CAPÍTULO 8
Quando Kelly fez dez anos, Ethel pô-la a trabalhar na pensão. Kelly levantava-se todas as manhãs às cinco para limpar as sanitas, esfregar o chão da cozinha e ajudar a preparar o pequeno almoço dos hóspedes. Depois da escola, lavava a roupa, lavava o chão, limpava o pó e ajudava no jantar. A sua vida começou a ser uma horrorosa e frustrante rotina.
Ansiava por ajudar a mãe, na expectativa de um elogio. Nunca o ouviu. A mãe estava demasiado preocupada com os hóspedes para prestar atenção à filha.
Quando Kelly era muito nova, um hóspede simpático lera-lhe Alice no País das Maravilhas e Kelly ficou fascinada pela forma como Alice conseguiu fugir por uma toca mágica de coelho. É disso que eu preciso, pensou Kelly. Uma forma de escapar. Não posso passar o resto dos meus dias a limpar sanitas, a lavar chãos e a limpar a porcaria de desconhecidos.
E um dia Kelly encontrou a sua mágica toca de coelho. Era a sua imaginação, pela qual conseguia ir onde muito bem lhe apetecia. E imaginou toda uma outra vida para si...
Ela tinha um pai, e o pai e a mãe eram da mesma cor. Nunca se zangavam nem nunca gritavam com ela. Viviam todos numa casa maravilhosa. O pai e a mãe amavam-na. O pai e a mãe amavam-na.
O pai e a mãe amavam-na...
Quando Kelly fez catorze anos, a mãe casou-se com um dos hóspedes, um empregado de bar chamado Dan Berke, um homem carrancudo de meia idade que era um pessimista quanto a tudo. Fosse o que fosse que Kelly fizesse, nunca nada lhe agradava.
- O jantar está uma porcaria...
- A cor desse vestido não te fica bem...
- A persiana do quarto continua partida.
- Não acabaste de limpar as casas de banho...
O padrasto de Kelly tinha um problema de alcoolismo. A parede que separava o seu quarto do quarto da mãe e do padrasto era muito fina e, noite após noite, Kelly ouvia o som de pancadas e de gritos. De manhã, Ethel aparecia com pesada maquilagem mas que não era suficiente para ocultar os golpes e as nódoas negras.
Kelly andava infeliz. Nós devíamos era sair daqui para fora, pensava. Eu e a minha mãe amamo-nos.
Uma noite, quando Kelly estava meio a dormir, ouviu vozes a falarem alto no quarto ao lado:
- Porque foi que não te viste livre da catraia antes de ela nascer?
- Eu tentei, Dan. Mas não resultou.
Kelly sentiu-se como se tivesse sido golpeada no ventre. A mãe nunca a quisera. Ninguém a queria.
Kelly encontrou outra forma de escapar ao horror interminável que era a sua vida. O mundo dos livros. Tornou-se uma leitora insaciável e passava a maior parte do seu tempo livre na biblioteca pública.
No final da semana nunca havia dinheiro para Kelly, por isso arranjou um trabalho como babysitter, invejando as felizes famílias que nunca teria.
Aos dezassete anos, Kelly transformou-se na beleza que a mãe fora. Os rapazes na escola começaram a convidá-la para sair. Sentia-se repugnada. Recusou-os a todos.
Aos sábados, quando não havia escola e as tarefas de Kelly já estavam todas feitas, corria para a biblioteca pública e passava a tarde a ler.
A senhora Lisa Marie Houston, a bibliotecária, era uma mulher inteligente e compreensiva, com um feitio amistoso e roupas tão despretensiosas quanto a sua personalidade. Ao ver Kelly tantas vezes na biblioteca, ficou curiosa.
Um dia comentou:
- E muito agradável ver uma jovem a gostar tanto de ler. Passas muito tempo aqui.
Foi o início de uma grande amizade. À medida que as semanas passavam, Kelly foi confiando os seus receios e as suas aspirações à bibliotecária.
- Kelly, o que gostarias de fazer com a tua vida?
- Gostava de ser professora.
- Acho que serias uma excelente professora. É a profissão mais gratificante do mundo.
Kelly começou a falar, mas parou. Lembrou-se de uma conversa que tivera com a mãe e o padrasto ao pequeno almoço, uma semana antes. Kelly dissera:
- Preciso de ir para uma universidade. Quero ser professora.
- Professora ? - rira Berke. - Mas que idéia mais parva. Os professores ganham uma miséria. Estás-me a ouvir? Uma miséria. Ganhas mais a lavar chãos. De qualquer das maneiras, a tua velhota e eu não temos dinheiro para te mandar para a universidade.
- Mas ofereceram-me uma bolsa e...
- E então? Vais passar anos a perder o teu tempo. Esquece. Com o teu aspecto, o melhor é venderes o corpinho.
Kelly saíra da mesa.
Agora dizia à senhora Houston:
- Só há um problema. Eles não me deixam ir para a universidade - a voz embargou-se-lhe. - Vou passar o resto da minha vida a fazer o que faço!
- É claro que não. - A voz da senhora Houston era firme. - Quantos anos tens?
- Daqui a três meses faço dezoito anos.
- Não tarda nada terás idade suficiente para tomares as tuas próprias decisões. És uma jovem muito bonita, Kelly. Sabias?
- Não. Não sabia. - Como lhe posso eu explicar que me sinto como se fosse uma anormal? Não me sinto de modo nenhum bonita. - Senhora Houston, eu odeio a minha vida. Não quero ser como a... Quero sair desta terra. Quero fazer algo de diferente e nunca vou poder... - Esforçava-se por controlar as emoções. - Eu nunca vou ter a possibilidade de fazer seja o que for, de vir a ser alguém.
- Kelly...
- Nunca devia ter lido todos estes livros. - A voz dela era amarga.
- Porquê?
- Porque me encheram a cabeça de mentiras. Todas aquelas maravilhosas pessoas, e aqueles sítios espetaculares, e a magia... - Kelly abanou a cabeça. - Não há magia.
A senhora Houston observou-a por momentos. Era óbvio que a auto-estima de Kelly fora extremamente danificada.
- Kelly, existe magia, mas tu é que tens que ser o mágico, que tens que fazer com que a magia apareça.
- Sim? - O tom da voz de Kelly era cínico. - E como é que eu faço isso?
- Primeiro que tudo, tens que saber de facto quais são os teus sonhos. Sonhas em ter uma vida excitante, cheia de pessoas interessantes e de lugares maravilhosos. Da próxima vez que cá voltares, eu vou te mostrar como podes tornar reais os teus sonhos.
Mentirosa.
Na semana depois de Kelly ter terminado o liceu, regressou à biblioteca. A senhora Houston disse-lhe:
- Kelly, lembras-te do que eu te disse sobre criares a tua própria magia?
- Sim - respondeu, céptica, Kelly.
A senhora Houston procurou atrás da secretária e tirou para fora um punhado de revistas, a COSMO girl, a Seventeen, a Glamour, Mademoiselle, a Essence, a Allure... e deu-as a Kelly.
Kelly ficou a olhar para elas.
- E o que é que eu faço com isto?
- Alguma vez pensaste em vir a ser modelo?
- Não.
- Vê estas revistas. Depois diz-me se te deram algumas idéia sobre como trazeres a magia para a tua vida.
Ela tem boas intenções, pensou Kelly , mas não compreende.
- Muito obrigada, senhora Houston. Assim farei.
Para a semana vou começar à procura de um emprego. Kelly levou as revistas para a pensão e enfiou-as num canto e esqueceu-as. Passou a tarde a cumprir as suas tarefas.
Quando, nessa noite, se preparava para se meter na cama, exausta, lembrou-se das revistas que a senhora Houston lhe dera. Pegou numas por pura curiosidade e começou a folheá-las. Era todo um outro mundo. Os modelos maravilhosamente vestidos, com homens elegantes a seu lado, em Londres e Paris e em locais exóticos por i todo o mundo. De repente, Kelly sentiu uma enorme vontade a crescer! dentro de si. Rapidamente vestiu um robe e atravessou o átrio na direcção da casa de banho.
Estudou-se no espelho. Bom, talvez fosse atraente. Era o que todos lhe diziam. Mas, mesmo que seja verdade, pensou Kelly, eu não tenho qualquer experiência. Pensou na sua vida futura em Filadélfia e olhou-se mais uma vez no espelho. Todos têm que começar por algum lado. Tu tens de ser o mágico, faz a tua própria magia.
Na manhã seguinte bem cedo, Kelly apareceu na biblioteca para falar com a senhora Houston.
Esta ficou espantada ao vê-la ali tão cedo.
- Bom dia, Kelly. Tiveste oportunidade de dar uma olhadela às revistas?
- Tive. - Kelly respirou fundo. - Gostava de tentar ser modelo.
O problema é que não faço a mínima idéia por onde começar.
A senhora Houston sorriu.
- Mas eu faço. Andei a consultar a lista telefônica de Nova Iorque.
Não disseste que gostarias de sair desta cidade? - A senhora Houston pegou numa folha de papel datilografada que tirou de dentro da bolsa e deu-a a Kelly. - Aqui tens uma lista das dozes principais agências de modelos em Manhattan, com as moradas e os números de telefone. - E apertou a mão de Kelly. - Começa pela do topo.
Kelly estava atordoada.
- Eu... Eu não sei como lhe agradecer...
- Eu digo-te como. Faz com que eu veja a tua fotografia nestas revistas.
Nessa noite ao jantar, Kelly disse:
- Decidi que quero ser modelo.
O padrasto grunhiu:
- Mas que idéia mais estúpida é essa? Que diabo se passa contigo?
Todas as modelos são putas.
A mãe suspirou:
- Kelly, não cometas os mesmos erros que eu. Também eu tive sonhos que a nada levaram. Eles vão dar cabo de ti. Tu és negra e pobre. Nunca irás a lado nenhum.
Foi nesse instante que Kelly tomou a sua decisão.
Às cinco da manhã do dia seguinte, Kelly fez a mala e dirigiu-se à estação dos autocarros. Na bolsa tinha duzentos dólares que ganhara como babysitter.
A viagem de autocarro demorou duas horas e Kelly passou o tempo a imaginar o seu futuro. Ia tornar-se modelo profissional. Kelly Hackworth não lhe parecia nome profissional. Já sei o que vou fazer. Vou usar apenas o meu primeiro nome. E repetiu-o na cabeça uma vez e outra. E agora a nossa top model, Kelly.
Instalou-se num hotel barato e, às nove horas, Kelly estava a entrar pela porta principal da agência de modelos que se encontrava em primeiro lugar da lista que a senhora Houston lhe dera. Kelly não estava maquilada e vestia um vestido todo amarrotado, porque não tinha ferro de engomar.
Não havia ninguém na recepção no átrio. Abordou um homem que estava sentado num escritório, atarefado a escrever à secretária.
- Desculpe - disse Kelly.
O homem grunhiu qualquer coisa sem sequer olhar para cima.
- Não sei se precisam de modelos - disse Kelly, hesitante.
- Não - resmungou o homem. - Não andamos à procura, não.
Kelly suspirou:
- Bom, de qualquer das formas, muito obrigada - e virou-se para partir.
O homem olhou de relance para cima e a sua expressão alterou-se.
- Volte cá. - Pusera-se de pé. - Meu Deus. De onde é que você saiu?
Kelly olhava intrigada para ele.
- De Filadélfia.
- O que eu quero dizer é... Bom, não interessa. Já alguma vez trabalhou como modelo?
- Não.
- Não importa. Aqui aprende a trabalhar.
A garganta de Kelly ficou seca.
- Isso quer dizer que eu... Que eu vou ser modelo?
Ele sorriu um enorme sorriso. - Claro. Temos uma série de clientes que vão ficar doidos quando a virem.
Nem podia acreditar. Aquela era uma das mais importantes agências de modelos e eles...
- Chamo-me Bill Lerner. Dirijo esta agência. Como se chama?
Aquele era o momento que Kelly imaginara. Era a primeira vez que ia usar o seu novo nome, um nome de carácter profissional, com uma só palavra.
Lerner olhava especado para ela.
- Não sabe como é que se chama?
Kelly recompôs-se e endireitou-se e disse com toda a confiança:
- É claro que sei. Kelly Hackworth.