— Nada. Não foi nada. Nós temos um fundo para essas eventualidades.

— Isso não é problema, Andy Gavallan vai pagar. Oh, isso me faz lembrar, ele disse que conheceu o seu patrão há alguns anos: Toda, Hiro Toda.

— Ah so desu ka! — Kasigi estava genuinamente surpreso. — Gavallan tem helicópteros no Japão?

— Oh, não. Foi quando ele era comerciante na China, perto de Hong Kong, quando ele estava trabalhando para a Struan's. — Este nome acendeu um sinal vermelho para Kasigi, que disfarçou. — Já ouviu falar?

— Sim, uma grande companhia. A Toda tem, ou teve, negócios com a Struan's — Kasigi disse suavemente, mas guardou a informação para futuras considerações. Não fora Linbar Struan quem cancelara unilateralmente cinco contratos de aluguel de navios há dois anos, o que quase nos arruinou? Talvez Gavallan pudesse ser um instrumento para recuperá-los, de um modo ou de outro. — Sinto muito por você ter passado por tudo isso.

— Não foi culpa sua, cara. Mas Andy gostaria de pagar o resgate. Quanto foi que eles pediram?

— Foi muito modesto. Por favor, é um presente. Você salvou o meu navio.

Depois de uma pausa, Scragger disse:

— Então eu lhe devo dois favores, meu velho.

— Nós escolhemos o motorista. A culpa foi nossa.

— Onde está ele, onde está Muhammad?

— Sinto muito, ele morreu. Scragger praguejou.

— A culpa não foi dele, não foi mesmo.

— Sim, sim, eu sei. Nós indenizamos a sua família e faremos o mesmo com as vítimas. — Kasigi estava tentando perceber até que ponto Scragger estava abalado, desejando muito saber quando ele estaria apto para pilotar, e muito irritado com o atraso de um dia. Era imperativo que ele voltasse para Al Shargaz o mais cedo possível, e depois para o Japão. O seu trabalho aqui estava terminado. O engenheiro-chefe Watanabe estava agora totalmente do seu lado, as cópias dos seus relatórios anteriores fortaleceriam a sua posição e ajudá-lo-iam enormemente, e à Hiro Toda, a recuperar a possibilidade de persuadir o governo a declarar a Irã-Toda um Projeto Nacional.

Não a possibilidade, a certeza! Ele pensou, mais confiante do que nunca. Nós seremos salvos da bancarrota, derrotaremos os nossos inimigos, Mitsuwari e Gyokotomo, recuperaremos o nosso prestígio e teremos lucro, muito lucro! Além disso, tinha havido aquele golpe de sorte, Kasigi permitiu-se um sorriso cínico, a explosiva cópia do relatório particular do falecido engenheiro-chefe Kasusaka para a Gyokotomo, datado e assinado, que Watanabe tinha 'achado' milagrosamente numa pasta esquecida enquanto ele estava em Al Shargaz. Terei que ter muito cuidado ao usá-lo, muito cuidado mesmo, mas isso faz com que seja ainda mais importante que eu volte logo para casa.

As ruas estavam entupidas de tráfego. Lá no alto, o céu ainda estava encoberto, mas a tempestade tinha passado e ele sabia que o tempo estava adequado para voar. Ah, eu gostaria de ter o meu próprio avião, ele pensou. Digamos um Lear Jet. A recompensa por todo o trabalho que eu tive aqui deveria ser substancial.

Ele se deixou embalar docemente, desfrutando da sensação de realização e poder.

— Parece que vamos conseguir iniciar a obra muito em breve, capitão.

— Ah, é?

— Sim. O chefe do novo khomeiniomeh nos garantiu sua cooperação. Parece que ele conhece um dos seus pilotos, um capitão Starke. O nome dele é Zataki.

Scragger olhou-o rapidamente.

— Ele é o cara que o Duke, Duke Starke, salvou dos esquerdistas e levou para Kowiss. Se eu fosse você, companheiro, teria cuidado com ele. — E contou a Kasigi o quanto o homem era instável. — Ele é um louco.

— Ele não me deu essa impressão, de jeito nenhum. É curioso... os iranianos são muito curiosos. Mas o mais importante é como o senhor está se sentindo.

— Eu estou ótimo agora — Scragger exagerou. O dia e a noite de ontem tinham sido péssimos, com toda aquela gritaria, algemado na cama, sem conseguir se fazer entender, cercado de gente hostil, vigiando de todo o lado. Perdido. E com medo. A dor aumentando. O tempo terrivelmente lento, a esperança diminuindo, certo de que Minoru estava ferido ou morto junto com o motorista de modo que ninguém saberia onde ele estava nem o que tinha acontecido.

— Nada que uma boa xícara de chá não cure. Se você quiser partir imediatamente, eu estou bem. Basta um banho rápido, uma barba e uma xícara de chá e alguma coisa para comer e nós estaremos a caminho.

— Excelente. Então vamos partir assim que o senhor estiver pronto. Minoru já instalou o rádio e o checou.

Durante todo o caminho até a refinaria e durante o vôo de volta a Lengeh, Kasigi esteve de muito bom humor. Perto de Khang, eles acharam que tinham localizado o enorme tubarão-martelo que Scragger tinha mencionado antes. Eles voaram baixo e perto da costa, com as nuvens ainda baixas e pesadas, com alguns nimbos aqui e ali e alguns relâmpagos ameaçadores, mas a viagem não foi má, apenas jogou um pouco. O controle de radar e as autorizações foram eficientes e imediatas, o que aumentou os temores de Scragger. Só faltam dois dias para a operação Turbilhão sem contar com hoje, era o pensamento que ocupava a sua mente. Perder um dia torna tudo ainda mais difícil, pensou, ansioso. O que será que aconteceu desde que eu viajei?

Bem depois de Khan, ele parou para reabastecer e descansar. O seu estômago ainda doía muito e ele notou um pouco de sangue na urina. Nada de muito preocupante, disse a si mesmo. É claro que tinha que haver uma pequena hemorragia depois de um acidente daqueles. Eu tive mesmo uma bruta sorte!

Eles estavam numa duna de areia, terminando de comer — arroz frio com pedaços de peixe e picles. Scragger comeu um bom pedaço de pão iraniano que apanhara na cozinha impecável e um monte de yakitori de galinha com molho de soja, que adorava. Kasigi tomava uma cerveja japonesa que Scragger recusara:

— Obrigado, mas beber e pilotar são coisas que não combinam. Kasigi comeu com parcimônia, Scragger com rapidez e apetite.

— Grude bom esse. Assim que estiver pronto, acho melhor partirmos.

— Já terminei. — Em pouco tempo, eles estavam novamente no ar.

— Vai dar tempo de me levar até Al Shargaz ou Dubai ainda hoje?

— Não se formos para Lengeh. — Scragger ajustou os fones de ouvido. — Sabe de uma coisa?, Quando falarmos com o Controle de Tráfego de Kish, eu vou perguntar se podemos desviar o aparelho para Bahrain. Lá, você poderia apanhar um avião local ou internacional. Vamos precisar reabastecer em Lavan, mas se eles concordarem com o pedido, aprovarão. Como eu disse, devo-lhe dois favores.

— Você não me deve nada — Kasigi sorriu consigo mesmo. — Ontem, na reunião do komiteh, aquele homem, Zataki, perguntou em quanto tempo nós estaríamos operando com a nossa frota completa de helicópteros. Eu prometi uma ação imediata. Como você sabe, a Guerney não trabalha mais para nós. O que eu queria eram três dos seus 212 e dois 206 para os próximos três meses, com um contrato de um ano para ser negociado depois, dependendo das nossas necessidades, renovável anualmente. Isso seria possível?

Scragger hesitou, sem saber o que responder. Normalmente, uma oferta dessas faria os sinos tocarem de lá até Aberdeen, Gavallan viria pessoalmente ao telefone e todo mundo receberia uma enorme gratificação. Mas com a operação Turbilhão marcada, com a Guerney de fora e mais ninguém disponível, não havia nenhuma maneira de ajudar a Kasigi.

— Quando, ahn, quando você precisaria dos aparelhos? — perguntou para ganhar tempo para pensar.

— Imediatamente — respondeu Kasigi, observando um petroleiro lá embaixo. — Eu garanti a Zataki e ao komiteh que se eles cooperassem, nós começaríamos imediatamente. Amanhã ou depois no mais tardar. Talvez você pudesse pedir ao seu escritório central para eles desviarem alguns dos 212 estacionados em Bandar Delam que não estão sendo totalmente aproveitados. É possível?

— Vou perguntar assim que pousarmos.

— Durante mais ou menos uma semana, nós vamos precisar de uma ligação com o Kuwait para apanhar e substituir turmas de operários japoneses. Zataki disse que o komiteh deles combinaria com o komiteh do aeroporto de Abadan para que este nos fosse aberto. Certamente, lá para o fim da semana.

Scragger escutava meio distraído os planos confiantes do homem que se tornara seu amigo, sem o qual ele ainda estaria algemado a uma cama. Sua escolha era simples: ou você conta a ele sobre a operação Turbilhão ou o deixa na mão. Mas se contar, estará traindo alguém que confia ainda mais em você, um amigo da vida inteira. Kasigi poderia deixar escapar alguma coisa sobre a operação. Ele na certa contaria a de Plessey. A questão é até onde eu posso confiar nele — e em de Plessey?

Muito agitado, ele olhou pela janela e tornou a checar a sua posição.

— Desculpe interrompê-lo, mas tenho que me comunicar com o radar. — E apertou o botão do transmissor: — Radar de Kish, aqui é Hotel Sierra-Tango, está me ouvindo?

— HST, radar de Kish, estamos ouvindo quatro por cinco, continue.

— HST a serviço da Irã-Toda voltando para a base em Lengeh, aproximando-se de Lavan a trezentos metros, um passageiro a bordo. Solicita permissão para reabastecer em Lavan e desviar-se para Bahrain para deixar o passageiro, que tem negócios urgentes para resolver relacionados ao Irã.

— Solicitação recusada. Nenhum vôo através do golfo é autorizado sem um pedido feito com 24 horas de antecedência. Vire para 095 graus, direção de Lengeh, comunique-se ao se aproximar de Kish, não quando estiver em cima de Kish. Entendido?

Scragger olhou para Kasigi, que ouvira a conversa.

— Sinto muito, companheiro. — E desviou o aparelho para a nova posição. — Aqui HST. Entendido. Solicito permissão para ir a Al Shargaz amanhã de manhã com um passageiro.

— Fique na escuta. — Ouviu-se um barulho de estática. A estibordo, continuava o fluxo constante de petroleiros que entravam e saíam dos terminais do golfo, da Arábia Saudita, dos Emirados, de Abu Dhabi, Bahrain, Kuwait e Iraque. Nenhum deles estava sendo carregado em Khang nem em Abadan, onde, normalmente, haveria uma dúzia sendo carregados e uma dúzia esperando. Agora só havia um enxame de navios esperando, alguns há mais de dois meses. O céu ainda estava encoberto e ameaçador.

— HST, aqui é Kish. Nesta instância, o seu pedido para ir de Lengeh para Al Shargaz foi aprovado para amanhã, quarta-feira, dia 28, ao meio-dia. Até decisão posterior, repito, todos os vôos através do golfo exigirão um pedido com 24 horas de antecedência, e todos, repito, todos os motores necessitam de autorização para serem ligados. Entendido?

Scragger praguejou e depois respondeu.

— O que foi? — perguntou Kasigi.

— Nós nunca tivemos que obter permissão para ligar os motores antes. Os filhos da mãe estão realmente ficando muito nervosos. — Scragger estava pensando na sexta-feira e na decolagem dos seus dois 212, com Kish se intrometendo e ficando eficiente demais. — Bando de gente metida!

— Sim. Você vai poder chefiar as nossas operações com helicópteros?

— Há um monte de caras melhores do que eu.

— Ah, desculpe, mas seria muito importante para mim. Eu saberia que a operação estaria em boas mãos.

Mais uma vez Scragger hesitou.

— Obrigado, se fosse possível, eu o faria, é claro que sim.

— Então está decidido. Eu vou fazer uma solicitação formal ao sr. Gavallan. — Kasigi olhou para Scragger. Alguma coisa mudou, pensou. O quê? Pensando bem, o piloto não reagiu com tanto entusiasmo quanto seria de se esperar ao me ouvir propor o acordo, e ele deve ter percebido o valor do contrato que lhe está sendo oferecido. O que será que ele está escondendo? — Você poderia contatar Bandar Delam através da sua base em Kowiss para perguntar se eles podem fornecer-nos pelo menos um 212 amanhã? — perguntou, tentando descobrir mais um pouco.

— Sim, sim, é claro... assim que chegarmos.

Ah, pensou Kasigi, que observara e escutara com bastante atenção. Eu estava certo, alguma coisa estava errada. A camaradagem desapareceu. Por quê? Eu não disse nada que pudesse ofendê-lo. Não pode ser o acordo — é ótimo para qualquer companhia de helicópteros. Será a saúde dele?

— Você está se sentindo bem?

— Oh, sim, meu velho. Eu estou ótimo.

Ah, desta vez o sorriso foi sincero e a voz normal. Então tem que ser algo relacionado aos helicópteros.

— Se eu não puder contar com a sua ajuda, as coisas vão ficar muito difíceis para mim.

— Sim, eu sei. Se dependesse de mim, eu gostaria de poder ajudá-lo. Ah, o sorriso desapareceu e a voz ficou séria de novo. Por quê? E por que esse "se dependesse de mim" como se ele quisesse ajudar mas alguém o tivesse proibido? Gavallan? Será que ele sabe que Gavallan não vai me ajudar por causa da Struan's?

Durante algum tempo, Kasigi imaginou todas as possibilidades mas não conseguiu encontrar uma resposta satisfatória. Então resolveu usar o único artifício, quase infalível, possível de ser usado com um estrangeiro como aquele.

— Meu amigo — disse, usando o seu tom de voz mais sincero —, eu sei que algo está errado, por favor, diga-me o que é. — Ao ver que o rosto de Scragger ficara ainda mais solene, ele deu o golpe fatal. — Você pode confiar em mim, eu sou seu amigo.

— Sim, sim, eu sei disso, companheiro.

Kasigi observou o rosto de Scragger e esperou, viu o peixe se debatendo no anzol que estava pendurado numa linha muito fina e muito forte, presa a uma pá de rotor quebrada, a um aperto de mão, ao perigo compartilhado a bordo do Rikumaru, a uma mesma guerra, e ao respeito comum que tinham pelos companheiros mortos. Tantos companheiros mortos, todos tão jovens. Sim, pensou, sentindo uma raiva súbita, mas se tivéssemos um décimo dos aviões deles, dos seus armamentos e navios, e uma vigésima parte do seu petróleo e da sua matéria-prima, nós teríamos sido invencíveis e o imperador jamais teria sido obrigado a terminar a guerra daquele jeito. Nós seríamos invencíveis — se não fosse pela bomba, pelas duas bombas. Que os deuses castiguem por toda a eternidade aqueles que inventaram a bomba que quebrou a resistência do imperador.

— O que é?

— Eu, ahn, não posso contar-lhe agora, desculpe. Kasigi captou sinais de perigo.

— Por que, meu amigo? Eu lhe asseguro de que pode confiar em mim — disse, procurando tranqüilizá-lo.

— Sim... sim, mas não depende só de mim. Amanhã, em Al Shargaz. Tenha paciência, sim?

— Se é assim tão importante, eu deveria saber já, você não acha? — Mais uma vez Kasigi esperou. Ele conhecia o valor da paciência e do silêncio numa hora dessas. Não havia necessidade de lembrar ao homem a sua dívida para com ele. Ainda não.

Scragger estava se lembrando. Em Bandar Delam, Kasigi salvou o meu pescoço, não há dúvida. A bordo do navio dele, em Siri, ele provou que tem coragem e hoje provou que é um bom amigo, ele não precisava ter tido todo aquele trabalho e agido com tanta rapidez. Para ele não faria diferença esperar mais um dia ou dois.

Ele verificou os instrumentos e o espaço lá fora e não viu nenhum sinal de perigo, Kish apareceria a estibordo dentro de pouco tempo e ele olhou para Kasigi. Kasigi olhava para a frente, com o rosto forte e bonito bastante preocupado. Que merda, meu velho, se você não cumprir o que prometeu, Zataki vai ficar fora de si de raiva. Mas você não pode fazê-lo. Não pode, meu velho, e é duro ver você aí sentado, sem me dizer o quanto eu lhe devo.

— Kish, aqui é HST. Aproximando-me de Kish, firme em trezentos.

— Aqui é Kish. Mantenha-se em trezentos. Há tráfego vindo do leste em três mil.

— Eu os tenho no meu campo visual. — Eram dois caças. Ele os apontou para Kasigi que não os havia localizado. — São F14, provavelmente vindo de Bandar Abbas — disse. Kasigi não respondeu, só balançou a cabeça e isto fez Scragger sentir-se ainda pior. Os minutos se arrastaram.

Então Scragger decidiu, odiando ser forçado a dizer isto:

— Sinto muito, mas você vai ter que esperar até Al Shargaz. Só Andy Gavallan pode ajudá-lo, eu não posso.

— Ele pode ajudar? De que maneira? Qual é o problema? Depois de uma pausa, Scragger disse:

— Se há alguém que pode ajudar, é ele. Vamos deixar as coisas como estão, meu velho.

Kasigi percebeu a sua determinação mas não desistiu, deixando as coisas ficarem como estavam por enquanto, com a cabeça fervilhando com outros sinais de perigo. O fato de Scragger não ter caído na sua armadilha, não tendo revelado o segredo, fez com que ele o respeitasse ainda mais. Mas isto não o desculpa, pensou furioso. Ele disse o suficiente para me pôr de sobreaviso, agora depende de mim descobrir o resto. Então Gavallan é a chave? Para quê?

A cabeça de Kasigi estava prestes a explodir. Eu não prometi àquele louco do Zataki que começaríamos a trabalhar imediatamente? Como é que esses homens têm a coragem de pôr em risco todo o nosso projeto — o nosso Projeto

Nacional. Sem helicópteros, não podemos começar. É uma traição contra o Japão! O que será que eles estão tramando?

Com grande esforço, ele manteve a fisionomia tranqüila.

— Não há dúvida de que procurarei Gavallan o mais cedo possível, e vamos torcer para você chefiar a nossa nova operação, hein?

— Andy Gavallan é quem vai decidir, depende dele.

Não tenha tanta certeza, estava pensando Kasigi, porque aconteça o que acontecer, eu conseguirei os helicópteros imediatamente — os seus, os da Guerney, não me importa quais. Mas pelos meus ancestrais samurais, a Irã-Toda não vai mais ser colocada em perigo! Não vai! E nem eu!


53


TABRIZ — NO PALÁCIO DO KHAN: 10:50H. Azadeh seguiu Ahmed através do quarto mobiliado em estilo ocidental, até perto da cama alta, e agora que estava outra vez no interior daquelas paredes, sentiu a sua pele se arrepiar de medo. Sentada ao lado da cama, estava uma enfermeira vestindo um uniforme branco engomado, com um livro aberto no colo, observando-os com curiosidade através dos óculos. As janelas estavam cobertas com pesadas cortinas de brocado para evitar correntes de ar. As luzes tinham sido diminuídas e o fedor do velho se espalhava pelo quarto.

Os olhos do khan estavam fechados, seu rosto pálido e a respiração difícil; seu braço estava ligado a um frasco de soro pendurado ao lado da cama. Semi-adormecida numa cadeira ali perto, estava Aysha, pequena e encolhida, com o cabelo despenteado e o rosto molhado de lágrimas. Azadeh sorriu para ela, com pena; depois disse para a enfermeira, com uma voz que não era a sua:

— Como está Sua Alteza?

— Bem. Mas não pode agitar-se nem ser perturbado — respondeu a enfermeira, num turco hesitante. Azadeh olhou para ela e viu que era européia, tinha cerca de cinqüenta anos, cabelos pintados de castanho e uma cruz vermelha na manga.

— Oh, a senhora é inglesa ou francesa?

— Escocesa — respondeu a mulher, em inglês, francamente aliviada, com um ligeiro sotaque. Ela falou baixo, observando o khan. — Sou a irmã Bain, do Hospital de Tabriz, e o paciente está indo bem dentro do quadro, considerando-se que não obedece às ordens. E quem é você, por favor?

— Sou a filha dele, Azadeh. Acabei de chegar de Teerã. Ele mandou me buscar. Nós... nós viajamos a noite inteira.

— Ah, sim? — disse, surpresa de que um homem tão feio pudesse ter gerado uma filha tão linda. — Se me permitir uma sugestão, mocinha, seria melhor deixá-lo dormir. Assim que ele acordar, eu digo que você está aqui e mando chamá-la. É melhor que ele durma.

Ahmed perguntou, irritado:

— Por favor, onde está o guarda de Sua Alteza?

— Não há necessidade de homens armados num quarto de doente. Eu o mandei embora.

— Haverá sempre um guarda aqui, a menos que o khan o mande sair ou eu o mande sair. Zangado, Ahmed virou as costas e saiu.

— É só um costume, irmã — disse Azadeh.

— Sim, muito bem. Mas este é outro costume que não faz nenhuma falta. Azadeh tornou a olhar para o pai, mal o reconhecendo, tentando controlar o terror que tomou conta dela. Mesmo neste estado, pensou, mesmo neste estado ele ainda pode destruir a todos nós. A Hakim e a mim — ele ainda tem o seu cão de guarda, Ahmed.

— Por favor, diga a verdade, como está ele?

As rugas do rosto da enfermeira tornaram-se ainda mais pronunciadas.

— Estamos fazendo todo o possível.

— Seria melhor para ele estar em Teerã?

— Sim, se ele vier a ter outro ataque, sim, seria melhor. — Irmã Bain tirou o pulso dele enquanto falava. — Mas agora eu não acharia conveniente removê-lo, de jeito nenhum, por enquanto não. — Ela fez uma anotação numa ficha e depois olhou para Aysha. — Você podia dizer à senhora que não há necessidade dela ficar aqui, ela deveria descansar, pobre criança.

— Desculpe, mas eu não posso interferir. Desculpe, mas isto também é um costume. É provável... é provável que ele tenha outro ataque?

— Nunca se sabe, mocinha, isto está nas mãos de Deus. Nós esperamos o melhor. — Elas viraram a cabeça quando a porta se abriu. Hakim estava lá, sorrindo. Os olhos de Azadeh se iluminaram e ela disse para a enfermeira:

— Por favor, chame-me assim que Sua Alteza acordar — depois saiu depressa do quarto e fechou a porta, e o abraçou. — Oh, Hakim, querido, já faz tanto tempo — disse sem fôlego. — Oh, é mesmo verdade?

— Sim, sim, é, mas como... — Hakim parou ao ouvir passos. Ahmed e um guarda surgiram no corredor e vieram até eles. — Estou contente que você esteja de volta, Ahmed — ele disse educadamente. — Sua Alteza também vai ficar muito contente.

— Obrigado, Alteza. Aconteceu alguma coisa durante a minha ausência?

— Não, a não ser que o coronel Fazir esteve aqui hoje de manhã para falar com papai.

Ahmed ficou gelado.

— Ele teve permissão para entrar?

— Não. Você deixou instruções para que ninguém fosse admitido sem a permissão de Sua Alteza; ele estava dormindo na hora e tem estado dormindo quase o dia inteiro. Eu tenho verificado de hora em hora e a enfermeira diz que ele continua na mesma.

— Ótimo. Obrigado. O coronel deixou algum recado?

— Só que estava indo para Julfa hoje conforme tinha combinado com o seu sócio. Isso faz algum sentido para você?

— Não, Alteza — Ahmed mentiu tranqüilamente. Ele olhou de um para o outro mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Hakim disse:

— Nós estaremos no Salão Azul; por favor, avise-nos assim que papai acordar.

Ahmed os viu sair de braços dados pelo corredor, o rapaz alto e bonito, a irmã esguia e atraente. Traidores? Não havia muito tempo para tirar a prova, pensou. Voltou para o quarto do doente e viu a palidez do khan, e suas narinas se rebelaram contra o cheiro. Ficou de cócoras, sem se importar com a enfermeira, e começou a sua vigília.

O que será que o filho de um cão do Fazir queria? perguntou a si mesmo. No sábado à noite, quando Hashemi Fazir e Armstrong tinham voltado de Julfa sem Mzytryk, Fazir pedira para ver o khan. Ahmed estava presente quando o khan os recebeu e disse estar tão espantado quanto eles pelo fato de Mzytryk não estar no helicóptero.

— Voltem amanhã. Se o homem me trouxer uma carta, vocês poderão lê-la — tinha dito o khan.

— Obrigado, mas nós vamos esperar. O Chevrolet não pode estar muito longe.

Então eles esperaram, com o khan nervoso mas sem poder fazer nada, com os homens de Hashemi emboscados em volta do palácio. Uma hora mais tarde o Chevrolet chegara. Ele próprio tinha admitido o motorista enquanto Hashemi e o infiel que falava farsi se escondiam num quarto ao lado.

— Eu tenho uma mensagem particular para Sua Alteza — tinha dito o soviético.

No quarto do khan, o soviético disse:

— Alteza, eu devo lhe entregar isto quando o senhor estiver sozinho.

— Entregue-me agora, Ahmed é o meu conselheiro de toda confiança. Entregue-me! — Relutantemente, o homem obedeceu e Ahmed recordou a vermelhidão que se espalhou pelo rosto do khan assim que ele começou a ler

— Tem alguma resposta? — o soviético perguntou agressivamente. Engasgado de raiva, o khan balançara negativamente a cabeça e mandara o homem embora. Depois entregara a carta a Ahmed. Ela dizia: "Meu amigo, fiquei chocado ao saber da sua doença e estaria com você agora se não fosse obrigado a ficar aqui devido a assuntos urgentes. Tenho más notícias para você: é possível que você e a sua rede de espionagem tenham sido revelados para o Serviço Secreto ou a Savama — você sabia que aquele vira-casaca do Abrim Pahmudi agora chefia esta nova versão da Savak? Se você foi denunciado para

Pahmudi, prepare-se para fugir imediatamente ou em breve será levado pilara a câmara de tortura. Eu alertei o nosso pessoal para ajudá-lo caso seja necessário. Caso eu ache seguro, chegarei na terça-feira ao anoitecer. Boa sorte. O khan não tivera escolha a não ser mostrar a mensagem para os dois homens.

— Isso é verdade? Com relação a Pahmudi?

— Sim. Ele é um velho amigo seu, não? — tinha dito Fazir, provocando-o.

— Não... não é. Saiam daqui!

— Certamente, Alteza. Enquanto isso, o palácio vai ficar sob observação. Não há necessidade de fugir. Por favor, não faça nada para impedir a chegada de Mzytryk na terça-feira, não faça nada para encorajar mais revoltas no Azerbeijão. Quanto a Pahmudi e à Savama, eles não podem fazer nada aqui sem a minha aprovação. Eu sou a lei em Tabriz agora. Obedeça e eu o protegerei, desobedeça e você será o seu pishkesh.

Então os dois homens tinham saído, e o khan explodira de raiva, mais furioso do que Ahmed jamais o vira. O paroxismo se tornou pior e depois cessou subitamente, com o khan caído no chão e Ahmed olhando para ele, pensando que estivesse morto, mas não estava. Estava apenas com uma palidez cadavérica e tremia, com a respiração sufocada.

— Seja como Deus quiser — murmurou Ahmed, sem querer passar de novo por uma situação daquelas.

NO SALÃO AZUL: 11:15H. Quando estavam a sós, Hakim abraçou Azadeh, levantando-a no ar.

— Oh, é maravilhoso, maravilhoso, ver você de novo.. — ela disse. Mas ele murmurou:

— Fale baixo, Azadeh, há ouvidos em toda a parte e alguém pode interpretar mal o que dissermos e tornar a contar mentiras.

— Najoud? Que ela seja amaldiçoada para sempre e...

— Psss, querida, ela não pode nos prejudicar agora. Eu sou o herdeiro oficial.

— Oh, conte-me o que aconteceu, conte-me tudo!

Eles se sentaram no longo sofá de almofadas e Hakim começou a talar com rapidez.

— Primeiro sobre Erikki. O resgate é de dez milhões de riais, por ele e o 212 e..

— Papai pode pechinchar e pagar, ele pode pagar com certeza, e depois procurá-los e destruí-los.

— Sim, sim, é claro que pode e ele me disse na frente de Ahmed que assim que você voltasse ele iniciaria as negociações e é verdade que ele me declarou seu herdeiro desde que eu jurasse por Deus que cuidaria do jovem Hassan como cuidaria de você. É claro que eu jurei imediatamente, e disse que você também juraria por Deus fazer o mesmo, que nós dois iríamos jurar que ficaríamos em Tabriz, eu para aprender como sucedê-lo e você para me ajudar, oh, como vamos ser felizes!

— É só isso que temos que fazer? — perguntou, incrédula.

— Sim, sim, é só isso. Ele me declarou seu herdeiro diante de toda a família. Eles pareciam que iam morrer, mas isso não tem importância, papai declarou as condições na frente deles, eu concordei imediatamente, é claro, assim como você vai concordar. Por que não?

— É claro, é claro, qualquer coisa! Deus está velando por nós! — Mais uma vez ela o abraçou, enterrando o rosto no seu ombro, para secar as lágrimas de alegria que estava derramando. Durante toda a viagem de volta de Teerã, uma viagem horrível, com Ahmed mudo, ela tinha pensado, aterrorizada, nas tais condições. Mas e agora? — É inacreditável, Hakim, é como uma mágica! É claro que cuidaremos do pequeno Hassan e você passará o domínio para ele ou os seus sucessores se é isto o que papai deseja. Que Deus nos proteja e proteja também a ele e a Erikki, e Erikki poderá pilotar o quanto quiser, por que não? Oh, vai ser maravilhoso. — Ela secou as lágrimas. — Oh, eu devo estar horrível.

— Você está linda. Agora conte-me o que aconteceu com você. Eu só sei que você foi apanhada na aldeia com... com o Sabotador inglês e que conseguiram escapar.

— Foi um outro milagre, só com a ajuda de Deus, Hakim, mas na hora foi horrível, aquele mulá malvado... eu não me lembro como conseguimos fugir, só do que Johnny, do que Johnny me contou. O meu Johnny, Hakim.

Ele arregalou os olhos.

— O Johnny da Suíça?

— Sim, sim, era ele; era ele o oficial britânico.

— Mas como... isso parece impossível.

— Ele salvou a minha vida, Hakim, há tanto o que contar!

— Quando papai soube do que aconteceu na aldeia ele... você sabe que o mulá foi morto pelos Faixas Verdes, não sabe?

— Eu não me lembro disso, mas Johnny me contou.

— Quando papai soube do que aconteceu na aldeia, ele fez Ahmed arrastar o calênder até aqui, interrogou-o, depois mandou-o de volta, ordenou que ele fosse apedrejado, que as mãos do açougueiro fossem cortadas e que a aldeia fosse incendiada. Incendiar a aldeia foi idéia minha... aqueles cães!

Azadeh estava terrivelmente chocada. Incendiar a aldeia inteira era uma vingança terrível demais.

Mas Hakim não deixou que nada perturbasse a sua euforia.

— Azadeh, papai retirou o guarda que me vigiava e eu posso ir aonde quiser. Eu cheguei até a apanhar um carro e ir a Tabriz hoje, sozinho. Todo mundo me trata como herdeiro, toda a família, até Najoud, embora eu saiba que ela está se roendo de raiva. — Ele contou como tinha sido arrastado de Khoi até lá, pensando que ia ser morto ou mutilado. — Você não se lembra quando eu fui banido, ele me amaldiçoou e jurou que o xá de Abbas sabia como lidar com filhos traidores?

Ela estremeceu, recordando aquele pesadelo, as imprecações e o ódio do pai, tão injusto, uma vez que eles eram inocentes.

— O que foi que o fez mudar? Por que ele mudaria com relação a nós, a você?

— Foi a Vontade de Deus. Deus abriu os olhos dele. Ele deve saber que está perto da morte e precisa tomar providências... ele é o khan. Talvez ele esteja com medo e queira se redimir. Nós não éramos culpados de nada. Que importância tem o motivo? Eu não me importo. Nós estamos finalmente livres do seu jugo, livres.

NO QUARTO DO DOENTE: 11:16H. O khan abriu os olhos. Sem mexer com a cabeça, ele olhou em volta. Ahmed, Aysha e o guarda. Nenhuma enfermeira. Então ele se concentrou em Ahmed que estava sentado no chão.

— Você a trouxe? — ele pronunciou as palavras com dificuldade.

— Sim, Alteza. Há poucos minutos.

A enfermeira entrou no seu campo de visão.

— Como o senhor se sente, Excelência? — ela perguntou em inglês, conforme ele lhe ordenara, dizendo-lhe que o turco dela era horrível.

— Na mesma.

— Deixe-me ajeitá-lo um pouco. — Com grande ternura e cuidado, e força, ela o ergueu e ajeitou os travesseiros e a cama. — O senhor precisa da garrafa, Excelência?

O khan pensou um pouco.

— Sim.

Ela a colocou e ele se sentiu embaraçado por isto estar sendo feito por uma infiel, mas desde que ela chegara, ele percebera que ela era tremendamente eficiente, muito sábia e muito boa, a melhor de Tabriz, Ahmed tinha providenciado isso — muito melhor do que Aysha, que se mostrara completamente inútil. Ele viu Aysha sorrir timidamente para ele, com seus olhos grandes e assustados. Eu imagino se jamais tornarei a enfiá-lo de novo, até o fim, duro como um pau, como da primeira vez, incentivado pelas suas lágrimas e gemidos.

— Excelência?

Ele aceitou a pílula e o gole de água e ficou satisfeito com o frescor das mãos da enfermeira que guiaram o copo. Aí tornou a ver Ahmed e sorriu para ele, satisfeito por ter de volta o seu confidente.

— Fez boa viagem?

— Sim, Alteza.

— Ela veio de boa vontade? Ou à força? — Ahmed sorriu.

— Foi como o senhor planejou, Alteza. De boa vontade. Exatamente como o senhor planejou.

— Eu acho que o senhor não deveria falar tanto, Excelência — disse a enfermeira.

— Dê o fora.

Ela bateu delicadamente no ombro dele.

— O senhor quer comer alguma coisa, talvez um pouco de horisht'!

— Halvah.

— O médico disse que os doces não fazem bem ao senhor.

— Halvah!

A irmã Bain suspirou. O médico tinha proibido os doces e depois tinha dito:

— Mas se ele insistir, a senhora pode dar, quantos ele quiser, que diferença faz isso agora? Insha'Allah. — Ela os encontrou e enfiou um na boca do khan e limpou a saliva, e ele o mastigou com prazer, tão liso e tão doce.

— A sua filha chegou de Teerã, Excelência — ela disse. — Ela me pediu para avisá-la assim que o senhor acordasse.

Abdullah Khan estava achando muito estranho falar. Ele tentava pronunciar as frases, mas sua boca não se abriu quando devia, e as palavras ficavam na sua mente por um longo tempo e então, quando uma forma simplificada do que ele queria dizer saía de sua boca, as palavras não eram bem formadas, embora devessem ser. Mas por quê? Eu não estou fazendo nada de um modo diferente do que antes. Antes de quê? Eu não me lembro, só me lembro de uma grande escuridão e do meu sangue rugindo e de estar sendo picado por agulhas em brasa e de não poder respirar.

Eu agora posso respirar, ouvir e ver perfeitamente e a minha mente está trabalhando com clareza e está cheia de planos tão bem feitos como sempre. Só que não consigo colocá-los para fora.

— Como?

— O quê, Excelência? — Mais uma vez a demora.

— Como falar melhor?

— Ah — ela disse, compreendendo imediatamente, uma vez que tinha muita experiência com ataques. — Não se preocupe, o senhor terá um pouco de dificuldade no início. Conforme o senhor for melhorando, vai recuperar o controle de tudo. O senhor deve descansar o máximo possível, isso é muito importante. Descansar e tomar os remédios, e ter paciência, e ficará em forma novamente. Está bem?

— Sim.

— O senhor quer que eu mande chamar a sua filha? Ela estava muito ansiosa em falar com o senhor. Uma moça tão bonita.

Pausa.

— Mais tarde. Vejo mais tarde. Saia todo mundo... menos Ahmed. — A irmã Bain hesitou, depois tornou a bater gentilmente na mão dele.

— Eu vou lhe dar dez minutos, se o senhor prometer que depois vai descansar. Está bem?

— Sim.

Quando ficaram a sós, Ahmed chegou mais perto da cama.

— Sim, Alteza?

— Que horas são?

Ahmed consultou o relógio. Era de ouro trabalhado e ele o admirava muito.

— São quase onze e meia de terça-feira.

— Petr?

— Não sei, Alteza. — Ahmed contou-lhe o que Hakim tinha dito. — Se Petr vier para Julfa hoje, Fazir estará esperando por ele.

— Insha'Allah. Azadeh?

— Ela estava realmente preocupada com a sua saúde e concordou em vir imediatamente. Há poucos momentos eu a vi junto com o seu filho. Eu tenho certeza que ela irá concordar com tudo para protegê-lo, assim como ele o fará para protegê-la. — Ahmed estava tentando dizer tudo de forma clara e concisa, sem querer cansá-lo. — O que o senhor deseja que eu faça?

— Tudo. — Tudo o que discuti com você e um pouco mais, pensou o khan, com prazer, com o seu entusiasmo aumentando: Agora que Azadeh está de volta, corte o pescoço do mensageiro do pedido de resgate, para que os nativos façam o mesmo com o piloto; descubra se aqueles dois são traidores por todos os meios possíveis, e se forem, arranque os olhos de Hakim e mande-a para o norte, para Petr. Se não forem, pique Najoud em pedacinhos e os mantenha presos aqui, até que o piloto esteja morto, depois mande-a para o norte. E Pahmudi! Agora que estou oferecendo uma recompensa pela cabeça dele que tentaria até a Satã, Ahmed, ofereça-a primeiro a Fazir e diga-lhe que eu quero vingança, eu quero que Pahmudi seja torturado envenenado, picado, mutilado, castrado...

O seu coração começou a falhar, palpitando e ele levantou a mão para esfregar o peito, mas a mão não se moveu. Nem uma polegada. Mesmo quando ele olhou para ela, caída na cama, desejando que se movesse, não houve nenhum movimento. Nada. Nem sensação. Nem na mão e nem no braço. O medo tomou conta dele.

Não tenha medo, a enfermeira disse, ele lembrou a si mesmo, desesperado, com ondas rugindo no seu ouvido. Você teve um ataque, só isso, não foi muito forte e o médico disse que muitas pessoas sofrem ataques. O velho Komargi teve um há um ano e ainda está vivo e ativo e afirma que ainda dorme com a sua jovem esposa. Com tratamento moderno... você é um bom muçulmano e irá para o paraíso, então não há nada a temer, nada a temer, nada a temer... nada a temer, se eu morrer, eu vou para o paraíso...

Eu não quero morrer, gemeu. Eu não quero morrer, tornou a gemer, mas foi só na sua cabeça, não emitiu nenhum som.

— O que é, Alteza?

Ele viu a ansiedade de Ahmed e se acalmou um pouco. Graças a Deus eu tenho Ahmed. Eu posso confiar em Ahmed, pensou, banhado em suor. O que é mesmo que eu quero que ele faça?

— Família toda aqui mais tarde. Primeiro Azadeh, Hakim, Najoud... compreende?

— Sim, Alteza. Para confirmar a sucessão?

— Sim.

— Eu tenho a sua permissão para interrogar Sua Alteza?

Ele balançou a cabeça concordando, com as pálpebras pesadas, esperando que a dor no peito diminuísse. Enquanto esperava, mexeu com as pernas, sentindo os pés dormentes. Mas nada se moveu, não da primeira vez, só da segunda e só com muito esforço. O terror voltou a tomar conta dele. Em pânico, ele mudou de idéia:

— Pague o resgate rapidamente, traga o piloto para cá, Erikki aqui, eu para Teerã, compreende? — Ele viu Ahmed concordar com a cabeça. — Depressa — murmurou e fez sinal para que ele saísse, mas a sua mão esquerda não se moveu. Apavorado, tentou a mão direita e conseguiu, com dificuldade, mas conseguiu. Parte do seu pânico desapareceu. — Pague resgate agora. Mantenha segredo. Chame a enfermeira.

NO DESVIO DE JULFA: 18:25H. Hashemi Fazir e Armstrong estavam mais uma vez emboscados debaixo das árvores cobertas de neve. Lá embaixo, o Chevrolet esperava, com os faróis apagados, as janelas abertas, dois homens no banco da frente, como da outra vez. Lá no fundo da encosta, atrás deles, nos dois lados da estrada Julfa-Tabriz, havia uma centena de homens a postos para interceptar o carro. O sol tinha desaparecido sobre as montanhas e agora o céu estava escurecendo depressa.

— Ele não tem mais muito tempo — tornou a resmungar Hashemi.

— Da outra vez ele chegou ao anoitecer. Ainda não está escuro.

— Maldito seja ele e todos os seus ancestrais. Estou gelado até os ossos.

— Não falta muito agora, Hashemi, meu velho! — Se dependesse dele, Armstrong sabia que esperaria eternamente para agarrar Mzytryk, aliás Suslev, aliás Brodnin. Ele se oferecera para esperar em Tabriz depois do fracasso de sábado. — Deixe os homens comigo, Hashemi, eu preparo a emboscada na terça-feira. Você volta para Teerã, eu espero aqui, o apanho e levo para você.

— Não, vou partir imediatamente e voltarei na terça-feira bem cedo. Você pode ficar aqui.

'Aqui' era um esconderijo, um apartamento que dava para a Mesquita Azul, quente e cheio de estoques de uísque.

— Você estava dizendo a verdade quando falou para Abdullah Khan que agora você é a lei aqui e que a Savama e Pahmudi não podem fazer nada sem o seu apoio?

— Sim, oh, sim.

— Pahmudi é mesmo uma obsessão para Abdullah. Por que isso?

— Pahmudi fez com que Abdullah fosse expulso de Teerã.

— Cristo! Por quê?

— Uma velha inimizade, de muitos anos. Desde que Abdullah se tornou khan em 1953, ele advertiu agressivamente vários primeiros-ministros e funcionários da corte para serem cautelosos com relação a reformas políticas e as chamadas modernizações. Pahmudi, o intelectual bem-educado, treinado na Europa, o desprezava, foi sempre adversário dele, sempre impedindo que ele tivesse acesso ao xá. Infelizmente para o xá, Pahmudi tinha a confiança do xá.

— Para traí-lo no fim.

— Oh, sim, Robert, talvez até desde o começo. A primeira vez que Pahmudi e Abdullah se enfrentaram publicamente foi em 1963, a respeito das reformas propostas pelo xá dando às mulheres o direito de votar, estendendo esse direito aos não-muçulmanos e permitindo que não-muçulmanos fossem eleitos para o Majilis. É claro que Abdullah, assim como todo iraniano que fosse capaz de raciocinar, sabia que isso provocaria uma reação imediata em todos os líderes religiosos, especialmente Khomeini, que estava começando a aparecer naquela época.

— É inacreditável que ninguém conseguisse ter acesso ao xá — dissera Armstrong — para avisá-lo.

— Muitos o fizeram, mas ninguém com bastante influência sobre ele. A maioria apoiou Khomeini, publicamente ou em segredo, eu o fiz. Abdullah perdeu um round atrás do outro para Pahmudi. Contra os nossos conselhos, o xá mudou o calendário, do islâmico, que era tão sagrado para os muçulmanos quanto o a.C e o d.C. para os cristãos e tentou forçar uma contagem falsa até Ciro, o Grande... é claro que isso revoltou todos os muçulmanos e depois de quase haver uma revolução, ele voltou atrás... — Hashemi terminou o seu drinque e se serviu de outro. — Então, publicamente, Pahmudi disse a Abdullah para dar o fora, literalmente. Eu tenho tudo isso documentado. Disse que ele era estúpido, atrasado, que estava vivendo na Idade Média, "o que não é de espantar, vindo do Azerbeijão", e mandou que ele ficasse longe de Teerã até que fosse chamado ou seria preso. O pior é que debochou dele e fez publicarem algumas caricaturas dele.

— Eu nunca pensei que Pahmudi fosse tão imbecil — disse Armstrong, para encorajá-lo a continuar, imaginando se ele acabaria se distraindo e revelando alguma coisa de valor.

— Graças a Deus ele é. E é por isso que os seus dias estão contados. Armstrong recordou a estranha confiança que Hashemi tinha demonstrado e o quanto ele se sentira perturbado. Esta sensação permanecera com ele durante todo o tempo em que esperara a volta de Hashemi para Tabriz, sem coragem de andar pelas ruas que ainda estavam cheias de grupos rivais tentando dominá-las. Durante o dia, a polícia e o exército legalista mantinham a paz em nome do aiatolá. À noite, era difícil, se não impossível, deter pequenos grupos de fanáticos inclinados à violência, que aterrorizavam certas partes da cidade:

— Nós ainda podemos esmagá-los facilmente se aquele velho demônio do Abdullah nos ajudar. — Dissera Hashemi, zangado.

— Abdullah Khan ainda tem tanto poder assim, mesmo estando meio morto?

— Oh, sim, ele ainda é o chefe hereditário de uma grande tribo. Sua riqueza, oculta e real, poderia rivalizar-se com a de um xá, não com a do xá Muhammad Reza, mas com certeza com a do seu pai.

— Ele vai morrer muito breve. E depois?

— O seu herdeiro terá o mesmo poder, presumindo-se que aquele pobre filho da puta do Hakim fique vivo para usá-lo. Eu já lhe contei que ele foi declarado herdeiro?

— Não, o que há de estranho nisso?

— Hakim é o filho mais velho do khan que foi banido para Khoi há anos, em desgraça. Ele foi trazido de volta e reinstaurado nos seus direitos.

— Por quê? Por que ele foi banido?

— O mesmo de sempre. Ele foi apanhado conspirando contra o pai do mesmo modo que Abdullah conspirou contra o pai dele.

— Você tem certeza?

— Não, mas curiosamente o pai de Abdullah morreu na fazenda do seu Mzytryk, em Tbilisi. — Hashemi sorriu sardonicamente com o efeito da sua informação..— De apoplexia.

— Há quanto tempo você sabe disso?

— Há bastante tempo. Nós vamos perguntar a Mzytryk se isso é verdade quando o agarrarmos. Nós o agarraremos, embora isso fosse mais fácil com Abdullah vivo, não há a menor dúvida. — Hashemi ficou sério. — Eu espero que ele fique vivo tempo suficiente para ordenar que nos dêem apoio para terminar com a guerra. Depois ele pode apodrecer. Eu odeio aquele velho safado pela sua traição e por ter-nos usado em proveito próprio, foi por isso que eu o ameacei com Pahmudi. É claro que eu o odeio, mas mesmo assim jamais o entregaria a Pahmudi, à sua maneira, ele é um patriota. Bem, vou para Teerã, Robert, você sabe onde me encontrar. Você gostaria de uma companhia na sua cama?

— Só de água corrente quente e fria.

— Você deveria experimentar um pouco, tentar um garoto para variar. Oh, pelo amor de Deus, não fique tão envergonhado. Você me desaponta tanto, não sei por que sou tão paciente com você.

— Obrigado.

— Vocês, ingleses, são todos tão depravados com relação a sexo, a maioria de vocês não passa de homossexuais enrustidos ou declarados, o que o resto acha extremamente desagradável e pecaminoso, contra as leis de Deus, o que não é. E no entanto na Arábia, onde a relação entre homens é historicamente normal e comum, porque pela lei não se pode tocar numa mulher a menos que você seja casado com ela, o homossexualismo tal como você o entende é desconhecido. Um homem prefere sodomia, e daí? Isto não interfere com a sua masculinidade aqui. Permita-se ter uma experiência nova, Robert. Enquanto isso, ela ficará aqui para você usá-la se desejar. Não me insulte pagando-a.

"Ela" era uma caucasiana, cristã, atraente e ele dormira com ela sem necessidade nem paixão, apenas por educação, e agradecera e deixara-a dormir na cama e ficar no dia seguinte para limpar e cozinhar e distraí-lo e então, antes dele acordar hoje de manhã, ela desaparecera.

Agora Armstrong olhava para o céu a ocidente. Estava muito mais escuro do que antes, a claridade estava indo embora depressa. Eles esperaram mais meia hora.

— O piloto não poderá pousar agora, Robert. Vamos embora.

— O Chevrolet ainda não se moveu. — Armstrong pegou a automática e checou-a. — Eu vou na hora em que o Chevrolet for, certo?

O iraniano olhou para ele, com o rosto fechado.

— Há um carro lá embaixo, estacionado de frente para Tabriz. Ele o levará para o nosso esconderijo. Espere por mim lá. Eu vou voltar para Teerã; há alguns assuntos importantes que não podem esperar, mais importantes do que este filho de um cão. Eu acho que ele sabe que estamos atrás dele.

— Quando você estará de volta?

— Amanhã. Ainda há o problema do khan. — E saiu andando na escuridão, praguejando.

Armstrong o viu afastar-se, satisfeito por ficar sozinho. Hashemi estava ficando cada vez mais difícil, mais perigoso do que o normal, sempre pronto para explodir, com os nervos à flor da pele, tenso demais para um chefe do Serviço Secreto com tanto poder e um bando de assassinos particulares. Robert, está na hora de começarmos uma retirada. Eu não posso, ainda não. Vamos, Mzytryk, há luar suficiente para pousar, pelo amor de Deus.

Pouco depois das dez horas, os faróis do Chevrolet se acenderam. Os dois homens levantaram os vidros e partiram. Cuidadosamente, Armstrong acendeu um cigarro, com a mão enluvada protegendo a pequena chama contra o vento. A fumaça causou-lhe um enorme prazer. Quando acabou de fumar, ele atirou a ponta de cigarro na neve e apagou-a. Então ele também partiu.

PERTO DA FRONTEIRA ENTRE O IRÃ E A UNIÃO SOVIÉTICA: 23:05H. Erikki fingia dormir na pequena cabana, com um cavanhaque crescendo. Um pavio, flutuando no óleo, dentro de uma velha tigela de barro, lançava estranhas sombras. Restos de madeira incandescente brilhavam dentro da lareira de pedra. Ele abriu os olhos e olhou em volta. Não havia mais ninguém na cabana. Sem fazer barulho, ele escorregou por baixo dos cobertores e peles de animais. Estava inteiramente vestido. Calçou as botas, certificou-se de que sua faca estava no cinto e foi até a porta, abrindo-a devagar.

Por um instante, ficou lá, escutando, com a cabeça ligeiramente de lado. Camadas de nuvens encobriam a lua e o vento balançava ligeiramente os galhos do pinheiro. A aldeia estava silenciosa sob a camada de neve. Ele não viu nenhum guarda. Não havia nenhum movimento perto do alpendre onde o 212 estava estacionado. Movendo-se como um caçador, ele rodeou as cabanas e se dirigiu para o alpendre.

O 212 estava coberto, com peles e cobertores nos lugares mais importantes, todas as portas fechadas. Através de uma janela lateral da cabine, ele pode ver dois nativos deitados nos assentos, enrolados em cobertores, roncando. Havia rifles ao lado deles. Ele avançou mais um pouco. O guarda na cabine do piloto estava abraçado com a arma, inteiramente acordado. E ainda não tinha visto Erikki. Passos silenciosos se aproximaram, com o cheiro de cabras e ovelhas e tabaco velho a precedê-los.

— O que foi, piloto? — perguntou baixinho o jovem xeque Bayazid.

— Eu não sei.

Agora o guarda escutou a voz deles e espiou pela janela da cabine, saudou o seu líder e perguntou qual era o problema. Bayazid respondeu:

— Nada. — E fez sinal para ele continuar de guarda e observou a noite Pensativamente. Nos poucos dias em que o estrangeiro estava na aldeia, ele acabara por apreciá-lo e respeitá-lo, como homem e como caçador. Hoje ele o levara para a floresta, para testá-lo, e depois, como um outro teste e para seu próprio prazer, dera-lhe um rifle. O primeiro tiro de Erikki matou um cabrito montes bem distante, com tanta perfeição quanto ele o teria matado. Dar o rifle a ele tinha sido excitante, sem saber o que o estrangeiro faria, se ele iria tentar virá-lo contra ele ou fugir para a floresta, onde poderia caçá-lo com enorme prazer. Mas o Ruivo da Faca apenas caçara e guardara os seus pensamentos para si mesmo, embora todos pudessem sentir a violência aflorando.

— Você percebeu alguma coisa. Perigo? — perguntou.

— Eu não sei. — Erikki olhou para a escuridão e deu uma olhada em volta. Não havia nenhum outro som além do vento, uns poucos animais noturnos caçando, nada de estranho. Mesmo assim ele estava inquieto. — Ainda não teve notícias?

— Não, mais nada. — Naquela tarde, dois dos mensageiros tinham voltado.

— O khan está muito doente. Quase morto. — dissera o homem. — Mas prometeu responder logo.

Bayazid tinha repetido tudo fielmente para Erikki.

— Piloto, seja paciente — disse, não querendo nenhum problema. O que é que o khan tem?

— Está doente. O mensageiro disse que soube que ele está doente, muito doente. Doente!

— E se ele morrer, o que acontece?

— O herdeiro dele vai pagar. Ou não vai pagar, Insha 'Allah. — O xeque ajeitou o rifle no ombro. — Venha abrigar-se, está frio. — Da beirada da cabana ele agora podia enxergar o fundo do vale. Estava tudo calmo e silencioso, com alguns clarões de vez em quando na estrada lá embaixo.

A pouco mais de trinta minutos do palácio e de Azadeh, pensava Erikki. E sem maneira de fugir.

Toda vez que ele ligava os motores para recarregar as baterias e circular o óleo, havia cinco armas apontando para ele. Às vezes ele passeava até a beirada da aldeia ou, como hoje, se levantava, pronto para tentar escapar a pé, mas não tinha nunca oportunidade, os guardas estavam sempre alerta. Hoje, durante a caçada, ele se sentira tentado a fugir, o que, evidentemente, seria inútil, já que eles estavam apenas fazendo um jogo com ele.

— Não é nada, piloto, volte para a cama — disse Bayazid. — Talvez tenhamos boas notícias amanhã. Seja como Deus quiser.

Erikki não disse nada, perscrutando a escuridão, incapaz de se livrar dos maus pressentimentos. Talvez Azadeh esteja em perigo ou talvez... talvez não seja nada ou eu esteja apenas enlouquecendo com a espera e com a preocupação por não saber o que está acontecendo. Será que Ross e o soldado conseguiram fugir? E quanto a Petr matyeryebyets Mzytryk e Abdullah?

— Seja como Deus quiser, eu concordo, mas eu quero partir. Chegou a hora.

O rapaz sorriu, mostrando os dentes estragados.

— Então eu terei que amarrá-lo. Erikki sorriu da mesma forma.

— Vou esperar até amanhã à noite, e então, ao amanhecer, vou partir.

— Não.

— Será melhor para você e para mim. Nós poderemos ir para o palácio com os seus companheiros, eu posso aterr...

— Não. Nós vamos esperar.

— Eu posso aterrissar no pátio e falar com ele e você receberá o resgate e...

— Não. Nós vamos esperar. Vamos esperar aqui. Lá não é seguro.

— Ou partimos juntos ou eu vou sozinho. O xeque deu de ombros.

— Você já foi avisado, piloto.

NO PALÁCIO DO KHAN: 23:38H. Ahmed ia levando Najoud e o marido, Mahmud, pelo corredor, na frente dele, como se fossem gado. Ambos estavam com roupas de dormir, descabelados e aterrorizados. Najoud chorava e havia dois guardas atrás deles. Ahmed ainda tinha a sua faca na mão. Há meia hora, ele tinha entrado nos aposentos deles com os guardas, os acordara bruscamente, dizendo que o khan finalmente descobrira que eles mentiram ao dizer que Hakim e Azadeh tinham conspirado contra ele, porque naquela mesma noite um dos criados admitiu ter ouvido a mesma conversa e afirmou que nada de mal havia sido dito.

— Mentiras — gaguejou Najoud, deitada na cama feita sobre tapetes, meio cega pela luz da lanterna que um dos guardas mantinha apontada para o seu rosto. O outro guarda tinha um revólver encostado na cabeça de Mahmud. — Tudo mentira...

Ahmed tirou sua faca, bem afiada, e colocou-a sob o seu olho esquerdo.

— Não são mentiras, Alteza! A senhora cometeu perjúrio diante do khan, diante de Deus, por isso eu estou aqui, cumprindo ordens do khan, para cegá-la. — E tocou nela com a ponta da faca e ela gritou:

— Não, por favor, eu imploro, por favor, não... espere, espere...

— A senhora admite ter mentido?

— Não. Eu não menti. Deixe-me ver o meu pai. Ele nunca teria ordenado isso sem primeiro falar comigo...

— A senhora nunca mais vai vê-lo. Por que ele deveria falar com a senhora? A senhora mentiu antes e vai mentir outra vez!

— Eu... eu nunca menti, nunca menti...

Seus lábios torceram-se num sorriso. Durante todos aqueles anos, ele sempre soubera que ela tinha mentido. Isto não fizera nenhuma diferença para ele. Mas agora fazia.

— A senhora mentiu, em nome de Deus. — A ponta da faca arranhou a pele dela. A mulher, apavorada, tentou gritar, mas ele apertou-lhe a boca com a outra mão e se sentiu tentado a apertar mais um pouco e terminar logo com tudo. — Mentirosa!

— Piedade — ela gemeu — piedade em nome de Deus... Ele diminuiu a pressão, mas não retirou a ponta da faca.

— Eu não posso perdoá-la. Peça perdão a Deus, o khan já decretou a sua sentença!

— Espere... espere — ela disse, desesperada, sentindo os músculos dele se retesarem para o ataque —, por favor... deixe-me ver o khan... deixe-me implorar a piedade dele, eu sou sua fi...

— A senhora admite ter mentido?

Ela hesitou, em pânico. Imediatamente, a faca espetou mais um pouco e ela gaguejou:

— Eu admito... eu admito que exage...

— Em nome de Deus, a senhora mentiu ou não? — Ahmed murmurou, com raiva.

— Sim... sim... por favor, deixe-me ver o meu pai... por favor. — As lágrimas escorriam e ele fingiu hesitar, depois olhou para o marido dela, que estava deitado no tapete, tremendo de medo.

— Você também é culpado!

— Eu não sabia de nada. — Mahmud gaguejou. — De nada, eu nunca menti para o khan, nunca, eu não sabia de nada...

Ahmed empurrou os dois para a frente. Guardas abriram a porta do quarto do doente. Azadeh, Hakim e Aysha estavam lá, chamados inesperadamente, em trajes de dormir, assustados, a enfermeira também, o khan acordado e ofegante, com os olhos injetados. Najoud caiu de joelhos e disse que tinha exagerado com relação a Hakim e Azadeh e quando Ahmed chegou mais perto, ela confessou:

— Eu menti, menti, por favor, pai, perdoe-me, por favor, perdoe-me, perdoe-me... piedade... piedade... — Mahmud também estava gemendo e chorando, dizendo que não sabia de nada, senão teria falado, é claro que sim, diante de Deus, ambos implorando misericórdia, e todo mundo sabendo que não haveria nenhuma.

O khan limpou a garganta. Silêncio. Todos os olhos estavam fixos nele. Ele mexeu com a boca, mas não saiu som algum. A enfermeira e Ahmed se aproximaram dele.

— Ahmed fica e Azadeh e Hakim... o resto sai, eles sob escolta.

— Alteza — a enfermeira disse gentilmente —, isso não pode esperar até amanhã? O senhor já se cansou demais. Por favor, deixe para amanhã.

O khan sacudiu a cabeça.

— Agora.

A enfermeira sentia-se muito cansada.

— Eu não assumo nenhuma responsabilidade, Excelência Ahmed. Por favor, seja o mais breve possível. — Exasperada, ela saiu.

Dois guardas obrigaram Najoud e Mahmud a se levantarem e os arrastaram para fora. Aysha seguiu-os tremendo. Por um momento, o khan fechou os olhos, recuperando as forças. Agora só a sua respiração estrangulada quebrava o silêncio. Ahmed, Hakim e Azadeh esperaram. Passaram-se vinte minutos. O khan abriu os olhos. Para ele, tinham-se passado apenas alguns segundos.

— Meu filho, confie em Ahmed, faça dele o seu conselheiro.

— Sim, pai.

— Jurem por Deus, vocês dois.

Ele ouviu atentamente enquanto os dois repetiam:

— Eu juro por Deus que confiarei em Ahmed e farei dele o meu conselheiro. — Mais cedo, eles tinham jurado diante de toda a família a mesma coisa e tudo o mais que o khan exigira: cuidar do pequeno Hassan e protegê-lo; Hakim fazer de Hassan o seu herdeiro; os dois permanecerem em Tabriz e Azadeh ficar pelo menos dois anos sem sair do Irã.

— Desta forma, Alteza — Ahmed tinha explicado antes —, nenhuma influência externa, como a do marido, poderá afastá-la antes dela ser enviada para o norte, seja culpada ou inocente.

Isto é aconselhável, pensou o khan, aborrecido com Hakim e com Azadeh por terem permitido que a mentira de Najoud tivesse ficado sem castigo por tantos anos — odiando Najoud e Mahmud por serem tão fracos. Nenhuma coragem, nenhuma força. Bem, Hakim vai aprender e ela também vai aprender. Se eu tivesse um pouco mais de tempo..

— Azadeh.

— Sim, pai?

— Najoud, que castigo?

Ela hesitou, assustada de novo, sabendo como a cabeça dele funcionava, percebendo a armadilha em que havia caído.

— Expulsão. Expulse-a, o marido, e toda a família.

Sua idiota, você nunca criará um khan dos Gorgons, pensou, mas estava cansado demais para falar e por isso fez sinal para que ela saísse. Antes de sair, Azadeh foi até a cama e beijou a mão do pai.

— Tenha piedade deles, papai, por favor. — E forçou um sorriso, afagou-o mais uma vez e saiu.

Ele a observou fechar a porta.

— Hakim?

Hakim também tinha percebido a armadilha e estava gelado, com medo de desagradar o pai, desejando vingança mas não a sentença terrível que o khan pronunciaria.

— Que eles sejam banidos para sempre, sem um tostão — disse. — Deixe-os ganhar o próprio pão daqui para a frente e expulse-os da tribo.

Um pouco melhor, pensou Abdullah. Normalmente, este seria um castigo terrível. Mas não se você fosse um khan e eles uma perpétua ameaça. Mais uma vez ele fez um sinal com a mão, mandando-o sair. Como Azadeh, ele beijou a mão do pai e desejou-lhe boa-noite.

Quando ficaram a sós, Abdullah disse:

— Ahmed?

— Amanhã, mande-os para as terras desertas ao norte de Meshed, sem um tostão, sob escolta. Dentro de um ano e um dia, quando eles estiverem certos de terem escapado vivos, quando tiverem algum negócio, uma casa ou uma cabana, ponha fogo em tudo e mate-os, junto com os três filhos.

Ele sorriu.

— Ótimo, faça isso.

— Sim, Alteza. — Ahmed também sorriu, muito satisfeito.

— Agora vou dormir.

— Durma bem, Alteza. — Ahmed viu as pálpebras dele se fecharem e o rosto despencar. Em poucos segundos, o doente estava roncando.

Ahmed sabia que tinha que ser muito cuidadoso agora. Ele abriu a porta silenciosamente. Hakim e Azadeh estavam esperando no corredor, junto com a enfermeira. Preocupada, a enfermeira entrou no quarto, tomou o pulso do khan, examinando-o atentamente.

— Ele está bem? — Azadeh perguntou da porta.

— Quem pode saber, mocinha? Ele se cansou, se cansou demais. É melhor vocês todos sairem agora.

Nervosamente, Hakim virou-se para Ahmed.

— O que foi que ele decidiu?

— Serão banidos para as terras ao norte de Meshed, devendo partir amanhã bem cedo, sem um tostão, além de terem sido expulsos da tribo. Ele mesmo lhe dirá amanhã, Alteza.

— Seja como Deus quiser. — Azadeh estava muito aliviada pelo fato dele não ter ordenado o pior. Hakim estava radiante por ele ter seguido o seu conselho.

— Minha irmã e eu, ahn, nós não sabemos como agradecer-lhe por nos ter ajudado, Ahmed, e, bem, por ter revelado a verdade depois de tanto tempo.

— Obrigado, Alteza, mas eu apenas cumpri ordens do khan. Quando chegar a hora, vou servi-lo da mesma forma com que tenho servido a Sua Alteza, ele me fez prometer isso. Boa noite. — Ahmed sorriu para si mesmo e fechou a porta, voltando para perto da cama

— Como está ele? — perguntou à enfermeira.

— Não muito bem, aga. — Ela estava com dor nas costas e muito cansada. — Eu preciso de alguém para me substituir amanhã. Precisamos de duas enfermeiras e uma irmã. Desculpe, mas não posso continuar sozinha.

— O que a senhora precisar, contanto que fique. Sua Alteza aprecia o cuidado que a senhora tem com ele. Se quiser, eu posso ficar tomando conta dele por uma hora ou duas. Há um sofá no outro quarto e eu posso chamá-la se houver alguma coisa.

— Oh, é muito gentil de sua parte. Obrigada, um descanso me faria bem, mas me chame se ele acordar e me chame de qualquer maneira dentro de duas horas.

Ele a acompanhou até o quarto ao lado, disse ao guarda para vir rendê-lo dentro de três horas e dispensou-o, depois começou a vigília. Meia hora depois, ele foi espiar a enfermeira. Ela dormia profundamente. Ele voltou para o quarto, trancou a porta, respirou profundamente, despenteou os cabelos e correu para a cama, sacudindo o khan.

— Alteza — sussurrou como se estivesse apavorado —, acorde, acorde! O khan despertou de um sono pesado sem saber onde estava nem o que tinha acontecido, nem se estava tendo outro pesadelo.

— O que... o que... Então seus olhos entraram em foco e ele viu Ahmed, parecendo apavorado, o que era muito estranho. Ele levou um choque. — O que...

— Rápido, o senhor tem que se levantar, Pahmudi está lá embaixo — Ahmed falou ofegante —, alguém abriu a porta para eles, o senhor foi traído, alguém o entregou, Hashemi Fazir o entregou a Pahmudi e à Savama como pishkesh, depressa, levante-se, eles dominaram os guardas e estão vindo para levá-lo... — Ele viu o terror nos olhos do khan e continuou depressa: — Eles são muitos! Rápido, o senhor precisa fugir...

Rapidamente, ele retirou o soro e afastou as cobertas, ajudando o homem aterrorizado a se levantar e, de repente, o empurrou de volta para a cama e olhou para a porta.

— Tarde demais — murmurou. — Ouça, eles estão chegando com Pahmudi na frente, eles estão chegando!

Com o peito ardendo, o khan imaginou que estava ouvindo passos, que estava vendo Pahmudi, que estava vendo o seu rosto fino, radiante, e os instrumentos de tortura lá fora, no corredor, sabendo que não haveria misericórdia e que eles o manteriam vivo para arrancar-lhe a vida aos poucos. Enlouquecido, ele gritou para Ahmed: Rápido, ajude-me. Eu posso chegar até a janela, nós podemos fugir por lá se você me ajudar! Em nome de Deus, Ahmed... mas não conseguiu pronunciar as palavras. Tornou a tentar, mas sua boca não se coordenava com o seu cérebro, os músculos do seu pescoço se retesaram com o esforço, suas veias se intumesceram.

Pareceu-lhe uma eternidade o tempo que passou tentando gritar e chamar por Ahmed, que ficou parado vigiando a porta, sem ajudá-lo, com os passos se aproximando cada vez mais.

— Socorro — conseguiu dizer, tentando sair da cama, com as cobertas impedindo-o, sufocando-o, com a dor no peito aumentando cada vez mais, tão monstruosa quanto o barulho.

— Não há escapatória, eles estão aqui. Eu vou ter que deixá-los entrar! No limite do seu terror, ele viu Ahmed dirigir-se para a porta. Com o resto das suas forças, gritou para ele parar, mas só o que saiu foi um gemido estrangulado. Então ele sentiu alguma coisa estalar no seu cérebro. Uma centelha de lucidez atravessou-o. A dor cessou, o barulho cessou. Ele viu Ahmed sorrir. Seus ouvidos captaram o silêncio do corredor e o silêncio do palácio e ele soube que fora realmente traído. Com um último e supremo esforço, ele tentou se atirar sobre Ahmed, com o fogo na sua cabeça iluminando o caminho para dentro do túnel, vermelho, quente e líquido, e lá, no nadir, ele apagou o fogo e possuiu a escuridão.

Ahmed certificou-se de que o khan estava morto, satisfeito por não ter sido obrigado a sufocá-lo com o travesseiro. Rapidamente, tornou a conectar o soro, verificou se não havia nenhum vazamento traiçoeiro nele, arrumou um pouco a cama e então, com muito cuidado, examinou o quarto. Não viu nada que pudesse incriminá-lo. Estava ofegante, com a cabeça latejando e seu alívio era imenso. Verificou tudo mais uma vez, depois foi até a porta, destrancou-a silenciosamente e voltou para perto da cama. O khan estava deitado nos travesseiros, com sangue saindo pelo nariz e pela boca.

— Alteza! — berrou. — Alteza... — então se inclinou e agarrou-o por um momento, depois soltou-o e atravessou o quarto correndo e abriu a porta.

— Enfermeira! — gritou e correu para o outro quarto, acordou a mulher e arrastou-a de volta para o quarto do Khan.

— Oh, meu Deus — ela murmurou, com as pernas bambas de alívio por não ter acontecido quando ela estava sozinha com ele, podendo ser acusada por aquele guarda-costas violento ou por aquelas pessoas malucas, que gritavam e ameaçavam. Bem acordada agora, ela enxugou a testa e ajeitou os cabelos, sentindo-se nua sem a touca. Rapidamente, fez o que tinha que ser feito e fechou os olhos dele, ouvindo os gemidos e lamentos de Ahmed.

— Ninguém poderia ter feito nada, aga. Poderia acontecer a qualquer momento. Ele estava sofrendo muito, a sua hora tinha chegado, foi melhor assim, melhor do que viver como um vegetal.

— Sim... sim, acho que sim. — As lágrimas de Ahmed eram verdadeiras, lágrimas de alívio. — Insha'Allah. Insha'Allah!

— O que foi que aconteceu?

— Eu... eu estava cochilando e ele... ele engasgou e começou a sangrar pelo nariz e pela boca. — Ahmed enxugou as lágrimas, deixando a voz falsear.

— Eu o agarrei na hora em que ele estava caindo da cama e então... então eu não sei... ele desmaiou... e eu fui chamá-la correndo.

— Não se preocupe, aga, não havia nada a fazer. Às vezes é súbito e rápido, às vezes não. É melhor quando é rápido, é uma bênção. — Ela suspirou e ajeitou o uniforme, satisfeita por poder sair daquele lugar. — Ele, ahn, ele precisa ser limpo antes de chamarmos os outros.

— Sim. Por favor, deixe-me ajudar, eu quero ajudar.

Ahmed ajudou-a a limpar o sangue e a torná-lo apresentável e o tempo todo estava fazendo planos: Najoud e Mahmud banidos antes do meio-dia, o resto do castigo daqui a um ano e um dia; depois descobrir se Fazir agarrou Petr Oleg; em seguida, certificar-se de que a garganta do mensageiro do pedido de resgate tinha sido cortada naquela tarde, conforme ele ordenara em nome do khan.

Imbecil, disse para o cadáver, imbecil em pensar que eu pagaria o resgate para trazer o piloto de volta para levá-lo para Teerã e salvar a sua vida. Por que salvar uma vida por mais um mês ou uns dias? É perigoso ficar doente e impotente por causa da doença, as mentes ficam embotadas, oh, sim, o médico me disse o que deveria esperar, que a sua cabeça pioraria cada vez mais, que o senhor ficaria cada vez mais vingativo, cada vez mais perigoso, podendo até virar-se contra mim! Mas agora, agora a sucessão está assegurada, eu posso dominar o garoto e, com a ajuda de Deus, me casar com Azadeh. Ou então mandá-la para o norte — o buraco dela é igual a outro qualquer.

A enfermeira observava Ahmed de vez em quando, suas mãos fortes e hábeis, sua delicadeza, sentindo-se pela primeira vez satisfeita com a presença dele e sem medo, vendo-o pentear a barba do morto. As pessoas são tão estranhas, pensou. Ele deve ter gostado muito desse velho malvado.


QUARTA-FEIRA

28 de fevereiro54


TEERÃ: 6:55H. McIver continuou a separar as pastas e os papéis que tirara do cofre grande do escritório, colocando na maleta só os que eram de extrema importância. Estava fazendo isso desde às cinco e meia da manhã e agora sua cabeça e suas costas doíam e a maleta estava quase cheia. Eu deveria levar tanta coisa mais, pensou, trabalhando o mais depressa que podia. Dentro de uma hora, talvez menos, a turma de empregados iranianos chegaria e ele teria que parar.

Que pestes, pensou irritado, nunca estavam aqui quando precisávamos deles, mas agora, nestes últimos dias, não consigo me livrar deles, são como uma praga: "Oh, não, Excelência, por favor, deixe-me trancar o escritório para o senhor, permita-me este privilégio"... ou então: "Oh, não, Excelência, eu abro o escritório para o senhor, eu insisto, isto não é trabalho para Vossa Excelência". Talvez eu esteja ficando paranóico, mas é como se fossem todos espiões, com instruções para nos vigiar, os sócios estão mais intrometidos do que nunca. Quase como se houvesse alguém atrás de nós.

E no entanto, até agora — deixa eu bater na madeira — está tudo funcionando perfeitamente. Ao meio-dia, mais ou menos, nós partimos; Rudi já está preparado para sexta-feira, com todo o pessoal extra e um carregamento de peças que saiu de Bandar Delam por terra e foi para Abadan, onde um Trident da BA conseguiu pousar, com autorização do amigo do Duke, Zataki, para retirar operários britânicos; em Kowiss, nesta altura, Duke já deve ter escondido o combustível de reserva, e todos os rapazes têm licença para partir amanhã no 125 — deixa eu bater de novo na madeira — três caminhões carregados de peças já foram para Bunshire para serem embarcados em navio para Al Shargaz; 'Pé-quente', o coronel Changiz e aquele maldito mulá, Hussein, ainda estão se comportando direito — tenho que bater na madeira mais umas cinqüenta vezes; em Lengeh, Scrag não deve estar tendo problemas, há muitos navios disponíveis para as suas peças e não há mais nada a fazer a não ser esperar pelo dia D, não, pelo dia T.

O único ponto negativo é Azadeh. E Erikki. Por que ela não falou comigo antes de sair atrás do pobre Erikki? Meu Deus, ela foge de Tabriz para salvar a pele e depois torna a cair na armadilha. Mulheres! São todas malucas. Resgate? Conversa fiada! Eu aposto que é outra armadilha preparada pelo pai dela, aquele velho filho da mãe. Ao mesmo tempo, é como Tom Lochart disse: "Ela teria ido de qualquer maneira, Mac, e você teria contado a ela a respeito da Operação Turbilhão?

Seu estômago começou a arder. Mesmo que todos nós consigamos partir, ainda resta o problema de Erikki e Azadeh. E também o de Tom e Xarazade. Como vamos conseguir pô-los a salvo? Tenho que pensar em alguma coisa. Nós ainda temos dois dias, talvez...

Ele se virou, surpreso, pois não tinha ouvido a porta se abrir. O seu chefe de escritório, Gorani, estava em pé na porta, alto e careca, um xiita devoto, um homem bom, que estava com eles há muitos anos,

— Salaam, aga.

— Salaam, você chegou cedo. — McIver viu a surpresa estampada no rosto do homem por causa de toda aquela bagunça. Normalmente, McIver era extremamente arrumado. E sentiu como se tivesse sido apanhado com a boca na botija.

— Seja como Deus quiser, aga. O imã ordenou que tudo voltasse ao normal e que todo mundo trabalhasse bastante para o sucesso da revolução. Posso ajudá-lo?

— Bem, ahn, não, não, obrigado, eu, ahn, eu estou com pressa. Tenho muito o que fazer hoje, vou até a embaixada. — McIver sabia que estava falando demais, mas não conseguiu parar. — Eu, ahn, eu tenho encontros marcados o dia inteiro e tenho que estar no aeroporto ao meio-dia. Preciso fazer o dever de casa para o komiteh de Doshan Tappeh. Não voltarei para o escritório depois do aeroporto, e você pode fechar mais cedo... aliás, você pode tirar o dia todo de folga.

— Oh, obrigado, aga, mas o escritório deve ficar aberto até..

— Não, vamos fechar depois que eu sair. Irei direto para casa e estarei lá caso precisem de mim. Por favor, volte dentro de dez minutos, q"uero enviar algumas mensagens por telex.

— Sim, aga, certamente, aga. — O homem saiu.

McIver detestava distorcer a verdade. O que acontecerá com Gorani? — tornou a perguntar a si mesmo, com ele e com todo o nosso pessoal espalhado pelo Irã, alguns tão bons, com eles e suas famílias?

Inquieto, ele terminou o melhor que pôde. Havia cem mil riais em caixa, ele deixou o dinheiro, tornou a trancar o cofre e enviou algumas mensagens sem importância. O principal ele tinha passado às cinco e meia da manhã para Al Shargaz, com uma cópia para Aberdeen, caso Gavallan se tivesse atrasado: "Cinco engradados de peças enviados para Al Shargaz, para reparos, conforme o planejado". Traduzindo, a mensagem em código significava que Nogger, Pettikin e ele, e os dois últimos mecânicos que ele ainda não tinha conseguido retirar de Teerã estavam se preparando para embarcar no 125 hoje, conforme o planejado, e todos os sistemas ainda estavam acionados.

— Que engradados são esses, agal — Gorani tinha conseguido achar as cópias do telex.

— São os que vieram de Kowiss, eles serão embarcados no 125 na semana que vem.

— Oh, muito bem. Eu vou verificar para o senhor. Antes de sair, será que o senhor poderia dizer-me quando o nosso 212 vai voltar? Aquele que emprestamos para Kowiss.

— Na semana que vem, por quê?

— Sua Excelência, o ministro Ali Kia, também diretor do Conselho, estava querendo saber, aga.

McIver ficou gelado.

— Ah, é? Por quê?

— Provavelmente o ministro tem algum serviço para ele, aga. O seu assistente esteve aqui na noite passada depois que o senhor saiu e me perguntou. O ministro Kia também queria um relatório para hoje, a respeito da situação dos nossos três 212 que foram enviados para reparos. Eu, ahn, eu disse que o aprontaria. Ele virá aqui hoje de manhã, por isso eu não posso fechar o escritório.

Eles nunca tinham conversado a respeito dos três aparelhos nem do grande número de peças que estavam sendo enviadas para fora de caminhão, de carro ou como bagagem pessoal, uma vez que não havia espaço nos aparelhos para carga. Era mais que possível que Gorani soubesse que os 212 não precisavam de conserto. Ele deu de ombros e torceu pelo melhor.

— Eles estarão prontos na época prevista. Deixe um recado na porta.

— Oh, mas isso seria muito indelicado. Eu mesmo transmitirei o recado. Ele disse que voltaria antes da oração do meio-dia e insistiu em ter um encontro com o senhor. Ele tem um recado confidencial do ministro Kia.

— Bem, eu tenho que ir à embaixada. — McIver pensou um pouco. — Voltarei assim que puder. — Irritado, ele apanhou a maleta e desceu as escadas rapidamente, maldizendo Ali Kia e acrescentando uma maldição para Ali Babá.

Ali Babá — assim chamado porque fazia McIver lembrar dos quarenta ladrões — era a metade puxa-saco do casal que tinha trabalhado na casa deles durante dois anos e que desaparecera quando começou a confusão. Na véspera, de madrugada, Ali Babá voltara, sorrindo satisfeito e agindo como se só tivesse estado fora por um fim-de-semana e não por quase cinco meses, insistindo alegremente em retomar o seu antigo quarto:

— Oh, aga, a casa terá que estar muito limpa e preparada para a volta de Sua Alteza; na semana que vem, a minha esposa estará aqui para fazer isso, mas enquanto isso, eu vou lhe preparar um chá com torradas como o senhor gosta. Eu fiz um sacrifício pelo senhor hoje e pechinchei muito para comprar pão fresco e leite no mercado a um preço razoável, mas os ladrões me cobraram cinco vezes mais do que no ano passado, uma pena, mas por favor, dê-me o dinheiro agora e assim que os bancos abrirem o senhor pode me pagar o meu microscópico salário atrasado...

Maldito Ali Babá, a revolução não o fizera mudar nem um pouco. "Microscópico"? Ainda é um pão para nós e cinco para ele, mas não faz mal, foi ótimo tomar chá com torradas na cama — mas não um dia antes de fugirmos. Como é que Charlie e eu vamos fazer para retirar a nossa bagagem sem que ele desconfie?

Na garagem, ele abriu a porta do carro.

— Lulu, minha garota — disse — sinto muito, mas chegou a hora da Grande Despedida. Não sei como vou fazer, mas não vou deixá-la aqui para ser usada por algum maldito iraniano.

Talbot estava esperando por ele num escritório elegante e espaçoso.

— Meu caro McIver, você madrugou, eu soube das aventuras do jovem Ross. Nós todos tivemos muita sorte, você não acha?

— Sim, sim, tivemos, e como está ele?

— Recuperando-se. Bom homem, fez um ótimo trabalho. Eu vou almoçar com ele e vamos retirá-lo daqui hoje num vôo da BA, no caso dele ter sido localizado, temos que ser muito cautelosos. Alguma notícia de Erikki? A embaixada finlandesa nos procurou, pedindo ajuda.

McIver contou-lhe sobre o bilhete de Azadeh.

— Ridículo.

Talbot estalou os dedos.

— O resgate não me parece muito viável. Existem, ahn, rumores de que o khan está muito doente. Ele teve um ataque.

McIver franziu a testa.

— Isso é melhor ou pior para Azadeh e Erikki?

— Não sei. Se ele morrer, bem, isto certamente desequilibrará a balança do poder no Azerbeijão por algum tempo, o que certamente encorajará os nossos amigos do norte da fronteira a armarem mais confusão do que de costume, o que fará Carter e seus asseclas levantarem mais poeira.

— Que diabo ele está fazendo agora?

— Nada, meu velho, este é que é o problema. Ele espalhou os seus amendoins e se mandou.

— Mais alguma coisa a respeito da nossa nacionalização? Armstrong disse que era iminente.

— É bem possível que você perca o controle da sua frota muito em breve — disse Talbot, com um cuidado estudado, e McIver ficou imediatamente atento. — Pode ser, ahn, uma questão de aquisição pessoal por parte de pessoas interessadas.

— Você está se referindo a Ali Kia e aos sócios? Talbot deu de ombros.

— Não nos compete perguntar por que, não é?

— Isto é oficial?

— Meu caro amigo, é claro que não! É só uma observação pessoal, confidencial. O que posso fazer por você?

— Confidencialmente, de acordo com as instruções de Andy Gavallan, está bem?

— Vamos tratar disso oficialmente.

McIver viu o rosto sério, ligeiramente corado, e se levantou, aliviado.

— De jeito nenhum, sr. Talbot. Foi idéia de Andy pô-lo a par da situação, não minha.

Talbot suspirou eloqüentemente.

— Muito bem, extra-oficialmente. McIver tornou a sentar-se.

— Nós, ahn, estamos transferindo o nosso QG para Al Shargaz hoje.

— Uma decisão muito sábia. E daí?

— Nós partimos hoje. E o restante do pessoal estrangeiro. No nosso 125.

— Muito sábio. E daí?

— Nós, ahn, estamos encerrando todas as nossas operações no Irã. Na sexta-feira.

Talbot suspirou cansado.

— Sem pessoal, eu diria que é axiomático. E daí? McIver estava achando muito difícil dizer o que pretendia.

— Nós, ahn, estamos retirando toda a nossa frota na sexta-feira. Nesta sexta-feira.

— Benza-me Deus — disse Talbot, com franca admiração. — Meus parabéns! Como foi que você conseguiu dobrar o safado do Kia para conseguir as autorizações? Você deve ter-lhe prometido um lugar vitalício no camarote real em Ascot!

— Ahn, não, não foi bem assim. Nós decidimos não pedir autorização, era perda de tempo. — McIver levantou-se. — Bem, vejo-o em,.

O rosto de Talbot quase despencou.

— Sem autorização?

— Isso mesmo. Você sabe que os nossos aparelhos vão ser confiscados, nacionalizados, seja lá o nome que tenha, não havia nenhum modo de conseguir autorizações de saída, então nós simplesmente decidimos ir embora. — McIver acrescentou displicentemente: — Na sexta-feira nós damos o fora daqui.

— Minha nossa! — Talbot sacudiu a cabeça vigorosamente, brincando com uma pasta que estava sobre a sua mesa. — Minha nossa, isto é muito de-saconselhável.

— Não há outra alternativa. Bem, sr. Talbot, isso é tudo, tenha um bom dia. Andy quis avisá-lo para que o senhor pudesse... pudesse fazer seja lá o que for.

— Que história é essa? — Talbot explodiu.

— Como é que eu vou saber? — McIver também estava irritado. — O seu papel é proteger os seus conterrâneos.

— Mas vo...

— Eu simplesmente não vou permitir que me deixem sem trabalho e ponto final!

Talbot tamborilou nervosamente com os dedos.

— Acho que estou precisando de uma xícara de chá. — E apertou o interfone. — Célia, duas xícaras do seu melhor chá e acho bom misturar um pouco de Nelson 's Blood.

— Sim, sr. Talbot — uma voz fanhosa respondeu e espirrou.

— Saúde — Talbot disse automaticamente. Ele parou de tamborilar na mesa e sorriu docemente para McIver. — Estou contentíssimo por você não ter me contado nada, meu velho.

— Eu também.

— Fique tranqüilo, se eu souber que você foi preso, ficarei feliz em visitá-lo em nome do governo de Sua Majestade e tentarei tirá-lo do mau caminho. — Talbot ergueu as sobrancelhas. — Furto! Minha nossa! Mas desejo-lhe boa sorte, meu velho.

NO APARTAMENTO DE AZADEH: 8:10H. A velha empregada carregou a pesada bandeja de prata pelo corredor — quatro ovos cozidos, torradas, manteiga e geléia, duas finíssimas xícaras de café, um bule cheio de café bem quente e lindos guardanapos de algodão egípcio. Ela descansou a bandeja e bateu na porta.

— Entre.

— Bom dia, Alteza. Salaam.

— Salaam — respondeu Xarazade. Ela estava recostada em vários travesseiros na cama sobre o tapete, com o rosto inchado de tanto chorar. A porta do banheiro estava aberta, ouvia-se barulho de água correndo. — Pode colocar ali, em cima da cama.

— Sim, Alteza. — A velha obedeceu. Com um olhar enviesado para o banheiro, ela saiu silenciosamente.

— Café, Tommy — disse Xarazade, tentando parecer animada. Nenhuma resposta. Ela deu de ombros, fungou um pouco, prestes a recomeçar a chorar, depois levantou os olhos quando Lochart voltou para o quarto. Ele estava barbeado e vestido com roupas de piloto, botas, calças, camisa e um suéter grosso. — Café? — perguntou, esboçando um sorriso, detestando o rosto fechado dele e o seu ar de preocupação.

— Daqui a um minuto — ele respondeu sem entusiasmo. — Obrigado.

— Eu... eu mandei que trouxessem tudo como você gosta.

— Parece bom, não espere por mim. — Ele foi até a cômoda e começou a dar o nó na gravata.

— Azadeh foi maravilhosa em nos emprestar este apartamento enquanto está fora, não foi? Aqui é muito mais agradável do que lá em casa.

Lochart olhou-a pelo espelho.

— Na hora você não disse isso.

— Oh, Tommy, você tem toda a razão, mas não vamos discutir.

— Eu não estou discutindo. Já disse tudo o que tinha a dizer e você também. — Não agüento mais, pensou angustiado, sabendo que ela estava tão infeliz quanto ele e sem poder fazer nada. Quando Meshang o desafiou na frente dela e de Zarah, há duas noites atrás, o pesadelo tinha começado e ainda não acabara, afastando-os um do outro, levando-o às raias da loucura. Dois dias e duas noites de lágrimas de desespero, e ele repetindo sem parar: "Não se preocupe, nós vamos dar um jeito, Xarazade", e depois discutindo o futuro. Que futuro?, perguntou ao seu reflexo no espelho, prestes a explodir de novo.

— Aqui está o seu café, Tommy querido.

Ele o aceitou, inflexível e zangado, e se sentou numa cadeira em frente a ela, sem olhá-la. O café estava quente e delicioso, mas não lhe tirou o gosto amargo da boca, e ele o deixou quase intato, levantou-se e foi apanhar a sua jaqueta. Graças a Deus tenho um vôo hoje para Kowiss, pensou. Droga!

— Quando eu o vejo de novo, querido, quando é que você volta?

Ele deu de ombros, odiando a si mesmo, com vontade de tomá-la nos braços e falar-lhe sobre a profundidade do seu amor, mas ele já tinha passado por esta agonia quatro vezes nos últimos dois dias e ela ainda estava tão inflexível quanto o irmão.

— Deixar o Irã? Sair de casa para sempre? Ela tinha exclamado. Oh, eu não posso, não posso!

— Mas não será para sempre, Xarazade. Nós passaremos algum tempo em Al Shargaz e depois iremos para a Inglaterra, você vai adorar a Inglaterra, a Escócia e Aber...

— Mas Meshang disseque...

— Foda-se Meshang! — Ele tinha gritado e visto o medo dela e isso só tinha aumentado a sua fúria. — Meshang não é Deus Todo-Poderoso, por favor! Ele não sabe de nada. — E ela soluçara como uma criança apavorada, afastando-se dele. — Oh, Xarazade, eu sinto muito... — E ele a tomara nos braços, quase cantando o amor que sentia por ela, retendo-a em segurança nos seus braços.

— Tommy, querido, ouça, você estava certo e eu estava errada, a culpa foi minha, mas eu sei o que fazer, amanhã eu vou procurar Meshang, vou convencê-lo a nos dar uma mesada e... o que foi?

— Você não ouviu nem uma palavra do que eu disse.

— Oh, ouvi sim, ouvi com toda a atenção, por favor, não fique zangado outra vez, você tem razão em ficar zangado, mas eu ouvi...

E ele respondeu, zangado:

— Você não ouviu o que Meshang disse? Nós não temos dinheiro. O dinheiro acabou, o prédio acabou, ele tem controle total sobre o dinheiro da família, total, e a menos que você obedeça a ele e não a mim, você não receberá mais um tostão. Mas isso não tem importância, eu posso ganhar o suficiente para nós dois! Eu posso! A questão é que temos que deixar Teerã. Por algum tempo.

— Mas eu não tenho documentos, não tenho, Tommy, não posso consegui-los agora e Meshang tem razão quando diz que se eu sair sem documentos eles nunca mais me deixarão voltar, nunca.

Mais lágrimas e mais discussão, sem conseguir fazê-la entender, mais lágrimas até que foram se deitar, tentando dormir sem conseguir, nenhum dos dois.

— Você pode ficar aqui, Tommy. Por que você não pode ficar, Tommy?

— Oh, pelo amor de Deus, Xarazade, Meshang deixou isso bem claro. Eu não sou desejado aqui, os estrangeiros estão fora. Nós iremos para outro lugar. Nigéria ou Aberdeen, qualquer outro lugar. Arrume a mala. Você embarcará no 125 e nós nos encontraremos em Al Shargaz. Você tem um passaporte canadense. Você é canadense!

— Mas eu não posso partir sem documentos — ela gemeu e soluçou, repetindo sempre os mesmos argumentos e derramando mais lágrimas.

Então, na véspera de manhã, com ódio de si mesmo, ele deixara o orgulho de lado e fora ao bazar para falar com Meshang, para tentar fazê-lo ceder — tudo o que ia dizer fora cuidadosamente ensaiado. Mas ele tinha se deparado com um muro que ia até o céu.

— Meu pai tinha interesses na CHI que, evidentemente, passaram para mim.

— Oh, isso é ótimo, isso faz uma grande diferença, Meshang.

— Isso não faz nenhuma diferença. A questão é como você pretende pagar as suas dívidas, pagar à sua ex-mulher e sustentar a minha irmã e o filho dela sem uma grande dose de caridade.

— Um emprego não é caridade, Meshang, não é caridade. Poderia ser muito lucrativo para nós dois. Eu não estou sugerindo uma sociedade, nada disso, eu trabalharia para você. Você não entende do negócio de helicópteros, eu sim, de trás para frente. Eu poderia dirigir a nova sociedade para você, torná-la lucrativa imediatamente. Eu conheço pilotos e sei como operar. Conheço todo o Irã, quase todos os campos de petróleo. Isso resolveria tudo para nós dois. Eu trabalharia como louco para proteger os interesses da família, nós ficaríamos no Irã, Xarazade poderia ter o bebê aqui e...

— O Estado islâmico só vai contratar pilotos iranianos, o ministro Kia me garantiu. Cem por cento.

Subitamente, ele compreendera. O seu mundo desabou.

— Ah, agora estou entendendo, sem exceções, hein? Especialmente eu. E viu Meshang dar de ombros desdenhosamente.

— Eu estou muito ocupado. Para ser franco, você não pode ficar no Irã. Você não tem nenhum futuro no Irã, Xarazade não tem nenhum futuro com você e ela nunca se exilará para sempre, o que vai acontecer se ela partir sem a minha permissão e sem documentos apropriados. Portanto, vocês têm que se divorciar.

— Não.

— Mande Xarazade de volta do apartamento do khan, esta tarde, aliás, mais uma caridade, e saia imediatamente de Teerã. O casamento de vocês não foi muçulmano, logo não vale nada. A cerimônia civil canadense será anulada.

— Xarazade nunca concordará com isso.

— Ah, é? Esteja em minha casa às seis horas da tarde e nós resolveremos isso. Depois que você tiver partido, eu saldarei todas as suas dívidas no Irã, não posso ter dívidas ameaçando o nosso bom nome. Às seis horas em ponto. Bom dia.

Ele não se lembrava de como tinha voltado para o apartamento, depois contara tudo a ela e ela chorara ainda mais e depois tinham ido para a casa dos Bakravan naquela noite e Meshang repetira tudo o que dissera antes, furioso com as súplicas de Xarazade.

— Não seja ridícula, Xarazade! Pare de se lamentar, isso é para o seu próprio bem, para o bem do seu filho e da família. Se você partir com um passa porte canadense e sem documentos iranianos, você nunca terá permissão para voltar. Morar em Aberdeen? Que Deus a proteja, você morreria de frio no fim de um mês e o seu filho também. A babá Jari não irá com você, e nem ele poderia pagar por ela; ela não é louca, não vai abandonar o Irã e a família dela para sempre. Você nunca mais tornará a ver-nos, pense nisso... pense no seu filho... — E repetiu isto várias vezes até que Xarazade ficou fora de si e Tommy também.

— Tommy.

Isto o despertou do seu devaneio.

— Sim? — perguntou, percebendo o velho tom de voz que ela estava usando.

— Você vai me deixar para sempre? — perguntou em farsi.

— Eu não posso ficar no Irã — ele respondeu, em paz agora, com a doçura dela apaziguando-o. — Quando fecharmos a companhia aqui, não haverá emprego para mim, eu não tenho dinheiro, e mesmo que o prédio não tivesse pegado fogo... bem, eu nunca fui de pedir esmolas. — Seus olhos não tinham ódio. — Meshang tem razão sobre uma porção de coisas. A vida comigo não seria grande coisa e você tem razão em ficar, sem documentos seria mesmo perigoso partir e você tem que pensar na criança, eu sei disso. E há também... não, deixe-me terminar disse docemente, não permitindo que ela falasse... — há também o HBC. — Isto o fez lembrar-se do primo dela, Karim. Mais uma coisa terrível que ela teria que saber. Pobre Xarazade...

— Você está me deixando para sempre?

— Estou partindo hoje para Kowiss. Ficarei lá alguns dias e depois irei para Al Shargaz. Vou ficar lá um mês, esperando. Isto vai lhe dar tempo para refletir, para decidir o que quer fazer. Para entrar em contato comigo, basta enviar uma carta ou telex aos cuidados do aeroporto de Al Shargaz. Se você quiser ir se encontrar comigo, a embaixada canadense providenciará tudo imediatamente, já tratei disso... e é claro que ficarei em contato com você.

— Através de Mac?

— Através dele ou de alguma outra forma.

— Você vai se divorciar de mim?

— Não, nunca. Se você quiser o divórcio ou... deixe-me colocar de outra forma, se você achar que isso é necessário para proteger o nosso filho ou por qualquer outro motivo, então eu farei o que você quiser.

Eles ficaram em silêncio e ela o observou, com uma expressão estranha nos seus enormes olhos escuros, parecendo mais madura do que antes e, no entanto, muito mais jovem e mais frágil, com a camisola transparente envolvendo sua pele dourada, os cabelos soltos cobrindo os ombros e os seios.

Lochart sentiu-se totalmente impotente, morrendo por dentro, querendo ficar mas sabendo que não havia mais razão para isso. Já foi dito tudo e agora depende dela. Se eu fosse ela, não hesitaria, pediria o divórcio, aliás, nunca me teria casado. Ele disse em farsi:

— Cuide-se bem, meu amor.

— E você também, meu amor.

Ele apanhou a jaqueta e saiu. Logo depois, ela ouviu a porta da frente bater. Durante um longo tempo, ficou olhando para a porta por onde ele tinha saído, depois, pensativa, serviu-se de café e começou a tomá-lo, quente, forte, doce e reanimador

Seja como Deus quiser, disse a si mesma, sentindo-se em paz. Ou ele volta ou não volta. Ou Meshang acaba cedendo ou não. De qualquer maneira, eu preciso ser forte e comer por dois e ter bons pensamentos enquanto carrego o meu filho. Ela tirou a casca de um ovo. Estava perfeitamente cozido e delicioso.

NO APARTAMENTO DE McIVER: 11:50H. Pettikin entrou na sala carregando uma mala e ficou surpreso ao ver o criado, Ali Babá, limpando o aparador.

— Eu não o ouvi entrar. Pensei ter-lhe dado o dia de folga — disse irritado, pousando a mala no chão.

— Oh, sim, aga, mas há muito o que fazer aqui, o apartamento está imundo e a cozinha... — E revirou os olhos eloqüentemente.

— Sim, sim, é verdade, mas você pode começar amanhã. — Pettikin viu-o lançar um olhar para a mala e praguejou. Logo depois do café, ele mandara Ali Babá tirar o dia de folga com instruções de voltar à meia-noite, o que normalmente significava que ele não voltaria até a manhã seguinte. — Agora trate de ir.

— Sim, aga, o senhor vai sair de férias ou de licença?

— Não, eu, ahn, vou passar uns dias com um dos pilotos, portanto trate de limpar o meu quarto amanhã. Oh, sim, é melhor você me dar a sua chave, eu não sei onde deixei a minha. — Pettikin estendeu a mão, danado por não ter pensado nisso antes. Com uma estranha relutância, Ali Babá entregou-lhe a chave. — O capitão McIver quer ficar sozinho aqui, ele tem um trabalho para fazer e não quer ser incomodado. Vejo-o em breve, até logo!

— Mas, aga...

— Até logo! — Ele viu se Ali Babá estava levando o casaco, abriu a porta e quase o empurrou para fora, tornando a fechá-la. Nervosamente, deu uma olhada no relógio. Quase meio-dia e nada de McIver, e eles já deveriam estar no aeroporto. Foi até o quarto, apanhou a outra mala, já arrumada, que estava no armário, depois voltou e colocou-a ao lado da outra, perto da porta.

Duas malas pequenas e um saco, pensou. Não é muita coisa depois de todos esses anos aqui no Irã. Não importa, eu prefiro viajar com pouca bagagem e talvez desta vez possa ter sorte e ganhar mais dinheiro ou começar algum negócio, e ainda há Paula. Como é que eu vou poder tornar a casar? Casar? Você está louco? O máximo que você pode conseguir é um caso. Sim, mas bem que eu gostaria de me casar com ela e...

O telefone tocou e ele deu um pulo, de tão desabituado que estava com o barulho. Atendeu com o coração batendo.

— Alô.

— Charlie? Sou eu, Mac, graças a Deus que este maldito aparelho está funcionando. Resolvi arriscar. Estou atrasado.

— Está com algum problema?

— Não sei, Charlie, mas vou ter que ir ver Ali Kia. O filho da mãe mandou seu maldito assistente e um Faixa Verde para me apanharem.

— Que diabo ele quer com você? — Lá fora, por toda a cidade, os muezins começavam a chamar os fiéis para a oração de meio-dia, perturbando-o.

— Não sei. O encontro é daqui a meia hora. É melhor você ir para o aeroporto e eu chegarei lá assim que puder. Faça com que Johnny Hogg atrase a partida.

— Certo, Mac. E quanto à sua bagagem, está no escritório?

— Eu a tirei daí hoje cedo, enquanto Ali Babá estava roncando, e ela está na mala da Lulu. Charlie, na cozinha tem um dos panos bordados por Genny, "abaixo a torta de carne". Enfie-o na sua mala para mim, sim? Ela me mataria se eu o deixasse. Se tiver tempo, irei até aí para ver se está tudo em ordem.

— Quer que eu feche o gás ou desligue a eletricidade?

— Cristo, não sei. Deixe assim mesmo, está bem?

— Está bem. Tem certeza de que não quer que eu espere? — perguntou, com as vozes metálicas dos muezins falando pelos alto-falantes aumentando a sua inquietação. — Eu não me importo de esperar. Talvez seja melhor, Mac.

— Não, você vai indo. Eu estarei lá assim que puder. Até logo.

— Até logo. — Pettikin franziu as sobrancelhas, depois, conseguindo o sinal de discar, ligou para o escritório deles no aeroporto. Para seu espanto, a ligação foi completada.

— Helicópteros Iranianos, alô?

Ele reconheceu a voz do gerente de cargas.

— Bom dia, Adwani, aqui é o capitão Pettikin. O 125 já chegou?

— Ah, capitão, sim, deve pousar dentro de poucos minutos.

— O capitão Lane está aí?

— Sim, um momento...

Pettikin esperou, imaginando o que Kia poderia querer.

— Alô, Charlie, aqui é Nogger. Você tem amigos importantes?

— Não, o telefone simplesmente voltou a funcionar. Pode falar em particular?

— Não. Não é possível. O que está havendo?

— Eu ainda estou no apartamento. Mac está atrasado. Ele vai ter que se encontrar com Ali Kia. Estou saindo para o aeroporto agora e ele vai para aí diretamente do escritório de Kia. Você está pronto para carregar?

— Sim, Charlie, estamos enviando os motores para conserto conforme o capitão McIver mandou. Estamos seguindo todas as instruções.

— Ótimo. Os dois mecânicos estão aí?

— Sim. Essas duas peças também estão prontas para serem embarcadas.

— Ótimo. Nenhum problema?

— Até agora não, meu chapa.

— Até já então. — Pettikin desligou. Colocou o pano bordado na mala e deu uma última olhada no apartamento, sentindo-se um pouco triste. Bons e maus tempos, mas a melhor época foi quando Paula ficou hospedada aqui. Pela janela, ele notou fumaça sobre Jaleh e agora que as vozes dos muezins tinham-se calado, ele escutou os costumeiros tiros a distância.

— Para o diabo com todos eles — resmungou. Ele se levantou e saiu com a bagagem, trancando cuidadosamente a porta. Quando saiu da garagem, viu Ali Babá se esconder numa entrada do outro lado da rua. Havia dois outros homens desconhecidos com ele. Que diabo aquele safado estará fazendo? pensou inquieto.

NO MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES: 13:07H. A enorme sala estava gelada apesar da lareira acesa, e o ministro Kia usava um sobretudo de astracã, caríssimo, com um chapéu combinando e estava zangado.

— Eu repito, preciso de transporte para Kowiss amanhã e quero que o senhor me acompanhe.

— Amanhã eu não posso, sinto muito — disse McIver, disfarçando o nervosismo. — Eu ficaria feliz em encontrar-me com o senhor na semana que vem. Digamos na segunda-feira...

— Estou espantado que depois de toda a 'cooperação' que lhe prestei eu ainda tenha que argumentar. Amanhã, capitão, ou... ou eu cancelarei todas as autorizações para o nosso 125. Aliás, eu o prenderei no solo hoje e o deixarei aqui aguardando investigações.

McIver estava em pé diante da enorme escrivaninha, e Kia estava sentado atrás dela, numa cadeira imensa que o fazia parecer um anão.

— Não poderia ser hoje, Excelência? Nós temos um Alouette para levar para Kowiss. O capitão Lochart está...

— Amanhã. Hoje não. — Kia ficou ainda mais zangado. — Estou mandando como diretor do Conselho: o senhor irá comigo, nós partiremos às dez horas. Está entendendo?

McIver balançou a cabeça, tentando imaginar uma maneira de se livrar da armadilha. Então um plano começou a se esboçar na sua mente.

— Onde o senhor quer se encontrar comigo?

— Onde está o helicóptero?

— Em Doshan Tappeh. Nós vamos precisar de uma autorização. Infelizmente há um major Delami lá, e também um mulá. E eles são muito difíceis, e eu não sei como poderemos conseguir.

Kia fechou ainda mais a cara.

— O primeiro-ministro deu novas ordens com relação a mulás e a interferências com o governo legal e o imã concorda totalmente. É melhor que eles se comportem. Eu o verei amanhã às dez horas e...

Nesse momento, houve uma grande explosão do lado de fora. Eles correram para a janela mas só conseguiram ver uma nuvem de fumaça subindo para o céu na outra esquina.

— Parece ser outro carro-bomba — disse McIver, desanimado. Nos últimos dias, tinha havido várias tentativas de assassinato e ataques de carros-bomba por parte de extremistas de esquerda, a maioria contra aiatolás que exerciam postos importantes no governo.

— Terroristas imundos, que Deus os amaldiçoe e aos seus pais! — Kia estava francamente assustado, o que agradou a McIver.

— É o preço da fama, ministro — disse, com a voz carregada de preocupação. — Aqueles que ocupam postos importantes, pessoas como o senhor, são os alvos mais procurados.

— Sim... sim... nós sabemos. Malditos terroristas...

McIver foi sorrindo até o carro. Então Kia quer ir para Kowiss. Vou providenciar para que ele chegue lá e o Turbilhão vai continuar conforme o planejado.

Dobrando a esquina, a rua principal, lá na frente, estava parcialmente bloqueada com destroços, um carro ainda estava pegando fogo, outros já estavam queimados, e havia um buraco no asfalto no lugar em que o carro-bomba explodira, destruindo a frente de um restaurante e o banco estrangeiro que ficava ao lado, e vidros espalhados por toda parte. Havia muitas pessoas feridas, alguns mortos e outros morrendo. Pânico, agonia e o fedor de borracha queimada.

O tráfego estava engarrafado para os dois lados. Não havia mais nada a fazer a não ser esperar. Depois de meia hora a ambulância chegou, junto com alguns Faixas Verdes e um mulá que começaram a dirigir o tráfego. Depois de algum tempo, McIver recebeu ordem de avançar. Ao passar pelos destroços, com todo o tráfego enlouquecido, ele não reparou no corpo decapitado de Talbot, meio enterrado sob os destroços do restaurante, nem reconheceu Ross vestido em roupas civis, inconsciente ali ao lado, imprensado contra a parede, com o casaco rasgado, e sangue saindo do nariz e dos ouvidos.

NO SAGUÃO DO AEROPORTO DE AL SHARGAZ — DO OUTRO LADO DO GOLFO: 14:05H. Scot Gavallan estava no meio da multidão que esperava ao lado de fora da área de alfândega e imigração, com o braço direito na tipóia. Pelo alto-falante, vinham os avisos de partidas e chegadas de aviões, em árabe e inglês, e o grande balcão de embarque e desembarque fervilhava, bem como os portões de embarque, enfim, todo o terminal. Ele viu o pai passar pela porta verde, seu rosto se iluminou e ele se adiantou para encontrá-lo.

— Oi, papai!

— Oh, Scot, meu rapaz! — Gavallan disse alegremente e abraçou-o com cuidado por causa do ombro. — Como vai você?

— Eu estou ótimo papai, de verdade. Eu lhe disse, agora estou ótimo.

— Sim, estou vendo. — Desde que Gavallan tinha partido na segunda-feira, ele tinha falado muitas vezes com o filho pelo telefone. Mas falar pelo telefone não é a mesma coisa, pensou. — Eu... eu estava tão preocupado...

Gavallan não tinha querido partir, mas o médico inglês do hospital lhe assegurara que Scot estava bem, e havia assuntos urgentes para tratar na Inglaterra e a tão adiada reunião do Conselho para enfrentar.

— O raio-X não mostra nenhuma lesão no osso, sr. Gavallan. A bala atravessou parte do músculo, a ferida foi feia mas vai ficar curada.

Para Scot, o médico dissera:

— Vai doer um bocado e você não vai poder pilotar por dois meses ou mais. Quanto às lágrimas... você também não precisa se preocupar. É uma reação bastante normal quando se leva um tiro. O vôo de Zagros para cá também não ajudou... você escapou num caixão, não foi? Isso é o bastante para deixar qualquer um nervoso, imagine depois de ter levado um tiro. Eu ficaria uma pilha. Vamos manter você aqui até amanhã.

— É necessário, doutor? Eu... eu estou me sentindo bem melhor... — Scot tinha se levantado, mas seus joelhos dobraram e ele teria caído se Gavallan não tivesse conseguido segurá-lo.

— Primeiro nós temos que consertá-lo. Uma boa noite de sono e ele estará novinho em folha, sr. Gavallan, eu juro. — O médico deu um sedativo a Scot e Gavallan ficara com ele, tranqüilizando-o a respeito da morte de Jordon.

— Se alguém é responsável, este alguém sou eu, Scot. Se eu tivesse ordenado a evacuação antes do xá partir, Jordon ainda estaria vivo.

— Não, isso não seria certo, papai... as balas eram para mim... Gavallan tinha esperado até ele adormecer. Nessa altura, já tinha perdido a sua conecção, mas conseguiu apanhar o vôo da meia-noite e chegou em Londres a tempo.

— Que diabo vai acontecer no Irã? — Linbar perguntara sem preâmbulos.

— Onde estão os outros? — retrucara Gavallan, com firmeza. Só havia mais um diretor na sala, Paul Choy, que tinha o apelido de 'Lucrativo' e que tinha vindo de Hong Kong. Gavallan o respeitava muito pela sua perspicácia nos negócios. A única nuvem entre eles era o envolvimento deste na morte acidental de David MacStruan e na sucessão de Linbar. — Nós deveríamos esperar por eles, vocês não acham?

— Ninguém mais virá — respondeu Linbar. — Eu cancelei sua vinda porque não preciso deles. Eu sou tai-pan e posso fazer o que quiser. Por...

— Não com a S-G Helicópteros. — Gavallan olhou firmemente para Choy. — Eu proponho um adiamento.

— É claro que podemos adiar — Choy disse calmamente — mas que diabo, Andy, eu vim especialmente para isso e nós três damos quorum à reunião, se quisermos votar.

— Eu voto que sim — disse Linbar. — Do que é que você está com medo?

— De nada. Mas...

— Ótimo. Então nós temos quorum. Agora, e quanto ao Irã? — Gavallan controlou a raiva.

— Sexta-feira é o dia D, se o tempo permitir. A operação Turbilhão foi preparada da melhor maneira possível.

— Tenho certeza disso, Andy. — O sorriso de Choy era amigável. — Linbar me disse que você esta planejando retirar apenas os 212, não é? — Ele era um homem bem-apessoado, imensamente rico, de quase quarenta anos, um dos diretores da Struan's e de muitos dos seus conselhos subsidiários há alguns anos e tinha muitos outros interesses fora da Struan's, em navios, produtos farmacêuticos em Hong Kong e no Japão, e no mercado de ações na China. — E quanto aos nossos 206 e Alouettes?

— Vamos ter que deixá-los. É impossível retirá-los. Não há nenhuma maneira. — A sua explicação foi seguida de silêncio.

— Qual é o plano final da Operação Turbilhão? — perguntou Paul Choy.

— Na sexta-feira às sete horas, se o tempo permitir, eu passo pelo rádio a mensagem em código dizendo para iniciarem a operação. Todos os aparelhos decolam. Nós teremos quatro 212 posicionados em Bandar Delam sob o comando de Rudi, eles se dirigirão para Bahrain, serão reabastecidos, e depois seguirão para Al Shargaz; os nossos dois 212 que estão em Kowiss terão que ser reabastecidos na costa e depois seguirão para o Kuwait para se reabastecerem de novo, e depois para Jellet, é uma pequena ilha perto da Arábia Saudita onde nós escondemos combustível, depois seguirão para Bahrain e Al Shargaz. Os três que estão em Lengeh sob o comando de Scragger não deverão enfrentar nenhum problema, eles vão diretamente para Al Shargaz. Erikki vai pela Turquia. Assim que eles chegarem, nós começaremos a desmontá-los para embarcá-los no 747 que eu já fretei e depois dar o fora o mais depressa possível.

— Quais são as chances de não perdermos nenhum homem e nenhum aparelho? — Choy perguntou, com os olhos subitamente severos. Ele era um conhecido jogador e proprietário de cavalos de corrida e um dos administradores do Jockey Club de Hong Kong. Havia rumores de que era também membro do sindicato de apostas de Macau.

— Eu não sou um homem de apostas. Mas as chances são boas. Senão eu não teria nem pensado nisso. McIver já conseguiu retirar três 212, já é uma economia de mais de três milhões de dólares. Se nós retirarmos todos os nossos 212 e a maior parte das peças, a S-G ficará em boas condições.

— Péssimas condições — disse Linbar, secamente.

— Em melhores condições do que se encontra a Struan's este ano. Linbar enrubesceu.

— Você deveria estar preparado para esta catástrofe, você e o seu maldito McIver. Qualquer idiota podia ver que o xá não se agüentava nas pernas.

— Chega dessa história, Linbar — Gavallan exclamou. — Eu não voltei para brigar, só para comunicar em que pé estão as coisas, então vamos terminar logo com isso para que eu possa apanhar o meu avião de volta. O que mais, Choy?

— Andy, mesmo que você consiga retirá-los, o que me diz do fato da Imperial estar suplantando vocês no mar do Norte, tirando vinte e tantos contratos das mãos de vocês? E há também a sua encomenda de seis X63.

— Uma decisão estúpida e fora de hora — disse Linbar.

Gavallan afastou o olhar de Linbar e se concentrou. Choy tinha o direito de perguntar e ele não tinha nada a esconder.

— Enquanto eu tiver os meus 212, posso voltar à luta; há muito trabalho para eles. Vou começar a negociar com a Imperial na semana que vem. Sei que vou conseguir de volta alguns dos contratos. O resto do mundo está louco atrás de petróleo, e a ExTex vai aparecer com novos contratos na Arábia Saudita, na Nigéria e na Malásia, e quando eles receberem os nossos relatórios sobre os X63, vão dobrar os seus negócios conosco. E as companhias mais importantes farão o mesmo. Nós estaremos em condições de prestar-lhes um serviço melhor, com mais segurança em más condições de tempo, com menor custo por quilômetro por passageiro. O mercado é ótimo, a China estará entrando nele dentro de pouco tempo e...

— Sonhos — disse Linbar. — Você e o maldito Dunross têm a cabeça nas nuvens.

— A China nunca vai servir para nós — disse Choy, com um olhar estranho. — Eu concordo com Linbar.

— Pois eu não. — Gavallan notou algo de estranho com relação a Choy, mas a raiva o fez continuar. — Vamos esperar para ver. A China tem que ter petróleo em algum lugar, em abundância. Para finalizar, eu estou em grande forma, os lucros do ano passado foram superiores a cinqüenta por cento e este ano vão ser iguais ou melhores. Na semana que vem eu...

Linbar interrompeu.

— Na semana que vem você estará fora do mercado.

— Este fim-de-semana é que vai decidir isso. — Gavallan respondeu com um ar de desafio. — Eu proponho que tornemos a nos reunir na próxima segunda-feira. Isso me dará tempo para voltar.

— Paul e eu voltaremos para Hong Kong no domingo. Vamos nos reunir lá.

— Isso não é possível para mim e...

— Então nós vamos ter que passar sem você. — Linbar perdeu a calma. — Se a operação Turbilhão falhar, a S-G Helicópteros estará liquidada, uma nova companhia, a Helicópteros do Mar do Norte, que aliás já está formada, comprará o ativo e eu duvido que paguemos mais de meio centavo por dólar.

Gavallan ficou vermelho.

— Isso é roubo!

— É apenas o preço do fracasso! Por Deus, se a S-G falir, você está acabado e já não será sem tempo no que me diz respeito, e se você não puder comprar a sua própria passagem para a reunião de diretoria, não fará nenhuma falta.

Gavallan estava fora de si de raiva, mas se controlou. Então, com uma súbita inspiração, ele olhou para Choy.

— Se Turbilhão for um sucesso, você me ajudará a comprar a parte de Struan na companhia?

Antes que Choy pudesse responder, Linbar berrou:

— A nossa parte não está à venda.

— Talvez devesse estar, Linbar — Choy disse Pensativamente. — Desta forma talvez você consiga sair do buraco em que está metido. Por que não se livrar de um pomo de discórdia? Vocês dois vivem brigando e para quê? Por que não acabar com isso, hein?

Linbar disse tensamente.

— Você financiaria esta operação?

— Talvez. Sim, talvez, mas só se você concordasse, Linbar. Esta é uma questão de família.

— Eu nunca vou concordar, Choy! — O rosto de Linbar se contorceu e ele olhou para Gavallan. — Eu quero vê-lo apodrecendo... você e o seu maldito Dunross!

Gavallan levantou-se.

— Verei vocês na próxima reunião do Conselho Central. Veremos o que eles terão a dizer.

— Eles farão o que eu mandar. Eu sou o tai-pan. Aliás, vou tornar Choy um dos membros.

— Você não pode fazer isso, é contra as regras de Dirk. — Dirk Struan, fundador da Struan's, tinha determinado que todos os membros do Conselho teriam que pertencer à família, por mais distantes que fossem as relações, e teriam que ser cristãos. — Você jurou por Deus obedecer às regras.

— Para o inferno com as regras de Dirk. — Linbar respondeu — Você não tem nada a ver com as regras e nem com a herança de Dirk, só o tai-pan, e o que eu jurei obedecer é problema meu. Você se acha tão esperto, pois não é! Choy tornou-se membro da Igreja Episcopal, no ano passado ele se divorciou e dentro em breve vai se casar com alguém da família, uma das minhas sobrinhas, com a minha bênção. Ele vai ser mais da família do que você! — E deu uma gargalhada.

Gavallan não nu. E nem Choy. Eles se mediram com o olhar, a sorte estava lançada.

— Eu não sabia que você tinha se divorciado — disse Gavallan. — Eu deveria lhe dar os parabéns pela... pela sua nova vida e pela indicação.

— Sim, obrigado — foi tudo o que o seu inimigo disse.

No aeroporto de Al Shargaz, Scot se abaixou para apanhar a mala do pai, com os outros passageiros passando apressados, mas Gavallan disse:

— Obrigado, Scot, pode deixar. — E apanhou a mala. — Eu estou precisando de um banho e de umas duas horas de sono. Detesto viajar à noite.

— Genny está esperando lá fora com o carro. — Scot tinha notado o cansaço do pai desde o primeiro momento. — Você teve muitos problemas em Londres?

— Não, não, de jeito nenhum. Estou contente por você estar tão bem. Quais são as novidades aqui?

— Está tudo ótimo, papai, andando de acordo com os planos. Como um relógio.

NOS SUBÚRBIOS AO NORTE DE TEERÃ: 14:35H. Jean-Luc, elegante como sempre no seu uniforme bem cortado e botas sob medida, saltou do táxi. Como tinha prometido, ele pegou uma nota de cem dólares e rasgou-a cuidadosamente ao meio.

—Voilàl

O motorista examinou a sua metade da nota cuidadosamente.

— Só uma hora, aga! Em nome de Deus, aga, não mais do que isso?

— Uma hora e meia, conforme combinamos, depois diretamente de volta para o aeroporto. Eu vou levar alguma bagagem.

— Insha'Allah! — O motorista olhou em volta nervosamente. — Eu não posso esperar aqui. Há muitos olhos. Uma hora e meia. Vou ficar na esquina. Ali! — Ele apontou em frente e arrancou.

Jean-Luc subiu as escadas e abriu a porta do apartamento 4a, que dava para a rua arborizada e que estava virado para o sul. Aquele era o canto dele, embora sua esposa, Marie-Christine, o tivesse achado e arrumado para ele e ficasse lá durante as suas raras visitas. Um quarto, com uma cama baixa e espaçosa, uma cozinha bem equipada, uma sala com um sofá confortável, uma boa vitrola e toca-fita:

— Para distrair as suas amigas, chérí, desde que você não importe nenhuma para a França!

— Eu, chériel Eu sou um amante, não um importador!

Ele sorriu para si mesmo, satisfeito por estar em casa e só um pouco irritado por ser obrigado a deixar tanta coisa — a vitrola era das melhores, os discos ótimos, o sofá charmoso, a cama tão confortável, o vinho dera tanto trabalho para conseguir, e ainda havia os seus apetrechos de cozinha.

— Espèce de con — disse em voz alta e foi até o quarto e experimentou o telefone. Não estava funcionando.

Tirou uma mala de dentro do armário bem organizado e começou a arrumá-la, com rapidez e eficiência, pois já tinha pensado muito sobre o que iria levar. Primeiro as suas facas favoritas e a sua panela de omelete, depois seis garrafas dos melhores vinhos, as outras quarenta e tantas ficariam lá para o próximo inquilino, um inquilino temporário, caso ele um dia voltasse, que estava alugando o apartamento dele a partir do dia seguinte — que ia pagar em francos franceses, depositando na Suíça o aluguel mensal adiantadamente, com mais um bom depósito em dinheiro para consertos, também adiantado.

O acordo já estava sendo negociado desde antes dele sair de licença no Natal. Enquanto todo mundo ainda estava de antolhos, eu estava tomando as minhas providências. Mas é claro que eu levo uma grande vantagem sobre os outros. Eu sou francês.

Ele continuou a fazer a mala alegremente. O novo morador também era francês, um amigo idoso da embaixada que há semanas vinha precisando arranjar uma garçonnière bem equipada para a sua amante adolescente georgiana-circassiana que estava jurando que iria deixá-lo a menos que ele lhe arranjasse um apartamento:

— Jean-Luc, meu querido amigo, deixe-me alugá-lo por um ano, seis meses, três. Eu lhe digo enfaticamente, dentro em pouco, os únicos europeus residentes aqui serão diplomatas. Não diga a mais ninguém, mas eu ouvi isso de uma pessoa importante ligada a Khomeini, em Neauphle-le-Château! Francamente, nós sabemos de tudo o que está acontecendo. Muitos dos assessores mais íntimos de Khomeini não falam francês e não foram educados em universidades francesas? Por favor, eu imploro, eu simplesmente tenho que satisfazer à luz da minha vida.

Meu pobre amigo, Jean-Luc pensou tristemente. Graças a Deus eu nunca terei que me ajoelhar para nenhuma mulher — que sorte tem Marie-Christine por estar casada comigo que posso zelar sabiamente pela sua fortuna!

Os últimos artigos que ele guardou na mala foram os seus instrumentos de vôo e meia dúzia de pares de óculos escuros. Ele tinha guardado todas as suas roupas num armário trancado. É claro que eu serei indenizado pela companhia e comprarei roupas novas. Quem é que precisa de roupas velhas?

Agora ele já tinha acabado, estava tudo bem arrumado. Olhou para o relógio. Só tinha levado 22 minutos. Perfeito. A La Doucette que estava na geladeira estava gelada, apesar dos cortes de eletricidade, a geladeira ainda estava funcionando. Ele abriu a garrafa e experimentou-a. Perfeita. Três minutos mais tarde alguém bateu na porta. Perfeito.

— Sayada, chérie, como você está linda — disse afetuosamente e beijou-a, mas estava pensando, você não está com uma aparência nada boa, parece cansada e desanimada. — Como vai você, chérie?

— Eu tive um resfriado, nada de sério — respondeu. Naquela manhã, ela tinha visto as suas olheiras e as rugas de preocupação no espelho e sabia que Jean-Luc notaria. — Nada sério e agora já estou boa. E você, chérP.

— Hoje estou bem. Amanhã? — E deu de ombros, ajudou-a a tirar o casaco, levantou-a nos braços com facilidade e atirou-se no sofá. Ela era muito bonita e ele estava triste por deixá-la. E por deixar o Irã. Como a Argélia, pensou.

— Em que está pensando, Jean-Luc?

— Em 1963, quando fui obrigado a sair da Argélia. De certa forma, igual ao Irã. Nós estamos sendo forçados a sair do mesmo jeito. — Ele a sentiu estremecer nos seus braços. — O que foi?

— O mundo às vezes é tão horrível. — Sayada nunca lhe contara nada sobre a sua vida real. — Tão injusto — disse enojada, lembrando-se da guerra de 1967 em Gaza e da morte dos seus pais, depois da sua fuga. A história dela era muito parecida com a dele. Lembrando-se também do horror da morte de Teymour e deles. Ela sentiu uma onda de náusea ao pensar no jovem Yassar e no que eles fariam com o seu filho caso ela não se comportasse. Se ao menos eu conseguisse descobrir quem são eles...

Jean-Luc estava servindo o vinho que tinha posto na mesa.

— Não é bom ficarmos sérios, chérie, não temos muito tempo. Saníél O vinho estava gelado e delicioso.

— Quanto tempo? Você não vai ficar?

— Eu tenho que partir dentro de uma hora.

— Para Zagros?

— Não, chérie, para o aeroporto, e depois para Kowiss.

— E quando você volta?

— Eu não voltarei — ele disse e sentiu-a retesar-se. Mas ele a abraçou com firmeza e, um instante depois, ela tornou a relaxar, e ele continuou. Não havia motivo para não confiar nela. — Só entre nós, Kowiss é temporário, extremamente. Nós estamos saindo do Irã, a companhia toda. É óbvio que não somos desejados, não podemos mais operar livremente, a companhia não está sendo paga. Nós fomos expulsos de Zagros, um dos nossos mecânicos foi morto por terroristas há poucos dias e o jovem Scot Gavallan escapou de ser morto por um milímetro. Então só vamos dar o fora. Cestfini.

— Quando?

— Em breve. Não sei exatamente.

— Eu... eu vou sentir... vou sentir saudades de você, Jean-Luc — ela disse e chegou mais perto.

— E eu vou sentir saudades de você, chérie — ele respondeu gentilmente, notando as lágrimas silenciosas que corriam pelo seu rosto. — Quanto tempo você vai ficar em Teerã?

— Eu não sei. — Ela disfarçou a tristeza. — Vou lhe dar um endereço em Beirute, eles saberão onde me encontrar.

— Você pode me encontrar através de Aberdeen.

Eles ficaram sentados no sofá, ela deitada nos braços dele, o relógio sobre a lareira, que geralmente batia tão baixinho, agora estava batendo tão alto, com ambos conscientes do tempo que estava passando e do fim que tinha chegado, não por vontade deles.

— Vamos fazer amor — ela murmurou, sem vontade, mas sabendo que aquilo era esperado dela.

— Não — ele disse galantemente, fingindo ser forte, sabendo que era esperado que ele fosse para a cama e que depois eles se vestissem e fossem franceses e sensatos a respeito do fim do seu caso. Ele olhou para o relógio. Restavam 43 minutos.

— Você não me quer?

— Mais do que nunca. — Ele acariciou-lhe os seios e roçou-lhe o pescoço com os lábios, seu perfume era leve e agradável, pronto para começar.

— Fico contente — ela murmurou com a mesma voz doce — e mais contente ainda por você ter dito não. Eu quero você, mas não por alguns minutos —, Não agora. A pressa estragaria tudo.

Por um momento, ele ficou perdido, sem esperar aquele lance no jogo que estavam jogando. Mas agora que tinha sido dito, ele também ficou satisfeito. Como ela era corajosa em renunciar a tanto prazer, pensou, amando-a profundamente. Era muito melhor recordar os bons momentos do que fazer as coisas apressadamente. Isso realmente me poupa um bocado de esforço e eu não verifiquei se havia água quente. Agora nós podemos sentar, conversar e apreciar o vinho, chorar um pouco e nos sentir felizes.

— Sim, eu concordo. — Mais uma vez ele roçou-lhe o pescoço com os lábios. Ele a sentiu tremer e por um momento ficou tentado a provocá-la. Mas decidiu não fazê-lo. Pobrezinha, por que atormentá-la?

— Como é que vocês todos vão partir, querido?

— Nós vamos voar juntos. Vinho?

— Sim, sim, por favor, está tão bom. — Ela tomou o vinho, enxugou as lágrimas e conversou com ele, investigando essa extraordinária retirada. Tanto eles quanto a Voz achariam tudo isso extremamente interessante, talvez isso até a fizesse descobrir quem eles eram. Enquanto eu não souber, não poderei proteger o meu filho. Oh, Deus, ajude-me a encurralá-los.

— Eu o amo tanto, chéri — ela disse

NO AEROPORTO DE TEERÃ: 18:05H. Johnny Hogg, Pettikin e Nogger olharam para McIver sem entender.

— Você vai ficar? Não vai partir conosco? — Pettikin gaguejou.

— Não. Já disse — McIver respondeu bruscamente. — Tenho que acompanhar Kia a Kowiss amanhã. — Eles estavam ao lado do carro dele no estacionamento, longe de ouvidos estranhos, o 125 estava no pátio, operários embarcavam as últimas peças, com o inevitável grupo de Faixas Verdes observando. E um mulá.

— Nós nunca vimos esse mulá antes — disse Nogger, nervosamente, tentando disfarçar como todos os outros.

— Ótimo. Está todo mundo pronto para embarcar?

— Sim, Mac, exceto Jean-Luc. — Pettikin estava muito inquieto. — Você não acha melhor esquecer Kia?

— Isto seria loucura, Charlie. Não há nada com que se preocupar. Você pode organizar tudo no aeroporto de Al Shargaz com Andy. Eu estarei lá amanhã. Vou embarcar no 125 amanhã, em Kowiss, junto com o restante dos rapazes.

— Mas pelo amor de Deus, todos eles têm autorizações, você não — disse Nogger.

— Pelo amor de Deus, Nogger, nenhum de nós está autorizado a sair daqui — disse McIver, rindo. — Como vamos ter certeza dos nossos rapazes de Kowiss até que eles estejam voando e fora do espaço iraniano? Não há motivo para preocupações. Vamos cuidar de uma coisa de cada vez, nós temos que mandar ao ar esta parte do espetáculo — Ele olhou para o táxi que estava parando. Jean-Luc saltou, entregou ao motorista a outra metade da nota e se aproximou carregando uma mala.

— Alors, mes amis — disse com um sorriso satisfeito. — Ça marchei — McIver suspirou.

— Muito leal de sua parte anunciar que está saindo de férias, Jean-Luc

— O quê?

— Deixa pra lá. — McIver gostava de Jean-Luc pela sua habilidade, sua cozinha e sua sinceridade. Quando Gavallan contara a Jean-Luc a respeito do Turbilhão, Jean-Luc dissera imediatamente:

— Não há dúvida de que retirarei um dos 212 de Kowiss, desde que eu possa estar no vôo de quarta-feira para Teerã e possa ficar umas duas horas por lá.

— Para fazer o quê?

— Mon Dieu, vocês ingleses! Para dizer adieu para o imã, quem sabe? — McIver sorriu para o francês.

— Como estava Teerã?

— Magnifiquel — Jean-Luc devolveu o sorriso e pensou: Há muito tempo que não vejo Mac com um ar tão jovem. Quem será a moça? — Et toi, mon vieux!

— Vou muito bem. — Atrás dele, McIver viu Jones, o co-piloto, descer os degraus de dois em dois, dirigindo-se para onde eles estavam. Agora não havia mais caixotes no chão e a turma de solo iraniana estava voltando para o escritório.

— Está tudo pronto a bordo?

— Tudo pronto, capitão, exceto pelos passageiros — disse Jones, com calma. — A torre de controle está ficando nervosa e diz que estamos atrasados. Venham o mais rápido que puderem, certo?

— Você ainda tem autorização para parar em Kowiss?

— Sim, sem problemas. McIver respirou fundo.

— Está bem, aqui vamos nós, exatamente como planejamos, exceto que eu vou levar os papéis, Johnny. — Johnny Hogg entregou-lhe os papéis e os três, McIver, Hogg e Jones, foram na frente, direto para o mulá, na esperança de distrai-lo. Conforme eles tinham combinado de antemão, os dois mecânicos já estavam a bordo, ostensivamente como carregadores.

— Bom dia, aga — disse McIver, e estendeu os papéis para o mulá, bloqueando a visão da escada. Nogger, Pettikin e Jean-Luc subiram a escada rapidamente e desapareceram lá dentro.

O mulá folheou os papéis, obviamente desacostumado com aquilo.

— Bom. Agora inspeção — disse, com um sotaque carregado.

— Não há necessidade disso, aga — McIver parou. O mulá e os dois guardas já estavam se dirigindo para a escada. — Assim que vocês estiverem a bordo, ligue os motores, Johnny — disse baixinho e seguiu-os.

A cabine estava cheia de caixotes, os passageiros já estavam sentados com os cintos amarrados. Todos os olhos evitaram cuidadosamente o mulá. O mulá olhou para eles.

— Quem são os homens?

McIver disse animadamente — Turmas de substituição, aga. — Sua excitação cresceu quando os motores começaram a roncar. Ele apontou ao acaso para Jean-Luc. — Piloto para substituição em Kowiss, aga. — Depois, com mais pressa ainda: — O komiteh da torre quer que o aparelho parta imediatamente. Depressa, sim?

— O que há nos caixotes? — O mulá olhou para a cabine do piloto quando Johnny Hogg gritou num farsi perfeito:

— Desculpe interromper, Excelência, seja como Deus quiser, mas a torre está ordenando que decolemos imediatamente. Com a sua permissão, por favor?

— Sim, sim, é claro, Excelência piloto. — O mulá sorriu. — O seu farsi é muito bom, Excelência.

— Obrigado, Excelência, que Deus o proteja, e que abençoe o imã.

— Obrigado, Excelência piloto, que Deus o proteja. — O mulá saiu. Quando estava saindo, McIver inclinou-se para a cabine.

— O que foi que você disse, Johnny? Eu não sabia que você falava farsi.

— Eu não falo — Hogg disse secamente. — Eu acabei de aprender aquela frase, achei que podia ajudar.

— Você vai para o primeiro lugar da classe! — McIver sorriu e depois abaixou a voz. — Quando chegar em Kowiss, faça Duke conseguir com 'Pé-quente', seja lá como for, que os rapazes partam o mais cedo possível. Eu não quero Kia lá quando eles partirem. Diga a ele para tirá-los de lá bem cedo, do jeito que for. Certo?

— Sim, é claro, eu tinha me esquecido disso. É uma idéia muito boa.

— Tenha um bom vôo. Vejo você em Al Shargaz. — E ergueu os polegares para eles animadamente enquanto eles taxiavam pela pista.

Assim que decolaram, Nogger explodiu:

— Nós conseguimos! — Todo mundo se juntou a ele, exceto Jean-Luc, que se benzeu supersticiosamente e Pettikin, que bateu na madeira.

— Merde — Jean-Luc exclamou. — Guarde o seu entusiasmo, Nogger, você pode ficar preso em Kowiss. Poupe o seu entusiasmo para sexta-feira, muita coisa pode acontecer entre hoje e sexta.

— Você tem razão, Jean-Luc — disse Pettikin, do assento da janela ao lado dele, vendo o aeroporto ficar para trás. — Mac estava de bom humor. Há meses que não o via tão contente e ele estava desanimado hoje de manhã. É estranho como as pessoas podem mudar.

— Sim, estranho. Eu ficaria muito zangado se tivesse que mudar os meus planos dessa maneira. — Jean-Luc estava procurando uma posição confortável e se encostou no assento, pensando em Sayada e na despedida deles que tinha sido docemente triste. Olhou para Pettikin e viu que ele estava com um ar preocupado. — O que foi?

— De repente, fiquei pensando como é que Mac vai chegar em Kowiss.

— De helicóptero, é claro. Ainda há dois 206 e um Alouette.

— Tom levou o Alouette para Kowiss hoje e não há mais nenhum piloto lá.

— Então ele vai de carro, é claro. Por quê?

— Você não acha que ele seria suficientemente louco para ir pilotando, acha?

— Você está louco? É claro que não, ele não é... — Jean-Luc franziu a testa — Merde, ele é bastante maluco para isso.

NO QG DO SERVIÇO SECRETO; 18:30H. Hashemi Fazir estava em pé diante da janela do seu amplo escritório, olhando por sobre os telhados da cidade e dos minaretes, enormes cúpulas de mesquitas no meio dos modernos hotéis e edifícios, com o último dos chamados dos muezins ainda ecoando. Uma quantidade um pouco maior de luzes acesas do que de costume. Tiros ao longe.

— Filhos de um cão — resmungou, depois, sem se virar, disse asperamente: — Foi só isso que ela falou?

— Sim, Excelência, "dentro de poucos dias". Ela disse que tinha "quase certeza" de que o francês não sabia exatamente quando iriam partir.

— Ela devia ter-se certificado. Negligente. Agentes negligentes são perigosos. Apenas 212, hein?

— Sim, ela tinha certeza quanto a isso. Eu concordo que foi negligente e que deve ser castigada.

Hashemi percebeu o prazer malicioso na voz mas não deixou que isso perturbasse o seu bom humor, deixou simplesmente a sua mente vagar, decidindo o que fazer a respeito de Sayada Bertolin e sua informação. Ele estava muito satisfeito consigo mesmo.

Hoje tinha sido um dia excelente. Um dos seus associados secretos fora nomeado o número dois de Abrim Pahmudi na Savama. Ao meio-dia, um telex de Tabriz confirmara a morte de Abdullah Khan. Imediatamente, ele passara um telex de volta para conseguirem um encontro no dia seguinte com Hakim Khan e requisitara um dos aviões da Savama. A operação para mandar Talbot para o inferno fora realizada com êxito e ele não encontrara nenhuma pista dos responsáveis — um time do Grupo Quatro — quando inspecionou a área bombardeada, já que, evidentemente, ele fora chamado imediatamente. Os que estavam por perto não tinham visto ninguém estacionar o carro:

— Num momento havia a paz de Deus, no outro a fúria de Satã.

Há uma hora atrás, Abrim Pahmudi telefonara pessoalmente, ostensivamente para lhe dar os parabéns. Mas ele evitara a armadilha e negara cautelosamente que a explosão tivesse algo a ver com ele — é melhor não chamar atenção para a semelhança com o primeiro carro-bomba que matou o general Janan, é melhor deixar Pahmudi sem saber e sob pressão. Ele disfarçara o riso e dissera gravemente:

— Seja como Deus quiser, Excelência, mas este foi outro ataque terrorista dos malditos esquerdistas. Talbot não era o alvo, embora a sua morte tenha convenientemente eliminado esse problema. Sinto dizer, mas o ataque foi, mais uma vez, contra os partidários do imã. — Culpar os terroristas e dizer que o ataque fora contra os aiatolás e mulás que costumavam freqüentar o restaurante iria assustá-los e isso desviaria a pista de Talbot e evitaria uma possível retaliação britânica. Certamente da parte de Robert Armstrong se ele viesse a descobrir, e assim ele esmagava vários escorpiões com uma só pedra.

Hashemi virou-se e olhou para o homem de rosto esperto, Suliman al Wiali, o líder do Grupo Quatro que tinha colocado o carro-bomba de hoje — o mesmo homem que apanhara Sayada Bertolin no quarto de Teymour.

— Dentro de poucos minutos estarei partindo para Tabriz. Estarei de volta amanhã ou depois. Um inglês alto, Robert Armstrong, estará comigo. Designe um dos seus homens para segui-lo, certifique-se de que o homem saiba onde Armstrong mora, depois faça-o acabar com ele de algum modo, em algum lugar no meio da rua, depois que escurecer. Não o faça você mesmo.

— Sim, Excelência. Quando?

Hashemi tornou a passar em revista o seu plano e não encontrou nenhuma falha.

— No dia seguinte.

— Este é o mesmo homem com quem o senhor quis que Sayada dormisse?

— Sim. Mas agora eu mudei de idéia. — Robert não tem mais nenhum valor, pensou. Mais do que isso, a sua hora chegou.

— O senhor tem algum outro trabalho para ela, Excelência?

— Não, nós destruímos a rede de Teymour.

— Seja como Deus quiser. Posso fazer uma sugestão?

Hashemi estudou-o. Suliman era o seu líder do Grupo Quatro mais eficiente, confiável e perigoso, com uma cobertura de agente do Serviço Secreto ligado diretamente a ele. Suliman dizia que tinha vindo das montanhas ao norte de Beirute depois da sua família ter sido assassinada e ele ter sido expulso de lá por soldados cristãos, e Hashemi o tirara cinco anos mais tarde de uma prisão síria, comprando a sua liberdade, pois ele fora condenado à morte por assassinato e banditismo dos dois lados da fronteira, e sua única defesa era: "Eu só matei judeus e infiéis conforme Deus ordenou, logo eu faço o trabalho de Deus. Eu sou um vingador."

— Que sugestão? — perguntou

— Ela é uma mensageira comum da OLP, nem é muito boa e atualmente é perigosa e pode representar uma ameaça. É fácil de ser controlada por judeus ou agentes da CIA e de ser usada contra nós. Como bons fazendeiros, nós deveríamos plantar sementes onde poderemos ter uma boa colheita. — Suliman sorriu. — O senhor é um fazendeiro inteligente, Excelência. A minha sugestão é dizer a ela que está na hora de voltar para Beirute, que nós, os dois que a apanhamos se prostituindo, queremos agora que ela trabalhe para nós lá. Nós a deixamos ouvir uma conversa particular entre nós e fingimos fazer parte de uma célula de milícia cristã do sul do Líbano, agindo sob ordens dos israelenses para os seus senhores da CIA. — O homem riu silenciosamente, ao ver a surpresa do seu patrão.

— É então?

— O que transformaria uma palestina copta medíocre, anti-Israel, numa fera fanática, com sede de vingança? — Hashemi olhou para ele

— O quê?

— Digamos que alguns desses mesmos soldados da milícia cristã, agindo sob ordens de Israel para os seus senhores da CIA, ferissem propositalmente o seu filho, o ferissem gravemente, na véspera dela chegar, e depois desaparecessem, isso não a Tornaria uma inimiga fanática dos nossos inimigos?

Hashemi acendeu um cigarro para disfarçar o seu nojo.

— Eu só concordo que a utilidade dela acabou — ele disse e viu um Iampejo de irritação.

— Que valor tem o filho dela, e que futuro? Suliman disse com desprezo. — Com uma mãe dessas e vivendo com parentes cristãos ele vai continuar sendo cristão e irá para o inferno

— Israel é nosso aliado. Fique fora das questões do Oriente Médio ou eles vão comê-lo vivo. Está proibido!

— Se o senhor diz que está proibido, está proibido, mestre. — Suliman curvou-se e balançou a cabeça, concordando. — Juro pelos meus filhos.

— Ótimo. Você trabalhou muito bem hoje. Obrigado. — Ele foi até o cofre e apanhou um maço de notas usadas de dólares do estoque que mantinha lá. Viu o rosto de Suliman iluminar-se. — Aqui está uma gratificação para você e seus homens.

— Obrigado, obrigado, Excelência, que Deus o proteja! Este homem, Armstrong, pode considerar-se morto. — Cheio de gratidão, Suliman fez uma mesura e saiu.

Agora que estava sozinho, Hashemi destrancou uma gaveta e serviu-se de um uísque. Mil dólares são uma fortuna para Suliman e seus três homens, mas são um bom investimento, pensou satisfeito. Oh, sim. Estou satisfeito por ter tomado uma decisão a respeito de Robert. Ele sabe demais, suspeita de muita coisa — não foi ele quem deu o nome aos meus grupos?

— Os times do Grupo Quatro devem ser usados para o bem e não para o mal, Hashemi — ele tinha dito naquele tom de voz de quem sabe tudo. — Quero apenas alertá-lo, o poder deles pode ser embriagador e voltar-se contra você. Lembre-se do Velho da Montanha, hein?

Hashemi tinha rido para disfarçar o choque por Robert ter lido o que se passava no fundo da sua mente.

— O que tem al-Sabbah e seus assassinos a verem comigo? Nós estamos vivendo no século XX e eu não sou um fanático religioso. E o que é mais importante, Robert, eu não tenho um castelo Alamut!

— Mas ainda existe haxixe., e coisas melhores.

— Eu não quero viciados nem assassinos, apenas homens em quem eu possa confiar.

A palavra assassino derivou-se de hashshashin, aqueles que tomavam haxixe. A lenda diz que no século XI, em Alamut — a fortaleza inexpugnável de Hasan ibn al-Sabbah nas montanhas perto de Qazvin — ele tinha mandado construir jardins secretos iguais aos Jardins do Paraíso descritos no Corão, onde vinho e mel jorravam das fontes e onde viviam lindas raparigas. Os devotos do haxixe eram levados secretamente para lá e desfrutavam de uma amostra da felicidade eterna e erótica que os aguardava no Paraíso depois da morte. Então, depois de um, dois ou três dias, o 'Abençoado' era 'trazido de volta para a terra', com a promessa de voltar para lá em breve — em troca de obediência total à sua vontade.

Vindo de Alamut, o bando fanático de viciados em haxixe de Hasan ibn al-Sabbah — os Assassinos — aterrorizou a Pérsia e, logo depois, todo o Oriente Médio. Isso continuou por quase dois séculos. Até 1256. Então um neto e Gengis Khan, Hulugu Khan, foi para a Pérsia e lançou as suas hordas contra Alamut, não deixando pedra sobre pedra da fortaleza do alto da montanha e arrasando com os assassinos.

Os lábios de Hashemi eram uma linha fina. Ah, Robert, como foi que você conseguiu erguer o véu e descobrir o meu plano secreto: modernizar a idéia de al-Sabbah, tão fácil fazer isso agora que o xá partiu e o país está em reboliço. Tão fácil, com drogas psicodélicas, alucinógenos e uma quantidade inesgotável de fanáticos simplórios, já imbuídos do desejo do martírio, que só precisam ser guiados e levados na direção certa — para remover quem quer que eu escolha. Como Janan e Talbot. E você.

Mas com que carniça eu tenho que lidar para maior glória do meu feudo. Como podem as pessoas ser tão cruéis? Como podem se divertir com tanta crueldade gratuita, como arrancar os órgãos genitais de um homem ou maltratar uma criança? Será que é só porque vêm do Oriente Médio, vivem no Oriente Médio e não se adaptam a nenhum outro lugar? Que coisa terrível não poderem aprender conosco, não poderem se beneficiar da nossa antiga civilização. O império de Ciro e Dario tem que voltar, nisto o xá tinha razão. Os meus assassinos mostrarão o caminho, até mesmo para Jerusalém.

E tomou o uísque, muito satisfeito com o seu dia de trabalho. Estava muito bom. Ele o preferia sem gelo.


QUINTA-FEIRA

1 de marco55

NA ALDEIA PERTO DA FRONTEIRA SETENTRIONAL: 5:30H. Sob a luz do falso amanhacer, Erikki calçou as botas. Depois vestiu a jaqueta, sentindo o couro macio e gasto, tirou a faca da bainha e enfiou-a na manga. Abriu a porta da cabana. A aldeia estava adormecida sob o manto de neve. Ele não viu nenhum guarda. O abrigo do helicóptero também estava silencioso, mas ele sabia que o aparelho estava muito bem guardado. Ele tinha verificado várias vezes durante o dia e de noite. Em cada uma das vezes, os guardas que ficavam nas cabines tinham apenas sorrido para ele, alerta e educados. Não havia nenhuma maneira de lutar contra os três e decolar. A sua única chance era a pé, e ele vinha planejando isso desde que se confrontara com o xeque Bayazid há dois dias.

Seus sentidos se aguçaram na escuridão. As estrelas estavam ocultas atrás de uma camada fina de nuvens. Agora! Com firmeza, ele saiu e caminhou ao longo da fileira de cabanas, em direção às árvores, e então se viu preso na rede que parecia ter caído do céu, lutando por sua vida.

Havia quatro nativos nas pontas da rede usada para apanhar cabritos selvagens. Com muita habilidade, eles o prenderam cada vez mais apertado, e embora ele urrasse de ódio e com sua imensa força conseguisse arrebentar algumas das cordas, em pouco tempo estava caído na neve, impotente. Por um instante, ficou caído lá, ofegante, mas logo tornou a tentar livrar-se das cordas, com a sensação de impotência fazendo-o berrar. Mas quanto mais ele lutava contra as cordas, mais apertadas elas ficavam. Finalmente, parou de lutar e se deitou, tentando recuperar o fôlego, e olhou em volta. Estava cercado. Toda a aldeia estava acordada, vestida e armada. Obviamente, estavam esperando por ele. Ele nunca tinha visto nem sentido tanto ódio.

Foi preciso cinco homens para erguê-lo e arrastá-lo para a cabana de reuniões e atirá-lo rudemente no chão de terra diante do xeque Bayazid que estava sentado de pernas cruzadas em cima de algumas peles, no seu lugar de honra junto ao fogo. A cabana era ampla, encardida de fumaça e estava cheia de homens da tribo.

— Então — disse o xeque —, então você ousou me desobedecer? Erikki ficou quieto, recuperando as forças. O que poderia dizer?

— Durante a noite, um dos meus homens voltou do palácio do khan. — Bayazid estava tremendo de ódio. — Ontem à tarde, por ordem do khan, o meu mensageiro teve a garganta cortada, contra todas as leis do cavalheirismo. O que você tem a dizer sobre isso? Ele teve a garganta cortada como um cão! Como um cão!

— Eu... eu não posso acreditar que o khan tenha feito uma coisa dessas — disse Erikki — não posso acreditar.

— Pelos Nomes de Deus, a garganta dele foi cortada. Ele está morto e nós estamos desonrados. Todos nós, inclusive eu! Desgraçados, e por sua causa!

— O khan é um demônio. Eu sinto muito, mas não...

— Nós tratamos o khan com honradez e tratamos você com honradez, você foi um despojo de guerra tirado dos inimigos do khan e nossos, você é casado com a filha dele e ele tem mais sacos de ouro do que os pêlos de um cabrito. O que são dez milhões riais para ele? Um pouco de merda de cabrito. Mas o pior é que ele nos privou da nossa honra. Morte para ele!

Elevou-se um murmúrio entre os que estavam observando e esperando, sem compreender inglês, mas percebendo a cólera do chefe. Mais uma vez ele exclamou com ódio:

— Insha'Allah! Agora nós vamos soltá-lo como você deseja, a pé, e depois vamos caçá-lo. Nós não o mataremos com balas e nem você verá o pôr-do-sol, e a sua cabeça será um presente para o khan. — O xeque repetiu o castigo na sua própria língua e fez um gesto com a mão. Os homens avançaram.

— Espere, espere! — Erikki gritou, com o medo dando-lhe uma idéia.

— Você deseja implorar misericórdia? — Bayazid disse com desprezo. — Eu pensei que você fosse um homem. Foi por isso que não ordenei que cortassem a sua garganta enquanto você dormia.

— Não quero misericórdia, mas sim vingança! — Então Erikki urrou: — Vingança! — Houve um silêncio de assombro. — Para você e para mim! Você não merece vingar-se de tal desonra?

O xeque hesitou.

— Que truque é esse?

— Eu posso ajudá-lo a recuperar a honra. Só eu posso. Vamos invadir o palácio do khan e nos vingar dele. — Erikki rezou aos seus antigos deuses para que transformassem suas palavras em ouro.

— Você está louco!

— O khan é mais meu inimigo do que seu. Por que ele desgraçaria a nós dois a não ser para lançar a sua fúria contra mim? Eu conheço o palácio. Posso colocar você e mais 15 homens armados dentro do pátio em poucos segundos e...

— Loucura — respondeu o xeque. — Você acha que vamos desperdiçar as nossas vidas como os idiotas tomadores de haxixe? O khan tem muitos guardas.

— Cinqüenta e três dentro dos muros, não mais do que quatro ou cinco de serviço de cada vez. Os seus soldados são tão fracos que não possam lidar com cinqüenta e três? Nós temos a surpresa do nosso lado. Um ataque repentino vindo do céu, uma investida impiedosa para vingar a sua honra. Eu poderia fazê-lo entrar e sair do mesmo jeito em questão de minutos. Abdullah Khan está doente, muito doente, os guardas não estarão preparados e nem os empregados. Eu sei como entrar, onde ele dorme, tudo...

Erikki ouviu a sua própria voz animando-se, sabendo que poderia conseguir: o ataque violento por cima dos muros e o pouso súbito, depois saltaria, mostraria o caminho para entrar no palácio, subiria as escadas, atravessaria o corredor, derrubaria Ahmed e quem mais estivesse no caminho, entraria no quarto do khan, depois deixaria Bayazid e seus homens fazerem o que bem entendessem, chegaria na ala norte e salvaria Azadeh, e se ela não estivesse lá, ou se estivesse ferida, então mataria, mataria o khan, os guardas, aqueles homens, todo mundo.

Ele estava possuído pelo seu plano.

— O seu nome não seria lembrado por mil anos por causa da sua ousadia? Xeque Bayazid, aquele que ousou humilhar e desafiar o khan de todos os Gorgons dentro do seu covil por uma questão de honra? Os menestréis não cantariam eternas canções sobre você, em volta das fogueiras de todos os curdos? Não é isto o que Saladino, o Curdo, teria feito?

Ele viu os olhos brilhando de uma forma diferente, viu Bayazid hesitar, com o silêncio crescendo, ouviu-o falar em voz baixa com o seu povo e então um dos homens riu e gritou alguma coisa e os outros se juntaram a ele e então, a uma só voz, eles berraram a sua aprovação.

Mãos ansiosas o soltaram. Homens brigavam pelo privilégio de participar do ataque. Os dedos de Erikki tremiam quando ele apertou o botão de arranque. O primeiro dos jatos explodiu e ganhou vida.

NO PALÁCIO DO KHAN: 6:35H. Hakim despertou violentamente. O seu guarda-costas, que estava perto da porta, levou um susto.

— O que foi, Alteza?

— Nada, nada, Ishtar, eu estava... eu estava sonhando. — Agora que estava bem acordado, Hakim tornou a deitar-se e espreguiçou-se devagar, ansioso pelo novo dia. — Traga-me café. Depois do meu banho, vou tomar café aqui e peça à minha irmã para vir para cá

— Sim, Alteza, imediatamente.

O guarda-costas saiu. Ele se espreguiçou de novo. A madrugada estava escura. O quarto, amplo e enfeitado, era frio e cheio de correntes de ar, mas era o quarto do khan. Na enorme lareira, o fogo crepitava, alimentado a noite inteira pelo guarda, e ninguém tinha permissão de entrar ali, exceto o guarda — que ele escolhera pessoalmente entre os 53 que havia no palácio, aguardando uma decisão sobre o seu futuro. Como saber em quais posso confiar, pensou, depois saiu da cama, agasalhando-se bem com o robe de brocado — um dos cinqüenta que encontrara no armário — ficou de frente para Meca e para o Corão, ajoelhou-se e fez a primeira oração do dia. Quando terminou, ficou lá, contemplando o antigo Corão, imenso, cravejado de pedras preciosas, escrito à mão e inestimável, o Corão do Gorgon Khan — o seu Corão. Há tanto o que agradecer a Deus, pensou, tanto o que aprender ainda, tanto o que fazer, mas o começo já foi maravilhoso.

Na véspera, pouco depois da meia-noite, diante de toda a família reunida, ele tirara o anel de ouro e esmeralda, símbolo do antigo khanato, do dedo indicador da mão direita do seu pai e o colocara no próprio dedo. Tivera que fazer força para o anel passar sobre a camada de gordura e que fechar o nariz para o fedor da morte que impregnava o quarto. Sua excitação tinha vencido a repulsa e agora ele era realmente khan. Depois, toda a família se ajoelhara e beijara-lhe a mão, jurando-lhe lealdade, Azadeh, orgulhosamente, em primeiro lugar, depois Aysha, assustada e tremendo, depois os outros, Najoud e Mahmud aparentemente servis, mas secretamente agradecendo a Deus pela morte do khan.

Depois, lá embaixo, no salão, com Azadeh em pé atrás dele, Ahmed e os guardas também juraram lealdade — o resto da família viria mais tarde, junto com outros líderes tribais, criados pessoais e da casa. Imediatamente, ele dera ordens para o funeral e depois tinha-se permitido olhar para Najoud.

— Então?

— Alteza — disse Najoud, com uma voz untuosa —, de todo o coração, diante de Deus, nós nos congratulamos com o senhor e juramos servi-lo no que estiver ao nosso alcance.

— Obrigado, Najoud. Obrigado. Ahmed, qual foi a sentença decretada pelo khan antes de morrer a respeito da minha irmã e da sua família? — Houve uma súbita tensão no salão.

— Banimento, sem dinheiro, para as terras desertas ao norte de Meshed, Alteza, sob escolta, imediatamente.

— Sinto muito, Najoud, você e toda a sua família partirão ao amanhecer conforme foi decidido.

Ele recordou como o seu rosto ficara lívido e o de Mahmud também e ela tinha gaguejado:

— Mas Alteza, agora o senhor é o khan, a sua palavra é lei. Eu não esperava... o senhor é o khan agora.

— Mas o khan, nosso pai, deu a ordem enquanto ele era a lei, Najoud. Não seria correto passar por cima dele.

— Mas o senhor é a lei agora — dissera Najoud, com um sorriso falso — o senhor deve fazer o que é certo.

— Com a ajuda de Deus, eu vou tentar, Najoud. Mas não posso passar por cima do meu pai no seu leito de morte.

— Mas Alteza... — Najoud tinha chegado mais perto. — Por favor, podemos... podemos discutir isso em particular?

— É melhor que seja aqui, na frente da família, Najoud. O que você queria dizer?

Ela tinha hesitado e chegara mais perto ainda, e ele sentiu Ahmed ficar tenso e se preparar para empunhar a faca, e sentiu os cabelos da nuca se arrepiarem.

— Só porque Ahmed disse que o khan deu esta ordem, não quer dizer que... quer? — Najoud tinha tentado sussurrar, mas as suas palavras ecoaram na sala.

Ahmed suspirou.

— Que Deus me faça arder para sempre se eu menti.

— Eu sei que você não mentiu, Ahmed — Hakim dissera com tristeza.

— Eu não estava lá quando o khan decidiu? Eu estava lá, Najoud, bem como Sua Alteza, minha irmã. Eu sinto...

— Mas você pode ser misericordioso! — gritara Najoud. — Por favor, por favor, tenha piedade!

— Oh, mas eu tenho, Najoud. Eu a perdôo. Mas o castigo foi por você ter mentido em nome de Deus — disse gravemente —, não por ter mentido sobre minha irmã e eu, causando-nos anos de sofrimento, fazendo-nos perder o amor do nosso pai. É claro que nós a perdoamos por isso, não é, Azadeh?

— Sim, sim, isso está perdoado.

— Isso está publicamente perdoado. Mas mentir em nome de Deus? O khan deu uma ordem. Eu não posso passar por cima dela

— Eu não sabia de nada disso, Alteza, nada, juro por Deus, eu acreditei nas mentiras dela — gritou Mahmud. — Eu me divorcio formalmente dela por ser uma traidora, eu nunca soube de nada a respeito das mentiras dela!

No salão, todo mundo os viu rastejar, uns com ódio, outros com desprezo por terem falhado quando estavam com o poder nas mãos.

— Ao amanhecer, Mahmud, você será banido, você e toda a sua família — ele dissera com tristeza —, sem um tostão, sob escolta, até quando me aprouver. Quanto ao divórcio, ele é proibido na minha casa. Se você quiser fazer isso em Meshed... Insha'Allah. Você ainda será banido, até quando me aprouver...

Oh, você foi perfeito, Hakim, disse para si mesmo, encantado, pois é claro que todo mundo sabia que aquele era o seu primeiro teste. Você foi perfeito! Nem uma vez você se vangloriou abertamente ou revelou o seu verdadeiro propósito, nem uma vez você levantou a voz, mantendo-se calmo, gentil e grave, como se estivesse realmente triste com a sentença do seu pai mas não pudesse ignorá-la. E a promessa bondosa de "até quando me aprouver"? O que me apraz é que vocês todos sejam banidos para sempre e se eu souber de alguma conspiração, eu os mandarei para o inferno. Por Deus e pelo Profeta, cujo nome seja louvado, eu farei o fantasma do meu pai orgulhoso deste khan de todos os Gorgons. Deus permita que ele esteja no inferno por ter acreditado nas mentiras maldosas daquela encrenqueira perversa.

Há tanto o que agradecer a Deus, pensou, hipnotizado pelos lampejos que o fogo causava nas jóias do Corão. Os anos todos de banimento não lhe ensinaram a ser dissimulado e paciente? Agora você tem o seu poder para cimentar, o Azerbeijão para defender, um mundo para conquistar, esposas para encontrar, filhos para criar e uma linhagem para iniciar. Que Najoud e suas crias apodreçam!

Ao amanhecer, ele tinha, "infelizmente", sido obrigado a ir com Ahmed assistir a partida deles. Espertamente, tinha insistido para que nenhuma outra pessoa da família fosse despedir-se deles. "Para que aumentar a tristeza deles e a minha?" Lá, de acordo com as instruções que tinha dado, ele assistira Ahmed e os guardas rasgarem as montanhas de malas, retirando tudo o que fosse de valor, até que só houvesse uma mala para cada um deles e seus três filhos, que olhavam apavorados.

— As suas jóias, mulher — tinha dito Ahmed.

— Você já me tirou tudo, tudo... por favor, Hakim... Alteza, por favor... — Najoud soluçou. A sua caixa de jóias, escondida num compartimento secreto da mala, já tinha sido acrescentada à pilha de objetos de valor. Abruptamente, Ahmed estendeu a mão e arrancou-lhe o broche, abrindo a gola do vestido. Ela estava usando uma dúzia de colares, de diamantes, rubis, esmeraldas e safiras.

— Onde você conseguiu isso? — Hakim tinha perguntado, perplexo.

— Eles são... eles são da minha mãe e meus, eu os comprei ao longo dos anos — Najoud calou-se quando Ahmed puxou a faca. — Está bem... está bem... — Ela os tirou rapidamente e os entregou a ele. — Agora você já tem tudo.

— Seus anéis!

— Mas Alteza, deixe-me ficar com alguma coisa. — Ela gritou quando Ahmed, impaciente, agarrou um dos seus dedos para cortá-los fora junto com o anel, mas ela tirou os anéis e também o bracelete que tinha escondido na manga, urrando de tristeza e os atirou no chão. — Agora você tem tudo.

— Agora apanhe tudo e entregue a Sua Alteza, de joelhos! — Ahmed disse com ódio e quando ela não obedeceu imediatamente, ele a agarrou pelos cabelos, enfiando-lhe a cara no chão, e ela obedeceu.

Ah, aquilo foi uma festa, pensou Hakim, rememorando cada detalhe da humilhação deles. Depois que estiverem todos mortos, Deus os queimará.

Ele fez outra mesura, deixou Deus de lado até a próxima oração do meio-dia e ficou de pé, cheio de energia. Uma empregada estava de joelhos, servindo café, e ele viu o medo nos olhos dela e ficou muito contente. Assim que se tornou khan, ele viu que era vital trabalhar rapidamente para segurar as rédeas do poder. Na véspera de manhã, ele inspecionara o palácio. A cozinha não estava suficientemente limpa para ele, e então fez com que o cozinheiro-chefe fosse espancado até perder os sentidos e fosse colocado do lado de fora dos muros, depois tinha promovido o segundo cozinheiro para o lugar do primeiro, com ameaças terríveis. Quatro guardas tinham sido expulsos por dormirem demais, duas empregadas chicoteadas por desleixo.

— Mas Hakim, meu querido — tinha dito Azadeh, quando ficaram a sós —, não havia necessidade de bater nelas.

— Dentro de um ou dois dias não haverá mais necessidade — respondera.

— Nesse meio tempo, o palácio vai ficar do jeito que eu quero.

— É claro que você é quem sabe, meu querido. E quanto ao resgate?

— Ah, sim, imediatamente. — Ele tinha mandado chamar Ahmed.

— Sinto muito, Alteza, o khan, seu pai, ordenou que a garganta do mensageiro fosse cortada ontem à tarde.

Ele e Azadeh tinham ficado apavorados.

— Mas isso é terrível! O que podemos fazer agora? — Ela tinha exclamado.

— Eu vou tentar entrar em contato com os homens da tribo. Talvez, já que o khan, seu pai, está morto, eles... eles tornem a negociar. Eu vou tentar — disse Ahmed.

Sentado lá no lugar do khan, Hakim notara a confiança de Ahmed e percebera a armadilha em que estava metido. O medo tomou conta dele. Seus dedos brincavam com o anel de esmeralda que tinha no dedo.

— Azadeh, volte dentro de meia hora, por favor.

— É claro — ela disse obedientemente, e quando ficou sozinho com Ahmed, ele perguntou:

— Quais são as armas que você carrega?

— Uma faca e uma automática, Alteza.

— Dê-mas. — Ele recordou como o seu coração tinha batido e que havia uma secura incomum na sua boca, mas isso tivera que ser feito e a sós. Ahmed hesitara e depois obedecera, nada satisfeito em ser desarmado. Mas Hakim fingira não notar, apenas examinara a arma e a empunhara Pensativamente. — Agora ouça atentamente, conselheiro: você não vai tentar entrar em contato com os homens da tribo, você fará isso muito depressa e fará todos os acordos necessários para que o marido de minha irmã volte são e salvo. Sua cabeça responde por isso... por Deus e pelo Profeta!

— Eu... é claro, Alteza — Ahmed tentou disfarçar a raiva. Preguiçosamente, Hakim apontou a arma para a cabeça dele, mirando.

— Eu jurei por Deus que o trataria como primeiro conselheiro e o farei, enquanto você viver. — Ele sorriu de lado. — Mesmo que você fique aleijado, seja talvez castrado, até mesmo cegado pelos seus inimigos. Você tem inimigos, Ahmed Dursak, o Turcomano?

Ahmed riu, tranqüilizado, satisfeito com o homem que se tinha tornado khan, que não era o garoto que ele imaginara — era tão mais fácil lidar com um homem, pensou, sentindo voltar a sua confiança.

— Muitos, Alteza, muitos. Não é costume medir-se a qualidade de um homem pela importância dos seus inimigos? Insha'Allah! Eu não sabia que o senhor sabia lidar com armas.

— Há muitas coisas a meu respeito que você não sabe, Ahmed — ele tinha dito com uma satisfação amarga, tendo conseguido uma vitória importante. E devolvera a faca a Ahmed, mas não a automática. — Vou guardar isto aqui como pishkesh. Durante um ano e um mês não venha armado à minha presença.

— Então como poderei protegê-lo, Alteza?

— Com sabedoria. — Ele permitira que uma pequena parcela da violência que mantivera oculta durante anos aparecesse. — Você tem que provar o seu valor para mim. Só para mim. O que agradava ao meu pai não irá necessariamente agraciar a mim. Esta é uma nova era, com novas oportunidades e novos perigos. Lembre-se, por Deus, o sangue do meu pai corre nas minhas veias.

Durante o resto do dia e parte da noite, ele recebera homens importantes de Tabriz e do Azerbeijão e fizera-lhes perguntas sobre a insurreição e sobre os esquerdistas, os mujhadins, os fedayims e outras facções. Tinham vindo lojistas do bazar, mulás, dois aiatolás, os comandantes do exército local e o seu primo, o chefe de polícia, e ele confirmara o homem no posto. Todos tinham trazido um pishkesh adequado.

E tinham mesmo que trazer, pensou satisfeito, recordando o desprezo deles no passado quando a sua fortuna era zero e todo mundo sabia que ele fora banido para Khoi. O desprezo deles vai lhes custar muito caro...

— O seu banho está pronto, Alteza, e Ahmed está esperando lá fora.

— Faça-o entrar, Ishtar. Você fica. — E ficou olhando para a porta. Ahmed estava cansado e amarrotado.

— Salaam, Alteza.

— E quanto ao resgate?

— Ontem à noite, bem tarde, eu encontrei os homens da tribo. Eram dois. Eu expliquei a eles que Abdullan Khan estava morto e que o novo khan ordenara que eu lhes entregasse metade do resgate pedido imediatamente, como um sinal de confiança, prometendo-lhes o restante para quando o piloto estivesse de volta, são e salvo. Eu os mandei para o norte num dos nossos carros, com um motorista de confiança, e mandei que outro carro os seguisse secretamente.

— Você sabe quem são eles, onde é a aldeia deles?

— Eles me disseram que eram curdos, um se chamava Ishmud, o outro Alilah, o chefe deles era al-Drah e a aldeia chama-se Árvore Quebrada e fica ao norte de Khoi. Tenho certeza de que é tudo mentira, Alteza, e embora eles digam que são curdos, não são nada. Eu diria que são apenas nativos, na maioria bandidos.

— Ótimo. Onde você conseguiu o dinheiro para o resgate?

— O khan, seu pai, entregou-me vinte milhões de riais para emergências.

— Traga-me o balanço deste dinheiro antes do pôr-do-sol.

— Sim, Alteza.

— Você está armado? Ahmed ficou perplexo.

— Só estou com a minha faca, Alteza.

— Dê-ma — disse, disfarçando a satisfação por Ahmed ter caído na armadilha que preparara para ele, recebendo a faca das mãos dele. — Eu não lhe disse para não vir armado à minha presença durante um ano e um dia?

— Mas como... como o senhor me devolveu a faca, eu pensei... eu pensei que a faca... — Ahmed calou-se, vendo Hakim de pé em frente a ele segurando corretamente a faca, com os olhos escuros e duros, parecidos com os do pai. Atrás dele, o guarda Ishtar observava boquiaberto. Os pêlos do pescoço de Ahmed se eriçaram. — Perdoe-me, Alteza, por favor, eu pensei que tivesse a sua permissão — disse, realmente amedrontado.

Por um momento, Hakim Khan ficou simplesmente olhando para Ahmed, com a faca na mão, depois deu um golpe de baixo para cima, com grande habilidade, só a ponta da faca atravessou o casaco de Ahmed, tocou em sua pele mas só o suficiente para marcá-lo e tornou a sair na posição perfeita para o golpe fatal. Mas Hakim não deu esse golpe, embora tivesse vontade de ver o sangue jorrar e aquele fosse um bom momento, mas não era o momento perfeito. Ele ainda precisava de Ahmed.

— Eu lhe devolvo o seu... o seu corpo. — E escolheu esta palavra e tudo o que estava implícito nela com grande deliberação. — Intacto, mas só desta vez.

— Sim, Alteza, obrigado, Alteza — murmurou Ahmed, estarrecido por ainda estar vivo, e caiu de joelhos. — Eu... isto nunca mais tornará a acontecer.

— Não, não tornará. Fique aqui. Espere lá fora, Ishtar. — Hakim recostou-se nas almofadas e brincou com a faca, esperando o seu nível de adrenalina baixar, lembrando-se que a vingança era um prato para ser comido frio. — Conte-me tudo o que sabe sobre o soviético, o homem chamado Mzytryk; que poder ele tinha sobre o meu pai e meu pai sobre ele.

Ahmed obedeceu. Contou-lhe o que Hashemi Fazir dissera no 125, o que o khan lhe contara confidencialmente ao longo dos anos, sobre a fazenda perto de Tbilisi que ele também visitara, como o khan entrava em contato com Mzytryk, as palavras em código, o que Hashemi Fazir dissera e ameaçara, o que estava escrito na carta de Mzytryk, e o que ele ouvira e vira há poucos dias.

Hakim bufou de raiva.

— Meu pai ia levar a minha irmã para... ele ia levá-la para essa fazenda e entregá-la a Mzytryk?

— Sim, Alteza, ele ordenou até que eu a mandasse para o norte caso ele tivesse que ir para o hospital em Teerã.

— Mande chamar Mzytryk. Urgentemente. Ahmed, faça isso agora. Imediatamente.

— Sim, Alteza — Ahmed respondeu e tremeu com a violência reprimida do khan. — É melhor que, ao mesmo tempo, o senhor o faça lembrar-se das suas promessas a Abdullah Khan, e lhe diga que o senhor espera que elas sejam cumpridas.

— Sim, muito bem. Você me disse tudo?

— Que eu me lembre, sim — Ahmed respondeu com sinceridade. — Deve haver outras coisas, no devido tempo eu posso contar-lhe todo tipo de segredos, khan de todos os Gorgons, e torno a jurar diante de Deus que vou servi-lo fielmente. — Vou contar-lhe tudo, pensou com fervor, exceto o modo como o khan morreu e que agora, mais do que nunca, eu desejo Azadeh como esposa. De algum modo eu vou fazer com que ele concorde. Ela será a minha única proteção contra você, rebento de Satã.

NOS LIMITES DE TABRIZ: 7:20H. O 212 de Erikki se aproximou em grande velocidade. Todo o tempo, Erikki tinha-se mantido acima das árvores, evitando estradas, campos de aviação, cidades e aldeias, com a mente voltada para Azadeh e para a sua vingança contra o khan, sem pensar em mais nada. Agora, a cidade surgiu subitamente à sua frente. Na mesma hora, ele foi tomado de uma grande inquietação.

— Onde fica o palácio, piloto? — O xeque Bayazid gritou alegremente. — Onde fica?

— No topo da montanha, aga — disse no microfone, uma parte dele desejando acrescentar: É melhor repensarmos tudo isso, decidir se o ataque é aconselhável, e outra parte gritando: Esta é a sua única chance, Erikki, você não pode mudar os planos, mas como é que você vai escapar com Azadeh do palácio e deste bando de maníacos? — Diga aos seus homens para apertarem os cintos de segurança, esperarem até que as pás toquem o chão, diga-lhes para não abrirem os cintos enquanto não estivermos no chão, depois eles se espalham e mande dois deles guardarem o helicóptero e defendê-lo com a própria vida. Eu vou começar a contar de dez para baixo a partir do pouso e... e então irei na frente.

— Onde está o palácio?, não consigo vê-lo.

— Lá no topo da montanha, a um minuto daqui. Fale com eles! — As árvores foram ficando embaçadas à medida que eles se aproximavam delas, Erikki com os olhos presos na garganta no alto da montanha, o horizonte distorcendo-se. — Eu quero uma arma — disse, nervoso com a expectativa.

Bayazid mostrou os dentes.

— Nada de armas até invadirmos o palácio.

— Aí eu não vou mais precisar — disse com um palavrão. — Eu tenho que ter uma...

— Você pode confiar em mim, aliás, você tem que confiar. Onde é este palácio dos Gorgons?

— Lá! — Erikki apontou para o topo que estava bem acima deles. — Dez, nove, oito...

Ele tinha decidido aproximar-se pelo leste, parcialmente oculto pela floresta, com a cidade à sua direita, a garganta protegendo-o. Mais cinqüenta metros. Seu estômago se contraiu.

As rochas cresceram na direção deles. Ele sentiu mais do que viu Bayazid gritar e levantar as mãos para se proteger da batida, mas Erikki passou pela garganta e começou a descer em direção aos muros. No último instante, ele cortou toda a força, passou com o helicóptero a um centímetro do muro, preparando-se para um pouso de emergência, inclinou ligeiramente o aparelho na direção do pátio e deixou-o cair, calculando a queda com perfeição, e desceu, deslizando um pouco e depois parando. Com a mão direita desligou os circuitos, com a esquerda abriu o cinto de segurança e a porta, e foi o primeiro a saltar, correndo para a escada. Bayazid veio logo atrás, as portas da cabine se abriram e os homens começaram a saltar, tropeçando uns nos outros na sua excitação, com as hélices ainda girando e os motores parando.

Quando ele alcançou a porta da frente e a abriu, os empregados e um guarda perplexo vieram correndo para ver que confusão era aquela. Erikki arrancou o rifle das mãos dele e deixou-o desacordado. Os empregados se espalharam e fugiram, alguns reconhecendo-o. O corredor estava limpo.

— Vamos! — gritou, então, quando Bayazid e alguns dos outros se juntaram a ele, correu pelo hall e subiu as escadas. Um guarda esticou a cabeça por cima do corrimão e apontou a arma, mas um dos homens acertou nele. Erikki pulou por cima do cadáver e correu pelo corredor.

Uma porta se abriu lá na frente. Outro guarda apareceu, atirando. Erikki sentiu as balas atravessarem o seu casaco, mas não foi ferido. Bayazid atirou no homem e, juntos, eles avançaram na direção do quarto do khan. Uma vez lá, Erikki abriu a porta com um pontapé. Começaram a atirar lá de dentro mas os tiros não acertaram nele nem no xeque, e sim no homem que estava ao lado dele. Os outros se espalharam em busca de proteção e o homem ferido avançou na direção do seu agressor, levando mais tiros, mas atirando até depois de morto.

Por um segundo ou dois, houve uma trégua, então para surpresa de Erikki, Bayazid atirou uma granada para dentro do quarto. A explosão foi terrível. A fumaça se espalhou pelo corredor. Imediatamente, Bayazid pulou para dentro do quarto, com a arma apontada e Erikki ao seu lado.

O quarto estava em ruínas, as janelas arrancadas, cortinas destroçadas, a cama destruída, os restos de um guarda amontoados contra uma parede. Na alcova que ficava num dos cantos do enorme quarto, meio oculta do resto, havia uma mesa virada, uma empregada gemendo e dois corpos inertes, meio enterrados debaixo da toalha e da louça quebrada. O coração de Erikki parou quando ele reconheceu Azadeh. Em pânico, ele correu e tirou o entulho de cima dela — ao passar, notou que a outra pessoa era Hakim — ergueu-a nos braços, com os cabelos soltos, e levou-a para a luz. Só voltou a respirar quando teve certeza de que ela estava viva — inconsciente, talvez ferida, mas viva. Ela estava usando um roupão de cashmere azul que escondia tudo, mas prometia tudo. Os nativos ficaram embasbacados com a sua beleza. Erikki tirou a jaqueta e envolveu-a com ela, esquecido de tudo.

— Azadeh... Azadeh...

— Quem é este, piloto?

Erikki viu que Bayazid estava ao lado dos destroços.

— Este é Hakim, o irmão da minha esposa. Ele está morto?

— Não. — Bayazid olhou em volta, furioso. Não havia nenhum lugar em volta para o khan se esconder. Seus homens estavam amontoados na porta e ele os xingou, mandando que tomassem posições defensivas de cada lado do corredor e que outros fossem guardar o pátio lá fora. Então ele foi até onde estavam Erikki e Azadeh e olhou para o rosto lívido, os seios e as pernas sob o cashmere.

— Sua esposa?

— Sim.

— Ela não está morta. Que bom.

— Sim, mas só Deus sabe o quanto está ferida. Tenho que chamar um médico...

— Depois, primeiro temos que...

— Agora! Ela pode morrer!

— Seja como Deus quiser, piloto — disse Bayazid e depois gritou, com raiva: — Você disse que conhecia tudo, sabia onde o khan estava. Em nome de Deus, onde está ele?

— Eu não sei. Aqui... aqui era o quarto dele, aga. Eu nunca vi nenhuma outra pessoa aqui, nem mesmo a mulher dele tinha permissão para entrar sem autorização e... Uma rajada de tiros lá fora o interrompeu. — Ele tem que estar aqui, já que Hakim e Azadeh estão aqui.

— Onde? Onde ele poderia esconder-se?

Nervoso, Erikki olhou em volta, ajeitou Azadeh o melhor que pôde e correu até a janela — elas tinham grades e o khan não poderia ter fugido por ali. De lá, um canto bem protegido do palácio, ele não podia ver o pátio nem o helicóptero, só os jardins e pomares e a cidade a um quilômetro de distância, lá embaixo. Ainda não havia outros guardas ameaçando-os. Quando ele se virou, notou um movimento na alcova, viu a automática, empurrou Bayazid, tirando-o do caminho da bala que o teria matado, e precipitou-se para Hakim, que estava deitado no meio do entulho. Antes que os outros homens pudessem reagir, ele imobilizou o rapaz, tirou-lhe a arma da mão e gritou com ele, tentando fazê-lo entender:

— Você está seguro, Hakim, sou eu, Erikki, nós somos amigos, viemos salvar você e Azadeh do khan... viemos salvá-los!

— Salvar-me... salvar-me de quê? — Hakim estava olhando para ele sem entender, ainda tonto, com o sangue pingando de um pequeno ferimento na cabeça. — Salvar?

— Do khan e... — Erikki viu o seu olhar de terror, virou-se a agarrou o cano do rifle de Bayazid bem a tempo. — Espere, aga, espere, não é culpa dele, ele ainda está tonto... espere... ele estava apontando para mim, não para você, espere, ele vai nos ajudar. Espere!

— Onde está Abdullah Khan? — gritou Bayazid, com os homens em volta dele, as armas apontadas e prontos para matar. — Diga-me logo ou vocês são homens mortos!

E quando Hakim não respondeu imediatamente, Erikki exclamou:

— Pelo amor de Deus, Hakim, diga-lhe onde ele está ou seremos todos mortos.

— Abdullah Khan está morto, ele está morto... morreu na noite passada... não, há duas noites atrás. Cerca de meia-noite... — disse Hakim com a voz fraca e eles o olharam incrédulos, sua mente estava voltando aos poucos ao normal e ele ainda não podia entender por que estava deitado ali, com a cabeça latejando, sem sentir as pernas, com Erikki segurando-o, se Erikki tinha sido raptado por nativos, se ele estava tomando café com Azadeh, depois tiros e ele correndo para se proteger, os guardas atirando e depois a explosão e metade do resgate tinha sido paga.

De repente, sua mente clareou.

— Em nome de Deus — exclamou. Tentou levantar-se mas não conseguiu. — Erikki, em nome de Deus, por que vocês me atacaram, metade do seu resgate já foi pago... por quê?

Erikki se levantou, furioso.

— Não houve nenhum pagamento, a garganta do mensageiro foi cortada, Abdullah Khan mandou cortar a garganta do homem!

— Mas o resgate... a metade foi paga. Ahmed fez isto ontem à noite.

— Paga? Paga a quem? — Bayazid perguntou furioso. — Que mentiras são essas?

— Não são mentiras, a metade foi paga a noite passada, foi paga pelo novo khan como... como um ato de confiança pelo... pelo erro cometido contra o mensageiro. Diante de Deus, eu juro. A metade foi paga!

— Mentira — Bayazid respondeu furioso e apontou o revólver para ele. — Onde está o khan?

— Não é mentira! Eu mentiria diante de Deus? Eu lhe digo, por Deus! Mande chamar Ahmed, mande chamar o homem que se chama Ahmed, ele pagou.

Um dos nativos gritou alguma coisa, Hakim empalideceu e repetiu em turco:

— Em nome de Deus, metade do resgate já foi paga! Abdullah Khan está morto! Ele está morto e metade do resgate já foi paga. — Um murmúrio de espanto percorreu o quarto. — Mande chamar Ahmed, ele lhes dirá a verdade. Por que vocês estão nos atacando? Não há razão para isso!

Erikki intercedeu:

— Se Abdullah Khan está morto e metade já foi paga, aga, e a outra metade prometida, então a sua honra está vingada, aga, por favor, faça o que Hakim está pedindo, mande chamar Ahmed, ele lhe dirá a quem pagou e como.

Havia muito medo agora no quarto, Bayazid e seus homens não estavam gostando daquele confinamento, queriam estar ao ar livre, queriam estar nas montanhas, longe daquelas pessoas e daquele lugar horrível, sentindo-se traídos. Mas se Abdullah Khan estava morto e metade tinha sido paga...

— Piloto, vá buscar Ahmed — disse Bayazid — e lembre-se, se me trair, encontrará a sua mulher desfigurada. — E arrancou a automática da mão de Erikki. — Vá buscá-lo!

— Sim, sim, é claro.

— Erikki, primeiro me ajude. — Hakim falou com a voz fraca e rouca.

Erikki estava tentando compreender aquilo tudo enquanto o erguia e colocava no sofá ao lado de Azadeh. Ambos viram o seu rosto pálido, mas também notaram a sua respiração regular.

— Graças a Deus — murmurou Hakim.

Então, mais uma vez, Erikki se viu num pesadelo, saindo do quarto, desarmado, indo até o alto da escada, gritando para Ahmed não atirar:

— Ahmed, Ahmed, preciso falar com você, estou sozinho...

Agora ele estava lá embaixo e ainda sozinho, sem ter levado nenhum tiro. Mais uma vez ele gritou por Ahmed, mas suas palavras ecoaram nas paredes e ele vagou pelas salas vazias, todo mundo tinha desaparecido, e então enfiaram-lhe um revólver na cara e outro nas costas. Ahmed e um guarda, ambos nervosos.

— Ahmed, rápido — exclamou — é verdade que Abdullah Khan está morto e que há um novo khan e que metade do resgate foi paga?

Ahmed ficou olhando para ele.

— Pelo amor de Deus, é verdade?

— Sim, sim, é verdade. Mas...

— Rápido, você tem que dizer a eles! — E sentiu uma onda de alívio, pois não tinha acreditado muito em Hakim. — Rápido, eles vão matá-lo e matar Azadeh. Vamos!

— Então o... então eles não estão mortos?

— Não, é claro que não. Vamos!

— Espere. O que disse o... Sua Alteza, exatamente?

— Que diferença faz...

Ele enfiou o revólver na cara de Erikki.

— O que foi que ele disse exatamente!

Erikki vasculhou a memória e repetiu o melhor que pôde, depois acrescentou:

— Agora, pelo amor de Deus, vamos!

Para Ahmed, o tempo parou. Se ele fosse com o infiel, provavelmente morreria, Hakim Khan morreria, sua irmã morreria e o infiel, que era o responsável por toda aquela confusão, provavelmente escaparia com os malditos nativos. Mas por outro lado, se eu conseguir convencê-los a deixar o khan e sua irmã vivos, convencê-los a sair do palácio, terei provado a minha lealdade sem sombra de dúvida, para o khan e para ela, e posso matar o piloto mais tarde. Ou posso matá-lo agora e fugir facilmente e ficar vivo — mas como um fugitivo, desprezado por todos, como aquele que traiu o seu khan. Insha'Allah.

— Seja como Deus quiser. — E deu um sorriso. Tirou a faca e entregou-a, junto com o revólver, para o guarda apavorado e saiu andando.

— Espere — disse Erikki. — Diga ao guarda para mandar buscar um médico. Urgente. Hakim e minha esposa... eles podem estar feridos.

Ahmed deu a ordem ao guarda, atravessou o corredor e subiu as escadas. Lá em cima, os nativos o revistaram rudemente para ver se ele estava armado e depois o escoltaram até o quarto do khan, empurrando-o para dentro e segurando Erikki na porta, com uma faca encostada na garganta — e quando Ahmed viu que o seu khan estava mesmo vivo, sentado nas almofadas ao lado de Azadeh, que ainda estava inconsciente, murmurou:

— Graças a Deus — e sorriu para ele. — Alteza — falou calmamente — mandei buscar um médico. — Então viu Bayazid.

— Eu sou Ahmed Dursak, o Turcomano — disse orgulhosamente, falando em turco com grande formalidade. — Em nome de Deus: é verdade que Abdullah Khan está morto, é verdade que eu paguei metade do resgate, cinco milhões de riais, na noite passada, da parte do novo khan, a dois mensageiros do chefe al-Drah da aldeia da Árvore Quebrada, como um ato de confiança por causa da desonra imerecida do seu mensageiro, ordenada pelo falecido Abdullah Khan. Seus nomes eram Ishmud e Alilah e eu os mandei para o norte num bom carro. — Um murmúrio de espanto percorreu o quarto. Não podia haver nenhum erro, porque todos conheciam os nomes falsos, nomes de código, dados para proteger a aldeia e a tribo. — Eu disse a eles, em nome do novo khan, que a outra metade seria paga assim que o piloto e seu aparelho fossem entregues em segurança.

— Onde está este novo khan, se é que ele existe? — disse Bayazid, com desprezo. — Deixe-o falar por si mesmo.

— Eu sou o khan de todos os Gorgons — disse Hakim e fez-se um súbito silêncio. — Hakim Khan, filho mais velho de Abdullah Khan.

Todos os olhos se voltaram para Bayazid, que percebeu a surpresa no rosto de Erikki. Ele resmungou, inseguro.

— Só porque você está dizendo isso não significa que...

— Você está me chamando de mentiroso na minha própria casa?

— Eu só estou dizendo para esse homem — e Bayazid fez um gesto com o polegar na direção de Ahmed — que só pelo fato dele estar dizendo que pagou o resgate, metade do resgate, isto não exclui a possibilidade dele ter pago e depois ter armado uma emboscada para os homens e os matado, como fez com o meu outro mensageiro, por Deus!

— Eu lhe disse a verdade, diante de Deus, e torno a repetir, diante de Deus, que os mandei para o norte, em segurança e com o dinheiro. Dê-me uma faca, pegue outra e eu vou mostrar-lhe o que um turcomano faz com quem o chama de mentiroso! — Os nativos ficaram horrorizados por seu líder ter-se colocado numa posição tão ruim. — Você está chamando a mim e ao meu khan de mentirosos?

No silêncio que se fez, Azadeh se mexeu e gemeu, distraindo-os. Imediatamente, Erikki fez menção de ir até ela, mas a faca do nativo não se afastou de onde estava, o nativo praguejou e Erikki ficou quieto. Houve mais um gemido que quase o enlouqueceu, então ele viu Hakim se aproximar da irmã com dificuldade e segurar-lhe a mão e isso o acalmou um pouco.

Hakim estava com medo, sentindo dores pelo corpo todo, sabendo que estava tão indefeso quanto ela e precisando urgentemente de um médico; que Ahmed estava ameaçado, Erikki impotente, sua própria vida ameaçada e o seu khanato em ruínas. Mesmo assim, ele conseguiu recuperar a coragem. Eu não derrotei Abdullah Khan, Najoud e Ahmed para deixar que estes cães saiam vitoriosos! Ele levantou o rosto e olhou implacavelmente para Bayazid.

— Bem, você está dizendo que Ahmed é mentiroso. Sim ou não? — disse severamente em turco, de modo que todos pudessem entender e Ahmed amou-o por sua coragem. Todos os olhos agora estavam em Bayazid. — Um homem deve responder a esta pergunta. Você o está chamando de mentiroso?

— Não — murmurou Bayazid. — Ele falou a verdade, eu aceito como verdade. — Alguém disse "Insha'Allah", os dedos soltaram os gatilhos mas o nervosismo não abandonou o quarto.

— Seja como Deus quiser. — disse Hakim, disfarçando o alívio, e continuou a falar, cada vez mais senhor de si. — Mais briga não vai adiantar nada. Então, metade do resgate já foi paga e a outra metade estava prometida para quando o piloto fosse libertado. O... — Ele parou tomado por uma onda de náusea, mas dominou-a, desta vez com mais facilidade. — O piloto está aqui são e salvo, bem como o seu aparelho. Portanto, eu vou pagar o resto imediatamente.

Ele viu os olhares cobiçosos e prometeu a si mesmo vingar-se de todos eles.

— Ahmed, as jóias de Najoud estão em algum lugar perto daquela mesa. — Ahmed abriu caminho arrogantemente por entre os nativos e começou a procurar no meio do entulho a bolsa de couro. Hakim estava mostrando as jóias para Azadeh na hora em que começou o ataque, dizendo-lhe alegremente que as jóias faziam parte da herança da família, que Najoud tinha admitido tê-las roubado e, arrependida, as havia entregue a ele antes de partir.

— Estou contente por você não ter cedido, Hakim, muito contente — Azadeh tinha dito. — Você nunca estaria seguro com ela e os filhos por perto.

Eu nunca mais estarei seguro, ele pensou sem medo, observando Ahmed. Estou satisfeito por ter deixado Ahmed inteiro, pensou, e satisfeito por termos tido o juízo, Azadeh e eu, de ficar na alcova, protegidos pela parede quando o tiroteio começou. Se nós estivéssemos aqui nesta parte do quarto...

Insha'Allah. Seus dedos seguraram o pulso dela e o calor o agradou, sua respiração ainda era regular

— Graças a Deus — murmurou, e então viu os homens ameaçando Erikki.

— Você — disse apontando imperiosamente para um deles — largue o piloto!

— Espantado, o homem rude e barbado olhou para Bayazid que fez um sinal positivo com a cabeça. Imediatamente, Erikki aproximou-se de Azadeh, ajeitou o suéter pesado que estava usando para poder ter um acesso mais fácil à faca presa no meio das costas e depois ajoelhou-se, segurando a mão dela e ficando de frente para Bayazid, protegendo a ela e a Hakim com o seu corpo.

— Alteza! — Ahmed entregou a bolsa a Hakim Khan. Sem pressa, ele a abriu, despejando as jóias nas mãos. Esmeraldas, diamantes e safiras, co-lares, braceletes, pingentes. Os homens suspiraram. Criteriosamente, Hakim escolheu um colar de rubis que valia 10 ou 15 milhões de riais, fingindo não notar que todos os olhos estavam fixos nas jóias nem que um cheiro quase físico de cobiça invadira o quarto. Abruptamente, ele descartou os rubis e escolheu um pingente que valia duas ou três vezes mais.

— Tome — disse, ainda falando em turco —, aqui está o resto do pagamento. — E levantou o pingente de diamante e ofereceu-o a Bayazid que, hipnotizado pelo fulgor da única pedra, aproximou-se com a mão estendida. Mas antes que ele pudesse apanhá-lo, Hakim fechou a mão. — Diante de Deus, você aceita isto como pagamento integral?

— Sim... sim, como pagamento intregal, diante de Deus — Bayazid murmurou, sem acreditar que Deus lhe tivesse concedido tamanha riqueza, o bastante para comprar rebanhos e armas e granadas e sedas e roupas quentes. Ele estendeu a mão — eu juro por Deus!

— E você sairá daqui imediatamente, em paz, diante de Deus? — Bayazid tentou não pensar nas jóias.

— Primeiro nós temos que chegar à nossa aldeia, aga, nós precisamos da máquina e do piloto.

— Não, por Deus, o resgate é pelo aparelho e pelo piloto, nada mais. — Hakim abriu a mão, sem tirar os olhos de Bayazid, que agora só enxergava a pedra. — Jura por Deus?

Bayazid e seus homens olhavam fixamente para a pedra que brilhava sobre a mão estendida.

— O que... o que me impede de levar tudo isso, tudo — disse truculentamente —, o que me impede de matá-lo? Matá-lo e pôr fogo no palácio e levá-la como refém para forçar o piloto, hein?

— Nada. Exceto a honra. Os curdos não têm honra? — Hakim respondeu enquanto pensava, como isto é excitante, o prêmio é a vida e o fracasso significa a morte. — Isto aqui é um pagamento mais do que justo.

— Eu... eu aceito isto diante de Deus como pagamento pelo piloto e... e pelo aparelho. — Bayazid tirou os olhos da pedra. — Pelo piloto e pelo aparelho. Mas e por você, por você e pela mulher... — O suor escorria pelo rosto dele. Tanta riqueza ali, sua mente estava gritando, tanta, tão fácil mas há a questão da honra. — Por você e pela mulher também deveria haver um bom resgate.

Lá fora alguém deu partida em um carro. Os homens correram para a janela destruída. O carro estava se afastando em direção ao portão principal e enquanto eles olhavam, o carro saiu em direção à cidade.

— Rápido — Bayazid disse para Hakim —, decida-se.

— A mulher não vale nada — disse Hakim, com medo da mentira, consciente de que tinha que negociar ou então estariam perdidos. Ele escolheu um bracelete de rubis e ofereceu-lhe. — De acordo?

— Para você a mulher pode não ter valor, mas tem para o piloto. O bracelete e o colar, aquele ali, e mais o bracelete com as pedras verdes.

— Por Deus, isto é demais — Hakim explodiu — este bracelete é mais do que suficiente. Vale mais do que o piloto e o aparelho!

— Filho de um cão! Este aqui, o colar e aquele outro bracelete, aquele com as pedras verdes.

Eles continuaram a discutir, cada vez mais zangados, com todo mundo ouvindo atentamente, exceto Erikki, que ainda estava preso no seu inferno particular, preocupado apenas com Azadeh, imaginando onde estaria o médico e como ele poderia ajudar a ela e a Hakim. Acariciando-lhe os cabelos, foi ficando cada vez mais nervoso na medida em que os homens trocavam insultos cada vez mais violentos. Então Hakim achou que estava na hora e deu um gemido que também fazia parte do jogo da barganha.

— Você é um negociador bom demais para mim, por Deus! Assim você vai me deixar na miséria! Esta é a minha última oferta! — Ele pôs o bracelete de diamantes, o menor dos colares de esmeraldas e o pesado bracelete de ouro no tapete. — Estamos de acordo?

Agora a oferta era justa, não tanto quanto Bayazid queria, mas muito mais do que tinha esperado.

— Sim — ele disse e ergueu o seu prêmio e a alegria invadiu o quarto. — Você jura por Deus que não vai nos perseguir? Que não vai nos atacar?

— Sim, juro por Deus.

— Ótimo. Piloto, eu preciso que você nos leve para casa... — Bayazid disse em inglês, e vendo a raiva no rosto de Hakim, acrescentou apressadamente: — Estou pedindo e não mandando, aga. Tome — e ofereceu o bracelete de ouro a Erikki. — Eu quero contratar os seus serviços, aqui está o paga... — Ele parou e se virou quando um dos seus homens, que estava guardando o pátio, gritou:

— Há um carro vindo da cidade! — Bayazid estava suando cada vez mais.

— Piloto, eu juro por Deus que não lhe farei mal.

— Não posso levá-lo — disse Erikki — não tenho gasolina suficiente.

— Então só até a metade do caminho, só até a meta...

— A gasolina não é suficiente.

— Então leve-nos apenas até as montanhas. É só um pedacinho. Estou pedindo. Pedindo, não mandando — Bayazid disse e depois acrescentou: — Pelo Profeta, eu os tratei de maneira justa e... e não a molestei. Estou lhe pedindo.

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