CAPÍTULO 23


Harry Flint é perfeitamente capaz de tomar conta delas, pensou Tanner com satisfação. Nunca lhe falhara.

Tanner achava engraçada a forma como Flint entrara na sua vida. Há alguns anos, o irmão Andrew, menino bonito dos corações feridos de todo o mundo, criara uma casa de transição para presos acabados de sair da cadeia, com a finalidade de os ajudar na reinserção na vida normal. Em seguida encontrava-lhes trabalho.

Tanner tinha um plano muito mais útil para os ex-criminosos, pois acreditava que ex- criminosos era coisa que não existia. Através dos seus contactos, conseguia obter informações privadas sobre o passado dos presos recém libertos, e se tinham as qualificações de que Tanner precisava, saíam da casa de transição e começavam a trabalhar directamente com Tanner, executando aquilo a que ele chamava "delicadas tarefas de nível particular".

Conseguira que um ex-condenado chamado Vince Carballo começasse a trabalhar para o KIG. Era um homem forte com uma barba hirsuta e olhos azuis penetrantes como adagas. Tinha um longo cadastro. Fora julgado por assassínio. As provas contra ele eram tremendas, mas um membro do júri teimara em absolvê-lo e no final acabara por haver um empate nos jurados. Poucas pessoas sabiam que a pequena filha do membro do júri desaparecera e que fora deixada uma nota onde se lia: Se não falar acerca disto, o destino da sua filha será determinado pelo veredicto do júri.

Tanner ouvira também falar num ex-presidiário de nome Harry Flint. Investigara minuciosamente o seu passado e concluíra que era perfeito para os seus objectivos.

Harry Flint nascera em Detroit, numa família de classe média. O Pai era um amargo vendedor falhado, que passava o tempo sentado em casa a queixar-se. Era um mandão sádico e à menor infracção do filho deliciava-se em bater-lhe com uma régua, um cinto, ou o que quer que encontrasse à mão, como se pretendesse punir o filho pela sua incapacidade.

A mãe do miúdo trabalhava como manicura num barbeiro. Enquanto o pai era um tirano, a mãe era-lhe completamente devotada e mimava-o, e, à medida que o jovem Harry crescia, foi ficando emocionalmente dividido entre estes dois opostos.

Os médicos tinham dito à sua mãe que era demasiado velha para ter filhos, por isso ela considerara a sua gravidez como um milagre. Depois do nascimento dele, acariciava-o amorosamente e abraçava-o, fazendo-lhe festas e beijando-o até Harry se sentir sufocado com tanto amor. A medida que crescia, começou a detestar que lhe tocassem.

Quando Harry Flint chegou aos catorze anos encurralou um rato na cave e deu-lhe pontapés. Enquanto olhava para o rato a morrer dolorosamente, Harry Flint teve uma epifania. De repente percebeu que tinha o tremendo poder de tirar a vida, de matar. Fê-lo sentir-se Deus. Era omnipotente, todo poderoso. Precisava de voltar a sentir a mesma coisa, por isso começou a caçar furtivamente pequenos animais pelas vizinhanças, e estes tornaram-se suas presas. Não havia nada de pessoal nem de maldoso naquilo que Flint fazia. Limitava-se a usar o talento que Deus lhe dera.

Os furiosos vizinhos cujos animais de estimação estavam a ser torturados e mortos queixaram-se às autoridades e foi montada uma armadilha para o apanharem. A polícia colocou um Scottish Terrier na jardim relvado de uma casa, preso por uma trela para evitar que fugisse, e montou vigilância. Uma noite, enquanto a polícia vigiava, Harry Flint aproximou-se do animal. Abriu-lhe a boca e começou a enfiar-lhe um pau de fogo de artifício a arder pela boca do bicho. A polícia saltou-lhe em cima. Quando o revistaram, encontram-lhe no bolso uma pedra coberta de sangue e uma navalha com uma lâmina de quinze centímetros.

Foi mandado para o Challenger Memorial Youth Center por doze meses.

Uma semana depois da sua chegada, atacou um dos rapazes, deixando-o bastante mutilado. Os psiquiatras que o examinaram diagnosticaram-lhe uma esquizofrenia paranóide.

- Ele é psicótico - disse o médico, avisando os guardas que o tinham a seu cargo. - Tenham cuidado. Mantenham-no afastado dos outros.

Quando Harry Flint terminou a sua pena, tinha quinze anos e saiu em liberdade condicional. Voltou para a escola. A maior parte dos seus companheiros consideraram-no um herói. Muitos deles já andavam metidos em vários tipos de pequenos crimes, roubos de carteiras, roubo por esticão e roubos em lojas, e depressa ele se tornou chefe do grupo.

Uma noite, numa rixa num beco, uma faca cortou um dos cantos da boca de Harry, deixando-o para sempre com um sorriso constante.

À medida que os rapazes iam crescendo, foram-se virando para o furto de viaturas, assaltos e roubos. Um dos roubos que efectuaram tornou-se violento e um lojista acabou por ser morto. Harry Flint foi condenado por assalto à mão armada e por cumplicidade em assassinato e condenado a dez anos de cadeia. Foi o prisioneiro mais perverso que o superintendente da cadeia alguma vez viu.

Havia algo nos olhos de Harry Flint que fazia com que os outros presos não se metessem com ele. Ele aterrorizava-os constantemente, mas nunca ninguém se atreveu a denunciá-lo.

Um dia, quando um guarda passava junto da sua cela ficou a olhar lá para dentro sem poder acreditar. O companheiro de cela de Flint estava caído no meio de uma poça de sangue. Fora sovado até à morte.

O guarda olhou para Flint e havia um sorriso de satisfação no seu rosto.

- Muito bem, seu cabrão. Desta é que tu não vais conseguir escapar. Podemos começar a aquecer a cadeira para ti.

Flint devolveu-lhe o olhar e, devagarinho, levantou o braço esquerdo. Enterrado na carne tinha uma faca de talho.

- Legítima defesa - respondeu friamente Flint.

O preso na cela em frente jamais contou fosse a quem fosse que vira Flint sovar selvaticamente o seu companheiro de cela até à morte e que em seguida sacara de uma faca de talho de dentro do colchão e a enterrara no braço.

A característica que Tanner mais admirava em Flint é que ele gostava muito do seu trabalho.

Lembrava-se da primeira vez que Flint lhe provara como podia ser útil. Fora durante uma viagem de urgência a Tóquio...

- Diga ao piloto que ponha o Challenger a trabalhar. Vamos ao Japão. E só nós os dois.

As notícias chegavam em má altura, mas tinham de ser tratadas imediatamente e eram demasiado delicadas para se poderem confiar a outra pessoa. Tanner conseguira que Akira Iso aceitasse encontrar-se com ele em Tóquio e que reservasse um quarto no Hotel Okura.

Enquanto o avião cruzava o oceano Pacífico, Tanner ia planeando a sua estratégia. Quando o avião aterrou ele arranjara uma solução em que não poderia perder.

A viagem de carro desde o aeroporto Narita demorou uma hora, e Tanner espantava-se com o facto de Tóquio nunca mudar. Em tempos de sucesso e em tempos de carência, a cidade parecia vestir sempre o mesmo rosto impassível.

Akira Iso aguardava-o no restaurante Fumiki Mashimo. Iso andava pelos cinqüenta anos, era magro, de cabelo grisalho e olhos escuros e brilhantes. Levantou-se para saudar Tanner.

- É para mim uma honra conhecê-lo, senhor Kingsley. Francamente, confesso que fiquei surpreso com o seu telefonema. Não faço idéia do que o levou a fazer toda esta viagem para se encontrar comigo.

Tanner sorriu.

- Sou portador de boas notícias que achei que eram demasiado importantes para serem faladas ao telefone. Penso que vou poder fazer de si um homem muito feliz, e também muito rico.

Akira Iso olhava para ele, curioso:

- Sim?

Um criado de casaco branco aproximou-se da mesa.

- Antes de começarmos a falar de negócios, que tal se pedíssemos?

- Como queira, senhor Kingsley. Conhece os pratos japoneses ou prefere que eu escolha por si?

- Muito obrigado. Eu posso pedir. Gosta de sushi?

- Sim.

Tanner virou-se para o criado.

- Eu quero hamachi-temaki, kaibasbira e amartbi.

Akira Iso sorriu.

- Parece-me bem - e olhou para o criado. - Eu quero a mesma coisa.

Enquanto comiam, Tanner disse:

- O senhor trabalha para uma excelente empresa, o Tokyo First Industrial Group.

- Muito obrigado.

- Há quanto tempo?

- Há dez anos.

- Isso já é muito tempo - e olhou para Akira Iso de frente. - Na realidade, acho que está chegada a altura de mudar.

-E porque havia eu de querer fazer uma coisa dessas, senhor Kingsley?

- Porque eu vou fazer-lhe uma oferta que não pode recusar. Não faço idéia de quanto dinheiro você ganha, mas estou disposto a pagar-lhe o dobro para sair e vir trabalhar connosco no KIG.

- Senhor Kingsley, isso não é possível.

- E porque não? Se é por causa de contrato, eu consigo tratar...

Akira Iso pousou os pauzinhos.

- Senhor Kingsley, no Japão, quando trabalhamos para uma empresa, é como uma família. E, quando já não podemos trabalhar mais, eles tomam conta de nós.

- Mas o dinheiro que eu lhe estou a oferecer...

- Não. Aisha seishin.

- Como?

- Significa que colocamos a lealdade acima do dinheiro. - Akira Iso olhou para ele com ar curioso. - Porque foi que me escolheu a mim?

- Porque ouvi muitos elogios à sua pessoa.

- Lamento que tenha feito uma viagem tão longa para nada, senhor Kingsley. Eu jamais deixarei o Tokyo First Industrial Group.

- Bom, tinha que tentar.

- Não fica ressentido?

Tanner encostou-se para trás e riu:

- Mas é claro que não. Bem gostaria que todos os meus empregados me fossem assim leais. - De repente lembrou-se de uma coisa. - A propósito, trouxe um presente para si e para a sua família. Um meu associado vai levar-lho mais tarde ao seu hotel. Daqui a uma hora. Ele chama-se Harry Flint.

Uma empregada do turno da noite encontrou o corpo de Akira Iso pendurado num gancho, dentro de um armário. O veredicto oficial foi suicídio.


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