Quando entrou, seu rosto estava tenso.
— Todos os oficiais devem apresentar-se ao comandante às sete horas — disse em farsi. — Todos os oficiais. Haverá uma parada com todo o pessoal do Exército e da Força Aérea às oito horas, na praça. Qualquer um que faltar, qualquer um — acrescentou sombriamente — exceto por razões de saúde aprovadas por mim, com antecedência, pode esperar uma punição severa e imediata. — Seus olhos percorreram a sala até encontrarem Starke. — Siga-me, por favor, capitão.
O coração de Starke quase parou.
— Por que major? — perguntou em farsi.
— O comandante quer vê-lo.
— Para quê?
O major deu de ombros e saiu. Starke disse para Ayre em voz baixa:
— É melhor alertar os nossos rapazes. E Manuela também. Entendeu?
— Entendi. — E depois resmungou — Cristo.
Enquanto atravessava a rua e subia as escadas, Starke podia sentir todos os olhos fixos nele como se fossem um peso. Graças a Deus eu sou um civil e trabalho para uma companhia britânica e não estou mais no Exército dos Estados Unidos. Exército nunca mais, pensou com ardor.
— Maldição — murmurou, recordando-se do ano miserável passado no Vietnã, logo no início, quando não havia forças americanas no Vietnã, 'só alguns conselheiros'. Uma ova! E o filho da puta daquele imbecil, capitão Ritman, que ordenou que todos os helicópteros da base, uma base que ficava no meio da selva, a milhões de quilômetros de qualquer lugar, pelo amor de Deus, fossem pintados com as cores da bandeira americana: "E isso mesmo, porra, todos pintados. Deixem os veados saberem quem somos nós e eles vão arrastar seus traseiros de volta até a maldita Rússia." — Os vietcongues podiam-nos ver chegando a cinqüenta quilômetros de distância e foi um verdadeiro inferno. Perdemos três Hueys com toda a tripulação antes que o filho da puta fosse mandado para Saigon, promovido e elogiado. Não é de espantar que tenhamos perdido a maldita guerra.
Ele entrou no prédio e subiu as escadas, passou pelos três aldeões petrificados que tinham sido expulsos para a ante-sala, e entrou no covil do comandante.
— Bom dia, coronel — disse cautelosamente, em inglês.
— Bom dia, capitão Starke. — Peshadi começou a falar em farsi — Eu gostaria que conhecesse o mulá Hussein Kowissi.
— Que a paz o acompanhe — disse Starke em farsi, bem consciente dos respingos do sangue do rapaz que fora morto, que ainda manchavam o turbante branco e a vestimenta vermelha do homem.
— Que a paz o acompanhe.
Starke estendeu a mão para cumprimentá-lo, como era o hábito correto. Bem a tempo, notou as marcas de sangue coagulado nas palmas das mãos do homem, causadas pelo arame farpado, e apertou-lhe a mão apenas de leve. Mesmo assim, viu o mulá fazer uma careta de dor.
— Desculpe — disse em inglês.
O mulá apenas o encarou e Starke sentiu toda a força do ódio daquele homem.
— O senhor mandou-me chamar, coronel?
— Sim. Sente-se, por favor. — Peshadi indicou-lhe a cadeira vazia em frente à escrivaninha. O escritório era espartano, e meticulosamente arrumado. Uma fotografia do xá e de Farah, sua esposa, em trajes de gala, era a única decoração da parede. O mulá sentara-se de costas para o retrato. Starke ocupou a cadeira em frente aos dois homens.
Peshadi acendeu outro cigarro e viu o olhar desaprovador de Hussein fixar-se no cigarro e depois cair em cheio em seu rosto. Ele o encarou de volta. Fumar era proibido pelo Corão — de acordo com algumas interpretações. Tinham discutido esta questão por mais de uma hora. Depois o coronel dissera de forma conclusiva:
— Fumar ainda não está proibido no Irã. Sou um soldado. Jurei obedecer ordens. Eu...
— Mesmo uma ordem ile...
— Repito: as ordens de Sua Majestade Imperial, o xainxá Muhammad Pahlavi ou do seu representante, o primeiro-ministro Bakhtiar, ainda são legais, de acordo com a lei do Irã. O Irã ainda não é um estado islâmico. Ainda não. Quando o for, eu obedecerei às ordens de quem quer que esteja governando o estado islâmico.
— O senhor obedecerá ao aiatolá Khomeini?
— Se o aiatolá Khomeini vier a ser o nosso governante legal, é claro que sim. — O coronel balançara a cabeça Simpaticamente, mas estava pensando: antes desse dia chegar haverá muito derramamento de sangue. — E a mim, se eu for escolhido líder deste possível estado islâmico, o senhor obedecerá a mim?
Hussein não sorrira.
— O líder do estado islâmico será o imã, o Turbilhão de Deus, e depois dele virá um outro aiatolá, e depois mais outro.
E agora aquele olhar de pedra, inflexível, ainda estava fixado nele, e Peshadi teve vontade de esmagar o mulá no chão e pegar seus tanques e esmagar todo mundo que se recusasse a obedecer às ordens do xainxá, seu governante indicado por Deus. Sim, pensou, o nosso dirigente mandado por Deus que, como seu pai, enfrentou vocês, mulás, e sua sede de poder, que reprimiu seu dogmatismo arcaico e tirou o Irã do obscurantismo, dando-lhe a grandeza que era sua por direito; que, sozinho, coagiu a OPEP a enfrentar o enorme poder das companhias de petróleo estrangeiras, que expulsou a Rússia do Azerbeijão depois da Segunda Guerra Mundial e a mantém acuada, lambendo-lhe as mãos como um cachorrinho.
Por Deus e pelo Profeta, disse a si mesmo, furioso, devolvendo o olhar de Hussein, não consigo entender por que esses mulás fodidos não reconhecem a verdade a respeito daquele velho senil do Khomeini, que grita mentiras do seu leito de morte, por que eles não percebem que os soviéticos o estão patrocinando, alimentando, protegendo, para levá-los a incitar os camponeses a arrasar o Irã e torná-lo um protetorado soviético!
Precisamos apenas de uma única ordem: Esmaguem a rebelião imediatamente!
Com uma ordem dessas, por Deus, em três dias eu tornaria toda a região em torno de Kowiss tranqüila, pacífica e próspera, com os mulás de volta às mesquitas, onde é o lugar deles e os fiéis rezando cinco vezes por dia — em um mês as Forças Armadas fariam o Irã voltar a ser o que era há um ano e resolveriam o problema de Khomeini para sempre. Poucos minutos depois dessa ordem eu o prenderia, rasparia publicamente metade da sua barba, tiraria toda a sua roupa e o faria desfilar pelas ruas numa carroça de estrume. Deixaria o povo ver o que ele realmente é: um velho abatido e cansado. Basta torná-lo um perdedor e todo mundo vai virar a cara para ele. Surgiriam, então, acusadores entre os aiatolás que adoram a vida, o amor, o poder, a terra e o falatório, surgiriam acusadores entre os mulás e os bazaaris e entre o povo e, juntos, eles o liquidariam.
É tão simples lidar com Khomeini ou com qualquer mulá — por Deus, se me tivessem ordenado, eu o teria arrastado da França há meses atrás. Deu uma tragada no cigarro e manteve cuidadosamente seus pensamentos fora do rosto e dos olhos.
— Bem, mulá, o capitão Starke está aqui. — Depois acrescentou, como se não fosse uma coisa importante. — Pode falar com ele em farsi ou em inglês, como quiser. Ele fala farsi como você fala inglês. Fluentemente.
O mulá virou-se para Starke.
— Então — disse em inglês com sotaque americano — você é da CIA.
— Não — respondeu Starke, colocando-se instantaneamente em guarda.
— Você estudou nos Estados Unidos?
— Estudei lá, sim — respondeu Hussein. E então, por causa da dor e do cansaço, perdeu a calma. Passou a falar em farsi e sua voz tornou-se mais dura.
— Por que você aprenderia farsi a não ser para nos espionar para a CIA, ou para as suas companhias de petróleo, hein?
— Para o meu próprio interesse, só isto — respondeu Starke educadamente em farsi, demonstrando um bom conhecimento e uma boa pronúncia da língua. — Eu sou um visitante no seu país, fui convidado pelo seu governo para trabalhar para ele em sociedade com iranianos. É de bom-tom que visitantes estejam a par dos tabus e dos costumes dos seus anfitriões, que aprendam sua língua, especialmente quando gostam do país e esperam continuar nele por muitos anos. — Sua voz tornou-se mais tensa. — E as companhias não são minhas.
— Elas são americanas. Você é americano. A CIA é americana. Todos os nossos problemas vêm da América. A cobiça do xá é americana. Todos os nossos problemas vêm da América. Há anos o Irã vem sendo espezinhado pelos americanos.
— Uma ova! — disse Starke em inglês, agora também zangado, sabendo que o único meio de lidar com um valentão era sair brigando. Na mesma hora. Viu o homem enrubescer e enfrentou-lhe o olhar, deixando pesar o silêncio. Os segundos passavam. Seu olhar sustentou o do mulá. Mas não conseguiu dominá-lo. Nervoso, mas tentando aparentar calma, olhou para Peshadi que esperava e observava, fumando em silêncio. — O que significa tudo isso, coronel?
— O mulá requisitou um dos seus helicópteros para visitar as instalações de petróleo nesta aérea. Como você sabe, nós não planejamos suas rotas nem participamos de suas operações. Você deve providenciar um de seus melhores pilotos para esta missão. Hoje, ao meio-dia.
— Por que não usar um dos seus aviões? Talvez eu pudesse fornecer um navega...
— Não. Um dos seus helicópteros, com seu pessoal. Ao meio-dia. Starke voltou-se para o mulá.
— Sinto muito, mas só recebo ordens da IranOil, através do administrador da nossa base e do responsável pela área, Esvandiary. Temos um contrato e eles são exclu...
— Os helicópteros que vocês usam são iranianos — o mulá interrompeu asperamente, tomado mais uma vez pela dor e pela exaustão, desejando que terminassem. — Você vai providenciar um, conforme foi requisitado.
— Eles têm registro iraniano, mas pertencem à S-G Helicópteros Ltda. de Aberdeen.
— Registro iraniano, no céu iraniano, cheios de gasolina iraniana, com autorização dos iranianos, prestando serviços a poços iranianos que extraem petróleo iraniano, pelo amor de Deus. Eles são iranianos! — A boca fina de Hussein se contorceu. — Esvandiary dará a ordem necessária ao meio-dia. Quanto tempo levaremos para visitar todos os campos?
Depois de uma pausa, Starke respondeu:
— Talvez seis horas, tempo de vôo. Quanto tempo vocês pretendem passar em cada parada?
O mulá apenas o encarou.
— Depois disso, quero seguir o oleoduto até Abadan e aterrissar onde eu escolher.
Starke arregalou os olhos. Olhou para o coronel mas viu que o homem ainda estava observando atentamente as espirais de fumaça do seu cigarro.
— Isto é mais difícil, mulá. Nós precisaríamos de permissão. O radar não está funcionando, a maior parte do espaço aéreo é controlada pela divisão de tráfego aéreo de Kish e esta, ahn, é controlada pela Força Aérea.
— Você terá todas as permissões necessárias — disse Hussein de forma conclusiva e olhou inflexivelmente para Peshadi. — Em nome de Deus, voltarei ao meio-dia; se vocês tentarem me impedir, o tiroteio vai recomeçar.
Starke sentia o coração disparado; o mulá e Peshadi também sentiam o mesmo. Só o mulá estava satisfeito — ele não tinha com que se preocupar, estava nas Mãos de Deus, fazendo o trabalho de Deus, obedecendo ordens: "Pressionem o inimigo de todos os modos. Sejam como a água descendo pela colina em direção a uma represa. Pressionem a represa do usurpador, o xá, dos seus lacaios e das Forças Armadas. Nós teremos que derrotá-los com coragem e sangue. Pressionem-nos de todas as maneiras, vocês estão fazendo o trabalho de Deus..."
O vento fez a janela bater e, involuntariamente, eles olharam para ela e para a noite lá fora. A noite ainda estava escura, as estrelas brilhantes, mas a leste percebia-se o brilho do amanhecer, com o sol surgindo no horizonte.
— Voltarei ao meio-dia, coronel Peshadi, sozinho ou com uma multidão. Você escolhe — disse Hussein, em voz baixa, e Starke sentiu a ameaça, ou promessa, com todo o seu ser. — Mas agora, agora é hora de rezar. — Ele se esforçou para ficar em pé, com as mãos ainda queimando de dor, com as costas, a cabeça e os ouvidos doendo ainda barbaramente. — Por um instante, sentiu que ia desmaiar, mas lutou contra a tonteira e a dor e se retirou.
— Faça o que ele pede — disse Peshadi, levantando-se. Por favor — acrescentou com uma grande concessão. — É uma trégua temporária e um compromisso temporário... até recebermos ordens definitivas do governo legal de Sua Majestade Imperial, e então terminaremos com toda essa idiotice. — Tremendo, acendeu um cigarro com o toco do anterior. — Você não vai ter nenhum problema. Ele vai providenciar as licenças necessárias, será um vôo de rotina. É claro que você tem de concordar porque é evidente que não posso permitir que um dos meus aviões preste serviços a um mulá, especialmente a Hussein, que é conhecido por sua incitação à revolta! É claro que não! Foi uma saída brilhante da minha parte e você não vai estragá-la. — Apagou o cigarro, raivosamente, no cinzeiro cheio, o ar carregado de nicotina, e quase gritou: — Você escutou o que ele disse. Ao meio-dia! Sozinho ou com uma multidão. Você quer mais derramamento de sangue, hein?
— É claro que não.
— Ótimo. Então faça o que estou mandando! — explodiu Peshadi. Com ar carrancudo, Starke foi até a janela. O mulá tinha voltado para seu lugar perto do portão, levantado os braços e, como todo muezim em todos os minaretes em todas as madrugadas do islã, chamava os fiéis para a primeira oração do dia, em árabe:
— Venham orar, venham progredir, orar é melhor do que dormir. Não há nenhum outro Deus além de Deus...
E enquanto Starke observava, Peshadi devotadamente tomou seu lugar na frente de todos os homens da base, de todos os postos que, obedientemente, e com evidente satisfação, tinham saído de suas barracas, os soldados colocando seus rifles no chão, os aldeões do outro lado da cerca com devoção igual. Então, sob o comando do mulá, todos se viraram em direção a Meca e começaram os gestos obrigatórios, as prostrações e a ladainha Shahada: "Dou meu testemunho de que não há nenhum outro Deus além de Deus e de que Maomé é o profeta de Deus..."
Quando a oração terminou, fez-se um grande silêncio. Todo mundo esperava. Então o mulá disse bem alto:
— Deus, o Corão e Khomeini. — Depois saiu pelo portão em direção a Kowiss. Obedientemente, os aldeões o seguiram.
Starke estremeceu sem querer. Esse mulá está tão cheio de ódio que sai pelos seus poros. E tanto ódio assim vai acabar mandando alguma coisa ou alguém para o inferno. Se o levar no helicóptero, talvez ele fique ainda pior. Se indicar alguém ou pedir um voluntário será covardia, porque a responsabilidade é minha.
— Tenho que levá-lo — murmurou. — Tenho.
5
FORA DE LENGEH: 6:42H. O 212, com dois pilotos e 13 passageiros — a lotação completa — fazia um vôo de rotina, em direção ao estreito de Ormuz, depois de ter saído da base da S-G em Lengeh, e sobrevoava as plácidas águas do golfo em direção ao campo de petróleo de Siri, explorado pelos franceses. O sol acabara de surgir no horizonte, prometendo mais um dia claro e sem nuvens, embora a névoa, comum sobre o golfo, baixasse a visibilidade para uns poucos quilômetros.
— Helicóptero EP-HST, aqui é o controle de radar de Kish, vire para 260 graus.
Obedientemente, ele entrou na sua nova rota.
— Duzentos e sessenta em trezentos — respondeu a voz de Ed Vossi.
— Mantenha-se em trezentos. Notifique quando estiver sobre Siri. Ao contrário da maior parte do Irã, o radar aqui era bom, com estações na ilha Kish e na ilha Lavan, controladas por excelentes operadores da Força Aérea Iraniana, treinados nos Estados Unidos — os dois lados do golfo eram igualmente estratégicos e igualmente bem servidos.
— HST — Ed Vossi era americano, antigo membro da Força Aérea dos Estados Unidos, tinha 32 anos e o físico de um zagueiro de futebol americano.
— O radar está nervoso hoje, hem Scrag? — disse para o outro piloto.
— Tem razão. Devem ser as pilhas.
Na frente deles, agora, estava a pequena ilha de Siri. Era árida, despovoada e escondida, com uma pequena pista de terra, umas poucas barracas para o pessoal do petróleo, e um grupo de enormes tanques de armazenamento alimentados por oleodutos colocados no fundo do mar e ligados aos poços que ficavam a oeste, no golfo. A ilha distava uns cem quilômetros da costa iraniana, dentro da fronteira internacional que dividia o estreito de Ormuz e separava as águas iranianas das águas de Omã e dos Emirados Árabes Unidos.
Quando estava bem em cima dos tanques de petróleo, o helicóptero inclinou-se suavemente, dirigindo-se para oeste, pois sua primeira parada seria a alguns quilômetros, no poço de petróleo chamado Siri Três. No momento, o campo tinha seis poços em funcionamento, todos operados pelo consórcio francês semi-estatal, EPF, que instalara o campo para a IranOil em troca de futuros carregamentos de petróleo.
— Controle de radar de Kish, HST sobre Siri a trezentos metros — disse Ed Vossi no transmissor.
— Roger HST. Mantenha-se em trezentos — a resposta veio imediatamente. — Comunique-se antes de iniciar a descida. Na sua frente há trafego de subida às dez horas.
— Estamos vendo. — Os dois pilotos observaram o vôo de quatro caças a jato ganhando altitude, passando por eles e indo para a boca do estreito.
— Eles estão com pressa — disse o homem mais velho e se mexeu no assento.
— Se estão. Olhe! Jesus, são F15 da Força Aérea dos Estados Unidos!
— Vossi estava estarrecido. — Merda, não sabia que havia algum nesta região. Já tinha visto algum antes, Scrag?
— Não, cara — disse Scrag Scragger, igualmente preocupado, ajustando ligeiramente o volume do seu fone. Aos 63 anos, ele era o piloto mais velho da S-G, o piloto mais graduado em Lengeh, um homenzinho mirrado, muito magro, muito resistente, com cabelos grisalhos e olhos fundos, azuis-claros, de australiano, que pareciam estar sempre examinando o horizonte. Seu sotaque era interessante. — Gostaria de saber que diabo está acontecendo. O radar está tão agitado quanto um peru na roda e este é o terceiro vôo que vemos desde que decolamos, embora seja o primeiro ianque.
— Tem que ser uma força-tarefa, Scrag. Ou talvez os caças de escolta que os Estados Unidos enviaram para a Arábia Saudita junto com os AWAC.
Scragger ocupava o assento da esquerda, atuando como comandante de treinamento. Normalmente, o 212 voava com um único piloto, no banco da direita, mas Scragger mandara adaptar este avião para treinamento com dois controles.
— Bem — disse, dando uma risada —, contanto que não encontremos nenhum MIG, está tudo bem.
— Os vermelhos não vão mandar equipamentos para cá, por mais que desejem o estreito. — Vossi parecia muito confiante. Tinha pouco mais de metade da idade de Scragger e duas vezes o seu tamanho. — Não farão isso enquanto dissermos a eles que é melhor que não o façam, e tivermos aviões e forças-tarefas e o poder de usá-los. — Espiou por entre a névoa. — Ei, Scrag, olhe aquilo lá.
O enorme superpetroleiro estava pesadamente carregado, mergulhado na água, navegando com dificuldade na direção de Ormuz.
— Aposto que está levando quinhentas mil toneladas ou mais.
Eles o observaram por alguns instantes. Sessenta por cento do petróleo do mundo livre era escoado por este caminho raso e estreito entre o Irã e Omã, com aproximadamente 25 quilômetros de canal navegável. Vinte milhões de barris por dias. Todo dia.
— Você acha que algum dia construirão um petroleiro de um milhão de toneladas, Scrag?
— É claro. É claro que construirão, se quiserem, Ed. — O navio passou por baixo deles. — Está com a bandeira da Libéria — disse Scragger, distraidamente.
— Você tem olhos de águia.
— É a minha vida regrada, meu chapa.
Scragger deu uma olhada pela cabine. Todos os passageiros estavam em seus lugares, presos com cintos de segurança, vestindo jaquetas salva-vidas Mae West, conforme o regulamento, com protetores de orelha, lendo ou olhando pela janela. Tudo normal, pensou. Sim, e os instrumentos estão normais, os sons normais, eu estou normal e Ed também. Então por que estou inquieto?, perguntou a si mesmo, virando-se para trás mais uma vez.
Por causa da força-tarefa, por causa do radar de Kish, por causa dos passageiros, porque é seu aniversário, e principalmente porque você está voando e o único meio de se manter vivo voando é permanecer inquieto. Amém. E riu alto.
— Qual é a graça, Scrag?
— E você. Então você pensa que é um piloto, certo?
— É claro, Scrag. — Disse Vossi, cautelosamente.
— Está bem. Já localizou Siri Três?
Vossi sorriu e apontou para a plataforma distante que mal se conseguia ver no meio da névoa, um pouco a leste do grupo de tanques.
— Então feche os olhos — ordenou Scragger, com um sorriso satisfeito.
— Vamos, Scrag, é claro que isto é um vôo de controle, mas e...
— Eu peguei os controles — disse Scragger alegre. Na mesma hora, Vossi largou os controles. — Agora feche os olhos porque você está em treinamento.
Confiantemente, o rapaz tornou a olhar para a plataforma, ajustou seu fone de ouvido, tirou os óculos escuros e obedeceu.
Scragger entregou a Vossi o par de óculos especiais que tinha mandado fazer.
— Tome, ponha estes óculos e só abra os olhos quando eu mandar. Fique preparado para assumir o controle.
Vossi pôs os óculos e, suavemente, ainda com os olhos fechados, estendeu as mãos e os pés, mal tocando os controles, como sabia que Scragger gostava.
— OK. Pronto, Scrag. — Pode assumir.
Imediatamente Vossi assumiu o controle, com firmeza e suavidade, e ficou satisfeito com a perícia com que a troca fora feita, o helicóptero se mantendo reto e nivelado. Agora, voava guiado apenas pelo ouvido, tentando antecipar a menor variação no barulho do motor — diminuição ou alimento — que pudesse indicar se estava subindo ou descendo. Houve uma pequena mudança. Corrigiu direitinho, sentindo, quase antes que ocorresse, que o grau de inclinação aumentava, logo os motores estavam ganhando velocidade e portanto o helicóptero estava mergulhando. Fez a correção necessária e tornou a nivelá-lo.
— Boa, cara — disse Scragger, aprovadoramente. — Agora abra os olhos.
Vossi tinha esperado óculos comuns de treinamento que excluíam a visibilidade exterior mas permitiam ver os instrumentos. Mas encontrou-se numa escuridão total. Entrando em pânico, sua concentração desapareceu e com ela a coordenação. Por um segundo, ficou inteiramente desorientado, o estômago embrulhado, imaginando que o aparelho fosse ficar desgovernado. Mas não ficou. Os controles permaneceram firmes nas mãos de Scragger.
— Jesusss — exclamou Vossi, sem fôlego, lutando contra o enjôo, levantando as mãos automaticamente para arrancar os óculos.
— Não tire os óculos! Ed, isto é uma emergência, você é o piloto, o único piloto a bordo e está em dificuldades... você não consegue enxergar. O que vai fazer? Pegue os controles! Vamos! Emergência!
Havia bile na boca de Vossi e ele cuspiu, com as mãos e os pés tremendo. Pegou os controles, corrigiu demais e quase gritou de medo quando deram uma guinada, pois estava esperando que Scragger ainda estivesse controlando-os. Mas não estava. Novamente Vossi corrigiu demais, totalmente desorientado. Desta vez Scragger corrigiu o erro.
— Acalme-se, Ed — ordenou. — Escute o maldito motor! Mantenha as mãos e os pés sincronizados. — Depois, com mais gentileza: — Firme agora, está indo bem, fique firme. Você vomita depois. Você está numa emergência, tem que pousar o aparelho, e há treze passageiros aos seus cuidados. Estou aqui a seu lado mas não sou um piloto. Agora, o que vai fazer?
As mãos e os pés de Vossi estavam novamente sincronizados e ele prestava atenção ao barulho do motor.
— Eu não posso ver, mas você pode?
— Claro.
— Então você pode me orientar!
— Claro! — A voz de Scragger ficou mais urgente. — É lógico que você precisa fazer as perguntas certas. Controle de Kish, HST saindo de trezentos em direção a Siri Três.
— Roger, HST.
— De agora em diante, meu nome é Bart — disse Scragger com uma voz diferente. — Sou um operário de um dos poços. Não entendo nada de vôo, mas posso ler um mostrador, se você me disser onde olhar.
Alegremente, Vossi entrou na brincadeira e fez as perguntas certas, com 'Burt' forçando-o a ir até os limites do seu conhecimento de controle de vôo, dos painéis, de onde estavam os mostradores, obrigando-os a só perguntar aquilo que um amador pudesse entender e responder. De vez em quando, se as perguntas não eram suficientemente precisas, Burt ficava histérico e dizia: Jesus, não consigo encontrar o mostrador, qual é o mostrador, pelo amor de Deus, são todos iguais! Explique de novo, mais devagar, oh, Deus, vamos todos morrer...
Para Vossi, só havia escuridão. O tempo não passava, não havia nem mostradores nem ponteiros que o tranqüilizassem, nada a não ser a voz que o forçava até o limite de sua resistência.
A 15 metros da chegada, com Burt avisando que estavam para pousar, Vossi sentiu-se nauseado, apavorado pela escuridão, sabendo que a pequena pista de pouso estava vindo ao seu encontro. Ainda dá tempo de interromper o pouso, de acelerar e me mandar daqui, mas quanto tempo?
— Agora você está a três metros de altura e a dez metros de distância, como queria.
Imediatamente, Vossi fez o helicóptero flutuar, coberto de suor.
— Perfeito, bem em cima do alvo, como queria.
A escuridão nunca fora tão intensa. Nem o seu medo. Vossi murmurou uma prece. Suavemente, foi diminuindo a potência. Pareceu levar uma vida inteira, e então os esquis tocaram o solo e eles estavam no chão. Por um momento, não acreditou. Seu alívio foi tão intenso que quase chorou de alegria. Depois, de muito longe, ouviu a voz de Scragger e sentiu-o tomar os controles.
— Deixe comigo, cara! Foi uma beleza, Ed. Nota dez. Pode deixar comigo, agora.
Ed Vossi tirou os óculos. Estava ensopado, com o rosto lívido, e escorregou no assento, mal enxergando o que se passava na plataforma diante dele, a pesada rede de corda esticada sobre o campo de pouso que mal tinha trinta metros de diâmetro. Jesus, estou no chão, estamos no chão, em segurança.
Scragger tinha posto o motor em ponto morto; não havia necessidade de desligar já que era uma parada curta. Ele cantarolava 'Waltzing Matilda', o que só fazia quando muito satisfeito. O rapaz saiu-se muito bem, pensou, mas quanto tempo ele vai levar para se recuperar? É sempre bom saber, e ficar alerta — quando se voa com alguém.
Ele se virou e fez um sinal com o polegar para cima para o homem que estava sentando no assento da frente, um dos engenheiros franceses que tinham vindo verificar o equipamento elétrico recentemente instalado neste poço. Os outros passageiros esperavam com paciência. Quatro eram japoneses, convidados dos funcionários e engenheiros franceses da EPF. Scragger tinha ficado inquieto por levar japoneses — trazia-lhe lembranças dos seus dias de guerra, recordações das perdas australianas no Pacífico e dos milhares que morreram nos campos de concentração japoneses e na ferrovia de Burma. Verdadeiros assassinatos, disse a si mesmo sombriamente, depois desviou a atenção para o desembarque.
O engenheiro abrira a porta e agora ajudava os trabalhadores iranianos a retirar a carga. Estava quente e úmido, e enervante, o ar tresandava a fumaça de petróleo. A cabine, como sempre, escaldante, com muita umidade, mas Scragger sentia-se bem. Os motores roncavam normalmente. Ele olhou para Vossi, ainda recostado no assento, com as mãos atrás da cabeça, tentando recuperar-se.
Ele é um bom rapaz, pensou Scragger, em seguida a voz que dominava a cabine atrás dele atraiu-lhe a atenção. Era George de Plessey, chefe dos funcionários franceses e gerente da EPF. Estava sentado no braço de um dos assentos, fazendo mais um dos seus intermináveis discursos, desta vez para os japoneses. Melhor do que eu, pensou Scragger, achando graça. Conhecia Plessey há três anos e gostava dele — por causa da comida francesa que fornecia e pela qualidade do seu bridge, do que ambos gostavam, mas não por sua conversa. Esse pessoal do petróleo é todo igual, só sabem falar de petróleo, e só querem falar disso, e para eles o resto da humanidade só está na terra para consumi-lo, pagar o diabo por ele até a morte — e até os crematórios são quase todos alimentados a óleo. Maldição! O petróleo subiu para US$14,80 o barril, há dois anos custava US$4,80 e alguns anos antes, US$1,80. Malditos saltea-dores, todos eles, a OPEP, as Sete Irmãs, e até o petróleo do mar do Norte.
— Todos estes poços são sustentados por pilares colocados no fundo do mar — dizia de Plessey — todos foram construídos e são operados por franceses...
Usava uma roupa cáqui e tinha cabelos louros e ralos e o rosto queimado de sol. Os outros franceses estavam conversando e discutindo. Isso é tudo o que eles sabem fazer, pensou Scragger, além de comer, beber e dar em cima de tudo quanto é mulher. Como aquele chato do Jean-Luc, o conquistador-mor de todos. Pelo menos, eles são todos diferentes — não como aqueles outros chatos. Os japoneses eram todos baixos, flexíveis e bem-arrumados, todos se vestiam do mesmo jeito: camisa branca de manga curta, gravata escura, calca escura e sapato escuro, os mesmos relógios digitais, óculos escuros; a única diferença estava nas idades. Como as sardinhas de uma lata, pensou Scragger.
— ...A água aqui, como em todo o golfo, é muito rasa, Monsieur Kasigi — dizia de Plessey. — Aqui só chega a trinta metros, e é fácil achar petróleo a cerca de trezentos metros. Temos seis poços nesta parte do campo que chamamos de Siri Três, estão todos em funcionamento, são ligados por oleodutos aos nossos tanques de estocagem na ilha Siri. A capacidade dos tanques é de três milhões de barris e todos os tanques estão cheios.
— E o cais de Siri, Monsieur de Plessey? — Kasigi, o grisalho porta-voz dos japoneses, perguntou, num inglês claro e cuidadoso. — Não consegui vê-lo quando sobrevoamos a ilha.
— Estamos carregando em alto-mar no momento. Planejamos construir um embarcadouro no próximo ano. Enquanto isso, não será problema carregar seus petroleiros, Monsieur Kasigi. Garantimos um serviço rápido, um carregamento rápido. Afinal de contas, somos franceses. Amanhã o senhor verá. O seu Rikomaru se atrasou?
— Não. Estará aqui ao meio-dia. Qual a capacidade deste campo?
— Ilimitada — disse o francês, rindo. — No momento, só estamos retirando 75 mil barris por dia, mas, bon Dieu, no fundo do mar há um lago de petróleo.
— Capitão Excelência! — Na janela ao lado de Scragger apareceu o rosto sorridente do jovem Abdullah Turik, da equipe de bombeiros. — Eu bem, muito bem, o senhor?
— Muito bem, rapaz. E como estão as coisas?
— Estou feliz em vê-lo, capitão Excelência.
Há cerca de um ano, a base de Scragger, em Lengeh, fora alertada de que havia uma emergência neste poço. No meio de uma noite horrível o administrador iraniano comunicara que o bombeiro talvez estivesse com apendicite aguda e perguntava se eles podiam chegar lá o mais rápido possível, assim que amanhecesse — porque os vôos noturnos eram proibidos no Irã, exceto para emergências. Scragger estava de serviço e partira imediatamente — fazia parte da política da companhia ir imediatamente, mesmo com condições precárias de vôo, isto fazia parte do seu serviço especial. Ele tinha apanhado o rapaz, levara-o para o Hospital Naval Iraniano, em Bandar Abbas, e convencera o hospital a aceitá-lo. Se não fosse por isso, o rapaz teria morrido.
Desde então, o rapaz estava sempre ali para cumprimentá-lo, e uma vez por mês, havia sempre uma perna de carneiro na base, por mais que Scragger tentasse impedi-lo por causa da despesa. Uma vez, ele visitou a aldeia, no interior de Lengeh, onde o rapaz nascera. Era como as outras: sem instalações sanitárias, sem eletricidade, sem água, chão de terra, paredes de barro. O Irã era muito primitivo fora das cidades, mas, mesmo assim, ainda melhor do que o interior na maioria dos Estados do golfo. A família de Abdullah era como todas as outras, nem melhor nem pior. Muitos filhos, nuvens de moscas, algumas cabras e galinhas, uns poucos hectares de terra, mas breve, dissera o pai dele, breve vamos ter a nossa própria escola, piloto Excelência, e nosso próprio fornecimento de água e, um dia, eletricidade e, sim, é verdade, estamos muito melhor trabalhando no nosso petróleo que os estrangeiros extraem... graças a Deus por Ele nos ter dado o petróleo. Graças a Deus por ter permitido que meu filho Abdullah vivesse, foi a Vontade de Deus que persuadiu Vossa Excelência a ter tanto trabalho. Deus seja louvado!
— Como vão as coisas, Abdullah? — repetiu Scragger, apreciando o rapaz, que era moderno, diferente do pai.
— Bem. — Abdullah chegou mais perto, colocando o rosto quase do lado de dentro da cabine. — Capitão, disse hesitante, já não sorrindo mais, com a voz tão baixa que Scragger teve de se inclinar para a frente para ouvir. — Vai haver muita confusão, logo... Comunistas de Tudeh, mujhadins, talvez fedayins. Armas e explosivos, talvez um navio em Siri. Perigo. Por favor, não diga quem avisou, sim? — Depois tornou a colocar o sorriso no rosto e falou em voz alta: — Feliz aterrissagem, e torne a voltar logo, aga. — Acenou uma vez e, escondendo o nervosismo, foi se juntar aos outros.
— Claro, claro, Abdullah. — murmurou Scragger. Havia um certo número de iranianos observando, mas isso era comum. Os pilotos eram apreciados por serem o único elo de ligação em uma emergência. Viu o chefe de pouso dar o sinal com os polegares. Automaticamente, virou-se e checou se tudo estava trancado e se todos estavam de volta a seus lugares.
— Posso pilotar, Ed?
— Claro, Scrag.
A trezentos metros de altura, Scrag nivelou o aparelho, rumando para Siri Um, onde os outros passageiros deveriam desembarcar. Estava muito perturbado. Atirem pedras nos corvos, pensou. Uma bomba poderia fazer Siri Um explodir dentro do golfo. Era a primeira vez que havia qualquer rumor de problemas. O campo de Siri nunca fora afetado por nenhuma das greves que tinham fechado todos os outros campos, principalmente, conforme acreditavam os estrangeiros, porque a França dera asilo a Khomeini.
Sabotagem? O japonês não disse que amanhã chegaria um petroleiro? Sim, disse. O que fazer? Nada, no momento, apenas deixar Abdullah de lado por algum tempo — agora não é hora, não quando se está pilotando.
Olhou para Vossi. Ed saiu-se bem, muito bem, melhor do que... melhor do que quem? Sua mente percorreu todos os pilotos que treinara nesses anos. Centenas. Voava desde os 15 anos; em 1933, na Real Força Aérea Australiana, com 17 anos, Spitfires em 1939, como tenente da Aeronáutica, depois, em 1945, nos helicópteros e, em 1949, Coréia, saindo depois de vinte anos de serviço, ainda como tenente, ainda brigão, e com apenas 37 anos. Ele riu. Na Força Aérea estava sempre sendo repreendido.
— Pelo amor de Deus, Scragger, porque logo com o vice-almirante? Desta vez você se excedeu...
— Mas Wingco, foi o inglês quem começou, o filho da mãe disse que todos nós, australianos, éramos ladrões, tínhamos marcas de correntes em volta dos pulsos, e descendíamos de condenados!
— Ele disse? Esses malditos ingleses são todos iguais, Scrag, embora ele provavelmente tenha razão no seu caso, já que sua família sempre esteve na Austrália, mas mesmo assim você vai perder outra vez a promoção e se não se comportar vou impedir você de voar para sempre.
Mas nunca o fizeram. Como poderiam? Várias condecorações, 16 mortes, e três vezes mais missões, alegremente aceitas, do que qualquer outro em toda a RAAF. E ainda estava voando, que era tudo o que ele queria no mundo, ainda estava tentando ser o melhor e o mais prudente, e ainda querendo sair de uma situação de perigo com todos os passageiros a salvo. Se você pilota helicópteros, não pode ter falhas técnicas, pensou, sabendo que tivera sempre muita sorte. Não como alguns, tão bons pilotos quanto ele, que tinham dado azar. Você tem de ter sorte para ser um bom piloto.
Tornou a olhar para Vossi, contente de que não houvesse uma guerra, que era o maior campo de provas para um piloto. Não gostaria de perder o jovem Ed, ele é um dos melhores da S-G. Agora, qual foi o melhor dentre os que voaram com você? Charlie Pettikin, é claro, mas esse tinha mesmo de ser, fora piloto de táxi aéreo e passara por muitos apertos. Tom Lochart a mesma coisa. O sujo do Duncan McIver ainda é o melhor de todos, mesmo estando no chão, ele que vá para o inferno com o seu maldito exame médico trimestral — mas eu seria tão duro e tão cuidadoso com ele, se eu é que estivesse no chão e ele estivesse voando por aí aos 63 anos como se fosse um filhote de passarinho. Coitado.
Scragger deu de ombros. Se o DAC adotar os novos regulamentos a respeito de idade e aposentadoria obrigatória, estou frito. No dia em que não puder mais voar, vou para o céu, não há nenhuma dúvida quanto a isso.
Ainda faltava bastante para chegar a Siri Um. Pousava lá três vezes por semana, há mais de um ano. Mesmo assim, programava cada descida como se fosse a primeira vez. A segurança não é um acaso, precisa ser planejada, pensou.
— Hoje faremos um pouso bem suave em...
— Scrag.
— Sim, meu filho?
— Você me deu um susto dos diabos.
— Você deu um susto dos diabos em si mesmo, esta é a lição número um — disse rindo. — O que mais você aprendeu?
— Acho que aprendi como é fácil entrar em pânico, como você se sente solitário, impotente, e aprendi a abençoar os meus olhos. — Vossi disse quase gritando: — Acho que aprendi o quanto sou mortal, porra. Cristo, Scrag, eu fiquei com medo... me cagando de medo.
— Quando isso aconteceu comigo eu sujei as calças.
— Hein?
— Eu estava voando perto do Kuwait, num 47G2, nos velhos tempos, na década de sessenta. — O 47G2 era um Bell pequeno, de três lugares, com motor a explosão e a forma de uma bolha, que agora é usado pela polícia e para controle do tráfego. — O helicóptero fora alugado por um médico e por um engenheiro da ExTex. Eles queriam ir a um oásis, depois de Wafrah, onde tinham uma emergência. Um pobre infeliz enfiara a perna numa perfuratriz. Bem, estávamos voando sem as portas, como é comum no verão, fazia uns quarenta graus, um tempo seco e desagradável tanto para homens quanto para helicópteros, como só o deserto tem, pior do que o nosso deserto lá na Austrália, muito pior, mas eles nos prometeram pagamento em dobro e uma gratificação extra, então o meu velho camarada, Forsyth, me apresentou como voluntário. Não era um dia muito ruim em se tratando de desertos, Ed, embora os ventos fossem quentes e traiçoeiros, você sabe, o normal: súbitas ventanias que levantavam nuvens de areia, formando perigosos redemoinhos. Eu estava a uns cem metros, descendo, quando fomos atingidos pela nuvem de areia — uma areia tão fina que você mal pode vê-la. Só Deus sabe como foi que ela entrou nos meus óculos de vôo, mas num instante nós estávamos bem e no outro tossíamos e cuspíamos e meus olhos estavam tão cheios de areia que eu fiquei mais cego que um velho pirata da perna de pau.
— Você está brincando!
— Não, é verdade. Juro por Deus! Não conseguia ver nada, não podia abrir os olhos, e era o único piloto, com dois passageiros a bordo.
— Jesus, Scrag, os dois olhos?
— Os dois olhos, e nós ficamos balançando entre o céu e o inferno até que consegui nivelar um pouco o avião e acalmar o coração. O médico não conseguia tirar a areia, e toda a vez que ele tentava ou que eu tentava, nós quase virávamos de barriga para cima... você sabe como o G2 é sensível. Eles estavam tão em pânico quanto eu e isso não ajudava nem um pouco. Foi quando compreendi que a única chance que nós tínhamos era pousar daquele jeito, cego. Você disse que quase se cagou de medo, bem, quando encostei o helicóptero no chão, eu estava todo cagado.
— Jesus, Scrag, você conseguiu mesmo pousar? Como hoje, mas de verdade, com os dois olhos cheios de areia? De verdade?
— Fiz eles me ajudarem a descer, como fiz com você hoje. Pelo menos o médico me ajudou, o outro infeliz tinha desmaiado. — Os olhos de Scragger não tinham se afastado nem por um instante do círculo de pouso. — Como está lhe parecendo?
— Sem grandes dificuldades. — Siri Um estava bem à frente, com a plataforma flutuando no meio da água. Podiam ver o chefe de pouso ladeado por sua equipe de bombeiros obrigatória. A biruta estava cheia pela metade e firme.
Normalmente, Scragger se comunicaria com o radar e começaria a descida gradualmente. Ao invés disso, ele disse:
— Vamos permanecer no alto, hoje, cara, vamos nos aproximar pelo alto e depois deixá-lo cair direto.
— Por que, Scrag?
— Para variar.
Vossi franziu a testa mas não disse nada. Tornou a verificar os mostra-dores para ver se estava tudo em ordem. Estava tudo bem. Exceto uma ligeira estranheza no velho.
Quando estavam em posição lá no alto, sobre a plataforma, Scragger ligou o transmissor:
— Radar de Kish, HST, saindo de trezentos metros em direção a Siri Um.
— OK, HST. Avise quando estiver pronto para iniciar.
— HST.
Na plataforma, estavam preparados para uma aproximação em ângulo inclinado, usada normalmente quando o local de pouso era cercado por edifícios altos, árvores ou mastros. Scragger diminuiu a potência na medida exata. O helicóptero começou a descer suavemente, perfeitamente controlado. Trezentos, 250, 200, 150, 100... Os dois sentiram a vibração nos controles ao mesmo tempo.
— Jesus — murmurou Vossi, mas Scragger já tinha virado o nariz do aparelho para baixo e empurrado a alavanca de controle. Imediatamente, o aparelho começou a descer muito depressa. Sessenta metros, 50, 40, com as vibrações aumentando. Os olhos de Vossi pulavam de um mostrador para o outro, para o círculo de pouso, e outra vez para os mostradores. Ficou rígido no assento, a mente gritando: A cauda do rotor pifou ou a caixa de engrenagens da cauda...
A plataforma de pouso se aproximava rapidamente, a equipe de terra espalhando-se em pânico, os passageiros segurando-se assustados com a descida vertiginosa, Vossi agarrado ao assento para não perder o equilíbrio. Agora, o painel inteiro vibrava e o ruído do motor estava diferente. A qualquer segundo esperava que perdessem completamente a cauda do rotor e aí estariam perdidos. O altímetro marcou 60 metros... 15... 10... 5, e Vossi estendeu as mãos para agarrar os controles e iniciar o balão, mas Scragger se antecipou a ele por uma fração de segundos, deu força total do motor e fez um balão perfeito. Por um instante, o aparelho pareceu ficar pousado, imóvel, no ar, a um metro de altura, com os motores guinchando, depois tocou no chão com força, mas não com muita força, perto da borda do círculo, deslizou para a frente e parou a dois metros do centro.
— Foda — resmungou Scragger.
— Jesus, Scrag — Vossi quase não conseguia falar. — Foi perfeito.
— Oh, não, não foi não. Errei por dois metros. — Com algum esforço, Scragger largou os controles. — Desligue o motor, Ed, o mais depressa que puder! — Abriu a porta e desceu depressa, com o vento das pás chicoteando-o, foi até a porta da cabine e abriu-a. — Fiquem onde estão por um instante — gritou sobre o barulho do motor, aliviado em ver que todos estavam com cintos de segurança e que ninguém se machucara. Obedientemente, eles ficaram onde estavam, dois deles com o rosto cinzento. Os quatro japoneses olharam impassíveis para ele. Gente de sangue-frio, pensou.
— Mon Dieu — gritou George de Plessey. — O que foi que aconteceu?
— Não sei, acho que é a cauda do rotor... assim que o rotor parar nós..
— Que diabo você pretende, Vossi! — Era Ghafari, o administrador iraniano, que tinha enfiado a cara na janela do piloto, tensa de raiva. — Como ousou fazer um exercício de pouso aqui neste poço? Vou denunciá-lo por voar perigosamente!
— Era eu que estava pilotando e não o capitão Vossi! — Disse Scragger e, de repente, o enorme alívio por ter descido em segurança, misturado com o ódio que sentia por aquele homem fez seu temperamento explodir. — Suma-se Ghafari, suma-se ou acabo com você de uma vez por todas! — Levantou os punhos, pronto para brigar. — DESAPAREÇA!
Os outros olhavam, estarrecidos. Vossi pálido. Ghafari, mais alto e mais pesado que Scragger, hesitou e depois sacudiu o punho na cara de Scragger, xingando-o em farsi, em seguida gritou em inglês, querendo provocá-lo:
— Porco estrangeiro! Como você ousa me xingar, me ameaçar? Vou fazer com que você seja proibido de pilotar por vôo perigoso e seja expulso do Irã. Vocês, seus cães, pensam que são os donos do nosso céu...
Scragger deu um pulo para a frente, mas Vossi colocou-se rápido entre eles e bloqueou o golpe com seu peito largo.
— Você não está sabendo de nada, cara. Ei, sinto muito, Scrag, mas precisamos dar uma olhada na cauda do rotor, Scrag, Scrag, meu velho, a cauda do rotor!
Scrag levou alguns segundos para se acalmar. Seu coração estava disparado e ele viu todo mundo olhando para ele. Com um grande esforço, conseguiu controlar a raiva.
— Você... você tem razão, Ed. — Depois virou-se para Ghafari. — Nós tivemos uma... uma emergência. — Ghafari começou a zombar e a raiva de Scragger tornou a subir, mas desta vez ele a controlou.
Eles foram para a popa. Muitos operários do poço, europeus e iranianos, se comprimiam em volta deles. A cauda do rotor parou. Faltava quase um metro em uma das lâminas, numa falha irregular. Quando Vossi experimentou o suporte principal viu que ele estava completamente solto — a tremenda torção causada pelo desequilíbrio das lâminas o destroçara. Atrás dele, um dos passageiros andou até a beirada da plataforma e vomitou violentamente.
— Jesus — murmurou Vossi — poderia parti-lo com um dedo. Ghafari rompeu o silêncio com seus protestos.
— Um caso claro de manutenção malfeita, pondo em perigo as vi...
— Cale a boca, Ghafari — falou de Plessey, zangado. — Merde, estamos todos vivos e devemos nossas vidas ao capitão Scragger. Ninguém poderia prever uma coisa dessas, os padrões da S-G são os mais altos do Irã.
— Isto será comunicado, sr. de Plessey e..
— Por favor, faça isto, e lembre-se de que eu recomendarei o capitão por sua perícia. — De Plessey estava imponente na sua raiva. Ele detestava Ghafari, considerava-o um criador de casos, abertamente pró-Khomeini numa hora, incitando os trabalhadores a fazerem greve, desde que não houvesse nenhuma polícia ou força militar pró-xá nas vizinhanças, e em seguida servilmente pró-xá, punindo os operários pela menor infração. Porco estrangeiro, hein? — Lembre-se também de que este é um consórcio franco-iraniano e a França, como posso dizer, a França não foi hostil ao Irã na sua hora de necessidade
— Então o senhor deveria insistir para que Siri fosse atendido apenas por franceses e não por velhos! Vou comunicar este incidente imediatamente. — Ghafari retirou-se.
Antes que Scragger pudesse dizer ou fazer alguma coisa, de Plessey pôs as mãos nos ombros dele e beijou-o em ambas as faces, além de apertar-lhe a mão com o mesmo calor.
— Obrigado, mon cher ami! — Houve aplausos calorosos dos franceses que davam parabéns uns aos outros e rodeavam Scragger, abraçando-o respeitosamente. Depois Kasigi deu um passo à frente.
— Domo — disse com formalidade, e para maior embaraço de Scragger, os quatro japoneses curvaram-se diante dele ao mesmo tempo, sob mais aplausos dos franceses e muitos tapas nas costas.
— Obrigado, capitão — Kasigi repetiu, ainda formal. — Sim, nós entendemos e agradecemos. — Aí sorriu e ofereceu-lhe seu cartão com as duas mãos e mais uma curvatura. — Yoshi Kasigi, Indústrias Toda de Navegação. Obrigado.
— Não foi assim tão difícil, sr., ahn, sr. Kasigee — disse Scragger, tentando vencer o embaraço, já tendo dominado a raiva, recuperando o controle, embora prometesse a si mesmo que um dia desses pegaria Ghafari sozinho. — Nós temos, ahn, nós temos equipamento próprio para flutuar, tínhamos muito espaço e poderíamos ter descido na água. É o nosso trabalho. O nosso trabalho é colocar o aparelho no chão em segurança. O Ed... — Sorriu cordialmente para Vossi, sabendo que ao se meter no meio, o rapaz o salvara de um adversário que ele não poderia vencer. — O capitão Vossi teria feito a mesma coisa. Facilmente. Não foi das piores... eu só quis poupá-los de se molharem, embora a água esteja quente e boa, mas nunca se sabe, pode haver tubarões...
A tensão se quebrou e todos riram, embora um tanto nervosamente, pois a maior parte do golfo e das desembocaduras dos rios que o alimentavam estava infestada por tubarões. As águas mornas e a abundância de restos de comida e esgoto não tratado que os povos do golfo despejavam nele, há milênios, encorajavam os peixes de todas as espécies. Especialmente tubarões. E como todos os restos de comida e dejetos humanos das plataformas eram atirados nas águas, os tubarões costumavam ficar por perto.
— O senhor já viu algum bem grande, capitão?
— Sem dúvida. Um tubarão-martelo que se escondia ao largo da ilha Kharg. Fiquei sediado lá por dois anos e costumava vê-lo uma ou duas vezes a cada dois ou três meses. Devia ter uns oito, talvez dez metros. Já vi muitas arraias gigantescas, mas esse foi o único tubarão realmente grande.
— Merde a todos os tubarões — disse de Plessey estremecendo. — Quase fui apanhado uma vez em Siri e estava, como é que vocês dizem mesmo, ah, sim, estava molhando os pés no rasinho, mas o tubarão veio para o raso atrás de mim e veio tão depressa que encalhou. Tinha uns três metros de comprimento. Demos seis tiros nele, mas o bicho ainda saltou e tentou nos pegar e levou horas para morrer e mesmo depois que morreu nenhum de nós queria chegar perto dele. Tubarões! — Tornou a olhar para a lâmina partida. — Fico satisfeito por estar na plataforma.
Todos concordaram. Os franceses começaram e conversar, gesticulando, dois foram descarregar umas cestas e um outro foi ajudar o homem que ainda estava vomitando. Riggers foi dar uma volta. Os japoneses esperavam e observavam.
— Só para dar sorte, hein, Scrag? — disse Vossi, tocando supersticiosamente na lâmina.
— Por que não? Para sorte sua e dos passageiros, foi um bom pouso.
— O que foi que causou o defeito? — perguntou de Plessey.
— Não sei, cara — respondeu Scragger. — Havia um bando de pequenos pássaros marinhos em Siri Três, andorinhas-do-mar, eu acho. Um deles pode ter entrado no rotor e causado um ponto de tensão. Não senti nada, mas não daria mesmo para sentir. Sei que o rotor estava perfeito esta manhã porque nós o checamos como fazemos rotineiramente. — E deu de ombros. — Ato de Deus.
— Oui. Espèce de con! Não gosto de estar assim tão perto de um ato de Deus. — Franziu a testa ao olhar para a plataforma de decolagem. — Um 206 ou um Alouette poderia pousar aqui para nos apanhar?
— Vamos mandar buscar um outro 212 e estacionar o nosso pássaro daquele lado. — Scragger apontou para a parte de dentro da plataforma de decolagem, perto da pilha alta que o guindaste ia formando. — Temos rodas no nosso compartimento de bagagem, de modo que não será nenhum esforço nem vai significar nenhum atraso para vocês.
— Ótimo. Então vamos deixar as providências com você. Os outros venham comigo — disse de Plessey, com ar de importância. — Acho que precisamos de um pouco de café e de um copo de Chablis gelado.
— Pensei que todos os poços estivessem sujeitos à lei seca — disse Kasigi.
De Plessey levantou as sobrancelhas.
— E estão, monsieur. É claro. Os iranianos e os não franceses. É claro. Mas os nossos poços são franceses e estão sujeitos ao Código Napoleão. — E acrescentou grandiosamente: — Devemos celebrar a nossa chegada em segurança, e hoje vocês são convidados da Belle France, então podemos ser civilizados e quebrar o regulamento. Para que servem os regulamentos a não ser para serem quebrados? É claro. Vamos logo, depois iniciaremos a visita e ouviremos as explicações.
Todos o seguiram, exceto Kasigi.
— E o senhor, capitão? — perguntou. — O que é que o senhor vai fazer?
— Vamos esperar. O helicóptero trará peças sobressalentes e mecânicos — disse Scragger, pouco à vontade, não gostando de estar tão perto de um japonês, incapaz de apagar a lembrança de tantos amigos mortos na guerra, tão jovens, com ele ainda vivo, além da pergunta constante, incômoda, por que eles e não eu? — Vamos esperar até que seja consertado, depois iremos para casa. Por quê?
— E quando será isto?
— Antes do pôr-do-sol. Por quê?
— Com a sua permissão, gostaria de regressar com o senhor. — E Kasigi tornou a olhar para a lâmina.
— Isto... isto depende do capitão Vossi. Oficialmente, ele é o comandante desta aeronave. — Kasigi voltou sua atenção para Vossi. O jovem piloto conhecia a antipatia de Scragger pelos japoneses, mas não podia entendê-la. Pouco antes de levantarem vôo, ele dissera: "Que diabo, Scrag, a Segunda Guerra Mundial foi há um milhão de anos. O Japão é nosso aliado agora, o único aliado importante que temos na Ásia." Mas Scragger respondera: "Deixe isto para lá, Ed." E Ed deixara.
— Era melhor, era melhor o senhor voltar com os outros, sr. Kasigi, é impossível dizer quanto tempo vamos demorar.
— Helicópteros me põem nervoso. Prefiro voar com vocês, se não se importarem. — Kasigi tornou a olhar para Scragger, olhos duros no rosto marcado. — Foi uma situação difícil. O senhor quase não teve tempo, no entanto o senhor virou a menos de cem metros e fez um pouso perfeito, bem na mosca. Foi incrível. Incrível. Uma coisa eu não entendo: por que o senhor estava tão alto na hora da descida? — Percebeu o olhar que Vossi lançou a Scragger. Ah, pensou, você também está se perguntando isso. — Não há nenhum motivo num dia como este, há?
— O senhor pilota helicópteros? — E Scragger encarou-o, ainda mais nervoso.
— Não, mas já voei neles o suficiente para saber quando há complicações. O meu negócio são os petroleiros e, portanto, os campos de petróleo, aqui no Golfo, no Iraque, na Líbia, no Alasca, em toda parte, e até mesmo na Austrália. — Kasigi deixou que o ódio passasse por ele. Estava acostumado com isso. Sabia o motivo, pois agora fazia muitos negócios na Austrália, muitos mesmo. Uma parte do ódio era merecida. Uma parte. Não importa, os australianos vão mudar, vão ter que mudar. Afinal de contas, nós controlamos uma parte considerável de suas matérias-primas e logo controlaremos muito mais. É curioso que consigamos fazer economicamente com tanta facilidade o que não conseguimos fazer militarmente. — Por favor, por que o senhor escolheu uma aproximação pelo alto hoje? Numa aproximação normal, estaríamos agora no fundo do mar. Por quê?
Scragger deu de ombros, querendo terminar a conversa.
— Chefe — perguntou Vossi —, por quê?
— Sorte.
— Se o senhor me permite — Kasigi deu um meio-sorriso —, eu gostaria de voar de volta com o senhor. Uma vida por uma vida, capitão. Por favor, guarde meu cartão. Talvez um dia eu possa prestar-lhe algum serviço. — Inclinou-se respeitosamente e se afastou.
11:56H. — Explosivos em Siri, Scrag? — de Plessey estava chocado.
— Pode haver — respondeu Scragger, também em voz baixa. Estavam na extremidade da plataforma, bem longe de todo mundo, e ele acabara de contar a de Plessey o que Abdullah lhe sussurrara.
O segundo 212 já estava lá há algum tempo, esperando as ordens de Plessey para levar seu grupo até Siri, onde almoçariam. Os mecânicos tinham retirado a maior parte da cauda do 212 de Scragger e concluíram o conserto, com Vossi observando atentamente. O novo rotor e a caixa de engrenagens já estavam no lugar.
— Explosivos podem ser colocados em qualquer lugar, em qualquer lugar.
— Disse de Plessey, com desânimo. — Até uma quantidade pequena de explosivos bastaria para arruinar todo o nosso sistema de bombeamento. Madonna, seria um plano perfeito para diminuir ainda mais as chances de Bakhtiar, ou de Khomeini, de fazer a situação voltar ao normal.
— Sim. Mas tenha cuidado ao usar esta informação e, pelo amor de Deus, guarde-a só para você.
— É claro. Este homem estava em Siri Três?
— Em Lengeh.
— Hein? Então por que não me disse isso de manhã?
— Não houve tempo. — Scragger olhou em volta, para ter certeza de que não havia ninguém por perto. — Tenha cuidado, faça o que fizer. Esses fanáticos não dão um vintém por nada nem por ninguém e se eles acharem que vazou alguma informação, que alguém deu com a língua nos dentes, haverá cadáveres flutuando daqui até Ormuz.
— Concordo. — De Plessey estava muito preocupado. — Você contou a mais alguém?
— Não, companheiro.
— Mon Dieu, o que fazer? A segurança é... como é possível ter segurança no Irã? Gostando ou não estamos em poder deles. — E acrescentou: — Mais uma vez, obrigado. Tenho que confessar que estava esperando que houvesse sabotagem em Kharg e em Abadan, interessa aos esquerdistas criar ainda mais confusão, mas nunca pensei que viessem para cá.
Pensativamente, debruçou-se na grade e olhou o mar que batia nas pilastras da plataforma. Os tubarões estavam circulando e se alimentando. Agora temos terroristas a nos ameaçar. Os tanques e as bombas de Siri são um bom alvo para sabotagem. E se causarem algum dano a Siri, perderemos anos de planejamento, anos de petróleo de que a França necessita desesperadamente. Petróleo que talvez tenhamos de comprar dos ingleses fedorentos e dos seus campos fedorentos do mar do Norte — como ousam ter tanta sorte com seus 1,3 milhões de barris por dia, e que continuam aumentando?
Por que não existe petróleo nas nossas costas ou na Córsega? Os malditos ingleses com sua hipócrita filosofia de vida! De Gaule estava certo em mantê-los fora da Europa, e agora que nós — porque temos bom coração — os aceitamos, mesmo sabendo que são uns filhos da mãe mentirosos, eles não querem partilhar sua sorte conosco, seus sócios. Só fingem estar junto conosco no MCE, mas sempre foram contra nós e sempre vão ser. O Grande Charles tinha razão sobre eles, mas estava inteiramente enganado a respeito da Argélia. Se nós ainda tivéssemos a Argélia, seu solo e portanto seu petróleo, estaríamos ricos, satisfeitos, com a Inglaterra e a Alemanha e todo o resto lambendo os nossos pés
E agora, o que fazer?
Ir para Siri e almoçar. Depois do almoço você vai raciocinar melhor Graças a Deus ainda conseguimos arranjar mantimentos em Dubai, Sharjah e Al Shargaz que continuam sensatos e civilizados: Brie, Camembert, Boursin, alho e manteiga frescos, vindos diariamente da França, e vinho de verdade sem o qual era melhor estar morto. Bem, quase, acrescentou cautelosamente e viu Scragger olhando para ele Sim, mon brave? Estou perguntando o que você vai fazer?
— Ordenar um exercício de segurança — respondeu majestosamente. — Tinha me esquecido da cláusula 56/976 do nosso contrato franco-iraniano que diz que a cada seis meses, por um período de alguns dias, a segurança deve ser checada contra todos os tipos de intrusos para.... para a glória da França e, ahn, do Irã! — Os belos olhos de de Plessey se iluminaram com a beleza do seu discurso. — Sim, é claro que meus subordinados se esqueceram de me lembrar, mas agora vamos nos dedicar aos exercícios com um perfeito entusiasmo francês. Em toda parte, em Siri, nas plataformas, em terra, até em Lengeh! Les crétins! Como ousam pensar que podem sabotar o trabalho de anos? — Olhou em volta. Ainda não havia ninguém por perto. O resto do grupo reunia-se agora perto do segundo 212. — Terei de contar a Kasigi por causa do seu petroleiro — disse em voz baixa. — O alvo poderia ser esse.
— Pode confiar nele? Quer dizer, para fazer tudo em segredo.
— Sim. Somos obrigados, mon ami. Temos que avisá-lo, sim, temos que fazer isso. — De Plessey sentiu o estômago roncando. Meu Deus, pensou, muito perturbado, espero que seja apenas fome e que eu não esteja para ter um ataque de fígado, embora isso não me espantasse, depois de tudo o que aconteceu hoje. Primeiro quase tivemos um acidente, depois nosso piloto mais importante quase briga com aquele barril de merda do Ghafari, e agora a revolução pode chegar até nós. — Kasigi perguntou se podia voltar com vocês. Quando estarão prontos?
— Antes do entardecer, mas ele não precisa esperar por nós, pode voltar com você.
— Entendo por que você não gosta de japoneses. Eu ainda não consigo suportar os alemães. Mas precisamos ser práticos. Ele é um bom freguês e já que pediu, gostaria que você, você, ahn, pedisse a Vossi para levá-lo, mon cher ami. Sim, agora somos amigos íntimos, você salvou nossas vidas, e partilhamos de um Ato de Deus! E ele é um dos nossos melhores fregueses — acrescentou com firmeza. — Muito bem. Obrigado, mon ami. Vou deixá-lo em Siri. Quando estiverem prontos, podem apanhá-lo lá. Conte-lhe o que acabou de me contar. Excelente, então está resolvido, e fique certo de que vou recomendá-lo às autoridades e ao próprio senhor Gavallan. — Tornou a sorrir. — Estou indo, até amanhã.
Scragger observou-o afastar-se. Praguejou silenciosamente. De Plessey era o chefão, logo não havia nada que pudesse fazer e naquela tarde, a caminho de Siri, sentou-se atrás na cabine, suando e detestando estar ali.
— Jesus, Scrag, — dissera Vossi, estarrecido, quando ele lhe comunicou que viajaria atrás. — Passageiro? Você está bem? Tem certeza de...
— Eu só quero ver como é — Scragger respondera, irritado. — Ponha seu rabo no assento do comandante, apanhe aquele chato em Siri e pouse o aparelho como uma pluma em Lengeh ou isto estará no seu maldito relatório.
Kasigi estava esperando na pista. Não havia nenhuma sombra e ele se sentia encalorado, suado e empoeirado. As dunas estendiam-se em direção aos oleodutos e ao complexo de tanques, todos marrons de poeira. Scragger observou os demônios da poeira, pequenos redemoinhos, dançando no solo, e agradeceu às estrelas por poder voar e não ter que trabalhar num lugar daqueles. Sim, os helicópteros são barulhentos e estão sempre vibrando e se desgarrando, pensou, mas sinto falta das alturas, de voar sozinho nos céus, mergulhando, virando de cabeça para baixo e caindo como uma águia para tornar a subir — mas voar é voar e continuo detestando ficar sentado nesta maldita cabine. Pelo amor de Deus, aqui ainda é pior do que em um avião de carreira! Detestava voar sem os controles e nunca se sentia seguro e seu desconforto aumentou quando fez sinal a Kasigi para sentar-se a seu lado e bateu a porta do aparelho. Os dois mecânicos cochilavam nos bancos em frente, os macacões brancos manchados de suor. Kasigi ajustou o colete salva-vidas e apertou o cinto de segurança.
Uma vez lá em cima, Scragger inclinou-se para ele.
— Não há outra maneira de contar-lhe a não ser bem depressa, então lá vai: pode haver um ataque terrorista a Siri, a uma das plataformas, talvez até ao seu navio. De Plessey pediu-me para avisá-lo.
O ar saiu sibilando da boca de Kasigi.
— Quando? — perguntou, por cima do terrível barulho da cabine.
— Não sei. Nem de Plessey. Mas é mais do que possível.
— Como? Como vão sabotar-nos?
— Não faço idéia. Com armas ou explosivos, talvez com uma bomba-relógio, então é melhor aumentar o esquema de segurança.
— Já é o melhor possível — respondeu Kasigi, imediatamente, e então viu o lampejo de raiva nos olhos de Scragger. Por um segundo não conseguiu imaginar a razão, depois lembrou-se do que acabara de dizer. — Ah, sinto muito, capitão. Não quis parecer orgulhoso. É que mantemos padrões muito altos, e nesta águas meus navios estão... — Quase dissera 'em pé de guerra', mas parou a tempo, contendo a irritação por causa da sensibilidade do outro. — Nestas águas, todo mundo é mais do que cuidadoso. Por favor, desculpe-me.
— De Plessey queria que o senhor soubesse. E também que conservasse a boca fec... que mantivesse segredo, para não irritar nenhum iraniano.
— Compreendo. A informação está bem guardada. Mais uma vez obrigado. — Kasigi viu Scragger balançar ligeiramente a cabeça e depois acomodar-se no assento.
Também teve vontade de balançar a cabeça e dar tudo por encerrado, mas como o australiano salvara a vida dos seus companheiros bem como a sua própria, permitindo, portanto, que pudessem continuar servindo à companhia e ao seu líder, Hiro Toda, achou que era seu dever tentar cicatrizar as feridas.
— Capitão — disse o mais baixo que pôde devido ao barulho dos jatos —, compreendo por que nós, japoneses, somos odiados pelos australianos e peço desculpas por todos os Changis, todas as estradas de Burma, e todas as atrocidades. Só posso lhe dizer a verdade: esses fatos são ensinados em nossas escolas e não foram esquecidos. É motivo de vergonha nacional que tenham acontecido.
É verdade, pensou, zangado. Cometer aquelas atrocidades foi estúpido, mesmo que aqueles idiotas não entendessem que estavam cometendo atrocidades — afinal de contas, na maioria dos casos, o inimigo era covarde, renderam-se covardemente aos milhares, perdendo, portanto, o direito de serem tratados como seres humanos de acordo com o nosso Bushido, o nosso código, que determina que render-se é a maior desonra que pode haver para um soldado. Uns poucos erros cometidos por alguns sádicos, por alguns guardas das prisões camponeses e ignorantes — geralmente coreanos comedores de alho — e todos os japoneses tiveram que sofrer as conseqüências para sempre. É uma vergonha para o Japão. E a pior das vergonhas é que nosso líder supremo na guerra faltou ao seu dever e forçou nosso imperador à vergonha de ser obrigado a terminar a guerra.
— Por favor, aceite as minhas desculpas em nome de todos nós. — Scragger olhou-o. Depois de uma pausa disse simplesmente:
— Desculpe, mas não posso. Em primeiro lugar, meu antigo sócio, Forsyth, foi o primeiro homem a entrar em Changi; ele nunca se recuperou do que viu; em segundo lugar, muitos dos meus conterrâneos, não apenas prisioneiros de guerra, foram atingidos. Muitos mesmo. Não posso esquecer. E mais do que isso, não quero esquecer. Não quero, porque se o fizesse esta seria nossa última traição para com eles. Nós os traímos, a todos, na paz... que paz? Nós os traímos, é o que eu acho. Sinto muito, mas é isso.
— Eu compreendo. Mesmo assim podemos fazer as pazes, você e eu. Não?
— Talvez. Talvez com o tempo.
Ah, tempo, pensou Kasigi, confuso. Hoje estive mais uma vez à beira da morte. Quanto tempo nós teremos, você e eu? O tempo não é uma ilusão e toda a vida apenas uma ilusão dentro de ilusões? E a morte? O poema de morte do seu reverenciado ancestral samurai resumia-a perfeitamente: O que são as nuvens, / Senão uma desculpa para o céu? / O que é a vida, / Senão uma fuga da morte?
O ancestral era Yabu Kasigi, daimio de Izu e Baka e partidário de Yoshi Toronaga, o primeiro e o maior dos xoguns Toronaga, que governaram hereditariamente o Japão de 1603 até 1871, quando o imperador Meiji finalmente eliminou o xogunato e declarou ilegal a classe dos samurais. Mas Yabu Kasigi não era lembrado pela lealdade a seu senhor feudal nem pela coragem em batalha — como o era seu famoso sobrinho Omi Kasigi, que lutou por Toronaga na grande batalha de Sekigahara, teve a mão arrancada mas ainda assim comandou o ataque que derrotou o inimigo.
Oh, não, Yabu traiu Toronaga, ou tentou traí-lo, e então recebeu dele a ordem de cometer sepuku — a morte ritual por desventramento. Yabu era reverenciado pela caligrafia do seu poema de morte e pela coragem com que cometeu sepuku. Naquele dia, ajoelhando-se diante dos samurais reunidos, dispensou desdenhosamente o samurai que ficaria em pé atrás dele, com uma longa espada, para terminar mais depressa sua agonia cortando-lhe a cabeça, poupando-o, assim, da vergonha de gritar. Ele apanhou a faca curta e enfiou-a até o cabo no estômago, então, lentamente, fez os quatro cortes, a mais difícil forma de sepuku — para o lado e para baixo, novamente para o lado e para cima — depois arrancou suas próprias entranhas para finalmente morrer, sem ter dado um único grito.
Kasigi estremeceu só de pensar em ter que fazer o mesmo, sabendo que não teria coragem. A guerra moderna não era nada em comparação com aquela época em que se podia receber ordem para morrer assim, por um capricho do seu senhor...
Percebeu que Scragger o observava.
— Também estive na guerra — disse involuntariamente. — Voei em Zeros na China, Malásia e Indonésia. E na Nova Guiné. A coragem na guerra é diferente da... da coragem quando se está sozinho... quer dizer, não em guerra, não é?
— Não compreendo.
Há anos que não recordava a guerra, pensou Kasigi, com uma súbita onda de medo envolvendo-o, lembrando-se do terror constante de morrer ou de ficar aleijado, um terror que o consumira — como hoje, quando teve certeza que todos iam morrer e ele e seus companheiros ficaram paralisados de medo. Sim, e fizemos hoje o que fizemos, durante todos aqueles anos de guerra: lembramos do legado da Terra dos Deuses, engolimos nosso terror como nos ensinaram desde a infância, simulamos calma e equilíbrio para não nos envergonharmos diante dos outros, cumprimos nosso dever para com o imperador enfrentando o inimigo o melhor que pudemos e então, quando ele disse que nos rendêssemos, rendemo-nos, dando graças ao imperador, por maior que fosse a vergonha.
Uns poucos acharam a vergonha insuportável e se mataram da forma antiga, com honra. Será que perdi a honra porque não o fiz? Nunca. Obedeci ao imperador que nos ordenou suportar o insuportável, depois entrei para a firma do meu primo, como me ordenaram, e o tenho servido lealmente para maior glória do Japão. Das ruínas de Yokohama, ajudei a reconstruir as Indústrias Toda de Navegação e a transformá-la em uma das maiores empresas do Japão, construindo enormes navios, inventando os superpetroleiros, maiores a cada ano — e lançando, em breve, o primeiro petroleiro de um milhão de toneladas. Agora nossos navios estão em toda parte, trazendo matéria-prima para o Japão e levando para o exterior produtos manufaturados. Nós, japoneses, somos merecidamente o assombro do mundo. Mas somos vulneráveis — temos que ter petróleo, ou estaremos arruinados.
Por uma das janelas, notou um petroleiro subindo o golfo, outro indo em direção a Ormuz. A ponte continua, pensou. Pelo menos um petroleiro a cada 150 quilômetros daqui até o Japão, ininterruptamente, para alimentar nossas fábricas, sem as quais morreremos de fome. Toda a OPEP sabe disso, eles estão trapaceando e se divertem com isto. Como hoje. Hoje, precisei de toda a minha força de vontade para aparentar calma ao lidar com aquele... aquele francês odioso, fedendo a alho e àquela porcaria fedorenta e nojenta chamada Brie, exigindo descaradamente mais US$ 2,80 acima dos já escandalosos US$ 14,80 e eu, de uma antiga linhagem de samurais, tendo que pechinchar com ele como um chinês de Hong Kong.
— Mas, monsieur de Plessey, o senhor certamente vê que a este preço, mais o frete e...
— Sinto muito, monsieur, mas tenho minhas instruções. Conforme o combinado, os três milhões de barris de petróleo de Siri estão sendo oferecidos primeiro ao senhor. A ExTex quer uma quota, assim como quatro outras grandes companhias. Se o senhor deseja mudar de idéia...
— Não, mas o contrato especifica "ao preço atual da OPEP" e nós...
— Sim, mas o senhor certamente sabe que todos os fornecedores da OPEP estão cobrando um ágio. Não se esqueça que os sauditas planejam diminuir a produção este mês, que na semana passada todos os grandes produtores ordenaram novos cortes por force majeure, que a Líbia também está reduzindo sua produção. A BP aumentou os cortes para 45%...
Kasigi teve vontade de gritar de raiva ao lembrar que quando finalmente concordara, desde que pudesse ter os três milhões de barris, todos pelo mesmo preço, o francês sorrira, docemente, e dissera: "Certamente, desde que o senhor carregue tudo em sete dias". O que ambos sabiam ser impossível. E sabiam também que, naquele momento, uma delegação da Romênia estava no Kuwait em busca de três milhões de toneladas de petróleo, imaginem, só três milhões de barris, para compensar o corte dos seus próprios suprimentos iranianos que chegavam através dos oleodutos iraniano-soviéticos. E que havia outros compradores, dezenas, esperando para se apoderar de sua opção de Siri e de todas as suas outras opções — de petróleo, gás natural, nafta e outros petroquímicos.
— Muito bem, US$ 17,60, o barril — dissera Kasigi, amável. Mas por dentro jurando ir à forra de algum modo.
— Para este petroleiro, monsieur.
— É claro, para este petroleiro — disse, ainda mais amavelmente.
E agora este piloto australiano vem me dizer que mesmo este petroleiro pode correr perigo. Este velho estranho, velho demais para estar pilotando e no entanto tão hábil, tão sabido, tão aberto, e tão idiota — idiota em ser tão aberto, pois assim você se coloca nas mãos dos outros, pensou Kasigi, voltando a encarar Scragger.
— O senhor disse que talvez, com o tempo, pudéssemos fazer as pazes. Nós dois não teríamos mais nenhum tempo hoje, se não fosse por sua habilidade, e sorte, embora nós chamemos isto de carma. Na realidade, não sei quanto tempo nos resta. Talvez amanhã meu navio seja destruído. Eu estarei a bordo. — Deu de ombros. — Carma. Mas sejamos amigos, o senhor e eu. Não acho que estejamos traindo nossos companheiros de guerra, os seus e os meus. — E estendeu a mão. — Por favor.
Scragger olhou a mão estendida. Kasigi forçou-se a esperar. Então Scragger cedeu, balançou a cabeça e apertou a mão com firmeza.
— Está bem, cara, vamos tentar.
Nesse momento, viu Vossi virar-se e fazer-lhe um sinal. Imediatamente Scragger foi para a cabine do piloto.
— Sim, Ed?
Há uma emergência, Ed, de Siri Três. Um dos operários caiu no mar... Foram imediatamente. O corpo estava flutuando perto das pilastras da plataforma. Eles o içaram para bordo. Os tubarões já tinham comido os membros inferiores e um dos braços estava faltando. A cabeça e o rosto estavam muito machucados e curiosamente desfigurados. Era Abdullah Turik.
6
PERTO DE BANDAR DELAM: 16:52H. As sombras estavam maiores. Ao longo da estrada a terra estava ressecada, e depois das encostas rochosas elevavam-se as montanhas com os picos cobertos de neve — a vertente setentrional dos Zagros. Deste lado, perto dos pântanos e riachos que iam dar no porto, a poucos quilômetros dali, localizava-se um dos numerosos oleodutos que entrecruzavam toda a região. O oleoduto era de aço, com meio metro de diâmetro e se apoiava em um cavalete de concreto que penetrava numa galeria sob a estrada prosseguindo, depois, pelo subsolo. A menos de dois quilômetros, a leste, havia uma aldeia — escondida, empoeirada, cor de terra, com casas feitas de barro — e vindo dessa direção, um pequeno carro. Era velho e amassado e andava devagar, mas o motor trabalhava bem, bem demais para o estado da carroceria.
Dentro do carro havia quatro iranianos. Eram jovens, não usavam barba e estavam mais bem vestidos do que o normal, embora todos estivessem manchados de suor e demonstrassem extremo nervosismo. Perto da galeria, o carro parou. Um rapaz de óculos saltou do banco dianteiro e fingiu que urinava na beira da estrada, com os olhos observando tudo em volta.
— Está tudo certo — disse.
Imediatamente, os dois rapazes de trás saltaram, carregando uma mala grossa e pesada, e se enfiaram na galeria. O rapaz de óculos abotoou-se e depois, casualmente, foi até a mala do carro e abriu-a. Embaixo de um pedaço de lona rasgada viu o nariz arrebitado da metralhadora de fabricação tcheca. Ficou um pouco mais calmo.
O motorista desceu e urinou abundantemente dentro da vala.
— Estava com vontade, mas não consegui, Mashoud — disse o rapaz de óculos, invejando-o. Enxugou o suor do rosto e ajeitou os óculos.
— Nunca consigo urinar antes de uma prova — disse Mashoud e riu. — Deus permita que a universidade logo torne a abrir.
— Deus! Deus é o ópio das massas — atalhou o rapaz de óculos, com desprezo, desviando em seguida sua atenção para a estrada.
Ainda estava deserta, tanto quanto podiam ver, nas duas direções. Para o sul, a poucas milhas dali, o sol brilhava nas águas do Golfo. Acendeu um cigarro. Seus dedos tremiam. O tempo passava muito devagar. Ouviam-se as moscas voando, o que fazia o silêncio parecer ainda maior. Percebeu, então, uma nuvem de poeira na estrada, do outro lado da aldeia.
— Olhem!
Juntos, tentaram enxergar ao longe.
— São caminhões de carga ou do Exército? — perguntou Mashoud, ansiosamente, e correu para a galeria gritando: — Depressa, vocês dois. Vem vindo alguma coisa!
— Está bem — respondeu uma voz lá de dentro.
— Estamos quase acabando — disse outra voz.
Os dois rapazes na galeria estavam com a mala aberta, e colocavam os sacos achatados de explosivo, a esmo, ao longo do oleoduto. Este era coberto por uma camada de lona e piche como proteção contra a erosão.
— Dê-me o detonador e o rastilho, Ali — disse o mais velho, com voz rouca. Estavam ambos imundos, agora, com a poeira grudada no suor.
— Tome — Ali entregou-lhe as coisas cuidadosamente, com a camisa grudada no corpo.
— Tem certeza que sabe o que fazer, Bijan?
— Estudamos aquele panfleto durante horas. Não treinamos fazer isto de olhos fechados? — Bijan deu um sorriso forçado. — Somos iguais a Robert Jordan em Por quem os sinos dobram. Iguaizinhos a ele.
— Espero que os sinos não estejam dobrando por nós — retrucou o outro, estremecendo.
— Mesmo que estejam, que importa? O partido vai conquistar o poder e as massas serão vitoriosas.
Os dedos inexperientes de Bijan prenderam desajeitadamente o detonador de nitroglicerina, altamente volátil, num dos explosivos, ligando uma das pontas do rastilho ao detonador, e empilhou o resto dos sacos em cima para prendê-lo no lugar.
Mashoud tornou a chamar, com uma voz ainda mais urgente:
— Depressa, são... achamos que são caminhões do Exército cheios de soldados!
Por um instante, os dois rapazes ficaram paralisados, depois desenrolaram o rastilho, tropeçando um no outro, no seu nervosismo. Sem que notassem, a ponta do rastilho que estava presa ao detonador soltou-se. Esticaram o fio de três metros de comprimento no chão, acenderam a ponta e saíram correndo. Bijan deu uma olhada para checar tudo, viu que uma das pontas queimava bem e ficou horrorizado quando percebeu que a outra ponta estava solta. Voltou correndo, prendeu-a, tremendo, no detonador, e escorregou, atirando o detonador contra a parede de concreto.
A nitroglicerina explodiu e fez o saco de explosivos ao lado ir pelos ares, este fez explodir o próximo, e assim por diante até que todos explodiram e fizeram Bijan em pedaços junto com dez metros do oleoduto, arrancando o teto da galeria, virando o carro, matando dois dos rapazes e arrancando uma perna do quarto.
Começou a jorrar petróleo do oleoduto. Centenas de barris por minuto. O petróleo deveria ter incendiado, mas isso não aconteceu — os explosivos tinham sido mal colocados — e quando os dois caminhões do Exército pararam cautelosamente a centenas de metros de distância, o vazamento de óleo já alcançara o riacho. Os óleos mais leves, gasosos, voláteis, flutuaram na superfície, e o óleo crú, mais pesado, começou a se infiltrar nas margens, encharcando o solo, tornando toda a região altamente perigosa.
Nos dois caminhões havia uns vinte Faixas Verdes de Khomeini, a maioria de barba, os outros com o rosto sem barbear, todos usando suas faixas características nos braços — camponeses, alguns operários de campos de petróleo, um líder treinado pela OLP, um mulá — todos armados, todos com marcas de batalha, alguns feridos, e um capitão da polícia uniformizado, amarrado e amordaçado no chão, ainda vivo. Tinham acabado de atacar um posto policial ao norte e agora rumavam para Bandar Delam para continuar a guerra. Sua missão era ajudar a tomar o aeroporto civil que ficava a alguns quilômetros para o sul.
Liderados pelo mulá, foram até a beirada da galeria arrebentada. Por um instante, ficaram observando o vazamento, então um gemido atraiu-lhes a atenção. Empunharam os revólveres e caminharam cautelosamente até o carro virado. O rapaz sem a perna estava preso até a cintura debaixo dele, morrendo. Moscas voavam, pousavam e tornavam a voar, havia sangue e vísceras por toda parte.
— Quem é você? — perguntou o mulá, sacudindo-o rudemente. — Por que fizeram isso?
O rapaz abriu os olhos. Sem os óculos, tudo ficava embaçado. Às cegas, tentou encontrá-los. O medo da morte se apoderou dele. Tentou recitar o Shahada, mas só o que saiu foi um grunido de terror. O sangue inundou-lhe a garganta, sufocando-o.
— Seja como Deus quiser — disse o mulá, virando as costas. Viu os óculos quebrados no chão e apanhou-os. Uma das lentes estava partida, a outra perdera-se.
— Por que fariam isso? — perguntou um dos Faixas Verdes. — Ainda não temos ordens de sabotar os oleodutos.
— Devem ser comunistas, ou abutres marxistas-islâmicos. — O mulá jogou os óculos fora. Seu rosto estava machucado, a túnica comprida rasgada em alguns lugares e estava faminto. — Parecem estudantes. Que Deus mate todos os Seus inimigos assim tão depressa.
— Ei, olhem isto — exclamou um outro. Estava revistando o carro e encontrara três metralhadoras e algumas granadas. — Todas de fabricação tcheca. Só os esquerdistas andam tão bem armados assim. Estes cães são mesmo inimigos.
— Deus seja louvado. Ótimo. As armas nos serão úteis. Podemos contornar a galeria com o caminhão?
— Oh, sim, facilmente, graças a Deus — disse o motorista, um homem barbado e corpulento. Era operário de um dos campos de petróleo e entendia de oleodutos. — É melhor comunicarmos esta sabotagem — acrescentou, nervoso. — Toda esta área pode explodir. Poderia telefonar para a estação de bombeamento, se houver algum telefone funcionando; ou mandar um recado; eles podem cortar o fluxo. É melhor andarmos depressa. Toda esta área está correndo perigo e o vazamento vai poluir tudo, rio abaixo.
— Isto está nas mãos de Deus. — O mulá ficou olhando o óleo se espalhar. — Não é correto desperdiçar a riqueza que Deus nos concedeu. Bom, você pode tentar telefonar do aeroporto. — O rapaz deu outro grito sufocado de socorro. Eles o deixaram ali para morrer.
AEROPORTO DE BANDAR DELAM: 17:30H. O aeroporto civil estava desguarnecido, abandonado e não funcionava, exceto pelo contingente da S-G que chegara ali há poucas semanas, vindo da ilha Kharg. O aeroporto tinha duas pistas curtas, uma torre pequena, alguns hangares, um prédio de escritórios com dois andares, algumas barracas, e agora uns poucos trailers modernos — de propriedade da S-G — para servir temporariamente de abrigo e QG. Era igual a dúzias de outros aeroportos civis que o xá construíra para as linhas de fornecimento que serviam a todo o Irã: "Vamos ter aeroportos e serviços modernos." Decretara e assim foi feito. Mas desde que começaram os problemas, há seis meses, todas as linhas internas tinham entrado em greve, em todo o Irã os aviões pararam de voar e os aeroportos fecharam. As tripulações e as equipes de terra desapareceram. A maioria dos aviões foram deixados ao ar livre, sem manutenção nem cuidado. Dos três jatos estacionados no pátio, dois estavam com os pneus furados e o outro tinha a janela da cabine quebrada. Todos tiveram os tanques esvaziados por saqueadores. Todos estavam imundos, quase abandonados. E tristes.
Fazendo um enorme contraste com eles, enfileiravam-se meticulosamente os cinco cintilantes helicópteros da S-G, três 212 e dois 206, lavados diariamente e revisados no final do dia. O sol agora estava baixo, projetando sombras alongadas.
O capitão Rudiger Lutz, o piloto-chefe, foi até o último helicóptero e inspecionou-o com o mesmo cuidado com que inspecionara os outros.
— Muito bem — disse finalmente. — Podem guardá-los.
Ficou observando enquanto os mecânicos e sua equipe de terra iraniana levavam as aeronaves de volta para os hangares que também estavam impecáveis. Sabia que muitos membros da equipe riam dele pelas costas, por causa de sua meticulosidade, mas isso não tinha importância — contanto que obedecessem. Este é o nosso problema mais difícil, pensou. Como fazê-los obedecer, como agir numa situação de guerra quando não somos governados por leis militares e somos não-combatentes no meio de uma situação de guerra, quer Duncan McIver admita ou não.
Esta manhã, Duke Starke, em Kowiss, retransmitira em HF a mensagem tensa de McIver, de Teerã, a respeito dos rumores de ataque ao aeroporto de Teerã e da revolta em uma de suas bases aéreas — por causa da distância e das montanhas, Bandar Delam não podia falar diretamente com Teerã nem com as outras bases, só com Kowiss. Preocupado, Rudi reunira toda a sua equipe de estrangeiros, quatro pilotos e sete mecânicos — sete ingleses, dois americanos, um alemão e um francês — em um lugar onde ninguém pudesse ouvi-los e relatara-lhes a mensagem.
— Não foi tanto o que Duke disse, mas a forma como disse: me chamou o tempo todo de Rudiger, quando sempre me chama de Rudi. Ele me pareceu nervoso.
— Não é próprio de Duke Starke ficar nervoso, a não ser que as coisas estejam pretas. — Jon Tyrer, o americano que era o segundo em comando depois de Rudi, comentara apreensivamente. — Você acha que ele está em apuros? Acha que a gente deve ir dar uma olhada em Kowiss?
— Talvez. Mas vamos esperar até eu falar com ele esta noite.
— Acho que é melhor nos prepararmos para escapulir no meio da noite, Rudi — dissera o mecânico Fowler Jones com decisão. — Sim. Se o velho Duke está nervoso... é melhor estarmos preparados para dar o fora.
— Você está louco, Fowler. Nunca tivemos problemas — retrucara Tyrer.
— Toda esta região está mais ou menos tranqüila, as tropas e a polícia são disciplinadas e estão sob controle. Merda, temos cinco bases da Força Aérea numa área de 15 quilômetros e são todas de elite e pró-xá. É provável que breve haja um golpe legalista.
— Você alguma vez já esteve no meio de um golpe, pelo amor de Deus? Atiram desesperadamente uns nos outros e eu sou um civil!
— OK, digamos que as coisas fiquem pretas, o que sugere? Discutiram todas as possibilidades. Por terra, mar e ar. A fronteira do Iraque ficava a apenas 150 quilômetros de distância — e pelo golfo era fácil alcançar o Kuwait.
— Seremos informados com antecedência — Rudi estava confiante. — McIver saberá caso haja um golpe.
— Ouça, meu chapa — dissera Fowler, mais azedo do que de costume.
— Eu conheço as companhias: são iguais aos malditos generais! Se as coisas ficarem realmente difíceis, vamos ter que nos virar sozinhos, portanto é melhor ter um plano. Não vou levar um tiro na cabeça pelo xá, por Khomeini, nem pelo Senhor-Deus Gavallan. Eu digo que a gente deve dar o fora!
— Que diabo, Fowler — exclamara um dos pilotos ingleses —, você está sugerindo que a gente seqüestre um dos nossos próprios aviões? Nós nunca mais poderíamos voar.
— Talvez isto seja melhor do que os portões da eternidade.
— Poderíamos ser abatidos, pelo amor de Deus. Nunca conseguíamos. Você sabe que os nossos vôos são monitorizados, como o radar é sensível por aqui. Aqui as coisas são muito mais controladas do que em Lengeh! Não podemos nem sair do chão sem pedir permissão para ligar os motores...
No fim, Rudi pedira-lhes sugestões para o caso de haver necessidade de uma evacuação repentina, por terra, ar ou mar e os deixara discutindo.
O dia inteiro tinha se preocupado com o que fazer, com o que haveria de errado em Kowiss e em Teerã. Como piloto-chefe sentia-se responsável por sua equipe — além dos doze iranianos e de Jahan, seu operador de rádio, que não recebiam há seis semanas — e por todos os helicópteros e peças. Tivemos muita sorte em sair de Kharg com tanta facilidade, pensou, com um aperto no estômago. A retirada de todos os aviões fora fácil, todas as peças importantes e alguns dos seus transportes foram trazidos em quatro dias sem que isso interferisse com sua pesada carga de contratos de vôo e emergências.
Sair de Kharg fora fácil porque todo mundo quisera ir. O mais depressa possível. Mesmo antes dos tumultos, Kharg era uma base impopular, sem nada para fazer exceto trabalhar e esperar pelas licenças em Teerã ou em casa. Quando os tumultos começaram, todo mundo viu logo que Kharg era um alvo vital para os revolucionários. Tinha havido muitos tumultos e até alguns tiros. Apareciam cada vez mais braçadeiras da OILP entre os revoltosos e o comandante da ilha ameaçara atirar em todos os aldeões se os tumultos não cessassem. Desde a partida deles há poucas semanas, a ilha estava quieta, assustadoramente quieta.
E essa retirada não foi uma emergência de fato, lembrou a si mesmo. Como agir em uma? Na semana passada voara até Kowiss para apanhar umas peças e perguntara a Starke como ele planejava agir em Kowiss se houvesse realmente problemas.
— Do mesmo jeito que você, Rudi. Você procuraria agir de acordo com as regras da companhia, que não se aplicariam a esta situação — disse o texano alto. — Temos algumas coisas a nosso favor: quase todos os nossos rapazes são ex-combatentes de alguma guerra, portanto há uma espécie de hierarquia de comando, mas, que inferno, pode-se planejar à vontade e mesmo assim não se consegue dormir de noite porque quando as coisas ficarem pretas vai acontecer o que sempre acontece: alguns rapazes vão desmoronar, outros não, e nunca se pode saber com antecedência quem vai fazer o quê, ou até como você mesmo vai reagir.
Rudi nunca estivera em uma guerra, embora seu serviço militar no Exército alemão, nos anos cinqüenta, tivesse sido nas fronteiras da Alemanha Oriental, e na Alemanha Ocidental sempre se está consciente do Muro, da Cortina, e de todos os seus irmãos e irmãs que estão do outro lado — e das legiões soviéticas e satélites que esperam, taciturnos, com suas dezenas de milhares de tanques e mísseis, a poucos metros de distância. E sempre se está consciente dos alemães fanáticos de ambos os lados da fronteira que veneram seu messias chamado Lenin e dos milhares de espiões roendo nossas entranhas.
Triste.
Quantos da minha cidade?
Nascera em uma cidadezinha perto de Plauen, próxima à fronteira da Tchecoslováquia, que agora pertencia à Alemanha Oriental. Em 1945 ele tinha 12 anos, seu irmão 16 e já estava no Exército. Os anos de guerra não foram maus para ele, sua irmã mais moça e sua mãe. No campo, havia bastante o que comer. Mas em 1945 eles tinham fugido diante das hordas soviéticas, que passavam carregando tudo que podiam, para se juntarem ao enorme contingente de alemães que migravam para oeste: dois milhões da Prússia, mais dois do norte, quatro do centro, mais dois do sul — junto com outros milhões de tchecos, poloneses, húngaros, romenos, austríacos, búlgaros, que vinham da Europa inteira — todos famintos, petrificados, lutando para se manterem vivos.
Ah, manter-se vivo, pensou.
Durante a viagem, com frio, cansado e abatido, ele se lembrava de ter ido com a mãe a um depósito de lixo, em algum lugar perto de Nuremberg, o campo devastado pela guerra e as cidades destruídas, a mãe tentando freneticamente conseguir uma chaleira — a deles fora roubada durante a noite — impossível comprar-se uma, mesmo se tivessem o dinheiro. "Temos que ter uma chaleira para ferver água ou morreremos, vamos apanhar tifo ou desinteria como os outros — não podemos viver sem água fervida", gritara sua mãe. Então ele a acompanhara em lágrimas, convencido que era uma perda de tempo, mas tinham encontrado uma. Estava velha e amassada, com o bico torto e a alça solta, mas tinha uma tampa e não vazava. Hoje a chaleira estava limpa e brilhante e ocupava um lugar de honra na prateleira da cozinha da sua fazenda perto de Freiberg, na Floresta Negra, onde moravam sua mulher, seus filhos e sua mãe. E uma vez por ano, na véspera do Ano-Novo, a mãe fazia chá com água fervida naquela chaleira. E quando ele estava lá, os dois sorriam juntos, ele e ela. "Se você tiver bastante fé, meu filho, e tentar, você pode encontrar a sua chaleira. Nunca se esqueça, foi você que a encontrou, não eu."
De súbito, ouviram-se gritos de alerta. Deu meia-volta e viu três caminhões do Exército irromperem pelo portão, um em direção à torre e dois em direção aos hangares. Os caminhões pararam e revolucionários Faixas Verdes se espalharam pela base, dois homens investindo contra ele, com as armas apontadas, gritando em farsi, que ele não entendia, enquanto os outros cercavam seus homens no hangar. Paralisado, levantou as mãos, com o coração batendo do susto. Dois Faixas Verdes, barbados e suando de medo e excitação, empurraram os canos dos revólveres na cara dele e Rudi recuou.
— Não estou armado — disse, sem ar. — O que vocês querem? Hein? Nenhum dos homens respondeu, apenas continuaram a ameaçá-lo. Por trás deles, podia ver o resto da equipe sendo retirada dos trailers e barracas e reunida no pátio. Outros agressores entravam e saíam dos helicópteros, revistando-os, revirando o equipamento; um dos homens começou a tirar os salva-vidas que estavam arrumados nos bolsos dos assentos. Sua raiva sobrepujou o medo.
— Ei, Sie verrückte Dummkópfe — gritou. — Lass'n Sie meine verrückten Flugzeuge allein! — Antes que se desse conta do que estava fazendo, tinha empurrado os revólveres e corria em direção a eles. Por um instante, pareceu que os dois iranianos iam atirar, mas apenas correram atrás dele, alcançaram-no e o agarraram. Um deles levantou o rifle pelo cano para lhe arrebentar a cara.
— Parem!
Os homens se imobilizaram.
O homem que gritou esta ordem em inglês aparentava trinta anos, era robusto, usava roupas grossas com uma faixa verde, tinha barba curta e espetada, cabelos escuros ondulados e olhos escuros.
— Quem é o responsável aqui?
— Sou eu! — Rudi livrou-se de seus agressores. — O que estão fazendo aqui? O que querem?
— Estamos ocupando este aeroporto em nome do Islã e da revolução. — O sotaque do homem era inglês. — Quantas tropas há aqui, pessoal de vôo?
— Nenhuma. Não há nenhuma tropa, não há equipe de torre, não há mais ninguém além de nós. — Disse Rudi, tentando recuperar o fôlego.
— Nenhuma tropa? — A voz do homem era perigosa.
— Não, nenhuma. Temos tido patrulhas aqui, desde que chegamos há poucas semanas, elas vêm de vez em quando. Mas nenhuma está estacionada aqui. E não temos nenhum avião militar. — Rudi apontou para o hangar. — Diga àqueles... àqueles homens para terem cuidado com meus aparelhos, muitas vidas dependem deles, tanto nossas quanto de iranianos.
O homem se virou e viu o que estava acontecendo. Gritou outra ordem, praguejando contra eles. Os homens responderam despreocupadamente, depois saíram, deixando o caos por onde tinham passado.
— Por favor, desculpe-os — disse o homem. — Meu nome é Zataki. Sou o chefe do komiteh de Abadan. Com a ajuda de Deus, agora comandamos Bandar Delam.
O estômago de Rudi queimava. Os estrangeiros e a equipe iraniana formavam um grupo imóvel ao lado do prédio baixo de escritórios, cercados por armas.
— Trabalhamos para uma companhia ingle...
— Sim, estamos informados a respeito da S-G Helicópteros. — Zataki virou-se e gritou novas ordens. Relutantes, alguns de seus homens foram para o portão e começaram a se colocar em posições defensivas. Ele tornou a olhar para Rudi. — Seu nome?
— Capitão Lutz.
— O senhor não tem nada a temer, capitão Lutz, nem o senhor nem seus homens. Vocês têm armas aqui?
— Não, exceto pistolas de sinalização, munição própria de aviões. Para sinalizar, sinalizar em caso de perigo.
— Vá buscá-las. — Zataki virou-se e foi para perto do grupo da S-G e ficou lá, examinando os rostos. Rudi percebeu o medo dos seus iranianos, cozinheiros, equipe de terra, montadores, Jahan, e Yemeni, o gerente da IranOil.
— São todos meus empregados — disse, tentando parecer seguro. — Todos empregados da S-G.
Zataki olhou para ele, depois chegou bem perto, e Rudi teve que se controlar para não recuar de novo.
— O senhor sabe o que significa mujhadin-al-khalq? Fedayim? Tudeh? — perguntou suavemente. Era mais forte que Rudi e tinha uma arma na mão.
— Sim.
— Ótimo. — Depois de uma pausa, Zataki voltou a olhar para os iranianos. Um a um. O silêncio tornou-se mais pesado. De repente, apontou para um dos homens, um montador. O homem hesitou, e então começou a correr como um louco, gritando em farsi. Eles o agarraram facilmente e o puseram sem sentidos.
— O komiteh vai julgá-lo e sentenciá-lo, em nome de Deus. — Zataki olhou para Rudi. — Capitão — disse com os lábios contraídos —, eu lhe pedi para apanhar as pistolas.
— Elas estão no cofre, e bem seguras — respondeu Rudi, com igual dureza, não se sentindo nada corajoso por dentro. — O senhor poderá tê-las quando quiser. Elas só são colocadas num avião durante uma missão. Eu... eu quero que soltem aquele homem!
Sem nenhum aviso, Zataki virou a metralhadora para bater com a coronha na cabeça de Rudi, mas Rudi segurou-a com uma das mãos, desviando-a e arrancou-a das mãos do homem, com um reflexo perfeito, e antes que a arma caísse no chão, sua outra mão, aberta, já estava na garganta desprotegida de Zataki. Mas ele interrompeu o golpe mortal, mal tocando a pele do homem. Depois, deu um passo para trás, acuado. Todas as armas apontavam para ele.
O silêncio continuou. Seus homens olhavam, estarrecidos. Zataki o encarou com ódio. As sombras estavam mais alongadas, e uma brisa suave brincava com o catavento, fazendo-o estalar de leve.
— Apanhe a arma!
No silêncio pesado, Rudi percebeu a ameaça e a promessa e soube que sua vida, a de todos eles, estava em jogo.
— Fowler, faça isto! — ordenou e rezou para que tivesse escolhido certo. Relutante, Fowler adiantou-se.
— Sim senhor, imediatamente! — Pareceu levar um tempo enorme para ele cobrir os vinte metros, mas ninguém o interrompeu e um dos guardas saiu do seu caminho. Apanhou a arma e automaticamente colocou a trava de segurança no lugar, devolvendo-a com cuidado a Zataki, primeiro a coronha. — Não entortou, e..., e está como nova, filho.
O líder apanhou a arma, tornando a destravá-la, todo mundo ouviu o barulho como se fosse um trovão.
— Você conhece armas?
— Sim... oh, sim. Nós... todos os mecânicos... nós todos tivemos que fazer um curso na RAF... Royal Air Force — disse Fowler, conservando os olhos fixos nos do homem e pensou: Que diabo eu estou fazendo aqui, enfrentando este filho da mãe fedorento? — Podemos debandar? Somos civis, filho, somos não-combatentes, neutros.
— Volte para lá. — E Zataki apontou para a fila. Depois virou-se para Rudi. — Onde foi que o senhor aprendeu karatê?
— No Exército — no Exército alemão.
— Ah, alemão. O senhor é alemão? Os alemães têm sido bons para o Irã. Ao contrário dos ingleses e americanos. Quem são os seus pilotos, seus nomes e nacionalidades?
Rudi hesitou, depois apontou.
— Capitão Dubois, francês, capitão Tyrer, idem, e Forsyth, inglês.
— Nenhum americano?
Rudi sentiu um vazio no estômago. Jon Tyrer era americano e tinha carteira de identidade falsa. Nesse momento ouviu o barulho de um helicóptero se aproximando, reconheceu o ruído de um 206, e automaticamente olhou para o céu, junto com os outros. Então um dos Faixas Verdes soltou uma exclamação e apontou, enquanto os outros corriam para suas posições defensivas, todo mundo se espalhando, exceto os estrangeiros. Eles tinham reconhecido o avião.
— Todos para o hangar — ordenou Zataki. O helicóptero aproximou-se do aeroporto a uma altura de trezentos metros e começou a voar em círculos. — É um dos seus?
— Sim. Mas não desta base. — Rudi apertou os olhos ao olhar para o sol. Seu coração acelerou quando leu o prefixo. — É o EP-HXT de Kowiss, da nossa base em Kowiss.
— O que ele quer?
— Obviamente aterrissar.
— Descubra quem está a bordo. E não tente nenhum truque. Juntos, foram até o UHF no escritório.
— HXT, está ouvindo?
— HXT, alto e claro. Aqui é o capitão Starke, de Kowiss. Capitão Lutz?
— Sim, aqui é o capitão Lutz, capitão Starke — respondeu, reconhecendo pelo tom formal que deveria haver pessoas estranhas a bordo, da mesma forma que Starke saberia que havia algo de errado lá.
— Solicito permissão para pousar. Estou com pouco combustível e preciso reabastecer. Já obtive permissão do radar de Abadan.
— Pergunte quem está no avião. — Ordenou Zataki.
— Quem está a bordo? Houve uma pausa.
— Quatro passageiros. Qual é o problema?
Rudi esperou. Zataki não sabia o que fazer. Qualquer uma das bases militares poderia estar na escuta.
— Deixe-o pousar... perto do hangar.
— Permissão para pousar, HXT. Desça perto do hangar, a leste.
— HXT.
Zataki inclinou-se e desligou o aparelho.
— Daqui para a frente o rádio só será usado com minha autorização.
— Há relatórios de rotina a serem feitos para o radar de Abadan e de Kharg. Meu operador de rádio está conosco há...
O sangue subiu ao rosto de Zataki e ele gritou:
— Até ordens em contrário seu rádio só será usado quando um de nós estiver ouvindo. Nenhum avião levantará vôo nem pousará aqui sem permissão. O senhor é o responsável. — Então a raiva evaporou-se tão depressa quanto viera. Levantou a arma. Ainda estava destravada. — Se o senhor tivesse dado o golpe teria quebrado meu pescoço, minha garganta, e eu teria morrido. Não é verdade?
— Sim. — Respondeu Rudi, depois de um intervalo.
— Por que o senhor parou?
— Eu... eu nunca matei ninguém e não gostaria de começar.
— Eu já matei muitos, fazendo o trabalho de Deus. Muitos, graças a Deus. Muitos. E ainda vou matar muitos inimigos do Islã, com a ajuda de Deus. — Zataki travou a arma. — Foi pela vontade de Deus que o golpe foi interrompido, nada mais. Não posso lhe entregar aquele homem. Ele é iraniano, isto é o Irã, ele é um inimigo do Irã e do Islã.
Ficaram observando do hangar enquanto o 206 descia. Havia quatro passageiros a bordo, todos civis, todos armados de submetralhadoras. No assento da frente estava um mulá e Zataki ficou um pouco menos tenso, mas não menos enraivecido. Assim que o helicóptero pousou, seus revolucionários saíram dos esconderijos com as armas apontadas e o cercaram.
O mulá Hussein saltou. Seu rosto endureceu ao ver a hostilidade de Zataki.
— Que a paz esteja com você. Sou Hussein Kowissi, do komiteh de Kowiss.
— Seja bem-vindo à minha área, em nome de Deus, mulá — disse Zataki, com o rosto ainda mais fechado. — Sou o coronel Zataki do komiteh de Abadan. Nós governamos esta área e não aprovo homens que se colocam entre nós e Deus.
— Ortodoxos e xiitas são irmãos, Islã é Islã — respondeu Hussein. — Agradecemos aos nossos irmãos ortodoxos dos campos de petróleo de Abadan pelo seu apoio. Vamos conversar, nossa revolução islâmica ainda não foi vencida.
Tenso, Zataki concordou e chamou seus homens, depois fez sinal ao mulá para segui-lo para que pudessem conversar sem serem ouvidos. Imediatamente, Rudi correu para baixo dos rotores.
— Que diabo está acontecendo, Rudi? — perguntou Starke da cabine, com os ombros doendo, terminando as manobras de aterrissagem. E Rudi lhe contou.
— E com você?
Rapidamente, Starke relatou o que acontecera durante a noite e no escritório do coronel Peshadi.
— O mulá e esses assassinos voltaram ao meio-dia e quase tiveram um ataque quando me recusei a trazer homens armados. Cara, pensei que fosse morrer, mas não ia carregar homens armados, isso nos tornaria cúmplices da revolução, e a revolução ainda não está nada firme. Vimos centenas de tropas e barricadas quando estávamos vindo. — Seus olhos percorreram a base e os grupos de Faixas Verdes espalhados. O resto da equipe ainda estava de pé perto das barracas, sob guarda, o montador ainda sem sentidos. — Filhos da mãe! — Saiu do helicóptero e se esticou por causa da dor nas costas, sentindo-se melhor. — No fim, chegamos a um acordo. Eles ficaram com as armas mas eu guardei a munição no compartimento de bagagem. — Parou. O mulá alto, Hussein, aproximava-se deles, e as lâminas do aparelho, agora, giravam lentamente.
— A chave do compartimento de bagagem, por favor, capitão — ordenou Hussein.
— Não há tempo de voltar para Kowiss nem para chegar a Abadan — disse Starke ao entregar as chaves.
— O senhor não sabe voar à noite?
— Sei, mas é contra os seus regulamentos. O senhor tinha um fone, viu como é o radar aqui. Antes que a gente esteja no alto teremos aviões e helicópteros militares zumbindo como marimbondos atrás de nós. Vou reabastecer e passaremos a noite aqui... pelo menos eu. O senhor pode conseguir uma carona dos seus cupinchas aqui se quiser ir à cidade.
— O seu tempo é muito curto, americano — disse o mulá em farsi, enrubescendo de raiva. — O seu e o de todos esses parasitas imperialistas.
— Se for a vontade de Deus, mulá, se for a vontade de Deus. Estarei pronto para partir depois da primeira prece. Então eu partirei, com ou sem você.
— O senhor vai me levar para Abadan e esperar e depois vai voltar para Kowiss quando eu quiser e como o coronel Peshadi ordenou.
— Se você estiver pronto para partir depois da primeira prece! — respondeu em inglês. — E Peshadi não ordenou nada. Não estou sob as ordens dele, nem suas. A IranOil me pediu para levá-lo neste vôo. Vou ter que reabastecer no caminho de volta.
— Muito bem, partiremos ao amanhecer — concordou Hussein, irritado.
— Quanto a reabastecer... — Pensou por um momento. — Faremos isso em Kharg.
Tanto Starke quanto Rudi ficaram estarrecidos.
— Como vamos ter licença para descer em Kharg? Kharg é leal, ahn, ainda está sob controle da Força Aérea. Vocês levariam um tiro na cabeça.
— Vocês esperam aqui até o komiteh decidir. Daqui a uma hora eu quero falar com Kowiss no HF. — E Hussein virou as costas e saiu.
— Estes filhos da mãe estão muito bem organizados, Rudi — disse Starke baixinho. — Estamos numa encrenca dos diabos.
— É melhor nos organizarmos, nos prepararmos para dar o fora daqui.
— Sugeriu Rudi, sentindo as pernas fracas.
— Faremos isso depois de comer. Você está bem?
— Pensei que estivesse morto. Eles vão matar a todos nós, Duke
— Não penso assim. Por algum motivo, somos importantes para eles. Eles precisam de nós, é por isso que Hussein recua e o seu Zataki também. Podem endurecer conosco para nos manter na linha, mas acho que pelo menos por enquanto somos importantes por algum motivo. — Mais uma vez Starke tentou aliviar o cansaço das costas e dos ombros. — Bem que eu gostaria de uma das saunas de Erikki. — Ambos olharam para um grupo de Faixas Verdes que atirava para o ar. — Filhos da puta malucos. Pelo que pude ouvir, esta operação faz parte de um levante geral contra as Forças Armadas... armas contra armas. Como está a recepção do seu rádio? BBC ou Voz da América?
— De mal a pior e cheia de interferência, de dia ou de noite. É claro que a Rádio Livre do Irã está alta e clara, como sempre. — Era a estação soviética estabelecida logo além da fronteira, em Baku, no mar Cáspio. — E, como sempre, a Rádio Moscou soa como se estivesse no seu quintal.
7
PERTO DE TABRIZ: 18:05H. Nas montanhas cobertas de neve, bem ao norte, perto da fronteira soviética, o 206 de Pettikin aproximava-se rápido, subindo o desfiladeiro, quase tocando as árvores ao longo da estrada.
— Tabriz Um, HFC de Teerã. Está me ouvindo? — tornou a chamar. Nenhuma resposta ainda. Escurecia, o sol da tarde oculto por uma espessa camada de nuvens a poucas centenas de metros sobre ele, cinzenta e pesada de neve. Tentou novamente chamar a base, já muito cansado, com o rosto bastante machucado e ainda doendo da surra que levara. As luvas e a pele esfola-da das mãos tornavam difícil apertar o botão do transmissor.
— Tabriz Um. HFC de Teerã. Está me ouvindo?
Mais uma vez não houve resposta, mas não se preocupou. A comunicação era sempre ruim nas montanhas, ele não estava sendo esperado, e não havia nenhuma razão para Erikki Yokkonen ou o administrador da base terem providenciado uma escuta para o rádio. À medida que a estrada subia, a camada de nuvens ficava mais baixa, mas viu, satisfeito, que o cume à sua frente estava ainda claro, e que depois a estrada começava a descer e meio quilômetro adiante ficava a base.
Esta manhã, levara muito mais tempo do que esperava para ir até a pequena base aérea militar em Galeg Morghi, não muito distante do aeroporto internacional de Teerã, e embora tivesse deixado o apartamento antes do amanhecer, só chegou lá depois que o sol já brilhava alto no céu poluído, cheio de fumaça. Fora obrigado a se desviar muitas vezes. Havia ainda muita luta nas ruas e muitas estradas estavam bloqueadas — algumas intencionalmente, com barricadas, mas a maioria por causa dos destroços queimados de carros e ônibus. Muitos corpos estavam espalhados nas calçadas cobertas de neve e na beira das estradas, havia muitos feridos e, por duas vezes, policiais zangados o fizeram voltar. Mas insistiu e tomou um caminho ainda mais tortuoso. Quando chegou, para surpresa sua, o portão de sua seção da base, onde funcionava uma escola de treinamento, estava aberto e desguarnecido. Normalmente, haveria sentinelas da Força Aérea lá. Entrou e estacionou o carro no hangar da S-G, mas não encontrou ninguém de serviço, nem da equipe de mecânicos nem do pessoal de terra.
O dia estava muito frio e ele se embrulhara em trajes de vôo de inverno. A neve cobria o campo e grande parte da pista. Enquanto esperava, checou o 206 que ia pilotar. Estava tudo bem. As peças que Tabriz precisava, rotor de cauda e duas bombas hidráulicas, estavam no compartimento de bagagem. Os tanques estavam cheios, o que lhe dava uma autonomia de vôo de duas e meia a três horas — de trezentos a quatrocentos quilômetros, dependendo do vento, da altitude e da potência. Teria que reabastecer a aeronave no meio do caminho. Seu plano de vôo previa que fizesse isso em Bandar-e Pahlavi, um porto no mar Cáspio. Sem esforço, empurrou o avião para a pista. Então tudo virou um inferno e ele se viu no centro de uma batalha.
Caminhões cheios de soldados entraram pelo portão e atravessaram o campo, sendo recebidos por uma saraivada de balas vindas da parte principal da base, onde estavam os hangares, as barracas e os prédios da administração. Outros caminhões aproximaram-se pela estrada que circundava o campo, atirando o tempo todo, depois um tanque blindado Bren juntou-se aos outros, com suas metralhadoras cuspindo fogo. Apavorado, Pettikin reconheceu as braçadeiras e os capacetes dos Imortais. A persegui-los, vinham ônibus blindados cheios de policiais paramilitares e outros homens que se espalharam pelo seu lado da base, protegendo-a. Antes que soubesse o que estava acontecendo, quatro deles o agarraram e o arrastaram para um dos ônibus, gritando com ele em farsi.
Pelo amor de Deus, eu não falo farsi — gritou, tentando soltar-se
Então um deles deu-lhe um soco no estômago e ele recuou, libertando-se e socou a cara do seu atacante. Imediatamente, outro homem puxou uma pistola e atirou. A bala entrou pela gola do seu casaco e ricocheteou violentamente no ônibus, lançando faíscas de pólvora queimada. Ficou paralisado. Alguém deu-lhe um murro na boca e os outros começaram a dar-lhe socos e pontapés Neste momento, aproximou-se um oficial de polícia.
— Americano? Você é americano? perguntou zangado, num inglês muito ruim.
— Eu sou inglês — gaguejou Pettikin,com a boca cheia de sangue, tentando livrar-se dos homens que o mantinham preso contra o capô do ônibus Eu trabalho na S-G Helicópteros e este é.
— Americano! Sabotador! — O homem enfiou o revólver na cara de Pettikin e ele viu os dedos do homem se retesarem no gatilho. — Nós, Savak, sabemos que vocês americanos são a causa de todos os nossos problemas!
Então, através da névoa do seu terror, ouviu uma voz gritar em farsi e sentiu afrouxarem-se as mãos de ferro que o prendiam. Sem acreditar, viu o jovem capitão paraquedista britânico, vestindo uma roupa de camuflagem e uma boina vermelha e dois soldados pequenos, fortemente armados, com feições orientais, granadas nos cintos e mochilas nas costas, em pé na frente deles. Despreocupadamente, o capitão atirava uma granada para cima e para baixo como se fosse uma laranja, com o pino de segurança no lugar. Tinha um revólver e uma faca de uma forma estranha na cintura. Repentinamente, parou e apontou para Pettikin e depois para o 206, gritou com o policial em farsi, fez um gesto imperioso com a mão e cumprimentou Pettikin.
— Pelo amor de Deus, faça uma cara importante, capitão Pettikin — disse rapidamente, com um agradável sotaque escocês, depois arrancou a mão do policial do ombro de Pettikin.
Um dos policias começou a erguer a arma, mas parou quando o capitão tirou o pino da granada, apertando com força a alavanca. Ao mesmo tempo, seus homens empunharam os rifles automáticos, segurando-os com displicência, mas prontos para atirar, O mais velho sorriu, afrouxando a faca da bainha.
— Seu helicóptero está pronto para partir?
— Sim... sim, está — balbuciou Pettikin.
— Ligue o motor depressa. Deixe as portas abertas e quando estiver pronto para partir faça-me um sinal e nós pulamos para dentro. Prepare-se para voar baixo e rápido. Vá! Tenzing, vá com ele. — O oficial fez um sinal com o polegar para o helicóptero que estava a uns cinqüenta metros de distância e virou-se, voltando a falar em farsi, xingando os iranianos, mandando que fossem para o outro lado onde a batalha diminuíra um pouco. O soldado chamado de Tenzing acompanhou Pettikin, que ainda estava tonto.
— Por favor, depressa, sahib — disse Tenzing e se encostou numa das portas, com a arma pronta. Pettikin não precisava de incentivo.
Mais carros blindados passaram mas não prestaram atenção neles, nem outros grupos de policiais e militares que tentavam desesperadamente defender a base contra a multidão que se aproximava. Atrás deles, o policial discutia furiosamente com o paraquedista, enquanto os outros olhavam, nervosos, por sobre os ombros na direção de onde vinha o rumor de "Allah-uuuu Akbarrr!" Misturado às vozes, ouviram-se mais tiros e algumas explosões. Duzentos metros adiante, na estrada que contornava a cerca, a vanguarda da multidão pôs fogo num carro estacionado que explodiu.
Os motores a jato do helicóptero ganharam vida e o som enraiveceu o policial, mas uma falange de civis, armados, entrou atirando pelo portão do lado oposto. Alguém gritou: "Mujhadin!" Imediatamente, todos naquele lado da base se agruparam para interceptá-los e começaram a atirar. Aproveitando esta distração, o capitão e o outro soldado correram para o helicóptero e pularam para dentro, Pettikin deu força total e voou a poucos metros da grama, inclinou o helicóptero para evitar um caminhão em chamas e depois subiu, sacolejando. O capitão cambaleou, quase deixou cair a granada, sem conseguir recolocar o pino por causa da manobra violenta de Pettikin. Estava no assento da frente e se agarrou com força, manteve a porta aberta, atirou cuidadosamente a granada para fora e observou-a cair.
— Ótimo — disse, ao vê-la explodir sem causar danos. Fechou a porta e colocou o cinto de segurança, verificou se os dois soldados estavam bem e ergueu os polegares para Pettikin.
Pettikin mal notou. Uma vez fora de Teerã, pousou o helicóptero numa clareira bem afastada de qualquer estrada ou aldeia, e verificou se havia algum buraco de bala. Quando viu que não havia nada, respirou aliviado.
— Cristo, não sei como agradecer, capitão — e estendendo a mão, com a cabeça doendo. — A princípio pensei que você fosse uma miragem, capitão...?
— Ross. Estes são o sargento Tenzing e o cabo Gueng.
Pettikin cumprimentou-os e agradeceu aos dois. Eram homens pequenos, alegres, mas duros e ágeis. Tenzing, o mais velho, devia ter uns cinqüenta anos.
— Vocês foram mandados pelos deuses, todos vocês.
— Não sabia como escapar daquela — sorriu Ross, os dentes muito brancos no rosto queimado. — Não teria sido muito bom atirar na polícia, em ninguém, aliás — nem mesmo na Savak.
— Concordo. — Pettikin nunca vira olhos tão azuis assim e calculou que ele devia ter quase trinta anos. — Que diabo estava acontecendo lá?
— Alguns recrutas na Força Aérea amotinaram-se e alguns oficiais e legalistas tentavam acabar com aquilo. Ouvimos dizer que partidários de Khomeini e esquerdistas estavam vindo ajudar os amotinados.
— Que confusão! Não sei como lhe agradecer. Como sabe o meu nome?
— Nós, ahn, soubemos do seu plano de vôo para Tabriz via Bandar-e Pahlavi e queríamos pegar uma carona. Mas nos atrasamos muito e pensamos que você já tinha partido — tivemos que dar voltas e mais voltas para chegar. Mas aqui estamos nós.
— Graças a Deus. Vocês são gurkhas?
— Só, ahn, uma unidade avulsa, por assim dizer.
Pettikin balançou a cabeça Pensativamente. Tinha notado que nenhum deles usava emblemas ou insígnias nos ombros — exceto pelas estrelas de capitão de Ross e por suas boinas vermelhas.
— E como é que uma 'unidade avulsa' é informada de planos de vôo?
— De fato não sei — disse Ross, distraidamente. — Apenas obedeço ordens. — Deu uma olhada em volta. O local era plano, desguarnecido e pedregoso, muito frio, com o solo coberto de neve. — Você não acha que devemos seguir? Estamos um pouco expostos aqui.
— O que está acontecendo em Tabriz? — perguntou Pettikin voltando para a cabine.
— Na verdade, gostaríamos de ficar deste lado de Bandar-e Pahlavi, se não se importa.
— É claro. — Pettikin tinha começado, automaticamente, as manobras de decolagem. — O que está havendo lá?
— Digamos que temos de falar com um homem sobre um cachorro.
— Há um monte de cachorros em toda parte! Nosso destino é Bandar-e Pahlavi, e vou parar de fazer perguntas. — Riu Pettikin, começando a gostar dele.
— Sinto muito, mas você sabe como é. Também agradeceria se você esquecesse meu nome e o fato de termos estado a bordo.
— E se me perguntarem... as autoridades? Nossa partida foi um tanto pública.
— Não disse meu nome; apenas obriguei-o — Ross sorriu — com terríveis ameaças!
— Está bem. Mas não vou esquecer seu nome.
Pettikin pousou a poucos quilômetros do porto de Bandar-e Pahlavi. Ross mostrara o local do pouso num mapa que levava. Era uma praia cheia de dunas, distante de qualquer aldeia, com as águas azuis do Cáspio bem mansas. O mar estava pontilhado de barcos de pesca e grandes tufos de nuvens flutuavam no céu ensolarado. Aqui o clima era tropical, o ar úmido estava coalhado de insetos, e não havia sinal de neve, embora as montanhas Elburz, atrás de Teerã, estivessem quase encobertas. Era altamente irregular aterrissar sem permissão, mas por duas vezes Pettikin chamara o aeroporto de Bandar-e Pahlavi, onde deveria reabastecer, e não recebera resposta, então achou que estaria seguro — podia alegar uma emergência.
— Boa sorte, e mais uma vez obrigado — e cumprimentou um por um.
— Se algum dia precisarem de alguma coisa, qualquer coisa, é só pedir. — Eles saltaram rapidamente, puseram as sacolas nos ombros e caminharam em direção às dunas. Foi a última imagem que teve deles.
— Tabriz Um, está me ouvindo?
Voava em círculos, apreensivamente, a duzentos metros, conforme mandava o regulamento, depois baixou um pouco. Nenhum sinal de vida — nenhuma luz acesa. Estranhamente inquieto, pousou perto do hangar. Lá ele esperou, pronto para uma partida imediata, sem saber o que esperar — as notícias de recrutas amotinados em Teerã, especialmente da elite da Força Aérea, perturbaram-no muito. Mas ninguém se aproximou. Nada aconteceu. Relutante, travou os comandos com muito cuidado e saiu, deixando os motores ligados. Era muito perigoso e contra o regulamento — porque se as travas se soltassem, o helicóptero poderia começar a girar e descontrolar-se.
Mas não quero ser apanhado desprevenido, pensou. Tornou a verificar as travas e dirigiu-se, rapidamente, através da neve para o escritório. Estava vazio, os hangares vazios exceto pelo 212 desmontado, os trailers também vazios, não havia sinal de ninguém — nem de luta. Um pouco mais tranqüilo, atravessou o acampamento o mais depressa que pôde. Sobre a mesa da cabana de Erikki Yokkonen havia uma garrafa vazia de vodca. Na geladeira havia outra cheia — teria apreciado muitíssimo um drinque, mas pilotar e beber eram coisas que não se misturavam. Havia também água engarrafada, um pouco de pão iraniano e presunto. Pettikin bebeu a água, satisfeito. Só vou comer depois de ter examinado tudo, pensou.
No quarto, a cama estava feita, mas viu sapatos espalhados. Gradualmente, seus olhos encontraram mais sinais de uma partida apressada. Os outros trailers mostravam os mesmos sinais. Não havia qualquer transporte na base e o Range Rover vermelho de Erikki também sumira. Estava claro que a base fora abandonada às pressas. Mas por quê?
Seus olhos examinaram o céu. O vento tinha aumentado e ele o ouviu assoviar através da floresta coberta de neve, acima do barulho dos motores. Sentiu o frio penetrar através da jaqueta, das calças grossas e por entre as botas. Seu corpo pedia um chuveiro quente — melhor ainda, uma das saunas de Erikki — além de comida, cama, uma bebida quente e oito horas de sono. O vento ainda não é problema, pensou, mas tenho no máximo mais uma hora de claridade para reabastecer e voltar pelo desfiladeiro em direção à planície. Ou passo a noite aqui?
Pettikin não era um homem do campo, nem da montanha. Conhecia o deserto, a selva, a estepe e a zona árida da Arábia Saudita. As grandes extensões planas nunca o perturbaram. Mas o frio sim. E a neve. Primeiro reabastecer, pensou.
Mas não havia combustível no depósito. Nenhum. Viu vários tambores de cem litros, mas estavam todos vazios. Não tem importância, disse a si mesmo, controlando o pânico. Tenho o suficiente nos meus tanques para os oitenta quilômetros de volta a Bandar-e Pahlavi. Poderia prosseguir até o aeroporto de Tabriz ou tentar arranjar algum combustível no depósito da ExTex em Ardabil, mas fica perto demais da fronteira soviética.
Mais uma vez examinou o céu. Maldição! Posso ficar aqui ou em algum lugar no meio do caminho. O que escolher?
Aqui. É mais seguro.
Desligou os motores e guardou o 206 no hangar, trancando a porta. O silêncio era ensurdecedor. Hesitou, depois saiu, fechando a porta do hangar atrás dele. Seus pés enterravam-se na neve e o vento o empurrava à medida que se dirigia ao trailer de Erikki. No meio do caminho parou, com o estômago torcendo-se. Sentiu que alguém o observava. Olhou em volta, os olhos e os ouvidos examinando a floresta e a base. O catavento dançava com os redemoinhos que agitavam o topo das árvores, fazendo-as estalar, uivando pela floresta, e de repente lembrou-se de Tom Lochart sentado junto a uma fogueira nas montanhas Zagros, em uma de suas viagens para esquiar, contando a lenda canadense do Wendigo, o demônio mau da floresta, nascido nos vendavais, que espreita no cimo das árvores, uivando, esperando para apanhá-lo desprevenido, e então mergulha em cima de você e você fica aterrorizado, começa a correr mas não consegue escapar nunca, e você sente seu hálito gelado no pescoço e corre cada vez mais, com passadas cada vez maiores até que seus pés se tornam tocos ensangüentados e o Wendigo o carrega para o alto das árvores e você morre.
Estremeceu, odiando estar sozinho ali. Curioso, nunca pensei nisso antes mas também quase nunca estou sozinho. Tem sempre alguém por perto, um mecânico, um piloto, um amigo, Genny, Mac ou Claire, como nos velhos tempos.
Ainda examinava atentamente a floresta. Em algum lugar, ao longe, cachorros começaram a latir. A sensação de que havia alguém ali ainda era muito forte. Com algum esforço, ignorou a apreensão, voltou até onde estava o helicóptero e encontrou a pistola de sinalização. Carregou a enorme pistola de nariz arrebitado bem à vista ao voltar para a cabana de Erikki e se sentiu melhor por tê-la. E se sentiu melhor ainda depois que trancou a porta e fechou as cortinas.
TEERÃ: 19:05H. McIver caminhava pela arborizada avenida residencial, agora deserta, sentindo-se cansado e com fome. As luzes das ruas estavam apagadas e ele foi andando cuidadosamente na penumbra, com a neve amontoada contra os muros das belas casas, dos dois lados da avenida. Ouvia o som de tiros à distância e, trazido pelo vento, o rumor de "Allahhh-u Akbarrr". Virou a esquina e quase tropeçou no tanque centurião estacionado em cima da calçada. Uma lanterna o cegou momentaneamente. Alguns soldados apareceram.
— Quem é você, aga? — perguntou um jovem oficial, em bom inglês. — O que está fazendo aqui?
— Sou o capitão... sou o capitão McIver, Duncan... Duncan McIver. Estou voltando do escritório para casa, e... e meu apartamento fica do outro lado do parque, depois da próxima esquina.
— Sua identidade, por favor.
Desajeitadamente, McIver pôs a mão no bolso interno do paletó. Sentiu os dois retratos que estavam ao lado do cartão de identidade, um do xá e outro de Khomeini, mas com todos os boatos do dia acerca de motins, não conseguiu decidir qual seria o certo, então não mostrou nenhum dos dois. O oficial examinou a identidade à luz da lanterna. Agora que os olhos de McIver se haviam habituado com a escuridão, notou o cansaço do homem, a barba por fazer e o uniforme amassado. Outros soldados observavam silenciosamente. Nenhum deles estava fumando, o que McIver achou estranho. O tanque se erguia sobre eles, malévolo, como se estivesse esperando para atacar.
— Obrigado. — O oficial entregou-lhe o cartão já bem gasto. Ouviram-se mais tiros, desta vez mais perto. Os soldados esperaram, espreitando a escuridão. — E melhor não ficar do lado de fora durante a noite, aga. Boa noite.
— Sim, obrigado. Boa noite. — Agradecido, McIver se afastou, imaginando se seriam legalistas ou revoltosos. — Cristo, se algumas unidades se amotinarem e outras não vai haver o diabo. Outra esquina, a rua e o parque também escuros e vazios, quando, há pouco tempo, havia sempre movimento e as luzes brilhavam, as janelas iluminadas e os empregados, as pessoas e as crianças todos alegres e rindo, correndo de um lado para o outro. É disso que eu mais sinto falta, pensou. Da alegria. Fico imaginando se algum dia esses tempos voltarão.
Seu dia fora frustrante, sem telefones, o contato por rádio com Kowiss ruim, e ele não conseguira se comunicar com nenhuma das outras bases. Novamente ninguém da sua equipe do escritório tinha chegado, o que o irritara ainda mais. Tentara passar um telex para Gavallan, mas não conseguira.
— Amanhã será melhor — disse, depois apressou o passo, sentindo-se mal com o vazio das ruas.
O prédio de apartamentos em que moravam tinha cinco andares e eles ocupavam um na cobertura. As escadas estavam mal iluminadas, com a eletricidade funcionando com metade da capacidade outra vez, o elevador parado há meses. Subiu as escadas cansado, com a fraca iluminação tornando a subida ainda mais tristonha. Mas dentro do apartamento as velas já estavam acesas e seu ânimo melhorou.
— Oi, Genny! — exclamou, trancou a porta e pendurou seu velho casacão inglês. — É hora do uísque!
— Duncan! Estou na sala de jantar, venha até aqui um minuto
Foi andando pelo corredor, parou na porta e ficou sem fala. A mesa estava coberta por uma dúzia de iguarias iranianas e travessas de frutas, com velas por toda parte. Genny sorriu para ele. E Xarazade também. Não é possível! E Xarazade, isto é obra sua? Que bom ver você e o que...
— Oh, é bom ver você também, Mac, você está cada dia mais moço, aliás, vocês dois. Peço desculpa por me intrometer — disse Xarazade, rapidamente, numa voz alegre e excitada — mas me lembrei que ontem foi o aniversário de casamento de vocês porque é cinco dias antes do meu aniversário, e sei que vocês gostam de horisht de carneiro e de polo e de outras coisas, então trouxemos tudo isso, Hassan, Dewa e eu, e velas também. — Ela não tinha nem um metro e meio, era o tipo de beleza persa que Ornar Khayyãm imortalizara. Ela se levantou. — Agora que você está de volta, já vou.
— Mas espere um momento, por que não fica e janta conosco e...
— Oh, mas não posso, por mais que quisesse, papai está dando uma festa esta noite e tenho que comparecer. Isto é só uma pequena lembrança. Deixarei Hassan aqui para servir e lavar a louça e espero que vocês se divirtam bastante. Hassan! Dewa! — chamou, depois abraçou Genny e McIver e correu para a porta onde seus dois empregados esperavam. Um deles segurava seu casaco de peles. Ela o vestiu, depois embrulhou-se na mortalha escura do chador, jogou outro beijo para Genny e saiu com o outro empregado. Hassan, um homem alto de trinta anos, vestindo uma túnica branca e calças escuras e exibindo um largo sorriso, tornou a fechar a porta.
— Posso servir o jantar, madame? — perguntou a Genny, em farsi.
— Sim, por favor, dentro de dez minutos — respondeu alegremente. — Mas primeiro o patrão vai tomar um uísque. — Imediatamente, Hassan foi até o aparador, serviu o drinque e trouxe a água, inclinou-se e os deixou.
— Por Deus, Gen, parecem os velhos tempos — disse McIver, com um sorriso.
— É. Nem parece que foi só há poucos meses.
Até pouco tempo eles tinham tido um casal de empregados maravilhoso, a mulher uma cozinheira exemplar, tanto para comida européia quanto iraniana, que compensava a preguiça do marido, a quem McIver apelidara de Ali Babá. Os dois desapareceram de repente, como quase todos os empregados de estrangeiros. Sem explicação e sem aviso.
— Fico imaginando se estarão bem, Duncan.
— Devem estar. Ali Babá era um espertalhão e deve ter economizado o bastante para mantê-los por muitos meses. Paula já foi?
— Não, ela vai tornar a passar a noite aqui. Nogger não. Foram jantar com uns colegas dela da Alitalia. — E arqueou as sobrancelhas. — O nosso Nogger acha que ela já está em condições de tomar uns tragos, mas eu espero que não. Gosto de Paula. — Podiam ouvir Hassan na cozinha. — Este é o som mais doce do mundo.
McIver sorriu para ela e ergueu o copo.
— Um brinde a Xarazade e ao fato de não termos que lavar a louça.
— Esta é a melhor parte — suspirou Genny. — Uma moça tão gentil, tão prestativa. Tom tem muita sorte. Xarazade disse que ele deve chegar amanhã.
— Espero que sim, ele está trazendo correspondência para nós. Você conseguiu falar com Andy?
— Não, não. Ainda não. — McIver decidiu não mencionar o tanque. — Você acha que poderia pedir Hassan ou um dos seus outros empregados emprestado uns dois dias na semana? Isso a ajudaria bastante.
— Não poderia fazer isso, você sabe como é.
— Acho que tem razão, é um problema.
No momento era quase impossível os estrangeiros conseguirem criados, não importa quanto estivessem dispostos a pagar. Até poucos meses conseguia-se sem dificuldade empregados cuidadosos e eficientes e com a ajuda deles e algumas palavras em farsi, era fácil administrar a casa e fazer compras.
— Essa era uma das melhores coisas do Irã — ela disse. — Faz tanta diferença; tira toda a alegria de se viver num país tão diferente.
— Você ainda o considera assim tão estranho, depois de tanto tempo?
— Mais do que nunca. Toda a delicadeza, a educação, dos poucos iranianos que conhecemos, sempre senti que eram superficiais, que seus sentimentos verdadeiros são os que estão sendo demonstrados agora. Não me refiro a todo mundo, evidentemente, os nossos amigos não: Annoush, por exemplo, é uma das pessoas melhores, mais gentis do mundo. — Annoush era a esposa do general Valik, o mais importante dos sócios iranianos. — A maioria das mulheres sentia isto, Duncan — acrescentou, pensativa —, talvez por isso é que os estrangeiros estavam sempre juntos, todos aqueles grupos de tênis, grupos de esqui, saídas de barco, fins-de-semana no mar Cáspio, e empregados para carregar as cestas de piquenique e lavar a louça. Acho que tínhamos uma boa vida, mas isso terminou.
— Vai voltar... confio em Deus que sim, tanto por nós quanto por eles. Quando voltava para casa, percebi, de repente, o que mais me faz falta. A alegria. Ninguém parece rir mais. Quero dizer, nas ruas, nem as crianças — McIver tomava seu uísque bem fraco.
— Sim, também sinto muita falta da alegria. Também sinto falta do xá. Uma pena que ele tivesse que partir. Tudo estava em ordem, pelo menos para nós, até pouco tempo. Pobre homem, que tratamento horrível estamos dando a ele agora, a ele e à sua linda esposa, depois de toda a amizade que ele nos demonstrou. Eu me sinto envergonhada... ele procurou fazer o melhor por seu povo.
— Infelizmente, Genny, para a maioria parece que não foi o bastante.
— Eu sei. É triste. A vida é muito triste, às vezes. Bem, não adianta lamentar o que já aconteceu. Você está com fome?
— Se estou?
As velas tornaram a sala de jantar mais quente e aconchegante e afastaram a tristeza do apartamento. As cortinas estavam cerradas para a noite. Rapidamente, Hassan trouxe as tigelas quentes de horisht — o que, literalmente, significa sopa, mas na verdade é um ensopado de carneiro ou galinha com legumes, passas e temperos de todos os tipos — e polo, o delicioso arroz iraniano que é escaldado e depois assado num prato untado com manteiga até que fique com uma crosta firme e dourada, um dos pratos favoritos dos dois.
— Deus abençoe Xarazade, ela é um bálsamo para os olhos.
— É verdade, e Paula também — respondeu Genny sorrindo.
— Você também não é má, Gen.
— Deixe disso, mas como prêmio você vai poder tomar um drinque antes de dormir. Como diria Jean-Luc, bon appétit! — Eles comeram com apetite, a comida estava deliciosa, fazendo-os recordarem as refeições feitas nas casas dos amigos.
— Gen, encontrei o jovem Christian Tollonen na hora do almoço, você se lembra dele, aquele amigo de Erikki da embaixada da Finlândia? Ele me disse que o passaporte de Azadeh estava pronto. Isso é bom, mas o que me fez estremecer foi o que ele disse de passagem: que oito em dez dos seus amigos e conhecidos iranianos já não estão mais no Irã e que se este êxodo continuasse, logo logo só restariam os mulás e seus seguidores. Então comecei a fazer as contas e cheguei ao mesmo resultado, com relação aos que diríamos pertencer às classes média e alta.
— Não os culpo por partirem. Eu faria o mesmo. — Depois acrescentou involuntariamente: — Não acho que Xarazade faça isso.
McIver percebeu algum subentendido e analisou-a.
— Hum?
Genny brincou com um pedacinho de crosta dourada e mudou de idéia a respeito de não contar-lhe nada.
— Pelo amor de Deus, não diga nada a Tom, senão ele tem um ataque, e eu não sei até que ponto é verdade e até que ponto isso não passa de fantasia de uma jovem idealista, mas ela me cochichou alegremente que tinha passado a maior parte do dia em Doshan Tappeh onde, segundo ela, houve uma verdadeira insurreição, com armas, granadas, todos...
— Cristo!
— ...lutando ao lado do que ela chama "nossos gloriosos combatentes da liberdade" que são recrutas da Força Aérea e alguns oficiais amotinados, Faixas Verdes apoiados por milhares de civis, lutando contra a polícia, as tropas legalistas e os Imortais...
8
NO AEROPORTO DE BANDAR DELAM: 19:50H. Com o pôr-do-sol, mais revolucionários armados tinham chegado e agora havia guardas em todos os hangares e vias de acesso ao aeroporto. Rudi Lutz fora informado por Zataki que nenhum funcionário da S-G podia sair do aeroporto sem permissão, que deveriam continuar a trabalhar normalmente e que um ou mais dos seus homens acompanharia todos os vôos.
— Não vai acontecer nada desde que vocês obedeçam às ordens — dissera Zataki. — É uma situação temporária durante a transição do governo ilegal do xá para o novo governo do povo. — Mas seu nervosismo e o de toda a sua ralé mal disciplinada desmentiam sua confiança.
Starke ouvira o que eles andavam cochichando e disse a Rudi que esperavam a qualquer momento a chegada de tropas leais ao xá e o início do contra-ataque. Mas quando ele, Rudi, e o outro piloto americano, Jon Tyrer, conseguiram chegar até o rádio do trailer de Rudi, o noticiário já estava no fim. O pouco que ouviram foi muito ruim.
"...e os governos da Arábia Saudita, do Kuwait e o Iraque temem que a crise política no Irã desestabilize todo o golfo Pérsico; informou-se também que o sultão de Omã teria afirmado que o problema é maior do que uma simples influência perniciosa, é outra cobertura conveniente para a Rússia Soviética usar sua série de estados dependentes para criar, nada mais nada menos, do que um império colonial no golfo com o objetivo final de se apoderar do estreito de Ormuz... "
"No Irã, informa-se que houve luta intensa, durante a noite, entre os amotinados, cadetes da Força Aérea, pró-Khomeini, da base aérea de Doshan Tappeh, em Teerã — apoiados por milhares de civis armados — contra a polícia, as tropas legalistas e algumas unidades dos Imortais, a Guarda Imperial de elite do xá. Mais tarde, juntaram-se aos revoltosos mais de cinco mil esquerdistas do grupo marxista Saihkal, alguns dos quais invadiram o arsenal da base e levaram suas armas... "
— Jesus! — exclamou Starke.
"... Enquanto isso, o aiatolá Khomeini pediu, mais uma vez, a renúncia de todo o governo e fez um apelo ao povo para que apóie sua escolha do primeiro-ministro, Mehdi Bazargan, exortando o Exército, a Marinha e a Aeronáutica a apoiá-lo. O primeiro-ministro Bakhtiar desmentiu os boatos de um golpe militar iminente, mas confirmou uma grande concentração de tropas soviéticas na fronteira... "
"O ouro atingiu o preço recorde de US$ 254 a onça e o dólar teve uma queda acentuada em relação às outras moedas. Aqui terminam as notícias de Londres. "
Rudi desligou o rádio. Eles estavam na sala do trailer. Em um dos armários, havia um HF de reserva que, como o rádio, ele mesmo fizera. Sobre o aparador, havia um telefone ligado com o sistema da base. O telefone não estava funcionando.
— Se Khomeini vencer em Doshan Tappeh, as Forças Armadas terão que escolher — disse Starke, com segurança. — Golpe, guerra civil ou ceder.
— Eles não vão ceder, seria suicídio, por que fariam isso? — disse Tyrer. Ele era um americano desconjuntado de Nova Jersey. — E não se esqueça da elite da Força Aérea, os que nós conhecemos, pelo amor de Deus. Os amotinados não passam de uma cambada de nativos imbecis, descontentes. O problema mesmo é a adesão dos marxistas, cinco mil! Jesus! Se eles estiverem em ação agora, armados! Nós somos doidos de estarmos aqui numa hora destas, hein?
— Só que nós estamos aqui por opção; a companhia diz que ninguém vai perder o cargo se quiser sair. Temos isso por escrito. Você quer dar o fora? — perguntou Starke.
— Não, não, ainda não. — Respondeu Tyrer, irritado. — Mas o que vamos fazer?
— Em primeiro lugar, fique longe de Zataki — disse Rudi. Aquele filho da mãe é psicótico.
— É claro — disse Tyrer — mas temos que ter um plano.
Bateram com força na porta e a abriram. Era Muhammad Yemeni, o gerente da IranOil — um homem bem-apessoado, barbeado, de uns quarenta anos, que estava com eles há um ano. Dois guardas o acompanhavam.
Aga Kyabi está no HF. Quer falar com você imediatamente — disse com uma arrogância inesperada. Kyabi era o gerente geral da IranOil naquela região e o funcionário mais importante no sul do Irã.
Imediatamente, Rudi ligou o HF para falar com o QG de Kyabi, próximo a Ahwaz, ao norte de Bandar Delam. Para seu espanto, o aparelho não funcionou. Mexeu no interruptor algumas vezes, depois Yemeni disse, com um sorriso de deboche:
— O coronel Zataki ordenou que cortassem a corrente e desligassem o aparelho. Você usará o aparelho do escritório. Imediatamente.
Nenhum deles gostou do seu tom de voz.
— Estarei lá em um minuto — disse Rudi.
Yemeni fechou a cara e ordenou para os guardas, em farsi:
— Façam este cão estrangeiro andar depressa!
— Esta tenda é do nosso chefe — respondeu Starke, imediatamente, em farsi. — Existem leis muito especiais, no Sagrado Corão, sobre a defesa do chefe da tribo, na sua tenda, contra homens armados. — Os dois guardas pararam, atônitos. Yemeni olhou boquiaberto para Starke, jamais tendo imaginado que ele falava farsi, depois deu um passo para trás quando Starke se levantou em toda a sua altura e continuou: — O Profeta, cujo Nome seja louvado, estabeleceu regras de cortesia entre amigos, e também entre inimigos, e disse também que os cães são vermes. Nós somos Povos do Livro e não vermes.
Yemeni enrubesceu, deu meia-volta e saiu. Starke enxugou nas calças o suor das mãos.
— Rudi, vamos ver o que Kyabi quer.
Seguiram Yemeni pelo asfalto, acompanhados dos guardas. A noite estava clara e o ar pareceu agradável a Starke, depois do abafamento do pequeno escritório.
— O que foi que houve? — perguntou Rudi.
Starke explicou, com o pensamento longe, desejando estar de volta a Kowiss. Tinha odiado deixar Manuela, mas achou que ela estaria mais segura lá do que em Teerã.
— Querida — dissera, pouco antes de partir — vou tirar você daqui o mais depressa que puder.
— Eu estou segura aqui, querido, tão segura quanto no Texas. Tenho muito tempo, as crianças estão a salvo em Lubbock, só saí da Inglaterra depois que soube que eles estavam em casa. Você sabe que vovô Starke não vai deixar que lhes aconteça nada de mal.
— Claro. Os garotos vão ficar muito bem, mas quero você fora do Irã o mais depressa possível.
Starke voltou a ouvir Rudi perguntar
— Quem são os Povos do Livro?
— Cristãos e judeus — respondeu, imaginando como poderia chegar com o 125 a Kowiss. — Maomé considerava a nossa Bíblia e a Torah como Livros Sagrados também, muita coisa que está neles também está no Corão. Muitos estudiosos, nossos estudiosos, acham que ele simplesmente os copiou, embora a tradição muçulmana diga que Maomé não sabia ler nem escrever. Ele recitou o Corão, inteirinho, pode imaginar isso? — disse, demonstrando admiração por esse feito. — Outros o escreveram, anos depois de sua morte. Em árabe é extraordinariamente belo, sua poesia, é o que dizem
Na frente deles estava o trailer que servia de escritório, com guardas fumando do lado de fora, e Starke sentiu-se bem por ter lidado satisfatoriamente com Yemeni, e também com o mulá Hussein — quinze aterrissagens, perfeitas, aguardando nas plataformas enquanto o mulá fazia preleções aos trabalhadores a favor de Khomeini, sem que aparecesse um soldado, um policial ou a Savak, sempre, esperando que aparecessem a qualquer momento ou na próxima parada. Yemeni é titica de galinha comparado com Hussein, pensou.
Zataki e os dois mulás esperavam no escritório. Jahan, o operador de rádio, estava no HF. Zataki sentara-se na mesa de Rudi. O escritório sempre fora muito arrumado. Agora estava uma bagunça, com os arquivos abertos e papéis espalhados por toda parte, xícaras sujas, tocos de cigarro nas xícaras e pelo chão, comida em cima da mesa — arroz e carne de carneiro. E o ar fedia a fumaça de cigarro.
— Mein Gott! — disse Rudi, enraivecido. — Isto está um verrückte chiqueiro e...
— CALE A BOCA! — Explodiu Zataki. — Isto é uma situação de guerra, temos que revistar tudo. — Depois acrescentou, com mais calma: — Você... você pode mandar um dos seus homens arrumar tudo. Você não vai contar a Kyabi sobre nós. Vai agir normalmente e seguir minhas instruções, vai ficar olhando para mim. Está entendendo, capitão?
Rudi balançou a cabeça, com a cara fechada. Zataki fez um sinal ao operador de rádio, que disse ao microfone:
— Kyabi, Excelência, o capitão Lutz está aqui. Rudi pegou o microfone.
— Sim, patrão? — disse, chamando-o pelo apelido que lhe tinham dado. Tanto ele quanto Starke conheciam Yusuf Kyabi há vários anos. Kyabi fora treinado na Texas A&M e depois pela ExTex, antes de assumir o setor sul, e as relações entre eles eram muito boas.
— Boa noite, Rudi — disse a voz, em inglês com sotaque americano. — Estamos com um vazamento em um dos nossos oleodutos em algum lugar ao norte daí. É um vazamento grande, acabou de ser detectado pelas nossas estações de bombeamento. Deus sabe quantos barris já foram bombeados ou quanto ainda resta no oleoduto. Não estou solicitando uma emergência, mas quero um helicóptero ao amanhecer para encontrar o vazamento. Você pode vir me apanhar cedo?
Zataki fez sinal que sim, então Rudi respondeu:
— OK, patrão. Estaremos aí o mais cedo possível. Você quer um 206 ou um 212?
— Um 206, seremos eu e meu engenheiro-chefe. Venha você mesmo, sim? Pode ser sabotagem... pode ser um vazamento. Tiveram algum problema em Bandar Delam?
Rudi e Starke estavam bem conscientes das armas na sala.
— Não, não mais do que o normal. Vejo você amanhã. — Disse Rudi, querendo interrompê-lo, porque Kyabi era geralmente muito franco a respeito dos revolucionários. Ele não aprovava nem a revolução nem o fanatismo de Khomeini, e detestava interferência no seu complexo petrolífero.
— Espere um momento, Rudi. Ouvimos dizer que ocorreram mais distúrbios em Abadan, e ouvimos tiroteio em Ahwaz. Você sabia que um americano do ramo do petróleo e um dos nossos sofreram uma emboscada e foram mortos perto de Ahwaz, ontem?
— Sim, Tommy Stanson. Terrível.
— Se é. Que Deus amaldiçoe todos os assassinos! Tudeh, mujhadin, fedayim ou seja lá quem for.
— Sinto muito, patrão, mas preciso desligar. Vejo você amanhã.
— Está bem, conversamos amanhã. Insha'Allah, Rudi. Insha'Allah! A transmissão foi cortada. Rudi deu um suspiro de alívio. Não achou que
Kyabi tivesse dito alguma coisa que pudesse prejudicá-lo. A não ser que aqueles homens fossem secretamente do Tudeh — ou de algum dos outros grupos extremistas — e não partidários de Khomeini como afirmavam. "Todos os nossos grupos extremistas usam mulás como disfarce, ou tentam usá-los. " Kyabi tinha dito a ele. "Infelizmente, a maioria dos mulás são camponeses empobrecidos, ignorantes, uma presa fácil para revoltosos bem treinados. Que Deus amaldiçoe Khomeini... "
Rudi sentiu o suor escorrer pelas costas.
— Um dos meus homens irá com você, e desta vez você não vai tirar o pente de balas dele — disse Zataki.
O queixo de Rudi se projetou e a tensão na sala cresceu.
— Eu não vou voar com homens armados. É contra as regras da companhia, as regras da aviação, e principalmente contra as ordens do DAC iraniano. Se desobedecermos às regras do DAC, nossas licenças serão cassadas — disse, com ódio deles.
— Talvez eu mate um dos seus homens se você não obedecer. — Furiosamente, Zataki deu um tapa numa xícara que estava em cima da mesa e ela rolou pela sala.
Starke avançou, igualmente furioso. Zataki apontou o revólver para ele.
— Os seguidores do aiatolá Khomeini são assassinos? É esta a lei do Islã? Por um instante, Starke pensou que Zataki fosse puxar o gatilho, então o mulá Hussein levantou-se.
— Eu irei no avião. — Depois virou-se para Rudi: — Você jura que não vai tentar nos enganar e que vai voltar sem truques?
— Sim — disse Rudi, depois de uma pausa, com a voz tremendo.
— Você é cristão?
— Sim.
— Jure por Deus que não vai nos enganar.
— Está bem. Eu juro por Deus que não vou enganá-los — concordou Rudi, depois de nova pausa.
— Como pode confiar nele? — perguntou Zataki.
— Eu não confio — disse, com simplicidade, Hussein. — Mas se ele enganar a Deus, Deus o castigará. E a seus companheiros. Se nós não voltarmos ou se ele criar problemas... — E deu de ombros.
ABERDEEN — MANSÃO DE GAVALLAN: 19: 23H. Todos estavam na sala de televisão, assistindo, num telão, a um replay da partida de rugby daquele dia entre a Escócia e a França — Gavallan, sua mulher Maureen, John
Hogg, que geralmente pilotava o jato 125 da companhia, e alguns outros pilotos. O escore era 17 a 11 a favor da França, já quase no fim do segundo tempo. Todos os homens gemeram quando um escocês perdeu a bola, um francês recuperou-a e avançou quase quarenta metros.
— Aposto dez libras que a Escócia ainda vai ganhar! — disse Gavallan.
— Aceito a aposta — respondeu sua mulher e riu com a cara que ele fez. Ela era alta e ruiva e usava roupas de um verde elegante que combinavam com os seus olhos. — Afinal de contas, eu sou meio francesa.
— Um quarto — sua avó era da Normandia — quelle horreur, e ela... — O barulho da torcida interrompeu sua brincadeira quando o atacante escocês arrancou a bola do meio do bolo, atirou-a para um lateral que a atirou para um outro que se livrou da confusão, derrubou dois adversários e se lançou para a linha de gol 45 metros à frente, ziguezagueando, mudando brilhantemente de direção para depois tornar a avançar, tropeçando mas conseguindo se equilibrar, depois se lançando numa última corrida gloriosa e mergulhando sobre a linha, sendo imediatamente afogado por corpos e aplausos ensurdecedores. Conseguiu! 17 a 15 agora. Um chute a gol bem-sucedido empataria o jogo. — Pra frente Escócia...
A porta se abriu e um empregado ficou ali parado. Simultaneamente, Gavallan levantou, observou apreensivo o chute que foi certeiro e respirou aliviado.
— O dobro ou nada, Maureen? — perguntou por cima do pandemônio, sorrindo para ela enquanto saía apressado.
— Aceito!
Ela já está vinte libras mais pobre, pensou, muito satisfeito consigo mesmo, atravessando o corredor da enorme casa velha e ampla, bem mobiliada com muito couro, bons quadros e belas antigüidades, muitas delas da Ásia, e foi para o escritório que ficava em frente. Lá dentro, seu motorista — que era também guarda-costas e homem de confiança — que tentava ligar para McIver em Teerã há três horas e controlar as ligações de fora, estendeu-lhe um dos fones.
— Sinto muito interromper, senhor, o...
— Conseguiu ligar para ele, Williams? Que bom. O placar está 17 a 17.
— Não, senhor, sinto muito, as linhas ainda estão ocupadas; mas achei que esta chamada era importante: Sir Ian Dunross.
A decepção de Gavallan desapareceu. Ele pegou o fone, Williams saiu e fechou a porta.
— Ian, que ótimo falar com você; é uma surpresa agradável.
— Olá, Andy, pode falar mais alto? Estou ligando de Shangai.
— Pensei que você estivesse no Japão; posso ouvi-lo muito bem. Como vão as coisas?
— Ótimas. Melhor do que eu esperava. Ouça, preciso falar depressa, é que ouvi um boato, dois, na verdade. O primeiro é que o tai-pan precisa fazer algum bom negócio para tirar a ele mesmo e à Struan's do buraco este ano. E quanto ao Irã?
— Todo mundo acha que as coisas vão esfriar, Ian. Mac tem tudo sob controle, na medida do possível; prometeram-nos todos os contratos da Guerney, de modo que acho que vamos aumentar, talvez dobrar nossos lucros, desde que não haja nenhum Ato de Deus.
— Talvez haja.
Toda a alegria de Gavallan desapareceu. Mais de uma vez seu velho amigo tinha-lhe dado algum aviso ou informação que mais tarde mostrava-se espantosamente correta — ele nunca soube onde Dunross obtinha suas informações, ou com quem, mas ele raramente se enganava.
— Outra coisa, acabei de saber que houve ordens secretas, de alto nível, talvez até nível de gabinete, para uma mudança financeira e administrativa na Imperial Air. Isso poderá afetá-lo?
Gavallan hesitou. A Imperial Air era a proprietária da Imperial Helicopters, sua maior competidora no mar do Norte.
— Não sei, Ian. Na minha opinião, eles esbanjam o dinheiro dos contribuintes; eles precisam mesmo de uma reorganização. Nós ganhamos deles em todas as áreas que posso imaginar, segurança, salários, equipamentos... por falar nisso, eu encomendei seis X63.
— O tai-pan sabe disso?
— Ficou puto quando soube. — Gavallan ouviu a gargalhada, e por um instante se viu de volta a Hong Kong dos velhos tempos, quando Dunross era tai-pan e a vida era dura mas profundamente excitante, quando Kathy era Kathy e não estava doente. Droga, pensou, e tornou a se concentrar. — Qualquer coisa que diga respeito à Imperial é importante; vou checar imediatamente. As outras novidades daqui são muito boas; novos contratos com a ExTex. Eu ia anunciar isso na próxima reunião de diretoria. A Struan's não está em perigo, está?
— A Casa Nobre está sempre em perigo, cara! — disse, dando outra gargalhada. — Só queria avisar. Tenho que desligar. Mande um beijo para Maureen.
— E mande um para Penélope também. Quando é que eu vejo você?
— Logo. Ligo quando puder; dê lembranças minhas ao Mac quando o encontrar. Até logo.
Imerso em pensamentos, Gavallan sentou-se na beirada da bela escrivaninha. Seu amigo sempre dizia 'logo' e isto podia significar um mês ou um ano, até dois. Já faz mais de dois anos que não o vejo, pensou. É uma pena que ele não seja mais tai-pan — uma pena ele ter-se aposentado, mas todos nós temos que sair para outra de vez em quando. "Para mim chega, Andy", dissera Dunross, "a Struan's está em excelente forma, os anos setenta prometem ser uma época fantástica para se expandir e... bem, agora não há mais nenhuma excitação. " Isto foi em 1970, logo depois que seu maior e mais odiado rival, Quillan Gornt, tai-pan da Rothwell-Gornt, afogou-se num acidente de barco perto de Sha Tin, nos Novos Territórios de Hong Kong.
Imperial Air? Gavallan deu uma olhada no relógio, estendeu a mão para o telefone, mas parou ao ouvir uma batida discreta na porta. Maureen entrou e sorriu alegre vendo que ele não estava no telefone.
— Ganhei. Foi 21 a 17. Está ocupado?
— Não, entre querida.
— Não posso, tenho que ver se o jantar está pronto. Dentro de dez minutos? Pode me pagar agora, se quiser.
— Depois do jantar! Você é um estouro, sra. Gavallan — disse rindo, e abraçou-a.
— Ótimo. Não se esqueça. — Sentia-se bem nos braços dele. — Tudo certo com Mac?
— Era o Ian. Ligou só para dizer alô. De Shangai.
— Ele também é um homem incrível. Quando vamos vê-lo?
— Logo.
Novamente ela riu junto com ele, os olhos brilhantes e a pele macia. Tinham se encontrado pela primeira vez há sete anos, no Castelo Avisyard, onde o então tai-pan, David MacStruan, dava uma festa de Ano-Novo. Ela tinha 28 anos, estava recém divorciada e não tinha filhos. Seu sorriso fizera-o esquecer as tristezas e Scot sussurrara: "Papai, se você não a arrastar para o altar é porque está maluco. " Sua filha Melissa dissera o mesmo. E assim, há três anos, eles se casaram, e desde então todos os dias tinham sido felizes.
— Dez minutos, Andy? Tem certeza?
— Sim, só tenho que dar um telefonema. — Gavallan viu-a franzir a testa e acrescentou rapidamente: — Prometo. Só um e depois Williams fica atendendo o telefone.
Ela lhe deu um beijo rápido e saiu. Gavallan discou.
— Boa noite, Sir Percy pode atender? Aqui é Andrew Gavallan. — Sir Percy Smedley-Taylor, diretor da Struan's Holdings, era membro do Parlamento e estava cotado para ministro da Defesa se os conservadores vencessem as próximas eleições.
— Alô, Andy, que bom você ter ligado. Se é a respeito da caçada do próximo sábado, pode contar comigo. Desculpe não ter respondido antes, mas as coisas têm sido bastante agitadas com este pseudo governo fazendo o país andar para trás, e os malditos sindicatos também; se ao menos eles se dessem conta disso.
— Concordo plenamente. Estou atrapalhando você?
— Não, você me pegou em casa por pouco; estou indo para o Parlamento para outra votação noturna. Entre outras coisas, os imbecis querem nos ver fora da OTAN. Como foi o teste com o X63?
— Maravilhoso! Melhor do que eles diziam. É o melhor do mundo!
— Gostaria muito de experimentá-lo, se você puder conseguir isto. O que posso fazer por você?
— Ouvi um boato de que está havendo uma reorganização secreta na alta cúpula da Imperial Air. Você ouviu alguma coisa?
— Meu Deus, Andy, seus contatos são muito bons. Eu só ouvi este boato hoje à tarde, cochichado em segredo por uma fonte fidedigna da oposição. Muito estranho! Na hora, não dei muita importância. O que será que eles estão tramando? Você tem algo de concreto para comprovar?
— Não. Só o boato.
— Vou verificar. Será... Será que os cafajestes estão se preparando para nacionalizar oficialmente a Imperial, junto com a Imp Helicopters, você e todo o mar do Norte?
— Meu Deus — a preocupação de Gavallan aumentou. Esta idéia não lhe ocorrera. — Eles podem fazer isso se quiserem?
— Sim, facilmente.
DOMINGO 11 de fevereiro9
FORA DE BANDAR DELAM: 6: 55H. Amanhecera há pouco. Rudi tinha pousado longe da galeria e agora todos quatro estavam em pé na borda. A temperatura estava agradável e até o momento não houvera qualquer problema. Ainda vazava petróleo do oleoduto, mas sem pressão.
— É só o que ainda ficou no cano — disse Kyabi. — Deve parar dentro de uma hora. — Ele era um homem de feições marcadas, com cerca de cinqüenta anos, bem barbeado, de óculos, e usava uma roupa cáqui e um chapéu duro. Olhou em volta, zangado. A terra estava ensopada de petróleo e os gases eram quase insuportáveis. — Esta área toda é letal. — Foi andando na frente até o carro virado. Havia três corpos no meio dos destroços e já estavam começando a cheirar mal.
— Amadores? — perguntou Rudi, espantando as moscas. — Explodiu antes da hora?
Kyabi não respondeu. Entrou na galeria. Era difícil respirar mas ele examinou cuidadosamente a área, depois voltou para a estrada.
— Eu diria que você está certo, Rudi. — Olhou para Hussein com a cara fechada. — Foi gente sua?
— O imã não deu ordens para sabotar oleodutos. Isto é obra dos inimigos do Islã — respondeu o mulá, tirando os olhos do carro.
— Há muitos inimigos do Islã que afirmam serem seguidores do Profeta, que se apropriaram de suas palavras e as deturparam — disse Kyabi com amargura —, traindo a ele e ao Islã.
— Eu concordo, e Deus vai descobri-los e castigá-los. — Os olhos escuros de Hussein estavam igualmente severos. — O que o senhor pode fazer a respeito do vazamento?
Tinham levado duas horas para encontrar o vazamento. Voaram em círculos a poucas centenas de metros de altura, estarrecidos com a extensão do vazamento, que inundara o riacho e suas margens e, levado pela corrente, já atingira alguns quilômetros rio abaixo. Uma espuma grossa e negra cobria a superfície, de uma margem a outra. Até agora apenas uma aldeia fora afetada. Alguns quilômetros para o sul havia muitas outras aldeias. O rio fornecia água para beber, para lavar, e era o esgoto deles.
— Queime tudo, o mais depressa possível. — Kyabi olhou para o engenheiro. — Sim?
— Sim, sim, é claro. Mas e a aldeia, Excelência? — O engenheiro era um iraniano nervoso, de meia-idade, que observava, pouco à vontade, o mulá.
— Evacue a aldeia. Diga aos aldeões para saírem até tudo estar seguro.
— E se a aldeia pegar fogo? — perguntou Rudi.
— Se pegar, pegou. É a Vontade de Deus.
— Sim — disse Hussein. — Como vão fazer para queimar?
— Um fósforo seria o suficiente. É claro que você queimaria junto. — Kyabi pensou por um momento. — Rudi, você está com sua pistola de sinalização a bordo?
— Sim. — Rudi insistira em levar a pistola, dizendo que era equipamento essencial em caso de emergência. Todos os pilotos o apoiaram embora soubessem que não era essencial. — E com quatro foguetes de sinalização. Você...
Todos olharam para o céu ao ouvir o barulho de jatos se aproximando. Dois caças, voando baixo e muito depressa, passaram por cima deles em direção ao golfo. Rudi calculou que eles estavam indo diretamente para Kharg. Eram caças de combate e ele vira os mísseis que carregavam. Será que os mísseis são para a ilha Kharg? perguntou a si mesmo, sentindo a garganta apertada. Será que a revolução já chegou até lá? Ou é apenas um vôo de rotina?
— O que você acha, Rudi? Kharg? — perguntou Kyabi.
— Kharg fica naquela direção, patrão — disse Rudi, não querendo comprometer-se. — Se for, deve ser um vôo de rotina. Tínhamos uma dúzia de decolagens e aterrissagens por dia, quando estávamos lá. Você quer usar a pistola para atear fogo?
Kyabi mal o escutou. Suas roupas estavam manchadas de suor, as botas pretas de óleo. Estava pensando no motim da Força Aérea, em Doshan Tappeh. Se aqueles dois pilotos também são revoltosos e atacam Kharg e sabotam nossas instalações lá, pensou, quase sufocado de raiva e frustração, o Irã vai retroceder uns vinte anos.
Quando Rudi viera apanhá-lo cedinho, naquele dia, Kyabi ficara atônito ao ver o mulá e exigira uma explicação. Quando o mulá respondeu, cheio de ódio, que Kyabi deveria fechar todas as instalações e se declarar a favor de Khomeini imediatamente, quase ficou sem fala.
— Mas isso é a revolução. Isso significa a guerra civil!
— É a Vontade de Deus — dissera Hussein. — Você é iraniano, e não um lacaio estrangeiro. O imã ordenou que enfrentássemos as Forças Armadas e os vencêssemos. Com a ajuda de Deus, seremos a primeira república islâmica verdadeira na Terra, desde os dias do Profeta, que a Bênção de Deus esteja com ele.
Kyabi tinha tido vontade de dizer o que já dissera muitas vezes em particular:
— É um sonho de louco, e o seu Khomeini é um velho mau e senil, levado por uma vingança pessoal contra os Pahlavis Reza Xá, cuja polícia ele acredita que tenha assassinado seu pai, e o Muhammad Xá, cuja Savak ele acredita que tenha assassinado seu filho no Iraque há alguns anos; ele não passa de um fanático medíocre que quer nos fazer voltar, a nós, o povo, e principalmente as mulheres, para a Idade Média.
Mas hoje não dissera nada disso para o mulá. Em vez disso, voltou sua atenção para o problema da aldeia.
— Se a aldeia pegar fogo, eles podem reconstruí-la facilmente. Seus pertences é que são importantes. — E disfarçou o ódio.
— Pode ajudar, se quiser, Excelência. Eu apreciaria sua ajuda. Pode falar com eles.
Os aldeões se recusaram a partir. Pela terceira vez, Kyabi explicou que o fogo era o único meio de salvar a água deles e de salvar as outras aldeias. Então Hussein lhes falou, mas eles ainda se recusavam a partir. Nessa altura, já estava na hora da oração do meio-dia e o mulá conduziu as preces e mais uma vez lhes disse para saírem das margens do rio. Os mais velhos consultaram uns aos outros e disseram:
— É a Vontade de Deus. Nós não vamos partir.
— É a Vontade de Deus — Hussein concordou. E virou as costas e foi andando na frente até o helicóptero.
Novamente eles pousaram perto da galeria. Agora saía apenas um filete de óleo do cano.
— Rudi — disse Kyabi —, ande na direção do vento, o mais longe que puder, e atire um foguete de sinalização dentro da galeria. Depois atire outro no meio da corrente. Pode fazer isso?
— Posso tentar. Nunca atirei com uma pistola de sinalização antes.
Rudi andou em direção ao deserto. Os outros voltaram para o helicóptero que ele tinha estacionado a uma distância segura. Quando estava em posição, colocou o enorme cartucho dentro da pistola, mirou e puxou o gatilho. A pistola deu um coice maior do que esperava. O jato de fogo descreveu um arco baixo, ricocheteou ao cair antes do tempo, depois tornou a saltar e caiu dentro da galeria. Por um momento, nada aconteceu, depois a terra explodiu e o fogo se espalhou para o alto e para os lados, transformando o carro virado numa pira funerária. A onda de choque superaquecida o envolveu e depois se expandiu. Uma fumaça preta subiu em direção ao céu. O fogo começou a se espalhar, correndo em direção ao riacho.
O segundo jato vermelho fez um arco bem alto e depois caiu no rio. O rio pegou fogo. Eles souberam disto mais pelo som do que pela visão, mas quando tornaram a decolar, costeando o rio na direção do vento, viram o fogo se espalhando rapidamente correnteza abaixo. Vastas nuvens de fumaça negra marcavam seu caminho. Perto da aldeia voaram em círculo. Homens, mulheres e crianças fugiam com o que podiam carregar. Enquanto olhavam, a aldeia foi destruída.
Os quatro homens voaram de volta para casa.
Para Kyabi, o lar era o QG da IranOil, nas redondezas de Ahwaz, um conjunto harmonioso de edifícios de concreto branco, com gramados bem irrigados e um heliporto cercado por um muro alto.
— Obrigado, Rudi — disse, com o coração pesado. Em volta do helicóptero formara-se um anel de homens armados que tinham vindo correndo assim que pousaram, gritando e apontando as armas. Atrás de Kyabi, o mulá brincava com seu terço de orações.
Kyabi soltou o cinto de segurança. É a Vontade de Deus, pensou. Fiz o que pude, rezei corretamente e sei que não há nenhum outro deus além de Deus e que Maomé é o seu Profeta. Quando eu morrer, morrerei amaldiçoando os inimigos de Deus, principalmente Khomeini, falso Profeta, assassino, e todos os que o seguem.
Ele se virou. Seu engenheiro estava com a cara cinzenta e rígido no assento ao lado de Hussein.
— Mulá, eu o recomendo à vingança de Deus. — Kyabi saltou.
Eles atiraram em Kyabi e arrastaram o engenheiro. Depois, como o mulá tivesse pedido, permitiram que o helicóptero partisse.
10
NA BASE AÉREA DE KOWISS: 17:09H. Manuela caminhava depressa pelas instalações da S-G em direção ao prédio de escritórios de um andar que parecia agradável ao sol da tarde, com a torre de rádio projetando-se como um segundo andar. Usava um macacão de vôo com o emblema da S-G nas costas e seu cabelo castanho-avermelhado estava enfiado num boné largo e pontudo, mas o andar denunciava-lhe a feminilidade.
No escritório havia três homens da equipe iraniana. Educadamente, eles se levantaram e sorriram, observando-a com seus olhos cobertos por cílios espessos.
— Boa tarde, Excelência Pavoud — disse em farsi, com um sorriso. — O capitão Ayre queria ver-me?
— Sim, madame senhora. Sua Excelência está na torre — respondeu o chefe dos funcionários. — Posso ter a honra de conduzi-la? — Ela recusou e agradeceu, e quando ela já tinha atravessado o corredor e estava subindo a escada em espiral, Pavoud disse insolentemente. — É escandaloso o modo como ela se exibe para nós. Ela faz isso só para nos provocar
— Pior do que uma prostituta do bairro velho, Excelência — disse um outro, igualmente aborrecido. — Por Deus, de todos os infiéis, os americanos são os piores e suas mulheres são piores ainda. E esta então, esta está pedindo, está implorando confusão...
— Ela está pedindo um bom cacete iraniano — disse um homenzinho, se coçando.
— Ela deveria usar um chador, cobrir-se e caminhar com discrição — disse Pavoud. — Nós somos todos homens aqui. Nós todos já geramos filhos. Será que ela acha que somos eunucos?
— Ela deveria ser açoitada por nos provocar.
— Com a ajuda de Deus, ela o será em breve — publicamente. Todo mundo será submetido às leis islâmicas, e aos castigos. — E Pavoud apertou de leve o nariz.
— Dizem que as mulheres americanas não têm pentelhos.
— É que elas raspam as partes.
— Com ou sem pentelhos, Excelência chefe, eu gostaria de meter nela até ela gemer, de alegria, disse o homenzinho, e eles riram juntos.
— Aquele imbecil do marido dela se diverte toda noite, desde que ela chegou. — Os olhos do chefe brilharam. — Eu os ouvi gemendo de noite. — Acendeu um cigarro no toco do anterior, depois se levantou e olhou pela janela. Usava óculos e ficou observando o céu até ver um helicóptero ao longe fazer a curva para descer. Morte a todos os estrangeiros, pensou, depois acrescentou do fundo do coração: E morte a Khomeini e todos os seus parasitas! Longa vida para o Tudeh e para a revolução das massas!
A torre era pequena, com janelas de vidro de todos os lados, e muito bem equipada. Esta fora sua base permanente por muitos anos, então a S-G tivera tempo para equipá-la com modernos equipamentos de segurança e recursos para pouso em qualquer tipo de tempo. Freddy Ayre, piloto chefe na ausência de Starke, esperava por Manuela.
— HXB está se preparando para descer — disse quando ela chegou. — Ele.
— Oh, que ótimo — ela interrompeu alegre.
Tinham tentado entrar em contato com Starke o dia inteiro, sem sucesso:
— Não se preocupe — dissera-lhe Ayre —, o HF deles muitas vezes sai do ar, assim como o nosso. — Desde a noite anterior, logo depois de escurecer, a única notícia fora a breve comunicação de Starke de que passaria a noite em Bandar Delam e que entraria em contato com eles hoje.
— Sinto muito, Manuela, mas Duke não está a bordo. Marc Dubois está pilotando.
— Houve um acidente? — exclamou, seu mundo desmoronando. — Ele está ferido?
— Oh, não. Nada disso. Quando Marc se comunicou conosco há poucos minutos, disse que Duke tinha ficado em Bandar Delam e que ele tinha recebido ordem de conduzir o mulá e seu grupo na viagem de volta.
— Foi só isto? Você tem certeza?
— Sim. Olhe — disse Ayre, apontando para fora —, lá está ele.
O 206 se aproximava vindo da direção do sol. Atrás dele, as montanhas
Zagros se erguiam majestosas. Embaixo, estavam as chaminés da enorme refinaria, com suas línguas de fogo queimando sem parar. Pousou exatamente no centro da plataforma de aterrissagem Um.
— HXB desligando os motores — disse Marc Dubois no rádio.
— Roger, HXB — respondeu o operador de serviço na torre, Massil Tugul, um velho funcionário palestino. Ele mudou a freqüência para a da base. — Base, não temos mais nenhum pássaro no sistema agora. Confirmo que HVU e HCF voltarão antes do pôr-do-sol.
— OK, S-G. — Houve um momento de silêncio, depois, no canal principal da base, eles ouviram uma voz entrar falando em farsi, transmitindo do 206. A voz falou durante meio minuto e depois parou.
— Insha'Allah! — Resmungou Massil.
— Quem foi que falou? — Perguntou Ayre.
— O mulá Hussein, aga.
— Que diabo ele disse? — perguntou-lhe Ayre, esquecendo que Manuela sabia falar em farsi.
Massil hesitou. Manuela respondeu por ele, com o rosto pálido.
— O mulá disse: "Em Nome de Deus e em Nome do Turbilhão de Deus, ataquem!" Repetiu isso sem parar, sem pa...
Do outro lado do campo ouviu-se o som abafado de tiros. Imediatamente, Ayre pegou o microfone:
— Marc, à la tour, vite, immédiatement! — Ordenou, com um sotaque excelente, depois examinou a base, a um quilômetro de distância. Havia homens correndo para fora de suas barracas. Alguns carregavam armas. Vários caíram quando foram atacados. Ayre abriu uma das janelas para ouvir melhor. Gritos longínquos de 'Allah-u Akbar' se misturavam com as explosões dos rifles automáticos.
— O que é aquilo? Perto do portão, do portão principal? — perguntou Manuela, com Massil em pé ao lado dela, igualmente chocado e nem um pouco assustado.
Ayre apanhou o binóculo e focalizou-o.
— Meu Deus, há soldados atirando para a base e... e caminhões invadindo o portão... uma meia dúzia... Faixas Verdes, mulás e soldados estão saltando dos caminhões.
Pelo canal da base veio uma voz excitada, gritando em farsi, que foi cortada abruptamente. Mais uma vez Manuela traduziu: "Em Nome de Deus, matem todos os oficiais que se oponham ao imã Khomeini e tomem a base. É a revolução!"
Lá em baixo, eles viram o mulá Hussein e dois Faixas Verdes descerem do 206, com as armas na mão. O mulá fez sinal para Dubois sair da cabine, mas o piloto sacudiu a cabeça e apontou para as hélices girando e continuou com as manobras de aterrissagem. Hussein hesitou.
O trabalho cessara em todas as instalações da S-G. As pessoas debruçavam-se nas janelas ou tinham saído para a pista e estavam lá, em pequenos grupos silenciosos, olhando para o outro lado do campo. O barulho do tiroteio aumentou. Perto dali, o jipe e o caminhão de combustível que iam atender ao 206 frearam bruscamente assim que o tiroteio começou. Hussein tinha feito sinal para o jipe, deixando um homem para tomar conta do helicóptero. O motorista o viu aproximando-se, pulou fora e saiu correndo. O mulá praguejou e, junto com um dos Faixas Verdes, sentou-se ao volante, ligou o motor e partiu em direção às barracas.
Dubois subiu os degraus, de três em três. Ele tinha 36 anos, era alto e magro, com cabelos pretos e um sorriso maroto. Estendeu a mão e cumprimentou Ayre.
— Madonna, que dia, Freddy!... Manuela! — Beijou-a afetuosamente nas duas faces. — O Duke está bem, chérie. Apenas teve uma discussão com o mulá que disse que não voaria mais com ele. Bandar Delam não... — E parou, consciente da presença de Massil, desconfiando dele. — Preciso de um drinque. Vamos até a cantina, hein?
Eles não foram para a cantina. Marc levou-os até a pista, procurando um abrigo no prédio de onde pudessem observar em segurança e sem serem ouvidos.
— Não há nenhuma maneira de saber de que lado Massil está, nem a maioria dos nossos funcionários, se é que eles próprios sabem, os infelizes.
Do outro lado do campo houve uma explosão. O fogo subiu de um dos galpões e uma onda de fumaça se espalhou no ar.
— Mon Dieu, foi o depósito de combustível?
— Não, foi perto. — Ayre estava muito inquieto. Uma outra explosão chamou-lhe a atenção; depois, misturada com o tiroteio esporádico, ouviu-se a detonação de um tanque.
O jipe com o mulá desaparecera atrás das barracas, os caminhões do Exército tinham estacionado ao acaso; os soldados e os Faixas Verdes desapareceram nos hangares e barracas. Havia alguns corpos no chão. Os soldados dos tanques, que guardavam o prédio de escritórios do comandante Peshadi, estavam agachados perto da porta, com as armas prontas. Outros esperavam nas janelas do segundo andar. Um dos homens que estava lá deu uma rajada de metralhadora quando meia dúzia de soldados e aviadores lançaram-se ao ataque. Mais uma rajada e todos estavam mortos, morrendo ou gravemente feridos. Um dos feridos começou a se arrastar para um lugar seguro. Os guardas deixaram-no arrastar-se até quase conseguir um abrigo. Depois o crivaram de balas.
Manuela gemeu e eles a levaram mais para o interior do prédio.
— Estou bem — disse ela. — Marc, quando é que Duke vai voltar?
— Rudi ou Duke vão ligar hoje à noite ou amanhã, com certeza. Pas de problème. O Grande Duke está bem. Mon Dieu, preciso de um drinque.
Aguardaram um momento, com o tiroteio diminuindo.
— Vamos — disse Ayre —, estaremos mais seguros nos bangalôs.
Correram até um dos bonitos bangalôs cercados por muros brancos e jardins bem tratados. Não havia acomodações para casados em Kowiss. Geralmente os bangalôs de dois quartos eram habitados por dois pilotos. Manuela foi preparar os drinques.
— Agora, o que aconteceu realmente? — Perguntou Ayre, baixinho. Rapidamente, o francês contou-lhe a respeito do ataque, de Zataki e da bravura de Rudi.
— Aquele velho Kraut merece realmente uma medalha — disse com admiração. — Mas ouça, na noite passada os revolucionários mataram um dos nossos operários. Eles o julgaram e mataram em quatro minutos, acusando-o de ser um fedayim. Esta manhã, outros filhos da mãe mataram Kyabi.
— Mas por quê? — Perguntou Ayre, estarrecido.
Dubois contou sobre a sabotagem do oleoduto, e acrescentou:
— Quando Rudi e o mulá voltaram, Zataki nos reuniu e disse que era verdade que Kyabi fora morto por ser "partidário do xá, partidário dos demônios americanos e ingleses que tinham espoliado o Irã durante anos e que, portanto, era um inimigo de Deus".
— Pobre patrão. Cristo, eu gostava um bocado dele, era um bom sujeito.
— Sim. E abertamente anti-Khomeini, e agora esses filhos da mãe têm armas, nunca vi tantas armas, e são todos stupides, malucos. — Dubois retesou-se. — O velho Duke começou a berrar com todos eles em farsi; ele já tinha tido um confronto com Zataki e com o mulá na noite passada. Não sabemos o que ele disse, mas as coisas ficaram feias, os filhos da mãe caíram em cima dele, começaram a chutá-lo e a gritar com ele. É claro que todos nós entramos na briga, então ouvimos o barulho de um tiro e ficamos paralisados. Eles também, porque foi Rudi que atirou. Ele tinha conseguido tirar a arma de um deles e deu outro tiro para o ar. E gritou: "Deixem-no em paz ou matarei todos vocês!" E manteve a arma apontada para Zataki e para o grupo que estava perto de Duke. Eles o deixaram em paz. Depois de praguejar contra eles, Rudi fez um acordo; ma foi, quel homme: eles nos deixariam em paz e nós deixaríamos que fizessem a revolução deles, eu traria o mulá para cá, Duke ficaria, e Rudi conservava a arma. Ele fez o mulá e Zataki jurarem por Alá que não quebrariam o acordo, mas eu ainda não acredito neles. Merde, todos eles são merde, mon ami. Mas Rudi, Rudi foi fantástico. Ele devia ser francês. Tentei me comunicar com eles o dia inteiro, mas não tive resposta...
Do outro lado do campo, um tanque centurião chegou, atirando, de uma das ruas que ficavam no fim do conjunto de barracas, fez uma curva e entrou na rua principal, que ficava em frente ao QG da base e da cantina dos oficiais. Ele parou lá, com os motores roncando, gordo, atarracado e mortal. O longo canhão fez a volta, procurando um alvo. Então, subitamente, as engrenagens giraram, o tanque rodou no seu eixo e atirou. A bala destruiu o segundo andar, onde o coronel Peshadi tinha seu escritório. Os soldados que defendiam o prédio ficaram abalados com essa traição inesperada. O tanque abriu fogo novamente. Enormes pedaços de reboco se soltaram e metade do telhado desabou. O prédio começou a pegar fogo.
Nesse momento, do térreo e de parte do segundo andar, uma saraivada de balas foi disparada contra o tanque. Imediatamente, dois legalistas saíram correndo pela porta principal, com granadas na mão, atiraram-nas pela abertura do tanque e correram para se abrigar. Os dois homens se curvaram sob uma rajada de balas que veio do outro lado da rua, mas houve uma terrível explosão dentro do tanque que começou a lançar fogo e fumaça. A tampa de metal se abriu e um homem em chamas tentou saltar fora. Seu corpo quase foi arrancado do tanque pela rajada de balas que partiam do edifício semidestruído. O vento que soprava daquele lado da base trazia o cheiro de pólvora, fogo e carne queimada.
A batalha continuou por mais de uma hora, depois terminou. O sol poente dava à cena uma coloração sangrenta e, por toda a base, havia mortos e moribundos, mas a insurreição falhara porque não tinham matado o coronel Peshadi nem seus oficiais mais graduados no primeiro ataque de surpresa, porque o número de soldados e aviadores que aderiram não fora suficiente — e só um dos tanques os apoiou.
Peshadi estivera no tanque principal e, com ele, defendeu a torre e todo o sistema de comunicações. Tinha reunido as forças leais e comandara o impiedoso ataque que expulsou os revolucionários dos hangares e das barracas. E assim que a maioria cautelosa, que esperava para ver que lado venceria, assim que esses aviadores e soldados perceberam que a revolta estava perdida, não hesitaram mais. Imediata e zelosamente, declararam sua lealdade histórica e eterna a Peshadi e ao xá, apanharam as armas que estavam pelo chão e, com o mesmo zelo, em Nome de Deus, começaram a atirar no 'inimigo'. Mas pouco atiravam para matar e embora Peshadi soubesse disso, deixou aberto um caminho para a fuga e permitiu que alguns revoltosos escapassem. Sua única ordem secreta para os homens em que mais confiava foi: "Matem o mulá Hussein"
Mas, de algum modo, Hussein escapou.
— Aqui fala o coronel Peshadi — ouviu-se na freqüência principal da base e em todos os alto-falantes. — Graças a Deus o inimigo está morto, morrendo ou capturado. Agradeço a todas as tropas leais. Todos os oficiais e soldados recolherão nossos gloriosos mortos, que morreram fazendo o trabalho de Deus, e informarão quantos foram, bem como o número de inimigos mortos. Médicos e atendentes! Cuidem igualmente de todos os feridos. Deus é grande... Deus é grande! Já está quase na hora da oração da noite. Esta noite sou eu o mulá e vou conduzi-la. Todos estarão presentes para dar graças a Deus.
No bangalô de Starke, Ayre, Manuela e Dubois ouviram pelo intercomunicador da base. Ela terminou de traduzir o discurso de Peshadi, feito em farsi. Agora só havia estática. A fumaça cobria a base e o ar estava pesado por causa do cheiro. Os dois homens tomavam vodca e suco de laranja em lata, ela bebia água mineral. Um aquecedor portátil, de gás butano, aquecia agradavelmente o aposento.
— É curioso — disse ela, Pensativamente, forçando-se a não pensar em toda aquela matança, nem em Starke lá em Bandar Delam. — É curioso que Peshadi não tenha terminado com as palavras "Longa vida para o xá" Esta vitória não é dele? Ele deve estar apavorado.
— Eu também estaria — disse Ayre. — Ele vai.. —Todos deram um pulo quando o intercomunicador da base tocou. Ayre levantou-se
— Alô?
— Aqui é o major Changiz. Ah, capitão Ayre, eles foram para o seu lado da base? O que houve com vocês?
— Nada. Nenhum revoltoso veio para cá.
— Louvado seja Deus. Estávamos todos preocupados com sua segurança. Tem certeza de que não há ninguém morto ou ferido?
— Ninguém — que eu saiba.
— Graças a Deus. Nós temos uma porção. Felizmente não sobrou nenhum inimigo ferido.
— Nenhum?
— Nenhum. O senhor não se importará que eu lhe peça para não mencionar este incidente pelo rádio para ninguém... para ninguém, capitão. Segurança máxima. O senhor compreende?
— Alto e claro, major.
— Ótimo. Por favor, fique na escuta, na freqüência da nossa base. Por segurança, vamos controlar a sua. Por favor, durante esta emergência, não use seu rádio HF sem nos consultar. — Ayre sentiu o sangue ferver mas não disse nada. — Por favor, fiquem na escuta para ouvir as instruções que o coronel Peshadi dará às oito horas, e agora mande Esvandiary e todos os seus fiéis para as orações da noite, imediatamente.
— Certamente, mas o 'Pé-quente'... Esvandiary está de licença por uma semana. — Esvandiary era o gerente da IranOil.
— Muito bem. Mande os demais a cargo de Pavoud.
— Agora mesmo. — O telefone ficou mudo. Ayre retransmitiu o que fora dito e depois foi dar as ordens.
Na torre, Massil estava muito inquieto.
— Mas, capitão, Excelência, estou de serviço até o pôr-do-sol. Ainda temos dois 212 para chegar e...
— Ele disse todos os fiéis. Imediatamente. Seus papéis estão em ordem, você está no Irã há anos. Ele sabe que você está aqui, então é melhor você ir, a não ser que tenha algo a temer.
— Não, não, nada.
— Não se preocupe, Massil — disse Ayre, vendo o suor na testa do homem. — Eu vou esperar os rapazes. Não se preocupe. E vou ficar aqui até você voltar. Não vai levar muito tempo.
Ayre orientou o pouso dos dois 212, esperando com uma impaciência cada vez maior, já que Massil deveria ter voltado há muito tempo. Para passar o tempo, tinha tentado trabalhar um pouco, mas desistiu, com as idéias em tumulto. O único pensamento que o animou foi que sua mulher e seu filho estavam a salvo na Inglaterra — apesar do tempo horrível que fazia lá, das tempestades, nevascas, chuvas, frio, greves, e do governo.
O HF voltou a falar, pouco depois de escurecer.
— Alô, Kowiss, aqui é McIver de Teerã...
11
TEERÃ — NO ESCRITÓRIO DA S-G: 18:50H. Alô, Kowiss, aqui é McIver, de Teerã, está me ouvindo?
— Teerã, aqui é Kowiss, aguarde Um — expressão que queria dizer 'por favor, espere um momento'.
— Está bem, Freddy — disse McIver e colocou o HF de volta na mesa. Ele e Tom Lochart, que chegara de Zagros naquela tarde, estavam no escritório, no último andar do edifício que funcionava como QG da S-G desde que ela iniciara suas operações no Irã, há quase dez anos. O edifício tinha cinco andares e um telhado achatado, onde Genny fizera um agradável jardim com cadeiras, mesas e uma churrasqueira. O general Beni-Hassan, amigo de Andrew Gavallan, recomendara muito aquele edifício:
— Nada menos que o melhor para a companhia de Andy Gavallan. Aqui há espaço para meia dúzia de escritórios, o preço é razoável, você tem lugar no telhado para seu próprio gerador e sua antena de rádio, fica próximo da avenida principal que vai para o aeroporto, há comércio por perto, e aqui está a pièce de resistence! — Orgulhosamente, o general mostrara a McIver o toalete. Era comum e não muito limpo.
— O que há de tão especial nele? — Perguntara McIver, intrigado.
— É o único que existe no edifício, os outros são do tipo de se agachar, apenas um buraco no chão em cima do esgoto, e se você não estiver acostumado a se agachar, é uma operação complicada. Na verdade, é uma chateação, especialmente para as senhoras, algumas já caíram dentro do buraco, com penosas conseqüências — disse o general, jovialmente. Ele era um homem bem-apessoado, muito forte, em boa forma física.
— Os banheiros são todos assim, aqui no Irã?
— Até nas melhores casas, em toda parte, menos nos hotéis modernos. Quando se pensa sobre isso, Mac, este tipo de banheiro é mais higiênico, nada toca em nada. E tem, também, isto aqui. — O general apontara para um pequeno esguichador ligado à torneira da pia. — Nós usamos água para nos limpar, usamos sempre a mão esquerda, que é a mão para a merda, a direita é para comer, é por isso que você nunca oferece nada com a mão esquerda. É considerado extrema falta de educação, Mac. Nunca coma ou beba com a mão esquerda no mundo islâmico, e não se esqueça de que a maioria dos toaletes e banheiros não possuem esguichos, e você tem que usar a água de um balde, se houver um. Como eu disse, é uma operação complicada, mas é uma maneira de viver. Diga-se de passagem, não há pessoas canhotas no Islã. — E deu uma nova risada bem-humorada. — A maioria dos muçulmanos não consegue evacuar confortavelmente a menos que se agache... são os músculos... então muitos se agacham nos assentos ocidentais quando vão evacuar. Estranho, não é? mas também, fora da maioria das cidades e mesmo nelas, na maior parte da Ásia, no Oriente Médio, na China, na Índia, na África, na América do Sul, não há nem água corrente... — E McIver relembrava essa conversa que tivera com o general, quando a voz de Lochart trouxe-o de volta ao presente.
— Um centavo pelos seus pensamentos, Mac. — Disse Lochart. O canadense alto sentava-se em frente a ele, ambos em velhas poltronas. A luz elétrica e o aquecimento estavam ligados com potência máxima, fornecida por seu próprio gerador.
— Estava pensando nos banheiros de se agachar. Detesto esses banheiros e a maldita água. Não consigo me acostumar com eles — resmungou McIver.
— Agora eles não me incomodam mais, eu nem noto. Temos esse tipo de banheiro em nosso apartamento. Xarazade disse que, se eu quisesse, mandaria construir um toalete ocidental como presente de casamento, mas eu falei que podia me arranjar com aquele mesmo. — Lochart sorriu cinicamente. — Agora não me incomoda mais, mas, meu Deus, isso foi uma das coisas que fez Deirdre se mandar.
— Acontece o mesmo com todas as esposas. Este é o maior problema para todas elas, para Genny também. Não é culpa minha que a maioria das pessoas faça isto desse jeito. Graças a Deus, temos uma privada de verdade no apartamento. Senão Genny se amotinaria. — McIver mexeu no botão do volume do aparelho. — Vamos, Freddy — murmurou.
Havia muitos mapas nas paredes, nenhum quadro, embora se percebesse a marca empoeirada de um quadro que fora retirado recentemente — a obrigatória fotografia do xá. Lá fora, o céu noturno estava iluminado pelas fogueiras que salpicavam o horizonte da cidade escurecida, não havia nenhuma outra luz a não ser aquela. Tiros, de rifles e metralhadoras, misturados com o som constante da cidade — as multidões rugindo "Allahhh-u Akbarrr... " Ouviu-se então no alto-falante:
— Aqui é Kowiss. Capitão Ayre falando. Estou ouvindo alto e claro, capitão McIver.
Os dois homens ficaram perplexos e Lochart se ergueu na cadeira.
— Há algo errado, Mac, ele não pode falar abertamente... alguém está escutando.
— É você mesmo que está operando o rádio, Freddy? — disse de propósito para ter certeza de que não havia nenhum erro —, está fazendo hora-extra?
— Apenas aconteceu de estar aqui, capitão McIver.
— Está tudo cinco por cinco? — o que significava sinal de rádio com força máxima, ou na gíria dos pilotos, 'está tudo bem?'
Depois de uma pausa proposital, que os fez perceber que não, veio a resposta:
— Sim, capitão McIver.