, Zataki subiu os degraus e ficou em pé no alto com a arma preparada.
— Excelência, não é preciso isso — disse Starke. — Todo mundo para fora, o mais depressa possível, está bem?
Havia oito passageiros — quatro deles pilotos, três mecânicos e Genny McIver.
— Meu Deus, Genny! Não esperava vê-la.
— Olá, Duke. Duncan achou melhore... não importa. Manuela vai... — Ela a viu e foi até onde estava Manuela. Elas se abraçaram e Starke notou como Genny tinha envelhecido.
Ele seguiu Zataki até o aparelho vazio. Assentos extras tinham sido colocados. No fundo, perto do toalete, havia vários engradados.
— Peças e o motor sobressalente que você precisava — disse Johnny Hogg do assento do piloto, entregando-lhe o formulário. — Olá, Duke!
Zataki pegou o formulário e fez um sinal para Hogg.
— Fora!
— Se o senhor não se importar, eu sou o responsável pelo aparelho, sinto muito — disse Hogg.
— Pela última vez, fora!
— Saia do seu lugar por um momento, Johnny. — interveio Starke. — Ele só quer verificar se não há nenhuma arma. Excelência, seria mais seguro se o piloto pudesse ficar aqui. Eu me responsabilizo por ele.
— Fora!
Relutante, John Hogg saiu da pequena cabine. Zataki certificou-se de que não havia nada nos bolsos que ficavam dos lados do assento, depois fez sinal para ele voltar ao seu lugar e examinou a cabine.
— Aquelas são as peças de que você precisa?
— Sim — disse Starke e, gentilmente, abriu espaço para ele no patamar da escada, de onde Zataki chamou alguns homens para carregarem os engradados para a pista. Os homens fizeram isso sem o menor cuidado, batendo com os engradados na porta e nos degraus, fazendo os pilotos estremecerem. Então
Zataki revistou o aparelho minuciosamente, não encontrando nada que o irritasse. Exceto o vinho na geladeira e a bebida que havia no armário.
— Nada mais de bebidas no Irã. Nenhuma. Confiscadas! — Ele quebrou as garrafas na pista e ordenou que abrissem os engradados. Havia um motor a jato e muitas outras peças. Tudo estava no formulário. Starke observava da porta da cabine, tentando passar despercebido.
— Quem são esses passageiros? — perguntou Zataki. O segundo-oficial entregou-lhe uma lista de nomes. Estava escrita em inglês e em farsi: "Pilotos e mecânicos temporariamente desnecessários, todos com licenças vencidas". Ele começou a examinar a lista e os homens.
— Duke — Johnny Hogg disse cautelosamente da cabine —, tenho algum dinheiro para você e uma carta de McIver. É seguro?
— Por enquanto.
— São dois envelopes que estão no bolso de dentro do meu uniforme. McIver disse que a carta é particular.
Starke encontrou-os e enfiou-os no bolso de dentro do casaco.
— Como estão as coisas em Teerã? — perguntou com o canto da boca.
— O aeroporto está uma casa de loucos, com milhares de pessoas tentando entrar nos três ou quatro aviões que eles permitiram que pousassem até agora — disse rapidamente Hogg —, com pelo menos seis jumbos amontoados, esperando por uma autorização para aterrissar. Eu, ahn, eu simplesmente furei a fila, entrei sem autorização e disse: "Oh, sinto muito, pensei que estivesse autorizado", apanhei o meu pessoal e escapuli. Mal tive tempo de conversar com McIver. Ele estava cercado por revolucionários com o dedo no gatilho e por um ou dois mulás, mas ele parece estar bem. Pettikin, Nogger e os outros também parecem bem. Eu estou sediado em Al Shargaz por pelo menos uma semana, para ir e vir como for possível. — Al Shargaz não era longe de Dubai, onde a S-G tinha o seu QG deste lado do golfo. — Nós tivemos permissão da torre de controle de Teerã para trazer peças e pessoal para substituir aqueles que tencionamos levar. Parece que eles vão nos manter mais ou menos na medida de um para um e fornecendo tudo, com vôos marcados para sábados e quartas-feiras. — Ele parou para respirar. — Mac disse para você encontrar uma desculpa para eu vir aqui de vez em quando. Eu vou ser uma espécie de mensageiro dele e de Andy Gavallan até as coisas se normalizarem...
— Cuidado — Starke disse disfarçadamente, ao ver Zataki olhar para o avião. Ele observara Zataki inspecionar os passageiros e seus documentos. Então viu-o fazer-lhe um sinal e desceu a escada.
— Sim, Excelência?
— Este homem não tem visto de saída.
O homem era Roberts, um dos montadores, de meia-idade, muito experiente. A ansiedade transparecia no seu rosto marcado de rugas.
— Eu disse a ele que não consegui um visto, capitão, nós não pudemos, os escritórios de imigração ainda estão fechados. Não houve nenhum problema em Teerã.
Starke deu uma olhada no documento. O prazo só havia expirado há quatro dias.
— Talvez o senhor pudesse deixar passar desta vez, Excelência. É verdade que o escritório..
— Sem visto de saída ele não vai. Ele fica! Roberts ficou branco.
— Mas Teerã me deixou sair e eu tenho que estar em Londres... Zataki agarrou-o pelo casaco e arrancou-o da fila, atirando-o no chão.
Enfurecido, Roberts levantou-se.
— Por Deus, eu tenho uma autor... — Ele parou. Um dos Faixas Verdes estava com um rifle encostado no seu peito, outro estava atrás dele, ambos prontos para puxar o gatilho.
— Espere ao lado do jipe, Roberts. Droga! Espere ao lado do jipe — disse Starke.
Um dos Faixas Verdes empurrou rudemente o mecânico em direção ao jipe enquanto Starke tentava disfarçar sua preocupação. Jon Tyrer e Manuela também não tinham papéis atualizados.
— Sem visto de saída ninguém sai! — Zataki repetiu maldosamente e apanhou os papéis do homem seguinte.
Genny, que era a próxima da fila, estava muito assustada, odiando Zataki e a violência e o cheiro de medo que a cercava, com pena de Roberts que precisava voltar à Inglaterra porque um dos seus filhos estava muito doente, suspeitava-se de pólio, e não havia nem correio nem telefones, e telex só esporadicamente. Ela observou Zataki examinando vagarosamente os papéis do piloto que estava na frente dela. Maldito filho da mãe!, pensou. Eu tenho que entrar naquele avião. Tenho que entrar. Oh, como eu gostaria de que todos nós estivéssemos partindo. Pobre Duncan, ele simplesmente se recusa a cuidar dele mesmo, não se preocupa em comer adequadamente e com certeza vai tornar a ter uma úlcera.
— O meu visto de saída não está atualizado — disse ela, tentando mostrar-se tímida, e deixando algumas lágrimas brilharem nos olhos.
— Nem o meu — disse Manuela, num fio de voz. Zataki olhou para elas e hesitou.
— Mulheres não são responsáveis, só os homens. Vocês duas podem partir. Desta vez. Subam a bordo.
— Será que o sr. Roberts não pode vir também? — perguntou Genny, apontando para o mecânico. — Ele real..
— Subam a bordo! — Gritou Zataki, num dos seus súbitos e loucos ata quês de raiva, com o sangue subindo para o rosto.
As duas mulheres subiram as escadas correndo, com todo mundo momentaneamente em pânico, e até os Faixas Verdes se agitaram nervosos.
— Excelência, o senhor tem razão — Starke falou em farsi, obrigando se a aparentar calma. — Mulheres não devem discutir. — E esperou e todo mundo também esperou, mal respirando, com os olhos escuros cravados nele. Mas Starke sustentou-lhe o olhar. Zataki balançou a cabeça concordando e continuou a examinar, carrancudo, os papéis que tinha nas mãos.
Na véspera Zataki voltara de Isfahan e Esvandiary autorizara um vôo para o dia seguinte de tarde para levá-lo de volta a Bandar Delam. Quanto mais cedo melhor, pensou Starke.
E no entanto, ele tinha pena de Zataki. Na noite anterior ele o encontrara encostado num dos helicópteros com as mãos apertando as têmporas, com muita dor
O que é, aga!
— Minha cabeça. Eu... é a minha cabeça.
Ele o convencera a ver o dr. Nutt e o levara reservadamente ao bangalô do médico.
— Dê-me apenas aspirina ou codeína, doutor, o que o senhor tiver — tinha dito Zataki.
— Talvez fosse melhor deixar-me examiná-lo e...
— Nada de exames! — gritara Zataki. — Eu sei o que há de errado comigo. É a Savak o que há de errado, e a prisão... — E mais tarde, quando a codeína tinha diminuído a dor, Zataki contara a Starke que há cerca de um ano e meio ele tinha sido preso, acusado de propaganda contra o xá. Na época, ele trabalhava como jornalista para um dos jornais de Abadan. Tinha ficado preso por oito meses e então, logo depois do incêndio de Abadan, fora solto. Ele não contou a Starke o que tinham feito com ele. — Como Deus quiser, piloto — tinha dito com amargura. — Mas desde então, eu agradeço a Deus todos os dias por mais um dia de vida para exterminar mais gente da Savak e gente do xá, seus lacaios da polícia e seus lacaios soldados e todos aqueles que assistiram a sua maldade. Um dia eu o apoiei, ele não pagou pela minha educação, aqui e na Inglaterra? Mas ele foi o culpado da Savak! Ele foi o culpado! Essa parte da vingança é só por mim. Eu ainda não comecei a me vingar pela minha mulher e pelos meus filhos assassinados no incêndio de Abadan.
Starke ficara em silêncio. Quem, como ou o porquê do incêndio que causara quase quinhentas mortes jamais viera a público.
Ele observou Zataki trabalhar devagar e meticulosamente percorrendo a fila de possíveis passageiros. Quantos mais com papéis incompletos ou desatualizados Starke não sabia, todo mundo tenso, uma nuvem agourenta sobre eles. Logo seria a vez de Tyrer e Tyrer tinha que ir. O dr. Nutt tinha dito que seria mais seguro que Tyrer fosse examinado em Al Shargaz ou em Dubai o mais cedo possível, onde havia ótimos hospitais.
— Eu tenho certeza de que ele está bem, mas é melhor ele descansar os olhos por enquanto. E ouça, Duke, pelo amor de Deus, mantenha-se fora do caminho de Zataki e avise aos outros para fazerem o mesmo. Ele está prestes a explodir e só Deus sabe o que poderá acontecer então.
— O que há com ele?
— Medicamente eu não sei. Psicologicamente ele é perigoso, muito perigoso. Eu diria que é maníaco-depressivo, certamente paranóico, provavelmente em conseqüência direta das suas experiências na prisão. Ele contou a você o que fizeram com ele?
— Não. Não contou.
— Se dependesse de mim, eu recomendaria que ele fosse mantido sob sedativos e não se aproximasse de uma arma.
Ótimo, pensou Starke, desanimado. E como eu poderia fazer isso? Pelo menos Manuela e Genny estão a bordo e em breve estarão em Al Shargaz, que é um paraíso compa..
Um grito de aviso interrompeu seus pensamentos. Do outro lado do 125, vindo de trás da saída da torre principal, estava o mulá Hussein com mais Faixas Verdes e eles pareciam muito hostis.
Imediatamente, Zataki esqueceu os passageiros, empunhou sua metralhadora e, segurando-a frouxamente numa das mãos, se colocou entre Hussein e o avião. Dois dos seus homens se colocaram ao lado dele, e os outros se aproximaram do avião, tomando posições defensivas, cobrindo a aeronave.
— Matem os malditos corvos — alguém murmurou. — O que há agora?
— Preparem-se para se abaixar — disse Ayre.
— Capitão — Roberts cochichou desesperado. — Eu tenho que entrar naquele avião, tenho que entrar, a minha filhinha está muito mal, será que o senhor pode conseguir alguma coisa com aquele filho da mãe?
— Vou tentar.
Zataki observava Hussein, com ódio dele. Há dois dias ele fora a Isfahan, convidado a ir lá para entendimentos com o komiteh secreto. Todos os 11 membros eram aiatolás e mulás, e lá, pela primeira vez, ele vira a verdadeira face da revolução pela qual ele tanto lutara e tanto tinha sofrido: "Os hereges serão destruídos. Nós teremos apenas Tribunais Revolucionários. A justiça será rápida e definitiva, sem apelação..." Os mulás estavam tão seguros de si, tão seguros do seu direito divino de governar e de administrar justiça já que só eles interpretavam o Corão e o Sharia. Cautelosamente, Zataki guardara seu horror e seus pensamentos para si mesmo, mas ele sabia que, mais uma vez, fora traído.
— O que você quer, mulá? — disse Zataki, pronunciando esta palavra como se fosse um xingamento.
— Primeiro eu quero que você entenda que não tem nenhum poder aqui O que você faz em Abadan é problema dos aiatolás de Abadan, mas aqui você não tem nenhum poder sobre esta base, sobre estes homens, ou sobre este avião. — Rodeando Hussein havia uma dúzia de jovens armados, de caras fechadas, todos Faixas Verdes.
— Nenhum poder, hein? — Desdenhosamente, Zataki virou as costas para o mulá e gritou em inglês: — O avião vai partir agora! Todos os passageiros subam a bordo! — Iradamente, ele fez um sinal para o piloto partir, depois tornou a encarar Hussein. — Bem? E em segundo lugar? — perguntou, enquanto, atrás dele, os passageiros se apressaram em obedecer, e como os Faixas Verdes estavam concentrados em Zataki e Hussein, Starke mandou que Roberts subisse para o avião, e depois fez sinal para Ayre ajudá-lo a encobrir a fuga do mecânico. Juntos, eles ajudaram Tyrer a sair do jipe.
Zataki brincava com a arma, com toda a sua atenção fixada em Hussein.
— Bem? E em segundo lugar? — Ele tornou a perguntar.
Hussein estava perplexo, e seus homens também estavam conscientes das armas apontadas para eles. Os motores começaram a rugir. Ele viu os passageiros subindo apressadamente, Starke e Ayre ajudando um homem com bandagens nos olhos a subir as escadas, depois os dois pilotos outra vez ao lado do jipe, os motores a jato esquentando, e assim que o último homem entrou, a escada foi levantada e o avião começou a taxiar.
— Bem, aga, e depois?
— Depois... depois o komiteh de Kowiss ordena que você e os seus homens saiam de Kowiss.
Desdenhosamente, Zataki gritou para os seus homens por sobre o barulho dos motores, com os pés plantados na pista de concreto, pronto para lutar se fosse necessário e morrer se fosse necessário, com o ar superaquecido soprando em cima dele enquanto o avião se movia em direção à pista.
— Vocês ouviram, o komiteh de Kowiss ordenou que nós partíssemos! Seus homens começaram a rir, e um dos Faixas Verdes de Hussein, um adolescente imberbe que estava no final do grupo, levantou a carabina e morreu imediatamente, quase cortado ao meio pela rajada precisa de balas dos homens de Zataki que o escolheram cuidadosamente. O silêncio foi quebrado apenas pelo som distante dos jatos. Hussein ficou momentaneamente confuso pela rapidez e pela poça de sangue que jorrou no concreto.
— Seja como Deus quiser — disse Zataki. — O que você quer mulá?
Foi então que Zataki notou o garotinho que o olhava petrificado, escondido atrás das vestes do mulá, agarrando-se a elas para se proteger, tão parecido com o seu próprio filho, o mais velho, que por um momento ele foi levado de volta aos dias felizes antes do incêndio, quando tudo parecia bem e havia alguma forma de futuro — a maravilhosa Revolução Branca do xá, a reforma agrária, o controle dos mulás, a educação universal e outras coisas — os bons tempos em que eu era um pai, o que não serei nunca mais. Nunca. Os choques elétricos e as tenazes destruíram essa possibilidade.
Uma pontada violenta de dor nos seus testículos inundou sua cabeça junto com as lembranças e ele teve vontade de gritar. Mas não o fez, apenas reprimiu o sofrimento, como sempre, e se concentrou naquela morte. Ele pôde ver a expressão implacável do rosto do mulá e se preparou. Matar com a metralhadora dava-lhe grande pazer. O quente staccato, a arma viva explodindo em pequenos arrancos, o cheiro acre de cordite, o sangue dos inimigos de Deus e do Irã jorrando. Os mulás são inimigos, e mais do que eles todos, Khomeini, que comete o sacrilégio de permitir que o seu retrato seja venerado e que os seus seguidores o chamem de imã, e coloca os mulás entre nós e Deus, contra todos os ensinamentos do Profeta.
— Ande logo — ele berrou —, eu estou perdendo a paciência!
— Eu... eu quero aquele homem — disse Hussein, apontando. Zataki olhou em volta. O mulá estava apontando para Starke.
— O piloto? Por quê? Para quê? — Ele perguntou, perplexo.
— Para interrogatório. Eu quero interrogá-lo.
— Sobre o quê?
— Sobre a fuga dos oficiais de Isfahan.
— E o que ele poderia saber a respeito disso? Ele estava comigo em Bandar Delam, a centenas de quilômetros, quando isso aconteceu, ajudando a revolução contra os inimigos de Deus! — Zataki acrescentou maldosamente: — Os inimigos de Deus estão em toda parte, em toda parte! O sacrilégio existe em toda parte, a adoração de ídolos é praticada em toda parte. Não é?
— Sim, sim, os inimigos abundam e sacrilégio é sacrilégio. Mas ele é um piloto de helicópteros, foi um infiel que pilotou o helicóptero da fuga, ele pode saber alguma coisa. Eu quero interrogá-lo.
— Não enquanto eu estiver aqui.
— Por quê? Por que não? Por que você não...
— Você não vai interrogá-lo enquanto eu estiver aqui, por Deus! Não enquanto eu estiver aqui! Mais tarde ou amanhã ou depois, como Deus quiser, mas não agora.
Zataki tinha manobrado Hussein e viu no rosto dele e nos seus olhos que ele tinha cedido e que não era mais uma ameaça. Cautelosamente, ele olhou para o rosto de cada um dos Faixas Verdes que cercavam o mulá, mas não detectou mais nenhum perigo. A morte súbita e rápida de um deles, pensou sem nenhum sentimento de culpa, controla os outros.
— Vocês devem querer voltar à sua mesquita agora, está quase na hora das orações. — Ele se virou de costas e caminhou para o jipe, sabendo que os seus homens o estariam protegendo, fez um sinal para Starke e Ayre, chamando-os, e entrou no banco da frente, com a metralhadora apontada, mas não tão ostensivamente como antes. Um por um, seus homens recuaram até os carros. E partiram.
Hussein estava lívido. Seus Faixas Verdes esperavam. Um deles acendeu um cigarro, todos eles conscientes do corpo aos seus pés. E do sangue que ainda jorrava.
— Por que você os deixou ir, papai? — O garotinho perguntou na sua vozinha fina.
— Eu não deixei, meu filho. Nós temos coisas mais importantes a fazer no momento, depois voltaremos.
31
EM ZAGROS TRÊS: 12:05H. Scot Gavallan olhava fixamente para o cano de uma metralhadora apontada para ele. Ele tinha acabado de pousar o 212 depois da primeira viagem do dia para a plataforma Rosa, para entregar outro carregamento de canos de aço e cimento, e assim que desligara os motores, Faixas Verdes armados vieram correndo do hangar para cercá-lo.
Odiando o medo que tomou conta dele, desviou os olhos da arma e olhou para os olhos pretos e maldosos.
— O que... o que quer? — perguntou, e depois falou num farsi hesitante: — Cheh karbarehi
O homem que estava com a arma soltou uma torrente de palavras zangadas e incompreensíveis.
Ele tirou os fones da cabeça.
— Man zaban-eshoma ra khoob namidanam, Aghal — gritou por sobre o barulho dos motores. — Eu não falo a sua língua, Excelência! — contendo-se para não dizer a obscenidade que teve vontade de acrescentar. Mais palavras zangadas e o homem fez sinal para ele sair da cabine. Então ele viu Nasiri, o gerente de base da IranOil, desgrenhado e machucado, sendo levado em direção ao 212 por mais guardas revolucionários. Ele se inclinou um pouco para fora da janela.
— Que diabo está acontecendo?
— Eles... eles querem que você saia do helicóptero, capitão — respondeu Nasiri. — Eles... por favor, depressa!
— Espere até eu completar a aterrissagem! — Nervosamente, Scot terminou os procedimentos de pouso. O cano da metralhadora não se movera, nem diminuíra a hostilidade em volta dele. Os rotores giravam mais devagar e quando deu para sair, ele tirou o cinto e saltou. Imediatamente, foi empurrado para fora do caminho. Homens excitados, gritando, abriram completamente a porta da cabine, espiaram para o interior, enquanto outros abriam a porta da cabine principal e subiam a bordo.
— Que diabo aconteceu com você, aga! — perguntou a Nasiri, ao ver a extensão dos seus ferimentos.
— O... o novo komiteh cometeu um erro — disse Nasiri, tentando manter a dignidade — achando que eu era... um partidário do xá e não um homem da revolução e do imã.
— Quem são estes homens? Eles não são de Yazdek.
Mas antes que Nasiri pudesse responder, o Faixa Verde que estava com a metralhadora abriu caminho pelo meio do grupo.
— Para o escritório! AGORA! — disse o homem, num mau inglês, depois estendeu a mão e agarrou Scot pela manga da jaqueta de vôo para fazê-lo andar mais depressa. Automaticamente, Scot empurrou-lhe o braço. Uma arma foi-lhe enfiada nas costelas.
— Está bem, pelo amor de Deus — resmungou e caminhou em direção ao escritório com a cara fechada.
No escritório, Nitchak Khan, calênder da aldeia, e o velho mulá estavam em pé ao lado da escrivaninha, de costas para a parede ao lado da janela aberta. Ambos tinham um ar grave. Scot os cumprimentou e eles responderam com a cabeça, pouco à vontade. Atrás dele, muitos Faixas Verdes encheram a sala atrás de Nasiri.
— Cheh karbareh, Kalandar? — perguntou Scot. — O que está havendo?
— Estes homens são... afirmam ser o nosso novo komiteh — Nitchak Khan respondeu com dificuldade. — Eles foram mandados de Sharpur para assumir a nossa... a nossa aldeia e o nosso... campo de aviação.
Scot ficou perplexo. O que o líder da aldeia dissera não fazia sentido. Embora Sharpur fosse a cidade mais próxima e tivesse jurisdição nominal sobre aquela região, o costume sempre deixara as tribos kash'kai das montanhas governarem a si mesmas — desde que eles aceitassem a suserania do xá de Teerã, obedecessem às leis e permanecessem desarmados e pacíficos.
— Mas vocês sempre gover...
— Quieto! — disse o líder dos Faixas Verdes, brandindo a metralhadora, e Scot viu Nitchak enrubescer. O líder usava barba, tinha cerca de trinta anos, estava pobremente vestido e seus olhos escuros eram maus. Ele arrastou Nasiri para a frente do grupo e falou rapidamente em farsi.
— Eu... eu devo servir de intérprete, capitão — disse Nasiri, nervosamente. — O líder, Ali-sadr, diz que o senhor deve responder às perguntas. Eu já respondi a quase todas, mas ele quer... — Ali-sadr xingou-o e começou o interrogatório, lendo de uma lista preparada e com Nasiri traduzindo:
— O senhor está no comando aqui?
— Sim, temporariamente.
— Qual é a sua nacionalidade?
— Britânica. Agora que dia...
— Há algum americano aqui?
— Não que eu saiba — Scot disse imediatamente e manteve o rosto com uma expressão afável, torcendo para que Nasiri, que sabia que Rodrigues, o mecânico, era americano com uma falsa identidade inglesa, não tivesse respondido a esta pergunta. Nasiri traduziu sem hesitação. Um dos outros Faixas Verdes estava anotando as respostas.
— Quantos pilotos há aqui?
— No momento eu sou o único.
— Onde estão os outros, quem são e qual é a nacionalidade deles?
— O nosso piloto mais graduado, capitão Lochart, é canadense, e está em Teerã. Ele está pilotando um charter fora de Teerã, eu acho, mas é esperado de volta a qualquer momento. O outro, o segundo em comando, é o capitão Sessonne, francês, ele teve que partir para Teerã hoje, num vôo urgente para a IranOil.
O líder levantou os olhos, com o olhar duro
— O que havia de tão urgente?
— A plataforma Rosa está pronta para medir um novo poço.
Ele esperou enquanto Nasiri explicava o que isso significava e que os per furadores precisavam da ajuda urgente de especialistas da Schulumberger, agora sediados em Teerã. Esta manhã, Jean-Luc tinha ligado para a torre de controle local em Shiraz para tentar conseguir uma autorização para ir a Teerã. Para sua surpresa e alegria, a torre de Shiraz deu a aprovação imediatamente.
— O imã decretou que a produção de petróleo deveria começar — eles tinham dito —, então ela vai começar.
Jean-Luc decolara em poucos minutos. Scot Gavallan sorriu consigo mesmo sabendo que a verdadeira razão pela qual Jean-Luc tinha dado três cambalhotas na cabine do 206 era porque agora ele ia poder dar uma fugida para ver Sayada. Scot a tinha visto uma vez. "Ela tem uma irmã?", perguntara esperançoso.
O líder escutou com impaciência, depois tornou a interromper e Nasiri encolheu-se.
— Ele, Ali-sadr, diz que no futuro todos os vôos serão autorizados por ele, ou por este homem — Nasiri apontou para o jovem Faixa Verde que estava anotando as respostas de Scot. — No futuro, todos os vôos terão que levar a bordo um dos seus homens. No futuro, não haverá decolagens sem autorização prévia. Dentro de uma hora, o senhor deverá levar a ele e aos seus homens a todas as plataformas da região.
— Explique a ele que não é possível fazer isso porque temos que entregar mais canos e cimento na plataforma Rosa. Do contrário, quando Jean-Luc voltar amanhã, eles não estarão prontos.
Nasiri começou a explicar. O líder interrompeu-o rudemente e se levantou.
— Diga ao infiel, o piloto, para estar pronto dentro de uma hora e então melhor ainda, diga-lhe para vir conosco até a aldeia onde eu posso vigiá-lo. Você vem também. E diga-lhe para ser muito obediente, pois embora o imã queira que a produção de petróleo comece imediatamente, todas as pessoas no Irã estão sujeitas à lei islâmica, sejam ou não iranianas. Nós não precisamos de estrangeiros aqui. — O homem olhou para Nitchak Khan. — Agora voltaremos para a aldeia — ele disse e saiu. Nitchak Khan enrubesceu. Ele e o mulá o seguiram.
— Capitão, nós temos que ir com ele — disse Nasiri —, para a aldeia.
— Para quê?
— Bem, o senhor é o único piloto aqui e conhece a região — disse Nasiri, prontamente, imaginando qual seria o motivo verdadeiro.
Ele estava com muito medo. Não tinha havido nenhum aviso de mudanças imediatas, nem eles sabiam na aldeia que a estrada já tinha sido aberta depois da última nevasca. Mas nesta manhã, o caminhão com doze Faixas Verdes chegara na aldeia. Imediatamente, o líder do komiteh apresentara o pedaço de papel assinado pelo Komiteh Revolucionário de Sharpur, dando-lhes jurisdição sobre Yazdek e "toda a produção da IranOil, instalações e helicópteros desta área". Quando, a pedido de Nitchak Khan, Nasiri dissera que se comunicaria pelo rádio com a IranOil para protestar, um dos homens começara a espancá-lo. O líder tinha feito o homem parar, mas não se desculpara, nem demostrara a Nitchak Khan o respeito que lhe era devido como calênder deste ramo dos kash'kai. Outro arrepio de medo percorreu Nasiri e ele desejou estar de volta a Sharpur com sua mulher e sua família. Que Deus amaldiçoe todos os komitehs e fanáticos e estrangeiros e o Grande Satã, a América, que causou todos os nossos problemas.
— É... é melhor nós irmos — disse.
Eles saíram. Os outros já estavam bem mais à frente no caminho que levava à aldeia. Quanto Scot passou pelo hangar, viu os seus seis mecânicos reunidos sob o olhar vigilante de um guarda armado. O guarda estava fumando e um arrepio o percorreu. Havia avisos em farsi e em inglês por toda parte. PROIBIDO FUMAR — PERIGO! De um lado, o segundo 212 estava na fase final da verificação das mil e quinhentas horas, mas sem os dois 206 que completavam sua frota atual de aviões, o hangar parecia vazio e deprimente.
— Aga — ele disse para Nasiri, fazendo um sinal na direção dos guardas que os acompanhavam —, diga-lhes que eu preciso tomar providências em relação ao helicóptero e diga àquele imbecil para não fumar no hangar.
— Eles disseram que está bem — traduziu Nasiri —, mas que é para o senhor se apressar. — O guarda que estava fumando atirou displicentemente o cigarro no concreto. Um dos mecânicos correu para apagá-lo. Nasiri gostaria de ficar, mas os guardas lhe fizeram sinal para continuar. Relutante, ele saiu.
— Encha o tanque do FBC e faça uma inspeção nele — disse Scot, cuidadosamente, sem saber se algum dos guardas entendia inglês. — Dentro de uma hora eu tenho que levar o nosso komiteh para uma visita a todos os campos. Parece que temos um novo komiteh vindo de Sharpur.
— Oh, merda — resmungou alguém.
— E quanto ao material para a plataforma Rosa? — perguntou Effer Jordon. Ao lado dele estava Rod Rodrigues. Scot podia ver sua ansiedade.
— Isso vai ter que esperar. Apenas encha o tanque do FBC, Effer, e faça todo mundo checá-lo. Rod — disse para animar o homem mais velho —, agora que estamos voltando à normalidade, você em breve vai ter a sua licença em Londres, capito!
— Claro, obrigado, Scot.
O guarda ao lado de Scot fez sinal para ele prosseguir.
— Baleh Agha, sim, está bem, Excelência — disse Scot, depois acrescentou para Rodrigues: — Rod, faça uma inspeção cuidadosa para mim.
— Claro.
Scot saiu, com os guardas seguindo-o. Jordon perguntou ansioso:
— O que está acontecendo e onde você vai?
— Vou dar uma volta — disse sarcasticamente. — Como é que eu vou saber? Estive voando a manhã inteira. — E continuou andando, sentindo-se cansado, impotente e ineficiente, desejando que Lochart ou Jean-Luc estivessem ali em seu lugar. Malditos filhos da mãe do komitehl Um bando de malditos idiotas.
Nasiri estava uns cem metros à frente, caminhando rapidamente, os outros já tinham desaparecido na curva do caminho que serpenteava através das árvores. A temperatura estava um pouco abaixo de zero e a neve rangia sob os pés, e embora Scot se sentisse aquecido em sua roupa de piloto, era difícil caminhar com as botas de vôo e ele se arrastava desanimado, querendo alcançar Nasiri mas não conseguindo. Havia montes de neve dos lados do caminho e muita neve nas árvores, mas o céu estava claro. Meio quilômetro adiante, no fim do caminho sinuoso, ficava a aldeia.
Yazdek ficava num pequeno platô, agradavelmente protegida dos ventos. As cabanas e casas eram feitas de madeira, pedra e tijolos de barro e agrupadas em volta da praça em frente à pequena mesquita. Ao contrário da maioria das aldeias, ela era próspera, com bastante lenha para dar calor no inverno, bastante caça nas redondezas, com rebanhos de carneiros e cabras pertencentes à comunidade, alguns camelos e trinta cavalos e éguas de raça que eram o seu orgulho. A casa de Nitchak Khan tinha dois andares, era uma habitação coberta de telhas, de quatro cômodos, ficava ao lado da mesquita e era maior do que as outras.
Ao lado ficava a escola, o edifício mais moderno. Tom Lochart projetara a estrutura simples e persuadira McIver a financiá-la no ano anterior. Até poucos meses, a escola fora dirigida por um jovem do Corpo de Professores do xá — a aldeia era quase toda analfabeta. Quando o xá partiu, o rapaz desapareceu. De vez em quando, Tom Lochart e outros da base faziam palestras lá — que eram mais sessões de perguntas e respostas — em parte para manter boas relações, e em parte para ter algo que fazer quando não havia vôos. As sessões eram bastante freqüentadas, tanto por adultos como por crianças, encorajados a comparecer por Nitchak Khan e sua esposa.
Ao descer a pequena elevação, Scot viu os outros entrarem na escola. O caminhão que trouxera os Faixas Verdes estava estacionado do lado de fora. Os aldeões reuniam-se em grupos, observando silenciosamente. Homens, mulheres e crianças, nenhum deles armado. As mulheres kash 'kai não usavam nem véus nem chador, e sim roupas coloridas.
Scot subiu a escada da escola. Da última vez que estivera lá, há poucas semanas, ele tinha feito uma palestra sobre a Hong Kong que ele conheceu quando seu pai ainda trabalhava lá e que ele costumava visitar durante as fé rias do colégio interno que freqüentava na Inglaterra. Fora difícil explicar como era Hong Kong, com suas ruas apinhadas de gente, tufões, pauzinhos e escrita em caracteres, e sua comida e seu capitalismo pirata, a imensidade de toda a China. Estou contente de termos voltado para a Escócia, pensou, e pelo velho ter iniciado a S-G que um dia eu vou dirigir.
— O senhor deve sentar-se, capitão — disse Nasiri. — Ali. — Ele indicou uma cadeira no fundo da sala lotada. Ali-sadr e quatro outros Faixas Verdes estavam sentados na mesa onde o professor costumava sentar. Nitchak Khan e o mulá sentavam-se em frente a eles. Os aldeões estavam em pé, em volta.
— O que está acontecendo?
— É... é uma reunião.
Scot percebeu o medo que Nasiri sentia e imaginou o que faria se os Faixas Verdes começassem a bater nele. Eu devia ser faixa preta ou lutador de boxe, pensou fatigado, tentando entender o que o líder estava dizendo em farsi.
— O que ele está dizendo, aga! — cochichou para Nasiri.
— Eu... ele está... ele está dizendo a Nitchak Khan como a aldeia vai ser governada de agora em diante. Por favor, eu explico depois. — Nasiri se afastou.
Depois de algum tempo, o palavrório terminou. Todo mundo olhou para Nitchak Khan. Ele se levantou lentamente. Seu rosto estava grave e suas palavras foram poucas. Até Scot entendeu.
— Yazdek é kash 'kai. Yazdek vai continuar a ser kash 'kai. — Ele voltou as costas para a mesa e começou a se retirar, com o mulá o seguindo.
A uma ordem zangada do líder, dois Faixas Verdes barraram-lhe o caminho. Desdenhosamente, Nitchak Khan afastou-os, então outros o agarraram, com a tensão crescendo na sala, e Scot viu um dos aldeões se esgueirar para fora da sala sem ser observado. Os Faixas Verdes que estavam segurando Nitchak Khan viraram-no de frente para Ali-sadr e os outros quatro, que estavam em pé, enraivecidos e gritando. Ninguém tocara no velho mulá. Ele levantou a mão e começou a falar, mas o líder gritou para ele se calar e um murmúrio percorreu os aldeões. Nitchak Khan não lutou contra os homens que o imobilizavam, apenas olhou para Ali-sadr e Scot sentiu o ódio dele como se fosse um golpe físico.
O líder tornou a falar com os aldeões, depois apontou um dedo acusador para Nitchak Khan e mais uma vez ordenou que ele obedecesse e mais uma vez Nitchak Khan disse calmamente:
— Yazdek é kash'kai e vai continuar sendo kash'kai.
Ali-sadr sentou-se. Os outros quatro fizeram o mesmo. Mais uma vez Ali-sadr apontou e disse algumas palavras. Os aldeões levaram um choque. Os quatro homens ao lado dele concordaram com a cabeça. Ali-sadr disse uma única palavra. Ele cortou o silêncio como uma lâmina.
— Morte! — E se levantou e saiu, com os aldeões e os Faixas Verdes levando Nitchak Khan atrás dele, e Scot ficou esquecido. Scot se abaixou, tentando passar despercebido. Em pouco tempo ele estava sozinho.
Lá fora, os Faixas Verdes arrastaram Nitchak Khan para o muro da mesquita e o colocaram lá. A praça estava vazia. À medida que os outros aldeões saíam da escola, eles também se afastavam rapidamente. Exceto o mulá. Vagarosamente, ele foi até onde estava Nitchak Khan e se colocou ao lado dele, de frente para os Faixas Verdes que, a vinte metros de distância, preparavam as armas. A uma ordem de Ali-sadr, dois deles afastaram o velho. Nitchak Khan esperava em silêncio, orgulhosamente, depois cuspiu no chão.
O único tiro de rifle veio não se sabe de onde. Ali-sadr estava morto antes mesmo de cair no chão. O silêncio foi súbito e enorme, e os Faixas Verdes se viraram em pânico, depois ficaram paralisados quando uma voz gritou:
— Allah-u Akbarr, larguem suas armas!
Ninguém se moveu, depois um dos guardas do pelotão de fuzilamento apontou a arma para Nitchak Khan mas morreu antes de poder puxar o gatilho.
— Deus é grande, larguem as armas!
Um dos Faixas Verdes deixou a arma cair no chão. Um outro fez o mesmo, um outro correu para o caminhão mas morreu antes de andar dez metros. Agora todas as armas estavam no chão. E todos que continuavam em pé ficaram imóveis.
Então a porta da casa de Nitchak Khan se abriu e sua esposa saiu com uma carabina, apontada, seguida de um rapaz também empunhando uma carabina. Ela parecia feroz no seu orgulho, dez anos mais jovem que o marido, e o único som na praça era o tilintar dos seus brincos e correntes e o farfalhar das suas longas vestes marrons e vermelhas.
Os olhos estreitos de Nitchak Khan no seu rosto de maçãs salientes ficaram ainda mais estreitos, e as profundas rugas que tinha no canto dos olhos se acentuaram. Mas não disse nada a ela, apenas olhou para os oito Faixas Verdes que tinham sobrado. Sem piedade. Eles olharam para Nitchak, e um deles tentou apanhar a arma, e ela atirou no seu estômago e ele gritou, contorcendo-se na neve. Ela o deixou gritar por um momento. Depois deu um segundo tiro e os gritos cessaram.
Agora havia sete.
Nitchak Khan sorriu silenciosamente. Agora, das casas e cabanas, os homens e mulheres da aldeia saíram para a praça. Todos estavam armados. Ele voltou a atenção para os sete.
— Entrem no caminhão, deitem-se e ponham as mãos para trás. — Os homens obedeceram de má vontade. Ele ordenou que quatro aldeões os vigiassem, depois voltou-se para o rapaz que tinha saído da sua casa. — Há mais um no campo de aviação, meu filho. Leve alguém com você e trate dele. Traga o corpo de volta mas cubram os seus rostos com lenços para que os infiéis não possam reconhecê-los.
— Seja como Deus quiser. — O rapaz apontou para a escola. A porta estava aberta, mas não havia sinal de Scot. — O infiel — disse baixinho. — Ele não é da nossa aldeia. — E se afastou rapidamente.
A aldeia esperou. Nitchak Khan coçou a barba Pensativamente. Então seus olhos dirigiram-se para Nasiri que estava escondido ao lado da escada da escola.
O rosto de Nasiri ficou lívido.
— Eu... eu não... eu não vi nada, nada, Nitchak Khan — ele falou com voz rouca e se levantou e pulou por cima dos corpos. — Eu sempre... nos dois anos em que estou aqui eu sempre fiz tudo o que pude pela aldeia. Eu... eu não vi nada — disse mais alto, covardemente, e então o terror o dominou e ele saiu correndo da praça. E morreu. Uma dúzia de homens tinha atirado nele.
— É verdade que a única testemunha da maldade destes homens devia ser Deus.
Nitchak Khan suspirou. Ele gostava de Nasiri. Mas ele não era do seu povo. Sua mulher se aproximou e ele lhe sorriu. Ela apanhou um cigarro, entregou-lhe e o acendeu para ele, depois tornou a guardar os cigarros e os fósforos no bolso. Ele fumou Pensativamente. Alguns cachorros latiram no meio das casas e uma criança chorou, e a fizeram calar rapidamente.
— Haverá uma pequena avalanche para destruir a estrada no lugar em que ela foi interrompida antes, para manter todo mundo afastado até o degelo, — disse finalmente. — Nós poremos os corpos no caminhão e jogaremos gasolina por cima e o empurraremos para a ravina do Camelo Quebrado. Parece que o komiteh decidiu que nós podemos nos governar como sempre e que deveríamos ser deixados em paz como sempre, então eles foram embora e levaram o corpo de Nasiri com eles. Eles mataram Nasiri aqui na praça, como nós todos vimos, quando ele tentou escapar da justiça. Infelizmente, eles sofreram um acidente na volta. É uma estrada muito perigosa, como todos nós sabemos. Provavelmente eles levaram o corpo de Nasiri para provar que tinham cumprido o seu dever e livrado a montanha de um conhecido partidário do xá e o mataram quando ele tentou escapar. Ele certamente era um partidário do xá quando o xá tinha poder e antes do xá fugir. — Os aldeões concordaram satisfeitos e esperaram. Todos queriam saber a resposta para a última pergunta: e quanto à última testemunha? E quanto ao infiel que ainda estava dentro da escola?
Nitchak Khan coçou a barba. Isso sempre o ajudava na hora de tomar uma decisão difícil.
— Outros Faixas Verdes virão em breve, atraídos pelo magnetismo das máquinas voadoras, fabricadas pelos estrangeiros e pilotadas pelos estrangeiros para o benefício dos estrangeiros por causa do petróleo que é retirado da nossa terra para o benefício dos inimigos Tehranis e dos inimigos cobradores de impostos e de mais estrangeiros. Se não houvesse poços, não haveria estrangeiros, portanto não haveria Faixas Verdes. A terra é rica em petróleo em outros lugares, fácil de ser retirado em outros lugares. O nosso não é. Os nossos poucos poços não são importantes e as 11 bases são de acesso difícil e perigoso. Eles não tiveram que explodir o topo da montanha para salvar um deles de uma avalanche, há uns poucos dias atrás?
Houve concordância geral. Ele continuou fumando despreocupadamente. As pessoas olhavam para ele, confiantes. Ele era o calênder, o chefe que tinha governado sabiamente por 18 anos, em épocas boas e más.
— Se não houvesse máquinas voadoras, não poderia haver poços. Então, se esses estrangeiros partissem — ele continuou na mesma voz grossa e vagarosa —, eu duvido que outros estrangeiros se aventurassem a vir aqui para consertar e reabrir as 11 bases, pois as bases com certeza tornariam a ser avariadas, talvez até saqueadas por bandidos. Então nós seríamos deixados em paz. Sem a nossa benevolência, ninguém pode operar nas nossas montanhas. Nós, kash'kai, procuramos viver em paz. Mas seremos livres e governados pelos nossos próprios hábitos e costumes. Portanto, os estrangeiros devem partir, por sua própria vontade. E partir depressa. E também os poços. E tudo o que for estrangeiro. — Cuidadosamente, ele apagou o cigarro na neve. — Vamos começar: ponham fogo na escola.
Ele foi obedecido imediatamente. Um pouco de gasolina e a madeira ressecada logo pegou fogo. Todo mundo esperou. Mas o infiel não apareceu, e quando eles revistaram as cinzas não encontraram nenhum resto dele.
32
PERTO DE TABRIZ: 11:49H. Erikki Yokkonen subia com o 206 pelo alto desfiladeiro que ia dar na cidade. Nogger Lane estava ao seu lado e Azadeh atrás. Ela usava um grosso casaco de vôo sobre as roupas de esqui, mas no porta-bagagem havia um chador:
— Só por segurança — dissera. Ela estava usando o terceiro par de fones que Erikki lhe conseguira.
Tabriz Um, está me ouvindo? — Ele tornou a dizer. Esperaram. Nenhuma resposta ainda e já estava bem dentro da sua faixa. — Pode estar abandonada, pode ser uma armadilha, como aconteceu com Charlie.
— É melhor darmos uma boa olhada antes de pousar — disse Nogger, pouco à vontade, com os olhos examinando o céu e a terra.
O céu estava claro, a temperatura bem abaixo de zero, e as montanhas estavam cobertas de neve. Eles tinham reabastecido sem incidentes num depósito da IranOil muito próximo de Bandar-e Pahlavi, seguindo instruções da torre de Teerã.
— Khomeini está com tudo sob controle, com a torre de controle querendo ajudar e o aeroporto aberto de novo — Erikki tinha comentado, tentando espantar a depressão que pesava sobre eles.
Azadeh ainda estava muito abalada pela notícia da execução de Emir Paknouri por "crimes contra o Islã" e pela notícia ainda mais terrível a respeito do pai de Xarazade.
— Isso é assassinato — exclamara horrorizada, ao saber. — Que crimes ele poderia ter cometido, ele que tem apoiado Khomeini e os mulás há gerações?
Nenhum deles tivera qualquer resposta. A família recebera ordem de recolher o corpo e agora estava em luto profundo, Xarazade quase louca de tristeza — a casa fechada até mesmo para Azadeh e Erikki. Azadeh não queria sair de Teerã, mas tinha chegado uma segunda mensagem, enviada por seu pai a Erikki, repetindo a primeira: "Capitão, necessito urgentemente da presença da minha filha em Tabriz". — E agora eles estavam quase chegando em casa.
Antigamente, era a nossa casa, Erikki pensou. Agora eu não tenho mais certeza.
Perto de Qazvin, ele sobrevoara o lugar onde o seu Range Rover tinha ficado sem gasolina e onde Pettikin e Rakoczy os salvaram da multidão. O Range Rover não estava mais lá. Depois passara sobre a aldeia miserável onde ficava a barreira, e de onde ele fugira para esmagar o mujhadin de cara redonda que lhes roubara os papéis. É loucura voltar, pensou.
— Mac tem razão — Azadeh tinha dito, implorando. — Vá para Al Shargaz e deixe Nogger levar-me para Tabriz e trazer-me de volta para pegar o próximo vôo. Eu vou me encontrar com você em Al Shargaz não importa o que meu pai diga.
— Eu vou levá-la para casa e trazê-la de volta — respondera. — Está acabado.
Eles tinham decolado de Doshan Tappeh pouco depois do amanhecer. A base estava quase vazia, com muitos edifícios e hangares transformados em ruínas, destroços de aviões da Força Aérea iraniana, de caminhões, e um tanque incendiado com o emblema dos Imortais do lado. Não havia ninguém limpando aquela bagunça. Não havia nenhum guarda. Os catadores de lixo estavam levando para casa qualquer coisa que pudessem queimar — não havia quase nenhum combustível para vender, nem comida, mas ainda havia muitas batalhas diurnas e noturnas entre Faixas Verdes e esquerdistas.
O hangar e a oficina da S-G estavam quase intatos. Havia muitos buracos de balas nas paredes, mas nada fora saqueado até agora e eles estavam operando, precariamente, com alguns mecânicos e funcionários fazendo o trabalho normal. O pagamento de alguns salários atrasados, com o dinheiro que McIver conseguira espremer de Valik e dos outros sócios, fora a isca. Ele dera mais algum dinheiro para Erikki pagar o pessoal de Tabriz Um:
— Comece a rezar, Erikki! Hoje eu tenho um encontro marcado no Ministério para tratar das nossas finanças e do dinheiro que nos estão devendo — McIver tinha dito a eles pouco antes de decolarem —, e para renovar todas as nossas licenças vencidas. Foi Talbot, da embaixada, quem marcou o encontro para mim. Ele acha que há uma boa chance de Bazargan e Khomeini conseguirem controlar a situação agora e desarmar os esquerdistas. Nós só temos que manter o ânimo e a calma.
É fácil para ele, pensou Erikki.
Chegaram ao alto do desfiladeiro. Ele se inclinou e baixou depressa.
— Lá está a base! — Os dois pilotos se concentraram. A biruta era a única coisa que se movia. Não havia nenhum veículo estacionado em lugar algum. Não saía fumaça de nenhuma das cabanas. — Devia haver fumaça. — Fez uma volta apertada a duzentos metros. Ninguém apareceu para recebê-los. — Vou dar uma olhada mais de perto.
Tornaram a dar outra volta. Nada se moveu e eles subiram para trezentos metros. Erikki pensou por um momento.
— Azadeh, eu podia pousar no pátio da frente do palácio ou do lado de fora dos muros.
Imediatamente, Azadeh sacudiu a cabeça.
— Não, Erikki, você sabe como os guardas estão nervosos, e como ele é sensível a alguém aparecer lá sem ter sido chamado.
— Mas ele nos chamou, pelo menos a você. Ordenou é uma palavra melhor. Podíamos ir até lá, dar uma volta e olhar, e se estiver tudo bem, nós pousamos.
— Podíamos pousar bem longe e andar...
— Nada de andar. Não sem armas. — Ele não tinha conseguido arranjar uma arma em Teerã. Qualquer maldito vândalo tem tantas quantas quiser, pensou irritado. Tenho que arranjar uma. Já não me sinto mais seguro. — Vamos dar uma olhada e depois decidimos. — Ele ligou para a freqüência da torre de Tabriz e chamou. Nenhuma resposta. Tornou a chamar, depois virou e foi para a cidade. Ao passarem sobre a pequena aldeia de Abu Mard, Erikki apontou para baixo e Azadeh viu a escolinha onde passara tantos momentos felizes, a clareira ali perto e lá, ao lado do riacho, o lugar onde ela vira Erikki pela primeira vez e tinha achado que ele era um gigante da floresta e se apaixonara, milagre dos milagres, para ser salva por ele de uma vida de tormentos. Ela estendeu a mão e tocou-o através da pequena janela.
— Você está bem? Está aquecida? — E sorriu para ela.
— Oh, sim, Erikki. A aldeia nos deu muita sorte, não? — Ela conservou a mão no ombro dele. O contato agradava a ambos.
Logo eles puderam ver o aeroporto e a estrada de ferro que ia para o norte, para o Azerbeijão soviético que ficava a poucos quilômetros de distância, e depois até Moscou. A sudeste ela fazia uma curva e voltava a Teerã, que ficava a seiscentos quilômetros de distância. A cidade era grande. Agora eles podiam ver a cidadela e a mesquita azul, as fábricas de aço poluidoras, as cabanas e casas dos seiscentos mil habitantes.
— Olhem ali! — Parte da estação estava pegando fogo, com a fumaça subindo em ondas. Havia mais incêndios perto da cidadela e nenhuma resposta da torre de Tabriz e nenhuma atividade na pista do aeroporto, embora houvesse alguns pequenos aviões parados lá. Havia um bocado de atividade na base militar, com caminhões e carros indo e vindo, mas pelo que eles podiam ver, não havia tiroteios nem lutas nem multidões nas ruas. Toda a região próxima à mesquita estava estranhamente vazia.
— Não quero descer muito — ele disse —, não quero tentar nenhum maníaco do gatilho.
— Você gosta de Tabriz, Erikki? — perguntou Nogger, para disfarçar a inquietação. Ele nunca estivera ali antes.
— E uma cidade e tanto, velha e sábia, aberta e livre — a mais cosmopolita do Irã. Passei momentos maravilhosos aqui, comida e bebida do mundo todo barata e fácil de encontrar: caviar e vodca da Rússia e salmão defumado da Escócia e uma vez por semana, nos bons tempos, a Air France trazia pão fresco e queijos franceses. Mercadorias turcas e caucasianas, inglesas, americanas, japonesas, qualquer coisa. Ela é famosa pelos seus tapetes, Nogger, e pela beleza das suas mulheres... — Azadeh puxou-lhe a orelha e ele riu. — É verdade, Azadeh, você não é de Tabriz? É uma ótima cidade, Nogger. Eles falam um dialeto do farsi que é mais turco do que qualquer outra coisa. Durante séculos ela tem sido um grande centro comercial, parte iraniano, mas também russo, turco, curdo e armênio, sempre rebelde e independente e sempre desejada pelos cazares e agora pelos soviéticos...
Aqui e ali grupos de pessoas olhavam para eles.
— Nogger, você está vendo alguma arma?
— Muitas, mas ninguém está atirando em nós. Ainda. Cautelosamente, Erikki contornou a cidade e dirigiu-se para leste. Lá, a cidade se elevava em colinas próximas umas das outras e no alto de uma delas ficava o palácio dos Gorgons, com uma estrada que ia até lá. Não havia nenhum trânsito na estrada. No interior dos altos muros, havia muitos acres de terra: pomares, uma fábrica de tapetes, garagens para vinte carros, abrigos para rebanhos de ovelhas durante o inverno, cabanas e acomodações para cerca de cem empregados e guardas, e o enorme edifício principal de cinqüenta cômodos, com a pequena mesquita e o minarete. Alguns carros estavam estacionados perto da entrada principal. Ele fez um círculo a duzentos metros.
— Que lugar! — disse Nogger Lane, maravilhado.
— Foi construído para o meu bisavô pelo príncipe Zergeyev, por ordem dos czares Romanovs, Nogger, como um pishkesh — disse distraidamente Azadeh, observando o local. — Foi em 1890, quando os czares já tinham roubado as nossas províncias caucasianas e estavam, mais uma vez, tentando separar o Azerbeijão do Irã e queriam a ajuda dos kans Gorgons. Mas a nossa linhagem foi sempre leal ao Irã, embora tenham procurado manter um certo equilíbrio. — Ela estava observando o palácio lá embaixo. Havia pessoas saindo da casa principal e das outras casas: empregados e guardas armados. — A mesquita foi construída em 1907 para celebrar a assinatura de um novo acordo entre a Rússia e a Inglaterra, a respeito da divisão do nosso território, e algumas esferas de infl... Oh, olhe, Erikki, aqueles não são Najoud e Fazulia e Zadi... e, oh, olhe, Erikki, aquele não é o meu irmão Hakim? O que Hakim está fazendo lá?
— Onde? Oh, estou vendo. Não, eu não...
— Talvez... talvez Abdullah Khan o tenha perdoado — ela disse excitadamente. — Oh, isso não seria maravilhoso?
Erikki olhou para as pessoas lá embaixo. Ele só tinha visto o irmão dela uma vez, no dia do seu casamento, mas tinha gostado muito dele. Abdullah Khan permitira que ele viesse só por esse dia e depois o mandara de volta para Khoi, na parte setentrional do Azerbeijão, perto da fronteira da Turquia, onde tinha grandes negócios de exploração de minério.
— A única coisa que Hakim sempre desejou foi ir para Paris estudar piano — Azadeh tinha dito a ele. — Mas meu pai não quis ouvi-lo, simplesmente amaldiçoou-o e expulsou-o por traição.
— Não é Hakim — disse Erikki, pois seus olhos eram muito melhores do que os dela.
— Oh — Azadeh apertou os olhos por causa do vento. — Oh. — Ela ficou desapontada. — Sim, tem razão, Erikki.
— Lá está Abdullah Khan! — Não havia nenhuma dúvida sobre o homem imponente e corpulento, com a longa barba, que saíra pela porta principal e parara na escada, com dois guardas armados atrás. Havia dois outros homens com ele. Todos vestiam pesados sobretudos por causa do frio. — Quem são eles?
— Desconhecidos — ela respondeu, tentando superar a decepção. — Eles não têm armas e não há nenhum mulá, logo não são Faixas Verdes.
— Eles são europeus — disse Nogger. — Você tem um binóculo, Erikki?
— Não.
Erikki parou de circular, desceu para 150 metros e ficou pairando, observando atentamente Abdullah khan. Ele o viu apontar para o helicóptero e depois falar com os outros homens, voltando a observar o helicóptero outra vez. Outras irmãs de Azadeh e pessoas da família, algumas usando chador, bem como alguns empregados, tinham-se juntado, protegendo-se do frio. Erikki desceu mais trinta metros. Ele tirou os óculos escuros e os fones e abriu a janela, perdendo o fôlego quando o ar gelado o atingiu, pôs a cabeça para fora para que o pudessem ver claramente, e acenou. Todos os olhos se voltaram para Abdullah Khan. Depois de uma pausa, o khan acenou de volta. Sem nenhum prazer.
— Azadeh! Tire os fones e faça a mesma coisa.
Ela obedeceu na mesma hora. Algumas das suas irmãs acenaram animadamente, falando umas com as outras. Abdullah Khan ignorou-a, apenas esperou. Matyeryebyets, pensou Erikki, depois inclinou-se para fora da cabine e apontou para o amplo espaço ao lado da piscina gelada, em mosaico, que havia no pátio, obviamente pedindo permissão para pousar. Abdullah Khan concordou com a cabeça e apontou para lá, falou brevemente com os guardas, depois virou-se e entrou na casa. Os outros homens o seguiram. Um dos guardas ficou. Ele desceu a escada em direção ao local de pouso, verificando o seu rifle.
— Nada como um comitê de recepção amigável — resmungou Nogger.
— Não precisa se preocupar, Nogger — disse Azadeh, com uma risada, nervosa. Eu vou saltar primeiro, Erikki, é mais seguro eu ser a primeira.
Eles pousaram imediatamente. Azadeh abriu a porta e foi cumprimentar suas irmãs e a madrasta, a terceira esposa de seu pai, que era mais moça do que ela. A primeira mulher, Khanan, tinha a mesma idade que ele, mas agora estava enferma e nunca saía do quarto. Sua segunda mulher, mãe de Azadeh, morrera há muitos anos.
O guarda interceptou Azadeh. Educadamente. Erikki respirou mais forte. Estava muito longe para ouvir o que eles estavam falando e, de qualquer modo, nem ele nem Nogger falavam farsi ou turco. O guarda fez um sinal em direção ao helicóptero. Ela balançou a cabeça e acenou para eles, chamando-os. Erikki e Nogger completaram o pouso, observando o guarda que os olhava com ar sério.
— Você detesta armas tanto quanto eu, Erikki? — perguntou Nogger.
— Mais ainda. Mas pelo menos esse homem sabe usar uma arma. São os amadores que me assustam. — Erikki desligou os motores e guardou a chave da ignição no bolso.
Eles se dirigiram para onde estavam Azadeh e suas irmãs, mas o guarda ficou no caminho. Azadeh gritou:
— Ele diz que vocês devem ir para o salão de recepção imediatamente e esperar lá. Sigam-me, por favor.
Nogger era o último. Uma das bonitas irmãs chamou-lhe a atenção, e ele sorriu consigo mesmo e subiu os degraus de dois em dois.
O salão de recepção era grande, frio e ventoso e cheirava a mofo, tinha uma pesada mobília vitoriana, muitos tapetes e almofadões e antiquados aquecedores a vapor. Azadeh ajeitou o cabelo num dos espelhos. Suas roupas de esqui eram elegantes e modernas. Abdullah Khan nunca tinha exigido que suas esposas e filhas, ou suas empregadas, usassem o chador, ele não aprovava o chador. Então por que Najoud estava usando um hoje? Ela se perguntou, com o nervosismo aumentando. Um empregado trouxe chá. Eles esperaram meia hora, depois outro guarda chegou e falou com ela. Ela deu um profundo suspiro.
— Nogger, é para você esperar aqui — disse. — Erikki, eu e você devemos acompanhar este guarda.
Erikki seguiu-a, tenso mas confiante de que o armistício que ele tinha negociado com Abdullah Khan ainda estivesse valendo. O contato da sua faca pukoh tranqüilizou-o. O guarda abriu uma porta no final do corredor e fez sinal para eles entrarem.
Abdullah Khan estava recostado em algumas almofadas, reclinado sobre um tapete em frenta à porta, com guardas atrás dele; a sala era luxuosa, vitoriana, formal e, de certa forma, decadente e suja. Os dois homens que eles tinham visto na escada estavam sentados de pernas cruzadas ao seu lado. Um era europeu, um homem grande e conservado, de uns sessenta anos, com ombros fortes e olhos eslavos num rosto amigável. O outro era mais jovem, tinha cerca de trinta anos, com feições asiáticas e pele amarelada. Ambos usavam roupas pesadas de inverno. A cautela de Erikki aumentou enquanto ele esperava na porta que Azadeh fosse até o pai, se ajoelhasse diante dele, beijasse as suas mãos gordas, cheias de anéis, e lhe pedisse a bênção. Impassível, seu pai fez sinal para que ela se afastasse e manteve os olhos fixos em Erikki, que o cumprimentou educadamente da porta mas permaneceu perto dela. Disfarçando a vergonha e o medo, Azadeh tornou a se ajoelhar no tapete e olhou-o. Erikki viu os dois estranhos examinarem-na apreciativamente, e sua temperatura subiu um ponto. O silêncio ficou mais pesado.
Ao lado do khan, havia um prato de halvah, pequenos quadrados de doces de mel turcos que ele adorava, e ele comeu alguns, brincando com os anéis.
— Então — disse com dureza — parece que você mata indiscriminadamente como um cachorro louco.
Os olhos de Erikki estreitaram-se e ele não disse nada.
— Bem?
— Se eu mato, não é como um cachorro louco. Quem dizem que eu matei? Um velho no meio de uma multidão perto de Qazvin. Com um golpe de cotovelo, seu peito foi achatado. Há testemunhas. Depois, três homens num carro e um do lado de fora, que era um importante combatente da liberdade. Há mais testemunhas. Mais adiante, cinco mortos e mais feridos durante o resgate do helicóptero. Mais testemunhas. — Houve um outro silêncio. Azadeh não se movera, embora o sangue lhe tivesse fugido do rosto. — Bem?
— Se existem testemunhas, o senhor deve saber também que nós estávamos pacificamente tentando chegar a Teerã, que não estávamos armados, que fomos atacados por uma multidão e que se não fosse por Charlie Pettikin e Rakoczy, provavelmente estaríamos... Erikki interrompeu-se momentaneamente, notando o olhar repentino trocado entre os dois homens. Então, mais cautelosamente ainda, ele continuou: — Nós estaríamos provavelmente mortos. Nós estávamos desarmados mas Rakoczy não estava, e eles atiraram em nós primeiro.
Abdullah Khan também notara a mudança nos homens que estavam ao seu lado. Pensativo, ele olhou para Erikki.
— Rakoczy? O mesmo que atacou a sua base junto com o mulá e os soldados marxistas-islâmicos? O muçulmano soviético?
— Sim. — Erikki olhou para os dois desconhecidos, com um olhar duro. — O agente da KGB, que dizia vir da Geórgia, de Tbilisi.
Abdullah Khan sorriu levemente.
— KGB? Como você sabe?
— Eu os conheço bem. — Os dois desconhecidos olharam para ele inocentemente. O mais velho tinha um sorriso simpático que gelou Erikki.
— Este Rakoczy, como foi que ele entrou no helicóptero? — perguntou o khan.
— Ele capturou Charlie Pettikin na minha base no domingo passado. Pettikin é um dos nossos quatro pilotos e ele tinha vindo a Tabriz para nos apanhar, a mim e Azadeh. A minha embaixada tinha pedido para eu me comunicar com eles a respeito do meu passaporte. Foi no dia em que a maioria dos governos, o meu também, mandou que todos os estrangeiros que não fossem essenciais deixassem o Irã — disse, exagerando com facilidade. — Na segunda-feira, o dia em que saímos daqui, Rakoczy obrigou Pettikin a transportá-lo para Teerã. — Erikki contou rapidamente o que tinha acontecido. — Se ele não tivesse notado a bandeira da Finlândia no teto do carro, nós estaríamos mortos.
O homem de feições asiáticas riu baixinho.
— Isso seria uma grande perda, capitão Yokkonen — disse em russo. O homem mais velho, com os olhos eslavos, perguntou num inglês perfeito: — Este Rakoczy, onde ele está agora?
— Não sei. Em algum lugar em Teerã. Posso perguntar quem são os senhores? — Erikki estava tentando ganhar tempo e não esperava nenhuma resposta. Estava tentando decidir se Rakoczy era amigo ou inimigo desses dois, que eram, obviamente, soviéticos, obviamente da KGB ou da GRU, a polícia secreta das forças armadas.
— Qual era o primeiro nome dele, por favor? — O homem mais velho perguntou gentilmente.
— Fedor, como o revolucionário húngaro — Erikki não percebeu nenhuma reação e poderia ter prosseguido, mas era esperto demais para fornecer qualquer informação para a KGB ou a GRU. Azadeh estava ajoelhada no tapete, com as costas retas, imóvel. Suas mãos pousavam no colo, e seus lábios vermelhos contrastavam com a palidez do rosto. De repente ele sentiu muito medo por ela.
— Você admite ter matado esses homens? — perguntou o khan, e comeu outro doce.
— Admito ter matado um homem, há um ano e pouco, salvando a sua vida, Alteza, e...
— E a sua! — disse Abdullah Khan, raivosamente. — Os assassinos o teriam matado também. Foi a Vontade de Deus que nós dois vivêssemos.
— Eu não comecei o conflito nem o provoquei — Erikki tentava escolher as palavras com inteligência, sentindo-se burro, inseguro e inadequado. — Se eu matei esses outros não foi por minha vontade, mas apenas para proteger sua filha e minha esposa. Nossas vidas estavam em perigo.
— Ah, você considera que é seu direito matar todas as vezes que considera que sua vida está em perigo?
Erikki viu o rubor no rosto do khan, e percebeu os dois soviéticos observando-o e lembrou da sua própria herança e das histórias do seu avô sobre os tempos antigos nas Terras do Norte, quando gigantes povoavam a terra e os duendes e demônios não eram apenas um mito, há muito tempo atrás, quando a terra era pura e o mal era o mal e o bem era o bem, e o mal não podia usar nenhuma máscara.
— Se a vida de Azadeh for ameaçada, ou a minha, eu matarei qualquer um — respondeu.
Os três homens sentiram um sopro gelado passando por eles. Azadeh ficou apavorada com aquela ameaça e os guardas que não falavam nem russo nem inglês se agitaram, sentindo a violência.
A veia no meio da testa de Abdullah Khan pulsou.
— Você irá com este homem — disse sombriamente. — Você irá com este homem e fará o que ele mandar.
Erikki olhou para o homem de feições asiáticas.
— O que você quer de mim?
— Apenas a sua habilidade como piloto, e o 212 — disse o homem, amistosamente, em russo.
— Sinto muito, mas o 212 está na revisão das mil e quinhentas horas e eu trabalho para a S-G e para a Madeira Iraniana.
— O 212 está pronto, já foi revisado pelos seus mecânicos e a Madeira Iraniana o emprestou a... a mim.
— Para fazer o quê?
— Para voar — disse o homem, irritado. — Você é surdo?
— Não, mas parece que você é.
O homem espumou. O homem mais velho sorriu estranhamente. Abdullah Khan virou-se para Azadeh que quase deu um salto de medo.
— Você, vá apresentar os seus respeitos a Khanan!
— Sim... sim... papai — gaguejou e se levantou de um salto. Erikki deu um passo para a frente, mas os guardas estavam prontos, um deles apontava para ele e Azadeh disse, quase chorando:
— Não, Erikki, é... eu... eu devo ir... — E saiu correndo antes que ele pudesse impedi-la.
O homem com o rosto asiático quebrou o silêncio.
— Você não tem nada a temer. Nós só precisamos dos seus serviços. Erikki Yokkonen não respondeu, certo de que estava encurralado, que tanto ele quanto Azadeh estavam encurralados e perdidos, e sabendo que, se não houvesse nenhum guarda ali ele teria atacado agora, sem hesitação, teria matado Abdullah Khan e provavelmente os outros dois. Os três homens sabiam disto.
— Por que o senhor mandou chamar minha mulher, Alteza? — perguntou na mesma voz calma, já sabendo a resposta agora. — O senhor mandou duas mensagens.
Abdullah Khan disse com um esgar de desprezo:
— Ela não tem nenhum valor para mim, mas tem para os meus amigos: para trazê-lo de volta e fazê-lo comportar-se. E por Deus e pelo Profeta, você vai se comportar. Você vai fazer o que este homem mandar.
Um dos guardas fez um pequeno movimento com a metralhadora e o barulho ecoou na sala. O soviético e o homem de feições asiáticas se levantaram.
— Primeiro a sua faca, por favor.
— Você pode vir buscá-la. Se realmente a quiser.
O homem hesitou. Repentinamente, Abdullah Khan deu uma gargalhada. A gargalhada foi cruel e os fez ficar tensos.
— Deixe a faca com ele. Isto vai tornar a sua vida mais interessante. — Então voltou-se para Erikki: — É aconselhável você ser obediente e se comportar.
— Seria mais aconselhável deixar-nos partir em paz.
— Você gostaria de ver o seu co-piloto pendurado pelo dedão do pé agora mesmo? — Os olhos de Erikki apertaram-se ainda mais. O soviético mais velho inclinou-se para cochichar com Abdullah Khan, cujo olhar não se afastou de Erikki. Suas mãos brincavam com a adaga coberta de jóias. Quando o homem terminou de falar, ele balançou a cabeça. — Erikki, você vai dizer ao seu co-piloto que é para ele obedecer enquanto estiver em Tabriz. Nós vamos mandá-lo para a base, mas o seu pequeno helicóptero vai ficar aqui. Por enquanto. — Ele fez sinal para o homem de feições asiáticas sair.
— Meu nome é Cimtarga, capitão. — O homem não era tão alto quanto Erikki, mas era muito forte, com ombros largos. — Primeiro nós...
— Cimtarga é o nome de uma montanha, a leste de Samarcanda. Qual é o seu verdadeiro nome? E o seu posto?
O homem deu de ombros.
— Meus antepassados andavam com Timur Tamerlão, o Mongol, aquele que gostava de erguer montanhas de crânios. Primeiro nós vamos para a sua base. Vamos de carro. — Passou por ele e abriu a porta, mas Erikki não se moveu, ainda olhando para o khan.
— Eu verei minha mulher esta noite.
— Você a verá quando... — Abdullah Khan parou porque o homem mais velho mais uma vez se inclinou e cochichou. Novamente o khan balançou a cabeça, concordando. — Ótimo. Sim, capitão, você a verá esta noite e a cada duas noites. Desde que... — Ele deixou a expressão no ar. Erikki virou-se e saiu.
Quando a porta se fechou atrás deles, a tensão abandonou a sala. O homem mais velho riu.
— Alteza, o senhor foi perfeito, perfeito como sempre.
Abdullah Khan relaxou o ombro esquerdo, incomodado pela dor que sentia na articulação atacada de artrite.
— Ele vai ser obediente, Petr — disse —, mas só enquanto a minha desobediente e ingrata filha estiver ao meu alcance.
— Filhas são sempre difíceis — respondeu Petr Oleg Mzytryk. Ele vinha do norte da fronteira, de Tbilisi, Tiflis.
— Não é assim, Petr. Todas as outras me obedecem e não me causam problemas, mas esta... ela me deixa furioso.
— Então mande-a embora assim que o finlandês tiver feito o que é preciso. Mande os dois embora. — Os olhos eslavos brilharam na face bondosa e ele acrescentou alegremente: — Se eu fosse trinta anos mais jovem, e ela fosse livre, eu me candidataria a livrá-lo dela.
— Se você tivesse pedido antes deste louco aparecer, você poderia tê-la com a minha bênção — Abdullah Khan disse com amargura, embora tivesse notado uma esperança oculta, e ocultasse a surpresa, pondo-a de lado para consideração posterior. — Eu me arrependo de tê-la dado a ele. Achei que ela também o levaria à loucura. Arrependo-me do meu juramento diante de Deus de deixá-lo vivo. Foi um momento de fraqueza.
— Talvez não. É bom ser generoso, às vezes. Ele realmente salvou sua vida.
— Insha'Allah! Foi um Ato de Deus. Ele foi apenas um instrumento.
— É claro — Mzytryk disse apaziguadoramente. — É claro.
— Este homem é um demônio, um demônio ateu que tem sede de sangue. Se não fosse pelos meus guardas, você mesmo viu, nós estaríamos lutando por nossas vidas.
— Não, não enquanto ela estiver em seu poder para ser manobrada... impropriamente. — Petr sorriu estranhamente.
— Se Deus quiser, eles logo estarão no inferno — disse o khan, ainda furioso por ter tido que manter Erikki vivo para ajudar Petr Oleg Mzytryk, quando poderia tê-lo entregue ao mujhadin esquerdista e assim livrar-se dele para sempre.
O mulá Mahmud, um dos líderes em Tabriz da facção mujhadin islâmico-marxista que tinha atacado a base, viera até ele há dois dias e lhe contara o que tinha acontecido na barreira da estrada.
— Aqui estão os papéis dele como prova — dissera o mulá com truculência. — Dos dois estrangeiros, que devem ser da CIA, e da moça, sua filha. Assim que ele voltar a Tabriz, nós o levaremos diante do komiteh, o julgaremos, o levaremos para Qazvin e o executaremos.
— Pelo Profeta, vocês não o farão, não enquanto eu não tiver aprovado. — Ele tinha respondido imperiosamente, apanhando os papéis. — Aquele cão danado estrangeiro é casado com a minha filha, não é da CIA, está sob minha proteção até que eu a cancele, e se você tocar num único fio daquele cabelo vermelho ou se meter com ele ou com a base sem minha permissão, eu retirarei todo o meu apoio secreto e nada vai impedir os Faixas Verdes de acabarem com os esquerdistas de Tabriz! Ele será entregue a você quando eu decidir, não você
— O mulá se retirara aborrecido e Abdullah tinha imediatamente acrescentado Mahmud à sua lista de prioridades. Quando ele examinou com cuidado os papéis e encontrou o passaporte e a identidade de Azadeh e outros documentos, tinha ficado encantado, pois isso lhe dava um poder extra sobre ela e o marido.
Sim, pensou, olhando para o soviético, ela agora fará qualquer coisa que eu mandar. Qualquer coisa.
— Seja como Deus quiser, mas ela pode ficar viúva muito em breve.
— Vamos esperar que não depressa demais! — A gargalhada de Mzytryk foi gostosa e contagiante. — Não antes do marido terminar a sua missão.
Abdullah Khan estava satisfeito com a presença do homem e com o seu conselho inteligente, e contente por Mzytryk fazer o que tinha que ser feito. Mas eu vou ter que ser um manipulador de fantoches melhor do que nunca, ele pensou, se quiser sobreviver e se quiser que o Azerbeijão sobreviva.
Por toda a província e em Tabriz a situação agora era muito delicada, com insurreições de vários tipos e facções lutando contra facções, com dezenas de milhares de soldados soviéticos a postos, do outro lado da fronteira. E tanques. E nada entre eles e o golfo para atrapalhá-los. Exceto eu, ele pensou. E uma vez de posse do Azerbeijão — com Teerã indefensável como a história já provou diversas vezes — então o Irã cairá nas mãos deles como a maçã podre que Krushchev previu. Junto com o Irã, o golfo, o petróleo mundial e Ormuz.
Ele queria urrar de raiva. Maldito xá que não quis ouvir, não quis esperar, não teve o bom senso de esmagar uma rebelião de segunda classe instigada pelos mulás há vinte anos e mandar o aiatolá Khomeini para o inferno como eu aconselhei e pôs em risco o nosso domínio absoluto, inevitável, sobre o mundo inteiro exceto a Rússia, czarista ou soviética — o nosso verdadeiro inimigo.
Nós estávamos tão perto: os Estados Unidos estavam comendo nas nossas mãos, adulando-nos e empurrando-nos as suas armas mais avançadas, implorando-nos para policiar o golfo e assim dominar os malditos árabes, absorver o seu petróleo, torná-los nossos vassalos assim como os seus malditos parasitas, os xeques sunitas, da Arábia Saudita até Omã. Nós poderíamos ter dominado o Kuwait num dia, o Iraque numa semana os xeques sauditas e dos emirados árabes teriam fugido para o deserto implorando piedade! Nós poderíamos conseguir qualquer tecnologia que quiséssemos, navios, aviões, tanques, armas à vontade, até mesmo a bomba atômica, por Deus! — os nossos reatores alemães teriam feito isso para nós.
Tão perto de cumprir a vontade de Deus, nós, os xiitas do Irã, com nossa inteligência superior, nossa história milenar, nosso petróleo e nosso domínio do estreito que, no fim, deverá pôr de joelhos todo o Povo da Mão Esquerda. Tão perto de conquistar Jerusalém e Meca, controlar Meca — a mais Santa das Santas.
Tão perto de nos tornarmos os primeiros sobre a terra, como é nosso direito, mas agora, agora tudo isso está ameaçado e nós temos que começar de novo, e mais uma vez superar os bárbaros satânicos do norte, e tudo por causa de um único homem.
Insha'Allah!, ele pensou, e isso o acalmou um pouco. Mesmo assim, se Mzytryk não estivesse na sala, ele teria gritado e esbravejado e batido em alguém, em qualquer um. Mas o homem estava aqui e tinha que ser manobrado, os problemas do Azerbeijão tinham que ser contornados, então ele controlou a raiva e meditou sobre a sua próxima jogada. Apanhou o último doce e enfiou-o na boca.
— Você gostaria de se casar com Azadeh, Petr?
— Você gostaria de ter-me, eu que sou mais velho do que você, como genro? — O homem disse com uma risada.
— Se esta fosse a Vontade de Deus — ele respondeu com a quantidade certa de sinceridade e sorriu para si mesmo, pois tinha visto o brilho súbito nos olhos do amigo, rapidamente disfarçado. Então, pensou, você já a deseja tendo-a visto apenas pela primeira vez. E se eu realmente a entregasse a você quando me livrasse do monstro, que vantagem isso me traria? Muitas! Você é qualificado, você é poderoso, politicamente isso seria muito sábio, muito sábio, e você poria algum juízo na cabeça dela e a trataria como ela precisa ser tratada, não como o finlandês, que a trata com mimos. Você seria um instrumento de vingança sobre ela. Há muitas vantagens...
Há três anos, Petr Oleg Mzytryk tinha tomado posse da imensa propriedade que pertencera a seu pai — também um velho amigo dos Gorgons — perto de Tbilisi, onde, por gerações, os Gorgons também possuíam muitas importantes ligações comerciais. Desde então, Abdullah Khan viera a conhecê-lo intimamente, hospedando-se na propriedade durante suas freqüentes viagens de negócios. Ele tinha achado Petr Oleg, como todos os russos, muito discreto, revelando muito pouco. Mas, ao contrário da maioria, extremamente prestativo e simpático — e mais poderoso do que qualquer soviético que conhecia, um viúvo com uma filha casada, um filho na marinha, netos — e hábitos estranhos. Ele morava sozinho na enorme propriedade, exceto pelos empregados e por uma mulher de uma beleza estranha e cruel, uma russa-eurasiana chamada Vertinskya, de uns trinta e tantos anos, com quem ele só tinha aparecido duas vezes em três anos, quase como se fosse um tesouro particular. Ela parecia ser ao mesmo tempo escrava, prisioneira, companheira de bebida, meretriz, torturadora e gata selvagem.
— Por que você não a mata e acaba com isso, Petr? — Ele tinha dito um dia em que assistiu a uma violenta discussão e Mzytryk a tinha chicoteado, com a mulher cuspindo e xingando e lutando até que os empregados a levaram embora arrastada.
— Não... ainda não — dissera Mzytryk, com as mãos trêmulas — ela é... é valiosa demais.
— Ah, sim, sim, agora eu compreendo — dissera Abdullah Khan, igualmente provocado, sentindo quase a mesma coisa a respeito de Azadeh: a relutância em se livrar de um objeto antes que estivesse realmente acovardado, humilhado e rastejante. E ele se lembrou de como tinha invejado Mzytryk pelo fato de Vertinskya ser amante e não filha, de modo que o ato final de vingança pudesse ser consumado.
Que Deus amaldiçoe Azadeh, pensou. Amaldiçoe-a porque podia ser a gêmea da mãe que me deu tanto prazer, ela que me faz lembrar constantemente a minha perda, ela e seu maldito irmão, ambos cópias da mãe na aparência e nos modos mas não em qualidade, ela que era como uma huri do Jardim de Deus. Eu pensei que os nossos dois filhos me amassem e respeitassem, mas não, assim que Napthala foi para o paraíso a verdadeira natureza deles se manifestou. Eu sei que Azadeh estava conspirando com o irmão para me matar. Eu não tenho a prova? Oh, Deus, eu gostaria de poder espancá-la como Petr faz com a sua Nêmesis, mas não posso, não posso. Toda vez que eu levanto a mão contra ela, eu vejo a minha bem-amada, maldita Azadeh, que Deus a mande para o inferno...
— Acalme-se — disse Mzytryk gentilmente.
— O quê?
— Você parecia tão perturbado, meu amigo. Não se preocupe, tudo vai dar certo. Você encontrará um meio de exorcizá-la.
Abdullah Khan balançou a cabeça gravemente.
— Você me conhece bem demais. — Isso é verdade, ele pensou, pedindo um chá para si mesmo e vodca para Mzytryk, o único homem com quem ele sempre se sentira à vontade.
Eu me pergunto quem você realmente é, ele pensou, observando-o. Há muitos anos, no tempo do seu pai, quando nos encontrávamos na propriedade, você costumava dizer que estava de licença, mas nunca dizia de licença de quê, eu nunca consegui descobrir, por mais que tentasse. Primeiro, eu achei que fosse do exército soviético, pois uma vez, quando estava bêbado, você me disse que tinha sido comandante de tanques durante a Segunda Guerra Mundial em Se-bastopol, indo até Berlim. Mas então eu mudei de idéia e achei mais provável que você e seu pai fossem da KGB ou da GRU, pois ninguém em toda a URSS se recolhe a uma propriedade dessas na Geórgia, a melhor parte do país, sem ter ligações muito importantes e muita influência. Você diz que está aposentado — aposentado de onde?
Ao tentar descobrir a extensão do poder de Mzytryk nos primeiros tempos, Abdullah Khan mencionara que uma célula clandestina de comunistas do Tudeh em Tabriz estava planejando assassiná-lo e ele gostaria que a célula fosse destruída. Isto só era verdadeiro em parte, a verdadeira razão era o fato do filho de um homem que ele secretamente odiava e não podia atacar abertamente fazer parte do grupo. Na mesma semana, todas as cabeças dos membros do grupo foram enfiadas em estacas perto da mesquita com um aviso: ASSIM MORRERÃO TODOS OS INIMIGOS DE DEUS. Ele tinha derramado lágrimas fingidas no funeral e rido em particular. O fato de Petr Mzytryk ter poder para eliminar uma das suas próprias células significava que ele tinha mesmo poder. E Abdullah Khan viu também a importância que tinha para eles.
— Por quanto tempo você vai precisar do finlandês? — perguntou Abdullah.
— Por algumas semanas.
— E se os Faixas Verdes o impedirem de voar ou o interceptarem? O soviético deu de ombros.
— Vamos esperar que ele conclua a missão. Duvido que haja algum sobrevivente — seja ele ou Cimtarga — caso sejam encontrados deste lado da fronteira.
— Ótimo. Agora voltemos ao que conversávamos antes de sermos interrompidos: você concorda que não haverá apoio ostensivo para os membros do Tudeh aqui, desde que os americanos fiquem de fora e Khomeini não inicie um programa contra eles?
— O Azerbeijão tem sido sempre um foco de interesse para nós. Sempre dissemos que ele deveria ser um Estado independente. Tem riqueza, poder, minerais e petróleo em quantidade mais do que suficiente para sustentá-lo e... — Mzytryk sorriu — e uma liderança esclarecida. Você poderia levantar esta bandeira, Abdullah. Tenho certeza de que você conseguiria todo o apoio necessário para ser presidente. Com nosso reconhecimento imediato.
E então eu seria assassinado no dia seguinte enquanto os tanques estivessem entrando pelas fronteiras, o khan disse a si mesmo sem maldade. Oh, não, meu bom amigo, o golfo é uma tentação grande demais até mesmo para você.
— E uma grande idéia — disse veementemente —, mas eu precisaria de tempo. Enquanto isso eu poderia contar também com o fato dos comunistas do Tudeh virem se voltar contra os insurretos?
O sorriso de Petr Mzytryk permanceceu o mesmo, mas seu olhar mudou.
— Seria estranho se o Tudeh atacasse os seus irmãos de criação. O marxismo-islâmico é defendido por muitos intelectuais muçulmanos. Eu ouvi dizer que até você os apoia.
— Concordo que deve haver um equilíbrio no Azerbeijão. Mas quem mandou os esquerdistas atacarem o campo de aviação? Quem os mandou atacar e incendiar a nossa estação de trem? Quem ordenou que o nosso oleoduto fosse destruído? Obviamente ninguém de bom senso. Ouvi dizer que foi o mulá Mahmud, da mesquita Hajsta. — Ele observou Petr cuidadosamente. — Um dos seus.
— Eu nunca ouvi falar nele.
— Ah — Abdullah Khan disse com uma jovialidade fingida, sem acreditar. — Estou contente, Petr, porque ele é um falso mulá, não é nem mesmo um verdadeiro islâmico-marxista, ele é um agitador. Foi ele que invadiu a base de Yokkonen. Infelizmente, ele tem quinhentos combatentes apoiando-o, todos igualmente indisciplinados. E recebe dinheiro de algum lugar. E tem ajudantes como Fedor Rakoczy. O que Rakoczy significa para você?
— Não muito — disse Petr, imediatamente, com o mesmo sorriso e o mesmo tom de voz, esperto demais para evitar a pergunta. — Ele é um engenheiro mecânico em Astara, na fronteira, um dos nossos conterrâneos muçulmanos que parece ter-se juntado aos mujhadins como um dos Combatentes da Liberdade, sem permissão nem aprovação.
Petr manteve o rosto impassível, mas por dentro estava praguejando obscenamente, com vontade de gritar: Meu filho, meu filho, você nos traiu? Você foi mandado para espionar, para se infiltrar no meio dos mujhadins e nos manter informados, só isso! E desta vez você foi enviado para tentar recrutar o finlandês, depois para ir para Teerã e organizar os estudantes universitários, não para se aliar a um cão danado de um mulá ou para atacar campos de aviação ou matar uns vagabundos numa estrada. Você enlouqueceu? Seu idiota, e se você fosse ferido e apanhado? Quantas vezes eu lhe disse que eles — e nós — podemos quebrar a resistência de qualquer um no devido tempo e esvaziá-lo dos seus segredos? É burrice se arriscar assim! O finlandês é importante agora, mas não o suficiente para que você desobedeça as ordens, arrisque o seu futuro, o futuro do seu irmão — e o meu!
Se o filho é suspeito, o pai também é. Se o pai é suspeito, a família também é. Quantas vezes eu lhe disse que a KGB trabalha de acordo com o Livro, destrói aqueles que não obedecem ao Livro, que pensam por si mesmos, que se arriscam e que ultrapassam as instruções.
— Este Rakoczy não é importante — respondeu com suavidade. Fique calmo, ele ordenou a si mesmo, começando a ladainha: Não há com o que se preocupar. Você sabe segredos demais para ser importunado. Assim como o meu filho. Ele é bom, devem estar enganados sobre ele. Ele foi testado muitas vezes, por você e por outros especialistas. Você está seguro. Você é forte, você tem saúde, e você podia surrar e trepar com aquela lindeza da Azadeh e ainda estuprar Vertinskya no mesmo dia. — O importante é que você é o foco principal do Azerbeijão, meu amigo — ele disse na mesma voz apaziguadora. — Você vai ter todo o apoio de que necessitar e suas opiniões a respeito dos islâmicos-marxistas vão chegar à fonte certa. Você terá o equilíbrio que deseja.
— Ótimo, conto com isso — disse o khan.
— Enquanto isso — e Mzytryk voltou ao motivo principal da sua súbita visita —, e quanto ao capitão inglês? Você pode nos ajudar?
Há dois dias, chegara em sua casa, perto de Tbilisi, um telex altamente secreto, em código, informando-o que o posto secreto da CIA de escuta de radar na face norte de Sabalan fora explodido por sabotadores pouco antes da chegada de grupos simpatizantes locais, que tinham sido enviados para remover todos os livros de código, máquinas cifradas e computadores. "Veja Ivanovitch pessoalmente imediatamente", continuava o telex, usando o nome em código de Abdullah Khan. "Diga-lhe que os sabotadores eram britânicos — um capitão e dois gurkhas — e um agente da CIA chamado Rosemont (nome de código Abu Kurd), guiados por um dos nossos mercenários que foi morto por eles antes de conseguir conduzi-los até a emboscada. Um dos soldados e o agente da CIA foram mortos durante a fuga e acredita-se que os dois sobreviventes estejam indo para o setor de Ivanovitch. Providencie a cooperação dele. Seção 16/a. Acuse recebimento." Seção 16 significava: esta pessoa ou pessoas são inimigos importantes e devem ser interceptados, detidos e trazidos para interrogatório por quaisquer meios que forem necessários. O Va' significava: se isto não puder ser feito, elimine-os sem demora.
Mzytryk tomou um gole de vodca, esperando.
— Nós apreciaríamos a sua ajuda.
— Vocês sempre tiveram a minha ajuda — disse Abdullah. — Mas encontrar dois sabotadores experientes no Azerbeijão, que certamente devem estar disfarçados, é quase impossível. Eles devem ter lugares seguros para se esconder. Há um consulado britânico em Tabriz, e dezenas de rotas pelas montanhas desviando-se daqui. — Ele se levantou e foi até a janela, olhando para fora. Dali ele podia ver o 206 estacionado no pátio, sob guarda. O dia ainda estava sem nuvens. — Se eu estivesse conduzindo esta operação, fingiria estar indo para Tabriz, e em seguida faria a volta e atravessaria o Cáspio. Como foi que eles entraram?
— Cáspio. Mas a pista deles foi seguida vindo para cá. Dois corpos foram encontrados na neve, e as pegadas dos dois homens se dirigiam para cá.
O fracasso da missão Sabalan tinha causado acessos de raiva. O fato de haver tanto equipamento secreto da CIA assim tão perto provocara infiltrações e compra de informações durante anos. Nas últimas duas semanas, a informação de que alguns postos de radar tinham sido evacuados mas que não foram destruídos na fuga e no pânico que eles tinham ajudado a espalhar, tinha feito os gaviões se prepararem para avançar imediatamente, com força total. Mzytryk, conselheiro-chefe desta região, aconselhara cautela, que eles usassem grupos locais em lugar de soviéticos, para não entrar em choque com Abdullah Khan — seu contato exclusivo e agente mais importante — para não arriscar um incidente internacional.
— É totalmente desaconselhável arriscar um confronto — ele tinha dito, mantendo-se dentro do Livro. E do seu plano particular. — O que é que nós ganhamos com uma ação imediata? Se é que não nos forneceram informações erradas e Sabalan não passa de uma grande cilada, o que é provável? Uns poucos livros de código que talvez até já tenhamos. Quanto aos computadores avançados, a nossa operação Zatopek já tem isso nas mãos.
Esta era uma operação secreta da KGB altamente controvertida e inovadora, que recebera o nome do corredor tcheco, e que fora preparada em 1965. Com uma verba inicial de 10 milhões de dólares, moeda estrangeira tremendamente escassa, a operação Zatopek deveria adquirir um suprimento contínuo da melhor e mais avançada tecnologia ocidental pela simples compra através de uma rede de companhias fictícias e não pelo método convencional e muito caro do roubo e da espionagem.
"O dinheiro não é nada comparado com os lucros", seu primeiro relatório altamente confidencial para a Central informara quando ele voltou pela primeira vez do Extremo Oriente em 1964. "Há dezenas de milhares de negociantes corruptos e companheiros de viagem que nos venderão o melhor e o mais moderno para ter lucro. Um lucro enorme para um único indivíduo seria uma ninharia para nós — porque economizaremos bilhões em pesquisa e desenvolvimento, que poderemos gastar na nossa Marinha, Força Aérea e Exército. E, igualmente importante, poderemos economizar anos de suor, trabalho e fracasso. A um custo quase inexistente, podemos nos manter a par de tudo o que seus inventores puderem conceber. Uns poucos dólares por baixo da mesa poderão comprar todos os seus tesouros."
Petr Mzytryk sentiu uma onda de satisfação quando recordou como o seu plano fora aprovado. Embora naturalmente apresentado por seus superiores como sendo idéia deles, da mesma forma que ele o roubara de um dos seus agentes secretos em Hong Kong, um francês chamado Jacques de Ville, do grande conglomerado da Struan's que lhe tinha aberto os olhos: "Não é contra a lei americana despachar produtos com tecnologia avançada para a França ou para a Alemanha Ocidental ou uma dúzia de outros países, e não é contra a lei desses países uma companhia enviá-los para outros países onde não existam leis suíças contra o embarque de mercadorias para a União Soviética. Negócios são negócios, Gregor, e o dinheiro é que faz o mundo girar. Através da própria Struan's, nós poderíamos fornecer-lhe toneladas de equipamentos que os Estados Unidos proibiram que fossem fornecidos aos soviéticos. Nós negociamos com a China — por que não com vocês? Gregor, vocês marinheiros não entendem de negócios..."
Mzytryk sorriu consigo mesmo. Naquela época ele era conhecido como Gregor Suslev, capitão de um pequeno cargueiro soviético que transitava entre Vladivostok e Hong Kong, o seu disfarce para o trabalho altamente secreto como superintendente do setor da KGB na Ásia.
Durante os anos que se seguiram a 1964, quando eu propus o esquema pela primeira vez, pensou orgulhosamente, com uma despesa total até agora de 85 milhões de dólares, a operação Zatopek economizou bilhões para a Mãe Rússia e proporcionou um fluxo constante e cada vez maior de instrumentos desenvolvidos pela NASA, pelos japoneses, pelos europeus, maravilhas eletrônicas, hardware, software, planos, robôs, micros, remédios e todo o tipo de mágicas para serem copiadas à vontade — equipamento desenvolvido pelo próprio inimigo e comprado com dinheiro emprestado por eles, que nunca pagaremos. Que idiotas eles são!
Ele quase riu alto. E o que é mais importante ainda, a operação Zatopek me dá uma liberdade de ação para continuar a operar e agir como eu quiser nesta região, para jogar o Grande Jogo que os estúpidos britânicos deixaram escorregar dos seus dedos.
Ele observou Abdullah Khan em pé na janela, esperando pacientemente que ele decidisse qual o favor que ia pedir em troca da captura dos sabotadores. Vamos, Gordo Mau, ele pensou com severidade, usando o apelido que secretamente lhe dera, nós dois sabemos que você pode pegar aqueles matyeryebyets se quiser, se eles ainda estiverem no Azerbeijão.
— Eu farei o que puder — disse Abdullah Khan, ainda de costas para ele, e Mzytryk não disfarçou o sorriso. — Se eu os interceptar, o que faço então, Petr?
— Comunique a Cimtarga. Ele tomará todas as providências.
— Muito bem. — Abdullah Khan balançou a cabeça para si mesmo e voltou a sentar-se. — Está combinado, então.
— Obrigado — disse Petr, muito satisfeito. Uma tal determinação por parte de Abdullah Khan prometia um sucesso rápido.
— Este mulá de que estávamos falando, Mahmud — disse o Khan —, ele é muito perigoso. E também o seu bando de assassinos. Eu acho que eles são uma ameaça para todo mundo. O Tudeh deveria ser instruído para lidar com eles. Em segredo, é claro.
Mzytryk imaginou até que ponto Abdullah sabia do seu apoio secreto a Mahmud, um dos seus convertidos melhores e mais fanáticos.
— Os membros do Tudeh devem ser protegidos, e seus amigos também — Ele viu a súbita onda de irritação, então concordou e acrescentou imediatamente: — Talvez este homem possa ser transferido e substituído. Uma ruptura completa e um fratricídio só ajudariam ao inimigo.
— Esse mulá é um falso mulá e não é um verdadeiro crente de coisa alguma.
— Então ele devra partir. Rapidamente. — Petr Mzytryk sorriu Abdullah Khan não.
— Muito rapidamente, Petr. Permanentemente. E o seu grupo dissolvido O preço era alto, mas a Seção 16/a tinha-lhes dado suficiente autoridade.
— Por que não rápida e permanentemente, já que você diz que é necessário? Eu concordo em, ahn, passar adiante as suas recomendações. — Mzytryk sorriu e agora Abdullah Khan sorriu também, igualmente satisfeito.
— Estou feliz por concordarmos, Petr. Torne-se um muçulmano para a salvação da sua alma.
— No devido tempo — riu Mzytryk. — Enquanto isso, torne-se um comunista para sua satisfação terrena.
O khan riu, inclinou-se para frente, e tornou a encher o copo de Petr.
— Eu não posso convencê-lo a ficar por uns dias?
— Não, mas obrigado. Depois que tivermos comido, acho que vou iniciar a minha viagem de volta. Tenho um bocado de coisas para fazer.
O khan estava muito satisfeito. Agora eu já posso esquecer aquele incômodo mulá e seu bando, e é uma preocupação a menos. Mas eu me pergunto o que você faria, Petr, se soubesse que os sabotadores que você procura, o seu capitão e o soldado, estão aqui, na minha propriedade, esperando poder sair em segurança? Mas para onde? Para Teerã ou para você? Eu ainda não decidi.
Oh, eu sabia que você viria implorar a minha ajuda, por que outro motivo eu os mantive em segurança, por que outro motivo eu me encontrei secretamente com eles em Tabriz há dois dias e os trouxe para cá em segredo, senão por sua causa? Talvez. É uma pena que Vien Rosemont tenha sido morto, ele era útil. Mesmo assim, a informação e o aviso contidos no código que ele deu ao capitão para me entregar são mais do que úteis. Ele será difícil de substituir.
Sim, e também é verdade que quando você recebe um favor você tem que prestar outro. O infiel Erikki é só um deles. Ele tocou uma campainha e quando o criado apareceu, ele disse:
— Diga a minha filha Azadeh que ela jantará conosco.
33
EM TEERÃ: 16:17H. Jean-Luc Sessonne bateu com a aldrava de cobre na porta do apartamento de McIver. Ao lado dele estava Sayada Bertolin. Agora que estavam longe da rua e sozinhos, ele agarrou-lhe os seios através do casaco e beijou-a.
— Prometo que. não vamos demorar, e depois voltamos para a cama!
— Ótimo — ela riu.
— Você reservou uma mesa no Clube Francês?
— É claro. Temos bastante tempo.
— Sim, chérie..
Ele estava usando uma grossa e elegante capa de chuva por cima do uniforme de piloto. Seu vôo de Zagros fora tumultuado, ninguém respondia aos seus freqüentes chamados pelo rádio, embora os canais estivessem cheios de vozes excitadas falando em farsi, que ele não falava nem entendia.
Ele se mantivera na altitude normal e fizera uma aproximação de acordo com os padrões no Aeroporto Internacional de Teerã. Assim mesmo não obteve nenhuma resposta aos seus chamados. A biruta estava cheia e indicava haver um forte vento cruzado. Quatro jumbos estavam no pátio, perto do terminal, junto com outros jatos, um deles uma carcaça queimada. Viu que alguns estavam sendo carregados, cercados por homens, mulheres e crianças demais, sem nenhuma ordem, com as escadas perigosamente apinhadas de gente, e malas e bagagens espalhadas por toda parte. Não viu nenhum policial nem guarda de trânsito, nem do outro lado do terminal onde todas as estradas de acesso estavam entupidas de veículos, formando um enorme engarrafamento. O estacionamento estava lotado, mas havia ainda mais carros tentando entrar e as calçadas estavam cheias de pessoas carregadas de bagagem.
Jean-Luc agradeceu a Deus por estar voando e não andando e parou no campo próximo de Galeg Morghi, sem problemas. Guardou o 206 no hangar da S-G e conseguiu imediatamente transporte para a cidade, com a ajuda de uma nota de dez dólares. Primeiro parou no escritório de Schlumberger e marcou a viagem de volta para Zagros. Depois foi para o apartamento dela. Sayada estava em casa. Como sempre, a primeira vez depois de estarem separados há tanto tempo foi imediata, impaciente, bruta, egoísta e mutuamente explosiva.
Ele a conhecera numa festa de Natal em Teerã há um ano, dois meses e três dias atrás. Ele se lembrava daquela noite com todos os detalhes. A sala estava cheia e assim que entrou, ele a percebeu, como se a sala estivesse vazia. Ela estava sozinha, tomando uma bebida, com um vestido branco e transparente.
—Vous parlez français, madame? — ele tinha perguntado, estonteado com sua beleza.
— Sinto muito, m'sieur, só umas poucas palavras. Prefiro falar inglês.
— Então em inglês: estou radiante por tê-la conhecido, mas estou num dilema.
— Oh? Qual?
— Gostaria de fazer amor imediatamente.
— Hein?
— Você é a personificação de um sonho... — Isso teria soado muito melhor em francês, mas não faz mal, ele tinha pensado. — Eu venho procurando por você a vida inteira e preciso fazer amor com você, você é extremamente desejável.
— Mas... mas o meu... marido está ali. Eu sou casada.
— Isto é um empecilho, madame, não um impedimento.
Ela tinha rido e ele soube que ela seria sua. Só mais uma coisa tornaria tudo perfeito.
— Você sabe cozinhar?
— Sim — ela respondera com tanta confiança que ele percebeu que ela seria soberba, que na cama seria divina, e o que ela não soubesse ele poderia ensinar-lhe. Que sorte ela tem por ter-me conhecido, pensou alegremente, e tornou a bater na porta.
Seus meses juntos tinham voado. O marido dela raramente visitava Teerã. Ele era um banqueiro libanês em Beirute, de ascendência francesa.
— E portanto civilizado — dissera Jean-Luc com total confiança —, e portanto, evidentemente, ele aprovaria a nossa liaison, chérie, caso venha a descobrir. Ele é muito velho comparado com você, é claro que ele aprovaria.
— Eu não tenho tanta certeza, chéri, e ele só tem cinqüenta anos e você é...
— Divino — ele dissera, ajudando-a —, como você. — Para ele, isso era verdade. Ele nunca tinha visto um cabelo e uma pele tão macios, pernas tão longas e uma paixão ardente que era um presente dos céus. — Mon Dieu — ele tinha gemido uma noite, mantido no auge da paixão pela magia dela. — Eu morro nos seus braços.
Mais tarde, ela o beijara e trouxera-lhe uma toalha quente, voltando para a cama. Isto foi numas férias em Istambul, no outono do ano anterior, e a sensualidade daquela cidade os envolvera.
Para ela, o caso era excitante, mas não o fim de todos os casos. Ela tinha discutido Jean-Luc com o marido na noite da festa.
— Ah — ele tinha dito, achando graça —, foi por isso que você quis conhecê-lo!
— Sim, eu o achei interessante. Embora sendo francês e totalmente egocêntrico como todos eles. Mas ele me excitou, sim, é verdade.
— Bem, você ficará aqui em Teerã por dois anos, eu não posso ficar mais do que alguns dias por mês; é perigoso demais. E seria uma pena você ficar sozinha toda noite. Não seria?
— Ah, então eu tenho a sua permissão?
— Onde está a esposa dele?
— Na França. Ele fica dois meses no Irã e depois passa um mês com ela.
— Talvez fosse uma boa idéia, esta ligação. Boa para o seu ânimo, boa para o seu corpo, e boa para o nosso trabalho. E o que é mais importante, desviaria a atenção.
— Sim, isso também me ocorreu. Eu disse a ele que não falava francês e ele oferece muitas vantagens. Ele é membro do Clube Francês.
— Ah! Então eu concordo. Ótimo, Sayada. Diga-lhe que eu sou um banqueiro de ascendência francesa, o que em parte é verdade. Meu trisavô não foi soldado de Napoleão na sua caminhada pelo Oriente Médio em direção à índia? Diga ao seu francês que nós somos libaneses de várias gerações, não de poucos anos.
— Sim, você está sendo esperto, como sempre.
— Consiga que ele a faça sócia do Clube Francês. Isso seria perfeito! Há um bocado de poder lá. De algum modo, o acordo Irã-Israel tem que ser rompido, de algum modo o xá tem que ser dobrado, de algum modo nós temos que afastar Israel do petróleo do Irã ou o maldito Begin ficará tentado a invadir o Líbano para expulsar os nossos soldados. Com o petróleo iraniano ele conseguiria, e seria o fim de outra civilização. Eu estou cansado de me mudar.
— Sim, sim, eu concordo...
Sayada estava muito orgulhosa. Tanta coisa acontecera naquele ano, era inacreditável! No próximo ano, o líder Yasir Arafat estava convidado para vir a Teerã para um encontro triunfal com Khomeini, em agradecimento ao seu apoio à revolução; as exportações de petróleo para Israel tinham sido suspensas, Khomeini, inimigo fanático de Israel estava instalado no poder — e o xá, pró-Israel, tinha sido expulso, coberto de vergonha. Tantos progressos desde que ela conhecera Jean-Luc. Um progresso inacreditável! E ela sabia que tinha ajudado o marido, que ocupava um lugar de destaque na OLP, agindo como mensageira especial, levando e trazendo mensagens e cassetes de Istambul, do Clube Francês em Teerã — oh, quanta intriga fora necessária para convencer os iraquianos a permitirem a ida de Khomeini para a França, onde ele não seria mais amordaçado — e de todos os tipos de lugares, escoltada pelo meu belo amante. Oh, sim, pensou satisfeita, os amigos e contatos de Jean-Luc foram muito úteis. Em breve voltaremos para Gaza e recuperaremos nossas terras, nossas casas, lojas c vinhedos...
A porta do apartamento de McIver se abriu. Era Charlie Pettikin.
— Meu Deus, Jean-Luc, que diabo você está fazendo aqui? Olá, Sayada, você está mais linda do que nunca, entrem! — Ele trocou um aperto de mão com Jean-Luc e beijou-a dos dois lados do rosto, sentindo o calor que emanava dela.
O longo casaco e o capuz a escondiam quase toda. Ela conhecia os perigos de Teerã e se vestia de acordo:
— Isso poupa tantos problemas, Jean-Luc; eu concordo que é estúpido e arcaico, mas eu não quero ser atacada, nem quero que algum imbecil fique sacudindo o pênis para mim ou se masturbe quando eu passar. Isso aqui não é nem nunca será a França. Concordo que é inacreditável que agora, em Teerã, eu tenha que usar uma espécie de chador para ficar segura, quando, há um mês atrás, isso não era preciso. Diga você o que disser, chéri, a velha Teerã acabou para sempre...
De certo modo é uma pena, pensou, entrando no apartamento. Ela tinha o que havia de melhor no Ocidente e no Oriente — e o pior. Mas agora, agora eu tenho pena dos iranianos, principalmente das mulheres. Por que será que os muçulmanos, principalmente os xiitas, são tão bitolados e não deixam suas mulheres se vestirem de uma maneira moderna? Será por serem tão reprimidos e maníacos por sexo? Ou por que eles têm medo delas se destacarem? Por que eles não podem ser abertos como nós, palestinos, ou como os egípcios, shargazianos, dubaianos, ou como os indonésios, paquistaneses e tantos outros? Deve ser impotência. Bem, nada vai me impedir de comparecer à Marcha de Protesto das Mulheres. Como Khomeini ousa tentar trair a nós, mulheres, que fomos lutar por ele nas barricadas?
Estava frio dentro do apartamento, com o aquecimento ainda trabalhando apenas com a metade da potência, e ela conservou o casaco, apenas desabotoou-o para ficar mais confortável, e se sentou num dos sofás. Seu vestido era quente, parisiense, e aberto até a coxa. Os dois homens notaram. Ela estivera ali muitas vezes e achava o apartamento sem vida e desconfortável, embora gostasse muito de Genny.
— Onde está Genny?
— Foi para Al Shargaz esta manhã, no 125.
— Então Mac partiu? — perguntou Jean-Luc.
— Não, só ela, Mac está...
— Não acredito! — disse Jean-Luc. — Ela jurou que jamais partiria sem o velho Duncan!
Pettikin riu.
— Eu também não acreditava. Mas ela foi que nem um carneirinho. — Há tempo de sobra para contar a Jean-Luc o verdadeiro motivo da sua partida, ele pensou.
As corsas andaram ruins por aqui?
— Sim, e estão piorando. Houve muitas outras execuções. — Pettikin achou melhor não mencionar o pai de Xarazade na frente de Sayada. Não havia nenhum motivo para preocupá-la. — Que tal um chá? Eu acabei de preparar Você soube o que aconteceu com a prisão Qasr hoje?
— O quê?
— Foi invadida por uma multidão — disse Pettikin, indo até a cozinha buscar mais xícaras. — Eles arrombaram o portão e soltaram todo mundo, e prenderam alguns Savaks e policiais, e agora corre o boato de que os Faixas Verdes organizaram tribunais ilegais e estão enchendo as celas com quem quer que seja e esvaziando-as ainda mais depressa diante de pelotões de fuzilamento.
Sayada teria dito que a prisão fora libertada e que agora os inimigos da revolução, os inimigos da Palestina, estavam recebendo um castigo justo. Mas ficou calada e escutou atentamente enquanto Pettikin prosseguia:
— Mac foi cedo com Genny para o aeroporto, depois para o Ministério, depois vem para cá. Ele deve chegar logo. Como estava o trânsito no aeroporto, Jean-Luc?
— Com quilômetros de engarrafamento.
— O velho mandou o 125 ficar em Al Shargaz umas duas semanas para tirar todo o nosso pessoal, se for necessário, ou para trazer novas turmas.
— Ótimo. Scot Gavallan já está com a licença vencida, e também alguns mecânicos. O 125 pode conseguir uma autorização para parar em Shiraz?
— Vamos tentar na próxima semana. Khomeini e Bazargan querem que a produção de petróleo volte a ser feita com força total, por isso nós achamos que eles vão cooperar.
— Vocês vão conseguir trazer turmas novas, Charlie? — disse Sayada, perguntando-se se um 125 britânico deveria ter licença para operar tão livremente. Malditos britânicos, sempre sendo coniventes.
— Esse é o plano, Sayada. — Pettikin despejou mais água fervendo no bule e não notou a careta no rosto de Jean-Luc. — A embaixada britânica nos mandou evacuar todo o pessoal que não fosse essencial. Nós já retiramos algum pessoal supérfluo, e Genny, e Johnny Hogg foi apanhar Manuela Starke em Kowiss.
— Manuela está em Kowiss? — Sayada estava tão surpresa quanto Jean-Luc.
Pettikin contou-lhes que ela tinha chegado e que McIver a mandara para lá
— Tem tanta coisa acontecendo que é difícil se manter a par de tudo. O que você está fazendo aqui e como vão as coisas em Zagros? Vocês vão ficar para jantar? Quem cozinha esta noite sou eu — Jean-Luc disfarçou o seu horror.
— Sinto muito, mon vieux, hoje é impossível. Quanto a Zagros, lá as coisas estão perfeitas, como sempre; afinal, é o setor francês. Eu estou aqui para apanhar o pessoal da Schlumberger. Volto amanhã de madrugada e terei que trazê-los de volta dentro de dois dias. Como poderia resistir a esse vôo extra? — Ele sorriu para Sayada e ela lhe devolveu o sorriso. — Na verdade, Charlie, estou com um fim-de-semana vencido há muito tempo. Onde está Tom Lochart? Quando ele vai voltar para Zagros?
Pettikin sentiu o estômago revirar. Desde que eles receberam a chamada de Rudi Lutz da torre de Abadan há três dias, comunicando que o HBC fora derrubado ao tentar atravessar a fronteira e que Tom Lochart estava "de volta da licença", eles não tinham obtido mais nenhuma informação, exceto uma chamada formal, feita através de Kowiss, dizendo que Lochart estava voltando a Teerã por terra. Ainda não houvera nenhum inquérito oficial a respeito do seqüestro.
Gostaria muito que Tom estivesse de volta, pensou Pettikin. Se Sayada não estivesse aqui, eu contaria tudo a Jean-Luc, ele é mais amigo de Tom do que eu, mas eu não sei quanto a Sayada. Afinal, ela não faz parte da família, ela trabalha para os kuwaitianos, e este negócio do HBC pode ser considerado como traição.
Distraidamente, ele encheu uma xícara e entregou a Sayada, e serviu outra para Jean-Luc, de chá quente, preto, com açúcar e leite de cabra que nenhum deles gostava, mas aceitaram por delicadeza.
— Tom fez o que tinha de fazer — disse cautelosamente, fazendo isso parecer sem importância. — Ele partiu anteontem de Bandar Delam, por terra. Deus sabe quanto tempo ele vai levar para chegar, mas já devia ter chegado ontem à noite. Facilmente. Esperemos que chegue hoje.
— Isso seria perfeito — disse Jean-Luc. — Então ele poderia levar o grupo da Schlumberger para Zagros e eu tiraria alguns dias de licença.
— Você acabou de ter uma licença. E está no comando.
— Bem, pelo menos ele pode voltar comigo, assumir a base e eu volto para cá no domingo. — Jean-Luc sorriu para Sayada. — Voilà, está tudo arranjado. — Sem perceber, ele tomou um gole do chá e quase engasgou. — Mon Dieu, Charlie, eu o amo como a um irmão, mas isso é merde.
Sayada riu e Pettikin o invejou. De qualquer modo, pensou, com o coração disparando, o vôo da Alitalia de Paula deve estar voltando a qualquer momento... o que eu não daria para que os seus olhos se iluminassem por mim como os de Sayada pelo M'sieur Sedução.
É melhor ir com calma, Charlie Pettikin. Você poderia fazer papel de idiota. Ela tem 29 anos, você tem 56, e só conversou com ela umas poucas vezes. Sim. Mas ela me excita mais do que eu me lembro de ter-me sentido excitado há anos e agora eu posso entender por que Tom Lochart se apaixonou por Xarazade.
A campainha do transmissor-receptor de alta freqüência que estava na mesinha começou a tocar. Ele se levantou e aumentou o volume.
— QG de Teerã, vá em frente!
— Aqui é o capitão Ayre em Kowiss para o capitão McIver. Urgente. — A voz estava baixa e acompanhada de estática.
— Aqui é o capitão Pettikin, o capitão McIver não está aqui no momento. Você está em dois por cinco. — Era uma medida, de um a cinco, relativa à força do sinal. — Posso ajudar?
— Alerta Um. Jean-Luc resmungou.
— O que há entre Freddy e você? Capitão Ayre e capitão Pettikin?
— É apenas um código — disse Pettikin, distraidamente, olhando para o aparelho, e a atenção de Sayada aumentou. — Está apenas sendo desenvolvido e significa que alguém está presente ou está ouvindo, alguém que não deveria estar. Um inimigo. Respondendo com a mesma formalidade, você dá a entender que compreendeu a mensagem.
— Isso é muito inteligente — disse Sayada. — Vocês têm muitos códigos, Charlie?
— Não, mas estou começando a desejar que tivéssemos. É horrível não saber o que está acontecendo na realidade. Nenhum contato direto, nenhuma correspondência, nem telefones e o telex uma droga com tantos malucos armados se metendo conosco. Por que eles não entregam as armas e nos deixam viver em paz?
O HF zumbia sem parar. Lá fora, o dia estava nublado e feio, com as nuvens prometendo mais neve, e a luz do cair da tarde fazia os telhados e até as montanhas parecerem sem vida. Eles esperaram impacientemente.
— Aqui é o capitão Ayre de Kowiss... — Mais uma vez a voz estava acompanhada de estática e eles tiveram que se concentrar para poder ouvir. — ...primeiro vou transmitir uma mensagem recebida de Zagros Três há poucos minutos atrás, do capitão Gavallan. — Jean-luc ficou tenso. — A mensagem dizia exatamente: "Pan pan pan" — o sinal de socorro da aviação aérea internacional que vinha logo abaixo de Mayday. — "Acabei de ser informado pelo komiteh local que não somos mais persona grata em Zagros e que devemos evacuar da área todos os estrangeiros das nossas plataformas, dentro de 48 horas, senão... Solicito instruções imediatas". Fim da mensagem. Você anotou?
— Sim — disse Pettikin, apressadamente, rabiscando algumas anotações.
— Isso foi tudo o que ele disse, mas pareceu perturbado.
— Vou informar ao capitão McIver e chamá-lo de volta o mais depressa possível. — Jean-Luc inclinou-se para a frente e Pettikin deixou que ele tomasse o microfone.
— Aqui é Jean-Luc, Freddy, por favor comunique-se com Scot e diga a ele que estarei de volta, conforme o planejado, amanhã, antes do meio-dia. Foi bom falar com você, obrigado. Charlie vai falar. — E devolveu o microfone, tendo perdido todo o bom humor.
— Farei isso, capitão Sessonne. Foi bom falar com você. Outra coisa: o 125 recolheu o nosso pessoal bem como a sra. Starke, inclusive o capitão Jon Tyrer que tinha sido ferido num contra-ataque mal sucedido de grupos de esquerda, em Bandar Delam...
— Que ataque? — murmurou Jean-Luc.
— E a primeira vez que ouço falar nisso. — Pettikin ficou tão perturbado quanto ele.
— ...e, de acordo com o planejado, trará de volta equipes de substituição dentro de poucos dias. Outra coisa: o capitão Starke... — Todos eles perceberam a hesitação e a ansiedade, e a transmissão curiosamente artificial, como se a informação estivesse sendo lida: — O capitão Starke foi levado para Kowiss para ser interrogado por um komiteh ...— Os dois homens prenderam a respiração. — ...para esclarecer fatos relativos a uma fuga em massa num helicóptero, de oficiais da Força Aérea, pró-xá, de Isfahan, no dia 13, terça-feira passada, que se acredita estivesse sendo pilotado por um europeu. E mais: as operações aéreas continuam a melhorar sob a estrita supervisão da nova gerência. O sr. Esvandiary agora é o nosso novo gerente de área da IranOil e quer que assumamos todos os contratos da Guerney. Para fazer isso, precisaríamos de mais três 212 e um 206. Por favor, envie instruções. Nós precisamos de peças de reposição para HBN, HGX e HKJ, e de dinheiro para pagamento de salários atrasados. Isso é tudo, por enquanto.
Pettikin continuou a escrever, com o cérebro mal funcionando.
— Eu, ahn, anotei tudo e vou informar ao capitão McIver assim que ele voltar. Você disse, ahn, você disse "um ataque em Bandar Delam". Por favor, informe os detalhes.
Só se ouvia o barulho da estática. Eles esperaram. Então mais uma vez ouviu-se a voz de Ayre, agora não mais artificial:
— A única informação que tenho é que houve um ataque anti-aiatolá Khomeini, que o capitão Starke e o capitão Lutz ajudaram a sufocar. Depois, o capitão Starke trouxe os feridos para cá para tratamento. Do nosso pessoal, só Tyrer foi ferido. Isso é tudo.
Pettikin sentiu um filete de suor no rosto e enxugou-o.
— O que... o que aconteceu com Tyrer? Silêncio. Então:
— Um ligeiro ferimento na cabeça. O dr. Nutt diz que ele vai ficar bom.
— Charlie, pergunte a ele o que significa isso sobre Isfahan — disse Jean-Luc.
Como num sonho, Pettikin viu os seus dedos apertarem o botão de transmissão.
— O que significa isso sobre Isfahan? Eles esperaram em silêncio. Então:
— Não possuo nenhuma outra informação além da que dei a vocês.
— Tem alguém dizendo-lhe o que falar — murmurou Jean-Luc. Pettikin apertou o botão de transmissão, depois mudou de idéia. Havia tanta coisa a perguntar que Ayre não poderia responder.
— Obrigado, capitão — ele disse, satisfeito de que sua voz soasse mais firme. — Por favor, peça a 'Pé-quente' para enviar por escrito o seu pedido de helicópteros extras, sugerindo a duração do contrato e o plano de pagamento. Mande pelo 125 quando ele for levar o pessoal substituto. Mantenha-nos... mantenha-nos informados a respeito do capitão Starke. McIver se comunicará com você o mais cedo possível.
— Entendido. Desligo.
Agora só havia estática. Pettikin mexeu nos botões. Os dois homens olharam um para o outro, sem se lembrarem de Sayada, que ficou sentada, quieta, no sofá, sem perder nada.
— Estrita supervisão? Isso parece mau, Jean-Luc.
— Sim. Provavelmente significa que eles têm que voar com Faixas Verdes armados. — Jean-Luc praguejou, com o pensamento em Zagros e em como o jovem Scot reagiria sem a sua liderança. — Merde! Quando eu parti, hoje de manhã, estava tudo ótimo, com a torre de Shiraz tão prestativa quanto um hoteleiro suíço fora da estação. Merde!
Pettikin lembrou-se subitamente de Rakoczy e de como ele estivera perto de um desastre. Por um segundo, pensou em contar a Jean-Luc, depois resolveu não fazê-lo. Notícias velhas!
— Talvez devêssemos contatar o controle de Shiraz para pedir ajuda?
— Mac pode ter alguma idéia. Mon Dieu, as coisas também não parecem boas para o lado de Duke: esses komitehs estão se espalhando como praga. É melhor Bazargan e Khomeini lidarem com eles depressa, antes que sejam engolidos. — Jean-Luc levantou-se, muito preocupado, e espreguiçou-se, então viu Sayada enroscada no sofá, com sua xícara de chá intacta na mesinha ao lado e sorrindo para ele.
Imediatamente, o seu bom humor voltou. Não há nada mais que eu possa fazer pelo jovem Scot no momento, ou por Duke, mas há algo que posso fazer por Sayada.
— Sinto muito, chérie, disse com um sorriso. — Você está vendo, sempre acontecem problemas em Zagros quando eu não estou lá. Charlie, nós vamos agora. Eu tenho que dar uma olhada no apartamento, mas voltamos aqui antes do jantar. Digamos às oito horas; nessa altura Mac já deve ter chegado, não?
— Sim. Vocês não querem um drinque? Sinto muito, mas não temos vinho. Uísque? — Ele ofereceu meio sem vontade, porque era a última garrafa.
— Não, obrigado, mon vieux. —Jean-Luc vestiu o casaco, certificou-se no espelho de que estava tão elegante como sempre, e pensou nos caixotes de vinho e nas latas de queijo que tivera o bom senso de mandar a esposa estocar no apartamento. — À bientôt, vou trazer-lhes uma garrafa de vinho.
— Charlie — disse Sayada, controlando-se cuidadosamente, como vinha fazendo desde que o HF começou a se manifestar —, o que Scotty quis dizer a respeito de uma fuga de helicóptero?
Pettikin deu de ombros.
— Há todo o tipo de boatos a respeito de fugas, por terra, mar e ar. E sempre dizem que os 'europeus' estão envolvidos — ele respondeu, esperando parecer convincente. — Nós levamos a culpa de tudo.
E por que não?, vocês são responsáveis, pensou Sayada Bertolin, sem malícia. Politicamente, ela estava encantada por vê-los suando. Pessoalmente, não. Ela gostava dos dois e da maioria dos pilotos, especialmente de Jean-Luc, que lhe dava enorme prazer e sempre a divertia. Eu tenho sorte em ser palestina, disse a si mesma, e cristã copta, de uma linhagem antiga. Isso me dá forças que eles não têm, a consciência de uma herança que remonta aos tempos bíblicos, uma compreensão da vida que eles nunca poderiam alcançar, bem como a capacidade de dissociar política de amizade e cama — enquanto for necessário e prudente. Nós não tivemos trinta séculos de treinamento de sobrevivência? Gaza não existe há três mil anos?
— Existe um boato de que Bakhtiar fugiu do país e foi para Paris.
— Eu não acredito nisso, Charlie — disse Sayada. — Mas há outro boato em que acredito — acrescentou, notando que ele não tinha respondido à sua pergunta sobre o helicóptero de Isfahan. — Parece que o general Valik e sua família fugiram para se juntar aos outros sócios em Londres. Parece que eles ficaram com milhões de dólares.
— Sócios? — Jean-Luc disse desdenhosamente. — Ladrões, todos eles, seja aqui ou em Londres, a cada ano que passa ficam piores.
— Nem todos são assim tão maus — disse Pettikin.
— Aqueles crétins roubam o suor da nossa testa, Sayada. Eu estou estarrecido com o velho Gavallan por tê-los deixado fazer isso — retrucou Jean-Luc.
— Deixe disso, Jean-Luc — disse Pettikin. — Ele os enfrenta passo a passo.
— Passo a passo do nosso caminho, meu velho. Somos nós que pilotamos, não ele. Quanto a Valik... — Jean-Luc deu de ombros com um exagero gaulês. — Se eu fosse um iraniano rico, teria partido há meses atrás, com tudo que pudesse juntar. Há meses já era óbvio que o xá perdera o controle da situação. Agora é a Revolução Francesa e o Terror se repetindo de novo, mas sem o nosso estilo, inteligência, civilização ou educação. — Ele sacudiu a cabeça, desgostoso. — Que desperdício! Quando se pensa em todos os séculos de ensinamentos e riqueza que nós, franceses, empregamos tentando ajudar este povo a sair da Idade Média, e o que foi que eles aprenderam? Nem mesmo a fazer um pão decente.
Sayada riu e, ficando na ponta dos pés, beijou-o.
— Ah, Jean-Luc, eu amo você e a sua segurança. Agora, mon vieux, temos que ir, você tem um monte de coisas para fazer.
Depois que eles saíram, Pettikin foi até a janela e olhou para os telhados lá fora. Havia os inevitáveis tiroteios esporádicos e um pouco de fumaça perto de Jaleh. Não era um incêndio grande. Uma brisa gelada espalhava a fumaça. As nuvens cobriam as montanhas. O frio que vinha da janela era muito forte; gelo e neve cobriam o parapeito. Na rua, lá embaixo, havia muitos Faixas Verdes. A pé ou de caminhão. Então, de todos os minaretes, os muezins começaram a chamar para a oração da tarde. Os chamados pareciam cercá-lo.
Subitamente, ele se encheu de horror.
NO MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA: 17:04H. Duncan McIver estava sentado, exausto, numa cadeira de madeira num canto da ante-sala lotada do ministro. Estava com frio e com fome e muito irritado. Seu relógio mostrou-lhe que esperava há quase três horas.
Havia uns 12 homens espalhados pela sala, iranianos, franceses, americanos, ingleses e um kuwaitiano usando um galabia — um longo camisolão árabe — e um turbante. Há alguns minutos atrás, os europeus tinham parado educadamente de conversar, uma vez que, em resposta aos chamados dos muezins, que ainda soavam através das altas janelas, os muçulmanos tinham-se ajoelhado, de frente para Meca, para fazerem a oração da tarde. Esta foi curta e terminou logo e mais uma vez a conversa recomeçou, superficial. Não era conveniente discutir nada de importante num escritório do governo, principalmente agora. A sala era arejada e o ar estava gelado. Todos usavam seus sobretudos, todos igualmente cansados, alguns estóicos, a maioria com ódio, pois todos, como McIver, tinham hora marcada para muito antes.
— Insha'Allah, ele murmurou, mas isso não o ajudou.
Com um pouco de sorte, Gen já estará em Al Shargaz, pensou. Estou muito feliz dela estar fora daqui, e muito feliz por ela ter concordado por si mesma:
— Sou eu que tenho que falar com Andy. Não se pode pôr nada por escrito.
— Isso é verdade — ele tinha dito, apesar das suas dúvidas, acrescentando relutantemente: — Talvez Andy consiga fazer um plano que possamos realizar. Mas que não tenhamos que fazê-lo. É perigoso demais. Há rapazes e aviões demais espalhados por aí. É perigoso demais. Gen, você se esquece que nós não estamos em guerra apesar de estarmos no meio de uma.
— Sim, Duncan, mas não temos nada a perder.
— Podemos perder vidas, bem como aparelhos.
— Nós só vamos ver se é exeqüível, não é, Duncan?
A velha Gen é sem dúvida a melhor mensageira que poderíamos ter — se realmente precisássemos de uma. Ela está certa, é perigoso demais escrever isto numa carta: "Andy, a única maneira de sairmos desta confusão é ver se podemos organizar um plano para retirar todos os nossos aparelhos e peças, que estão atualmente sob registro iraniano e que, tecnicamente, são propriedade de uma companhia iraniana chamada CHI..."
— Cristo! Isso é conspiração!
— Partir não é a solução. Nós temos que ficar e trabalhar e pegar o nosso dinheiro quando os bancos abrirem. De algum modo, eu tenho que convencer os sócios a ajudar — ou talvez este ministro possa nos dar uma ajuda. Se ele ajudar, não importa o quanto isso custe, nós poderíamos esperar a tempestade passar aqui mesmo. Qualquer governo precisa de ajuda para extrair o seu petróleo, eles têm que ter helicópteros e nós vamos conseguir o nosso dinheiro...
Ele levantou os olhos quando a porta se abriu e um funcionário fez sinal para alguém entrar no gabinete. Pelo nome. Não parecia haver nenhuma lógica no modo das pessoas serem recebidas. Mesmo no tempo do xá, não era nunca por ordem de chegada. Era somente por influência. Ou dinheiro.
Talbot, da embaixada britânica, tinha conseguido o encontro para ele com o assessor do ministro e tinha-lhe dado uma carta de apresentação.
— Sinto muito, meu velho, nem mesmo eu consigo falar com o primeiro-ministro, mas Antazam é uma boa pessoa, fala bem inglês. Não é um desses birutas revolucionários. Ele vai atendê-lo.
McIver tinha voltado do aeroporto pouco antes do almoço e estacionara o mais perto possível dos escritórios do governo. Ao apresentar a carta, em inglês e em farsi, para o guarda da porta principal, ainda com bastante antecedência, o homem o mandara falar com outro guarda, num outro edifício, e depois de mais interrogatórios, para este edifício e de escritório em escritório, até que ele tinha chegado ali, uma hora atrasado e fumegando de raiva.
— Ah, não se preocupe, aga, o senhor tem muito tempo — dissera o funcionário da recepção, amavelmente, para seu alívio em bom inglês, e devolvera-lhe o envelope contendo a carta de apresentação. — Este é o escritório certo. Por favor, entre por aquela porta e sente-se na ante-sala. O ministro Kia vai vê-lo o mais breve possível.
— Eu não quero vê-lo! — McIver explodira. — O meu encontro é com o ministro Antazam!
— Ah, ministro Antazam, sim, aga, mas ele não faz mais parte do gabinete do primeiro-ministro Bazargan. Insha'Allah — disse o jovem, agradavelmente. — O ministro Kia lida com tudo o que diz respeito a, ahn, estrangeiros, finanças e aviões.
— Mas eu insisto... — McIver parou quando atentou para o nome e se lembrou do que Talbot dissera sobre Kia e de como os sócios restantes da CHI tinham plantado esse homem no conselho em troca de uma enorme soma e nenhuma garantia de assistência. — Ministro Ali Kia?
— Sim, aga, o ministro Ali Kia vai recebê-lo o mais breve possível. — O recepcionista era um jovem simpático, bem vestido, com um terno, camisa branca e gravata azul, exatamente como nos velhos tempos. McIver tivera a idéia de colocar um pishkesh de 5.000 riais no envelope junto com a apresentação, exatamente como nos velhos tempos. O dinheiro tinha desaparecido.
Talvez as coisas estejam mesmo voltando ao normal, pensou McIver. Ele entrou na outra sala e sentou-se num canto e começou a esperar. No seu bolso havia um outro maço de notas e ele imaginou se deveria tornar a encher o envelope com a quantia certa. Por que não?, pensou, nós estamos no Irã, funcionários sem importância precisam de quantias sem importância, funcionários graduados precisam de dinheiro grosso — perdão, pishkesh. Certificando-se de que não estava sendo observado, colocou algumas notas altas no envelope, depois acrescentou mais algumas por segurança. Talvez esse idiota possa realmente ajudar-nos — os sócios costumavam ter a corte nas mãos, talvez tenham feito o mesmo com Bazargan.
De vez em quando, funcionários apressados passavam com um ar de importância pela ante-sala, com papéis nas mãos, e tornavam a sair. Ocasionalmente, um dos homens que estava esperando era gentilmente convidado a entrar. Sem exceção, eles ficavam lá dentro apenas por poucos minutos e saíam com o rosto pálido, ou vermelho, furiosos, e obviamente de mãos vazias. Aqueles que ainda estavam esperando iam se sentindo cada vez mais frustrados. O tempo passava muito devagar.
— Aga McIver! — A porta do gabinete estava aberta e um funcionário fazia sinal para ele entrar.
Ali Kia estava sentado atrás de uma enorme escrivaninha, sem nenhum papel em cima. Tinha um sorriso nos lábios, mas seus olhos eram pequenos e duros e McIver não gostou dele instintivamente.
— Ah, ministro, quanta gentileza em receber-me — disse McIver, forçando o bom humor e oferecendo-lhe a mão. Ali Kia sorriu educadamente e estendeu-lhe uma mão flácida.
— Por favor, sente-se, sr. McIver. Obrigado por vir ver-me. O senhor tem uma apresentação, eu creio.
O seu inglês era bom, com um sotaque de Oxford, onde ele freqüentara a universidade, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, com uma bolsa dada pelo xá, ficando lá durante toda a guerra. Ele fez um aceno de mão cansado para o funcionário que estava ao lado da porta. O homem saiu.
— Sim, ahn, era para o ministro Antazam, mas percebo que deveria ser dirigida ao senhor. — McIver entregou-lhe o envelope. Kia tirou a carta, verificou a quantia que havia no envelope, atirou displicentemente o envelope em cima da mesa para mostrar que mais dinheiro seria bem-vindo, leu a nota manuscrita com cuidado, depois colocou-a na sua frente.
— O sr. Talbot é um honrado amigo do Irã, embora seja representante de um governo hostil — disse Kia, com voz suave. — Que ajuda posso dar ao amigo de uma pessoa tão honrada?
— Há três coisas, ministro. Mas talvez eu tenha permissão para dizer o quanto estamos felizes na S-G pelo senhor ter concordado em nos conceder o benefício da sua valiosa experiência, juntando-se ao nosso conselho.
— Meu primo foi muito insistente. Duvido que eu possa ajudar, mas seja como Deus quiser.
— Seja como Deus quiser. — McIver o observava cuidadosamente, tentando compreendê-lo, e não conseguiu explicar o seu desagrado imediato, que teve muito trabalho para esconder. — Primeiro, existe um boato de que todas as joint ventures estão suspensas, dependendo de uma decisão do Komiteh Revolucionário.
— Dependendo de uma decisão do governo — Kia corrigiu-o secamente. — E daí?
— Como isto afetará a nossa sociedade, a CHI?
— Eu duvido que a afete de algum modo, sr. McIver. O Irã precisa dos helicópteros para a produção de petróleo. A Guerney Aviation fugiu. Parece que o futuro da sua companhia promete ser melhor do que nunca.
McIver disse cautelosamente:
— Mas há muitos meses que não somos pagos por serviços prestados no Irã. Temos feito todos os pagamentos de leasing das aeronaves com dinheiro de Aberdeen e estamos com os aparelhos sobrecarregados em relação à quantidade de trabalho que temos para fazer.
— Amanhã os bancos... o Banco Central deve abrir. Por ordem do primeiro-ministro. E do aiatolá, é claro. Uma parte do dinheiro devido será paga, tenho certeza.
— O senhor poderia nos dar uma idéia de quanto podemos esperar, ministro? — McIver sentiu-se mais esperançoso.
— Mais do que o suficiente para... para continuar com as operações. Eu já providenciei para que o senhor retire as suas turmas, uma vez que os substitutos estejam aqui. — Ali Kia tirou uma pasta fina de uma gaveta e entregou-lhe um papel. Era uma ordem dirigida ao Serviço de Imigração dos aeroportos de Teerã, Abadan e Shiraz, para permitir a saída de pilotos e mecânicos da CHI à medida que outros fossem chegando. A ordem estava mal datilografada mas era legível, em farsi e em inglês, e estava assinada em nome do komiteh responsável pela IranOil e datada da véspera. McIver nunca tinha ouvido falar nele.
— Obrigado. Posso pedir também a sua autorização para que o 125 faça ao menos três viagens por semana nas próximas semanas? É claro que só até que os seus aeroportos internacionais voltem ao normal, para trazer turmas, peças, equipamentos, peças de substituição, e assim por diante, e — ele acrescentou com naturalidade —, para retirar pessoal supérfluo.
— Poderia ser possível aprovar isso — disse Kia. McIver estendeu-lhe o bolo de papéis.
— Eu tomei a liberdade de colocar isso por escrito, para poupar-lhe o trabalho, ministro, com cópias dirigidas ao Controle de Tráfego Aéreo de Kish, Kowiss, Shiraz, Abadan e Teerã.
Kia leu cuidadosamente a primeira cópia. Estava escrita em farsi e em inglês, de uma forma simples e direta, com as formalidades corretas. Seus dedos tremiam. Assiná-las seria ir muito além da sua autoridade, mas agora que o assistente do primeiro-ministro caíra em desgraça, bem como o seu próprio superior — ambos aparentemente destituídos pelo ainda misterioso Komiteh Revolucionário — e com o caos cada vez maior no governo, ele sabia que tinha que assumir o risco. A necessidade absoluta que tinha de que ele, sua família, e seus amigos tivessem acesso imediato a um avião particular, especialmente um jato, compensava o risco.
Eu posso sempre alegar que o meu superior mandou que eu assinasse, pensou, mantendo o nervoso longe do rosto e dos olhos. O 125 é um presente de Deus — no caso de serem espalhadas mentiras contra mim. Maldito Jared Bakravan! A minha amizade com o cão do bazar quase me envolveu na sua traição contra o Estado; eu nunca emprestei dinheiro na minha vida, nem me meti em conspirações com estrangeiros, nem apoiei o xá.
Para manter McIver na incerteza, ele atirou os papéis ao lado da carta de apresentação, quase com raiva.
— Isso poderia ser aprovado. Haveria uma taxa de 500 dólares por pouso. Isso era tudo, sr. McIver? — perguntou, sabendo que não. Seu inglês cínico! Você acha que pode me enganar?
— Só mais uma coisa, Excelência — McIver entregou-lhe o último papel. — Nós temos três aparelhos que precisam desesperadamente de manutenção e reparos. Eu preciso de uma autorização de saída para poder mandá-los para Al Shargaz. — Ele prendeu a respiração.
— Não há necessidade de mandar para fora aparelhos tão valiosos, sr. McIver. Conserte-os aqui.
— Oh, eu o faria se pudesse, Excelência, mas não é possível. Nós não temos nem as peças nem os técnicos. E cada dia que um dos nossos helicópteros fica parado custa uma fortuna aos nossos sócios. Uma fortuna — ele repetiu.
— E claro que o senhor pode consertá-los aqui, sr. McIver, basta trazer as peças e os técnicos de Al Shargaz.
— Fora o custo do aparelho, há o pagamento e as diárias das equipes. É tudo muito caro; talvez eu devesse mencionar que este custo cabe aos sócios iranianos, isso faz parte do acordo... fornecer todas as autorizações de saída necessárias. — McIver continuou a se lamentar. — Nós precisamos ter todo o equipamento existente pronto para cumprir todos os novos contratos da Guerney se o aia... se, ahn, quisermos obedecer ao decreto do novo governo de que a produção de petróleo deve ser normalizada. Sem equipamento... — Ele deixou a frase no ar e mais uma vez prendeu a respiração, rezando para ter escolhido a isca certa.
Kia franziu a testa. Qualquer coisa que custasse dinheiro aos sócios iranianos, agora, sairia parcialmente do seu próprio bolso.
— Em quanto tempo eles seriam consertados e trazidos de volta?
— Se eu puder levá-los dentro dos próximos dois dias, deve levar mais ou menos uma semana.
Mais uma vez Kia hesitou. Os contratos da Guerney, somados aos contratos da CHI já existentes, aos helicópteros, equipamentos, acessórios e peças valiam milhões, dos quais ele agora tinha uma sexta parte — sem ter investido nada, ele riu por dentro. Principalmente quando tudo era executado, sem custos, por esses estrangeiros. Autorização de saída para três helicópteros? Ele deu uma olhada no relógio. Era um Cartier todo enfeitado — um pishkesh de um banqueiro que, há duas semanas atrás, tinha precisado ter acesso por meia hora, em particular, a um telex que estivesse funcionando. Daqui a poucos minutos, ele tinha um encontro marcado com o chefe do Controle de Tráfego Aéreo e poderia facilmente embrulhá-lo e conseguir a autorização.
— Muito bem — disse, encantado por ser tão poderoso, um funcionário em ascensão, por poder ajudar na implementação da política de petróleo do governo e ao mesmo tempo economizar o dinheiro dos sócios.
— Muito bem, mas as autorizações de saída só serão válidas por duas semanas, a licença vai custar — ele pensou um momento — vai custar cinco mil dólares por aparelho, em dinheiro, antes da saída, e eles deverão estar de volta em duas semanas.
— Eu, eu não vou conseguir arranjar este dinheiro a tempo. Eu poderia dar-lhe um vale, ou cheques para serem descontados num banco suíço — de dois mil dólares por aparelho.
Eles barganharam por alguns momentos e chegaram a 3.100 dólares.
— Obrigado, Aga McIver. — Ali Kia disse gentilmente. — Por favor, saia cabisbaixo para não encorajar aqueles patifes que estão esperando lá fora.
Quando McIver estava mais uma vez no seu carro, ele apanhou os papéis e olhou para as assinaturas e para o carimbo oficial.
— É quase bom demais para ser verdade — murmurou alto. Agora o 125 está legalizado, Kia diz que a suspensão não vai se aplicar a nós, nós temos vistos de saída para três 212 que são necessários na Nigéria, por 9.310 dólares, contra o valor deles de três milhões, é mais do que justo! Eu nunca achei que iríamos conseguir! — E disse alegremente: — McIver, você merece um uísque! Um uísque bem grande!
NOS ARREDORES, AO NORTE: 18:50H. Tom Lochart saiu do táxi velho e amassado, e deu uma nota de vinte dólares ao homem. Sua capa de chuva e seu uniforme de piloto estavam amassados e ele parecia muito cansado, sujo, com a barba por fazer e se sentia imundo, mas a sua alegria por estar defronte ao seu próprio edifício e perto de Xarazade depois de tanto tempo espantava qualquer cansaço. Uns poucos flocos de neve estavam caindo, mas ele mal notou ao correr para dentro e subir as escadas — não adiantava tentar o elevador, ele não funcionava há meses.
O carro que tomara emprestado com um dos pilotos em Bandar Delam ficara sem gasolina na véspera, no meio do caminho para Teerã, e com um defeito no marcador de gasolina. Ele o deixara numa garagem e conseguira pegar um ônibus e, depois outro, depois de enguiços, atrasos e desvios, chegara ao terminal de Teerã há duas horas. Sem lugar para se lavar, sem água corrente, os banheiros sempre os mesmos imundos buracos no chão.
Não havia nenhum táxi no ponto nem nas ruas. Nenhum ônibus ia para perto da sua casa. Era longe demais para ir a pé. Então um táxi apareceu e ele o fez parar. Embora estivesse quase lotado, de acordo com o hábito, abriu a porta e forçou a entrada, suplicando aos outros passageiros que permitissem que ele partilhasse do seu transporte. Foi feito um acordo razoável. Eles ficariam honrados em levá-lo e ele ficaria honrado em pagar por todos eles, ser o último e pagar ao motorista em dinheiro. Dinheiro americano. Era a sua última nota.
Apanhou a chave e tentou abrir a porta, mas a tranca estava passada por dentro, então tocou a campainha, esperando impacientemente pela empregada; Xarazade nunca viria abri-la. Tamborilou alegremente na porta, com o coração cheio de amor por ela. Sua excitação aumentou ao ouvir os passos da empregada se aproximando, a tranca sendo tirada, a porta se abrindo. Uma mulher estranha, usando o chador, encarou-o.
— O que o senhor deseja, aga! — Sua voz era tão rude quanto o seu farsi.. Sua excitação desapareceu, deixando no lugar um grande vazio.
— Quem é você? — perguntou com a mesma grosseria. A mulher começou a fechar a porta, mas ele pôs o pé na frente, impedindo-a. — O que você está fazendo na minha casa? Eu sou Excelência Lochart e esta é a minha casa! Onde está Sua Alteza, minha mulher? Hein?
A mulher olhou-o com um ar ameaçador, depois caminhou até a porta da sala e abriu-a. Lochart viu pessoas estranhas lá, homens e mulheres, e armas encostadas na parede.
— Que diabo está havendo aqui? — resmungou em inglês e entrou na sua sala de estar. Dois homens e quatro mulheres levantaram os olhos dos seus tapetes, onde estavam sentados de pernas cruzadas ou recostados em almofadas, fazendo uma refeição em frente à sua lareira, onde um fogo crepitava alegremente, com os pratos espalhados ao acaso, sem sapatos, de pés sujos. Um dos homens, mais velho do que os outros, com cerca de quarenta anos, estava com a mão numa automática enfiada no cinto.
Lochart ficou cego de raiva, sentindo a presença daqueles estranhos como se fosse um estupro e um sacrilégio.
— Quem são vocês? Onde está minha mulher? Por Deus, saiam Já da m... Parou. O revólver estava apontado para ele
— Quem é você, aga!
Com um esforço supremo, Lochart dominou a fúria, com dor no peito
— Eu sou... eu sou... esta é... é a minha casa... eu sou o dono.
— Ah, o dono. Você é o dono? — O homem chamado Teymour interrompeu-o com uma risada breve. — O estrangeiro, o marido da mulher Bate ravan? Vo... — A automática foi apontada quando Lochart fez menção de atacá-lo. — Não faça isso! Eu atiro com muita rapidez e muita pontaria. Revistem-no. — Disse ao outro homem, que se levantou imediatamente. O homem correu as mãos por ele, demonstrando experiência, tirou-lhe a maleta das mãos e revistou-a.
— Nenhuma arma. Manuais de vôo, bússola.. Você é o piloto Lochart?
— Sim disse Lochart, com o coração bateftdo
— Sente-se ali. Agora!
Lochart sentou-se na cadeira, bem distante do fogo. O homem colocou o revólver no tapete ao seu lado e apanhou um papel.
— Dê isto a ele.
O outro homem obedeceu. O papel estava escrito em farsi. Todos o observavam cuidadosamente. Lochart levou um certo tempo para decifrar a letra: "Ordem de confisco. Por crimes contra o Estado islâmico, todas as propriedades de Jared Bakravan estão confiscadas, exceto a casa da sua família e sua loja no bazar". Estava assinado em nome de um komiteh por alguém, que ele não conseguiu entender e datava de dois dias atrás.
— Isso... isso é ridículo — Lochart começou a dizer, desamparadamente.
— Sua... Sua Excelência Bakravan foi um dos maiores sustentadores do aiatolá Khomeini. Um dos maiores. Deve haver algum engano.
— Não há nenhum engano. Ele foi preso, condenado por agiotagem e executado.
Lochart encarou-o, perplexo.
— Tem... tem que haver algum erro!
— Não há nenhum erro, aga. Nenhum — disse Teymour, com uma ponta de delicadeza na voz, vigiando Lochart cuidadosamente, vendo o perigo que ele representava. — Nós sabemos que você é canadense, um piloto, que esteve fora, que é casado com uma das filhas do traidor e que não é responsável pelos crimes dele, nem pelos dela, caso ela tenha cometido algum. — Sua mão buscou a arma, ao ver Lochart enrubescer. — Eu disse 'se', aga, controle a sua raiva.
— Ele esperou e não apanhou a sua bem conservada Luger, embora estivesse preparado. — Nós não somos agitadores despreparados, nós somos Combatentes da Liberdade, profissionais, e deram-nos estas instalações para guardar para personalidades retardatárias. Nós sabemos que você não é um inimigo, então acalme-se. É claro que isto deve ser um choque para você. Nós entendemos, é claro que entendemos, mas temos o direito de tomar o que é nosso.
— Direito? Que direito vocês têm de..
— Direito de conquista, aga. Algum dia foi diferente? Vocês, britânicos, deviam saber disso melhor do que ninguém. — Sua voz se manteve calma. As mulheres observavam com olhos frios e duros. — Acalme-se. Nenhum dos seus pertences foi tocado. Ainda. — Ele fez um gesto com a mão. — Veja por si mesmo.
— Onde está minha mulher?
— Eu não sei, aga. Não havia ninguém aqui quando chegamos. Nós chegamos esta manhã.
Lochart estava quase louco de preocupação. Se o pai foi condenado, será que a família iria pagar? Todo mundo? Espere um minuto! Tudo confiscado "...exceto a casa", não era isto que estava escrito no papel? Ela tem que estar lá... Cristo, fica a quilômetros de distância e eu não tenho carro..
Ele estava tentando fazer a cabeça trabalhar.
— Você disse, você disse que nada foi tocado 'ainda'. Você quer dizer que será tocado em breve?
— Um homem inteligente protege os seus bens. Seria aconselhável levar os seus bens para um lugar seguro. Tudo que pertencia a Bakravan ficará aqui, mas e os seus bens? — Ele deu de ombros. — É claro que pode levá-los, nós não somos ladrões
— E os bens da minha esposa?
— Os dela também. É claro. Coisas pessoais. Eu já disse que não somos ladrões.
— Quanto... quanto tempo eu tenho?
— Até às cinco horas da tarde de amanhã.
— Isso não é suficiente. Não pode ser até depois de amanhã?
— Até às cinco da tarde de amanhã. Você gostaria de comer alguma coisa?
— Não, não, obrigado.
— Então até logo, aga, mas primeiro dê-me as suas chaves, por favor. Lochart enrubesceu apesar do controle. Tirou as chaves do bolso e entregou-as ao outro homem, que estava próximo. — Você falou em personalidades. Que personalidades?
— Personalidades, aga. Este lugar pertencia a um inimigo do Estado, agora ele é de propriedade do Estado para dar para quem ele quiser. Sinto muito, mas é claro que você compreende.
Lochart olhou para ele, depois para o outro homem e depois para ele de novo. Seu cansaço agora lhe pesava. E sua impotência.
— Eu, ahn, antes de sair eu gostaria de fazer a barba e trocar de roupa. Está bem?
Depois de uma pausa, Teymour disse:
— Sim. Hassan, vá com ele.
Lochart saiu, acompanhado por Hassan com ódio deles e de tudo o que estava acontecendo. Seguiu pelo corredor e entrou no seu próprio quarto. Nada fora tocado, embora todos os armários estivessem abertos, bem como as gavetas, e houvesse um cheiro de fumaça de cigarro, mas não havia nenhum sinal de uma partida apressada nem de violência. A cama tinha sido usada. Acalme-se e faça um plano. Eu não posso. Muito bem, então tome um banho, faça a barba e vá até a casa de Mac, não fica muito longe e você pode caminhar até lá. Ele vai ajudá-lo, ele vai emprestar-lhe dinheiro e um carro e você vai encontrar Xarazade na casa de sua família. E não pense em Jared — simplesmente não pense.
PERTO DA UNIVERSIDADE: 20:10H. Rakoczy chegou a lamparina para mais perto do maço de papéis, diários, pastas e documentos que tinha roubado do cofre da embaixada dos Estados Unidos, e continuou a separá-los. Ele estava sozinho no pequeno quarto de uma casa de cômodos — um de uma série de cômodos semelhantes, a maioria de estudantes, que lhe fora alugado por Farmad, o líder estudantil do Tudeh que tinha sido morto na noite do comício. O quarto era sujo, sem aquecimento, e tinha apenas uma cama, uma mesa trôpega, uma cadeira, e uma janela minúscula. As vidraças estavam rachadas e cobertas com papelão.
Ele riu alto. Tanta coisa acontecera e a um custo tão pequeno. O plano tinha sido muito bom. O tumulto encenado do lado de fora dos portões da embaixada — depois o súbito tiroteio dos telhados em frente, criando pânico, a rápida invasão do prédio — a única oposição tinha vindo dos fuzileiros armados de metralhadoras, e mesmo assim com ordens para não atirar — no tempo justo antes da chegada dos partidários de Khomeini para sufocar a rebelião, matar-nos ou capturar-nos. Protegido pelo pandemônio, correra para os fundos do prédio, arrombando a porta lateral, depois subira as escadas dos fundos sozinho, enquanto o seu grupo criava mais tumulto do lado de fora, atirando para o ar, gritando, tomando cuidado para não matar ninguém mas fazendo um bocado de barulho. Um andar, depois o outro, depois correra pelo corredor gritando com os americanos, duas velhas assustadas e um rapaz:
— Para o chão, deitem-se, ou todo mundo morre.
Eles obedeceram apavorados, assim como todos os outros — eu não os culpo, o ataque fora tão súbito e eles estavam tão despreparados, desarmados e foram levados ao pânico. Dentro do quarto. Vazio, exceto por um empregado iraniano paralisado de medo, com os braços sobre a cabeça, e metade do corpo debaixo da cama. Explodira o cofre rapidamente, pondo tudo na mala, tornara a sair, descendo a escada de três em três degraus, depois fugira em direção à multidão, com Ibrahim Kyabi e os outros a protegê-lo, recuando com perfeição, tendo alcançado todos os objetivos.
A chefia tem que ficar impressionada, ele tornou a pensar, a minha promoção a major tem que estar garantida, e papai vai ficar tão orgulhoso de mim.
— Por Deus e pelo Profeta — disse involuntariamente, enquanto outra onda de felicidade o invadia, sem notar que falara alto. — Eu nunca me senti tão realizado em minha vida.
Ele voltou alegremente ao trabalho. Até agora o cofre não havia revelado nenhum tesouro, mas um monte de documentos a respeito do envolvimento da CIA no Irã, alguns carimbos particulares do embaixador, um livro de código que podia ser importante, contas particulares, algumas jóias de pouco valor, algumas moedas antigas. Não importa, pensou. Ainda falta examinar muita coisa, diários e papéis pessoais.
O tempo passou depressa para ele. Em breve Ibrahim Kyabi estaria lá para discutir a Marcha das Mulheres. Ele queria saber como prejudicá-la em favor dos objetivos do Tudeh e contra Khomeini e o xiismo. Khomeini é o verdadeiro perigo, pensou, o único perigo. Aquele velho estranho, ele e a sua intransigência monolítica. Quanto mais cedo ele for levado à presença do Não-Deus, melhor.
Uma corrente de ar gelado entrou pelas vidraças quebradas. Isso não o perturbou. Ele se sentia aquecido, pois estava usando a sua grossa jaqueta de couro, suéter, camisa, roupa de baixo, meias e sapatos grossos. "Use sempre meias e sapatos de boa qualidade para o caso de ter que correr", tinham dito seus professores. "Esteja sempre preparado para correr..."
Ele se lembrou, divertido, da perseguição de Erikki Yokkonen, de tê-lo levado para dentro do labirinto e de tê-lo deixado perdido perto da Casa dos Leprosos. Tenho certeza de que vou ter que matá-lo um dia, pensou. E a gata brava da sua mulher. E quanto a Azadeh? E quanto à filha de Abdullah Khan, Abdullah, o Cruel, que embora valioso como agente duplo está se tornando arrogante demais, independente demais e poderoso demais para a nossa segurança? Sim, mas agora eu gostaria que tanto o marido quanto a mulher estivessem de volta a Tabriz, fazendo o que precisamos que façam. E quanto a mim, eu gostaria de estar de licença de novo. Em casa, em segurança, outra vez Igor Mzytryk, capitão da KGB, em casa com Delaurah, envolvendo-a com os meus braços, na nossa linda cama com os mais finos lençóis da Irlanda, seus olhos verdes brilhando, sua pele macia como pêssego, e tão linda. Daqui a sete semanas nasce o nosso primogênito. Oh, eu espero que seja um filho...
Com parte da audição — já que seu ouvido estava sempre atento a qualquer sinal de perigo — ele ouviu os muezins chamando para a oração da noite. Começou a limpar a pequena mesa. Muito em breve Ibrahim Kyabi estaria lá e não havia necessidade do rapaz tomar conhecimento de coisas que não lhe diziam respeito. Ele guardou tudo, rapidamente, na sacola. Levantou uma tábua do assoalho e colocou a sacola no buraco que havia por baixo e que continha também uma automática carregada, de reserva, cuidadosamente embrulhada em oleado e meia dúzia de granadas britânicas. Um pouco de terra espalhada nas fendas e não havia mais sinal do esconderijo. Diminuiu a chama da lamparina e afastou as cortinas. Havia um pouco de neve do lado de dentro do parapeito. Satisfeito, ficou esperando. Passou-se meia hora. Kyabi não costumava se atrasar.
Então ele escutou passos. Apontou a automática para a porta. O código da batida foi impecável; mesmo assim, quando destrancou a porta, encostou-se na parede e escancarou-a, pronto para atacar, caso fosse um inimigo. Mas era Ibrahim Kyabi, todo agasalhado e satisfeito por estar lá.
— Sinto muito, Dimitri — disse, batendo com os pés, com um pouco de neve presa no seu cabelo escuro e crespo —, mas os ônibus são quase inexistentes.
Rakoczy tornou a trancar a porta.
— A pontualidade é importante. — Você queria saber quem era o mulá que estava no helicóptero de Bandar Delam quando o seu pai foi assassinado, pobre homem. Eu consegui o nome para você. — Ele viu os olhos do rapaz se iluminarem e disfarçou um sorriso. — Seu nome é Hussein Kowissi e ele é o mulá de Kowiss. Você conhece o lugar?
— Não, não, eu nunca estive lá. Hussein Kowissi? Ótimo. Obrigado.
— Eu o chequei para você. Ele parece ser um anticomunista fanático, fanático por Khomeini, mas na realidade ele é um agente da CIA.
— O quê?
— Sim — disse Rakoczy, com a informação errada perfeitamente justificada. — Ele passou alguns anos nos Estados Unidos, mandado pelo xá, fala inglês fluentemente e foi secretamente aliciado por eles quando era estudante. O seu antiamericanismo é tão falso quanto o seu fanatismo.
— Como é que você consegue fazer isso, Dimitri? Como consegue descobrir tanta coisa tão depressa... sem telefones, telex, nem nada?
— Você se esquece que cada ônibus leva alguns dos nossos, cada táxi, caminhão, aldeia, agência de correios. Não se esqueça — ele acrescentou com convicção —, não se esqueça de que as massas estão do nosso lado. Nós somos as massas.
— Sim.
Ele viu a dedicação do rapaz e compreendeu que Ibrahim era o instrumento correto e que estava pronto.
— O mulá Hussein ordenou que os Faixas Verdes matassem seu pai, acusando-o de ser um fantoche dos estrangeiros.
A cor fugiu do rosto de Kyabi.
— Então... então eu quero pegá-lo. Ele é meu.
— Isso deveria ser deixado para profissionais. Eu vou providenciar.
— Não. Por favor. Eu tenho que me vingar.
Rakoczy fingiu pensar a respeito, disfarçando a satisfação. Hussein Kowissi já fora marcado para morrer há algum tempo.
— Dentro de poucos dias eu vou arranjar armas, um carro e um grupo para ir com você.
— Obrigado. Mas eu só vou precisar disto. — Kyabi tirou uma faca do bolso, com as mãos tremendo. — Isto e uma ou duas horas, e um pouco de arame farpado e eu mostro a ele até onde vai a vingança de um filho.
— Ótimo. Agora a Marcha das Mulheres. Está definitivamente marcada para daqui a três dias. O qu... — Ele parou horrorizado, deu um pulo repentino em direção à parede lateral, puxando um nó meio disfarçado. Uma parte da parede se abriu dando acesso à escada de incêndio às escuras. — Venha — ele ordenou e saiu correndo pelas escadas, com Kyabi seguindo-o às cegas, aterrorizado.
Nesse momento, sem nenhum aviso, a porta foi violentamente aberta, sendo quase arrancada das dobradiças, e os dois homens que a haviam arrombado quase caíram dentro do quarto, seguidos por outros. Eram todos iranianos, todos usavam faixas verdes e saíram correndo atrás deles, com as armas prontas.
Eles desceram as escadas pulando os degraus, perseguidores e perseguidos, tropeçando e quase caindo, tornando a se equilibrar e correndo para o meio da rua e para o meio da noite para o meio da multidão, e então Rakoczy foi direto para a armadilha e para os braços deles. Ibrahim Kyabi não hesitou, apenas mudou de direção e atravessou a rua voando, entrou numa ruazinha apinhada de gente e foi engolido pela escuridão.
Num velho carro estacionado em frente à saída de incêndio, Robert Armstrong tinha visto os seus homens entrarem, Rakoczy ser apanhado e Kyabi escapar. Rakoczy fora rapidamente enfiado num caminhão que estava esperando, antes que as pessoas que estavam na rua percebessem o que estava acontecendo. Dois dos Faixas Verdes caminharam na direção de Armstrong, ambos mais bem vestidos do que comumente. Ambos possuíam cartucheiras no cinto para as suas Máusers. As pessoas se afastavam deles, inquietas, olhando-os disfarçadamente, querendo evitar problemas. Os dois homens entraram no carro e Armstrong se afastou, e os Faixas Verdes restantes se misturaram com os pedestres.
Em poucos minutos, Robert Armstrong era parte do tráfego engarrafado. Os dois homens tiraram as suas faixas verdes e as guardaram no bolso.
— Sinto muito termos perdido aquele filho da mãe, Robert — disse o mais velho dos dois, num inglês fluente, com sotaque americano. Era um homem de cara raspada, de uns cinqüenta anos, coronel Hashemi Fazir, superintendente-chefe do Serviço Secreto, treinado nos Estados Unidos e membro da Savak antes da formação do Serviço Secreto.
— Não se preocupe, Hashemi — disse Armstrong. O mais jovem, sentado no banco de trás, disse:
— Nós temos Kyabi no filme tirado durante o tumulto na embaixada, aga. E na universidade. — Ele estava na casa dos vinte, tinha um vasto bigode e seus lábios se curvavam cruelmente. — Nós o apanharemos amanhã.
— Agora que ele está fugindo, se eu fosse você não teria tanta certeza, tenente — disse Armstrong, dirigindo cuidadosamente. — Já que ele está marcado, apenas siga-o. Ele pode levá-lo a peixes mais graúdos. Ele o levou a Dimitri Yazernov. Os outros riram.
— Sim. Sim, é verdade.
— E Yazernov vai nos levar a todo tipo de pessoas e lugares interessantes.
— Hashemi acendeu um cigarro, oferecendo-o. — Robert?
— Obrigado. — Armstrong deu uma tragada e fez uma careta. — Meu Deus, Hashemi, estes cigarros são horríveis. Eles vão matá-lo.
— Como Deus quiser. — Então Hashemi citou em farsi: — "Lave-me com vinho quando eu morrer, / No meu funeral, leia um texto que se refira a vinho, / Se quiser me encontrar no dia do Juízo Final, / Procure por mim na poeira da loja de vinho."
— São os cigarros que vão matá-lo, não o vinho — disse Armstrong secamente, com a bela melodia das palavras em farsi ecoando.
— O coronel estava citando um trecho do Rubãiyãt de Ornar Khayyám — o rapaz falou lá de trás, em inglês. — Isso quer dizer...
— Ele sabe o que significa, Muhammad — interrompeu-o Hashemi. — O sr. Armstrong fala perfeitamente o farsi. Você ainda tem muito o que aprender. — Ele fumou por algum tempo, observando o tráfego. — Pare o carro um momento, sim, Robert?
Quando o carro parou, Hashemi disse:
— Muhammad, volte para o QG e espere por mim lá. Certifique-se de que ninguém. Ninguém! Chegue a Yasernov antes de mim. Diga à equipe para verificar, somente, se está tudo pronto. Eu quero começar à meia-noite.
— Sim, coronel. — O homem mais moço deixou-os. Hashemi observou-o desaparecer no meio da multidão.
— Eu bem que gostaria de um uísque com soda bem grande. Continue dirigindo mais um pouco, Robert.
— Claro. — Armstrong saiu com o carro, e olhou para ele, percebendo alguma coisa. — Problemas?
— Muitos. — Hashemi observou o trânsito e os pedestres com a fisionomia fechada. — Eu não sei até quando vamos poder operar, até quando estaremos seguros, nem em quem confiar.
— O que há de novo nisso? — Armstrong sorriu sombriamente. — Esta é uma das contingências do ofício — disse, com a lição bem aprendida depois de 11 anos como consultor do Serviço Secreto, tendo passado antes disso vinte anos na polícia de Hong Kong.
— Você quer estar presente quando Yazernov for interrogado, Robert?
— Sim, se não for atrapalhar.
— O que é que o MI6 quer com ele?
— Eu sou apenas um ex-membro da Divisão Especial da CID, contratado para ajudá-los a montar um serviço equivalente, lembra-se?
— Eu me lembro muito bem. Dois contratos de cinco anos, o último prolongado até o próximo ano, quando você se aposentará com uma pensão.
— Grande esperança! — disse Armstrong, desgostoso. — Khomeini e o governo vão pagar a minha pensão? Grande esperança. — Ele estava bem consciente de que todo o seu trabalho no Irã fora desperdiçado, e com a desvalorização do dólar de Hong Kong, desde que ele se aposentara em 1966, sua verdadeira aposentadoria não valeria nada. — Minha pensão foi por água abaixo. Os olhos escuros endureceram.
— Robert, o que é que o MI6 quer com este desgraçado?
Robert Armstrong franziu a testa. Havia algo muito errado esta noite. O jovem Kyabi não deveria ter escapado da rede e Hashemi está mais nervoso do que um novato no seu primeiro trabalho.
— Pelo que eu sei, eles não querem nada. Sou eu que estou interessado nele. Eu — disse despreocupadamente.
— Por quê?
É uma história tão longa, pensou Armstrong. Será que eu deveria contar-lhe que Dimitri Yasernov é um disfarce para Fedor Rakoczy, o islâmico-marxista russo que vocês estão tentando apanhar há meses? Será que eu deveria contar-lhe que o verdadeiro motivo pelo qual me mandaram ajudá-lo a agarrá-lo hoje à noite é que, inteiramente por acaso, o MI6 descobriu através de um desertor tcheco que o seu verdadeiro nome é Igor Mzytryk, filho de Petr Oleg Mzytryk, que nos meus dias de Hong Kong costumava ser conhecido como Gregor Suslev, o grande espião, que julgávamos morto há muito tempo?
Não, nós não queremos Yasernov, mas nós queremos — eu quero — o pai, que se supõe morar em algum lugar ao norte da fronteira, ao nosso alcance, oh, Deus, fazei com que ele esteja vivo e ao nosso alcance, pois nós adoraríamos arrancar informações daquele desgraçado por todos os meios possíveis — ex-chefe do serviço de espionagem no Extremo Oriente, conferencista em espionagem na Universidade de Vladivostok, membro graduado do Partido e Deus sabe o que mais desde então.
— Eu acho... nós achamos que Yazernov é mais importante do que apenas um elo de ligação entre o Tudeh e os estudantes. Ele é um sósia perfeito do seu dissidente curdo, Ali bin Hassan Karakose.
— Você quer dizer que eles são o mesmo homem?
— Sim.
— Impossível.
Armstrong deu de ombros. Tinha atirado um osso; se ele não quisesse roê-lo, isso era problema dele. O trânsito estava engarrafado de novo, com todo mundo buzinando e xingando. O homem corpulento fechou os ouvidos ao barulho e apagou o cigarro iraniano.
Hashemi franziu a testa, observando-o.
— Qual é o seu interesse em Karakose e nos curdos, se é verdade o que você está dizendo?
— Os curdos estão espalhados por todas as fronteiras — disse sem hesitação. — O movimento curdo nacional é muito sensível e fácil para os soviéticos explorarem, com grandes implicações internacionais por toda a Ásia Menor. É claro que estamos interessados.
O coronel ficou olhando pela janela, pensativo, com a neve caindo levemente. Um ciclista passou por eles, batendo descuidadamente no lado do carro. Para surpresa de Armstrong — geralmente Hashemi era bem-humorado — ele baixou furiosamente o seu vidro e xingou o rapaz e toda a sua geração. Ele apagou o cigarro com um ar soturno.
— Deixe-me aqui, Robert. Nós começamos com Yazernov à meia-noite. Você é bem-vindo. — Ele fez menção de abrir a porta.
— Espere, meu velho — disse Armstrong. — Nós somos amigos há muito tempo. Que diabo está acontecendo?
O coronel hesitou. Então fechou a porta.
— A Savak foi declarada ilegal pelo governo, assim como todos os departamentos do serviço secreto, inclusive nós, e recebemos ordens de debandar imediatamente.
— Sim, mas o primeiro-ministro já disse a vocês para continuarem, em segredo. Você não tem nada a temer, Hashemi. Você não foi atingido. Você recebeu ordens de esmagar o Tudeh, os fedayins, e os islâmicos-marxistas... você me mostrou as ordens. A operação desta noite não estava dentro dessa linha?
— Sim. Sim, estava. — Mais uma vez Hashemi parou, com a cara fechada e a voz rouca. — Sim, estava, mas... O que você sabe a respeito do Komiteh Revolucionário Islâmico?
— Só que ele parece consistir de homens escolhidos pessoalmente por Khomeini — Armstrong começou a dizer, com honestidade. — Eles têm plenos poderes, nós não sabemos quem são, quantos são, quando ou onde se reúnem, nem se é o próprio Khomeini que o preside.
— Eu sei com certeza que, com a aprovação de Khomeini, no futuro, este komiteh será investido de todo o poder, que Bazargan é apenas um testa de ferro momentâneo enquanto o Komiteh Revolucionário elabora a nova constituição islâmica que nos fará regredir aos tempos do Profeta.
— Maldição! — resmungou Armstrong. — Nenhum governo eleito?
— Nenhum. — Hashemi estava fora de si de raiva. — Não o que nós entendemos por isso.
— Talvez a constituição não seja aprovada, Hashemi. O povo terá que votar, nem todo mundo é partidário fanático de...
— Por Deus e pelo Profeta, não tente se enganar, Robert! — o coronel disse rispidamente. — A grande maioria é de fundamentalistas, eles só precisam se apoiar nisso. A nossa burguesia, os ricos e a classe média são de Teerã, Tabriz, Abadan, Isfahan, todos apadrinhados pelo xá, um mero punhado se comparados com os outros 36 milhões, a maioria dos quais não sabe ler nem escrever. É claro que qualquer coisa que Khomeini aprove será votada. E nós dois sabemos qual é a sua visão de Islã, do Corão e do Sharia.
— Daqui a quanto tempo... daqui a quanto tempo eles terão a constituição pronta?
— Você entende tão pouco a nosso respeito, depois de todo esse tempo? — disse Hashemi, irritado. — Assim que conquistamos o poder, nós o usamos antes que ele nos escape. A nova constituição começou a vigorar assim que o pobre infeliz do Bakhtiar foi traído por Carter, traído pelos generais e obrigado a fugir. Quanto a Bazargan, piedoso, honesto, justo e com tendências democráticas, indicado por Khomeini, legalmente primeiro-ministro até as eleições, o pobre imbecil não passa de um bode expiatório para qualquer coisa que dê errado daqui para a frente.
— Você quer dizer que ele vai ser o bode expiatório? Que vai ser levado a julgamento?
— Julgamento? Que julgamento? Eu já não lhe disse o que o Komiteh Revolucionário considera como julgamento? Se eles o acusarem, ele está morto. Insha'Allah! E por último, o motivo pelo qual eu não consigo raciocinar direito e estou tão zangado que preciso me embebedar, é porque eu ouvi dizer hoje à tarde, muito em particular, que a Savak foi secretamente reorganizada, que vai ser rebatizada de Savama — e que Abrim Pahmudi foi nomeado diretor!
— Jesus Cristo! — Armstrong sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Abrim Pahmudi era um dos três amigos de infância do xá, que fora colega de escola dele no Irã e depois na Suíça, que se tornara muito importante no conselho imperial, na Savak. Dizia-se que depois da família do xá ele era o seu conselheiro mais ouvido. Supunha-se que estivesse escondido, esperando por uma oportunidade de negociar com o governo de Bazargan, em nome do xá, a instituição de uma monarquia constitucional e a abdicação do xá em favor do seu filho Reza. — Jesus Cristo! Isso explica muita coisa.
— Sim — disse Hashemi com amargura. — Durante anos o filho da mãe tomou parte em quase todas as reuniões militares ou políticas importantes, em toda conferência de cúpula, todo acordo secreto, e nos últimos dias tomou parte em todas as reuniões importantes com o embaixador dos Estados Unidos, com os generais americanos, participou de toda decisão importante do xá, dos nossos generais, e esteve presente todas as vezes em que se discutiu a respeito de um golpe de Estado, e se rejeitou essa possibilidade. — Ele estava tão zangado que as lágrimas corriam pelo seu rosto. — Nós fomos todos traídos. O xá, a revolução, o povo, você, eu, todo mundo! Quantas vezes nós demos informações a ele durante todos esses anos em que trabalhamos juntos, você e eu, mais de uma dúzia de vezes? Com listas, nomes, contas bancárias, ligações, segredos que só nós poderíamos descobrir e saber. Tudo — tudo por escrito mas com uma única cópia — a regra não era esta? Fomos todos traídos.
Armstrong ficou gelado. É claro que Pahmudi sabia tudo a respeito do seu envolvimento com o Serviço Secreto. Pahmudi tinha que saber tudo de importante a respeito de George Talbot, de Masterson, o seu equivalente na CIA, de Lavenov, o seu equivalente soviético, de todos os nossos planos a curto e longo prazo, nossos planos de invasão, nossas operações para neutralizar as instalações de radar altamente secretas da CIA com homens como o jovem capitão Ross.
— Maldição — ele resmungou, ao mesmo tempo furioso porque suas próprias fontes não o haviam prevenido. Pahmudi, maneiroso, inteligente, poliglota e discreto. Nem uma vez em todos aqueles anos tinha havido a menor suspeita contra ele. Nunca. Como ele podia ter escapado tão limpo, até do xá que estava constantemente mandando checar e tornar a checar os seus auxiliares mais importantes? Com todo o direito, pensou. Cinco tentativas de assassinato contra ele, balas no seu corpo e no seu rosto, ele não era o governante de um povo conhecido pela violência, tanto a dirigida contra os seus governantes quanto a dirigida pelos governantes contra o povo?
Cristo! Onde vai acabar tudo isso?
AINDA NO MESMO TRÂNSITO: 9:15H. McIver se arrastava, bem mais ao sul, dirigindo-se à área do bazar, onde ficava a casa de Jared Bakravan, com Tom Lochart ao seu lado.
— Tudo vai dar certo — disse McIver, doente de preocupação.
— Claro, Mac. Não esquenta.
— Sim, nada de preocupações.
Quando McIver voltou para o seu apartamento depois do encontro com Ali Kia, muito satisfeito, Tom Lochart estava lá, tinha chegado poucos momentos antes. Sua alegria por ter visto Tom Lochart são e salvo dissipou-se imediatamente quando notou a aparência deste e pelas notícias que Pettikin lhe deu a respeito da comunicação por rádio feita por Freddy Ayre sobre Scot Gavallan em Zagros, e sobre o fato de Starke ter sido levado pelo komiteh de Kowiss para interrogatório a respeito da 'fuga de Isfahan'.
— A culpa é toda minha, Mac — tinha dito Tom Lochart.
— Não, a culpa não é sua, Tom. Nós dois caímos numa cilada. De qualquer modo, fui eu que dei permissão para o vôo, não que isso tenha ajudado Valik. Eles estavam todos a bordo; como foi que você conseguiu sair? Conte-nos o que aconteceu, depois eu chamo Freddy. Você quer um drinque?
— Não, não, obrigado. Ouça, Mac, tenho que encontrar Xarazade. Ela não estava em casa, eu estou com esperanças de que ela esteja na casa do pessoal dela e eu tenho...
— Ela está lá, eu sei que está, Tom. Erikki me disse, pouco antes de partir esta manhã para Tabriz. Você já soube o que aconteceu com o pai dela?
— Sim, eu soube, uma coisa terrível! Você tem certeza de que ela está lá?
— Tenho. — McIver caminhou pesadamente até o aparador e preparou um drinque enquanto continuava: — Ela não esteve no apartamento desde que você partiu e ela estava bem até... Erikki e Azadeh a viram anteontem. Ontem eles...
— Erikki disse como ela estava?
— Ele disse que ela estava tão bem quanto se poderia esperar. Você sabe como estas famílias iranianas são unidas. Não sabemos mais nada sobre o pai dela, a não ser o que Erikki nos contou: que ele recebera ordens de ir até a prisão como testemunha, e em seguida a família recebeu ordens de apanhar o corpo e foi informada de que ele tinha sido fuzilado por 'crimes contra o Islã". Erikki disse que eles apanharam o, ahn, o corpo e, bem, ontem eles estavam de luto. Sinto muito, mas é tudo. — Ele tomou um gole da bebida e se sentiu melhor. — Ela está em casa, em segurança. Primeiro conte-nos o que aconteceu com você, e depois eu vou ligar para Freddy e nós vamos procurar Xarazade.
Lochart contou rapidamente. Eles escutaram, perplexos.
— Quando Rudi me disse que aquele oficial da Força Aérea iraniana, Abbasi, é que tinha derrubado o HBC, eu quase enlouqueci. Eu... eu desmaiei, e a próxima coisa que me lembro é do dia seguinte. Abbasi e os outros já tinham ido embora e estava tudo sob controle. Mac, a idéia de Charlie a respeito de um seqüestro, isso não vai colar... não tem jeito!
— Nós sabemos disso, Tom — respondera MacIver. — Termine a sua história.
— Eu não consegui uma autorização para voar de volta, então arranjei um carro emprestado, cheguei há umas duas horas e fui direto para o apartamento. O pior é que ele foi confiscado pelos Faixas Verdes, assim como todas as propriedades do sr. Bakravan, exceto a loja do bazar e a casa onde mora a família.
Lochart contou a eles o que acontecera, acrescentando:
— Eu... eu agora sou como um órfão no meio de uma tempestade. Não tenho mais nada, nós não temos nada, Xarazade e eu. — Ele riu e foi uma risada infeliz e McIver pôde ver que ele estava morrendo por dentro. — É verdade que o prédio era de Jared, e também o apartamento e tudo o que está lá dentro, embora... embora uma parte seja o dote de Xarazade... Vamos embora, sim, Mac?
— Primeiro deixe-me ligar para Freddy. O...
— Oh, é claro, desculpe. Estou tão preocupado que não consigo pensar direito.
McIver terminou o seu drinque e foi até o HF. Ele ficou olhando para o aparelho.
— Tom — disse tristemente — o que você quer fazer a respeito de Zagros?
Tom Lochart hesitou.
— Eu podia levar Xarazade para lá comigo.