— Sim, vamos fazer isso! Afinal de contas, nós também ajudamos nesta vitória! — Xarazade bocejara, semi-adormecida. — Oh, eu estou tão cansada.
Aquela soneca tinha ajudado.
Azadeh observava preguiçosamente as bolhas de espuma estourando, a água agora mais quente, sentindo o cheiro adocicado e agradável do vapor. Ela se ergueu por um momento, alisando a espuma dos seios e braços.
— E curioso, Xarazade, mas eu fiquei contente por estar usando o chador hoje. Aqueles homens eram tão horríveis.
— Os homens nas ruas são sempre horríveis, querida Azadeh. — Xarazade abriu os olhos e observou-a, sua pele dourada brilhando, os seios orgulhosos. — Você é tão linda, querida Azadeh.
— Ah, obrigada, mas você é que é linda. — Azadeh pôs a mão no estômago da amiga e afagou-a. — Mamãezinha, hein?
— Oh, eu espero tanto que sim. — Xarazade suspirou, fechou os olhos e deixou-se embalar pelo calor. — Eu não consigo me imaginar como mãe. Vou saber daqui a três dias. Quando é que você e Erikki vão ter filhos?
— Daqui a um ou dois anos. — Azadeh manteve sua voz calma ao contar a mesma mentira que já tinha contado tantas vezes. Mas ela estava com muito medo de ser estéril, pois não usava anticoncepcionais desde o casamento e desejara, desde o começo, dar um filho a Erikki. Ela era perseguida sempre pelo mesmo pesadelo: de que o aborto tivesse acabado com qualquer possibilidade de ter filhos, por mais que o médico alemão a tranqüilizasse. Como pude ser tão burra?
Tão fácil. Tão apaixonada. Eu tinha apenas 17 anos e estava apaixonada, profundamente apaixonada. Não como agora, com Erikki, por quem daria de bom grado a minha vida. Com Erikki é de verdade e para sempre e gentil e apaixonado e seguro. Com o meu Johnny de olhos claros era como um sonho.
Ah, eu me pergunto onde Johnny estará agora, o que estará fazendo, tão alto e louro, com seus olhos azuis-acinzentados e tão britânico. Com quem terá se casado? Quantos corações mais você partiu, meu querido?
Naquele verão ele estava no colégio em Rougemont — a cidadezinha próxima da que ela estava — ostensivamente para aprender francês. Foi depois que Xarazade voltou. Ela o conhecera no Sonnenhof, apanhando sol, apreciando toda a beleza de Gstaad, cercada de montanhas. Ele tinha 19 anos, ela ia fazer 17 daí a três dias, e durante todo aquele verão eles andaram por toda parte, pelas montanhas e florestas, nadando nos riachos, brincando, fazendo amor, sempre mais aventureiro lá no alto das nuvens.
Mais nuvens do que eu gosto de pensar, disse a si mesma sonhadoramente, eu estava com a cabeça nas nuvens naquele verão, aprendendo a respeito dos homens e da vida, mas sem aprender. Então, no outono, ele lhe dissera:
— Sinto muito, mas agora tenho que partir, tenho que voltar para a universidade, mas estarei de volta no Natal.
E nunca voltou. E muito antes do Natal ela descobrira. Toda a angústia e o terror onde só deveria ter havido felicidade. Apavorada de que a escola descobrisse, pois aí os seus pais teriam que ser informados. Era contra a lei fazer um aborto na Suíça sem o consentimento dos pais e ela foi para a Alemanha onde aquilo era possível, tendo a sorte de encontrar o médico gentil que a tranqüilizara. Não tinha havido nenhuma dor, nenhum problema — só uma pequena dificuldade para conseguir dinheiro. Ela ainda estava apaixonada por Johnny. No ano seguinte, terminada a escola, tudo mantido em segredo, ela voltara para Tabriz. A madrasta, de algum modo, descobrira — tenho certeza que Najoud, minha irmã de criação, me traiu, não foi ela que me emprestou o dinheiro? E depois, também papai descobriu.
Ela fora mantida em reclusão durante um ano. Depois o perdão e a paz — uma espécie de paz. Ela implorara para ir para a universidade em Teerã.
— Eu concordo, contanto que você jure por Deus que não vai ter nenhum caso, vai me prestar obediência absoluta e só vai se casar com quem eu escolher — dissera o khan.
A primeira da classe. Depois pedira para entrar para o Corpo de Professores, qualquer desculpa para sair do palácio.
— Eu concordo, mas só se for nas nossas propriedades. Nós temos aldeias mais do que suficientes para você tomar conta — ele tinha dito.
Muitos homens em Tabriz queriam se casar com ela, mas seu pai os recusara, com vergonha dela. E então Erikki.
— E quando esse estrangeiro, esse... esse gigante pobretão, vulgar, mal-educado, herege, que não sabe falar nem uma palavra de farsi nem de turco, que não sabe nada a respeito dos nossos costumes nem da nossa história, que não sabe se comportar numa sociedade civilizada, cujo único talento é beber enormes quantidades de vodca e pilotar um helicóptero... quando ele descobrir que você não é virgem, que foi maculada, estragada, talvez arruinada para sempre?
— Eu já contei a ele, papai — ela dissera em lágrimas. — Também disse que sem a sua permissão eu não posso me casar.
Então aconteceu o milagre do ataque ao palácio e seu pai quase foi assassinado, e Erikki comportou-se como um guerreiro vingador das antigas lendas. A permissão para o casamento foi outro milagre. A compreensão de Erikki, outro milagre. Mas até agora, nenhum filho. O velho dr. Nutt diz que eu sou normal e perfeita e que tenho que ter paciência. Com a ajuda de Deus, em breve vou ter um filho, e então só haverá felicidade, como com Xarazade, tão linda, com seu belo rosto, seus seios, suas costas, o cabelo e a pele como seda.
Ela sentiu a maciez da amiga em suas mãos e isso lhe deu um enorme prazer. Distraidamente, começou a acariciá-la, deixando-se levar pelo calor e pela ternura. Nós somos abençoadas por sermos mulheres, pensou, podendo tomar banho juntas e dormir juntas, nos beijarmos e nos tocarmos e amar sem nos sentirmos culpadas.
— Ah, Xarazade — murmurou, entregando-se também —, como eu adoro sentir você.
NA CIDADE VELHA: 19:52H. O homem atravessou apressado a praça coberta de neve, perto da antiga mesquita Mehrid, e entrou pelo portão principal do bazar, saindo do frio congelante para uma semi-escuridão quente, apinhada e familiar. Ele tinha uns cinqüenta anos, era corpulento e estava sem fôlego, com o chapéu de astracã meio de lado, vestido com roupas caras. Um burro carregado bloqueou seu caminho pela estreita passagem e ele praguejou, recuou para deixar o animal e seu dono passarem, depois continuou andando apressado, virou à esquerda numa passagem e entrou na rua dos vendedores de roupas.
Não corra, disse a si mesmo muitas vezes, sentindo dor no peito e nas pernas. Agora você está seguro, vá devagar. Mas o terror era mais forte e, ainda em pânico, ele continuou depressa, desaparecendo no enorme labirinto. No seu rastro, com um intervalo de poucos minutos, surgiu um grupo de Faixas Verdes armados. Eles não tinham pressa.
À frente, a estreita rua de lojas de arroz estava bloqueada por multidões maiores do que habitualmente, todos disputando a pequena quantidade que havia para vender. Ele parou por um momento e enxugou a testa, depois prosseguiu. O bazar parecia uma colmeia, palpitando de vida, com centenas de caminhos de terra, corredores e passagens, alinhados de ambos os lados, com lojas mal-iluminadas dando para fora — algumas de dois andares — além de cubículos, muitos não passando de nichos abertos nas paredes, com mercadorias e serviços de todos os tipos — desde comida até relógios estrangeiros, de açougueiros a comerciantes de ouro, de agiotas a negociantes de armas — todos esperando por um freguês, embora, no momento, não houvesse muito o que vender nem o que fazer. Acima do barulho, das vozes e das pessoas que regateavam, o teto alto e abobadado tinha clarabóias para ventilação e para deixar entrar luz durante o dia. O ar era pesado, com o cheiro característico do bazar — cheiro de fumaça e de comida rançosa, de fruta podre e churrasco, de temperos, fezes, poeira, gasolina, mel, tâmaras e restos de comida, tudo misturado com o cheiro dos corpos e do suor da multidão que nascia, vivia e morria aqui.
Pessoas de todas as idades e de todos os tipos comprimiam-se nas passagens — naturais de Teerã, turcomanos, curdos, kash kai, armênios, árabes, libaneses e levantinos — mas o homem não prestou atenção nenhuma nelas, nem nas constantes súplicas para parar e comprar, ele simplesmente foi abrindo caminho no meio da multidão, atravessou rapidamente a sua própria rua, a dos ourives, desceu a rua dos vendedores de especiarias, a dos joalheiros, enfiando-se cada vez mais para o interior do labirinto, com o cabelo molhado de suor por baixo do chapéu de astracã, e o rosto vermelho. Dois vendedores que repararam nele riram e comentaram:
— Por Deus, nunca vi o velho Paknouri andar tão depressa antes. Aquele cão velho deve estar indo receber uma dívida de dez riais.
— É mais provável que o avarento Paknouri tenha um garoto suculento esperando por ele, com a bunda sacudindo para o ar.
A alegria deles depressa acabou, quando os Faixas Verdes armados passaram. Quando eles já estavam a uma distância segura, alguém resmungou:
— O que será que esses filhos de uma cadela querem aqui?
— Eles estão procurando alguém. Deve ser isso. Que seus pais queimem no inferno! Vocês não ouviram dizer que eles têm prendido gente o dia inteiro?
— Estão prendendo pessoas? E o que estão fazendo com elas?
— Colocando-as na cadeia. Eles agora controlam as cadeias. Não ouviram dizer que eles arrombaram a porta da prisão de Evin e soltaram todo mundo e prenderam os carcereiros e que agora estão controlando tudo? Eles organizaram seus próprios pelotões de fuzilamento e seus tribunais e ouvi dizer que fuzilaram vários generais e policiais. E está havendo um tumulto agora mesmo, na universidade.
— Que Deus nos proteja! O meu filho Farmad está num comício lá, o idiota! Eu disse a ele para não ir.
Jared Bakravan, o pai de Xarazade, estava em sua loja, na sala particular que ficava sobre a loja, na rua dos Agiotas, que pertencia à sua família há cinco gerações e que ficava num dos melhores pontos. Sua especialidade era empréstimo e financiamento. Estava sentado numa espessa pilha de tapetes, tomando chá com seu velho amigo, Ali Kia, que conseguira ser nomeado funcionário público no governo de Bazargan. O filho mais velho de Bakravan, Meshang, sentara-se atrás dele, ouvindo e aprendendo — um rapaz bonito de uns trinta anos, com propensão a uma confortável corpulência. Ali Kia usava óculos e estava barbeado, mas Bakravan tinha uma barba branca e era corpulento. Ambos tinham cerca de sessenta anos e se conheciam quase que a vida inteira.
— E como o empréstimo será pago, e em que prazo? — Bakravan perguntou.
— Com os lucros do petróleo, como sempre — Kia respondeu, pacientemente —, da mesma forma que o xá teria feito, num prazo acima de cinco anos, a um por cento ao mês, como de costume. Meu amigo, Mehdi... Mehdi Bazargan, diz que o Parlamento vai garantir o empréstimo assim que se reunir. — Ele sorriu e acrescentou, exagerando um pouco: — Como eu não estou apenas no gabinete de Mehdi, mas também no seu gabinete particular, posso vigiar pessoalmente a negociação. Evidentemente, você sabe o quanto o empréstimo é importante, e que é importante também para o bazar.
— É claro. — Bakravan deu um puxão na barba para evitar cair na gargalhada. Pobre Ali, pensou, pretensioso como sempre! — Não me compete falar nisso, meu amigo, mas alguns dos lojistas me perguntaram sobre os milhões em ouro já adiantados para apoiar a revolução. Adiantados para o fundo em favor do aiatolá Khomeini, que Deus o proteja — acrescentou polidamente, pensando no fundo do coração: Que Deus o tire de nós depressa agora que vencemos, antes que ele e os seus mulás, gananciosos, parasitas, bitolados, façam muito estrago. Quanto a você, Ali, meu velho amigo, deturpador da verdade, que exagera a sua própria importância, você pode ser o meu amigo mais antigo, mas se você acha que eu confiaria em você... Como se algum de nós fosse confiar em qualquer iraniano fora da nossa própria família, e mesmo assim com muita cautela.
— É claro que eu sei que o aiatolá nunca viu, precisou ou tocou num único rial — disse, com franqueza —, mas mesmo assim, nós, lojistas, adiantamos enormes somas de dinheiro, de ouro, de moeda estrangeira, em favor dele, financiando a sua campanha. É claro que pela glória de Deus e do nosso amado Irã.
— Sim, nós sabemos. E Deus os abençoará por isso. E também o aiatolá. É claro que estes empréstimos serão pagos assim que tivermos o dinheiro. Imediatamente! Os empréstimos feitos pelos lojistas de Teerã são os primeiros da fila de pagamento, dentre todas as dívidas internas. Nós, do governo, compreendemos o quanto a ajuda de vocês tem sido importante. Mas, Jared, Excelência, velho amigo, antes de mais nada, nós precisamos tocar a produção de petróleo, e, para isso, precisamos de dinheiro. Os cinco milhões de dólares que precisamos de imediato serão como um grão de arroz dentro de um barril, agora que os bancos estrangeiros vão ser controlados e, na grande maioria, expulsos. O pre...
— O Irã não precisa de nenhum banco estrangeiro. Nós, os lojistas, podemos fazer tudo o que for necessário. Se nos pedirem. Tudo. Se procurarmos com afinco, pela glória do Irã, talvez, talvez possamos descobrir que temos todas as habilidades e ligações em nosso próprio meio. — Bakravan tomou um gole do seu chá com uma elegância estudada. — O meu filho Meshang tem um diploma da Escola de Administração de Harvard. — A mentira não incomodou a nenhum deles. — Com a ajuda de estudantes brilhantes como ele... — E deixou a idéia no ar.
— Oh, mas você certamente não poderia ceder os serviços dele para o meu Ministério das Finanças — atalhou Ali Kia, compreendendo logo a insinuação. — Na certa, ele é importante demais para você e seus colegas? É claro que sim, deve ser!
— Sim, sim, ele é. Mas as necessidades do nosso amado país vêm antes dos nossos desejos pessoais. Isso, evidentemente, se o governo quisesse utilizar o seu raro talento.
— Mencionarei isso para Mehdi amanhã de manhã. Sim, no meu encontro diário com o meu velho amigo e colega meu. — disse Ali Kia, imaginando quando conseguiria obter sua primeira audiência, muito adiada, desde que fora nomeado ministro interino das Finanças. — Posso também dizer a ele que você concorda com o empréstimo?
— Vou consultar os meus colegas imediatamente. A decisão, evidentemente, será deles e não minha — Bakravan acrescentou com um ar de tristeza que não enganou a nenhum dos dois. — Mas vou defender a idéia, velho amigo.
— Obrigado. — Mais uma vez, Kia sorriu. — Nós, do governo, e o aiatolá, apreciaremos a ajuda dos lojistas.
— Estamos sempre prontos para ajudar. Como você sabe, nós temos sempre ajudado — disse suavemente o velho, relembrando o apoio financeiro maciço dado pelo bazar aos mulás, a Khomeini, ao longo dos anos. Ou a qualquer figura política íntegra, como Ali Kia, que fazia oposição a ambos os xás.
Que Deus amaldiçoe os Pahlavis, pensou Bakravan, eles são a causa de todos os nossos problemas. Malditos sejam por todos os problemas que causaram com sua exigência precipitada de modernização, com o seu descaso insano pelos nossos conselhos e nossa influência, por ter convidado os estrangeiros para virem para cá, só de americanos eram cinqüenta mil há um ano, deixando-os se apossarem dos melhores empregos e de todos os negócios bancários. O xá desprezou nossa ajuda, quebrou nosso monopólio, nos sufocou e destruiu nossa herança histórica. Em toda parte, por todo o Irã.
Mas tivemos a nossa vingança. Apostamos o resto da nossa influência e do nosso tesouro no ódio implacável de Khomeini e no seu poder sobre as massas sujas e ignorantes. E vencemos. E agora, com os bancos estrangeiros fechados, com os estrangeiros fora daqui, seremos mais ricos e influentes do que nunca. Este empréstimo será fácil de conseguir, mas Ali Kia e seu governo podem suar um pouco. Nós somos os únicos capazes de levantar o dinheiro. O pagamento oferecido não é ainda suficientemente alto, nem de longe nos compensa pelo fechamento do bazar durante todos estes meses. Mas quanto deveríamos exigir? perguntou a si mesmo, muito satisfeito com as negociações. Talvez a percentagem devesse...
A porta se abriu com violência e Emir Paknouri entrou correndo na sala.
— Jared, eles vão me prender — gritou, com as lágrimas correndo pelo rosto.
— Quem? Quem vai prender você e por quê? — explodiu Bakravan, vendo perturbada a calma habitual da sua casa, com as caras assustadas de ajudantes, vendedores e gerentes se comprimindo na porta.
— Por... por crimes contra o Islã! — Paknouri chorava abertamente.
— Deve haver algum erro! É impossível!
— Sim, é impossível, mas eles... eles vieram à minha casa com o meu nome... há meia hora atrás nós...
— Quem? Diga-me o nome deles e eu destruirei os seus pais! Quem foi na sua casa?
— Eu já disse! Guardas, guardas revolucionários, Faixas Verdes, sim, eles, é claro — disse Paknouri e continuou a falar, sem ouvir o sinal para calar a boca. Ali Kia empalideceu e alguém murmurou "Deus nos proteja!"
— Há meia hora atrás, com o meu nome num pedaço de papel... meu nome, Emir Paknouri, chefe da liga dos ourives que deu milhões de riais... eles foram na minha casa, acusando-me, mas os criados... e minha mulher estava lá e eu... por Deus e pelo Profeta, Jared — ele gritou caindo de joelhos —, eu não cometi nenhum crime, eu sou um dignitário do bazar, eu dei milhões e...
— De repente ele parou, vendo Ali Kia. — Kia, Ali Kia, Excelência, o senhor
sabe perfeitamente o que eu fiz para ajudar a revolução!
— É claro — Kia estava pálido, com o coração disparado. — Deve haver algum erro. — Ele conhecia Paknouri como um lojista muito influente, respeitado, primeiro marido de Xarazade, e um dos seus mais antigos patrocinadores. — Tem que haver um erro!
— É claro que há um erro! — Bakravan abraçou o pobre homem e tentou acalmá-lo. — Tragam um chá imediatamente — ordenou.
— Um uísque. Por favor, você tem uísque? — murmurou Paknouri. — Tomarei chá depois, você tem uísque?
— Não aqui, meu pobre amigo, mas é claro que há vodca. — Trouxeram-na imediatamente. Paknouri tomou-a e engasgou um pouco. E não quis outra. Em seguida ficou mais calmo e tornou a contar o que tinha acontecido.
Ele percebera que algo estava errado quando ouviu vozes alteradas na entrada da sua mansão, que ficava bem ao lado do bazar. Estava no andar de cima com a esposa, preparando-se para jantar.
— O líder dos guardas, havia cinco, estava sacudindo aquele pedaço de papel e pedindo para me ver. É claro que os criados não ousariam incomodar-me, nem deixariam um gorila daqueles entrar, então o chefe dos criados disse que ia ver se eu estava e subiu. Ele nos disse que o papel estava assinado por alguém chamado Uwari, em nome do Komiteh Revolucionário. Em nome de Deus, quem são eles? Quem é esse homem Uwari? Você já ouviu falar nesse homem, Jared?
— É um nome bastante comum — disse Bakravan, seguindo o costume iraniano de ter sempre uma resposta pronta para algo que não se sabe. — O senhor já ouviu falar, Excelência Ali?
— Como você disse, é um nome comum. Este homem mencionou alguma outra pessoa, Excelência Paknouri?
— Pode ter mencionado. Que Deus nos proteja! Mas quem são eles, este Komiteh Revolucionário? Ali Kia, o senhor deve saber.
— Muitos nomes têm sido mencionados — disse Kia, com imponência, disfarçando a inquietação que sentia cada vez que se mencionava o Komiteh Revolucionário. Como todo mundo, dentro e fora do governo, pensou aborrecido, não tenho nenhuma informação verdadeira sobre a sua composição ou quando ou onde ele se reúne, só que surgiu no momento em que Khomeini voltou ao Irã, há menos de duas semanas e, desde ontem, quando Bakhtiar fugiu, vem agindo como se fosse a própria lei, governando em nome de Khomeini e com a sua autoridade, indicando precipitadamente novos juízes, a maioria sem treinamento legal de espécie alguma, autorizando prisões, tribunais revolucionários e execuções imediatas, totalmente fora da lei e da jurisprudência normais. E contra a nossa Constituição! Que todas as suas casas se incendeiem e que eles vão para o inferno que merecem!
— Hoje mesmo de manhã o meu amigo Mehdi — começou confiante, depois parou, fingindo notar pela primeira vez os empregados que ainda estavam amontoados na porta, e fez um sinal imperioso para que eles se afastassem. Quando, com relutância, a porta foi fechada, ele baixou a voz, passando adiante o boato como se fosse uma informação particular: — Hoje de manhã, ahn, com a nossa bênção, Mehdi foi ao aiatolá e ameaçou renunciar a menos que o Komiteh Revolucionário parasse de passar por cima dele e da sua autoridade, e assim os colocou no devido lugar daqui por diante.
— Graças a Deus! — disse Paknouri, muito aliviado. — Nós não vencemos a revolução para deixar que novas ilegalidades substituíssem a Savak, a dominação estrangeira e o xá!
— É claro que não! Graças a Deus, agora o novo governo está nas melhores mãos. Mas por favor, Excelência Paknouri, por favor, continue com a sua história.
— Não há muito mais o que contar, Ali — disse Paknouri, mais calmo e com mais coragem agora, cercado por amigos tão poderosos. — Eu, ahn, eu desci imediatamente para ver aqueles intrusos e disse a eles que aquilo era um erro estúpido, mas aquele cabeça dura, ignorante, bosta de cão apenas sacudiu o papel na minha cara, disse que eu estava preso e que deveria acompanhá-los. Eu disse a eles que esperassem... disse que esperassem e fui apanhar alguns papéis, mas minha esposa... minha esposa me disse para não confiar neles, que talvez eles fossem do Tudeh ou mujhadins ou fedayins, eu concordei com ela e decidi que seria melhor vir aqui consultar vocês e os outros. — Ele afastou da memória os fatos reais, que ele tinha fugido, assim que ouvira o líder anunciar, em nome do Komiteh Revolucionário e de Uwari, que Paknouri, o agiota, seria submetido ao julgamento divino por crimes contra Deus.
— Meu pobre amigo — disse Bakravan. — Meu pobre amigo, como você deve ter sofrido! Não se importe, você agora está seguro. Fique aqui esta noite. Ali, logo depois da primeira prece amanhã, vá ao gabinete do primeiro-ministro e certifique-se de que este assunto seja resolvido e esses idiotas punidos. Nós todos sabemos que Emir Paknouri é um patriota, que ele e todos os ourives apoiaram a revolução e que são essenciais para este empréstimo. — Cansado, fechou os ouvidos a todas as banalidades que Ali Kia estava dizendo.
Ele estudou Paknouri, vendo-lhe o rosto ainda pálido e o cabelo molhado de suor. Pobre sujeito, que choque ele deve ter tido. É lastimável. Com toda a sua riqueza e o seu nome ilustre — ligado aos Qajars através de Annoush, esposa do primo Valik — é uma pena que todo o meu trabalho por Xarazade tenha dado em nada. É uma lástima que eles não tenham tido filhos e assim unido as nossas famílias. Bastava um único filho, pois então, certamente, nunca teria havido o divórcio e os meus problemas não teriam aumentado, com esse estrangeiro, Lochart. Por mais que esse estrangeiro tente aprender os nossos costumes, ele nunca vai conseguir. E como é caro sustentá-lo para manter a reputação da família! Preciso tornar a falar com o primo Valik e pedir-lhe mais uma vez para que Lochart receba um dinheiro extra. Valik e os seus gananciosos sócios da CHI podem muito bem fazer isso por mim, com os milhões que ganham, a maior parte em moeda estrangeira! O que custaria a eles? Nada! O custo seria repassado a Gavallan e à S-G. Os sócios me devem mil favores, a mim que durante anos lhes ensinei como conseguir tanto poder e tanta riqueza com tão pouco esforço!
— Pague a Lochart você mesmo, Excelência Jared — Valik respondera rudemente da última vez em que tinha falado com ele. — Essa responsabilidade é sua. Você participa de tudo o que nós ganhamos. E o que representa uma quantia tão insignificante para o meu primo favorito e o mais rico lojista de Teerã?
— Mas devia ser uma despesa partilhada. Nós podemos usá-lo quando
tivermos cem por cento de controle. Com o novo plano para o futuro da CHI, a sociedade vai ficar mais rica do que nunca e...
— Eu vou consultar os outros sócios imediatamente. É claro que a decisão será deles e não minha...
Mentiroso, pensou o velho, tomando o seu chá, mas eu também teria dito o mesmo. E abafou um bocejo, cansado e com fome. Uma soneca antes do jantar me faria bem.
— Sinto muito, Excelências, mas tenho negócios urgentes para tratar. Paknouri, velho amigo, estou contente de que esteja tudo resolvido. Fique aqui esta noite, Meshang vai arranjar colchões e almofadas, e não se preocupe! Ali, meu amigo, venha comigo até o portão do bazar. Você tem condução? — Ele perguntou por perguntar, sabendo que a primeira regalia de um assessor seria um carro com motorista e gasolina à vontade.
— Sim, obrigado. O primeiro-ministro insistiu para que eu tivesse um carro. Pela importância do nosso ministério, suponho.
— Seja como Deus quiser! — disse Bakravan.
Satisfeitos, eles saíram da sala, desceram as escadas estreitas e entraram no pequeno corredor que levava à loja. Mas os sorrisos desapareceram e suas bocas se encheram de bílis.
Lá, esperando, estavam os mesmos cinco Faixas Verdes, encostados nas mesas e cadeiras, todos armados com carabinas do exército americano, todos na casa dos vinte, com ou sem barba, com as roupas pobres e gastas, alguns com sapatos furados, alguns sem meias. O líder pautava os dentes silenciosamente, os outros estavam fumando, deixando a cinza cair descuidadamente nos valiosos tapetes kash 'kai de Bakravan. Um desses jovens tossia muito enquanto fumava, com a respiração chiada.
Bakravan sentiu uma fraqueza nos joelhos. Todos os seus empregados estavam paralisados, encostados numa das paredes. Todo mundo. Até o seu servidor favorito. Lá fora, na rua, tudo estava muito quieto, não havia ninguém por perto. Até os agiotas das lojas em frente pareciam ter desaparecido.
— Salaam, aga, que a bênção de Deus esteja com o senhor — disse educadamente, com a voz soando estranha. — O que posso fazer pelo senhor?
O líder não prestou nenhuma atenção nele, apenas manteve os olhos fixos em Paknouri, com seu rosto bonito mas marcado pela moléstia parasitária transmitida pelos mosquitos e quase endêmica no Irã. Tinha pouco mais de vinte anos, cabelos e olhos escuros e mãos marcadas pelo trabalho, que brincavam com a carabina. Seu nome era Yusuf Senvar — Yusuf, o pedreiro.
O silêncio cresceu e Paknouri não pôde mais suportar a tensão.
— É tudo um engano — gritou. — Vocês estão cometendo um erro!
— Você pensou que poderia escapar da vingança de Deus fugindo? — A voz de Yusuf era macia, quase gentil, embora com um sotaque rude de camponês que Bakravan não conseguiu localizar.
— Que vingança de Deus? — gritou Paknouri. — Eu não fiz nada de errado, nada.
— Nada? Você não trabalhou para os estrangeiros, associando-se a eles durante anos, ajudando-os a roubar a riqueza da nossa nação?
— É claro que não foi para isso, mas para criar empregos e ajudar a econ...
— Nada? Você não serviu a Satã, o xá, durante anos?
— Não — gritou novamente Paknouri —, eu era da oposição, todo mundo sabe que eu... eu era da opôs...
— Mas assim mesmo você o serviu e cumpriu as suas ordens?
O rosto de Paknouri estava contorcido e quase sem controle. Ele mexeu com a boca mas não conseguiu falar. Então disse com voz rouca:
— Todo mundo o serviu. É claro que todo mundo o serviu, ele era o xá, mas nós trabalhamos pela revolução. O xá era o xá, é claro que todo mundo o serviu enquanto ele esteve no poder...
— O imã não — disse Yusuf, com súbita violência. — O imã Khomeini nunca serviu ao xá. Em nome de Deus, ele o serviu? — Vagarosamente, ele olhou rosto por rosto. Ninguém respondeu.
No silêncio que se seguiu, Bakravan observou o homem pôr a mão no bolso rasgado, apanhar um pedaço de papel e examiná-lo, e viu que ele era o único ali que podia acabar com aquele pesadelo.
— Por ordem do Komiteh Revolucionário — começou Yusuf — e de Ali'allah Uwari, agiota Paknouri você é levado a julgamento. Submeta-se...
— Não, Excelência — Bakravan disse educadamente, mas com firmeza, com as batidas do coração ressoando nos ouvidos. — Aqui é o bazar. Desde o início dos tempos o senhor sabe que o bazar tem as suas próprias leis, os seus próprios líderes. Emir Paknouri é um deles, ele não pode ser preso nem levado contra a sua vontade. Ele não pode ser tocado. Isto é uma lei bazaari que existe desde o começo dos tempos. — Ele olhou para o rapaz, sem medo, sabendo que nem o xá, nem mesmo a Savak, tinham ousado desafiar aquelas leis ou o direito de proteção.
— A lei do bazar é maior do que a lei de Deus, agiota Bakravan? Ele sentiu um arrepio gelado percorrê-lo.
— Não... não, é claro que não.
— Ótimo. Eu obedeço à lei de Deus e faço o trabalho de Deus.
— Mas você não pode prend...
— Eu obedeço à lei de Deus e faço apenas o trabalho de Deus. — Os olhos do homem eram castanhos e francos sob as sobrancelhas pretas. Ele apontou para a sua carabina. — Eu não preciso desta arma. Nenhum de nós precisa de armas para fazer o trabalho de Deus. Eu rezo de todo o coração para ser um mártir de Deus, pois assim irei diretamente para o paraíso, sem a necessidade de ser julgado, com todos os meus pecados perdoados. Se for hoje, então eu morrerei abençoando o meu assassino porque sei que terei morrido fazendo o trabalho de Deus.
— Deus é grande — disse um dos homens, e os outros repetiram.
— Sim, Deus é grande. Mas você, agiota Bakravan, você hoje rezou cinco vezes como o Profeta ordenou?
— É claro, é claro — respondeu Bakravan, sabendo que esta mentira não era pecado por causa do taqiyah, ocultamento, a permissão que o Profeta dá a qualquer muçulmano para mentir a respeito do Islã se a sua vida estiver ameaçada.
— Ótimo. Fique quieto e seja paciente, depois eu me encarregarei de você. — Outro arrepio percorreu Bakravan enquanto ele via o homem voltar a atenção para Paknouri. — Por ordem do Komiteh Revolucionário e de Ali'allah Uwari: agiota Paknouri, submeta-se a Deus pelos crimes contra Deus.
— Eu... eu... você não pode... — Paknouri tentou falar mas não conseguiu. Um pouco de espuma escorreu-lhe pelos cantos dos lábios. Todos o observavam, os Faixas Verdes sem emoção, os outros com horror
Ali Kia Pigarreou.
— Ouça, talvez fosse melhor deixar isso para amanhã — começou, tentando manter um tom importante. — Emir Paknouri está obviamente perturbado pelo err...
— Quem é você? — Os olhos do líder o transpassaram, como haviam feito com Paknouri e Bakravan. — Hein?
— Eu sou o ministro interino Ali Kia — respondeu Ali, mantendo a coragem sob a força daqueles olhos — do Ministério das Finanças, membro do gabinete do primeiro-ministro Bazargan, e sugiro que você espere até...
— Em nome de Deus: você, o seu Ministério das Finanças, o seu gabinete, o seu Bazargan não têm nada a ver comigo ou conosco. Nós obedecemos ao mulá Uwari, que obedece ao Komiteh Revolucionário, que obedece ao imã, que obedece a Deus. — O homem se coçou displicentemente e voltou a atenção outra vez para Paknouri. — Para a rua! — ordenou, com a voz ainda gentil. — Ou nós o arrastaremos.
Paknouri deu um gemido e desmaiou. Os outros ficaram olhando, impotentes. Alguém murmurou: "É a vontade de Deus", e o pequeno copeiro começou a chorar.
— Fique quieto, garoto — disse Yusuf, sem raiva. — Ele está morto? Um dos homens se agachou perto de Paknouri.
— Não. Seja como Deus quiser.
— Seja como Deus quiser. Hassan, levante-o e ponha a cabeça dele na tina de água, e se ele não acordar nós o carregaremos.
— Não — interrompeu corajosamente Bakravan —, não, ele vai ficar aqui, ele está doente e...
— Você é surdo, velho? — Havia uma nova tensão na voz de Yusuf. Uma onda de medo varreu a sala. O garoto enfiou o punho na boca para não soluçar. Yusuf manteve os olhos em Bakravan enquanto o homem chamado Hassan, forte e de ombros largos, levantou Paknouri facilmente e saiu da loja.
— Seja como Deus quiser — disse, com os olhos em Bakravan. — Hein?
— Onde... por favor, para onde vocês o estão levando?
— Para a prisão, é claro. Para onde mais?
— Que... que prisão, por favor? Um dos homens riu.
— E importa que prisão?
Para Jared Bakravan e para os outros a sala agora estava abafada como uma cela, embora o ar não tivesse mudado e a abertura para a rua estivesse como sempre esteve.
— Eu gostaria de saber, Excelência — disse Bakravan, com a voz rouca, tentando disfarçar o ódio. — Por favor.
— Evin.
Era a mais infame das prisões de Teerã. Yusuf percebeu uma nova onda de medo. Eles devem ser todos culpados, já que sentem tanto medo, pensou. Olhou para seu irmão mais moço, que estava atrás dele.
— Dê-me o papel.
Seu irmão não tinha nem 15 anos, estava imundo e tossia muito. Apanhou meia dúzia de papéis e folheou-os. Encontrou o que estava procurando.
— Aqui está, Yusuf.
— Tem certeza de que este é o certo? — perguntou o líder, examinando o papel.
— Sim. — O jovem apontou para o nome com um dedo grosso. Vagarosamente, ele soletrou o nome.
— J-a-r-e-d B-a-k-r-a-v-a-n.
— Que Deus nos proteja! — murmurou alguém. E no enorme silêncio que se seguiu, Yusuf apanhou o papel e estendeu-o para Bakravan. Os outros observavam, paralisados.
Quase sem respirar, o velho apanhou-o, com os dedos trêmulos. Por um momento, não conseguiu focalizar os olhos. Então viu as palavras: "Jared Bakravan, do bazar de Teerã, por ordem do Komiteh Revolucionário e de Ali'allah Uwari, está intimado a comparecer diante do Tribunal Revolucionário, na prisão de Evin, amanhã, imediatamente após a primeira oração, para responder a algumas perguntas." O papel estava assinado: "Ali'allah", com uma letra de analfabeto.
— Que perguntas? — perguntou, bestificado.
— As que Deus quiser. — O líder pôs a carabina no ombro e se levantou.
— Até amanhã. Traga o papel com você e não chegue atrasado. — Nesse momento, ele notou a bandeja de prata, as taças e a garrafa de vodca pela metade que estavam numa mesa baixa, quase escondida por uma cortina na passagem escura, brilhando à luz de algumas velas. — Por Deus e pelo Profeta — disse indignado —, você esqueceu as leis de Deus?
As pessoas se afastaram do seu caminho enquanto ele virava a garrafa, derramando o seu conteúdo no chão de terra e a atirava longe. Um pouco do líquido escorreu para um dos tapetes. Instintivamente, o copeirinho caiu de joelhos e começou a enxugá-lo.
— Pare com isso!
Apavorado, o garoto saiu correndo. Com o pé, Yusuf espalhou a poça.
— Deixe que a mancha o faça lembrar das leis de Deus, velho — disse.
— Se manchar. — Por um momento ele examinou o tapete. — Que cores! Lindo! Lindo! — Suspirou e se coçou, depois voltou-se para Bakravan e Kia.
— Se vocês juntassem toda a riqueza que nós, pasadan, temos, e a juntasse à de toda a nossa família, e à da família dos nossos pais, ainda assim não poderíamos comprar nem um cantinho de um tapete desses. — Yusuf deu um sorriso debochado. — Mas mesmo que eu fosse tão rico quanto você, agiota Bakravan... você sabe que agiotagem também é contra a lei de Deus? Mesmo que eu fosse assim tão rico, não quereria comprar esse tapete. Eu não preciso de um tesouro como esse. Eu não tenho nada, nós não temos nada, nós não precisamos de nada. Só de Deus.
E saiu majestosamente.
PERTO DA EMBAIXADA DOS ESTADOS UNIDOS: 20:15H. Erikki esperava há quase quatro horas. De onde estava sentado, na janela do apartamento do primeiro andar, do seu amigo Christian Tollonen, ele podia ver os muros altos cercando as instalações americanas, bem iluminadas, fuzileiros uniformizados perto dos enormes portões batendo com os pés para espantar o frio, e o grande prédio da embaixada mais atrás. O trânsito ainda estava pesado, com retenções aqui e ali, todo mundo buzinando e tentando avançar, com os pedestres tão impacientes e egocêntricos como sempre. Nenhum sinal estava funcionando. Não havia polícia. Não que isso fizesse alguma diferença, pensou, os habitantes de Teerã não ligam a mínima para as leis do trânsito, nunca ligaram e nunca ligarão. Como aqueles loucos na estrada da montanha que se mataram. Como os habitantes de Tabriz. Ou os de Qazvin.
Ele apertou os punhos enormes ao se lembrar de Qazvin. Na embaixada da Finlândia, naquela manhã, havia comunicados de que Qazvin estava em estado de rebelião, de que nacionalistas azerbeijanos em Tabriz tinham-se rebelado novamente e que prosseguia a luta contra as forças leais ao governo de Khomeini e que aquela província de fronteira, rica em petróleo e altamente estratégica, tinha mais uma vez se declarado independente de Teerã, independência pela qual vinha lutando através dos séculos, sempre ajudada pela Rússia, a inimiga permanente do Irã e que desejava o seu território. Rakoczy e outros como ele deviam estar espalhados por todo o Azerbeijão.
— É claro que os soviéticos estão atrás de nós — dissera Abdullah Gorgon Khan indignado, durante a discussão, pouco antes dele e Azadeh terem partido para Teerã. — É claro que o seu Rakoczy e seus homens estão aqui por imposição. Nós andamos na mais fina corda bamba do mundo porque somos a chave deles para o golfo e para Ormuz, a jugular do Ocidente. Se não fosse por nós, Gorgons, por nossas relações tribais, e por alguns dos nossos aliados curdos, nós agora seríamos uma província soviética, junto com a outra metade do Azerbeijão que os soviéticos nos roubaram anos atrás, ajudados, como sempre, pelos insidiosos britânicos. Oh, como eu odeio os britânicos, mais ainda do que os americanos, que são apenas bárbaros estúpidos e sem educação. É verdade, não é?
— Eles não são assim, não os que eu conheço. E a S-G tem me tratado bem.
— Até agora. Mas vão traí-lo. Os britânicos traem todo mundo que não é britânico e até a eles mesmos, se for preciso.
— Insha'Allah!
Abdullah Gorgon Khan rira sem vontade.
— Insha'Allah! E Insha'Allah que em 1946 os soviéticos tenham recuado da fronteira e que então nós tenhamos destruído os traidores e acabado com a sua 'República Democrática do Azerbeijão' e com a 'República Popular Curda'. Mas eu admiro os soviéticos, eles planejam apenas vencer e mudar as regras em seu próprio benefício. O verdadeiro vencedor da sua guerra mundial foi Stalin. Ele era um colosso. Ele não dominou tudo em Potsdam, Yalta e Teerã? Ele não manobrou Churchill e Roosevelt? Roosevelt não chegou até a ficar com ele em Teerã, na embaixada soviética? Como nós, os iranianos, rimos! O grande presidente deu o futuro para Stalin quando poderia tê-lo mantido atrás das suas próprias fronteiras. Que gênio! Ao lado dele, o seu aliado Hitler era um covarde desajeitado. Como Deus quiser, hein?
— A Finlândia só se juntou a Hitler para lutar contra Stalin e recuperar as nossas terras.
— Mas vocês perderam, vocês escolheram o lado errado e perderam. Até um idiota podia ver que Hitler ia perder. Como pôde o Reza Xá ser tão estúpido? Ah, capitão, eu nunca entendi por que Stalin deixou vocês, finlandeses, vivos. Se fosse eu, teria arrasado a Finlândia como uma lição. Como ele dizimou dezenas de outras terras. Por que ele deixou vocês todos vivos? Por que vocês resistiram a ele na sua Guerra do Inverno?
— Não sei. Talvez. Eu concordo que os soviéticos não vão desistir nunca.
— Nunca, capitão. Mas nós também não. Nós, azerbeijanos, vamos sempre manobrá-los e mantê-los ao largo. Como em 1946.
Mas naquela época o Ocidente era forte, havia a Doutrina Truman para fazer frente ao intervencionismo dos soviéticos, Erikki pensou melancolicamente. E agora? Agora com Carter no comando? Que comando?
Pesadamente, ele se inclinou e tornou a encher o copo, impaciente para voltar para perto de Azadeh. Estava frio no apartamento e ele ainda estava usando o sobretudo — o aquecimento central estava desligado e as janelas deixavam entrar vento. Mas a sala era grande, agradável e masculina, com velhas poltronas, as paredes decoradas com tapetes persas, pequenos mas de boa qualidade, e objetos de bronze. Livros, revistas e jornais estavam espalhados por toda parte, em cima de mesas, cadeiras e estantes — finlandeses, russos e iranianos. Um par de sapatos femininos estava jogado numa das prateleiras. Ele tomou um gole de vodca, apreciando o calor que ela lhe dava, depois tornou a olhar pela janela em direção à embaixada. Por um momento, ele se perguntou se valeria a pena emigrar para os Estados Unidos com Azadeh.
— Os bastiões estão caindo — murmurou em voz alta. — O Irã não é mais seguro, a Europa é muito vulnerável, a Finlândia tem uma espada sobre sua cabeça...
Sua atenção focalizou-se lá embaixo. Agora o tráfego estava totalmente bloqueado por enxames de jovens vindos de duas ruas — a embaixada dos Estados Unidos ficava na esquina de Tahkt-e-Jamshid com a rua principal, chamada Roosevelt. Chamava-se Roosevelt, pensou. Como se chama agora? Rua Khomeini? Rua da Revolução?
A porta da frente do apartamento se abriu.
— Oi, Erikki — disse o jovem finlandês, com um sorriso. Christian Tollonen usava um chapéu de pele em estilo russo e um casaco impermeável debruado de pele que ele comprara em Leningrado, num fim-de-semana de bebedeira com outros amigos da universidade. — O que há de novo?
— Estou esperando há quatro horas.
— Três horas e vinte e dois minutos e meia garrafa da melhor Moskava russa que o dinheiro pode comprar, e nós combinamos três ou quatro horas. — Christian Tollonen tinha trinta e poucos anos, era solteiro, louro de olhos cinzentos, e adido cultural da embaixada da Finlândia. Eles eram amigos desde que ele viera para o Irã, há alguns anos. — Sirva-me uma, por Deus, eu bem que preciso. Estão fazendo uma outra manifestação e eu tive um bocado de dificuldade para passar. — Ele manteve o casaco vestido e foi até a janela.
Agora, as duas partes da multidão tinham se juntado, com as pessoas se comprimindo em frente às instalações da embaixada. Todos os portões tinham sido fechados. Inquieto, Erikki notou que não havia nenhum mulá no meio dos jovens. Eles podiam ouvir os gritos.
— Morte à América, morte a Carter — traduziu Christian — ele sabia falar farsi fluentemente porque seu pai também servira como diplomata no Irã e ele tinha passado cinco anos da sua juventude numa escola em Teerã. — É a mesma merda de sempre, abaixo Carter e o imperialismo americano.
— Nenhum Allah-u Akbar—disse Erikki. Por um momento, sua mente o levou de volta ao bloqueio da estrada, e ele sentiu um frio no estômago. — Nenhum mulá.
— Não. Eu não vi nenhum aqui por perto. — Na rua, diferentes facções se revezavam diante dos portões de ferro. — A maioria é de estudantes universitários. Eles pensaram que eu era russo e me contaram que houve uma terrível batalha na universidade, esquerdistas contra Faixas Verdes, com uns vinte ou trinta mortos ou feridos e a luta ainda continua. — Enquanto eles olhavam, cinqüenta ou sessenta jovens começaram a bater nos portões. — Eles estão loucos por uma briga.
— E não há nenhuma polícia para impedi-los. — Erikki entregou-lhe o copo.
— O que faríamos sem vodca?
— Beberíamos conhaque. — Erikki riu. — Você tem tudo aí?
— Não, mas tenho um começo. — Christian sentou-se numa das poltronas perto da mesa baixa, em frente a Erikki, e abriu a pasta. — Aqui está uma cópia da sua certidão de casamento e da sua certidão de nascimento. Graças a Deus nós temos cópias. Novos passaportes para vocês dois. Consegui que uma pessoa do gabinete de Bazargan os carimbasse com um visto de residência temporário, válido por três meses.
— Você é um mágico!
— Eles prometeram, que lhe dariam uma nova licença iraniana para pilotar, mas não disseram quando. Com sua carteira de identidade da S-G e a fotocópia da sua licença britânica, eles disseram que você está legalizado. Mas o passaporte de Azadeh é temporário. — Ele o abriu e mostrou o retrato. — Não é o comum. Eu tirei um retrato da foto que você me deu, mas servirá até você arranjar um direito. Faça-a assiná-lo assim que estiver com ela. Ela já esteve fora do país depois que vocês se casaram?
— Não, por quê?
— Se ela viajar com um passaporte finlandês... bem, eu não sei como isso afetará sua cidadania iraniana. As autoridades sempre foram muito sensíveis a esse respeito, principalmente com relação aos nativos. Khomeini parece ser ainda mais xenófobo, portanto seu regime deverá ser ainda mais severo. Eles podem interpretar isso como se ela tivesse renunciado à sua nacionalidade. Acho que eles não a deixariam voltar.
Uma explosão de gritos da massa de jovens na rua distraiu-os por um momento. Centenas deles brandiam os punhos fechados e em algum lugar, alguém com um alto-falante os instruía.
— Do modo como eu me sinto neste momento, contanto que possa tirá-la daqui, o resto não importa — disse Erikki.
O homem mais jovem fitou-o. Depois de um momento, disse:
— Talvez ela deva ser prevenida do perigo, Erikki. Não há nenhuma ma-
neira de conseguir uma outra via dos documentos dela, nem um passaporte iraniano, mas seria muito arriscado para ela sair sem eles. Por que você não pede ao pai dela para consegui-los? Ele poderia fazer isso facilmente. Ele é dono de Tabriz quase toda, não é?
Erikki balançou a cabeça, tristemente.
— Sim, mas nós tivemos outra briga pouco antes de partirmos. Ele ainda desaprova o nosso casamento.
Depois de uma pausa, Christian disse:
— Talvez seja porque vocês não têm filhos ainda, você sabe como os iranianos são.
— Nós temos muito tempo para ter filhos — disse Erikki, com dor no coração. Nós teremos filhos no devido tempo, pensou. Não há pressa e o dr. Nutts disse que ela é perfeita. Merda! Se eu não contar a ela o que Christian disse a respeito dos seus documentos iranianos, ela nunca me perdoará, e de qualquer maneira ela nunca partiria sem a permissão do pai. — Para conseguir-lhe novos documentos, nós teremos que voltar, e, bem, eu não quero voltar.
— Por que, Erikki? Geralmente você mal pode esperar a hora de voltar para Tabriz.
— Rakoczy. — Erikki contara-lhe tudo o que acontecera, exceto o assassinato do mujhaditn no bloqueio da estrada e que Rakoczy matara outros durante o resgate. Não vale a pena contar certos detalhes, pensou amargamente.
Christian Tollonen tomou um gole da sua vodca.
— Qual é o verdadeiro problema?
— Rakoczy. — Erikki sustentou-lhe o olhar.
Christian deu de ombros. Tornou a encher os copos, esvaziando a garrafa.
— Prositl
— Prositl Obrigado pelos papéis e pelos passaportes.
A gritaria lá fora tornou a distrair-lhes a atenção. A multidão estava disciplinada embora mais barulhenta. No pátio da embaixada, havia agora mais holofotes acesos, e eles podiam ver claramente os rostos nas janelas.
— Ainda bem que eles têm os seus próprios geradores.
— Sim, e seu próprio sistema de aquecimento, bombas de gasolina, PX, tudo. — Christian foi até o aparador e trouxe outra garrafa. — Isso, e mais o status especial que gozam no Irã. O fato de não necessitarem de vistos, e de não estarem sujeitos às leis iranianas tem causado um bocado de ódio.
— Por Deus, está frio aqui dentro, Christian. Você não tem nenhuma lenha?
— Nem um pedacinho. O maldito aquecimento está desligado desde que eu me mudei para cá, há três meses, quase todo o inverno.
— Talvez seja melhor. — Erikki apontou para o par de sapatos de mulher. — Você recebe bastante calor, hein?
— Às vezes. — E Christian sorriu. — Admito que Teerã é um... costumava ser um dos melhores lugares do mundo para todos os tipos de prazeres. Mas agora, meu amigo... — Uma sombra passou-lhe pelo rosto. — Eu acho que agora o Irã não será o paraíso que esses filhos da mãe lá fora acreditam que conquistaram, mas um inferno na terra para a maioria deles. Principalmente as mulheres. — Ele tomou outro gole de vodca. Houve uma corrente de excitação ao lado do muro da embaixada quando um jovem, com um rifle do exército americano, subiu nos ombros dos outros e tentou, sem sucesso, alcançar o alto do muro. — Fico imaginando o que faria se este muro fosse meu e aqueles filhos da mãe começassem a tentar entrar à força.
— Você arrancaria a cabeça deles. O que seria legal. Não seria? Christian subitamente riu.
— Só se conseguisse. — Ele olhou para Erikki. — E quanto a você? Qual é o seu plano?
— Eu não tenho um plano. Só depois que eu falar com McIver. Não houve chance esta manhã. Ele e Gavallan estavam ambos ocupados tentando achar os sócios iranianos, depois eles tiveram um encontro na embaixada britânica com alguém chamado... eu acho que eles disseram Talbot...
Christian disfarçou o seu súbito interesse.
— George Talbot?
— É, isso mesmo. Você o conhece?
— Sim, ele é segundo secretário. — Christian não acrescentou: Talbot também é, secretamente, o chefe do Serviço Secreto do Irã, há anos, e é um agente muito importante. — Eu não sabia que ele ainda estava em Teerã. Pensei que ele tivesse partido há uns dois dias. O que McIver e Gavallan querem com ele?
Erikki deu de ombros e virou-se, observando distraidamente mais jovens tentando escalar o muro, preocupado com o que fazer a respeito dos documentos de Azadeh.
— Eles disseram qualquer coisa a respeito de querer mais informações a respeito de um amigo dele que encontraram no aeroporto ontem. Alguém chamado Armstrong. Robert Armstrong.
Christian Tollonen quase deixou cair o copo.
— Armstrong? — perguntou, forçando-se a parecer calmo, satisfeito de que Erikki estivesse de costas para ele.
— Sim. — Erikki virou-se para ele. — Significa alguma coisa para você?
— É um nome bastante comum — disse o rapaz, satisfeito em ver que sua voz estava normal. Robert Armstrong, Ml6, ex-Unidade Especial, que estivera no Irã sob contrato por vários anos, supostamente emprestado pelo governo britânico, supostamente conselheiro-chefe do Serviço Secreto do Irã; um homem raramente visto em público e conhecido apenas por poucos, na maioria gente que pertencia à comunidade de informações.
Como eu, ele pensou, e ficou imaginando o que Erikki diria se soubesse que ele era um agente de informações especializado no Irã, que sabia um bocado sobre Rakoczy e muitos outros agentes estrangeiros, que a sua principal tarefa era saber tudo a respeito do Irã mas não fazer nada e nunca interferir em nenhum dos grupos combatentes, internos ou externos, apenas esperar, observar, manter-se informado e se lembrar. O que será que Armstrong ainda está fazendo aqui?
Ele se levantou para disfarçar a inquietação, fingindo querer ver melhor a multidão.
— Eles descobriram o que queriam? — perguntou. Mais uma vez Erikki deu de ombros.
— Não sei. Não fui me encontrar com eles. Eu estava... — ele parou e examinou o outro homem. — É importante?
— Não. Não, nem um pouco. Você está com fome? Você e Azadeh estão livres esta noite?
— Desculpe, esta noite não. — Erikki deu uma olhada no relógio. — É melhor eu voltar. Mais uma vez obrigado pela ajuda.
— De nada. O que você estava dizendo a respeito de McIver e Gavallan? Eles têm um plano de mudar as operações aqui?
— Acho que não. Eu deveria encontrá-los às três horas para ir ao aeroporto, mas era mais importante para mim encontrar-me com você e conseguir os passaportes. — Erikki se levantou e estendeu a mão. — Mais uma vez obrigado.
— De nada. — Christian trocou um aperto de mão caloroso com ele. — Vejo-o amanhã.
Agora, na rua, a gritaria cessara substituída por um silêncio pesado. Os dois homens correram para a janela. Toda a atenção se voltara para a rua principal, cujo nome fora Roosevelt. Então eles ouviram a ladainha cada vez mais alta: "Allahhhhh-uuuuu Akbarrrr!"
— Existe uma saída pelos fundos neste prédio? — murmurou Erikki.
— Não, não existe.
A turba que se aproximava tinha mulás e Faixas Verdes nas primeiras filas, a maioria deles armados, bem como a massa de rapazes que os seguiam. Todos gritavam em uníssono, Deus é grande, Deus é grande, e eram muito mais numerosos do que os estudantes que estavam em frente à embaixada, embora estes também estivessem armados.
Imediatamente, os esquerdistas tomaram posições defensivas nas soleiras das portas e no meio do tráfego. Homens, mulheres e crianças, presos nos carros e caminhões, começaram a se espalhar. Os islâmicos estavam se aproximando depressa. À medida que as primeiras filas passavam pelas calçadas e por entre os veículos engarrafados e se aproximavam dos muros iluminados, o ritmo da sua gritaria aumentava, o passo apertava, e todo mundo se colocava em posição. Então, surpreendentemente, os estudantes começaram a recuar. Silenciosamente. Os Faixas Verdes hesitaram, desconcertados.
A retirada foi pacífica e a turba se acalmou. Em pouco tempo os manifestantes se afastaram e agora nenhum deles ameaçava a embaixada. Os mulás e os Faixas Verdes começaram a dirigir o tráfego. Os espectadores, que tinham fugido ou abandonado os seus veículos, respiraram de novo, agradeceram a Deus por sua interferência e voltaram. Imediatamente, as buzinas e os xingamentos recomeçaram, à medida que carros, caminhões e pedestres lutavam por espaço. Os enormes portões de ferro da embaixada não foram abertos, embora abrissem uma pequena porta lateral.
Christian sentiu a garganta seca.
— Eu teria apostado que ia haver uma batalha terrível. Erikki também estava estarrecido.
— É quase como se eles estivessem esperando os Faixas Verdes e soubessem quando e de onde eles viriam. É quase como se fosse um ensaio para algu... Ele parou e chegou mais perto da janela, com o rosto subitamente vermelho. — Olhe! Lá na porta, aquele é Rakoczy.
— Onde? On... Oh, você diz o homem de jaqueta de vôo conversando com o sujeito baixo? — Christian apertou os olhos para enxergar melhor na escuridão lá embaixo. Os dois homens estavam meio na sombra, mas nesse momento eles apertaram-se as mãos e vieram para a luz. Era mesmo Rakoczy. — Você tem certeza que...
Mas Erikki já tinha aberto a porta da frente e estava no meio das escadas. Christian teve apenas um vislumbre dele tirando a sua grande faca pukoh do cinto e escorregando-a para a manga, com metade dela na palma da mão.
— Erikki, não seja idiota — gritou, mas Erikki já tinha desaparecido. Chrisitan correu de volta para a janela e chegou bem a tempo de ver Erikki sair correndo pela porta, abrir caminho no meio da multidão atrás de Rakoczy, que não estava mais à vista.
Mas Erikki não o perdera de vista. Rakoczy estava a uns cinqüenta metros de distância e ele tinha acabado de vê-lo virando para o sul na Roosevelt antes de desaparecer. Quando Erikki chegou na esquina, viu o soviético lá adiante, andando depressa, mas não demais, com muitos pedestres entre eles, o tráfego lento e muito barulhento. Desviando-se de um grupo de caminhões, Rakoczy desceu o meio-fio, esperou que um velho e amassado Volkswagen passasse e olhou em volta. E viu Erikki. Teria sido quase impossível deixar de vê-lo. Ele era quase trinta centímetros mais alto do que todo mundo. Sem hesitação, Rakoczy saiu correndo, ziguezagueando no meio da multidão e tomou uma rua lateral, correndo muito depressa. Erikki o viu sair correndo e foi atrás dele. Os pedestres xingaram os dois, um velho foi derrubado no chão imundo quando Rakoczy abriu caminho para entrar em outra rua.
A rua lateral era estreita, cheia de lixo, sem iluminação e sem nenhuma loja aberta àquela hora, apenas uns poucos pedestres cansados caminhavam para casa, com milhares de portas e arcos desembocando em pardieiros ou em escadas que levavam a outros pardieiros, tudo cheirando a urina, lixo e comida podre.
Rakoczy estava a pouco mais de quarenta metros à frente. Ele virou num beco, esbarrando nos bancos de rua onde famílias dormiam — e davam urros de raiva ao serem acordadas —, mudou de direção e voou de uma passagem para outra, entrou num beco, já completamente perdido, depois em outro e outro. Apavorado, ele parou, vendo que estava num beco sem saída. Ele fez menção de pegar sua automática, então notou uma passagem bem à sua frente e correu para ela.
As paredes ficavam tão próximas umas das outras que ele podia tocar nelas enquanto corria, com a respiração ofegante, penetrando cada vez mais naqueles formigueiros sinuosos. À sua frente, uma velha estava despejando a sujeira da noite no meio da podridão e ele a derrubou, enquanto outros se encostavam nas paredes para sair da sua frente. Agora Erikki estava apenas uns vinte metros atrás, fortalecido pelo ódio, e ele pulou por cima da velha que ainda estava esparramada no chão, e redobrou seus esforços, diminuindo a distância. Virando a esquina, o seu adversário parou e empurrou um velho banco de rua para o meio do caminho. Antes que Erikki pudesse evitar, chocou-se com ele e caiu, meio tonto. Com um berro de raiva, ele se levantou, cambaleou por um momento, pulou por cima do banco e saiu correndo de novo, com a faca na mão, dobrando a esquina.
Mas o beco estava vazio. Erikki parou. Ele respirava com dificuldade e estava banhado em suor. Era difícil enxergar embora a sua visão noturna fosse muito boa. Então ele notou um pequeno arco. Cautelosamente, ele o atravessou, com a faca preparada. A passagem dava para um pátio aberto, cheio de lixo, onde havia uma carcaça enferrujada de um carro. Muitas portas e aberturas davam para este pequeno espaço, algumas conduzindo a escadas precárias e andares superiores. Estava silencioso — um silêncio sinistro. Ele podia sentir olhos observando-o. Ratos saíram do meio do lixo e desapareceram sob uma pilha de entulho.
Num dos lados, havia um outro arco. Sobre ele havia uma antiga inscrição em farsi que ele não soube ler. Do outro lado do arco, a escuridão parecia ainda mais profunda. Essa entrada escura terminava numa porta aberta. A porta era de madeira e ferro e estava com metade das dobradiças quebradas. Do outro lado, parecia haver um cômodo. Quando ele chegou mais perto, viu uma vela acesa.
— O que você quer?
A voz masculina veio da escuridão e a nuca de Erikki ficou eriçada. A voz tinha falado em inglês — não era a de Rakoczy — com um sotaque estrangeiro, e uma rouquidão estranha.
— Quem... quem é você? — Ele perguntou nervoso, com os sentidos alerta na escuridão, imaginando se era Rakoczy fingindo ser outra pessoa.
— O que você quer?
— Eu... eu quero... eu estou seguindo um homem — ele disse, sem saber em que direção falar, com sua voz ecoando estranhamente no teto alto e que ele não podia ver.
— O homem que você procura não está aqui. Vá embora.
— Quem é você?
— Isso não importa. Vá embora.
A chama da vela era apenas uma réstia de luz no meio da escuridão, fazendo com que esta parecesse ainda maior.
— Você viu alguém passar por aqui, passar correndo por aqui?
O homem riu baixinho e disse alguma coisa em farsi. Imediatamente, pés se arrastando e gargalhadas abafadas cercaram Erikki e ele se virou, protegendo-se com a faca.
— Quem são vocês?
O arrastar de pés continuou. De todos os lados. Em algum lugar, derramaram água numa cisterna. O ar tinha um cheiro úmido e rançoso. Ele ouviu barulho de tiros ao longe. Outro arrastar de pés. Ele tornou a virar-se, sentindo que havia alguém perto dele, mas não vendo ninguém, só o arco e a noite escura lá fora. O suor escorria pelo seu rosto. Cautelosamente, ele foi até a porta e encostou as costas na parede, certo agora de que Rakoczy estava lá. O silêncio tornou-se mais pesado.
— Por que você não responde? — disse. — Você viu alguém? Mais uma vez um risinho abafado.
— Vá embora. — Depois o silêncio.
— Por que você está com medo? Quem é você?
— Quem eu sou não lhe interessa, e não existe medo aqui, exceto o seu. — A voz era tão gentil como antes. Então o homem acrescentou alguma coisa em farsi e houve mais risadas em volta dele.
— Por que você fala inglês comigo?
— Eu falo inglês com você porque nenhum iraniano ou leitor da língua do Livro viria aqui de dia ou de noite. Só um idiota viria aqui.
A visão periférica de Erikki viu alguma coisa ou alguém passar entre ele e a chama da vela. Imediatamente, ele preparou a faca.
— Rakoczy?
— É este o nome do homem que você procura?
— Sim. É este. Ele está aqui, não está?
— Não.
— Eu não acredito em você, seja você quem for. Silêncio, depois um profundo suspiro.
— Seja como Deus quiser — e deu uma ordem baixa em farsi que Erikki não entendeu.
Fósforos foram acesos em volta dele. Velas e lamparinas a óleo brilharam. Erikki engasgou. Havia trouxas esfarrapadas encostadas nas paredes e colunas da caverna. Centenas delas. Homens e mulheres. Os doentes, restos podres de homens e mulheres deitados em palha ou farrapos. Olhos em rostos deformados olhando para ele. Pedaços de membros. Um velho encarquilhado estava quase nos pés dele e ele deu um salto, apavorado, para o meio do portal.
— Somos todos leprosos aqui — disse o homem. Ele estava encostado numa coluna, um monte de farrapos. Outro farrapo cobria-lhe os buracos dos olhos. Não havia sobrado quase nada do seu rosto, exceto os lábios. Fracamente, ele fez um gesto com um toco de braço. — Somos todos leprosos aqui. Impuros. Esta é uma casa de leprosos. Você está vendo esse homem entre nós?
— Não. Não. Eu... eu sinto muito. — Disse Erikki, tremendo.
— Sente muito? — A voz do homem era cheia de ironia. — Sim. Nós todos sentimos muito. Insha'Allah! Insha'Allah!
Erikki queria desesperadamente virar-se e fugir, mas suas pernas não se mexiam. Alguém tossiu, uma tosse rouca, assustadora. Então a sua boca disse:
— Quem... quem é você?
— Eu fui um professor de inglês. Agora sou um impuro, um dos mortos-vivos. Como Deus quiser. Vá embora. Deus seja abençoado por sua misericórdia.
Apatetado, Erikki viu o homem fazer um sinal com o resto dos braços. Obedientemente, as luzes começaram a se apagar, com os olhos ainda a observá-lo.
Lá fora, no ar da noite, ele teve que fazer um esforço para não sair cor rendo, aterrorizado, sentindo-se sujo, com vontade de arrancar as roupas imediatamente e se lavar e ensaboar e tornar a se lavar, sem parar.
— Pare com isso — murmurou, com a pele arrepiada. — Não há nada para temer
QUARTA-FEIRA
14 de fevereiro27
NA PRISÃO DE EVIN: 6:29H. A prisão era igual a qualquer outra prisão moderna — nos bons ou maus dias — cinzenta, melancólica, cercada de muros altos, e terrível.
Hoje, o amanhecer estava estranho, o clarão abaixo do horizonte curiosamente vermelho. Não havia nuvens no céu, pela primeira vez em semanas, e embora ainda estivesse frio, prometia ser um dia incomum. Sem neblina. Com o ar fresco e puro para variar. Um vento ameno expulsou a fumaça dos destroços ainda fumegantes dos carros e das barricas dos combates da noite anterior entre os Faixas Verdes, agora legais, e os legalistas, esquerdistas, combinados com policiais e militares, agora ilegais, bem como a fumaça de inúmeros fogões e lareiras dos milhões de habitantes de Teerã.
Os poucos pedestres que passavam pelos muros da prisão e pelo seu enorme portão, que estava quebrado e com as dobradiças arrancadas, evitavam olhar para os Faixas Verdes que se recostavam indolentemente nos muros, e apressavam o passo. Havia pouco tráfego. Um outro caminhão cheio de prisioneiros e guardas se aproximou e parou um momento no portão principal para ser inspecionado. A barricada provisória foi aberta e tornou a ser fechada. Do lado de dentro dos muros houve uma súbita rajada de tiros de rifle. Do lado de fora, os Faixas Verdes bocejaram e se espreguiçaram.
Com a chegada do sol, começou a chamada dos muezins nos minaretes. Na maior parte das mesquitas, suas vozes eram gravadas em cassete e transmitidas por alto-falantes. E onde quer que o chamado fosse ouvido, os fiéis paravam o que estivessem fazendo, viravam-se de frente para Meca e se ajoelhavam para a primeira oração.
Jared Bakravan tinha parado o carro um pouco mais adiante. Agora, junto com o seu motorista e os outros, ele se ajoelhou e rezou. Tinha passado grande parte da noite tentando encontrar seus amigos e aliados mais importantes. A notícia da prisão ilegal de Paknouri e da sua própria intimação ilegal tinha corrido o bazar. Todo mundo ficou indignado, mas ninguém se ofereceu para organizar um prostesto ou uma greve ou para fechar o bazar. Ele tinha recebido muitos conselhos: prostestar junto ao próprio Khomeini, junto ao próprio ministro Bazargan, não aparecer no tribunal, aparecer mas se recusar a responder a qualquer pergunta. "Seja como Deus quiser", mas ninguém tinha se oferecido para ir com ele, nem mesmo o seu grande amigo e um dos maiores advogados de Teerã, que jurou que era mais importante que intercedesse por ele junto aos juizes da Corte Suprema. Ninguém se ofereceu, a não ser sua mulher, seu filho e suas três filhas que rezavam nos seus próprios tapetes de oração, atrás dele.
Ele terminou a oração e se levantou, tremendo. Imediatamente, o motorista começou a recolher os tapetes de rezar. Jared estremeceu. Esta manhã ele se vestira cuidadosamente e estava usando um casaco pesado, um terno e um chapéu de astracã, mas nenhuma jóia.
— Eu... eu vou a pé daqui — disse.
— Não, Jared — sua mulher, chorosa, começou a falar, mal notando os tiros a distância. — Sem dúvida, é melhor chegar como cabe a um líder. Você não é o lojista mais importante de Teerã? Não ficaria bem para um homem da sua posição chegar a pé.
— Sim, sim, sim, você tem razão. — Ele sentou no banco de trás do carro. Era uma Mercedes azul, nova e bem tratada. Sua mulher, uma matrona gorda, com o penteado caro escondido sob um chador que também cobria o seu longo vison marrom, sentou-se ao lado dele e deu-lhe o braço, com a maquilagem marcada de lágrimas. Seu filho, Meshang, estava igualmente choroso. E suas filhas, Xarazade entre elas, todas usavam o chador, — Sim, você tem razão. Que Deus amaldiçoe esses revolucionários!
— Não se preocupe, papai — disse Xarazade. — Deus irá protegê-lo. Os Guardas Revolucionários estão apenas cumprindo as ordens do imã e o imã cumpre apenas as ordens de Deus. — Ela parecia muito confiante, mas estava com uma aparência tão abatida que ele se esqueceu de lhe dizer para não se referir a Khomeini como imã.
— Sim — disse a ela — é claro que tudo isso é um engano.
— Ali Kia jurou sobre o Corão que o primeiro-ministro Bazargan ia parar com toda essa bobagem — disse sua esposa. — Ele jurou que iria se encontrar com ele na noite passada. As ordens provavelmente já chegaram a... já chegaram lá
Na noite anterior, ele dissera a Ali Kia que sem Paknouri não haveria nenhum empréstimo, que se ele próprio fosse perturbado, o bazar se rebelaria e todos os fundos para o governo, para Khomeini, para as mesquitas, e para Ali Kia pessoalmente seriam suspensos.
— Ali não vai falhar — disse com severidade. — Ele não ousaria. Eu sei demais a respeito de todos eles.
O carro parou do lado de fora do portão principal. Preguiçosamente, os Faixas Verdes olharam para ele. Jared Bakravan tomou coragem.
— Eu não vou me demorar.
— Que Deus o proteja. Nós vamos esperar por você aqui. Vamos esperar aqui. — Sua mulher beijou-o e os outros também, e houve mais lágrimas e depois ele se viu diante dos Faixas Verdes.
— Salaam — disse. — Eu... eu sou uma testemunha no tribunal do mulá Ali'allah Uwari.
O líder dos guardas apanhou o papel, olhou-o de cabeça para baixo e entregou-o a um dos outros que sabia ler.
— Ele é do bazar — disse o outro rapaz. — Jared Bakravan. O líder deu de ombros.
— Mostre-lhe o caminho.
O outro homem foi na frente, entrando pelo portão quebrado. Bakravan seguiu-o, e quando a barricada fechou-se atrás dele, grande parte da sua confiança desapareceu. Era sombrio e úmido naquela pequena área suja que ficava entre os muros e o edifício principal. O ar fedia. A leste, havia centenas de homens amontoados, sentados ou deitados, encolhidos por causa do frio. Muitos usavam uniformes — oficiais. A oeste, o espaço estava vazio. À frente, havia um portão alto de ferro que foi aberto para que ele entrasse. Na sala de espera havia dezenas de outros homens, homens cansados e assustados, sentados em fileiras de bancos, em pé ou simplesmente sentados no chão, alguns oficiais uniformizados, e ele notou até um coronel. Alguns dos outros ele reconheceu, importantes homens de negócios, favoritos da corte, administradores, assessores — mas ele não conhecia intimamente nenhum deles. Alguns o reconheceram. Houve um súbito silêncio.
— Depressa — disse o guarda, mal-humorado. Era um rapaz com o rosto marcado de varíola e ele fez um sinal para o funcionário exausto que estava sentado na escrivaninha. — Aqui está mais um para Sua Excelência, o mulá Uwari.
O funcionário recebeu o papel e dirigiu-se a Bakravan.
— Sente-se, será chamado quando precisarem de você.
— Salaam, Excelência — disse Bakravan, chocado com a grosseria do homem. — E quando será isso? Era para eu estar aqui logo depois da primeira...
— Quando Deus quiser. Será chamado quando precisarem de você — repetiu o homem, despachando-o.
— Mas eu sou Jared Bakravan do baz...
— Eu sei ler, aga! — disse o homem, com mais grosseria ainda. — Quando precisarem de você, eles o chamarão. O Irã é um Estado islâmico agora, com uma lei para todos, não uma lei para os ricos e outra para o povo.
Bakravan foi empurrado por outros que estavam sendo levados para junto do funcionário. Tonto de ódio, ele abriu caminho em direção a uma parede.
De um dos lados, um homem usava um balde como sanitário, que já estava cheio, com urina derramando no chão. Vários olhos observaram Bakravan. Alguns murmuraram: — Que a paz de Deus esteja com você. — A sala fedia terrivelmente. Seu coração estava acelerado. Alguém abriu um espaço para ele num banco e, agradecido, ele se sentou.
— Que as bênçãos de Deus caiam sobre vocês, Excelências.
— E sobre você também, aga. Você é acusado?
— Não, não. Eu fui chamado como testemunha — disse, chocado.
— Vossa Excelência é uma testemunha diante do mulá Uwari?
— Sim, sim. Sou, Excelência. Quem é ele?
— Um juiz, um juiz revolucionário — murmurou o homem. Ele tinha uns cinqüenta anos, era pequeno, seu rosto era mais vincado do que o de Bakravan e seu cabelo crescia em tufos. Ele se contorceu nervosamente. — Ninguém aqui parece saber o que está acontecendo nem por que foi chamado, nem quem é Uwari. Sabem apenas que ele foi indicado pelo aiatolá e julga em seu nome.
Bakravan olhou o homem nos olhos e viu o seu terror e se sentiu ainda mais nervoso.
— Vossa Excelência também é uma testemunha?
— Sim, sim, sou, embora por que me chamaram, a mim, que era apenas um gerente nos correios, eu não saiba.
— O correio é muito importante. Eles provavelmente precisam dos seus conselhos. O senhor acha que vamos esperar muito tempo?
— Insha'Allah. Eu fui convocado para ontem, depois da quarta oração, e estou esperando desde então. Eles me mantiveram aqui a noite inteira. Nós temos que esperar até sermos chamados. Aquele é o único banheiro — disse o homem, apontando para o balde. — Foi a pior noite que eu já passei. Terrível. Durante a noite, eles... houve um bocado de tiroteio; há boatos de que mais três generais e uma dúzia de oficiais da Savak foram executados.
— Cinqüenta ou sessenta — disse o homem que estava do outro lado, saindo do seu estupor. — O número deve estar mais próximo de sessenta. A prisão tem mais gente do que percevejos num colchão. Todas as celas estão lotadas. Há dois dias, os Faixas Verdes arrombaram os portões, dominaram os guardas e os puseram nos calabouços, soltando a maioria dos prisioneiros e começando a encher as celas com outros — ele baixou ainda mais a voz — todas as celas estão lotadas, muito mais do que no tempo do xá, que Deus o amaldiçoe por não... A cada hora que passa, os Faixas Verdes estão trazendo mais gente, fedayim, mujhadin, do Tudeh, misturados a nós, inocentes, os fiéis...
— Ele tornou a baixar a voz, com o branco dos olhos aparecendo —, e gente boa que nunca deveria ser tocada... quando a multidão invadiu a prisão, eles acharam instrumentos elétricos e chicotes e... e camas de tortura e... — O canto da sua boca se encheu de espuma. — ...dizem que os novos carcereiros os estão usando e... e que quando a pessoa entra aqui não sai mais. — Lágrimas começaram a formar-se nos seus pequenos olhos, encravados num rosto redondo.
— A comida é horrível, a prisão é horrível e... e eu tenho úlcera de estômago e aquele filho da mãe daquele funcionário não entende que eu tenho que comer uma comida especial...
Houve um tumulto do outro lado e a porta foi aberta com violência. Meia dúzia de Faixas Verdes entraram na sala e começaram a abrir caminho com seus rifles. Atrás deles, outros guardas cercavam um oficial da Força Aérea que caminhava orgulhosamente, com a cabeça erguida, com as mãos amarradas nas costas, o uniforme desgrenhado, com as dragonas arrancadas. Bakravan ficou perplexo. Era o coronel Peshadi, comandante da Base Aérea de Kowiss — outro primo seu.
Outros reconheceram o coronel, pois muito se tinha falado da vitoriosa expedição iraniana a Dhofar, no sul de Omã, da vitória sobre os marxistas do Iêmen do Sul, que tinham desfechado um ataque quase letal contra o Omã, e também da bravura pessoal de Peshadi liderando os tanques iranianos numa batalha-chave.
— Aquele não é o herói de Dhofar? — perguntou alguém, sem poder acreditar.
— Sim, é ele...
— Que Deus nos proteja! Se prenderam até a ele...
Impaciente, um dos guardas empurrou Peshadi por trás, tentando obrigá-lo a andar depressa. Imediatamente, o coronel voltou-se contra ele, embora embaraçado pelas algemas.
— Filho de um cão! — gritou, com a raiva explodindo — Eu estou andando o mais depressa que posso. Que o seu pai queime no inferno! — O Faixa Verde xingou-o de volta, depois enfiou a coronha do rifle no estômago do coronel. Este perdeu o equilíbrio e caiu, à sua mercê. Mas ainda assim ele xingou os seus captores. E os xingou enquanto estes o levantavam, dois de cada lado, e o arrastavam para fora, para o espaço a oeste entre os muros. E lá ele os xingou, a Khomeini, aos falsos mulás e depois gritou:
— Vida longa para o xá, não existe nenhum outro Deus além de Deus. — As balas o silenciaram.
Na sala de espera fez-se um silêncio terrível. Alguém choramingou. Um velho começou a vomitar. Outros se puseram a sussurar, muitos começaram a rezar, e Bakravan achou que tudo aquilo era um pesadelo, seu cérebro cansado rejeitando a realidade. O ar fétido era frio, mas ele se sentia num forno, sufocando. Será que estou morrendo? perguntou a si mesmo, e abriu o colarinho da camisa. Então alguém tocou nele e ele abriu os olhos. Por um momento, não pôde focalizar a vista nem calcular aonde estava. Ele estava deitado no chão, com o homem pequeno inclinando-se ansiosamente sobre ele.
— Você está bem?
— Sim, sim, acho que sim — disse com voz fraca.
— Você desmaiou, Excelência. Tem certeza que está bem?
Várias mãos o ajudaram a se levantar. Ele agradeceu, embotadamente. Seu corpo parecia muito pesado, seus sentidos estavam entorpecidos, os olhos pesados.
— Ouça — murmurou o homem que tinha úlcera — isso é como a Revolução Francesa, a guilhotina e o terror, mas como isso pode acontecer com o aiatolá Khomeini no poder é o que não consigo entender.
— Ele não sabe — disse o homem pequeno, igualmente amedrontado. — Ele não pode saber, ele não é um homem de Deus, piedoso e o mais sábio dos aiatolás?
O cansaço tomou conta de Bakravan e ele se encostou na parede, deixando sua mente divagar.
Mais tarde, uma mão rude despertou-o.
— Bakravan, eles o chamam. Venha!
— Sim, sim — resmungou, e se levantou, sentindo dificuldade em andar, reconhecendo Yusuf, o líder dos Faixas Verdes que tinha ido ao bazar na noite anterior. Foi tropeçando atrás dele, passando no meio dos outros, saiu da sala e caminhou por um corredor, subiu alguns degraus e atravessou um outro corredor sem aquecimento, com celas dos dois lados, vigias nas portas, passando por guardas e outras pessoas que o olharam estranhamente, enquanto alguém chorava ali por perto.
— Para onde... para onde estão me levando?
— Poupe suas energias, você vai precisar delas.
Yusuf parou numa porta, abriu-a e empurrou-o para dentro. A sala era pequena, claustrofóbica, apinhada de homens. No meio, havia uma mesa de madeira com um mulá e quatro rapazes sentados de cada lado dele, alguns papéis e um livro grande do Corão sobre a mesa, uma pequena janela de grades no alto da parede, um raio de sol contra o azul do céu. Havia Faixas Verdes encostados nas paredes.
— Jared Bakravan, o lojista do bazar, o agiota — disse Yusuf. O mulá levantou os olhos da lista que estava examinando.
— Ah, Bakravan, salaam.
— Salaam, Excelência — disse Bakravan, tremendo. O mulá tinha uns quarenta anos, olhos e barba pretos, um turbante branco e uma veste preta. Os homens que o ladeavam estavam na casa dos vinte, com a barba por fazer ou de barba e pobremente vestidos, com suas armas encostadas na parede atrás deles. — Como... como posso ajudá-lo? — perguntou, tentando manter a calma.
— Eu sou Ali'allah Uwari, indicado pelo Komiteh Revolucionário como juiz, e estes homens também são juizes. Esta corte é governada pela Palavra de Deus e pelo Livro Sagrado. — A voz do mulá era áspera e o seu sotaque Qazvini. — Você conhece este Paknouri, conhecido como agiota Paknouri?
— Sim, mas com licença, Excelência, de acordo com a nossa Constituição e com as antigas leis do bazar, o...
— É melhor responder às perguntas — interrompeu um dos rapazes —, nós não podemos perder tempo com discursos! Você o conhece ou não?
— Sim, sim, é ciar...
— Excelência Uwari — Yusuf interrompeu da porta. — Por favor, quem o senhor quer ver em seguida?
— Paknouri, depois... — O mulá consultou a sua lista de nomes. — Depois o sargento Jufrudi, da polícia.
Um dos que estavam sentados na mesa disse:
— Esse cão foi julgado por um outro tribunal revolucionário na noite passada e foi executado hoje de manhã.
— Seja como Deus quiser. — O mulá riscou o nome. Todos os nomes acima daquele tinham sido riscados. — Então traga Hassen Turlak, da cela 573.
Bakravan quase deu um grito. Turlak era um jornalista e escritor altamente respeitado, meio-iraniano, meio-afegão, um crítico zeloso e corajoso do regime do xá, que tinha até passado alguns anos na prisão por causa da sua oposição.
O rapaz barbado que estava ao lado do mulá coçou, irritado, as perebas do rosto.
— Quem é Turlak, Excelência? O mulá leu na lista.
— Um repórter de jornal.
— É uma perda de tempo ouvi-lo. É claro que ele é culpado — disse um outro. — Não foi ele que afirmou que a Palavra devia ser mudada, que as Palavras do Profeta não serviam para hoje? Ele é culpado, é claro que é culpado.
— Seja como Deus quiser. — O mulá voltou a sua atenção para Bakravan. — Paknouri. Ele alguma vez praticou agiotagem?
Bakravan tirou Turlak da cabeça.
— Não, nunca, e ele...
— Ele emprestava dinheiro a juros.
O estômago de Bakravan ardeu. Ele viu os frios olhos pretos e tentou fazer o seu cérebro trabalhar.
— Sim, mas numa sociedade moderna os ju...
— Não está escrito de forma clara no Sagrado Corão que emprestar dinheiro a juros é agiotagem e contra a lei de Deus?
— Sim. A agiotagem é contra a lei de Deus, mas na sociedade moder...
— O Sagrado Corão é perfeito. A Palavra é clara e eterna. Agiotagem é agiotagem. A lei é a lei. — Os olhos do mulá fixaram-no. — Você defende alei?
— Sim, sim, Excelência, é claro que sim.
— Você pratica os Cinco Mandamentos do Islã? — Esses eram obrigatórios para todos os muçulmanos: recitar o Shahada; orar cinco vezes por dia; dar voluntariamente o Zakat, uma taxa anual, um décimo; jejuar do amanhecer até o anoitecer durante o mês sagrado do Ramadan; e, finalmente, fazer o Hajj, a viagem ritual a Meca uma vez na vida.
— Sim, sim, exceto... exceto o último. Eu ainda não fiz a minha peregrinação a Meca. Ainda não.
— Por que não? — O jovem com o rosto marcado perguntou. — Você tem mais dinheiro do que moscas em bosta de burro. Com o seu dinheiro você podia ir em qualquer máquina voadora, qualquer uma! Por que não?
— É... é a minha saúde — disse Bakravan, mantendo os olhos baixos e rezando para a mentira soar convincente. — O meu... meu coração é fraco.
— Quando você esteve na mesquita pela última vez? — perguntou o mulá.
— Na sexta-feira passada, na mesquita do bazar — respondeu. Era verdade, só que ele não tinha ido lá para rezar, mas para uma reunião de negócios.
— Este Paknouri, ele praticava os Cinco Mandamentos como um verdadeiro crente? — perguntou um dos jovens.
— Eu... eu acho que sim.
— Todo mundo sabe que não, todo mundo sabe que ele era um partidário do xá. Hein?
— Ele era um patriota, um patriota que apoiou financeiramente a revolução e o aiatolá Khomeini, que as bênçãos de Deus caiam sobre ele, que tem apoiado financeiramente os mulás ao longo dos anos e...
— Mas ele falava americano e trabalhava para os americanos e para o xá, ajudando-os a explorarem e roubarem as riquezas do nosso solo, não é?
— Ele, ele era um patriota que trabalhava com os estrangeiros para o bem do Irã.
— Quando o Satã, o xá, ilegalmente formou um partido, Paknouri se alistou, e serviu ao xá nos Majlis, não é? — perguntou o mulá.
— Ele foi um representante, sim — respondeu Bakravan. — Mas ele trabalhou para a rev...
— E ele votou a favor da chamada Revolução Branca do xá que roubou terras das mesquitas, decretou a igualdade das mulheres, implantou tribunais civis e educação estatal contra as leis do Sagrado Corão...
É claro que ele tinha votado a favor disso, Bakravan teve vontade de gritar, com o suor escorrendo pelo rosto e pelas costas. É claro que todos nós votamos a favor! O povo não votou a favor, em massa, e até mesmo muitos aiatolás e mulás? O xá não controlava o governo, a polícia, a Savak, as Forças Armadas e não possuía quase toda a terra? O xá era o poder máximo. Maldito xá, pensou, fora de si de raiva, maldito xá e maldita Revolução Branca de 1963, que começou a confusão, enlouqueceu os mulás e continua a nos prejudicar, todas as suas 'reformas modernas' que foram diretamente responsáveis pela notoriedade do então obscuro aiatolá Khomeini. Nós, os lojistas do bazar, não avisamos mil vezes aos conselheiros do xá? Como se alguma daquelas reformas tivesse importância. Como se alguma daquelas reformas..
— Sim ou não?
Ele voltou subitamente à realidade e amaldiçoou a si mesmo. Concentre-se! pensou em pânico. Este maldito filho de um cão leproso está tentando apanhá-lo! O que foi que ele perguntou? Tenha cuidado. Pela sua vida, tenha cuidado! Ah, sim, a Revolução Branca!
— Emir Paknouri...
— Em nome de Deus, sim ou não! — O mulá interrompeu-o rudemente.
— Ele... sim... sim, ele votou a favor da... da Revolução Branca quando era representante nos Majlis. Sim, sim, ele o fez.
O mulá suspirou e os rapazes se mexeram nas cadeiras. Um deles bocejou e se coçou, brincando distraidamente com o próprio sexo.
— Você é um representante?
— Não, não, eu renunciei quando o aiatolá Khomeini ordenou. O...
— Você quer dizer quando o imã Khomeini, o imã ordenou?
— Sim, sim — disse Bakravan, agitado. — Eu renunciei, ahn, assim que o imã ordenou, eu... eu renunciei imediatamente — disse, e não acrescentou: Nós todos renunciamos por sugestão de Paknouri quando se teve certeza de que o xá decidira partir e passar o poder para o moderado e sensato primeiro-ministro Bakhtiar, mas não para o poder ser usurpado por Khomeini, ele teve vontade de gritar, este nunca foi o plano! Que Deus amaldiçoe os americanos que nos venderam, os generais que nos entregaram, o xá que é o responsável! — Todo mundo sabe... sabe que eu apoiei o imã, que ele viva para sempre.
— Sim, que a bênção de Deus caia sobre ele — repetiu o mulá junto com os outros. — Mas você, Jared Bakravan do bazar, você alguma vez praticou a agiotagem?
— Nunca — Bakravan disse imediatamente, acreditando nisso, embora entrando em pânico. Eu tenho emprestado dinheiro a minha vida inteira, mas os juros têm sido sempre justos e razoáveis, nunca de agiota, nunca. E todas as vezes que eu agi como conselheiro para diversas pessoas e ministros, conseguindo empréstimos, públicos e privados, transferindo fundos para fora do Irã, privados e públicos, ganhando dinheiro, um bocado de dinheiro, isso foi apenas bom negócio e não contra a lei. — Eu me opus à... eu me opus à Revolução Branca e ao xá, sempre que pude. Todo mundo sabia que eu me opu...
— O xá cometeu crimes contra Deus, contra o Islã, contra o Sagrado Corão, contra o imã, que Deus o proteja, contra a fé xiita. Todos aqueles que o ajudaram são igualmente culpados. — Os olhos do mulá eram implacáveis. — Quais são os crimes cometidos por você contra Deus e a Palavra de Deus?
— Nenhum — ele exclamou, chegando ao limite das suas forças. — Em nome de Deus, eu juro, nenhum!
A porta se abriu. Yusuf entrou na sala com Paknouri. Bakravan quase desmaiou de novo. As mãos de Paknouri estavam algemadas para trás. Fezes e urina manchavam as suas calças e havia vômito na frente do seu casaco. Sua cabeça balançava incontrolavelmente, seu cabelo estava embaraçado e imundo, ele havia perdido a razão. Quando ele viu Bakravan, seu rosto se contorceu numa careta.
— Ah, Jared, Jared, velho amigo e colega, Excelência, você veio se juntar a nós no inferno? — Ele deu uma gargalhada. — Não é como eu imaginava, os demônios ainda não chegaram, nem o óleo fervente nem as chamas, mas não existe ar, só fedor, e você fica apertado contra os outros e não pode nem deitar nem sentar, então você fica em pé e aí os gritos recomeçam e os tiros e, o tempo todo, você está sobre um ovo, apertado como uma ova de caviar, mas mas mas... — Ele interrompeu aquele delírio meio incoerente quando viu o mulá. O terror tomou conta dele. — Você é... você é Deus?
— Paknouri — disse gentilmente o mulá — você é acusado de crimes contra Deus. Esta testemunha de acusação diz que...
— Sim, sim, eu cometi crimes contra Deus, eu sou culpado — Paknouri gritou. — Se não, por que eu estaria no inferno? — Ele caiu de joelhos, num acesso de choro, delirando. — Não há nenhum deus além de Deus não é Deus, não há nenhum Deus e Maomé é o seu Profeta de nenhum Deus e... — De repente, ele parou. Seu rosto estava ainda mais contorcido quando ele levantou a cabeça. — Eu sou Deus. Você é Satã!
Um dos rapazes quebrou o silêncio, chocado.
— Ele é um blasfemador. Ele está possuído por Satã. Ele se declarou culpado. Seja como Deus quiser.
Todos os outros balançaram a cabeça, concordando. O mulá disse:
— Seja como Deus quiser. — Ele fez um sinal para um Faixa Verde, que levantou Paknouri e o levou embora e olhou para Bakravan que olhava fixamente para o amigo, horrorizado pela rapidez com que ele fora destruído da noite para o dia. — Agora, Bakravan, você...
— Eu estou com este Turlak esperando lá fora — disse Yusuf, interrompendo-o.
— Ótimo — disse o mulá. Então ele tornou a olhar para Bakravan e este soube que estava tão perdido quanto o seu amigo Paknouri, e que a sentença seria a mesma. Ele sentia o sangue bater nos seus ouvidos. Ele viu os lábios do mulá se movendo, até que pararam e todo mundo olhava para ele
— Por favor? — perguntou, sem entender. — Eu... eu sinto muito, mas não ouvi o que o senhor... o que o senhor disse.
— Você pode sair. Por ora. Faça o trabalho de Deus. — Impaciente, o mulá olhou para um dos Faixas Verdes, um homem alto e feio. — Ahmed, leve-o para fora! — Depois para Yusuf: — Depois de Turlak, o capitão de polícia Muhammad Dezi, cela 917...
Bakravan sentiu um puxão no braço e se virou e saiu. No corredor, ele quase caiu, mas Ahmed o segurou e, com uma gentileza inesperada, encostou-o na parede.
— Recupere o seu fôlego, Excelência — disse.
— Eu... eu estou livre para partir?
— Eu estou tão surpreso quanto o senhor, aga — disse o homem. — Diante de Deus e do Profeta, eu estou tão surpreso quanto o senhor, o senhor é o primeiro a ser libertado hoje, entre acusados e testemunhas.
— Eu... há... há um pouco d'água aqui?
— Aqui não. Mas há muita água lá fora. É melhor o senhor sair. — Ahmed baixou ainda mais a voz. — É melhor sair, hein? Apóie-se no meu braço.
Agradecido, Bakravan apoiou-se nele, mal respirando. Vagarosamente, eles voltaram pelo mesmo caminho por onde tinham vindo. No corredor que levava à sala de espera, Ahmed passou por uma porta lateral, que dava para o espaço que ficava a oeste. O pelotão de fuzilamento estava lá, com três homens amarrados em postes em frente a eles. Um dos postes estava vazio. A bexiga e os intestinos de Bakravan se esvaziaram sem ele querer.
— Depressa, Ahmed! — disse o encarregado, irritado.
— Seja como Deus quiser — disse Ahmed. Alegremente, ele quase carregou Bakravan para o poste vazio que ficava ao lado do de Paknouri, que estava delirando, perdido no seu próprio inferno. — Então você não vai escapar, afinal. Está certo, nós todos ouvimos as suas mentiras, mentiras diante de Deus. Nós todos o conhecemos, conhecemos os seus métodos, conhecemos a sua falta de piedade, sabemos como você tentou comprar o seu caminho para o paraíso com presentes para o imã, que Deus o proteja. Onde você conseguiu todo esse dinheiro, senão através da agiotagem e do roubo?
A rajada de balas não foi bem dada. O encarregado usou displicentemente um revólver para silenciar um dos condenados, depois Bakravan.
— Eu não o teria reconhecido — disse secamente o homem. — Isso mostra o quanto os jornais são traiçoeiros e mentirosos.
— Este não é Hassen Turlak — disse Ahmed —, ele vem depois. O homem olhou para ele.
— Então quem é esse?
— Um lojista do bazar — disse Ahmed. — Os lojistas são agiotas e ímpios. Eu sei. Durante anos eu trabalhei lá, para Farazan, recolhendo o lixo da noite, como meu pai antes de mim, até me tornar pedreiro como Yusuf. Mas esse aí... — Ele arrotou. — Ele era o agiota mais rico. Eu não me lembro de muita coisa a respeito dele, a não ser de como ele era rico, mas me lembro de tudo a respeito das mulheres dele; ele nunca dobrou nem educou as suas mulheres, que nunca usaram o chador, e viviam se exibindo. Eu me lembro muito bem daquela filha dele que visitava a rua dos Agiotas de vez em quando, semi despida, com a pele fresca como creme, o cabelo solto, os seios balançando, as nádegas convidativas, aquela chamada Xarazade, que é a imagem perfeita de uma huri. Eu me lembro de tudo a respeito dela e de como eu a amaldiçoava por colocar maldade na minha cabeça, enlouquecendo-me, como a todos nós, por nos tentar. — Ele coçou o saco, sentindo o pênis endurecer. Que Deus a amaldiçoe e a todas as mulheres que desobedecem à lei de Deus e nos provocam maus pensamentos contra a palavra de Deus. Oh, Deus, deixe-me penetrá-la ou faça de mim um mártir para que eu vá diretamente para o paraíso e faça isso lá. — Ele era culpado de todos os crimes — disse, virando-se.
— Mas... mas ele foi condenado? — perguntou o encarregado do pelotão de fuzilamento.
— Deus o condenou, é claro. Ele o fez. O poste estava vazio e você disse para eu me apressar. Foi a Vontade de Deus. Deus é grande. Deus é grande. Agora eu vou buscar Turlak, o blasfemador. — Ahmed deu de ombros. — Foi a Vontade de Deus.
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PERTO DE BANDAR DELAM: 11:58H. Estava na hora da oração de meio-dia e o ônibus velho, vacilante, superlotado, parou na faixa de acostamento. Obedientemente, seguindo o comando de um mulá que era também um dos passageiros, todos os muçulmanos desembarcaram, abriram os seus tapetes de oração e agora encomendavam suas almas a Deus. Exceto pela família hindu, que ficou com medo de perder os lugares, a maioria dos passageiros não-muçulmanos tinha também desembarcado — Tom Lochart entre eles — contente pela oportunidade de esticar as pernas ou aliviar a bexiga. Armênios cristãos, judeus orientais, um casal de nômades kash'kaique, embora muçulmanos, estavam desobrigados por um antigo costume, de fazer a oração do meio-dia e suas mulheres não precisavam usar nem o véu nem o chador, dois japoneses, alguns árabes cristãos — todos eles conscientes do europeu solitário.
O dia estava quente, nublado e úmido por causa da proximidade das águas do golfo. Tom Lochart recostou-se fatigado sobre o capô, que fervia com o motor superaquecido, com a cabeça doendo, as juntas doendo, os músculos doendo, por causa da marcha forçada desde Dez Dam — que estava agora a mais de trezentos quilômetros para o norte — e por causa do desconforto do ônibus lotado e barulhento. Desde Ahwaz, onde conseguira passar uma conversa nos Faixas Verdes e entrar no ônibus, ele estivera espremido num assento que mal dava para dois, que dirá três homens, um deles, um jovem Faixa Verde que carregava o seu M14 junto com o filho, enquanto sua mulher grávida viajava em pé no estreito corredor, junto com mais trinta, no espaço de quinze. Todos os outros lugares estavam igualmente lotados com homens, mulheres e crianças de todas as idades. O ar era fétido, vozes tagarelavam numa confusão de línguas. Acima das cabeças e sob os pés, malas, pacotes e sacolas, bolsas cheias de legumes ou galinhas semimortas, uma ou duas cabras subnutridas — os bagageiros do teto do ônibus estavam igualmente lotados.
Mas eu tenho muita sorte em estar aqui, pensou, com o desespero voltando, mal ouvindo a ladainha do Shahada.
Na véspera, ao entardecer, depois de ouvir o 212 decolar de Dez Dam, saíra de baixo do pequeno ancoradouro, agradecendo a Deus por ter escapado. A água estava muito fria e ele tremia, mas pegou a automática, verificando seu mecanismo, e depois subiu até a casa que estava aberta. Havia comida e bebida na geladeira que ainda funcionava perfeitamente, impulsionada por um gerador. Estava quente dentro de casa. Tirou as roupas e secou-as sobre um aquecedor, xingando Valik e Seladi e desejando que fossem para o inferno. Filhos da puta! O que foi que eu fiz para eles, além de salvar os seus malditos pescoços?
O calor e o conforto da casa eram tentadores. Seu cansaço chegava a doer. Tinha passado a noite anterior em Isfahan quase em claro. Podia dormir e partir de madrugada, pensou. Tenho uma bússola e conheço mais ou menos o caminho: contornar o campo de aviação de Ali Abbasi, depois tomar o rumo leste para pegar a estrada Kermanshah—Ahwaz—Abadan. Não deve haver problema para se conseguir apanhar um ônibus ou pegar uma carona. Ou podia partir agora — o luar vai iluminar o caminho e assim não serei apanhado aqui, se a base aérea enviar uma patrulha. — Ali estava tão nervoso por causa disso quanto Seladi e poderíamos ter sido localizados facilmente. Facilmente. Mas de qualquer maneira, caso seja apanhado, qual vai ser a história?
Pensou sobre isso enquanto preparava um conhaque com soda e um pouco de comida. Valik e os outros tinham aberto duas latas de meio quilo do melhor caviar cinzento beluga e tinham-nas abandonado displicentemente na mesa da sala, parcialmente cheias. Comeu com grande avidez e depois jogou as latas no lixo que estava do lado de fora da porta dos fundos. Depois trancou a casa e partiu.
A marcha forçada pelas montanhas fora difícil, mas não tão difícil quanto esperara. Pouco depois do amanhecer, descera até a estrada Kermanshah—Ahwaz—Abadan. Quase imediatamente, conseguira uma carona com alguns operários coreanos que estavam deixando a usina de aço que construíam sob contrato em Kermanshah — era quase um costume os estrangeiros ajudarem outros estrangeiros na estrada. Eles se dirigiam ao aeroporto de Abadan onde ouviram dizer que havia um avião esperando para levá-los de volta à Coréia.
— Há muita luta em Kermanshah — disseram, num inglês hesitante.
— Todo mundo tem arma. Iranianos matam uns aos outros. Todos malucos, bárbaros, piores que japoneses. — Os coreanos o deixaram perto do terminal de ônibus de Ahwaz. Milagrosamente, conseguira arranjar um lugar no próximo ônibus que passava por Bandar Delam.
— Sim. Mas e agora? Sombriamente, recordou como, depois de ter jogado as latas vazias de caviar no lixo, pensara melhor e voltara para recolhê-las e enterrá-las, limpando o copo que usara e até a maçaneta da porta. Você tem que mandar examinar a cabeça, como se eles fossem verificar impressões digitais! Sim, mas na hora eu achei melhor não deixar nenhum traço de que estivera lá.
Você está doido! Seu nome está na licença de vôo de Teerã, há o transporte não-autorizado de Valik e sua família, a fuga de Isfahan, o fato de 'ter transportado inimigos do Estado, ajudando-os a escapar' para explicar — seja à Savak ou a Khomeini! E como é que a S-G ou McIver vão justificar a falta de um helicóptero iraniano que vai aparecer no Kuwait ou em Bagdá ou seja lá onde for?
Que maldita confusão! Sim. E há Xarazade...
— Não se preocupe, aga — seu pensamento foi interrompido —, estamos todos nas mãos de Deus.
Era o mulá e estava sorrindo para ele. Era um homem jovem, barbado, que entrara no ônibus em Ahwaz com a mulher e três filhos. Trazia um rifle pendurado no ombro.
— O motorista me disse que você fala farsi, que vem do Canadá e é um seguidor do Livro?
— Sim, sim, eu sou, aga — respondeu Lochart, reunindo toda a sua força de vontade. Viu que a oração terminara e que agora todo mundo se amontoava na porta do ônibus.
— Então você irá para o céu, como o Profeta prometeu, se for julgado merecedor, embora não para a nossa parte do céu. — O mulá sorriu timidamente. — O Irã será o primeiro Estado islâmico verdadeiro do mundo, desde o tempo do Profeta. — Mais uma vez o sorriso tímido. — Você é... você é o primeiro estrangeiro seguidor do Livro que eu conheço. Você aprendeu a falar farsi no colégio?
— Fui para um colégio, Excelência, mas a maior parte do tempo eu tive professores particulares. — Lochart apanhou sua valise de piloto, que trazia com ele por precaução, e foi para a fila. Seu lugar já estava ocupado. Na margem da estrada, vários passageiros aliviavam a bexiga ou eva cuavam, homens, mulheres e crianças.
— E Vossa Excelência trabalha com petróleo? — O mulá foi para a fila junto com ele, e imediatamente as pessoas saíram do caminho para dar-lhe passagem. Dentro do ônibus, os passageiros já estavam discutindo, e alguns gritavam com o motorista para que se apressasse.
— Sim, para a grande IranOil — disse Lochart, bem consciente de que os que estavam por perto também escutavam, tentado chegar mais perto para ouvir melhor. Não falta muito agora, pensou, o aeroporto não pode estará mais de alguns quilômetros à frente. Pouco antes do meio-dia avistara um 212 se preparando para descer, vindo da direção do golfo. O aparelho estava muito distante para que pudesse ver se era civil ou militar, mas ia na direção do aeroporto. Vai ser formidável encontrar Rudi e os outros, dormir e...
— O motorista disse que o senhor estava de férias perto de Kermanshah?
— Em Luristan, ao sul de Kermanshah. — Lochart se concentrou. Tornou a contar a história que tinha preparado, a mesma que contara ao vendedor de passagens em Ahwaz, e aos Faixas Verdes que também quiseram saber quem ele era e por que estava em Ahwaz. — Eu estava viajando de carona pelo norte de Luristan, nas montanhas, e fiquei preso numa aldeia por causa de uma nevasca, por uma semana. O senhor está indo para Shiraz? — Essa era a destinação final do ônibus.
— É em Shiraz que fica a minha mesquita e foi lá que eu nasci. Venha. Vamos nos sentar juntos. — O mulá pegou o lugar mais próximo, ao lado de um velho, pôs um dos seus filhos no colo, junto com a arma, e deixou espaço para Lochart do lado do corredor. Relutante, Lochat obedeceu, sem muita vontade de se sentar ao lado de um mulá falante e inquisidor, mas ao mesmo tempo grato por conseguir um lugar. O ônibus estava enchendo rapidamente. As pessoas passavam por ele tentando arranjar lugar ou ir mais para trás.
— O seu país, o Canadá, faz fronteira com o Grande Satã, não?
— O Canadá e a América têm fronteiras comuns — disse Lochart, com a bile subindo à boca. — A grande maioria dos americanos são Gente do Livro.
— Ah, sim, mas muitos são judeus e sionistas, e judeus e sionistas e cristãos são contra o Islã, são inimigos do Islã, e portanto inimigos de Deus. Não é verdade que os judeus e os sionistas governam o Grande Satã?
— Se o senhor está se referindo à América, aga, não é verdade.
— Mas se o imã diz que é, então é. — O mulá foi bastante gentil e confiante e citou o Corão: — Pois Deus está zangado com eles, e eles viverão atormentados para sempre. — E depois acrescentou: — Se o imã...
Houve um tumulto no fundo do ônibus e eles se viraram e viram um dos iranianos puxar raivosamente o indiano de turbante para fora do seu assento para tomar o lugar dele. O indiano deu um sorriso forçado e ficou em pé. De acordo com o costume, era sempre o primeiro a se sentar que tinha o direito de ficar sentado sem ser molestado. A torrente de vozes recomeçou e agora um outro homem, apertado no corredor, começou a xingar todos os estrangeiros em voz alta. Estava malvestido, armado, e ao lado de dois japoneses que estavam apertados num banco junto com um velho curdo maltrapilho, olhando para eles.
— Por que estrangeiros infiéis podem ficar sentados enquanto eu estou em pé? Com a ajuda de Deus, não somos mais lacaios de infiéis! — disse o homem, com mais raiva ainda e fez um sinal para eles, dizendo: — Fora!
Nenhum dos dois japoneses se mexeu. Um deles tirou os óculos e sorriu para o homem. O homem hesitou, começou a avançar mas pensou melhor e então virou-se e gritou para o motorista andar depressa. Pouco antes do japonês tornar a pôr os óculos, seu olhar cruzou com o de Lochart, e ele o cumprimentou com a cabeça e sorriu.
Lochart devolveu o sorriso. Em Ahwaz, enquanto estavam todos se dirigindo para o ônibus, um dos japoneses dirigira-se a Lochart num inglês razoável:
— Siga-nos, senhor, na hora do rush, os ônibus e trens de Tóquio são muito piores. — Demonstrando extrema gentileza, os dois abriram espaço rapidamente, encontraram um lugar para ele e foram sentar-se no fundo do ônibus. Durante a parada de meio-dia, tinham conversado rapidamente, eles disseram que eram engenheiros voltando de uma licença e que estavam indo para a Irã-Toda.
— Ah — disse alegremente o mulá, vendo o motorista voltar para o seu lugar —, agora nós vamos continuar, graças a Deus.
Com um grande floreio, o motorista ligou o motor e o ônibus saiu se arrastando.
— Próxima parada: Bandar Delam — gritou. — Se Deus quiser.
— Se Deus quiser. — O mulá estava muito satisfeito. Mais uma vez voltou a atenção para Lochart e gritou por sobre o barulho: — Aga, o que o senhor estava dizendo a respeito do Grande Satã?
Lochart estava com os olhos fechados e fingiu que não tinha ouvido.
— O que o senhor estava dizendo, aga, sobre o Grande Satã? — repetiu o mulá, tocando nele.
— Eu não estava dizendo nada, aga.
— O quê? Eu não ouvi.
Lochart manteve um ar gentil, sabendo do perigo que corria, e disse mais alto:
— Eu não estava dizendo nada, aga. Viajar é cansativo, não? — Tornou a fechar os olhos. — Acho que vou dormir um pouco.
— Por que não diz nada? — Um rapaz que estava em pé no corredor gritou para ele acima do barulho do motor. — A América é responsável por todos os nossos problemas. Se não fosse pela América, haveria paz no mundo inteiro!
Obstinadamente, Lochart manteve os olhos fechados e tentou fechar os ouvidos, sabendo que estava quase explodindo. Uma parte dele desejando estar com a automática no bolso, a outra parte satisfeita por ela estar na mala. Ele sentiu o mulá sacudindo-o.
— Antes de dormir, aga, o senhor não concorda que o mundo seria muito melhor sem a maldade dos americanos?
Lochart lutou para controlar a raiva e conservou os olhos fechados. Outra sacudidela, bem mais rude, desta vez vinda do corredor, e o homem gritou no seu ouvido:
— Responda à Sua Excelência!
De repente, ficou cheio de toda a propaganda antiamericana e de todas as mentiras que eram impostas continuamente a eles. Branco de raiva, abriu os olhos, empurrou a mão do homem e explodiu em inglês:
— Bem, eu vou lhe dizer, mulá, é melhor você agradecer a Deus pelo fato da América existir, porque sem ela não haveria nada no mundo e nós todos estaríamos num maldito gulag ou debaixo da maldita terra, você, eu, esse idiota e até Khomeini!
— O quê?
Viu o mulá olhando espantado para ele — e percebeu que tinha falado em inglês. Pondo um freio na língua, disse em farsi, sabendo que não havia nenhuma maneira de explicar logicamente:
— Eu estava citando a Sagrada Bíblia em inglês — disse, inventando uma mentira. — Estava citando Abraão quando este estava muito zangado. Abraão disse: "A maldade entra na terra sob muitas formas... é dever do fiel proteger-se contra a maldade, qualquer maldade... toda a maldade". Não é?
O mulá o olhou estranhamente e citou o Corão:
— "E Deus disse a Abraão, Eu farei de você um líder da humanidade, e Abraão disse, e também dos meus descendentes! Deus disse: As minhas promessas não incluem os ímpios."
— Concordo — disse Lochart. — E agora preciso meditar sobre Deus, o único Deus, o Deus de Abraão e Moisés e Jesus e Maomé, cujo Nome seja louvado! — Lochart fechou os olhos. Seu coração disparara. A qualquer momento, esperava que o rapaz batesse com a coronha do rifle na sua cara ou que o mulá mandasse parar o ônibus. Não esperava nenhuma piedade. Mas o momento passou e eles o deixaram entregue às suas supostas orações.
O mulá suspirou, apertado contra o infiel pela falta de espaço. Eu me pergunto como um infiel pode rezar, estava pensando. O que será que ele diz para Deus — mesmo sendo uma pessoa do Livro? Como eles são dignos de pena!
NO AEROPORTO DE BANDAR DELAM: 12:32H. O carro da Força Aérea iraniana passou pelos guardas sonolentos do portão, com a bandeira verde de Khomeini esvoaçando, e parou numa nuvem de poeira ao lado do trailer que servia de escritório para Rudi. Dois oficiais elegantemente uniformizados saltaram. Junto com eles, havia três Faixas Verdes.
Rudi Lutz saiu para se encontrar com os oficiais — um major e um capitão. Quando viu o capitão, o seu rosto se iluminou.
— Alô, Hushang. Eu estava imaginando como você estaria... O oficial mais velho interrompeu-o com raiva.
— Eu sou o major Qazani. Serviço Secreto da Força Aérea. O que pretendia um helicóptero iraniano sob o seu controle ao tentar sair do espaço aéreo iraniano, desobedecendo várias vezes as instruções de um interceptador e ignorando totalmente as ordens de terra?
Rudi olhou-o sem compreender.
— Só há um helicóptero meu no ar, e ele está atendendo a uma emergência pedida pelo controle de radar de Abadan.
— Qual é o seu registro?
— EP-HXX. Do que se trata, afinal?
— É isso que eu quero saber. — O major Qazani passou por ele, entrou no trailer e se sentou. Os seus Faixas Verdes ficaram esperando. — Venha! — disse o major, irritado. — Sente-se, capitão Lutz.
Rudi hesitou, depois sentou-se na sua mesa. Alguns buracos de bala na parede deixavam entrar luz atrás deles. Os Faixas Verdes e o outro oficial entraram e fecharam a porta.
— O HXX é um 206 ou um 212? — perguntou o major.
— É um 212. O que...
— Quantos 212 o senhor tem aqui?
— Dois. HXX e HGC. O radar de Abadan deu permissão para o HXX sair para atender a uma emergência em Kowiss ontem, com feridos por causa de um ataque dos fedayins na madrugada de ont...
— Sim, nós soubemos disso. E soubemos que vocês ajudaram os guardas a mandá-los para o inferno que eles merecem, e agradeço muito por isso, O EP-HBC é um 212 registrado pela S-G?
Rudi hesitou.
— Eu não sei dizer assim de pronto, major. Não tenho os registros aqui de todos os nossos 212, mas poderia descobrir, se conseguisse me comunicar com a nossa base em Kowiss. O rádio não está funcionando desde ontem. Agora, por favor, vou ajudar, se puder, mas do que se trata?
O major Qazani acendeu um cigarro, ofereceu um a Rudi, que sacudiu a cabeça.
— Trata-se de um 212, EP-HBC, acreditamos que seja um 212 operado pela S-G, com um número desconhecido de pessoas a bordo, que atravessou a fronteira do Iraque pouco antes do pôr-do-sol na noite passada, sem nenhuma autorização, ignorando, como já disse, ignorando ordens explícitas do radar para pousar.
— Eu não sei nada sobre isso. — A mente de Rudi estava trabalhando depressa. Tinha que ser alguém fugindo, pensou. — Esse pássaro não é nosso. Nós não podemos nem ligar os motores sem licença do controle de Abadan. É o procedimento obrigatório.
— Como você explicaria então o HBC?
— Pode ser um aparelho da Guerney levando embora uma parte do seu pessoal, ou da Bell, ou de qualquer uma das outras companhias de helicópteros. Tem sido difícil, às vezes impossível, registrar um plano de vôo ultimamente. O senhor sabe o quanto, ahn, o quanto o radar tem estado instável nas últimas semanas.
— Instável não é uma boa palavra — disse o capitão Hushang Ab-basi. Ele era um homem esbelto, muito bonito, com um bigode bem aparado e óculos escuros, e usava insígnias no seu uniforme. Durante todo o ano anterior tinha servido em Kharg, onde ele e Rudi vieram a se conhecer. — E se fosse um aparelho da S-G?
— Então haverá uma explicação plausível. — Rudi estava satisfeito por Hushang ter resistido à revolução, especialmente por ele ter sempre criticado francamente o fato dos mulás se meterem no governo. — O senhor tem certeza que era ilegal?
— Eu tenho certeza que aviões legais possuem autorização, que aviões legais obedecem aos regulamentos aéreos e que aviões legais não empreendem manobras de fuga e correm para a fronteira — disse Hushang.
— E estou quase certo de que vi um emblema da S-G na minha primeira passagem, Rudi.
Os olhos de Rudi se estreitaram. Hushang era um piloto muito bom.
— Era você que estava pilotando o interceptador?
— Eu conduzi a operação de defesa. Fez-se silêncio no trailer.
— O senhor se importa que eu abra uma janela, major? A fumaça — ela me dá dor de cabeça.
— Se o HBC for um helicóptero da S-G, alguém vai ter mais do que uma dor de cabeça — respondeu irritado o major.
Rudi abriu a janela. HBC parece o registro de um dos nossos helicópteros. O que será que está havendo? Parece que estamos sob algum feitiço nos últimos dias: primeiro foi aquele psicopata do Zataki e o assassinato do nosso mecânico, depois o pobre do Kyabi, depois o ataque dos malditos esquerdistas fedayins na madrugada de ontem, quase nos matando e ferindo Jon Tyrer. Cristo, espero que Jon esteja bem! E agora mais encrenca.
Tornou a se sentar, sentindo-se muito cansado.
— O melhor a fazer é perguntar.
— Até onde vocês operam para o norte? — perguntou o major.
— Normalmente? Até Ahwaz. Dezful seria o nosso ponto extre... O telefone interno da base tocou. Ele atendeu e não viu o olhar trocado entre os dois oficiais. — Alô?
Era Fowler Joines, seu mêcanico-chefe.
— Você está bem?
— Sim. Obrigado. Nenhum problema.
— Grite se precisar de ajuda, meu velho, e nós todos iremos correndo.
— O telefone foi desligado.
Ele virou-se para o major, sentindo-se melhor. Desde que enfrentara Zataki, todos os seus homens e pilotos vinham-no tratando como se ele fosse o próprio lorde Gavallan. E desde ontem, quando os fedayins foram derrotados, até mesmo o komiteh de Faixas Verdes vinha se mostrando respeitoso — todos menos o gerente da base, Yemeni, que ainda estava tentando ser durão.
— Dezful é o nosso limite, de mão única. Uma vez nós levamos... — Ele parou. Ia dizer: Uma vez nós levamos o nosso gerente de área para Kermanshah. Mas aí a lembrança do modo brutal e sem sentido pelo qual Kyabi fora assassinado o assaltou e ele tornou a sentir-se mal.
Viu o major e Hashang olhando-o fixamente.
— Sinto muito, eu ia dizer, major, que uma vez nós levamos um grupo até Kermanshah. Podendo reabastecer, como o senhor sabe, nós somos versáteis.
— Sim, capitão Lutz, sim, nós sabemos. — O major apagou o cigarro e acendeu outro. — O primeiro-ministro Bazargan, é claro que com a aprovação do aiatolá Khomeini — acrescentou cautelosamente, sem confiar em Abbasi nem nos Faixas Verdes que talvez pudessem, secretamente, falar inglês —, deu ordens estritas acerca de todos as aeronaves existentes no Irã, especialmente helicópteros. Vamos chamar Kowiss agora.
Foram para a sala de rádio. Imediatamente, Yemeni protestou dizendo que não podia aprovar a chamada, sem permissão do komiteh local, do qual ele tinha nomeado a si mesmo como membro, uma vez que era o único que sabia ler e escrever. Um dos Faixas Verdes foi chamá-los, mas o major ignorou Yemeni e fez o que queria. Kowiss não atendeu ao chamado.
— Seja como Deus quiser. Vai melhorar depois que escurecer, aga — disse o operador de rádio, Jahan, em farsi.
— Sim, obrigado — respondeu o major.
— O que é que o senhor está precisando, aga? — Yemeni disse grosseiramente, odiando a intrusão, com os uniformes do xá fazendo-o ficar frenético. — Eu apanho para o senhor.
— Não preciso de você para nada, filho de um cão — gritou o major, furioso, todo mundo pulou e Yemeni ficou paralisado. — Se você me criar problemas, eu vou arrastá-lo diante do nosso tribunal por interferir com o trabalho do primeiro-ministro e do próprio Khomeini! Saia!
Yemeni saiu voando. Os Faixas Verdes riram e um deles disse:
— Quer que eu arrebente a cabeça dele para o senhor, aga?
— Não, não, obrigado. Ele não é mais importante do que uma mosca comendo bosta de camelo. — O major Qazani deu uma baforada no cigarro, envolvendo-se na fumaça e olhou Pensativamente para Rudi. As notícias de como este alemão salvara Zataki, o comandante revolucionário mais importante daquela região, tinham alcançado a base aérea.
Ele se levantou e foi até a janela. Lá fora, podia ver seu carro e a bandeira verde de Khomeini e os Faixas Verdes vagando por ali. Escória, pensou. Filhos da mãe, todos eles. Nós não nos livramos do controle e da influência dos americanos nem ajudamos a expulsar o xá para passar o controle das nossas vidas e dos nossos lindos aviões para uns mulás piolhentos, por mais corajosos que alguns possam ser.
— Espere aqui, Hushang. Vou deixar dois guardas com você — disse. — Espere aqui e faça a chamada junto com ele. Depois eu mando o carro de volta para apanhá-lo.
— Sim senhor.
O major olhou para Rudi, com um olhar severo. Em inglês, ele disse:
— Eu quero saber se o HBC é um helicóptero da S-G, onde está sediado, como veio parar nesta área e quem estava a bordo. — Deu as ordens necessárias e partiu numa nuvem de poeira.
Hushang mandou os guardas dizerem aos outros o que estava acontecendo. Agora os dois estavam sozinhos.
— Então — disse, e sorriu estendendo a mão. — Estou feliz em vê-lo, Rudi.
— Eu também. — Eles trocaram um caloroso aperto de mão. — Eu estava imaginando como você, ahn, como você estava passando.
— Você quer dizer se eu tinha sido liquidado? — E Hushang riu. — Oh, não acredite nessas histórias todas, Rudi. Não. Está tudo ótimo. Quanto eu deixei Kharg, passei algum tempo em Doshan Tappeh, depois vim para a base aérea de Abadan.
— E depois?
— E depois? — Hushang pensou por um momento. — E então, quando Sua... quando o xá deixou o Irã, o comandante da base nos reuniu, a todos, e disse que considerava cancelado o nosso voto de obediência. Todos nós, das Forças Armadas, juramos obediência ao xá pessoalmente, mas quando ele partiu, foi como se nossos votos tivessem sido renegados. O nosso comandante pediu-nos para escolher o que queríamos fazer, oficiais e soldados, ficar ou partir, mas nos disse: "Nesta base, a transferência de poder para o novo governo legal será feita com disciplina:" Ele nos deu 12 horas para decidir. — Hushang franziu as sobrancelhas. — Uns poucos partiram, na maioria oficiais mais graduados. O que você teria feito, Rudi?
— Teria ficado. É claro. Heimat ist immer Heimat.
— O quê?
— A sua pátria é sempre a sua pátria.
— Ah, sim. Sim, foi isso que eu pensei. — Uma sombra passou por Hushang. — Depois que todos tínhamos escolhido, nosso comandante chamou o aiatolá Ahwazi, o nosso aiatolá-chefe, e realizou formalmente a transferência de poder. Depois matou-se. Ele deixou um bilhete dizendo: "Durante toda a minha vida eu servi a Muhammad Reza Xá assim como meu pai serviu ao Reza Xá, seu pai. Eu não posso servir a mulás ou a políticos, nem viver com este fedor de traição que invade esta terra".
— Ele estava se referindo aos americanos? — perguntou Rudi, hesitante.
— O major acha que ele estava se referindo aos generais. Alguns de nós achamos que ele se referia... à traição do Islã.
— Por parte de Khomeini? — Rudi viu Hushang olhando para ele, com seus olhos castanhos sinceros, seu rosto bem talhado, e por um segundo Rudi teve a sensação desconfortável de que aquele não era mais o seu amigo, mas alguém que tinha o mesmo rosto. Alguém que podia estar pronto para armar-lhe uma armadilha. Que espécie de armadilha?
— Seria traição pensar assim. Não seria? — disse Hushang. Foi uma afirmação, não uma pergunta, e Rudi se pôs mais em guarda ainda. — Eu estou com medo pelo Irã, Rudi. Estamos muito expostos, somos muito valiosos para qualquer uma das superpotências, e somos muito odiados e invejados por tantos aqui em volta.
— Ah, mas suas forças militares são as mais numerosas e bem equipadas daqui. Vocês são a maior potência do golfo. — Ele foi até a pequena geladeira. — Que tal racharmos uma garrafa de cerveja bem gelada?
— Não, obrigado.
Normalmente, ele teria aceito com satisfação.
— Você está de dieta? — Rudi perguntou.
O outro sacudiu a cabeça e deu um sorriso estranho.
— Não. Eu parei. É o meu presente ao novo regime.
— Então vamos tomar chá, como nos velhos tempos — disse Rudi, sem hesitação e foi até a cozinha pôr a chaleira no fogo. Mas estava pensando: Hushang realmente mudou. Mas se você fosse ele teria mudado também, o mundo dele está de pernas para o ar, como a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental, mas não tão ruim assim. — Como vai o Ali? — perguntou. Ali era o adorado irmão mais velho de Hushang, um piloto de helicóptero que Rudi não conhecia, mas de quem Hushang estava sempre
falando, rindo de suas lendárias aventuras e conquistas em Teerã, Paris e Roma nos velhos tempos. Os bons e velhos tempos, pensou enfaticamente.
— Ali, o Grande, também vai muito bem — disse Hushang, com um sorriso radiante. Pouco antes do xá partir, eles tinham discutido as suas opções secretamente e tinham resolvido que, acontecesse o que acontecese, eles ficariam: "Nós ainda somos a força de elite, nós ainda passamos as nossas licenças na Europa!" Hushang sorriu, tão orgulhoso dele, sem nenhuma inveja do seu sucesso, mas desejando que tivesse um décimo daquele sucesso. — Mas ele vai ter que ir mais devagar agora. Pelo menos no Irã.
A chaleira começou a apitar. Rudi preparou o chá.
— Você se importa que eu pergunte a respeito do HBC? — Ele olhou para a outra sala. Seu amigo o observava. — Tudo bem?
— O que você quer saber?
— O que foi que aconteceu? Depois de uma pausa, Hushang disse:
— Eu era o líder da esquadrilha. Fomos colocados em alerta e recebemos ordens de interceptar um helicóptero que fora localizado esgueirando-se pela área. Era um aparelho civil que estava voando baixo pelos vales perto de Dezful. Ele não respondeu às chamadas de rádio, nem em farsi nem em inglês. Nós esperamos, seguindo o seu rastro. Assim que ele se expôs, eu fiz um vôo rasante em cima dele, foi quando pensei ter reconhecido o emblema da S-G. Mas ele me ignorou completamente, simplesmente virou em direção à fronteira e saiu a toda velocidade. O meu segundo-piloto fez sinal para ele, mas ele fez outra manobra de fuga.
Os olhos de Hushang se estreitaram quando ele recordou a excitação que havia tomado conta dele, caçador e caça, ele que nunca tinha caçado antes, com os ouvidos cheios do grito doce dos seus jatos, de estática e de ordens: "Preparem os mísseis!" Com as mãos e os dedos obedecendo.
Apertando o gatilho, o foguete errando da primeira vez enquanto o helicóptero fazia uma pirueta, atirando-se para um lado e para o outro, ligeiro como uma libélula, com o seu segundo-piloto também atirando e errando por um triz — os mísseis não eram atraídos pelo calor. Tornando a errar. Agora ele já estava sobre a fronteira. Sobre a fronteira e a salvo, mas não a salvo de mim, da justiça, então continuando com o ataque, a impressão de rostos nas janelas, vendo-o dissolver-se numa bola de fogo e quando eu saí do mergulho violento para tornar a olhar ele tinha desaparecido. Só restava uma nuvem de fumaça. E o prazer.
— Eu o destruí — disse. — Eu o fiz explodir no céu.
Rudi virou o rosto para disfarçar o choque. Presumira que o HBC tivesse escapado — seja quem for que estivesse pilotando.
— Não houve nenhum... nenhum sobrevivente?
— Não, Rudi. Ele explodiu — disse Hushang, tentando manter a voz calma. E profissional. — Foi... Foi a primeira vez que eu matei... eu nunca pensei que seria tão difícil.
Não foi um grande combate, pensou Rudi, zangado e desgostoso. Mísseis e canhões contra nada, mas suponho que ordens são ordens e o HBC estava errado, seja quem for que estivesse pilotando, seja quem for que estivesse a bordo. Ele devia ter parado — eu teria parado. Teria mesmo? Se eu fosse o piloto do avião de combate e aqui fosse a Alemanha e o helicóptero estivesse fugindo em direção a uma fronteira controlada pelo inimigo, sabe Deus com quem a bordo, e eu recebesse ordens de... Espere um minuto, será que Hushang fez isto no espaço aéreo iraquiano? Bem, eu não vou perguntar. Tão certo quanto Deus não fala com Khomeini, Hushang não me diria se o tivesse feito. Eu não diria.
Melancolicamente, encheu o bule com a água da chaleira e lembrou-se da outra da sua infância, depois olhou pela janela. Um velho ônibus estava parando na estrada, do lado de fora do perímetro do aeroporto. Ele viu o homem alto saltar. Por um momento, não o reconheceu. Então, com um sobressalto de alegria, reconheceu-o e disse apressadamente.
— Dê-me licença um momento..
Eles se encontraram no portão, com os Faixas Verdes observando-os curiosamente.
— Tom, Wiegeht'sl Como vai? Que diabo você está fazendo aqui? Por que você não nos avisou que estava vindo? Como vai Zagros, e Jean-Luc? — Estava tão feliz que não notou o cansaço de Lochart e nem o estado das suas roupas: sujas, rasgadas e manchadas da viagem.
— Há um bocado que contar, Rudi — disse Lochart. — Um bocado que contar, mas estou exausto. Preciso de um pouco de chá e de um pouco de sono. Está bem?
— É claro. — Rudi sorriu para ele. — É claro. Venha, vou abrir a minha última garrafa secreta de uísque, que eu finjo até para mim mesmo que não existe e então nós... — De repente, ele notou o estado em que o amigo se encontrava e seu sorriso desapareceu. — Que diabo aconteceu com você? Você parece que foi arrastado de costas por um matagal. — Ele viu Lochart olhar imperceptivelmente para os guardas que estavam ali perto escutando.
— Nada, Rudi, nada. Primeiro um banho, hein?
— Claro, sim, é claro. Você, ahn, pode usar o meu trailer. — Muito perturbado, ele caminhou ao lado de Lochart, em direção ao aeroporto. Nunca o tinha visto tão envelhecido e tão vagaroso. Ele parece muito abalado, quase., quase como se tivesse sofrido um acidente grave...
Lá no hangar, viu Yemeni espiando para eles de uma das janelas do escritório. Fowler Joines e o outro mecânico tinham parado de trabalhar e estavam começando a dar uma volta. Então, do outro lado do acampamento, viu Hushang chegar na escada do seu trailer e a cabeça de Rudi pareceu explodir
— Oh, Cristo — exclamou. — Não o HBC?
Lochart parou bruscamente, sem um pingo de cor no rosto
— Como é que você sabe a respeito dele?
— Mas ele disse que o HBC tinha sido destruído, que tinha explodido no ar! Como você conseguiu escapar? Como?
— Destruído? — Lochart estava em choque. — Jesus, quem... quem disse isso?
Os reflexos ajudaram Rudi, e sem dar muito na vista, ele virou as costas para Hushang.
— O oficial iraniano que está na porta. Não olhe, pelo amor de Deus. Ele pilotou o aparelho interceptador, um F14. Ele explodiu o helicóptero! — Colocou um sorriso forçado nos lábios, agarrou Lochart pelo braço, e mais uma
vez tentando não dar na vista, conduziu-o para o trailer mais próximo. — Você pode ficar no quarto de Jon Tyrer — disse com uma jovialidade forçada, e assim que fechou a porta atrás deles, cochichou depressa: — Hushang disse que abateu o HBC perto da fronteira do Iraque ontem, ao pôr-do-sol. Destruiu-o completamente. Como você escapou? Quem estava a bordo? Rápido, conte-me o que aconteceu. Rápido!
— Eu... eu não pilotei na última parte da viagem, eu não estava lá — disse Lochart, tentando fazer a cabeça trabalhar e também mantendo a voz baixa, pois as paredes do trailer eram muito finas. — Eles me deixaram em Dez Dam. Eu caminhei...
— Dez Dam? Que diabo você estava fazendo lá? Quem deixou você? Lochart hesitou. Tudo estava acontecendo muito depressa.
— Eu não sei se deveria... se deveria contar por...
— Pelo amor de Deus, eles estão atrás do HBC, nós temos que fazer alguma coisa depressa. Quem estava pilotando, quem estava a bordo?
— Eram todos iranianos fugindo do Irã. Todos da Força Aérea de Isfahan: general Seladi, oito coronéis e majores de Isfahan, eu não sei o nome deles, e o general Valik, sua mulher e... — Lochart mal conseguiu dizer — e seus dois filhos.
Rudi ficou horrizado. Ele tinha ouvido falar em Annoush e nas duas crianças e tinha encontrado Valik várias vezes.
— Isso é terrível, terrível. Que diabo eu vou dizer?
— O quê? A respeito de quê? As palavras jorraram:
— O major Qazani e Hushang, eles chegaram há menos de meia hora atrás. O major acabou de sair, mas mandou que eu descobrisse se o HBC é da S-G, onde estava sediado e quem estava a bordo. Eu recebi ordens de ligar para Kowiss para saber e Hushang vai estar escutando e ele não é nenhum idiota, nenhum idiota, ele tinha certeza de ter visto o emblema da S-G antes de explodir o aparelho. Kowiss vai ter que dizer que o pássaro era nosso e eles vão chamar Teerã e fim.
Lochart sentou-se numa das camas. Apatetado.
— Eu os avisei. Eu os avisei para esperar até a noite! Que diabo eu posso fazer?
— Saia correndo. Talvez vo... — Houve uma batida na porta e eles ficaram paralisados.
— Skipper, sou eu, Fowler. Trouxe-lhe um pouco de chá, achei que Tom podia estar precisando.
— Obrigado, só um instante, Fowler — disse, e então baixou a voz. — Tom, qual é a sua história? Você tem alguma?
— A melhor que eu pude inventar é que eu estava voltando de umas férias, pegando carona, em Luristan, ao sul de Kermanshah. Fiquei preso numa aldeia por causa de uma nevasca, durante aproximadamente uma semana e no fim consegui uma carona para sair.
— Serve. Onde é a sua base?
— Em Zagros.
— Bom. Alguém já pediu para ver a sua identidade?
— Sim. O vendedor de passagens em Ahwaz e alguns Faixas Verdes.
— Scheissel — Rudi abriu a porta. Fowler Joines entrou com a bandeja de chá.
— Como vai, Tom? — disse com o seu sorriso desdentado.
— É bom ver você, Fowler. Praguejando muito?
— Não tanto quanto Effer Jordon. Como vai o meu velho companheiro? O cansaço tomou conta de Lochart e ele se recostou na parede. Zagros e Effer Jordon, Rodrigues, Jean-Luc, Scot Gavallan e os outros pareciam estar muito distantes.
— Ainda está usando o seu chapéu — disse com grande esforço, aceitou o chá, agradecido, e engoliu-o. Quente, forte, com leite condensado, o maior estimulante do mundo. O que foi que Rudi disse? Sair correndo? Eu não posso, pensou enquanto o sono tomava conta dele. Não sem Xarazade...
Rudi terminou de contar a Fowler a história inventada por Lochart.
— Espalhe por aí.
— Férias pedindo carona? — O mecânico pestanejou. — Tom Lochart? Sozinho? Com você sabe quem em Teerã? Você ficou maluco, meu velho?
Rudi olhou para ele.
— Como quiser, meu velho. — Fowler virou-se para falar com Lochart, mas este já estava dormindo, com o rosto marcado de cansaço. — Puxa! Ele... — Seus astutos olhos azuis, enfiados na sua cara torta, tornaram a olhar para Rudi. — Eu vou espalhar esta história como se fosse o maldito Gênesis. — E saiu.
Pouco antes da porta fechar-se, Rudi viu Hushang esperando ao lado do trailer e arrependeu-se de tê-lo deixado tanto tempo sozinho. Olhou para Lochart. Pobre Tom. Que diabo ele estaria fazendo em Isfahan? Deus do céu, que confusão! Que diabo eu vou fazer agora? Cuidadosamente, tirou a xícara da mão de Tom, mas o canadense acordou assustado.
— Por um momento, Lochart não soube se estava acordando ou sonhando. Seu coração disparara, sentia uma dor de cabeça terrível e estava de volta à represa na beira da água, com Rudi em pé contra a luz, exatamente como Ali, e Lochart sem saber se pulava em cima dele ou se se arriscava a mergulhar, com vontade de gritar: Não atire, não atire...
— Cristo, eu pensei que você fosse Ali — disse. — Sinto muito, estou bem agora. Não foi nada.
— Ali?
— O piloto, o piloto do HBC, Ali Abbasi, ele ia me matar. — Meio adormecido, Lochart contou-lhe o que tinha acontecido. Então notou que Rudi tinha ficado pálido. — O que foi?
Rudi fez um sinal para fora.
— Aquele é o irmão dele: Hushang Abbasi. Foi ele que derrubou o HBC...
29
TEERÃ: 16:17H. Os dois homens olhavam ansiosamente para o aparelho de telex no escritório de cobertura da S-G.
— Vamos, pelo amor Deus! — murmurou McIver e tornou a olhar para o relógio. O 125 estava marcado para as cinco e meia. — Nós vamos ter que sair daqui a pouco, Andy, nunca se sabe como estará o tráfego.
Gavallan estava se balançando distraidamente numa velha cadeira que rangia.
— Sim, mas Genny ainda não chegou. Assim que ela chegar nós saiinos. Se acontecer o pior, eu posso ligar para Aberdeen de Al Shargaz.
— Se Johnny Hogg conseguir passar pelo espaço aéreo de Kish e Isfahan, e se a autorização valer em Teerã.
— Desta vez ele vai pousar, estou com o pressentimento de que o nosso mulá Tehrani quer os óculos novos. Só espero que Johnny os tenha conseguido.
— Eu também.
Era a primeira vez que o komiteh permitia que um estrangeiro tornasse a entrar no edifício. A maior parte da manhã fora gasta fazendo a limpeza e tornando a ligar o gerador que, evidentemente, estava sem combustível. Na mesma hora, o telex começou a funcionar:
— Urgente! Por favor confirme se o seu telex está funcionando e informe o sr. McIver que eu tenho um telex Avisyard para o patrão. Ele ainda está em Teerã? O telex era de Elizabeth Chen em Aberdeen. 'Avisyard' era um código da companhia, usado raramente, que significava que uma mensagem que só podia ser lida por McIver e que ele mesmo deveria operar o telex. Teve que fazer quatro tentativas para conseguir receber a mensagem de Aberdeen.
— Contanto que não tenhamos perdido nenhum aparelho — disse Gavallan, fazendo uma prece silenciosa.
— Eu estava pensando a mesma coisa. — McIver relaxou os ombros. — Tem alguma idéia do que poderia merecer um Avisyard?
— Não. — Gavallan escondeu a tristeza, pensando no verdadeiro Avisyard, o Castelo Avisyard, onde tinha passado anos tão felizes com Kathy, que foi quem sugeriu o código. Não pense em Kathy agora, disse a si mesmo. Agora não.
— Eu detesto estas maltidas máquinas de telex, elas estão sempre en-guiçando — disse McIver, com o estômago pegando fogo, principalmente por causa da briga que tivera com Genny na noite anterior, insistindo que ela deveria partir hoje no 125, e também porque ainda não recebera nenhuma notícia de Lochart. Além disso, mais uma vez nenhum empregado iraniano se apresentara para trabalhar, só os pilotos, que tinham chegado naquela manhã. McIver mandara todos embora, exceto Pettikin, a quem colocou de sobreaviso. Nogger Lane aparecera lá por volta de meio-dia, para comunicar que seu vôo com o mulá Tehrani, seis Faixas Verdes e cinco mulheres tinha corrido bem.
— Acho que o nosso amigo mulá quer dar outro passeio amanhã. Ele o espera às cinco e meia em ponto no aeroporto.
— Está bem, Nogger, você vai revezar com Charlie.
— Vamos, Mac, meu velho, eu trabalhei a manhã inteira, acima e além do dever, e Paula ainda está na cidade.
— Eu sei disso muito bem, meu velho, e do jeito que as coisas estão, ela vai ficar aqui a semana inteira! Você vai ajudar o Charlie, vai sentar o seu rabo numa cadeira, atualizar os papéis dos nossos aparelhos e se der mais uma palavra eu mando você para a maldita Nigéria!
Eles esperaram, sabendo que os telex tinham que passar pelas linhas telefônicas.
— Há um bocado de fio entre Aberdeen e Teerã — resmungou McIver.
— Assim que Genny chegar, nós partimos — disse Gavallan. — Eu vou me certificar de que ela esteja a salvo em Al Shargaz, antes de ir para casa. Você fez muito bem em insistir.
— Eu sei disso, você sabe, e o Irã inteiro sabe, mas ela não.
— Mulheres — disse Gavallan, diplomaticamente. — Há mais alguma coisa que eu possa fazer?
— Acho que não. Espremer os dois sócios restantes ajudou um bocado.
Gavallan tinha conseguido localizá-los, Muhammad Siamaki e Turiz Bakhtiar — um sobrenome bastante comum no Irã para aqueles que descendiam da rica, poderosa e numerosa tribo dos Bakhtiar, da qual o ex-primeiro-ministro era um dos chefes. Gavallan tinha conseguido tirar cinco milhões de riais em dinheiro deles — um pouco mais de sessenta mil dólares, uma miséria perto do que os sócios estavam devendo. Com promessas de mais algum dinheiro toda semana, em troca da promessa, e de uma nota, escrita a mão, de que eles seriam reembolsados "fora do país, caso fosse necessário, e de que poderiam viajar no 125 caso fosse necessário".
— Está bem, mas onde está Valik? Como posso comunicar-me com ele? — Gavallan tinha perguntado, fingindo não saber nada a respeito da sua fuga.
— Nós já dissemos a você: ele está de férias com a família — respondera Siamaki, rude e arrogante como sempre. — Ele vai entrar em contato com você em Londres ou em Aberdeen. Existe a questão dos nossos fundos nas Bahamas.
— Os nossos fundos comuns, caro sócio, e existe a questão dos quase quatro milhões de dólares que temos para receber por serviços já prestados, além dos pagamentos pelo aluguel dos nossos aparelhos, já bastante atrasados.
— Se os bancos estivessem abertos, você receberia o dinheiro. Não é nossa culpa que os aliados pestilentos do xá o tenham arruinado e arruinado o Irã. A culpa dessas catástrofes não é nossa. Quanto ao dinheiro que estamos devendo, nós não pagamos no passado?
— Sim. Geralmente com um atraso de seis meses, mas eu concordo, caros amigos, que no fim nós sempre conseguíamos arrancar a nossa parte. Mas se todos os negócios feitos em regime de joint venture estão suspensos, como o mulá Tehrani me disse, como vamos operar de agora em diante?
— Alguns negócios, não todos. A sua informação é exagerada e incorreta, Gavallan. Nós fomos avisados para voltar ao normal o mais cedo possível. As tripulações podem partir assim que os seus substitutos estiverem em segurança aqui. Os campos de petróleo devem voltar a operar a todo o vapor. Não haverá nenhum problema. Mas para evitar qualquer problema, mais uma vez nós negociamos a sociedade. Amanhã, o meu ilustre primo, o ministro das finanças Ali Kia, vai entrar para o conselho...
— Espere um minuto! Eu tenho que aprovar de antemão qualquer mudança no conselho.
— Você tinha esse poder, mas o conselho votou pela mudança desta regra. Se você quiser ir contra o conselho, pode levantar esta questão na próxima reunião em Londres. Mas nestas circunstâncias a mudança é necessária e razoável. O ministro Kia assegurou-nos que estaremos isentos. — E claro que os honorários e as porcentagens do ministro Kia sairão da parte de vocês...
Gavallan tentou não olhar para a máquina de telex mas teve muita dificuldade, enquanto tentava imaginar uma maneira de escapar da armadilha.
— Uma hora as coisas parecem estar bem, na outra está tudo ruim de novo.
— Sim. Sim, Andy, eu concordo. Talbot foi o ponto crucial de hoje. Nessa manhã, bem cedo, eles tinham tido um breve encontro com Talbot.
— Oh, sim, meu velho, as joint ventures são definitivamente persona non grata, sinto muito — ele dissera secamente. — Uma 'decisão superior' decretou a suspensão de todas as joint ventures, até novas instruções, embora que instruções e de quem, eles não tenham revelado. Ou quem tomou esta decisão superior. Nós achamos que o decreto olímpico veio do velho e querido komiteh, sejam eles quem forem! Por outro lado, meu velho, o aiatolá e o primeiro-ministro Bazargan disseram que todas as dívidas com estrangeiros serão honradas. É claro que Khomeini passa por cima de Bazargan e dá outras instruções, Bazargan dá instruções que o Komiteh Revolucionário modifica, os komitehs locais consideram a sua própria versão da lei como sendo uma verdade indiscutível, e nem um único garoto sujo entregou a sua arma até agora. As cadeias estão se enchendo lindamente, cabeças estão rolando e, fora a guilhotina, tudo isto me soa tediosamente familiar, meu velho, e sugere que nós todos deveríamos nos retirar para Margate até tudo isso acabar.
— Você está falando sério?
— O nosso conselho para evacuar todo o pessoal que não seja essencial ainda está valendo para assim que o aeroporto abrir, o que Deus sabe quando será, mas que está prometido para sábado. Nós conseguimos que a BA cooperasse com 747 fretados. Quanto ao ilustre Ali Kia, ele é um funcionário de importância secundária, bem secundária mesmo, sem nenhum poder e que joga em todos os times. Aliás, eu acabei de ouvir que o embaixador dos Estados Unidos em Kabul foi seqüestrado por mujhadins fundamentalistas xiitas, anticomunistas, que tentaram trocá-lo por outro mujhadin preso pelo governo pró-soviético. No tiroteio que se seguiu, ele foi morto. As coisas estão esquentando...
O telex deu sinal de vida, atraindo a atenção deles, mas a máquina não funcionou. Todos dois praguejaram.
— Assim que eu chegar em Al Shargaz, posso telefonar para o escritório e descobrir qual é o problema... — Gavallan olhou para a porta que se abria. Para surpresa deles, era Erikki. Ele e Azadeh deveriam encontrá-los no aeroporto. Erikki tinha no rosto o seu sorriso habitual, mas não havia nenhuma alegria nele.
— Olá, patrão; olá, Mac.
— Oi, Erikki. O que foi que houve? — McIver olhou-o atentamente.
— Uma ligeira mudança de planos. Nós, ahn, bem, Azadeh e eu vamos voltar a Tabriz primeiro.
Na noite anterior, Gavallan tinha sugerido que Erikki e Azadeh partissem imediatamente. "Nós encontraremos alguém para substituí-lo. Que tal virem comigo amanhã? Talvez nós consigamos outros documentos para Azadeh em Londres..."
— Por que a mudança, Erikki? — perguntou. — Azadeh se arrependeu de deixar o Irã sem documentos iranianos?
— Não. Há uma hora atrás nós recebemos uma mensagem. Eu recebi uma mensagem do pai dela. Aqui está. Leia você mesmo. — Erikki entregou a mensagem a Gavallan, que leu junto com McIver. O bilhete manuscrito dizia: "De Abdullah Khan para o capitão Yokkonen: Preciso que minha filha venha aqui imediatamente e peço que lhe dê permissão para isso". Estava assinado Abdullah Khan. A mensagem estava repetida em farsi do outro lado.
— Você tem certeza de que é a letra dele? — perguntou Gavallan.
— Azadeh tem certeza, e ela também conhecia o mensageiro. — Erikki acrescentou: — O mensageiro não nos contou mais nada, só que há muita luta por lá.
— Por terra está fora de questão. — McIver virou-se para Gavallan. — Talvez o nosso mulá, Tehrani, dê uma autorização a Erikki? De acordo com Nogger, ele estava um carneirinho depois do seu passeio da manhã. Nós podíamos equipar o 206 de Charlie com tanques de longa-distância, e Erikki podia pilotá-lo, talvez com Nogger ou um dos outros para trazê-lo imediatamente de volta?
— Erikki, você sabe o risco que está correndo? — perguntou Gavallan.
— Sim. — Erikki ainda não havia contado nada a respeito dos assassinatos.
— Você já pensou bem... em tudo? Rakoczy, a barreira da estrada, a própria Azadeh? Nós podíamos mandar Azadeh de volta sozinha e você podia seguir no 125 e nós a mandaríamos no vôo de sábado.
— Vamos, patrão, o senhor nunca faria isso e nem eu. Eu não poderia deixá-la.
— É claro, mas isso tinha que ser dito. Está bem, Erikki, você se encarrega dos tanques, nós vamos tentar conseguir a autorização. Eu sugiro que vocês voltem para Teerã o mais depressa possível e embarquem no 125 no sábado. Todos dois. Seria aconselhável você pedir uma transferência e passar uns tempos em outro lugar: Austrália, Cingapura, talvez, ou Aberdeen, mas lá podia ser frio demais para Azadeh. Você me avisa. — Gavallan estendeu-lhe a mão animadamente. — Feliz Tabriz, hein?
— Obrigado. — Erikki hesitou. — Alguma notícia de Tom Lochart?
— Não, ainda não. Ainda não consegui comunicar-me nem com Kowiss nem com Bandar Delam. Por quê? Xarazade está ficando ansiosa?
— Mais do que isso. O pai dela está na prisão de Evin e...
— Jesus Cristo. — McIver explodiu, e Gavallan ficou igualmente chocado, conhecendo os boatos acerca das prisões e dos pelotões de fuzilamento. — Por quê?
— Para ser interrogado por um komiteh, ninguém sabe por quê, nem por quanto tempo ele vai ficar detido.
— Bem, se for só para interrogatório... o que aconteceu, Erikki? — perguntou Gavallan, apreensivo.
— Xarazade chegou em casa há meia hora atrás banhada em lágrimas. Quando ela foi para a casa dos pais na noite passada, depois do jantar, estava havendo o diabo. Aparentemente, alguns Faixas Verdes foram ao bazar, agarraram Emir Paknouri... o senhor sabe, o ex-marido dela. — Acusaram-no de "crimes contra o Islã" e mandaram que Bakravan comparecesse à prisão logo depois do amanhecer para interrogatório. Por que motivo ninguém sabe. — Erikki tomou fôlego. — Eles foram com ele até a prisão hoje de manhã, ela, a mãe, as irmãs e o irmão. Chegaram lá logo depois do amanhecer e esperaram horas e ainda estariam esperando se não recebessem ordens para dar o fora, por volta das duas horas da tarde, dos Faixas Verdes que estavam de guarda lá. Houve um silêncio de perplexidade.
— Mac, tente falar com Kowiss. Faça-os entrarem em contato com Bandar Delam. Tom deve ser informado a respeito do pai de Xarazade. — Erikki notou o olhar que os dois homens trocaram. — O que está havendo com Tom?
— Ele está num vôo fretado para Bandar Delam.
— Sim, você já me disse isso. Mac me disse isso e Xarazade também. Tom disse a ela que voltaria dentro de poucos dias. — Erikki esperou. Gavallan apenas olhou para ele. — Bem, vocês devem ter boas razões.
— Acho que sim — disse Gavallan. Tanto ele quanto Mac estavam convencidos de que Tom Lochart não teria ido para o Kuwait por sua livre e espontânea vontade, qualquer que fosse o suborno que Valik oferecesse a ele. Ambos estavam com medo de que ele tivesse sido forçado a ir.
— Está bem, o senhor é o patrão. Bem, eu já vou. Sinto muito por trazer más notícias, mas achei melhor vocês saberem. — Erikki forçou um sorriso. — Xarazade não estava bem. Encontro vocês em Al Shargaz.
— Quanto mais cedo melhor, Erikki. McIver disse:
— Se você cruzar com Gen, não fale nada sobre o pai de Xarazade, sim?
— É claro.
Depois de Erikki ter saído, McIver disse:
— Bakravan é um lojista importante demais para ser sumariamente preso.
— Concordo. — Depois de uma pausa, Gavallan disse: — Espero que Erikki não esteja caindo numa armadilha. Aquela tal mensagem cheira muito mal, muito mal...
O barulho do telex fez os dois pularem. Eles leram o telex, linha por linha, à medida que ele foi sendo passado. Gavallan começou a praguejar e continuou praguejando até a máquina parar.
— Que Deus amaldiçoe a Imperial Helicópteros! — Ele arrancou a folha do telex, e Mac mandou de volta o sinal de chamada e 'Alerta Um'. Gavallan tornou a ler a mensagem.
Era novamente de Liz Chen: "Caro Patrão, nós tentamos nos comunicar com você de hora em hora deste que Johnny nos disse que você tinha ficado em Teerã. Sinto trazer más notícias, mas de manhã cedo na segunda-feira, a Imperial Air e a Imperial Helicópteros anunciaram em conjunto 'novos acordos financeiros para revitalizar a sua posição competitiva no mar do Norte'. A IH foi autorizada a cancelar uma dívida de 17,1 milhões de libras esterlinas de dinheiro dos contribuintes e capitalizaram mais 48 milhões do seu débito de 68 milhões emitindo papel para a principal companhia ao invés do débito. Nós acabamos de saber secretamente que 18 dos nossos 19 contratos no mar do Norte que estavam para ser renovados por diferentes companhias foram entregues à IH abaixo do preço real. Thurston Dell, da ExTex precisa falar urgentemente com você. Os nossos operadores na Nigéria precisam urgentemente de três, repito, três 212 — você pode providenciá-los entre os que estão sobrando no Irã? Suponho que você irá para Al Shargaz ou Dubai com John Hogg hoje. Por favor, avise! Mac, se ele já tiver partido, por favor avise. Lembranças a Genny."
— Estamos fritos! — disse Gavallan. — É um verdadeiro assalto com o dinheiro dos contribuintes.
— Então, então leve-os para os tribunais — disse McIver, nervosamente, chocado com a palidez de Gavallan. — Uma competição desleal!
— Eu não posso, pelo amor de Deus — e disse ainda mais alto e mais zangado —, a não ser que o governo se manifeste, não há nada que eu possa fazer! Sem ter que honrar os seus débitos legítimos, eles podem dar um preço muito mais baixo do que o nosso! Dew neh loh moh para Callaghan e todos os seus comunistas!
— Vamos, Andy, nem todos são comunistas!
— Eu sei disso, pelo amor de Deus — rugiu Gavallan — mas parecem!
— Então o seu bom gênio superou a fúria e ele riu, embora seu coração ainda estivesse disparado. — Maldito governo — acrescentou com amargura — eles não sabem distinguir os seus cus de um buraco no chão.
— Cristo, Andy, eu pensei que você fosse ter um infarto. — McIver sentiu as mãos tremendo. Ele estava perfeitamente consciente das implicações do telex. Todas as suas economias estavam em ações da S-G. — Dezoito contratos em dezenove, isso arrasa as nossas operações no mar do Norte!
— Isso nos arrasa em toda parte. Com esta quantidade de dívidas canceladas, a IH pode oferecer preços inferiores aos nossos no mundo inteiro. E Thurston está querendo falar urgentemente comigo? Isso quer dizer que a ExTex vai recuar, a última renegociação que faltava, por causa de uma nova oferta 'ajustada' da IH, e eu assinei os contratos para os nossos X63.
— Gavallan tirou o lenço do bolso e enxugou a testa. Então viu Nogger Lane olhando, boquiaberto, da porta. — Que diabo você quer?
— Ahn, nada, senhor, eu pensei que o lugar estivesse pegando fogo...
— Nogger Lane fechou a porta apressadamente.
— Andy — McIver disse baixinho, depois que a porta estava bem fechada —, a Struan's. Eles não podem ajeitar as coisas para você?
— A Struan's poderia, embora não com muita facilidade este ano. Mas Linbar não o fará. — Gavallan também manteve sua voz baixa. — Quando ele souber de tudo isso, vai pular de alegria. A ocasião não podia ser melhor para ele. — E sorriu desanimadamente, pensando no telefonema de Ian Dunross e nos seus avisos. Não tinha contado isto a McIver. McIver não fazia parte da Struan's, embora fosse também um velho amigo de Ian. Onde será que o Ian consegue as suas informações?
Alisou a folha de telex. Isso era o auge de um grande número de problemas com a Imperial Helicópteros. Há seis meses atrás, a IH tinha contratado um dos seus executivos mais graduados, que levara com ele muitos segredos da S-G. No mês anterior, Gavallan perdera uma concorrência muito importante com a North Sea Board of Trade para a IH, depois de um ano de trabalho e enormes investimentos. As especificações da junta de comércio estabeleciam o desenvolvimento de equipamentos eletrônicos para uma operação de salvamento no mar por helicóptero, em qualquer condição de tempo, de dia ou de noite, de modo que os helicópteros pudessem avançar em segurança 150 quilômetros sobre o mar do Norte, flutuar, tirar oito homens do mar e voltar em segurança — em condições zero-zero e com ventos fortes — rapidamente. Nos meses de inverno, mesmo com um traje de sobrevivência no mar, uma hora era a expectativa máxima de vida e de resistência naquelas águas.
Incentivado pelo entusiasmo de Ian Dunross: "Não se esqueça, Andy, uma tal habilidade e um equipamento desses também serviriam perfeitamente para os empreendimentos que pretendemos fazer nos mares da China", Gavallan tinha investido meio milhão de libras e um ano de trabalho para desenvolver os sistemas eletrônicos e de orientação necessários e também uma companhia de eletrônica. Então, no grande dia, o piloto oficial de teste descobriu que não conseguia operar o equipamento, embora seis pilotos de linha da S-G, inclusive Tom Lochart e Rudi Lutz, não tivessem nenhum problema em utilizá-lo mais tarde. Mesmo assim, a IH não conseguiu o certificado necessário a tempo. "A injustiça de todo este maldito negócio", ele escrevera para McIver, "é que a IH conseguiu o contrato usando um Guerney 661 com equipamento dinamarquês sem certificado a bordo. Nós conseguimos evasivas e eles conseguem dispensas. São uns filhos da mãe. Aliás, é claro que não posso provar, mas apostaria qualquer dinheiro que o piloto de teste foi comprado — ele foi enviado 'para um longo período de descanso'. Oh, nós vamos recuperar o dinheiro e vamos conseguir o contrato daqui a um ano mais ou menos porque o nosso equipamento é melhor, mais seguro e de fabricação britânica. Enquanto isso, a Imperial está operando em níveis de segurança que, eu acho, podem ser melhorados."
É isso que conta realmente, pensou, relendo o telex, segurança. Em primeiro lugar a segurança e em último lugai a segurança.
— Mac, poderia enviar minha resposta para Liz: "Estou de partida para Al Shargaz agora e telefonarei quando chegar". Passe um telex para Thurston e pergunte qual o acordo que ele estaria disposto a oferecer caso eu dobrasse o número de X63 encomendados até agora. S...
— Hein?
— Bem, não custa nada perguntar. A IH vai saber dos nossos problemas aqui e eu não vou deixar aqueles cretinos começarem a falar mal de nós. É melhor deixá-los na dúvida. De qualquer maneira, poderíamos usar dois X63 aqui para atender a todos os contratos da Guerney, se as coisas mudarem. Termine o telex, vejo você daqui a pouco.
— Está bem.
Gavallan encostou-se na poltrona e deixou a mente divagar, recuperando as forças. Vou ter que ser muito forte. E muito esperto. Uma coisa dessas pode enterrar a mim e à S-G e dar a Linbar tudo de que ele precisa. Isto e o problema do Irã. Sim, e foi estupidez perder a calma desse jeito! O que você precisa é da Árvore de Gritar de Kathy... Ah, Kathy, Kathy.
A Árvore de Gritar era um velho costume do clã, uma árvore especial escolhida pelo membro mais velho do clã, em algum lugar por perto, onde você pudesse ir, sozinho, quando o dimônio — como a velha vovó Dunross, avó de Kathy, o chamava: "Quando você estiver possuído pelo dimônio e lá você pode xingar e berrar e reclamar e tornar a xingar até que não tenha mais palavrões para dizer. Assim haverá sempre paz em casa e nunca haverá necessidade de xingar um marido ou uma esposa ou um amante ou um filho. Sim, apenas uma pequena árvore, pois uma árvore pode agüentar todos os xingamentos, mesmo aqueles inventados pelo próprio dimônio"
A primeira vez que ele usou a Árvore de Gritar de Kathy foi em Hong Kong. Lá, era u'm jacarandá, no quintal da Casa Grande, a residência do tai-pan da Struan's. O irmão de Kathy, Ian, era o tai-pan na época. Gavallan sabia exatamente o dia: foi numa quarta-feira, 21 de agosto de 1963, na noite em que ela lhe contou.
Pobre Kathy, a minha Kathy, pensou, ainda amando-a — Kathy, nascida sob uma má estrela. Apaixonando-se perdidamente por um dos Eleitos — John Selkirk, tenente da aeronáutica, Cruz do Mérito Militar e RAF — casando-se imediatamente, sem ter completado dezoito anos, ficando viúva imediatamente, nem três meses depois, ele desaparecido em combate. Terríveis anos de guerra e mais tragédia, dois amados irmãos mortos em combate — um deles seu irmão gêmeo. Conhecendo você em Hong Kong em 1946, e eu me apaixonando imediatamente, desejando de todo o coração poder compensar um pouco toda aquela infelicidade. Sei que Melina e Scot o fizeram — eles sempre foram maravilhosos. E então, em 1963, antes do seu trigésimo oitavo aniversário, a esclerose múltipla.
De volta à Escócia como você sempre quis. Eu para pôr em prática os planos de Ian, você para recobrar a saúde. Mas esta parte não aconteceria. Vendo você morrer. Vendo o sorriso doce que você usava para disfarçar o inferno que sentia por dentro, tão corajosa e delicada e sábia e amorosa, mas piorando aos poucos. Tão devagar, e no entanto tão depressa, tão inexoravelmente. Em 1968 numa cadeira de rodas, com a mente ainda cristalina, a voz clara, o resto uma casca, fora de controle e tremendo. Então chegou 1970.
Naquele Natal eles estavam no Castelo Avisyard. E no segundo dia do novo ano, depois que os outros já tinham partido e que Melinda e Scot estavam esquiando na Suíça, ela tinha dito:
— Andy, meu querido, eu não posso suportar um outro ano, um outro mês, um outro dia.
— Sim — ele disse simplesmente.
— Desculpe, mas eu vou precisar de ajuda. Eu preciso partir e eu, eu sinto muito que tenha demorado tanto... mas eu preciso partir agora, Andy. Eu tenho que fazer isso sozinha, mas vou precisar de ajuda. Sim?
— Sim, minha querida.
Eles tinham passado um dia e uma noite conversando, conversando sobre coisas boas e sobre os bons tempos e o que ele deveria fazer por Melinda e Scot, e que ela queria que ele se casasse de novo, e ela lhe disse como a vida com ele tinha sido maravilhosa e eles riram, juntos, e suas lágrimas só foram derramadas mais tarde. Ele segurou-lhe a mão paralítica com as pílulas de dormir e apoiou a cabeça dela em seu peito e ajudou-a com o copo d'água — com um pouco de uísque dentro para dar sorte — e só a soltou quando o tremor tinha parado.
O médico dissera delicadamente: "Eu não a culpo. Se eu fosse ela, já teria feito isso há anos, pobre mulher".
Então ele tinha ido até a Árvore de Gritar. Mas sem gritar nenhuma palavra — só lágrimas.
— Andy?
— Sim, Kathy?
Gavallan levantou os olhos e viu que era Genny, na porta com McIver, os dois observando-o.
— Oh, olá, Genny, sinto muito, eu estava a quilômetros de distância. — Ele se levantou. — Eu acho que foi o Avisyard que me fez meditar.
— Oh, um telex Avisyard? Nenhum aparelho caiu? — Perguntou Genny, ansiosamente.
— Não, não, graças a Deus, só a Imperial Helicópteros com mais um dos seus truques.
— Oh, graças a Deus — disse Genny, francamente aliviada. Ela estava usando um casaco pesado e um bonito chapéu. Sua mala estava na ante-sala onde Nogger Lane e Charlie Pettikin esperavam. — Bem, Andy — disse —, a menos que você passe por cima do sr. McIver, acho que temos que ir. Eu estou tão pronta quanto o possível.
— Vamos, Gen, não há neces... — McIver parou quando ela levantou a mão imperiosamente.
— Andy — ela disse docemente —, por favor, diga ao sr. McIver que a guerra foi declarada.
— Gen! Você...
— Declarada, por Deus! — Imperiosamente, ela afastou Nogger Lane, apanhou sua mala, tropeçou um pouco por causa do peso, e saiu dizendo com um ar mais imperioso ainda: — Eu posso carregar a minha própria mala, muito obrigada.
Houve um grande silêncio atrás dela. McIver suspirou. Nogger Lane teve dificuldade em conter uma gargalhada. Gavallan e Pettikin acharam melhor se manterem neutros.
— Bem, ahn, não há necessidade de você ir conosco, Charlie — disse Gavallan, rispidamente.
— Mas eu gostaria de ir se o senhor não se importar — disse Pettikin, sem muita vontade de ir, mas McIver tinha pedido a ele em particular para ajudá-lo com Genny. — Este chapéu é uma beleza, Genny — Pettikin tinha dito a ela logo depois de um maravilhoso café da manhã com Paula. Genny sorrira docemente.
— Não tente me amansar, Charlie Pettikin, ou você também vai se ver comigo. Eu já estou cheia dos homens em geral. De fato, eu estou mesmo de saco cheio...
Gavallan vestiu o casaco, apanhou o telex e enfiou-o no bolso.
— Na verdade, Charlie — disse, e mostrou um pouco da sua preocupação —, se você não se importar, eu preferiria que você não fosse. Tenho alguns assuntos inacabados para discutir com Mac.
— Claro, tudo bem. — Pettikin estendeu a mão e disfarçou o contentamento. O fato de não ir ao aeroporto lhe daria algumas horas a mais sozinho com Paula. Paula, a Loura, era como ele pensava nela desde o café, mesmo ela sendo castanha. Para McIver, ele disse: — Vejo você em casa.
— Por que não espera aqui? Quero me comunicar com todas as bases assim que escurecer e nós poderemos voltar juntos. Eu gostaria que assumisse o controle. Nogger, você pode ir. — Nogger Lane ficou radiante e Pettikin praguejou silenciosamente.
McIver foi guiando, com Gavallan ao seu lado e Genny atrás. — Mac, vamos falar sobre o Irã.
Eles enumeraram as suas opções. E todas as vezes chegaram à mesma conclusão melancólica: tinham que confiar que a situação voltaria ao normal, os bancos reabririam, eles receberiam o dinheiro que lhes era devido, a sociedade deles seria liberada e eles não seriam presos.
— Você tem que tocar adiante, Mac. Enquanto pudermos operar, você tem que ir tocando, sejam quais forem os problemas.
McIver estava igualmente sério.
— Eu sei. Mas como vou operar sem dinheiro? E os pagamentos do contrato?
— Eu vou dar um jeito de lhe conseguir dinheiro para operar. Dentro de uma semana vou trazer dinheiro vivo de Londres. Posso continuar a cobrir o pagamento dos contratos de arrendamento dos seus aparelhos e peças por mais alguns meses; talvez possa até fazer o mesmo com os X63 se conseguir reprogramar os pagamentos mas, bem, não tinha planejado perder tantos contratos para a IH... talvez eu consiga recuperar alguns. De qualquer maneira, vai ser complicado por algum tempo, mas nada de muito preocupante. Espero que Johnny consiga vir; eu tenho que voltar para casa agora, há tanto o que fazer...
McIver evitou por pouco uma colisão de frente com um carro que saiu de uma rua lateral, quase caiu na vala e tornou a voltar para a estrada.
— Maldito idiota! Você está bem, Gen? — ele olhou pelo espelho retrovisor e estremeceu ao ver a sua fisionomia fechada.
Gavallan também sentiu o ambiente gelado, começou a dizer alguma coisa mas pensou melhor e ficou calado. Fico imaginando se vou conseguir encontrar Ian. Talvez ele pudesse me ajudar a sair do abismo. Ao pensar nisso, lembrou-se da trágica morte de David MacStruan. Tantos dentre eles, os Struans, MacStruans, Dunrosses, seus inimigos os Gornts, Rothwells, Brocks, dos velhos tempos, tiveram mortes violentas ou desapareceram — perdidos no mar — ou mortos em estranhos acidentes. Até agora, Ian tem sobrevivido. Mas por quanto tempo mais? Não muito mais vezes.
— Acho que já estou vivendo a oitava, Andy — dissera Dunross, da última vez que eles se encontraram.
— O que foi agora?
— Nada demais. Um carro-bomba explodiu em Beirute logo depois que eu passei. Nada com que se preocupar, já disse isso antes, não há um padrão. Acontece, simplesmente, que eu tenho uma vida encantada.
— Foi como Macau?
Dunross era um corredor entusiástico e competira em muitos dos Grandes Prêmios de Macau. Em 1965 — a corrida na época ainda era de amadores — ele vencera a corrida, mas o pneu da frente, do lado direito, do seu modelo e, estourou na linha de chegada e atirou-o de encontro à barricada, fazendo-o dar cambalhotas pela pista, com os outros carros desviando, exceto um que se chocou contra ele. Retiraram-no dos destroços com tudo intacto, ileso, exceto pelo pé esquerdo, que ele perdeu.
— Como Macau, Andy — dissera Dunross, com um sorriso estranho. — Só um acidente. Ambas as vezes.
Da outra vez, seu motor explodira mas ele escapara ileso. Houve boatos de que seu motor fora sabotado, e apontavam para seu inimigo Quillan Gornt, mas não publicamente.
Quillan está morto e Ian está vivo, pensou Gavallan. E eu também. E Linbar também; aquele filho da mãe vai viver para sempre... Cristo, eu estou ficando mórbido e estúpido — tenho que parar com isto. Mac já tem preocupações suficientes. Tenho que encontrar uma saída.
— Numa emergência, Mac, enviarei mensagens através de Talbot, e você faça o mesmo. Estarei de volta dentro de poucos dias, sem falta, e então terei as respostas. Enquanto isso, vou usar o 125 como base até segunda ordem. Johnny pode servir de mensageiro para nós. Isso é o melhor que posso fazer por ora...
Genny, que não pronunciara nenhuma palavra e se recusara, educadamente, a ser incluída na conversa, embora ouvisse atentamente, também estava bastante preocupada. É óbvio que não há nenhum futuro aqui para nós, e eu ficaria contentíssima em partir — desde que Duncan fosse também. No entanto, nós não podemos simplesmente fugir com o rabo entre as pernas e deixar que todo o trabalho de Duncan e todos as suas economias sejam roubadas, isso o mataria da mesma forma que uma bala de revólver. Ugh! Como eu gostaria que ele me ouvisse. Ele deveria ter-se aposentado no ano passado quando o xá ainda estava no poder. Homens! Uns idiotas, todos eles! Cristo! Como os homens são tolos!
O trânsito estava muito lento. Por duas vezes eles tiveram que desviar por causa de barricadas erguidas no meio da rua, guardadas por homens armados, não Faixas Verdes, que fizeram sinal para eles se afastarem. Havia cadáveres no meio do lixo, carros queimados e um tanque. Cachorros fuçavam no meio do lixo. Uma hora, houve um súbito tiroteio ali por perto e eles entraram numa rua lateral, evitando uma batalha feroz entre facções que nunca puderam identificar. Uma cápsula perdida de bazuca encravou-se num edifício próximo, mas sem nenhum perigo para eles. McIver contornou devagar a carcaça queimada de um ônibus, mais satisfeito do que nunca ter insistido para que Genny saísse do Irã. Mais uma vez ele olhou para ela pelo espelho retrovisor e viu-lhe o rosto branco debaixo do chapéu e seu coração se comoveu. Ela é tão boa, pensou orgulhosamente, tão corajosa. É maravilhosa, mas bem teimosa. Odeio aquele maldito chapéu. Ela não fica bem de chapéu. Por que diabo ela não faz o que eu mando sem discutir? Pobre Gen, vou ficar aliviado quando ela estiver em segurança.
Perto do aeroporto, o trânsito praticamente parou, havia centenas de carros apinhados de gente, muitos europeus, homens, mulheres e crianças, indo para lá por causa do boato de que o aeroporto tinha sido reaberto. Faixas Verdes enraivecidos mandando todo mundo embora, avisos rabiscados em farsi e num inglês mal escrito pendurados nas árvores e nos muros: AEROPORTO PROIBIDO; AEROPORTO ABERTO SEGUNDA-FEIRA — COM PASSAGEM E VISTO DE SAÍDA.
Eles levaram meia hora para conseguir passar pela barreira. Foi Genny quem finalmente conseguiu. Como a maioria das esposas, que tinham que fazer compras e lidar com os empregados e com o dia-a-dia da casa, ela falava um pouco de farsi — e embora não tivesse dito uma só palavra durante toda a viagem, ela se debruçou para a frente e falou com os Faixas Verdes amavelmente. Imediatamente, eles os deixaram passar.
— Meu Deus, Gen, foi maravilhoso — disse McIver. — O que foi que você disse aos desgraçados?
— Andy — ela disse altivamente —, por favor, diga ao sr. McIver que eu disse a eles que ele era um caso suspeito de varíola que estava sendo retirado do país.
Havia mais Faixas Verdes no portão que levava à área de carga e aos escritórios da companhia, mas desta vez foi mais fácil e tornou-se evidente que eles eram esperados. O 125 já estava na pista, cercado por Faixas Verdes armados e caminhões. Dois Faixas Verdes de motocicleta fizeram sinal para que eles os seguissem e saíram roncando pela pista.
— Por que vocês estão atrasados? — perguntou o mulá Tehrani, irritado, descendo os degraus do 125, seguido por dois revolucionários armados. Tanto Gavallan quanto McIver notaram que ele estava usando óculos novos. Viram, de relance, que John Hogg estava dentro da cabine e que havia um revolucionário no alto da escada com uma submetralhadora apontada.
— O aparelho tem que decolar imediatamente. Por que vocês estão tão atrasados?
— Sinto muito, Excelência, o trânsito. Insha'Allah\ Sinto muito — McIver disse cautelosamente. — Eu entendi, pelo que disse o capitão Lane, que sua missão para o aiatolá, que ele viva eternamente, foi satisfatória?
— Não houve tempo necessário para completar todo o trabalho. Seja como Deus quiser. É, ahn, é necessário tornar a ir amanhã. O senhor, por favor, providencie isso. Para as nove horas.
— Com prazer. Aqui está a relação dos passageiros. — McIver entregou-lhe o papel. Gavallan, Genny e Armstrong estavam nele. Armstrong ia de licença.
Tehrani leu o papel com facilidade desta vez, visivelmente extasiado com os óculos.
— Onde está esse Armstrong?
— Oh, eu supus que ele estivesse a bordo.
— Não há ninguém a bordo além da tripulação — disse o mulá, irritado, o grande prazer de ser capaz de enxergar superando o seu nervosismo por ter permitido que o 125 aterrissasse. Mas ele estava contente de ter permitido, os óculos eram um presente de Deus e o segundo par prometido pelo piloto para a próxima semana seria uma proteção caso o outro quebrasse e o terceiro par apenas para ler... Oh, Deus é grande. Deus é grande, muito obrigado a Deus por ter posto esta idéia na cabeça do piloto e por ter-me deixado enxergar tai) bem. — O aparelho tem que partir imediatamente.
— O sr. Armstrong não costuma se atrasar, Excelência — Gavallan disse, franzindo a testa. Nem ele nem McIver tinham tido notícias de Armstrong desde a véspera, e ele não tinha ido ao apartamento na noite anterior. Naquela manhã, Talbot tinha dado de ombros, dizendo que Armstrong se atrasara, mas que não precisavam se preocupar que ele estaria no aeroporto na hora marcada. — Talvez ele esteja esperando no escritório — disse Gavallan.
— Não há ninguém lá além dos empregados. O aparelho vai partir e não vai esperar. Subam a bordo, por favor! O aparelho vai partir imediatamente.
— Perfeito — disse Gavallan. — Seja como Deus quiser. Por falar nisso, gostaríamos de uma autorização para o 125 voltar no sábado e de uma autorização para mandar um 206 a Tabriz amanhã. — Com grande formalidade, ele estendeu-lhe os papéis, caprichosamente preenchidos.
— O, ahn, o 125 pode voltar, mas nada de vôos para Tabriz. Talvez no sábado.
— Mas, Excelência, o senhor não..
— Não — disse o mulá, consciente dos outros observando-o. Ele ordenou que o caminhão que estava bloqueando a pista se afastasse e olhou para Genny quando ela saltou do carro, balançando a cabeça aprovadoramente. Gavallan e McIver ficaram surpresos ao notar que ela tinha enfiado o cabelo para dentro do lenço que fazia parte do chapéu, de modo que o cabelo não aparecia e, com o casaco comprido, ela dava a impressão de estar usando um chador. — Por favor, suba a bordo.
— Obrigada, Excelência — disse adequadamente em farsi, depois de ter ensaiado a manhã inteira com a ajuda de um dicionário, e com a dose certa de seriedade, — mas com sua permissão eu vou ficar. Meu marido não está tão bem da cabeça quanto deveria, temporariamente, mas o senhor, sendo um homem de tão grande inteligência, o senhor deve compreender que embora uma esposa não possa ir contra os desejos do marido, está escrito que até o próprio Profeta precisou de cuidados.
— É verdade — disse o mulá e olhou Pensativamente para McIver. McIver devolveu o olhar, perplexo, sem entender. — Fique se desejar.
— Obrigada — disse Genny, com grande deferência. — Então vou ficar Obrigada, Excelência, por sua permissão e sua sabedoria. — Ela disfarçou o contentamento por sua esperteza e disse em inglês: Duncan, o mulá Tehrani concorda que eu devo ficar. — Ela viu a fúria nos olhos dele e acrescentou apressadamente: — Eu vou esperar no carro.
Ele estava lá antes dela.
— Você trate de entrar naquele avião — disse —, ou eu mesmo ponho você lá dentro.
— Não seja tolo, Duncan querido! — Ela estava tão solícita. — E não grite, é muito ruim para a sua pressão. — Ela viu Gavallan se aproximando e perdeu um pouco da confiança. Em volta havia uma neve desagradável e um céu desagradável e uns garotos azedos olhando para ela. — Você sabe como eu adoro este lugar — disse animadamente —, como poderia partir?
— Você... você vai partir agora mesmo — McIver estava tão zangado que mal podia falar e por um segundo Genny teve medo de ter ido longe demais
— Eu irei se você for, Duncan. Agora mesmo. Eu não vou, repito, não vou sem você e se você tentar me obrigar, vou fazer um escândalo tão grande que vai explodir o 125, o aeroporto e o país inteiro! Andy, explique a esse... a essa pessoa! Oh, eu sei que vocês dois podem arrastar-me para dentro do avião mas se fizerem isto vão ficar totalmente desautorizados e eu conheço vocês muito bem! Andy!
— Mac, você perdeu! — Gavallan riu.
Apesar da raiva, McIver riu também, e o mulá balançou a cabeça, espantado com a maluquice dos infiéis.
— Gen, você... você planejou isso o tempo todo — McIver explodiu.
— Quem, eu? — Ela era o próprio retrato da inocência. — Nem pense nisso!
— Está bem, Gen — disse McIver, ainda com a expressão carregada de raiva. — Está bem, você ganhou, mas vai se arrepender.
— A bordo! — ordenou o mulá.
— E quanto a Armstrong? — perguntou McIver.
— Ele conhece as regras e a hora. — Gavallan deu um abraço em Genny e trocou um aperto de mão com McIver.
— Vejo vocês em breve, cuidem-se. — Ele subiu a bordo, o jato decolou e durante a longa viagem de volta ao escritório nem Genny nem Duncan McIver notaram o tempo passar. Ambos estavam preocupados. Genny sentou-se na frente. Ela estava muito cansada mas muito satisfeita.
— Você é uma boa mulher, Gen — ele tinha dito assim que ficaram sozinhos —, mas não está perdoada.
— Sim, Duncan — ela respondera humildemente, como uma boa esposa costuma fazer. De vez em quando.
— Você não está absolutamente perdoada.
— Sim, Duncan.
— E não fique dizendo sim Duncan! — Ele continuou dirigindo por algum tempo, depois disse severamente: — Eu preferia vê-la em segurança em Al Shargaz, mas estou contente por você estar aqui.
Ela não disse nada, sabiamente. Apenas sorriu. E pôs a mão no joelho dele. Ambos em paz agora.
Foi outra viagem terrível, com muitos desvios, tiroteios, e mais corpos e cachorros e multidões enfurecidas, e lixo, pois havia meses que as ruas não eram limpas, e as valas há muito tempo estavam entupidas. A noite caiu rapidamente e o frio aumentou. Um ou outro carro e alguns caminhões do exército passaram por eles, sem ligar para a segurança da estrada, cheios de soldados.
— Você está cansado, Duncan. Quer que eu dirija?
— Não, eu estou bem, obrigado — ele respondeu, sentindo-se muito cansado, e ficando muito contente quando finalmente entraram na rua do escritório, escura e ameaçadora como todo o resto, sendo que a única luz vinha da cobertura. Ele teria preferido deixar o carro na rua, mas tinha certeza de que quando voltasse a gasolina teria sido roubada, embora houvesse um cadeado no tanque; isso se o próprio carro não tivesse sido levado. Ele entrou na garagem, trancou o carro, trancou a garagem e eles subiram as escadas.
Charlie Pettikin recebeu-os no patamar, com o rosto pálido.
— Oi, Mac. Graças a Deus você.. — Então ele viu Genny e parou. — Oh, Genny! O que, o que aconteceu? O 125 não conseguiu pousar?
— Ele pousou — disse McIver. — O que foi que aconteceu, Charlie? Pettikin fechou a porta do escritório, e lançou um olhar a Genny que disse, cansada:
— Está bem, eu vou ao banheiro.
Cristo, ela pensou, isso tudo é tão estúpido. Será que eles nunca vão aprender? Duncan vai me contar assim que estivermos sozinhos, então eu vou ficar sabendo de qualquer maneira e seria muito melhor ouvir em primeira mão. Fatigada, ela se arrastou até a porta.
— Não, Gen — disse McIver e ela parou, assustada. — Você escolheu ficar, então... — Ele deu de ombros. Ela notou algo de diferente nele e não soube se era para melhor ou para pior. — Diga, Charlie.
— Rudi falou pelo HF há menos de meia hora atrás — disse Pettikin, rapidamente. — O HBC foi derrubado, explodiu no céu, não há nenhum sobrevivente, m...
Tanto Genny quanto McIver ficaram brancos.
— Oh, meu Deus! Ela se agarrou numa cadeira.
— Eu não entendo o que está acontecendo — Pettikin disse, perplexo. — É tudo uma loucura, parece um sonho, mas Tom Lochart não teve nada, ele está em Bandar Delam com Rudi. E...
— Tom está bem? — Exclamou McIver, revivendo. — Ele escapou?
— Ninguém escapa de um helicóptero que explode no céu. Nada faz sentido, a menos que seja um disfarce. Tom estava transportando peças, sem passageiros, mas o oficial disse que ele estava cheio de gente, e Rudi disse: "Diga ao sr. McIver que o capitão Lochart voltou de licença". Eu cheguei até a falar com ele!
McIver olhou para ele, pasmo.
— Você falou com ele? Ele está bem? Você tem certeza? Voltou de que licença, pelo amor de Deus?
— Eu não sei, mas falei com ele.
— Espere um minuto, Charlie. Como foi que Rudi conseguiu se comunicar conosco? Ele está em Kowiss?
— Não, ele disse que estava falando do Controle de Trafego Aéreo de Abadan.
McIver resmungou uma obscenidade, muitíssimo aliviado por causa de Lochart, mas ao mesmo tempo horrorizado por causa de Valik e sua família. Cheio de gente? Só devia haver quatro pessoas! Havia mais de cinqüenta perguntas que ele queria que fossem respondidas imediatamente, e sabia que não havia saída para a enrascada em que ele e Tom estavam metidos. Ele não tinha contado a ninguém sobre a verdadeira missão de Tom nem sobre o seu próprio dilema em autorizá-la, a não ser a Gavallan.
— Vamos começar desde o princípio, Charlie, palavra por palavra. Você está bem, Gen?
— Sim, sim. Eu... eu vou preparar um chá. — Os dois notaram a fraqueza da sua voz e ela foi para a quitinete.
Abalado, Pettikin sentou-se na beirada da escrivaninha.
— Vou contar o mais exatamente possível. Rudi disse: "Estou com um oficial da Força Aérea Iraniana aqui e preciso saber oficialmente". Então uma outra voz apareceu no alto-falante. "Aqui é o major Qazani, do Serviço Secreto da Força Aérea! Exijo uma resposta imediata. O HBC é ou não é um 212 da S-G?" Para ganhar tempo, eu disse: "Espere um momento, vou apanhar a pasta". Eu esperei, torcendo para Rudi me dar uma dica, mas isso não ocorreu, então eu calculei que não havia problema. "Sim, o EP-HBC é um dos nossos 212." Imediatamente, Rudi explodiu e praguejou como eu nunca tinha visto antes e disse algo como "Por Deus, isso é terrível, por que o HBC tentou fugir para o Iraque e a Força Aérea Iraniana derrubou o aparelho, explodiu-o com todos os que estavam a bordo, mandando-os para o inferno que é o que eles merecem, quem estava pilotando e quem estava a bordo, com os diabos!" Pettikin enxugou um filete de suor.
— Acho que eu também praguejei um pouco, fiquei um tanto abalado, não posso me lembrar exatamente, Mac, depois disse algo como: "Isso é terrível! Espere um momento, vou apanhar o livro de vôo", esperando que a minha voz soasse mais ou menos normal. Apanhei o livro e vi o nome de Nogger riscado, com 'alegou doença' escrito ao lado, e então o de Tom Lochart, e a sua assinatura autorizando o vôo. — Ele levantou os olhos para McIver, de-samparadamente. — Era óbvio que Rudi não queria que eu dissesse Tom, então eu disse apenas: "De acordo com o nosso livro, ele não foi entregue a ninguém"...
McIver ficou vermelho.
— Mas se você...
— Foi o melhor que eu pude fazer na hora, pelo amor de Deus. Eu disse. "Ele não foi entregue a ninguém". Rudi começou a praguejar de novo mas eu achei que a voz dele estava diferente, mais aliviada. "Que diabo você está dizendo?" Ele disse. "Estou-lhe dizendo, capitão Lutz, de acordo com os nossos registros, o HBC ainda está guardado num hangar em Doshan Tappeh. Se ele saiu, deve ter sido seqüestrado", eu disse, esperando que a minha voz fosse convincente. Mac, eu estava improvisando e ainda não entendo qual é o problema. Então aquela outra voz disse: "Esta questão vai ser entregue imediatamente aos canais competentes. Quero verificar imediatamente o seu livro de vôo". Eu disse a ele que estava bem, para onde deveria mandá-lo? Isto o abalou um pouco porque é claro que não há nenhuma maneira de entregar o livro a ele imediatamente. No fim, ele disse para guardarmos os nossos registros com cuidado e que receberíamos instruções mais tarde. Então Tom entrou na linha e disse algo como:
"Capitão Pettikin, por favor peça desculpas ao sr. McIver pelo meu atraso, mas eu fiquei preso por causa de uma nevasca numa aldeia ao sul de Ker-manshah. Assim que puder irei para casa." — Pettikin suspirou, olhou para Genny e depois outra vez para McIver. — Foi isto. O que você acha?
— Quanto a Tom? Não sei. — McIver caminhou pesadamente até a janela e Pettikin e Genny viram o peso que ele estava carregando. Havia neve no parapeito e o vento tinha aumentado um pouco. Tiros esporádicos soavam à distância, de rifle e de pistola, mas nenhum deles notou.
— Genny?
— Eu... isso não faz sentido, nenhum sentido, Charlie, isso sobre Tommy não faz nenhum sentido.
Ela despejou a água fervendo no bule de chá, já tendo aquecido as xícaras antes, satisfeita por ter algo para fazer com as mãos, sentindo-se desamparada e com vontade de chorar, com vontade de gritar por causa de toda aquela injustiça, sabendo que Duncan e Tom estavam numa enrascada, o seu Duncan tinha assinado o plano de vôo; sabendo que ela não podia falar nada a respeito de Annoush e das crianças e nem de Valik, se eles tivessem a bordo, e eles deviam estar a bordo, mas se Tom não estava pilotando, quem estaria?
— O seqüestro... bem, obviamente o nome de Tommy está na autorização e o de Duncan também. As autoridades de Teerã ainda têm a autorização. A autorização tem o nome de Duncan então um seqüestro não é... não faz muito sentido.
— Eu estou vendo isso agora, mas na hora a história me pareceu boa. — Pettikin estava se sentindo péssimo. Ele apanhou o livro de autorizações. — Mac, e se nós perdêssemos isto, nos livrássemos disto?
— O controle de Teerã está com o original, Charlie. Tom reabasteceu o aparelho, deve haver um registro.
— Em tempos normais, sem dúvida. Agora? Com toda essa confusão?
— Talvez.
— Quem sabe a gente consegue recuperar o original?
— Vamos, pelo amor de Deus, não há nenhuma chance.
Genny começou a servir o chá. O silêncio foi ficando mais pesado. Cheio de aflição, Pettikin disse:
— Eu ainda não vejo como, se Tom saiu de Doshan Tappeh e então... a menos que ele tenha sido seqüestrado no meio do caminho, ou quando estava reabastecendo o aparelho. — Ele passou nervosamente as mãos pelo cabelo. — Tem que ser um seqüestro. Onde foi que ele reabasteceu? Em Kowiss? Talvez eles pudessem ajudar.
McIver não respondeu, apenas ficou olhando para a noite lá fora, Pettikin esperou, depois folheou o livro de vôo, encontrou a cópia certa e olhou para as costas do papel.
— Isfahan? — disse, surpreso. — Por que Isfahan? Mais uma vez, McIver não respondeu.
Genny pôs leite condensado no chá e deu uma xícara a Pettikin.
— Eu acho que você se saiu muito bem, Charlie — ela disse, sem saber o que mais poderia dizer. Então levou a outra xícara para McIver.
— Obrigado, Gen.
Ela viu as lágrimas e suas próprias lágrimas começaram a rolar. Ele pôs o braço em volta dela, pensando em Annoush e na festa de Natal que ele e Genny tinham dado para todos os filhos dos seus amigos, há tão pouco tempo atrás — a pequena Setarem e Jalal, as estrelas das brincadeiras, crianças tão maravilhosas, agora transformadas em cinzas ou em carne para os abutres.
— Foi bom saber que Tommy está bem, querido — ela disse através das lágrimas, esquecendo-se de Pettikin. Embaraçado, Pettikin saiu e fechou a porta e nenhum dos dois notou que ele tinha saído. — É bom saber do Tommy — ela tornou a dizer. — Esta foi uma coisa boa.
— Sim, Gen, esta foi uma coisa boa.
— O que podemos fazer?
— Esperar. Vamos esperar para ver. Vamos esperar que eles não tenham seguido... mas eu sinto que eles estavam a bordo. — Ternamente, ele enxugou suas lágrimas. — Mas no domingo, Gen, quando o 125 partir você vai junto — disse gentilmente. — Eu prometo que é só até nós resolvermos isso. Mas desta vez você precisa ir.
Ela concordou. Ele tomou o chá. Estava muito bom. Ele sorriu.
— Você faz um chá muito bom, Gen — disse, mas isso não afastou nem o medo nem a tristeza que ela estava sentindo.
E nem o seu ódio por toda aquela matança e aquele desperdício e a tragédia e a usurpação do meio de vida deles, ou pelo mal que estava fazendo ao seu marido. A preocupação o está matando. Matando, ela pensou com mais raiva ainda. Então, de repente, ela teve a resposta. Olhou em volta para certificar-se de que Pettikin não estava lá.
— Duncan — ela sussurrou — se você não quer que esses filhos da mãe roubem o nosso futuro, por que não partimos e levamos tudo conosco?
— Hein?
— Aparelhos, peças e pessoal.
— Não podemos fazer isso, Gen. Eu já lhe disse isso cinqüenta vezes.
— Oh, sim, nós podemos. Se quisermos e se tivermos um plano. — Ela disse isto com tanta confiança que o contagiou. — Tem o Andy para ajudar. Andy pode fazer o plano, nós não podemos. Você pode executá-lo, ele não. Eles não nos querem aqui, então que seja, nós partiremos. Mas com os nossos helicópteros, as nossas peças e o nosso respeito próprio. Teremos que manter tudo em sigilo absoluto, mas podemos fazê-lo. Nós podemos. Eu sei que sim.