— Talvez ele se canse de esperar. Todos os homens na aldeia foram avisados para vigiá-lo e ninguém vai tirá-lo daqui pelo mar.
— Quem ousaria confiar num aldeão?
Akimoto propusera:
— Neste caso, deixe-me fazer o serviço, quando conseguir a arma.
Ele era muito maior do que Hiraga, que não o reconhecera quando chegara, pois Akimoto também cortara os cabelos da mesma forma.
Ao final, Hiraga abordara o marujo na praia, fingindo ser um mercador chinês visitante de Hong Kong, e acertara o negócio, sua única condição a de que a arma não fosse roubada. Mas é claro que seria roubada...
Akimoto o aguardava na casa da aldeia que haviam alugado por um mês e comentou, rindo:
— Puxa, primo, peço que me desculpe. Não há necessidade de perguntar se conseguiu, mas parece tão engraçado nessas roupas... se os nossos camaradas shishi pudessem vê-lo agora...
Hiraga deu de ombros.
— Desse jeito posso passar pelos cules gai-jin, não importa de onde venham. Todos os tipos de gai-jin e cules se vestem assim na cidade dos bêbados. — Ele se ajeitou de uma forma mais confortável, com o escroto dolorido. — Não consigo entender como eles podem usar roupas tão pesadas, calças que dão cãibras e casacos apertados, durante todo o tempo... e quando faz calor, são horríveis, a gente sua como uma fonte.
Enquanto falava, ele examinava o Colt, avaliava o peso, mirava.
— É pesado.
— Saquê?
— Obrigado. Depois, acho que vou descansar até o pôr-do-sol.
Hiraga carregou o revólver, bebeu algum saquê e deitou, satisfeito consigo mesmo. Fechou os olhos, começou a meditar, Quando em paz, permitiu que a mente vagueasse. Pegou no sono num instante. Acordou ao pôr-do-sol. Akimoto continuava de guarda. Ele olhou pela pequena janela e murmurou:
— Não haverá tempestade nem chuva esta noite.
Pegou um lenço e amarrou-o em torno da cabeça, como vira os gai-jin de baixa classe e os marujos fazerem. Akimoto sentiu-se de repente invadido pelo medo.
— E agora?
— Agora — respondeu Hiraga, escondendo o revólver por baixo do cinto — vou à procura de Ori. Se eu não voltar, mate-o você.
A maioria dos aldeões nas ruas não o reconheceu, os poucos que perceberam fizeram uma reverência nervosa, como se ele fosse um gai-jin, não um samurai, conforme lhes ordenara. Em seus trajes europeus, para a maioria dos gai-jin ele seria apenas outro eurasiano ou um mercador chinês de Hong Kong, Xangai ou Manila, a qualidade das roupas e o porte indicando sua posição riqueza.
— Mas jamais esqueça, Nakama-san — advertira Tyrer, várias vezes — Por por mais rico que pareça, as roupas elegantes não vão protegê-lo de perseguiçõe e insultos da ralé, se for sozinho à cidade dos bêbados ou a qualquer outro lugar.
Na primeira vez em que saíra à procura de Ori, assim que ouvira o shoya revelar que o amigo desobedecera sua ordem, Hiraga entrara na cidade dos bêbados com as roupas fornecidas por Tyrer. Quase que no mesmo instante, fora acuado por um bando turbulento de bêbados, escarnecendo e insultando, logo partindo para a agressão. Só a sua habilidade no caratê, uma arte ainda desconhecida dos gai-jin pudera salvá-lo. Batera em retirada, furioso, deixando em sua esteira duas cabeças quebradas e mais um homem entrevado.
— Descubra imediatamente o lugar exato em que Ori se esconde! — dissera ele ao shoya. — Quero saber o que ele está fazendo e como vive!
Na noite seguinte, o shoya desenhara um mapa tosco.
— A casa é aqui, neste lado, de frente para o mar, perto de um cais. É uma casa para os bêbados dormirem, homens da mais baixa classe. Ori-san aluga um quarto, pagando o dobro, pelo que fui informado. Um lugar horrível, Hiraga-san, sempre cheio dos piores homens. Não pode ir lá sem um plano especial. É tão importante assim que ele seja mandado embora?
— É, sim. Sua aldeia corre risco com a permanência de Ori aqui.
— So ka!
Dois dias depois, o shoya avisara que a casa de Ori pegara fogo durante a noite e os corpos de três homens haviam sido encontrados nas ruínas.
— Pelo que me contaram, Hiraga-san, o “nativo” era um deles — arrematara o shoya, com evidente satisfação.
— Uma pena que toda aquela área não se incendiasse também, matando todos os gai-jin que vivem ali.
— Tem razão.
A vida voltara a ser calma. Hiraga continuara a passar bastante tempo com Tyrer, contente em aprender e ensinar, sem imaginar como seus conhecimentos eram importantes e informativos para Tyrer, Sir William e Jamie McFay. Durante a metade de um dia, estivera a bordo da fragata britânica, em companhia de Tyrer. A experiência o deixara abalado, e mais determinado do que nunca a descobrir como aqueles homens que desprezava eram capazes de inventar e fabricar máquinas e navios de guerra tão incríveis, como pessoas tão indignas, de uma terra mínima, menor que o Nipão — a se acreditar em Tyrer —, podiam ter adquirido a vasta riqueza necessária para possuir tantos navios, exércitos e fábricas, e ao mesmo tempo dominar todas as rotas marítimas e grande parte do mundo.
Naquela noite, ele se embriagara até a insensibilidade, a mente desorientada exultante num instante, no abismo no seguinte, sua crença na invencibilidade absoluta do bushido e da terra dos deuses profundamente abalada.
Passava a maioria das noites com Akimoto na Yoshiwara, ou na casas que ocupavam na aldeia, planejando e partilhando seus conhecimentos dos gai-jin, embora mantivesse em segredo a extensão de sua apreensão. Sempre, porém, reforçava a rede em torno de Tyrer, manipulando-o:
— Ah, sinto muito, Taira-san, contrato Fujiko levar muitas semanas, Raiko difícil de negociar, contrato caro, ela ter muitos clientes, muitos, sinto muito, ela ocupada esta noite, talvez amanhã...
Poucos mais de duas semanas antes, para fúria de Hiraga, o shoya descobrira que Ori não morrera no incêndio:
—... e sinto muito, Hiraga-san, mas fui informado que Ori se tornou rico de repente, gasta dinheiro como um daimio. Agora ele mora em vários aposentos em outra casa de bebida.
— Ori rico? Como é possível?
— Não sei, Sire.
— Mas sabe onde fica sua nova casa?
— Sei, Sire. Aqui está o mapa. Sinto muito se...
— Não importa — dissera Hiraga, na maior irritação. — Esta noite vamos queimá-la também.
— Sinto muito, Hiraga-san, mas isso não será mais tão fácil.
O shoya mostrava-se exteriormente penitente, mas por dentro sentia uma fúria igual porque sua primeira e imediata solução para o problema do ronin louco não alcançara o objetivo pelo qual fora pago.
— Não mais é fácil porque esta casa é isolada, e parece que ele tem muitos guardas... guardas gai-jin! — acrescentara o shoya.
Com toda objetividade, Hiraga avaliara as consequências. Enviara uma carta afável para Ori, por um dos aldeões, que vendia peixe na cidade dos bêbados, dizendo que sentia-se muito satisfeito por saber que ele continuava vivo, não morrera no terrível incêndio, como haviam-no informado, e também que se tornara próspero. Sugeria um encontro naquela noite naYoshiwara, já que Akimoto queria conversar sobre questões dos shishi da maior importância.
Ori respondera por carta, sem demora: “Não na Yoshiwara, nem em qualquer outro lugar, não até que nosso plano de Sonno-joi seja executado e a colônia incendiada. Antes que você, Akimoto ou qualquer outro traidor se aproxime de mim, será fuzilado.”
— Ele sabe que o incêndio não foi um acidente — comentara Akimoto. — Claro que sabe. Mas onde conseguiu o dinheiro?
— Só pode ter sido roubando, neh?
Outras mensagens receberam a mesma resposta. Uma trama insidiosa falhara. Por isso, Hiraga comprara o revólver e formulara novo plano. Agora chegara o fomento, aquela noite era perfeita. Os últimos raios do sol poente guiaram-no através da terra de ninguém e ao longo das ruas fétidas, cheias de buracos perigosos. Os homens que passaram por ele mal o fitaram, exceto para gritar que saísse da frente.
Ori enfiou a mão ao acaso no pequeno saco com moedas na mesa ao lado da cama e tirou uma. Era um mex lascado, agora com a metade do seu valor normal. Embora ainda fosse cinco vezes mais do que o preço combinado, ele entregou a moeda à mulher nua. Os olhos dela se iluminaram, inclinou a cabeça em um cumprimento murmurando agradecimentos abjetos e intermináveis.
— Você é um cavalheiro de verdade, amor.
Ele observou-a, distraído, enquanto ela punha o vestido velho e esfarrapado atônito por se encontrar ali, sentindo repugnância por tudo naquele quarto, a cama, a casa, o lugar, pelo corpo pálido e ossudo da gai-jin, com nádegas flácidas, que fantasiara ser capaz de extinguir o incêndio que o enlouquecia, mas apenas servira para tornar sua necessidade ainda pior, pois aquela mulher não se comparava em coisa alguma com ela.
A mulher não lhe dava qualquer atenção agora. Realizara seu trabalho e só restava murmurar os costumeiros agradecimentos e mentiras sobre o desempenho do homem — neste caso, não eram mentiras, pois o órgão, no que carecia de tamanho, compensava em força e vigor — e depois escapar dali, guardando sua nova riqueza, sem problemas adicionais. O vestido desceu pelos ombros magros e à mostra, até se arrastar pelo tapete puído, que cobria em parte o assoalho de tábuas ásperas. Anágua rasgada, sem o calção por baixo. Cabelos castanhos escorridos, uma grossa camada de ruge. Ela parecia ter quarenta, embora tivesse dezenove, uma menina de rua de Hong Kong, pais desconhecidos, vendida para uma casa de Wanchai oito anos antes, por sua mãe adotiva.
— Quer que eu volte amanhã?
Ori deu de ombros, apontou para a porta, o braço ferido já curado, e tão bom quanto jamais poderia ficar, nunca com a mesma força anterior, nem tão ágil com uma espada, mas bastante bom para enfrentar um espadachim médio, e ainda melhor com uma arma de fogo. Sua pistola estava em cima da mesa, nunca a deixava longe do alcance da mão.
A mulher forçou um sorriso, enquanto recuava, murmurando mais agradecimentos, contente por sair dali sem uma surra, e sem ter de suportar as práticas sórdidas que receara.
— Não se preocupe, Gerty — sua madame lhe dissera —, os chineses são iguais a todos os outros, às vezes um pouco exigentes, mas esse sujeito é tão rico que deve dar o que ele pedir, e bem depressa, para receber um bom pagamento.
Ela não precisara fazer muita coisa extra, limitara-se a suportar seus movimentos frenéticos com estoicismo, soltando os grunhidos necessários de prazer simulado.
— Adeus outra vez, amor.
Ela saiu, o mex escondido no corpete sujo, que mal cobria os seios flácidos com outra moeda, de um vigésimo do seu valor, na mão.
Lá fora, no patamar, estava Timee, um rude marujo eurasiano, de sangue misturado, mas de predominância chinesa. Ele fechou a porta e agarrou-a pelo braço.
— Fique de bico fechado, sua puta bexiguenta — sussurrou ele, forçando-a a abrir a mão para pegar a moeda, e depois xingando-a em chinês e inglês gutural pe]o ganho exíguo. — Por que não agradou o homem, sua puta?
Ele deu-lhe um cascudo e Gerty tropeçou, quase rolou pela escada; mas, assim que recuperou o equilíbrio, a uma distância segura, ela virou-se e gritou com mais veneno ainda:
— Vou contar a Madame Fortheringill sobre você! Ela dará um jeito em você!
Timee cuspiu na direção dela, bateu na porta, tornou a abri-la.
— Musume boa, hem? — indagou ele, insinuante.
Ori sentava agora a uma mesa velha, junto da janela. Usava uma camisa ordinária e calção, com as pernas à mostra, os pés descalços, a espada curta numa bainha no cinto. O saco de dinheiro se encontrava em cima da mesa. Ele percebeu os olhos contraídos se fixarem no saco. Indiferente, pegou outro dólar mexicano e jogou-o para Timee. O marujo de ombros largos pegou-o no ar, levou a mão ao topete, com um sorriso de poucos dentes, quebrados e amarelados.
— Obrigado. Grude, Guv? — Timee passou a mão pela barriga enorme. — Grude, wakarimasu ka?
A comunicação entre os dois era pela linguagem dos sinais e um pouco de pidgin. Timee era o principal guarda-costas de Ori. Outro vigiava lá embaixo, no bar, e havia um terceiro na viela. Ori sacudiu a cabeça.
— Não — disse ele, usando uma das palavras que aprendera, e depois acrescentou, acenando para que Timee se retirasse: — Ceveja.
Sozinho finalmente, ele olhou pela janela. O vidro estava rachado, com sujeira de mosca por toda parte, um canto faltando. A janela dava para a fachada de outro prédio quase em ruínas, um albergue de madeira, a dez metros de distância. O ar recendia a umidade e ele sentia a pele imunda; ficou arrepiado ao pensamento do corpo daquela mulher num contato suado, sem qualquer possibilidade de um civilizado banho japonês depois, embora pudesse tomá-lo sem qualquer problema na aldeia japonesa, a duzentos metros dali, no outro lado da terra de ninguém.
Mas, para isso, correria o risco de encontrar Hiraga e seus espiões à espera, pensou ele, Hiraga, Akimoto e todos os aldeões, que merecem ser crucificados como criminosos comuns, por tentarem impedir meu grandioso projeto. Ralé! Todos eles. Ousando tentar me matar pelo fogo, ousando envenenar o peixe... foi o karma que levou aquele gato a roubá-lo antes que eu pudesse detê-lo, para morrer momentos depois, vomitando, no meu lugar.
Desde então, ele comia com parcimônia, e apenas arroz, que cozinhava pessoalmente, numa panela na grelha, com um pouco de carne ou peixe feita para os outros pensionistas e os clientes do bar, fazendo Timee provar na sua frente, como uma proteção adicional.
A comida é horrível, este lugar é horrível, aquela mulher é horrível e só conseguirei esperar mais uns poucos dias antes de enlouquecer. Os olhos desviaram-se para o saco de dinheiro. Os lábios se repuxaram, deixando os dentes à mostra, num sorriso mórbido.
Na noite do incêndio, na outra choupana, em que dormia num catre, numa alcova mínima, nos fundos do bar, custara-lhe o que restava de seu dinheiro. Muito antes que os outros no albergue despertassem, seu faro para o perigo, aguçado em uma vintena de incêndios desde a infância, alertara-o de repente, arrancando-o do sono, para descobrir as chamas já lambendo a escada de madeira por cima, e a tempo de ver outra cabaça com óleo, um trapo em fogo no gargalo, sendo arremessada para o bar.
Um cão histérico descera a escada em disparada e se juntara a dois gatos que tentavam escapar, frenéticos. Os três animais desataram a correr em torno do bar, derrubando garrafas de bebida, que se espatifavam no chão de pedra, alimentando o incêndio. Soaram gritos no andar por cima, apinhado. Homens seminus desceram a escada, em pânico, as chamas queimando-os, enquanto corriam para a rua. O fogo alcançara a escada. Uma súbita língua de fogo se elevara pelo corrimão, junto da parede seca. O calor no bar era sufocante, gerando um vento que transformava o incêndio num matadouro implacável. Os lados da porta da frente começaram a arder, com a maior intensidade, as chamas quase obstruindo-a. Mais homens desceram correndo a escada, em tumulto, tropeçando uns nos outros, no desespero de atravessar as chamas para sair dali, alguns já com partes das roupas vestidas às pressas pegando fogo. Apenas uns poucos minutos haviam transcorrido desde que começara o incêndio criminoso, mas agora o fogo tinha total domínio, o prédio estava condenado.
Em seu cubículo, Ori não sentira qualquer medo, treinado para situações de incêndio, a salvo da fumaça turbilhonante, estendido no chão, a boca já coberta por um pano encharcado em cerveja, a rota de fuga de emergência automaticamente definida, desde o momento em que ali chegara. Como sempre, a segurança dependia da recusa em se entregar ao pânico e, desta vez, a saída era uma pequena janela fechada, no outro lado do bar, longe da escada em chamas, uma janela que dava para a viela nos fundos.
Ori já ia escapar por ali quando avistara o corpulento proprietário, de camisolão, uma touca com borla, descendo a escada, a lutar com outros homens apavorados, uma caixa de ferro debaixo do braço. Furioso, o proprietário empurrara outro homem à sua frente para as chamas, mas apenas para que as mesmas chamas o convertessem numa tocha humana, gritando; no instante seguinte a escada desabara, arrastando-o e a dois outros para o fogo, vedando qualquer possibilidade de fuga por ali. A caixa escapara dos braços impotentes do proprietário, deslizara pelo chão. Um homem bastante queimado conseguira escapar das chamas, cambaleando para fora. O fogo, voraz, consumira o proprietário e os dois outros homens, e dera a impressão de que se projetava para a caixa, com a mesma voracidade.
Sem qualquer hesitação, Ori correra pelas chamas, pegara a caixa e disparara para a janela, arrebentando sem dificuldade as persianas apodrecidas, escapando são e salvo para a viela dos fundos e o ar fresco. Abaixado, saíra correndo para a cerca oposta, pulara-a e se esgueirara pelo lixo e o mato, ainda agachado, através da terra de ninguém, na direção do poço abandonado.
Ali chegando, ofegante, olhara para trás, cauteloso. As chamas do albergue elevavam-se pelo céu. Homens se agrupavam ao redor, gritando e praguejando. Dois homens saltaram de janelas do segundo andar. Outros, com baldes cheios de água, molhavam as construções ao lado, clamando por ajuda.
Ninguém o notara.
Sob a cobertura do tumulto, ele encontrara uma barra de ferro quebrada, arrombara a caixa, ao mesmo tempo em que afugentava os enxames de insetos noturnos. O tesouro lá dentro fizera-o vibrar. Pusera dois sacos de moedas nos bolsos da calça, outro no bolso da túnica. Com o maior cuidado, enterrara a dúzia de sacos restantes em diferentes lugares, e também a caixa.
Na manhã seguinte, vagueara pela cidade dos bêbados, até encontrar um albergue mais isolado, longe do prédio transformado em cinzas. Dez mex na mão do proprietário, e o peso remanescente do saco, garantiram-lhe serviço imediato e untuoso, um quarto grande, à sua escolha. O proprietário, um homem de olhos azuis fundos e brilhantes — como os dela, pensara Ori, com um súbito e intenso anseio —, apontara para o saco:
— Vão acabar tirando isso de você, meu jovem china.
Ori não entendera as palavras. O significado, no entanto, logo se tornara claro, e produzira Timee. Ori também concluíra que se Timee fosse bem pago, assim como o proprietário, estaria seguro ali ou na rua; quando saísse, seu quarto seria sagrado. Como precaução, sabendo o perigo de depositar toda a sua confiança naqueles homens, Ori também deixara patente, com mais linguagem de sinais e muita paciência, que aqueles sacos constituíam apenas uma parte de sua riqueza, que se encontrava na aldeia, bem guardada, e que se achava disposto a gastá-la com generosidade, por sua proteção, e qualquer outra coisa de que precisasse.
— Você é o Guv, basta dizer o que quer e a gente providencia. Meu nome é Bonzer e sou australiano.
Como quase todas as pessoas na cidade dos bêbados, ele coçava a todo instante as picadas de pulgas e piolhos, os poucos dentes tortos, e fedia demais.
— Guv? Significa Ichiban!, Número Um. Wakarimasu ka?
— Hai, domo.
A porta foi aberta, interrompendo a sequência de pensamentos de Ori. Timee trouxera-lhe uma caneca de cerveja.
— Guv, vou papar alguma coisa agora. — Ele tossiu. — Grude, comida, wakarimasu ka?
— Hai.
Acerveja saciou a sede de Ori, mas não aquietou sua mente. Não se comparava à cerveja da aldeia. Nem à de sua terra, Satsuma ou da Yoshiwara ou da Estalagem das Flores da Meia-Noite, em Kanagawa. Ou de qualquer outro lugar.
Devo estar enlouquecendo, pensou ele, atordoado. Aquela puta gai-jin, com sua pele de barriga de sapo e cheiro de peixe, foi pior do que a pior das velhas megeras que já tive, mas mesmo assim desfrutei as nuvens e a chuva duas vezes e queria mais e mais.
O que há com elas? Deve ser pelos olhos azuis, a pele branca, os cabelos púbicos claros... nisso, aquela puta não era muito diferente dela, embora o fosse em todo o resto. Inconsciente, seus dedos reviraram a cruz que usava no pescoço meio escondida. Os lábios se contraíram num sorriso torto. No túnel, enganara Hiraga. O pedaço de metal que jogara longe fora seu último oban de ouro. Estou contente por ter ficado com a cruz... para me lembrar constantemente. E foi mais do que útil sob outros aspectos, fazendo esses estúpidos gai-jin pensarem que sou cristão. O que há nas suas mulheres que me deixa louco?
É o karma, disse ele a si mesmo, decidido, karma que não haja resposta, nunca haverá, exceto... exceto despachá-la para o outro mundo.
O pensamento do pescoço dela em suas mãos, sua virilidade a penetrá-la, deixou sua pele arrepiada, o anseio renovado, como se a outra não tivesse existido. Mais uma vez, o quarto parecia balançar, ameaçava sufocá-lo. Por isso, Ori se levantou, pôs a pistola no bolso, vestiu um gibão de couro e desceu.
— Guv?
Timee tossiu, levantou-se da frente de um prato cheio de arroz e guisado, para acompanhá-lo, mas Ori fez-lhe sinal e ao outro homem lá em cima que ficassem, e saiu para a rua.
Hiraga avistou-o no mesmo instante. Ele se postava no outro lado da rua suja e movimentada, sentado num banco, na frente de um bar imundo. Tinha na sua frente uma caneca de cerveja intocada, com homens ruidosos ao redor, bebendo, de pé ou arriados nos bancos, já embriagados, alguns seguindo para suas pensões, outros bares ou casas de jogo, que se agrupavam ali, formando um cortiço, igual ou pior que os de Londres. Os homens eram trabalhadores poliglotas, europeus e asiáticos, armados no mínimo com uma faca, e vestidos de maneira parecida com a dele, saindo do trabalho durante o dia inteiro nas fábricas de velas e lojas que abasteciam os navios, alguns mecânicos, uma profissão nova, ou procedentes de qualquer uma das dezenas de atividades relacionadas com os navios. Junto com mendigos e vagabundos havia padeiros, açougueiros, cervejeiros, agiotas e outros, que sustentavam ou sugavam aquela parte de Iocoama, separada da aldeia e da cidade dos nobres, como todos chamavam o setor dos mercadores, por consenso mútuo.
— Deve haver umas cento e cinqüenta almas na cidade dos bêbados e a maioria é formada por vagabundos — explicara-lhe Tyrer. — Eles têm poucas regras. É cada um por si, mas ai daquele que for apanhado roubando, pois a turba vai espancá-lo até a morte. Não existe lei, exceto as patrulhas da marinha e exército à procura de desertores, ou apenas tentando manter a paz entre seus homens, acabando com brigas e outros distúrbios. Há bares em que se vende cerveja e gim. O gim é uma bebida ordinária que pode matar, se não se tomar cuidado... aberto enquanto houver fregueses, o que também acontece com as casas de jogo. Não se aventure em nenhuma, nem nacasa de Madame Fortheringill, pois ela detesta japoneses, por causa do baixo custo da Yoshiwara... abençoada seja! Na outra extremidade, perto do portão sul, junto da Hoag Lane, fica a pior parte da cidade dos bêbados. Nunca estive lá, e é melhor você também se manter à distância. É ali que os mais depravados e perdidos tentam sobreviver. Ópio, mendigos, homens que se prostituem. Matadouro. Cemitério. Doença. E incontáveis ratos...
O pouco que Hiraga entendera o levara a desejar, ainda mais, conhecer o lugar pessoalmente. Aquela noite era a sua primeira oportunidade. Exceto por uns poucos insultos distraídos, que poderiam se aplicar a qualquer um, ninguém o incomodou, enquanto seguia Ori, restando ainda claridade suficiente no crepúsculo.
Sua presa se encaminhou para a praia, aparentemente sem propósito, e sem qualquer dos guardas-costas contra os quais fora alertado. O excitamento de Hiraga foi aumentando. O contato com o revólver no bolso lhe proporcionava uma sensação agradável. Os dedos ansiavam em pegá-lo, mirar, puxar o gatilho, para acabar com a ameaça ao seu futuro aqui, e depois iniciar a retirada controlada para a segurança, através da terra de ninguém, ou ao longo da praia, até a legação.
Aproximavam-se agora da pequena praça principal, ao lado do passeio e da praia, onde bares, casas de pasto e pensões disputavam a freguesia. Era a extremidade da colônia, o trecho mais estreito, espremido entre o mar e a cerca em que se situava o portão sul. Como no portão norte, a cerca era resistente e alta, estendia-se até o mar. A única abertura era o portão sul, fortemente guardado.
A praça estava apinhada, a maior parte constituída por soldados e marujos britânicos, com uns poucos franceses, americanos, russos e eurasianos. Ori esgueirou-se entre eles, foi até a beira do passeio. Contemplou o mar, escuro, com ondas de um metro de altura. Para o norte, a menos de um quilômetro de distância, ele podia avistar as luzes das casas de comércio se acendendo, o que também acontecia na legação francesa. E no andar superior do prédio da Struan, que dominava a área do cais, junto com o prédio da Brock.
Esta noite? Devo tentar esta noite?
Seus pés começaram a levá-lo nessa direção. Um súbito rumor, o barulho como o de um trem expresso, uns poucos metros abaixo da superfície, a terra tremeu, e Ori, como todas as outras pessoas na praça, cambaleou, nauseado, acabou caindo de quatro, enquanto a terra subia e descia, para depois parar. Um momento de silêncio, que parecia um grito estridente lançado para o céu. Depois, soaram alguns lamentos, berros, imprecações, que logo foram interrompidos por outro tremor. A terra tornou a se empinar, não tanto quanto antes, mas ainda assim de uma forma bastante terrível, os tremores se prolongaram pelo que pareceu muito tempo, até pararem de novo. Telhas caíram de um telhado. Pessoas corriam ou rastejavam para a segurança. Silêncio de novo, quase palpável, homens silenciosos, gaivotas silenciosas, todos os animais silenciosos. A terra esperando, tudo operando. Estendidos no chão, rezando, praguejando. E esperando.
— Já acabou, pelo amor de Deus? — gritou alguém.
— Já...
— Não...
— Eu espero...
Outro rumor. Ganidos de medo. O barulho aumentou, a terra se contorceu soltando um berro, voltou a ficar imóvel. Vários barracos desabaram. Brados de socorro. Ninguém se mexeu.
Mais uma vez, todos prenderam a respiração. Expectativa. Gemidos, orações súplicas, lamúrias, imprecações. À espera do próximo tremor. O maior de todos Esperando, mas não veio mais nada.
Por enquanto.
Momentos que se transformaram numa eternidade de espera. Depois, Ori sentiu que já acabara e levantou-se, o primeiro na praça, o coração disparado em alegria por não ter morrido desta vez, por continuar vivo e intacto, por renascer são e salvo, mas instintivamente preparado para o próximo perigo, um ímpeto imediato de fogo, que era uma consequência normal, e o maior de todos os riscos a se enfrentar. Cada terremoto era a nêmesis de alguém, um renascimento para todos os outros, e desde tempos imemoriais era encarado assim pelos que viviam na terra dos deuses, que era também chamada de terra das lágrimas.
Abruptamente, o estômago de Ori teve o seu tremor particular. No outro lado da praça, por cima da massa de pessoas ainda estendidas no chão, muitas vomitando e praguejando, ele avistou Hiraga, também de pé, observando-o. Cinqüenta metros além de Hiraga, a maioria dos guardas samurais também já se levantara... e alguns estudavam os dois com uma curiosidade inequívoca.
Quase no mesmo instante em que Ori sentira que o terremoto terminara e se levantara de um pulo, Hiraga e os samurais haviam feito a mesma coisa, numa reação espontânea, experimentando idêntico alívio e renascimento. Hiraga só compreendeu que estava de pé quando percebeu Ori a fitá-lo. Amarrou a cara. Avançou na direção de Ori, enquanto a praça voltava à vida, os homens se levantando, ruidosos, cambaleando. Atordoado, Ori se virou para fugir, mas homens assustados e irados, alguns rindo histéricos, outros balbuciando agradecimentos a Deus, barraram sua passagem — e a perseguição de Hiraga — com gritos de “Mas o que você...”
— Quem você pensa que é me empurrando desse jeito?
— Ei, é um maldito japa!
Foi então que alguém berrou:
— OLHEM! FOGO!
Assim como todos os outros, Ori olhou para o norte. Havia um prédio em chamas na extremidade do passeio. Ele o reconheceu como o quartel-general de dois andares da Struan. Ou talvez o prédio ao lado. Indiferente a todos, Ori saiu correndo.
Hiraga partiu em seu encalço, mas foi nesse momento que um bar desabou, fazendo as pessoas à sua frente correrem para todos os lados, esbarrando nele e quase derrubando-o. Hiraga fez um tremendo esforço para manter o equilíbrio, em meio ao tumulto. Naquela parte da praça, os homens corriam em círculos, a esmo, bloqueando seu caminho. Por um segundo, ele ainda divisou Ori e depois as ruínas do bar pegaram fogo; a multidão recuou, engolfando-o por completo.
Quando Hiraga recuperou o equilíbrio, Ori já desaparecera; por mais que tentasse forçar a passagem para o lugar em que o vira pela última vez, menos progresso conseguia fazer e mais furiosa a multidão se tornava.
— Ei, por que está me empurrando?
— Mas é outro japa desgraçado!
— Vamos dar uma lição no patife!
Depois que Hiraga apaziguou a todos, recuou e deu a volta, encontrando um caminho para a beira da praça, Ori não corria pelo passeio, na direção do incêndio, como ele esperava, nem se afastava pela praia... mas desaparecera por completo.
No prédio da Struan, Jamie McFay subiu correndo a escada, na semi-escuridão, em meio a gritos de alarme de “fogo!”, um lampião a óleo balançando em sua mão, o único candelabro aceso em toda a área da escadaria ainda a balançar devido aos choques. Ele alcançou o patamar, avançou pelo corredor, até a porta aberta de Struan.
— Tai-pan, você está bem?
O quarto estava escuro, a não ser por um brilho ominoso que dançava pelas cortinas da janela. Struan se encontrava caído ao chão, atordoado, meio vestido para o jantar, sacudindo a cabeça para tentar desanuviá-la, os dois lampiões espatifados, o pavio aberto de um que estava escondido pela cômoda crepitando sobre o tapete encharcado de óleo.
— Acho que sim — balbuciou ele. — Devo ter batido com a cabeça quando caí. Oh, Deus, Angelique!
— Deixe-me ajudá-lo...
— Posso me levantar sozinho, Jamie! Vá ver como ela está!
Jamie tentou a maçaneta da porta de comunicação. Trancada pelo outro lado. Foi nesse instante que o tapete pegou fogo. Struan arrastou-se para longe do fogo, gritando de dor. Antes que as chamas pudessem se espalhar, Jamie tratou de apagá-las com os pés. Em sua pressa para ajudar Struan a escapar, puxou-o de uma forma um tanto rude.
— Por Deus, Jamie, tome cuidado!
— Desculpe. Eu não...
— Não tem importância — murmurou Struan, sentindo uma pontada de dor do lado, onde batera com força ao cair, mais pulsações no estômago, onde antes não havia nenhuma, e as habituais sob o ferimento já cicatrizado, mas ainda dolorido. — Onde é o incêndio?
— Não sei. Estava lá embaixo e...
— Mais tarde... Angelique!
Jamie saiu para o corredor e a fumaça que vinha da outra extremidade fê-lo tossir. Bateu na porta de Angelique, tentou a maçaneta... trancada por dentro também. Ele jogou o ombro contra a madeira perto do batente e conseguiu arrombar a porta. O boudoir se achava vazio, um lampião caído de lado, ainda aceso, o óleo pingando sobre a cômoda, outro espatifado no chão, mais óleo por toda parte. Jamie apagou o pavio, correu para o quarto. Encontrou-a na cama, tão pálida quanto seu penhoar, os olhos fixados no lustre que ainda balançava incongruentemente aceso.
— Você está bem, Angelique?
— Oh, Jamie... — murmurou ela, hesitante, a voz parecendo muito distante — Estou, sim... deitei um pouco antes de me vestir para o jantar e, de repente o quarto começou a balançar. Pensei que era um sonho, mas depois os lampiões caíram e quebraram... Mon Dieu, foi o barulho do prédio sacudindo que mais me assustou... Oh, Malcolm...
— Ele está bem, e é melhor você se vestir depressa, enquanto pode. Não de...
O sino de alarme de incêndio, no escritório próximo do mestre do porto, começou a repicar, provocando um sobressalto nos dois. Com súbita apreensão, Angelique sentiu o cheiro de fumaça, ouviu os gritos abafados lá fora e divisou o clarão através das cortinas da janela.
— Estamos pegando rogo?
— Não há com que se preocupar por enquanto, mas é melhor se vestir tão depressa quanto puder, e passar para o quarto ao lado. Deixarei a porta de ligação destrancada.
McFay saiu apressado. Ela se levantou. Sob o penhoar, usava calça comprida e espartilho. Tratou de vestir a saia, que havia deixado sobre a cama, e pegou um xale.
— Não aconteceu nada com ela, tai-pan — ouviu Jamie dizer, enquanto destrancava a porta de ligação. — Está se vestindo. Deixe-me ajudá-lo a descer...
— Só quando ela descer também.
Jamie fez menção de falar, mudou de idéia, os dois ainda se lembrando do conflito na hora do almoço, sem a menor disposição de fazer qualquer concessão. Foi abrir a janela. No jardim da frente e na rua lá embaixo, havia escriturários e criados, inclusive Vargas, assim como curiosos e homens das várias legações, mas ele não avistou as chamas.
— Vargas! — gritou McFay. — Onde é o nosso incêndio?
— Não temos certeza, senhor, mas achamos que é apenas parte do telhado. Alguns homens já estão lá, junto com o comandante dos bombeiros, mas todo o segundo andar da Brock pegou fogo.
Jamie não podia ver o prédio ao lado, por isso voltou apressado ao boudoir de Angelique e abriu as cortinas. O fogo dominava boa parte da frente do prédio da Brock — uma estrutura de dois andares, parecida com a Struan — onde deveriam ser os quartos principais. A fumaça saía pelas janelas abertas. Dava par ver as fileiras de homens, os baldes com água passando de mão em mão no esforço para se apagar o incêndio, sob a supervisão de Norbert Greyforth — as equipes de fogo da Brock eram treinadas com a mesma freqüência e rigor com que ele próprio cuidava do pessoal da Struan. Empurradas pela brisa, as chamas se projetavam, junto com a fumaça, para cobrir o espaço.
É muito azar ser atingido pelo fogo deles, pensou Jamie, amargurado, para depois inclinar-se pela janela e gritar:
— Vargas, traga homens e água aqui para cima... molhem todo este lado! Depois que estivermos seguros, ajude Norbert!
Espero que o patife queime, e toda a Brock junto com ele, pois isso resolveria para sempre o problema daquele estúpido duelo.
Não havia outros incêndios que pudesse ver dali, além do que ardia junto ao passeio, na cidade dos bêbados, e dois na Yoshiwara. O cheiro de madeira queimada, de óleo e pano em chamas e do piche que usavam nos telhados prevalecia sobre tudo, embora a brisa trouxesse a maresia. Inexoravelmente, sua atenção retornou às chamas na Brock, que tanto os ameaçava. O vento as empurrava cada vez para mais perto. Desejou que se apagassem, com medo do fogo — a chácara em que nascera pegara fogo numa horrível noite de inverno, quando era menino, o pai, embriagado como sempre, e o irmão caçula morreram; ele, a mãe e a irmã escapando por um triz, salvando suas vidas e pouco mais, indo para uma casa de indigentes, em que trabalharam demais por anos a fio, até serem salvos por Campbell Struan, parente de Dirk Struan, em cujas terras seu pai labutara.
— Vargas! Depressa, pelo amor de Deus!
— Já estamos indo, senhor!
Agora o passeio se tornara atulhado, todo mundo nas ruas, dispostos a ajudar e a dar conselhos, outros aos gritos formando uma linha de baldes com água, desde o imenso reservatório de incêndio, cheio de água do mar, de fácil alcance, unidades do exército alojadas em barracas juntaram-se à multidão. Samurais acorriam, vindos do portão norte, para ajudar, pois qualquer fogo também os ameaçava. Para o sul, no outro lado do canal, uma das casas da Yoshiwara estava em chamas, com mais gritos trazidos pelo vento, mas esse incêndio parecia contido, não constituía um perigo maior, e graças a Deus não era perto do lugar em que Nemi deveria estar.
O suor escorria por suas costas. Sentia intenso alívio por nada ter acontecido a Malcolm. Desde o almoço que ficara remoendo em seu escritório, furioso porque sua busca por garimpeiros vazara, na mais profunda ansiedade pelo duelo e seu próprio futuro. Nunca antes imaginara que poderia se envolver numa briga assim, ou que seria forçado a deixar a Casa Nobre e o Japão, exceto por doença ou acidente, antes de se aposentar, daqui a cinco anos, com a idade madura de quarenta e quatro, após vinte e cinco anos de bons serviços, subindo degrau por degrau. Agora, com Malcolm alienado, e Tess Struan furiosa com ele, sua promoção, aposentadoria... todo o seu futuro corria perigo.
O que fazer, era isso que o preocupava, até que os tremores viraram o mundo de cabeça para baixo, sua precária mortalidade outra vez se tornara manifesta; e depois, quando o terremoto cessara e pudera se levantar, cambaleando, suas glândulas e a lembrança das dívidas que ele e sua família tinham com os Struans o fizeram subir correndo, apavorado pela segurança de Malcolm... afinal, era ele quem estava no comando, e aquele rapaz era pouco mais que um inválido. Tai-panl Sinto muito, Malcolm, Norbert tem razão, sua mãe é que tem o comando. Se você não estivesse ferido, teria corrido de volta a Hong Kong quando ela ordenou, nada disso aconteceria, você assumiria as rédeas e daqui a um ano, ou por aí, estaria...
— Jamie... pode me ajudar?
Aturdido, ele virou-se. Angelique estava parada à porta, de costas, a frente do vestido suspensa, a parte de trás aberta. Por um segundo, ele sentiu-se tentado a gritar: Essa droga de vestido é uma loucura, estamos quase em chamas! Mas não o fez, apenas se apressou em abotoar o vestido, ajeitou um xale sobre seus ombros, e levou-a para o quarto ao lado, onde ela se projetou no mesmo instante para os braços abertos de Struan. Alguns homens passaram correndo pela porta aberta, carregando baldes cheios.
— É melhor saírem, senhor! — gritou alguém.
— Tempo de partir, tai-pan. Está bem?
— Estou, sim.
Malcolm encaminhou-se para a porta, tão depressa quanto podia. Com as duas bengalas ele era lento... desastrosamente lento, se houvesse uma emergência, como todos os três sabiam, Struan ainda mais. Agora havia o barulho de pés no sótão, homens tentando apagar as chamas, o cheiro de fumaça cada vez pior, aumentando a ansiedade.
— Jamie, leve Angelique para fora. Irei atrás.
— Apóie-se em mim, e...
— Pelo amor de Deus, faça o que estou mandando e depois volte, se for necessário!
Jamie corou. Pegou Angelique pelo braço, e os dois se apressaram em deixar o prédio, homens ultrapassando-os com baldes vazios, outros entrando com baldes cheios.
No momento em que ficou sozinho, Struan voltou até a arca de gavetas, vasculhou sob algumas roupas e encontrou o pequeno vidro que Ah Tok reabastecera naquela tarde. Tomou a metade do líquido marrom, tapou o vidro, guardou-o no bolso da sobrecasaca, deixando escapar um suspiro de alívio.
Angelique foi levada pela escada e saiu pela porta da frente. Respirou fundo o ar puro.
— Vargas! — gritou Jamie. — Cuide de miss Angelique por um momento.
— Pois não, senhor.
— Por favor, permita que eu ajude, monsieur — interveio pomposo Pierre Vervene, o diplomata francês. — Escoltarei mademoiselle Angelique até nossa legação... ela poderá esperar ali em segurança.
— Obrigado.
Jamie voltou correndo para o prédio. Angelique pôde perceber agora que o telhado estava ardendo, não muito, no momento, mas perto das suítes, as chamas da sede da Brock ainda se projetando até o lado. Samurais bem treinados, com quimonos amarrados para não atrapalharem, mascarados contra a aspiração de fumaça, encostaram escadas numa das paredes. Alguns subiram, enquanto outros, com gestos e gritos, mandaram que os homens trouxessem baldes com água, passados aos que se encontravam no topo das escadas e lançados onde era mais importante. Uma língua de fogo impetuosa avançou para um dos homens, mas ele se esquivou, cobriu o rosto, manteve a posição, e logo voltou a combater o incêndio. Ela prendeu a respiração, pensando como aquele homem era forte e corajoso, e como Struan se mostrara impotente, quão pouco pudera fazer para protegê-la numa emergência, como era mais e mais um peso inútil, mais e mais um inválido, a cada dia mais rabugento, menos e menos divertido. O que será do meu futuro? Um tremor percorreu seu corpo.
— Não há nada com que se preocupar, mademoiselle — disse Vervene, em francês, uma touca de borla cobrindo a calva. — Venha comigo. Está sã e salva agora. Os terremotos são bastante comuns por aqui.
Ele pegou-a pelo braço, a fim de levá-la até a legação francesa, através dos homens que enxameavam no passeio, assistindo ao espetáculo ou ajudando a combater o incêndio.
Ori avistara-a no momento em que saíra para a rua.
Encontrava-se à margem da multidão, na entrada da viela ao lado da legação francesa, perto do portão norte. Suas roupas e gorro de trabalhador não eram muito diferentes dos trajes usados por muitos homens ao seu redor, camuflando-o bem. Daquela posição, podia observar a maior parte do passeio, a frente do prédio da Struan e a rua ao lado, um prolongamento da rua principal da aldeia.
Ele parou de observá-la e esquadrinhou tudo ao redor, à procura de Hiraga ou Akimoto, certo de que espreitavam de algum lugar nas proximidades, ou em breve o fariam, seu coração ainda disparado da frenética corrida desde a cidade dos bêbados. No instante em que percebera o fogo no prédio da Struan e o trecho aberto do passeio, compreendera que estava fadado a ser apanhado, se tentasse escapar por aquele caminho, ou pela praia... e não havia tempo de buscar Timee para lhe dar cobertura.
Não que eu possa confiar naqueles cães, pensou ele, o coração palpitando ainda mais por Angelique estar tão perto.
Agora, a apenas vinte metros de distância.
Aqueles por quem ela passava no passeio tiravam o chapéu, murmuravam cumprimentos, a que Angelique respondia distraída. Ori poderia naquele momento procurar segurança ainda maior, mas não o fez, apenas tirou seu gorro, como os outros, e fitou-a. Barba curta, rosto forte, olhos curiosos, os cabelos rentes, mas penteados. Os olhos de Angelique passaram por ele, mas ela não o viu de fato, nem Vervene, que falava em francês, muito amável.
Passaram a poucos metros de distância. Ori esperou até que entrassem na legação francesa — não havia sentinelas ali agora, todos haviam ido participar do combate ao incêndio — e depois se afastou pela viela. Assim que se certificou de que ninguém o observava, pulou a cerca da legação, como fizera antes, e se encaminhou para o seu ponto de emboscada anterior, sob a janela de Angelique Naquela noite as janelas estavam destrancadas, sem barras, assim como a porta interna. Ele podia avistar o corredor, através do quarto, e viu-os quando entraram num cômodo no outro lado, que ficou com a porta entreaberta.
Agora que se encontrava seguro, sem ninguém a observá-lo, Ori verificou sua pistola, ajeitou a faca, para que ficasse solta na bainha. Depois se acocorou respirou fundo, pôs-se a pensar. A partir do momento em que vira Hiraga, e quase que no mesmo instante o incêndio no prédio da Struan, saíra correndo às cegas, deixando que o instinto o guiasse. Isso não serve mais, disse a si mesmo agora.
Tenho de planejar. E depressa.
As janelas abertas eram como um imã. Ele esgueirou-se sobre o peitoril da janela e entrou no quarto.
26
— Por que não dormem aqui esta noite, mademoiselle, monsieur Struan? — sugeriu Vervene. — Temos bastante espaço.
Era quase a hora do jantar, e se haviam reunido na principal sala de recepção da legação francesa, tomando champanhe. Jamie acabara de chegar para informar que o incêndio fora apagado, sem danos maiores, apenas os prejuízos causados pela água na suíte de Angelique, um pouco na de Struan.
— Se quiser, pode ocupar meus aposentos, tai-pan — propôs Jamie. — Dormirei em outro lugar, e miss Angelique pode ficar no quarto de Vargas.
— Não há necessidade, Jamie — disse Angelique. — Podemos ficar aqui, sem incomodar ninguém. Afinal, eu ia mesmo me mudar para cá amanhã. Concorda, chéri?
— Acho que eu me sentiria mais à vontade em minha própria suíte. Será que posso, Jamie?
— Claro que sim. Mal foi afetada. Miss Angelique, gostaria de ficar nos meus aposentos?
— Não, Jamie. Passarei a noite aqui.
— Então está tudo acertado — declarou Struan, com uma estranha expressão nos olhos, sentindo-se muito cansado, a maior parte da dor ainda amortecida pelo ópio, mas não a raiva profunda contra Norbert Greyforth.
— Monsieur Struan, quero que tenha certeza de que também é bem-vindo aqui — disse Vervene. — Temos aposentos suficientes, já que o ministro e sua equipe se encontram em Iedo, por mais alguns dias.
— Oh! — Angelique se mostrou visivelmente chocada. André teria de buscar o medicamento no dia seguinte. Todas a fitaram, surpresos, e ela se apressou em acrescentar:— Mas André me disse que todos voltariam o mais tardar até amanhã de manhã, depois da reunião hoje com o xógum.
— Depende da pontualidade do xógum, e de como a reunião vai transcorrer... nossos anfitriões não são modelos internacionais de pontualidade, não é mesmo? — Vervene riu da própria piada. — Nunca se sabe o que pode acontecer nessas reuniões oficiais. Pode levar apenas um dia ou até uma semana. Outro conhaque, monsieur Struan?
— Quero, sim, obrigado.
— Mas André disse que a reunião seria esta manhã e que no máximo estariam de volta amanhã!
Angelique fez um esforço para conter as lágrimas, que ameaçavam escorrer por suas faces.
— Qual é o problema, Angel? — indagou Struan, irritado. — Faz alguma diferença quando eles vão voltar?
— Não, mas... mas eu apenas detesto quando alguém diz uma coisa que não é verdade.
— Provavelmente se enganou, e é um absurdo se sentir transtornada com uma coisa tão insignificante. — Struan tomou um gole grande de conhaque.— Pelo amor de Deus, Angel, pare com isso!
— Talvez eles voltem amanhã, mademoiselle — interveio Vervene, sempre o diplomata.
Uma vaca estúpida, pensou ele, por mais apetitosos que sejam seus seios e beijáveis seus lábios, como se isso tivesse alguma importância. Depois de uma pausa, ele acrescentou, com seu sorriso mais insinuante:
— Ora, não importa. O jantar será servido dentro de uma hora. Monsieur McFay, vai nos acompanhar?
— Obrigado, mas não posso. É melhor eu me retirar agora. — Na porta, McFay hesitou. — Tai-pan... ahn... devo voltar para buscá-lo?
— Sou capaz de andar duzentos metros sozinho — protestou Struan, em tom brusco. — Perfeitamente capaz!
E de puxar um gatilho esta noite, ou em qualquer outra noite, ele teve vontade de acrescentar.
Pouco antes de virem para cá, Norbert Greyforth fizera uma pausa no trabalho, o incêndio na Brock quase controlado, e se aproximara pela rua, sem que ele percebesse. Jamie, ao seu lado, orientava Vargas e os outros no combate às chamas, com o Dr. Hoag e o Dr. Babcott nas proximidades, cuidando de queimaduras e de uns poucos ossos fraturados.
O elixir de Ah Tok promovera sua magia habitual e Struan sentia-se bem e confiante, apesar de estranho e querendo dormir, como sempre... fantasiava que dormir o levaria a sonhar, e o sonho seria sobre amar, um contato com a moça japonesa ou com Angelique, com uma paixão cada vez mais intensa, a necessidade delas tão grande quanto a sua, em total erotismo. E, de repente, abruptamente, ele fora arrastado ao presente implacável.
— Boa noite, Jamie. Uma coisa terrível, hem?
— Ah, Norbert — dissera Struan, a polidez ajudada pela euforia. — Lamento o seu azar. Acho que...
Norbert o ignorara, numa atitude deliberada.
— Por sorte, Jamie, não houve danos em nossos escritórios, depósitos ou casas-fortes, tenho certeza de que ficará satisfeito em saber... apenas nos outros aposentos.
Depois, ele simulara ver Struan pela primeira vez, e sua voz se tornara mais alta, mais zombeteira, para que todos ouvissem:
— Ora, ora, se não é o jovem tai-pan da Casa Tão Nobre! Uma péssima noite para você, meu rapaz, não me parece muito bem... perdeu seu leitinho, hem?
A euforia de Struan se dissipara. Através do nevoeiro do opiato, compreendera que se confrontava com o mal, o inimigo à sua frente.
— Não, mas você perdeu as boas maneiras.
— Boas maneiras não são o seu forte, rapaz. — Norbert soltara uma risada. — Isso mesmo, não sofremos prejuízos maiores. Na verdade, nosso novo empreendimento em mineração faz com que sejamos a Casa Nobre no Japão, e muito em breve seremos também em Hong Kong, até o Natal. É melhor voltar correndo para casa, Malcolm.
— O nome é Struan — respondera ele, vendo-se alto, forte e onipotente, sem tomar conhecimento dos outros ao redor, ou que Jamie e Babcott estivessem tentando intervir. — Struan!
— Gosto de jovem Malcolm, jovem Malcolm.
— Na próxima vez em que me chamar assim, eu o chamarei de bastardo sem mãe e estourarei seus miolos, sem esperar que apresente seus padrinhos!
Houve um silêncio profundo nesse instante, realçado ainda mais pelo crepitar das chamas e o zunido do vento. A notícia do desafio na hora do almoço espalhara-se em poucos minutos, e todos aguardavam o próximo movimento no jogo, que vinha fermentando desde que o avô de Malcolm, Dirk Struan, morrera antes de poder matar Tyler Brock, como jurara fazer.
A mente de Norbert Greyforth trabalhara depressa. Mais uma vez, ele avaliara seu futuro e sua posição na Brock, considerando com cuidado o que deveria fazer — as apostas eram imensas. Era bem recompensado... enquanto obedecesse às ordens. A última carta de Tyler Brock abrira uma porta para o paraíso, dizendo-lhe expressamente para “provocar Malcolm Struan até o limite, enquanto ele está doente, ferido e sem a proteção da minha filha insuportável, que Deus a condene ao inferno! Haverá cinco mil guinéus por ano, durante dez anos, se esse rapaz for destruído enquanto estiver no Japão... e você pode adotar qualquer providência que for necessária”.
Norbert completaria trinta e um anos dentro de seis dias. Aos quarenta, a idade normal da aposentadoria, o mercador médio na China já era um velho. Cinco mil por dez anos era sem dúvida uma quantia nababesca, o suficiente para ele e seus descendentes, o suficiente para comprar uma vaga no Parlamento, para se tornar um esquire com um solar, casar com uma jovem que lhe traria um bom dote de boa terra do Surrey.
Era fácil decidir. Ele aproximara o rosto de Struan, e ficara satisfeito ao perceber a dor sob a pele esticada... de uma altura superior, agora que Struan se encolhera sobre as bengalas.
— Escute aqui, jovem Malcolm, você jogou conhaque em minha cara no almoço e pode beijar meu rabo no jantar.
— E você é um bastardo sem mãe!
O homem mais velho soltara uma risada escarninha, cruel.
— E você é um bastardo sem mãe ainda maior, mais do que isso, é...
Babcott se interpusera entre os dois, sua enorme altura e corpulência ofuscando-os.
— Parem com isso, vocês dois! — gritara ele, furioso. — Este é um lugar público e tais divergências devem ser acertadas em particular, como fazem os cavalheiros!
— Ele não é um cava...
— Em particular, Malcolm, como cavalheiros — gritara Babcott, ainda mais alto. — Norbert, qual é o seu desejo?
— Um duelo não é minha opção, mas é isso que esse bastardo quer e assim será! Esta noite, amanhã, quanto mais depressa, melhor!
— Nem esta noite, nem amanhã, nem em qualquer outro dia, pois duelar é contra a lei, mas estarei em seu escritório amanhã, às onze horas.
Babcott olhara para Struan, sabendo que ninguém ali poderia evitar um duelo, se era esse o desejo de ambos. Percebera as pupilas dilatadas e sentira-se triste por Struan, mas ao mesmo tempo furioso. Há algum tempo que ele e Hoag tinham diagnosticado o vício, mas nada do que fizeram ou disseram causara qualquer impressão e também não eram capazes de impedir o acesso ao vício.
— Eu o verei ao meio-dia, Malcolm. Enquanto isso, como a maior autoridade britânica em Iocoama no momento, ordeno que vocês dois não dirijam a palavra um ao outro, nem se agridam, em particular ou em público...
Ora, não importa o desgraçado do Babcott, pensou Struan agora, ainda mais confiante, o conhaque se somando muito bem ao opiato. Amanhã ou depois mandarei Jamie, não, mandarei Dmitri falar com Norbert... não Jamie, pois ele não merece mais minha confiança. Marcaremos o duelo no hipódromo e a Casa Nobre dará a Norbert um funeral nobre... e também ao miserável do Brock, se algum dia ele aparecer por aqui! Ambos esqueceram que você foi o melhor atirador com revólver em Eton, e duelou com aquele canalha do Percy Quill por chamá-lo de china. Matou-o também, e foi expulso da escola por isso, embora o caso tenha sido abafado por papai, por alguns milhares de guinéus. Norbert vai receber o castigo que merece...
Uma comoção na sala atraiu sua atenção. Seratard acabara de entrar, sendo cercado e cumprimentado pelos outros, com André Poncin logo atrás. Através do nevoeiro em sua mente, ouviu Seratard dizer que a reunião em Iedo fora rapidamente concluída, depois que “rompemos o impasse e a proposta francesa foi aceita, por isso não havia necessidade de ficar...”
Seus ouvidos pararam de escutar quando os olhos focalizaram André. O belo e elegante francês, de feições aquilinas e porte ereto, sorria para Angelique, que também sorria em retribuição, com uma felicidade que há dias não demonstrava. O ciúme começou a dominá-lo, mas Struan tratou de reprimi-lo. Não é culpa dela, pensou ele, cansado, nem de André; Angelique vale um sorriso, e não tenho sido boa companhia, estou diferente, cansado de tanta dor, desamparado ainda por cima. Mas eu amo essa mulher e preciso dela desesperadamente.
Ele fez um esforço para se levantar, pediu desculpas por ter de se retirar, agradeceu a hospitalidade. Seratard se mostrou muito simpático, como sempre:
— Mas não quer ficar? Lamento muito o incêndio... não sentimos nada no mar, nem mesmo houve uma onda maior. Não se preocupe com sua noiva, teremos o maior prazer em lhe fazer companhia, monsieur, enquanto for necessário e reparam seus aposentos. É claro que será bem-vindo aqui no momento em que desejar, monsieur.
Ele acompanhou-os até a porta, Angelique insistindo em pegar o braço de Struan e ir junto até sua residência.
— Estou bem, Angel — murmurou Struan, amando-a mais do que nunca.
— Sei disso, meu amor, mas é meu prazer — disse ela, cheia de boa vontade, agora que André voltara.
Só mais algumas horas e depois estarei livre, pensava Angelique.
O jantar foi um grande sucesso, com Angelique radiante, Seratard exuberante por seu sucesso em Iedo, regalando-os com suas façanhas na Argélia, onde fora a autoridade encarregada de subjugar os nativos, antes de ser enviado para o posto atual, Vervene disputando sua atenção durante o tempo inteiro, relatando versões heróicas de seus feitos anteriores, todos inebriados por sua companhia e pelo vinho abundante, uma garrafa de borgonha por pessoa, com champanhe antes para atiçar as papilas gustativas, e depois para aquietar o estômago. André Poncin começou a relatar histórias picantes de Hong Kong, Xangai e Kowloon, onde os aldeões acreditavam de vez em quando na praga do pênis, que faria com que esse apêndice desaparecesse em seus corpos, por isso todos os homens amarravam um cordão ao redor, prendendo-o no pescoço, a fim de evitar a catástrofe.
— Oh, André, isso é impossível, e uma impertinência de sua parte! — exclamou Angelique.
Ela abanou o leque, em meio aos risos e protestos de André de que era a verdade absoluta, sabendo que chegara o momento de se retirar. Terminou de tomar o segundo copo alto de champanhe, que acompanhou muito bem as três taças anteriores de Château d’Arcins, deixando-a ainda mais jovial... e se somando ao alívio por André ter voltado quando prometera e ao prazer por falar francês durante toda a noite, prevalecendo sobre sua cautela habitual.
— Agora vou deixá-los com seus charutos e conhaque... e com suas histórias maliciosas!
— Fique mais um pouco — pediu Seratard. — André vai tocar para nós.
— Esta noite, não — apressou-se em dizer André. — Se não se importam, há alguns papéis que preciso preparar para amanhã. Sinto muito.
— Tudo pode esperar, o prazer antes dos negócios — insistiu Seratard, como uma ordem jovial. — Esta noite devemos ter música para arrematar o dia, alguma coisa romântica para Angelique.
— Deixe-o descansar um pouco, Henri — interveio ela, o vinho tornando suas faces rosadas, satisfeita porque André se mostrava obviamente ansioso em buscar o medicamento prometido. — Afastou-o dos seus negócios por tempo demais. Afinal, ele não é um dos seus funcionários.
— André adorará tocar para nós.
— Ah, André deve sempre obedecer, hem? Pois eu devo lhe ordenar, monsieur le ministre, que o dispense por esta vez... e a mim também, pois é hora de ir me deitar.
Angelique levantou-se, os joelhos um pouco bambos. Todos a cercaram protestando com veemência.
— Mas estarei aqui amanhã, e pelo menos por mais três dias. — Ela estendeu a mão para André, com um sorriso especial. — Pode se retirar agora. Eu lhe ordeno que cuide dos nossos interesses.
— Pode contar com isso, Angelique.
— Um último drinque...
Ela se permitiu ser persuadida a levar o copo, e depois todos a escoltaram até seus aposentos, para se certificarem de que as trancas nas janelas do boudoir e do quarto estavam bem seguras.
— Resolvemos trocar todas as venezianas desde a última vez em que esteve aqui — explicou Vervene, que já lhe dissera isso antes, os cabelos escassos desgrenhados, radiante e meio tonto. — Não bateram nem mesmo na tempestade da semana passada.
Todos os olhos notaram a camisola e o penhoar verdes, quase transparentes, estendidos na cama, arrumada de forma convidativa pela corpulenta criada, que observava a cena e esperava com expressão desaprovadora. Os lampiões a óleo projetando claridade tênue e criando bruma tornavam o quarto ainda mais sedutor, mais provocante.
Houve mais murmúrios de boa noite e sonhos felizes, com evidente relutância, e depois ela ficou a sós com Ah Soh, a porta para o corredor trancada. A criada despiu-a, escovou seus cabelos, guardou o vestido no armário, junto com suas outras roupas, a lingerie na arca de gavetas, enquanto Angelique cantarolava feliz, contente por se encontrar ali, a salvo para amanhã, exultante por estar sozinha, e porque o incêndio e o terremoto não haviam machucado ninguém nem interferido com seus planos; ao contrário, tornara-os ainda mais simples.
Promoverei a paz entre Malcolm e Jamie, é prejudicial o afastamento dos dois, pensou ela, exuberante, ainda com sede, mas dominada pela satisfação que o vinho proporcionava. Graças a Deus por André. Eu me pergunto como é a Yoshiwara e sua mulher. Vou encorajá-lo a me falar sobre ela, a fim de podermos rir juntos.
— Boa noite, miss.
Ah Soh se encaminhava a passos pesados para o divã no boudoir. A última vez em que dormira ali, mesmo com aporta do quarto fechada, seus roncos haviam sido ensurdecedores, deixando Angelique ainda mais transtornada.
— Não, Ah Soh, não precisa dormir aqui. Pode ir agora, e volte com o café da manhã, está bem?
A mulher deu de ombros.
— Boa noite, miss.
Angelique trancou a porta depois que a criada saiu e na luz aconchegante, sozinha, e finalmente em paz, girou indolente ao ritmo de uma valsa cantarolada. Um momento depois, seus ouvidos captaram os acordes abafados do piano. Ah, é Henri, concluiu ela, reconhecendo seu jeito de tocar. Ele é um bom pianista, melhor do que Vervene, mas não se compara a André. Chopin. Uma música suave, delicada, romântica.
Ela se balançou ao ritmo da adorável melodia, e depois viu seu reflexo no espelho alto. Contemplou-se por um instante, de um lado e de outro, depois levantou os seios, como costumava fazer quando ficava a sós com Colette, ajeitando-os de várias maneiras, para verificar se assim se tornavam mais ou menos desejáveis.
Um gole de champanhe, as borbulhas fazendo cócegas, a música e o álcool a acalentando. Um impulso súbito e excitado levou-a a deixar o penhoar cair, e depois levantou a camisola, mais e mais alto, admirando a imagem no espelho, as pernas e a virilha, os quadris e os seios, e depois a nudez total, posando de várias maneiras, usando a camisola arrepanhada para encobrir ou revelar.
Outro gole de champanhe. Depois, ela mergulhou um dedo no copo e levou o líquido aos mamilos endurecidos, como lera que as grandes cortesãs parisienses faziam, às vezes usando o Château d’Yquem doce ali, e também em outros lugares. É curioso que duas das mais famosas cortesãs no centro do mundo sejam inglesas.
Angelique riu para si mesma, arrebatada pela noite, a música e o vinho. Depois que eu tiver um ou dois filhos e completar vinte e um anos”; quando Malcolm tiver uma amante e eu me encontrar preparada para um amante especial, é o que farei... para o prazer dele e o meu, e antes disso para o de Malcolm.
Outro gole, mais outro, e ela acabou o champanhe, lambendo a última gota, lânguida, observando pelo espelho, a língua escorregando em torno do copo, brincando com o copo. Com outra risada, largou o copo na penteadeira, não notou quando caiu para o tapete, os ouvidos sintonizados apenas em Chopin, a atenção em suas paixões latentes — os olhos fixados no espelho, agora a imagem refletida mais próxima, numa intimidade despudorada.
Lentamente, Angelique inclinou-se para a frente, abaixou o pavio no lampião, as sombras se tornando mais suaves agora, e depois recuou um pouco, a pessoa no espelho ainda ali, fascinante, sensual. Os dedos entraram em movimento, como que dotados de vida própria, vagueando, acariciando, o coração disparado, palpitando com o prazer crescente. Os olhos fechados agora, imaginando Malcolm alto, forte e com um cheiro irresistível, levando-a para o quarto, estendendo-a sobre as cobertas, deitando com ela, também nu, seus dedos vagueando, acariciando.
Ori empurrara a porta do armário no outro cômodo, saíra sem fazer barulho, e agora se encontrava nas sombras profundas perto da porta entreaberta, observando-a, o coração ressoando em seus ouvidos. Fora fácil para ele esconder-se entre as caixas, vestidos e anáguas pendurados, mais fácil ainda recuar para fundo, a fim de se tornar invisível, quando a criada abrira o armário. Fora fácil também ouvir os últimos estalidos das trancas, e perceber quando Angelique ficara a sós.
Na semi-escuridão do quarto, ela estava deitada na cama, os olhos fechados um pequeno tremor percorrendo seu corpo de vez em quando, o rosto nas sombras’ o corpo em parte nas sombras, sombras que dançavam nos movimentos da pequena chama, agitada pelas correntes de ar. Sem fazer barulho, Ori saiu da escuridão para o limiar. Fechou a porta, com um estalido. A música distante abafou o ruído. Angelique abriu os olhos, focalizou, e avistou-o.
Algum sentido lhe disse que era ele — o assassino da Tokaidô, o pai da criança que nunca deveria nascer, que a violara, mas não deixara lembrança de dor ou estupro, apenas sonhos parcialmente eróticos, metade de sono, metade de vigília... e que ela se encontrava indefesa, e naquela noite seria assassinada.
Os dois mal respiravam. Imóveis. Esperando que o outro tomasse a iniciativa. Ainda em choque, Angelique contemplou sua juventude, não devia ser muito mais velho do que ela, um pouco mais alto, uma espada-faca embainhada na cintura, a mão direita no cabo, barba e cabelos curtos e bem aparados, ombros largos, quadris estreitos, camisa ordinária, calções largos, pernas musculosas, sandálias de camponês. O rosto na sombra.
É apenas outro sonho, com toda certeza, não precisa ter medo...
Aturdida, ela soergueu a cabeça, apoiou-a na mão, gesticulou para que ele se deslocasse para a luz.
Por um momento envolvido no mesmo estado de irrealidade e sonho, Ori obedeceu; quando ela viu as feições marcantes, tão diferentes, os olhos escuros cheios de anseio, abriu a boca para indagar quem é você, qual é o seu nome, mas ele pensou que seria um grito, e por isso saltou para a frente, em pânico, a lâmina se aproximando com violência da garganta de Angelique.
— Não, por favor — balbuciou ela, a cabeça descaindo para o travesseiro. Ao constatar que ele não a compreendia, sacudiu a cabeça, apavorada, cada parte de seu ser bradando em desespero. Você vai morrer, não há escapatória desta vez!
— Não... por favor...
O pavor deixou o rosto de Ori, que ficou imóvel, o coração trovejando tanto quanto o dela, depois levou um dedo aos lábios, advertindo-a a se manter em silêncio, a não se mexer.
— Iyé — sussurrou ele, a voz rouca, e acrescentou: — Não.
Uma gota de suor escorreu por seu rosto.
— Eu... não... não farei qualquer barulho — murmurou ela, o terror a confundindo.
Angelique puxou o lençol sobre a virilha. Ele arrancou-o no mesmo instante. O coração dela parou. Mas nesse segundo ela soube; um instinto primitivo na mente a impelira para um plano diferente e sentiu-se invadida por um conhecimento latente, recém-descoberto. Seu horror começou a se desvanecer. Vozes interiores pareciam sussurrar: Tome cuidado, podemos guiá-la. Observe seus olhos, não faça qualquer movimento brusco, primeiro a faca...
O coração batendo forte, Angelique observou os olhos do homem, levou um dedo aos lábios, como ele fizera, apontou para a lâmina, gesticulou para que a afastasse.
Ori era como uma mola presa, esperando que ela corresse para a porta a qualquer instante e gritasse; sabia que podia silenciá-la com a maior facilidade, mas isso não se enquadrava em seu plano. A mulher só deveria tentar fugir no momento em que ele assim quisesse, gritar para atrair o inimigo; quando isso acontecesse, ele a mataria e depois esperaria pela chegada dos homens, soltaria o brado de “Sonno-joi”, viraria a faca contra si mesmo e morreria, cuspindo em seus rostos. Era esse seu plano — um entre os muitos que cogitara: possuí-la como um desvairado e depois matá-la e a si mesmo, ou apenas matá-la de imediato, sem qualquer barulho, como já deveria ter feito antes, por mais que a desejasse agora, deixando os caracteres de Tokaidô nos lençóis, como antes, para em seguida escapar pela janela. Só que a mulher não estava reagindo como ele previra. Os olhos firmes, a mão gesticulando para que ele afastasse a faca, os olhos azuis da cor do céu indagando, não suplicando, a tensão evidente, mas sem qualquer terror agora. Um meio sorriso estranho. Por quê?
A lâmina não se movia.
Seja paciente, as vozes sussurraram para Angelique...
Ela tornou a gesticular para que o homem retirasse a ponta da lâmina, sem pressa, querendo dominá-lo. Os olhos de Ori se contraíram ainda mais. Com esforço, ele desviou os olhos, só para ser inexoravelmente atraído de volta. O que ela está planejando? Cauteloso, ele baixou a faca, esperou, pronto para atacar.
Estava de pé ao lado da cama. Lentamente, as mãos da mulher começaram a desabotoar sua camisa e pararam de repente. A cruz no pescoço de Ori faiscou à luz do lampião — sua cruz. A maneira súbita com que reencontrava milagrosamente uma coisa que julgara perdida para sempre deixou-a exultante; como se estivesse num sonho, observou seus dedos tocarem a cruz, tremendo um pouco, com uma insólita satisfação por constatar que ele passara a usá-la, uma parte dela a fazer parte do homem para sempre, assim como uma parte dele se enraizara nela. Mas nem mesmo a cruz, sua cruz, a desviou.
Com extremo cuidado, ela tirou-lhe a camisa, descendo pelo braço direito, por cima da faca, empunhada com firmeza, uma constante ameaça. O olhar intenso de Angelique correu por seu corpo, o ferimento no ombro, recém-cicatrizado, o corpo musculoso. E voltou ao ferimento.
— Tokaidô — murmurou ela, não uma pergunta, embora Ori a tomasse como tal.
— Hai — sussurrou ele, contemplando-a, esperando, sufocado de desejo. — Hai.
A cruz tomou a faiscar.
— Kanagawa?
Ele acenou com a cabeça, mal respirando, enfeitiçado, e Angelique sentiu-se contente por ter acertado logo de saída. Agora que o homem se encontrava quase nu, ela sentiu-se ainda mais segura do plano que aflorara em sua mente. Estendeu a mão, tocou no cinto, sempre fitando-o nos olhos, com um ligeiro tremor. Sentiu uma corrente percorrer seu corpo por essa vitória.
Não tenha medo, disseram as vozes. Continue...
Os dedos de Angelique encontraram a fivela. Abriram-na. O cinto caiu, a bainha da faca junto. O calção escorregou pelas pernas. Por baixo, ele usava uma tanga. Com tremendo esforço, Ori permaneceu imóvel, o corpo bem equilibrado sobre as duas pernas, um pouco entreabertas, todo o corpo vibrando com as batidas do coração, os olhos fixados nos da mulher.
Continue, sussurraram as vozes, não tenha medo...
Abruptamente, a imagem dele na teia, que incontáveis gerações de mulheres — indefesas na mesma armadilha masculina — ajudaram-na a tecer e fez com que sua determinação se elevasse de maneira inesperada, aguçando sua percepção, tornando-a integrada à noite, mas ao mesmo tempo apartada, capaz de observar a si mesma e a ele, os dedos soltando o cordão, para vê-lo sem qualquer adorno.
Angelique nunca vira um homem assim antes. A não ser pelo ferimento, ele não tinha qualquer imperfeição. Assim como ela.
Por mais um momento, Ori continuou a controlar seu desejo, mas depois a vontade desapareceu, ele jogou a faca na cama e cobriu-a. Mas ela se fechou como uma ostra, desviou-se, e Ori fez o mesmo, pegando a faca, antes que a mulher a alcançasse. Só que ela não tentou isso, apenas ficou estendida ali, observando-o se ajoelhar na cama, a lâmina erguida, outro falo apontando em sua direção.
No sonho acordado, Angelique balançou a cabeça, dizendo-lhe para largar a faca, esquecê-la, deitar ao seu lado.
— Não há pressa — murmurou ela, sabendo que ele não compreenderia as palavras, apenas os gestos. — Deite aqui.
E mostrou-lhe onde.
— Não, seja gentil. — Ela mostrou como. — Beije-me... não, não assim, com tanta brutalidade... mais delicado...
Angelique mostrou tudo o que queria, e também o que ele queria, avançando, recuando, os dois se tornando muito excitados e, depois, quando finalmente se uniram, ela implodiu para levá-lo sobre a crista e aos dois para o abismo.
Quando os ofegos diminuíram e seus ouvidos puderam escutar, a música ainda soava, mas distante. Nenhum som de perigo, apenas os ofegos do homem acompanhando os seus, o corpo leve se adaptando com perfeição. E pertencendo. Era o que ela não podia entender — como ou por que o homem parecia pertencer. Ou como e por que ela se sentira tão emocionada ou consumida por tamanho êxtase. Ele começou a se afastar.
Não, as vozes apressaram-se em dizer, não o deixe sair, tome cuidado, o perigo ainda não terminou, persista no plano...
E por isso ela apertou-o em seus braços.
Dormiram por cerca de uma hora. Quando Angelique despertou, ele dormia ao seu lado, a respiração suave, o rosto jovem imperturbável, a mão direita segurando o cabo da faca, a esquerda tocando a cruz que usava com a maior descontração.
Foi meu primeiro presente, disse mamãe, logo no meu primeiro dia de vida, tendo usado desde então, apenas a corrente mudando. É dele agora ou meu... ou nosso?
O homem abriu os olhos e ela estremeceu.
Por um momento, Ori não soube direito onde se encontrava, ou se era um sonho, mas depois a viu, ainda linda, ainda desejável, ainda ao seu lado, com aquele estranho meio sorriso, envolvendo-o por completo. Encantado, estendeu a mão para ela, que reagiu, e se uniram outra vez, mas agora sem raiva ou pressa. Apenas querendo prolongar.
Depois, mal desperto, Ori teve vontade de lhe dizer como fora intenso o momento das nuvens e chuva, o quanto a admirava e era grato... atormentado por uma profunda tristeza por ter que encerrar sua vida, esta vida. Mas não triste por sua própria morte ser iminente. Agora, por causa da mulher, morreria realizado, a morte dela consagrando a causa justa de Sonno-joi.
Ah, pensou ele, com súbita satisfação, em troca de tal dádiva, talvez uma dádiva igual, um presente de samurai, uma morte de samurai: sem gritos nem terror, um momento viva, no outro morta. Por que não?
Em paz total, a mão na faca desembainhada, ele se permitiu mergulhar num sono sem sonhos.
Os dedos de Angelique o tocaram. No mesmo instante ele despertou, em guarda, a mão no cabo da faca. Viu-a gesticular para a janela com cortina e levar um dedo aos lábios. Um assovio lá fora se aproximava. O som passou pela janela e se afastou.
Ela suspirou, aconchegou-se contra Ori, beijou-o no peito e depois, parecendo muito feliz, apontou para o relógio na cômoda, que marcava 4:16 h, outra vez para a janela. Saiu da cama e fê-lo compreender, através de sinais, que deveria se vestir, partir agora, para voltar com a noite, pois a janela estaria destrancada. Ori balançou a cabeça, fingindo provocá-la, e ela voltou apressada, as sombras e a visão de seu corpo proporcionando a ele intensa satisfação. Angelique ajoelhou-se ao lado da cama e sussurrou, suplicante:
— Por favor... por favor...
Ori sentiu profunda exultação. Nunca antes, em toda a sua vida, vira tal expressão no rosto de uma mulher, uma paixão tão grande, além de sua compreensão — não havia palavra para amor em japonês. Dominou-o por completo, mas não o desviou de sua decisão.
Seria fácil fingir concordar, indicar que partiria agora e voltaria ao anoitecer.
Enquanto ele se vestia, Angelique permaneceu bem perto, ajudando-o, relutante em deixá-lo se retirar, querendo que ficasse, protetora. Com um dedo nos lábios quase infantil, ela entreabriu a cortina, abriu a janela, sem fazer barulho, esquadrinhou lá fora.
O ar era fresco. Uma insinuação do amanhecer. O céu salpicado de nuvens O mar calmo, sem qualquer som ou sinal de perigo, apenas o suspiro das ondas na praia de areia. Ao longo da High Street, apenas filetes de fumaça restavam dos incêndios. Ninguém por perto, a colônia se encontrava em paz, adormecida.
Ori parou logo atrás da mulher e compreendeu que aquele era o momento perfeito. Sua mão apertou o cabo da faca, as articulações esbranquiçadas. Mas não desfechou o golpe, pois ela se virou com tanta ternura e preocupação que sua determinação se desvaneceu, além do fato de ainda se sentir obcecado pelo desejo. Ela beijou-o, tornou a se inclinar na janela, olhou para um lado e outro, a fim de se certificar de que não havia ninguém por perto.
— Ainda não — murmurou ela, ansiosa, fazendo-o esperar, seu braço enlaçando-o pela cintura.
E quando teve certeza, Angelique tornou a se virar, beijou-o mais uma vez, e depois fez-lhe um sinal para que se apressasse. Ele passou sobre o peitoril, em silêncio; no momento em que se afastava pelo jardim, ela fechou e trancou a janela e seus gritos ressoaram pela noite!
— Socorro! Socorro!
Ori ficou paralisado. Mas apenas por um instante. Tremendo de raiva, bateu nas janelas, os gritos incessantes da mulher e a certeza de que fora enganado o deixando transtornado. Dedos agora transformados em garras arrancaram uma veneziana, estavam prestes a abrir a janela. Foi nesse segundo que um dos soldados franceses de sentinela surgiu da esquina no canto do prédio, o rifle erguido, pronto para disparar. Ori viu-o e foi mais rápido, sacou a pistola, puxou o gatilho, mas errou os dois tiros, pois nunca antes disparara uma arma de fogo, as balas ricocheteando na parede e se perdendo na noite.
O soldado não errou na primeira vez, nem na segunda, nem na terceira. Dentro do quarto, Angelique se encolheu toda, com as mãos nos ouvidos, exultante, angustiada, sem saber o que pensar, o que fazer, se ria ou chorava, certa apenas de que vencera, e que agora estava segura e vingada, com as vozes interiores se regozijando durante todo o tempo: Você triunfou, agiu muito bem, foi maravilhosa, executou o plano com perfeição, agora se tornou a salvo daquele homem para sempre!
— Será mesmo? — balbuciou ela.
Claro que sim, está sã e salva, ele morreu, é verdade que há sempre um preço, mas não se preocupe, não tenha medo...
Que preço? O que... Oh, Deus, esqueci a cruz! Ele ainda está com a minha cruz!
Em meio ao crescente tumulto lá fora, com batidas cada vez mais fortes em sua porta, ela começou a tremer. Incontrolável.
27
Sexta-feira, 7 de novembro:
À tarde, a fragata H.M.S. Pearl voltou de Iedo, com todas as velas içadas, e seguiu para o seu ancoradouro habitual, na movimentada enseada de Iocoama. A bandeira de Sir William se encontrava hasteada no mastro principal. Outras bandeiras pediam a vinda imediata de seu cúter respectivo, mas eram desnecessárias, porque o barco já o esperava no mar, com o cúter a vapor da Struan ao lado... e Jamie impaciente na proa. Todos na praia que avistaram a Pearl ficaram observando, a fim de conferir se seu comandante se encontrava à altura do ímpeto arrogante da embarcação, o vento irregular e a velocidade sob as velas tornando a manobra arriscada. A proa levantava uma onda alta, no mar ondulado. No último segundo, a Pearl virou contra o vento e parou, tremendo toda, o gurupés por cima da bóia a sotavento. No mesmo instante, marujos em uniformes impecáveis lançaram os cabos de amarra sobre os postes de amarração, segurando a fragata, enquanto outros se empenhavam em ferrar as velas. Nada mau, pensou Jamie, orgulhoso, para depois gritar:
— Para a frente, a toda velocidade! Vamos encostar! — Ele queria ser o primeiro a interceptar Sir William, como Malcolm ordenara. — Depressa, Tinker, pelo amor de Deus!
— Sim, senhor!
Tinker, o timoneiro da Struan, ofereceu um sorriso radiante e desdentado, já prevendo a ordem, e aumentou a velocidade. Era um veterano, tatuado, de rabicho grisalho, antigo contramestre de um dos clíperes da companhia. Ao passar pelo cúter de oito remos de Sir William, para desolação de seus tripulantes, Tinker cuspiu a seiva de tabaco no mar e lhes mostrou um dedo, num gesto jovial, antes de ocupar a vaga no costado da fragata. Jamie subiu pela escada. No convés principal, levantou a cartola para o oficial de serviço ali, um guarda-marinha imberbe.
— Permissão para subir a bordo. Mensagem para Sir William. O guarda-marinha bateu continência.
— Pois não, senhor.
— O que foi, Jamie? Qual o problema agora? — gritou Sir William da ponta de comando, com Phillip Tyrer e o capitão Marlowe ao seu lado.
— Desculpe, senhor, mas a colônia se encontra no maior tumulto, e o Sr. Struan achou que eu devia lhe fazer um relato dos acontecimentos.
— Pode usar meu camarote, Sir William — sugeriu Marlowe.
— Obrigado. É melhor você vir também, já que é “o almirante no comando de nossa defesa naval”, mesmo que em caráter temporário.
Marlowe riu.
— Eu bem que poderia aproveitar o salário, senhor, se não também o posto mesmo que em caráter temporário.
— É o que todos nós gostaríamos. Venha também, Phillip.
Eles seguiram-no, Marlowe por último. Antes de deixar a ponte de comando, Marlowe chamou seu imediato e ordenou:
— Quero a casa de máquinas pronta para uma partida súbita, todos os canhões limpos, oleados e preparados, a tripulação pronta para assumir os postos de combate.
Foram sentar no camarote pequeno e austero, com um beliche, banheiro particular e uma mesa de cartas.
— O que houve, Jamie?
— Primeiro, Sir William, o tai-pan e todos os outros mercadores querem lhe dar os parabéns por uma reunião bem-sucedida.
— Obrigado. Qual é o problema?
— No início desta manhã, um japa tentou entrar no quarto de Angelique, na legação francesa, e foi morto pelas sentinelas. O Dr. Hoag e o Dr. Babcott...
— Deus Todo-Poderoso, ela ficou ferida?
Para alívio de todos, Jamie sacudiu a cabeça.
— Não, senhor. Ela diz que ouviu-o mexendo na janela e desatou a gritar...
— E havia alguém ali, como na última vez! — exclamou Tyrer. — Não era apenas o vento sacudindo a janela!
— É o que nos sentimos propensos a pensar — disse Jamie. — Babcott e Hoag foram chamados... ela se encontrava em estado de choque, não ferida, como já ressaltei, mas não parava de tremer. Os dois deram uma olhada no morto, e Hoag confirmou sem hesitação que era o mesmo homem que operara em Kanagawa...
Phillip Tyrer soltou um murmúrio de espanto, e Marlowe fitou-o, enquanto Jamie continuava:
—... e desconfiamos ter sido um dos assassinos de Canterbury, o mesmo que pode ter aparecido em nossa legação em Kanagawa, e que o capitão Marlowe e Pallidar tentaram capturar.
— Essa não! — Sir William olhou para Tyrer, que empalidecera. — Será que pode identificá-lo, Phillip?
— Não sei... acho que não. Talvez Malcolm possa, mas não tenho certeza.
A mente de Sir William já se projetara além do fato: Se é o mesmo nome então é provável que os dois assassinos estejam mortos; e como isso afeta nossa exigência de indenização?
— Na legação francesa, hem? É espantoso que tenham morto o patife, a segurança deles é abominável, e a mira dos soldados, ainda pior. Mas por que o homem foi até lá? Estava atrás de Angelique ou de quê?
— Não temos a menor idéia, senhor. Também descobrimos que era católico... ou pelo menos usava uma cruz. O que...
— Isso é muito estranho. Mas... espere um pouco. Angelique estava lá? Pensei que ela havia retornado ao prédio da Struan.
— E tinha, mas seus aposentos foram atingidos pelo fogo. Esqueci de mencionar, senhor, que depois do terremoto tivemos um pequeno incêndio, o que também aconteceu com Norbert. A...
— Alguém saiu ferido?
— Não, senhor, graças a Deus, nem em qualquer outra parte da colônia, pelo que sabemos. Os franceses ofereceram-lhe acomodações, mas...
— Malcolm Struan também se hospedou lá?
Jamie suspirou pelas contínuas interrupções.
— Não, senhor. Ele ficou em nosso prédio.
— Neste caso, vocês não devem ter sofrido grandes danos.
— Não, senhor, felizmente. Também não houve grandes danos no resto da colônia, embora Norbert tenha perdido quase todo o seu andar superior.
— O que deve tê-lo deixado satisfeito. Muito bem, a moça nada sofreu e o atacante morreu; qual o motivo da confusão?
— É o que estou tentando explicar, senhor.— Jamie passou a falar depressa, recusando-se a permitir desta vez que Sir William o interrompesse com qualquer pergunta. — Alguns idiotas na cidade dos bêbados, ajudados, lamento dizê-lo, por alguns dos nossos mais estúpidos mercadores, concluíram que todos os japoneses na aldeia eram responsáveis, e há cerca de duas horas formou-se uma turba que começou a surrar todos os que conseguiam encontrar, o que atraiu os samurais, furiosos. Os soldados e pessoal da marinha os confrontaram, e agora nos encontramos num impasse, os dois lados armados, reforçados, tornando-se mais ameaçadores a cada minuto, com a presença de uma parte de nossa cavalaria, o general no comando, ansioso em dar a ordem para uma carga, como a da brigada ligeira em Balaclava.
Mas que idiota! — pensou Sir William.
— Vou desembarcar imediatamente.
— Mandarei um destacamento de fuzileiros acompanhá-lo, senhor — anunciou Marlowe. — Ordenança!
A porta do camarote foi aberta no mesmo instante.
— Pois não, senhor?
— Quero o capitão dos fuzileiros e um destacamento de dez homens, com um sinaleiro, no convés principal o mais depressa possível! — Para Jamie, Marlowe acrescentou: — Qual é o local exato da confusão?
— Na extremidade sul da aldeia, perto da terra de ninguém.
— Sir William, ficarei de prontidão, perto do local. Qualquer problema, use meu sinaleiro, e poderá dispor de uma barragem de artilharia.
— Obrigado, mas duvido que venha a precisar de apoio naval.
Jamie interveio:
— Outro problema é...
— Conte-me quando estivermos no cúter. — Sir William já se encaminhava para o convés principal. — Seguiremos no seu, que é mais rápido. Vamos para o atracadouro na cidade dos bêbados.
Momentos depois, o cúter da Struan deslizava pela enseada a toda velocidade os fuzileiros agrupados na popa, Sir William, Jamie e Tyrer em relativo conforto na cabine no meio da embarcação.
— E agora, Jamie, pode me dizer qual é o outro problema?
— É o não tão domado samurai do Sr. Tyrer, Nakama. — Jamie lançou um olhar rápido para Phillip. — Parte da turba o atacou, mas ele conseguiu se desvencilhar, pegou espadas e revidou, cortando um dos bêbados, um australiano, embora sem maior gravidade, e teria matado os outros, se não fugissem. Alguns pegaram armas de fogo, voltaram correndo e quase o liquidaram. Ele se refugiou num armazém na aldeia, creio que em companhia de outros samurais... e há uma dúzia ou mais de maníacos cercando o lugar, dispostos a linchá-lo.
Sir William se mostrou aturdido.
— Um linchamento? Na minha jurisdição?
— Isso mesmo, senhor. Tentei persuadi-los a deixarem Nakama em paz, mas eles me mandaram embora. A culpa inicial não foi de Nakama, Sir William, posso garantir. Eu o vi na High Street sem ameaçar ninguém.
— Ainda bem — murmurou Sir William, a voz tensa. — Por sorte, temos uma lei para os ricos que também vale para os pobres e para todas as pessoas sob a nossa proteção. Se ele for linchado, lincharemos os linchadores. Estou cansado da cidade dos bêbados e dos absurdos da ralé que vive ali. Até recebermos um destacamento de peelers de Londres, vamos formar nossa própria força policial. Serei o chefe. Jamie, você é o subchefe de polícia temporário, com Norbert como o outro subchefe... também temporário.
— De jeito nenhum, Sir Wi...
— Então será Norbert sozinho — disse Sir William, suavemente.
— Está bem, está bem — murmurou Jamie, insatisfeito, sabendo que a tarefa seria das mais ingratas. — Norbert, hem? Já ouviu falar do problema entre Norbert e o tai-panl
— O que houve com eles?
Jamie relatou a briga e o desafio.
— Estão apostando cinco contra um como em qualquer madrugada os dois vão se esgueirar para um lugar isolado e um deles acabará morto.
Sir William ergueu o olhar e comentou, cansado:
— Passo três dias fora, e os problemas logo se acumulam. — Ele pensou por um momento. — Phillip, ordene aos dois que compareçam ao meu escritório amanhã de manhã, na primeira hora.
A voz mudou, e os outros dois homens estremeceram ao veneno que exalava quando ele acrescentou:
— Aconselhe aos dois, de antemão, que é melhor se mostrarem sensatos e dóceis e aceitarem minha gentil homilia. Timoneiro! Vamos mais depressa, pelo amor de Deus!
— Sim senhor...
— Trouxe minha mala, Phillip?
— Trouxe, senhor.
Tyrer agradeceu a Deus por ter se lembrado.
Hiraga espiava por uma fresta da porta-barricada do armazém do shoya, observando os homens furiosos, aos gritos, armados com pistolas e mosquetes. O suor escorria pelo seu rosto. Sentia-se sufocado de raiva, e também com algum medo, embora o ocultasse dos outros. O sangue de um ferimento ligeiro nas costas manchava a camisa... tirara a sobrecasaca ao correr para o prédio, em busca de suas espadas. O shoya se encontrava ao seu lado, bastante nervoso, desarmado, exceto por um arpão de pesca... só os samurais podiam carregar armas, sob pena de morte.
Ali estava também um ashigaru de cabeça branca, um infante, que olhava para Hiraga com respeito e confusão: respeito por sua capacidade de lutar e porque se tratava, sem dúvida, de um shishi; confusão porque ele usava roupas de gai-jin, tinha os cabelos compridos como os deles, parecia viver na colônia, e mesmo assim estivesse sujeito àqueles ataques injustificados.
Os nojentos gai-jin, pensou ele, como se uma tentativa de assalto fracassada, por parte de um ronin maluco, tivesse alguma importância... era evidente que o homem não passava de um ronin ladrão, não estava atrás da moça, pois nenhum homem civilizado poderia querer uma mulher assim. O tolo fora morto com toda razão, por sua impertinência, e ninguém mais saíra ferido; assim sendo, por que tanta violência? Os gai-jin são doidos!
— Há alguma saída pelos fundos? — indagou ele.
O shoya sacudiu a cabeça, muito pálido. Era a primeira vez que ocorria ali um grande distúrbio, com tantos gai-jin ameaçando violência. E ele se encontrava diretamente envolvido; afinal, não dera abrigo àquele shishi? Até mesmo o ronin doido estivera em sua casa, e ele não os denunciara, como tinha a obrigação de fazer... e não apenas ele, mas também todo e qualquer estranho?
— É inevitável uma investigação do Bakufu — lamentara sua esposa, uma hora antes. — Seremos chamados para depor. Os vigilantes continuam na casa da guarda. Perderemos tudo, inclusive nossas cabeças, Namu Amida Butsu.
Ela e a filha mais velha faziam compras no mercado de legumes quando os primeiros homens da turba apareceram na aldeia, gritando ameaças, derrubando cestos, empurrando e agredindo todos os japoneses, que correram para suas casas em pânico.
— Lamento muito, Sire — conseguiu balbuciar o shoya. — Estamos cercados... há mais gai-jin nos fundos.
Além da dúzia ou mais de homens lá fora, confrontando-os, quase todos os habitantes da colônia se agrupavam nos dois lados da terra de ninguém. A maioria começara como espectadora de uma possível briga, mas agora muitos haviam sido pressionados a participar da violência por um núcleo de agitadores querendo vingança. Por trás daqueles que estavam na rua da aldeia havia vinte samurais da guarnição do portão norte. Na frente, postavam-se os guardas do portão sul. Nenhum dos samurais desembainhara suas espadas até agora, mas todos mantinham as mãos nos cabos, liderados pelos oficiais. O mesmo acontecia com os soldados que os confrontavam, os rifles de prontidão, a dúzia de cavalarianos e seus cavalos, esperando pelas ordens, o general ali perto... todos confiantes e ansiosos por um combate.
Mais uma vez, o oficial japonês mais graduado gritou, por cima do clamor, para os gai-jin se dispersarem, e mais uma vez o general gritou arrogante — com um subsequente clamor de aprovação — para que os samurais se dispersassem, nenhum dos lados compreendendo o outro, nem querendo compreender.
Hiraga mal podia ouvir o general entre os gritos de um lado e outro. Tolo, pensou ele, fervendo de raiva, mas não tão tolo quanto o louco do Ori. Ainda bem que ele morreu! Uma estupidez fazer o que ele fez, sem conseguir nada, apenas criar uma encrenca, uma estupidez total! Eu deveria tê-lo matado no momento em que o surpreendi usando a cruz daquela mulher... ou no túnel.
No momento em que os gritos de alerta da mulher romperam o silêncio da noite, seguidos pelos disparos de rifle, ele e Akimoto se encontravam agachados na aldeia, perto do prédio da Struan, à espera de Ori, na expectativa de interceptá-lo... não haviam visto Angelique ir para a legação, por isso presumiam que ele se encontrava em algum lugar por ali, talvez mesmo dentro do quartel-general da companhia.
Na confusão subsequente, juntaram-se à crescente massa de homens semidespidos que convergiam para a legação, camuflados pelas roupas e gorros de trabalhador.
Em choque, Hiraga e Akimoto viram a chegada dos dois médicos e, pouco depois, o corpo de Ori ser arrastado para fora. No mesmo instante, Hiraga gesticulara para Akimoto e os dois se esgueiraram pela noite, bastante nervosos. Ao chegarem ao esconderijo na aldeia, Hiraga dissera:
— Que Ori renasça como um sórdido gai-jin e não como samurai! Foi como atiçar um ninho de vespas. Volte para a Yoshiwara o mais depressa possível, trate de se esconder no túnel e espere ali, até eu mandar um recado ou for procurá-lo.
— E você?
— Sou um deles — murmurara Hiraga, com um sorriso irônico. — Tyrer é meu protetor, assim como o líder dos gai-jin, e por isso todos sabem que sou seguro.
Mas eu estava enganado, pensou ele agora, amargurado, o ânimo dos homens lá fora se tornando cada vez mais agressivo.
Duas horas antes, no momento em que a fragata Pearl fora avistada no horizonte, ele deixara a aldeia, subira pela High Street, a caminho da legação britânica, com toda uma lista de traduções de frases que Tyrer lhe pedira para fazer, durante sua ausência. Estava absorto em seus pensamentos, mais do que um pouco ansioso em ouvir as notícias sobre a reunião em Iedo, quando rostos furiosos de gai-jin o arrancaram de seus devaneios.
— É o japa de Tyrer...
— Ele não é samurai...
— Ei, macaco, você é um samurai...
— Ele parece com aquele outro patife...
— É verdade... os cabelos do mesmo jeito...
— Vamos dar uma lição em todos vocês para não se meterem com nossas mulheres...
Sem aviso, alguém o empurrara pelas costas, derrubando-o, a cartola rolara pela rua, fora pisoteada na lama, sob gargalhadas estrondosas, e outros homens se puseram a chutá-la, esbarrando uns nos outros na precipitação. Isso lhe proporcionara uma folga, permitindo que usasse seu físico superior e juventude para se levantar, romper a barreira de atacantes e escapar, perseguido pelos gai-jin.
Descera pela viela ao lado do prédio da Struan, alcançara a área da aldeia, enquanto os guardas samurais vinham correndo dos dois portões, para verificar o que estava acontecendo. Mais homens bloqueavam o acesso ao esconderijo em que escondera a pistola, por isso Hiraga correra para o armazém do shoya, pegara espadas inadequadas e se virara para resistir ao ataque. Sua carga furiosa surpreendera os agressores, dispersando-os, três caíram, um deles ferido, e os outros trataram de escapar. Em algum ponto da rua, um homem disparara um mosquete, a bala passando inofensiva, e mais homens com armas de fogo se agruparam. Em meio à confusão de samurais e gai-jin, ele e o ashigaru haviam conseguido se refugiar no armazém.
Agora, os três se abaixaram de repente, quando uma bala foi espatifar um vaso ornamentado. Nos fundos da casa, uma criança choramingou, apenas para ser silenciada imediatamente.
Lá fora, os gritos aumentaram. Lunkchurch, violento, sob os efeitos do conhaque que sempre tomava à tarde, berrou:
— Vamos tacar fogo... queimar os desgraçados...
— Você perdeu o juízo? Toda Yokopoko pode pegar fo...
— Vamos queimá-los, por Deus! Quem tem um fósforo?
Assim que o cúter da Struan encostou no cais da cidade dos bêbados, todos desembarcaram apressados e correram para a praça, com os fuzileiros à frente.
Avistaram as costas dos samurais que confrontavam aquela parte da turba. No mesmo instante, o capitão pôs seu plano em execução. A uma ordem sua, os homens formaram uma cunha, os rifles de prontidão, e avançaram pelo espaço entre os dois lados. Viraram-se para encarar os habitantes da cidade dos bêbados que recuaram e se dividiram em dois grupos, ainda aos gritos, mas agora um pouco alarmados. Tyrer correu para a frente dos samurais, que também se mostravam alarmados com o súbito aparecimento dos soldados disciplinados, fez uma reverência e gritou, em japonês:
— Por favor, senhor oficial, todos os homens ficar aqui, seguros. Por favor saúdem meu superior, lorde dos gai-jin.
Numa reação automática, o perplexo samurai retribuiu a reverência de Tyrer. No momento em que se empertigava, Sir William, afogueado da corrida a que não estava acostumado, parou por um instante e fitou o samurai. Tyrer tornou-se a se inclinar para o homem e gritou:
— Saúdem!
O oficial e todos os seus homens fizeram uma reverência. Sir William retribuiu. Os samurais voltaram a se controlar.
Sir William virou-se, aproximou-se dos fuzileiros, que ganhavam terreno empurrando para trás, com seus fuzis, os homens mais adiantados.
— Saiam daqui! Recuem... recuem! — berrava o jovem capitão, a adrenalina sendo injetada na circulação.
Ele se encontrava logo atrás de seus homens, e ao constatar que a ordem não era cumprida com a presteza que desejava, gritou:
— CALAR BAIONETAS!
Os fuzileiros recuaram dois passos, fixaram as baionetas, apontaram-nas para a multidão, cada fuzileiro escolhendo um alvo, cada um se tornando uma engrenagem de uma máquina de matar, que era famosa e temida no mundo inteiro.
— PREPARAR A CARGA!
Sir William, Tyrer e McFay pararam de respirar. Assim como todos os outros. Silêncio imediato. No instante seguinte, o espírito maligno que existe em todas as turbas se dissipou e os homens ali se transformaram numa ralé assustada, que tratou de se dispersar e fugir em todas as direções. O capitão não esperou nem um segundo.
— Portar fuzis e me sigam!
Ele conduziu seus homens em marcha acelerada para a aldeia, onde a maioria dos mercadores, soldados, uma dúzia de cavalarianos e samurais se concentrava, todos ainda alheios à presença de Sir William e seus fuzileiros. Mais uma vez, a cunha se formou, mas quando se aproximaram por trás da massa aos berros ouviram o general gritar:
— Pela última vez, ordeno que se dispersem ou vou expulsá-los...
O resto das palavras foi abafado por um rugido da multidão, prestes a explodir. O capitão decidiu que não havia tempo a perder.
— Alto! Uma rajada por cima das cabeças! FOGO!
A rajada prevaleceu sobre o barulho e a fúria e atraiu atenção imediata, até mesmo dos despreparados cavalarianos. Todos se abaixaram ou se viraram. Sir William, em silêncio, vermelho de raiva, avançou pelo espaço entre os dois lados. Mais adiante, Lunkchurch e seus companheiros ficaram paralisados. Ele tinha na mão um segundo trapo em chamas, pronto para arremessá-lo, o primeiro já tendo caído na varanda, junto à parede de madeira, o fogo se espalhando. Ao avistarem Sir William e os fuzileiros, desapareceram pelas ruas transversais, correndo desordenados para suas casas. Todos os outros olhos fixaram-se em Sir William. Ele ajeitou a cartola na cabeça, tirou um papel do bolso e disse, em voz áspera:
— Vou ler para vocês a Lei do Motim de sua majestade: se esta assembléia não se dispersar imediatamente, todos os homens, mulheres e crianças estão sujeitos à prisão e...
As palavras seguintes se perderam sob os resmungos e imprecações gerais, mas a turba começou a se dispersar.
A Lei do Motim de 1715 fora promulgada pelo Parlamento depois da rebelião jacobita, que só fora contida e sufocada por uma ação implacável. A nova lei visava a deter qualquer dissidência não autorizada na fonte. Concedia a todos os magistrados e juizes de paz o direito e o dever de ler os termos da lei para qualquer grupo de mais de doze pessoas consideradas uma ameaça à paz no reino, cabendo aos amotinados apenas ouvir e obedecer. Quem não se dispersasse num prazo de quarenta e cinco minutos ficava sujeito à detenção imediata, encarceramento e, se provada a culpa, pena de morte ou o banimento pelo resto da vida, a critério de sua majestade.
Não houve necessidade de Sir William concluir a leitura. A rua da aldeia se esvaziou, exceto pelos soldados, o general e os samurais.
— Phillip, vá falar com eles, diga-lhes para voltarem para suas casas, por favor.
Ele observou por um momento, enquanto Tyrer se adiantava, fazia uma reverência para o oficial dos samurais, que retribuiu. É um bom rapaz, pensou Sir William, antes de se virar com os olhos frios para o general, afogueado e suando.
— Bom dia, Thomas.
— Bom dia, senhor.
O general bateu continência. Com firmeza... mas apenas por causa dos soldados ao seu redor. Sir William não levantou a cartola em resposta. Palhaço estúpido, pensou ele.
— Um dia agradável, não? — disse ele, jovial. — Sugiro que dispense seus homens.
O general gesticulou para o oficial de cavalaria que, em segredo, se sentia mais do que um pouco satisfeito pela chegada de Sir William naquele momento, sabendo muito bem que a culpa não era dos japoneses e que já deveria ter partido com a sua tropa atrás da turba. Um bando de patifes indisciplinados e turbulentos, pensou o oficial.
— Sargento! — gritou ele.— Leve todos os homens de volta ao acampamento e dispense-os! Agora!
Os soldados começaram a se afastar. Tyrer fez uma última mesura para o oficial dos samurais, bastante satisfeito consigo mesmo, e depois observou-os subirem pela rua, na direção do portão norte.
— Um bom trabalho, Phillip — comentou Jamie McFay.
— Acha mesmo? — murmurou Tyrer, simulando modéstia. — Não foi grande coisa.
Jamie McFay soltou um grunhido. Estava suando, o coração batia forte convencido até um instante atrás que era inevitável que alguém disparasse um tiro ou desembainhasse uma espada.
— Foi por pouco. — Ele olhou para Sir William, absorvido numa conversa particular com o general, agora ainda mais velho, e acrescentou, em voz baixa, com um sorriso: — Wee Willie está passando uma descompostura nele. O idiota bem que merece a lição.
— Ele é... — Tyrer parou de falar, sua atração atraída para um ponto acima da rua. Samurais corriam para um armazém em chamas no lado leste. — Por Deus, é a casa do shoya!
Tyrer saiu em disparada, com McFay em seus calcanhares. Vários samurais haviam subido para a varanda, batendo com os pés nas chamas, enquanto outros corriam para os enormes barris com água, cercados por baldes, mantidos a intervalos por toda parte, para aquelas emergências. Quando Tyrer e McFay alcançaram o local, o incêndio já se encontrava sob controle. Mais meia dúzia de baldes, e as últimas chamas chiaram e morreram. A parede externa do armazém fora destruída. Lá dentro, viram o shoya, tendo a seu lado um ashigaru, um infante. Os dois saíram para a varanda. O shoya ajoelhou-se e fez uma reverência, o ashigaru apenas inclinou a cabeça. Ambos murmuraram agradecimentos. Para espanto de McFay, não havia sinal de Hiraga, o homem que ele e Tyrer conheciam apenas como Nakama. Mas antes que qualquer dos dois pudesse falar, o oficial samurai já começara a interrogar o shoya e o infante.
— Como o fogo começou?
— Um estrangeiro jogou um pano em chamas na parede, senhor.
— Merda de cão, todos eles! Quero que faça um relatório, explicando a causa deste distúrbio. Até amanhã, shoya.
— Pois não, senhor.
O oficial, de rosto bexiguento, trinta e tantos anos, esquadrinhou o armazém.
— Onde está o outro homem?
— Como, senhor?
— O outro homem, o japonês que foi perseguido até aqui pelos gai-jin? —explicou ele, irritado. — Responda logo!
O ashigaru fez uma vênia polida.
— Desculpe, senhor, mas não havia mais ninguém aqui.
— Eu vi quando ele correu para cá... empunhando espadas! — Ele virou-se para os seus homens. — Quem o viu?
Todos o fitaram, apreensivos, sacudiram a cabeça. O rosto do oficial se avermelhou.
— Revistem o armazém!
A busca foi meticulosa, mas produziu apenas a família e os criados do shoya, que se ajoelharam para fazer uma reverência e permaneceram de joelhos. Todos negaram ter visto mais alguém. Um momento de silêncio; depois, Tyrer e McFay ficaram aturdidos ao ver o oficial perder a calma e desatar a vociferar.
Estóicos, o ashigaru e todos os soldados permaneceram em posição de sentido, rígidos, os aldeões de joelhos, a cabeça encostada no chão, tremendo sob as invectivas. Sem aviso, o oficial se adiantou e acertou um tapa com o dorso da mão no ashigaru. O homem permaneceu tão impassível quanto podia sob a chuva de golpes e insultos. A uma ordem estridente do oficial, o shoya levantou-se e permaneceu imóvel, enquanto o homem, frenético, o agredia no rosto, várias vezes, com extrema crueldade, as mulheres e crianças tentando não estremecer a cada golpe.
Tão subitamente quanto haviam começado, os golpes cessaram. Os dois homens fizeram reverências profundas, os rostos agora com as marcas dos tapas. O shoya tornou a se ajoelhar. Formalmente o oficial retribuiu, todos os vestígios de sua ira desaparecidos. Seus homens entraram em formação, e ele os conduziu para o portão norte, como se nada tivesse acontecido. Tyrer e McFay observaram os samurais se afastando, confusos. Um momento mais tarde, quando era correto fazê-lo, o shoya tornou a se levantar, acompanhado pelas mulheres e crianças. Entraram na casa e ele logo começou a supervisionar os reparos na parede. A atividade na aldeia foi reiniciada.
— Mas o que foi isso? — indagou McFay.
— Não sei — respondeu Tyrer, ambos chocados pela brutalidade e sua aceitação impassível. — Só entendi uma ou outra palavra... acho que tinha alguma coisa a ver com Nakama, todos disseram que ele nunca esteve aqui.
— É impossível... tenho certeza de que ele se encontra aí dentro. Eu mesmo vi quando entrou. — McFay enxugou o suor da testa. — Mas por que suportar a agressão daquele desgraçado? O homem é um lunático. Repare neles agora, agindo como se nada tivesse acontecido. Por quê?
— Não sei... talvez Nakama possa explicar. — Tyrer estremeceu.— Mas uma coisa posso garantir: eu não gostaria de ficar sob o poder dessa gente. Nunca.
— Olá, Angel. Como você está?
— Olá, querido. Eu me sinto melhor agora, obrigada.
Angelique exibiu um sorriso desolado, enquanto Struan entrava e fechava a Porta. Ela se encontrava apoiada em travesseiros, em sua cama, na legação francesa, o sol do fim de tarde passando pela janela e projetando a sombra de um guarda, agora postado ali em caráter permanente.
Nas primeiras horas daquela manhã, quando Struan viera correndo — claudicando — para o seu lado, Angelique resistira às suas súplicas para se mudar ainda com bastante autocontrole para se lembrar de que deveria permanecer ali, porque naquela noite André Poncin entregaria o medicamento que a livraria da presença maligna em seu corpo. É isso mesmo, ela sentira vontade de gritar, André vai ajudar-me a me livrar do mal que carrego dentro de mim, e de todo o mal que já cometi.
— Oh, Mon Dieu, Malcolm, estou bem, e não quero sair daqui!
— Por favor, minha querida, não chore.
— Então me deixe ficar. Estou bem, Malcolm, bastante segura, como sempre, e o Dr. Babcott me deu uma coisa para acabar com este tremor... não é mesmo, doutor?
— É, sim, Malcolm — dissera Babcott —, não se preocupe, por favor. Angelique nada sofreu e estará perfeitamente recuperada quando acordar. Seria melhor não tirá-la daqui. Não há motivo para preocupações.
— Mas eu me preocupo!
— Esta noite talvez ela possa vol...
— Não! — balbuciara ela, as lágrimas escorrendo. — Não esta noite. Talvez amanhã.
Graças a Deus pelas lágrimas, pensou ela de novo, enquanto observava Malcolm se aproximar da cama, sabendo que essa arma contra os homens, uma dádiva divina, podia ser considerada uma fraqueza, mas era na verdade um poderoso escudo. O sorriso de Malcolm era afável, mas ela notou suas olheiras, a expressão estranha e um ar de cansaço.
— Passei por aqui antes, mas você estava cochilando e não quis incomodá-la.
— Você nunca me incomoda. — A preocupação e o amor de Malcolm eram tão ostensivos que ela teve de fazer um esforço para não revelar a verdade. — Não se preocupe, meu querido, prometo que tudo voltará a ser maravilhoso muito em breve.
Ele sentou-se numa cadeira, ao lado da cama, relatou o tumulto e como Sir William o controlara num instante.
— Ele é um bom homem, sob muitos aspectos — comentou Struan, enquanto pensava que o mesmo não se podia dizer de outros.
Ele e Norbert já haviam recebido a convocação para comparecer ao escritório de Sir William na manhã seguinte e, logo em seguida, tiveram uma reunião particular.
— Não é da conta de Wee Willie — concordara Norbert, irritado.— Ele deve se concentrar nos japoneses e em chamar a esquadra de volta. Ouvi dizer que o intruso foi identificado por você como um dos assassinos de Canterbury, o outro desgraçado da Tokaidô. É verdade?
— Não o identifiquei. Acho que era outro homem, embora ele tivesse sido baleado. Hoag garantiu que era o mesmo que ele operara em Kanagawa.
— Por que ele estava na janela de Angelique?
— Não sei... é muito estranho. Suponho que era apenas um ladrão.
— É mesmo esquisito. E católico ainda por cima. Não dá para entender...
Struan percebeu que Angelique esperava que ele continuasse e indagou-se sedeveria abordar o assunto, os motivos daquele homem, perguntar o que ela pensava, dar suas opiniões, mas viu-a tão pequena e indefesa que decidiu esperar por outra ocasião, outro dia. Afinal, o canalha morrera, quem quer que fosse, o que resolvia tudo.
— Quando eu voltar, depois do jantar, trarei o último número de Illustrated London News, onde há uma excelente reportagem sobre a última moda em Londres...
Angelique escutava apenas com meia atenção, evitando olhar para o relógio na cornija da lareira, que tiquetaqueava os minutos com extrema lentidão. André informara que retornaria da Yoshiwara por volta das nove horas daquela noite, que ela deveria esperá-lo com um bule quente de chá verde e alguma coisa para comer, já que a poção poderia ter gosto horrível. Também deveria providenciar algumas toalhas e a não tomar mais do medicamento para dormir de Babcott.
Ela tornou a olhar para o relógio: 6:46 h. É uma longa espera, pensou Angelique, sua ansiedade aumentando. E foi então que as vozes interiores ressurgiram. Não se preocupe, sussurraram, as horas passarão depressa, depois você ficará livre, não se esqueça de que venceu, Angelique, foi corajosa e esperta, fez tudo com perfeição — não se preocupe com coisa alguma, você viveu e ele morreu, era a única maneira para você sobreviver, você ou qualquer outra mulher — muito em breve estará livre dele, da coisa, e tudo o que aconteceu antes não passará de um pesadelo...
Estarei livre, graças a Deus, graças a Deus.
O alívio a dominou e ela sorriu para Struan.
— Sua aparência é maravilhosa, Malcolm. Essas roupas estão perfeitas em você.
A jovialidade de Angelique arrancou-o da depressão; tudo ao seu redor era lúgubre... exceto ela. Ele também sorriu, radiante.
— Oh, Angel, se não fosse por você, acho que eu explodiria.
Naquela noite ele se dera ao trabalho de escolher com o maior cuidado as roupas de seda certas, as melhores botas de cano curto, de pelica de corça, uma camisa de seda branca com pregas, gravata branca com um alfinete de rubi que o pai lhe dera em seu último aniversário, de vinte anos, a 21 de maio. Só mais seis meses e serei livre, pensou ele, livre para fazer o que bem quiser.
— Você é a única coisa que me mantém são, Angel — acrescentou ele.
Seu sorriso expulsou os últimos demônios que ainda atormentavam Angelique e ela disse:
— Obrigada, meu querido. Explodir? Por quê?
— Os problemas nos negócios — respondeu Struan, evitando as verdadeiras questões. — Os miseráveis dos políticos vivem prejudicando nossos mercados, em sua busca habitual e obsessiva de poder pessoal, dinheiro e promoção. Nunca muda, não importa qual seja o país, credo ou cor. De modo geral, a situação da Casa Nobre é excelente, graças a Deus.
Ele se absteve de comentar a crise que enfrentavam com o açúcar havaiano e a crescente pressão da Brock sobre os mercados e fontes de crédito da Struan.
Ontem mesmo chegara uma carta ostensivamente hostil do Victoria Bank, o banco central de Hong Kong, dominado pela Brock, cópia da que fora enviada a Tess Struan, como diretora-executiva da Casa Nobre. Sua cópia estava endereçada a M. Struan, esquire, Iocoama, apenas para sua informação:
Madame: Esta é apenas para lembrar que a Struan tem dívidas duvidosas e promissórias demais apoiadas em patrimônio incerto, com lucros indefinidos. A maior parte dos compromissos vence a 31 de janeiro, e quero informar-lhe, madame, mais uma vez, que o pagamento de todos os compromissos com este banco terá de ser efetuado nos prazos acertados. Tenho a honra de ser seu obediente servidor.
Não importa o que digam esses desgraçados, pensou ele agora, com absoluta convicção, encontrarei um meio de superá-los e prevalecer sobre todos os Brocks. Matar Norbert será um bom começo. Nossos gerentes e empregados são excelentes, nossa frota ainda é a melhor e nossos capitães são leais.
— Os Brocks e os rumores não têm a menor importância, Angel, podemos lidar com eles, como sempre fizemos. A guerra civil americana aumentou muito os nossos lucros. Estamos ajudando o Sul a contrabandear o algodão através do bloqueio nortista, até nossas tecelagens em Lancashire, levando de volta toda a pólvora, balas, rifles e canhões que Birmingham pode produzir, metade para o Sul, metade para o Norte... com tudo o mais que nossas fábricas podem inventar e fornecer, máquinas, prensas, sapatos, navios, até cera de lacre. A produção britânica é gigantesca, Angelique, mais de cinqüenta por cento dos bens industriais do mundo. Temos também o nosso comércio de chá e de ópio de Bengala para a China, uma colheita excepcional este ano... tenho uma idéia para comprar o algodão indiano, a fim de compensar a escassez do americano... além de todas as nossas cargas normais. A Inglaterra é o país mais rico e mais próspero do mundo, e você é linda!
— Obrigada, gentil senhor! Je faime... amo de verdade, Malcolm. Sei que sou uma pessoa muito difícil, mas amo você, prometo que serei uma esposa maravilhosa, e...
Ele se levantara da cadeira e interrompeu-a com um beijo... o cheiro forte de charuto e brilhantina viril e agradável. Os braços que a enlaçaram eram musculosos, uma das mãos se desviando para os seios, e ela sentiu a rudeza agressiva, os lábios duros com ligeiro gosto de conhaque. O oposto dele.
Esqueça-o, sussurraram as vozes.
Não posso, ainda não.
Inclinar-se para ela foi uma tensão excessiva para os músculos da barriga e as costas doloridas de Malcolm; por isso, ele se empertigou, com algum esforço, mesmo sabendo que sentiria o maior prazer em possuí-la agora — se tivesse sua aquiescência —, qualquer que fosse a dor.
— Quanto mais cedo nos casarmos, melhor — murmurou ele, certo de que sentira uma reação nos lábios, seios e corpo de Angelique.
— Também acho...
— No Natal. No mês que vem.
— Acha mesmo... sente, meu querido, descanse um pouco. Precisamos conversar... quando voltaremos a Hong Kong?
— Ahn... ainda não decidi.
Muito da jovialidade de Malcolm se dissipou diante da perspectiva de ter de enfrentar a mãe.
— Talvez devêssemos voltar na próxima semana e...
— Só depois que eu estiver em condições.
E quando não estiver mais tomando a poção para a dor, pensou ele, as entranhas ardendo; só assim poderei enfrentar a mãe, os Brocks, e aquele banco miserável. Pouco antes de sair para a legação, ele tomara a segunda dose do dia, mais cedo do que o habitual.
Tomarei uma última antes de dormir e, a partir de amanhã, será tudo diferente. Apenas uma dose por dia, daqui por diante. Não poderia começar a fazer isso hoje... com a noite de ontem, o problema de Norbert e... ora, ontem foi um dia terrível demais.
— Não perturbe sua linda cabecinha com essas coisas.
— Mas eu me preocupo com você, e muito, Malcolm. Jamais haveria de querer interferir em qualquer coisa, mas não posso deixar de me preocupar com você. E há algo que acho que devo mencionar. O problema entre você e Jamie. Não há alguma coisa que eu possa...
O súbito sorriso de Malcolm a fez parar de falar.
— Está tudo bem com Jamie agora, minha querida. É a boa notícia de hoje. Mandei chamá-lo ao final da tarde, e ele se desculpou por ser tão difícil. Até renovou seu juramento de me apoiar em tudo... mas tudo mesmo.
— Mas isso é maravilhoso! Não imagina como me sinto satisfeita. Pouco antes de sua vinda, Jamie McFay pedira para lhe falar.
— Lamento interrompê-lo, mas queria desanuviar o ar carregado e tentar fazer as pazes... e tentar também, pela última vez, dissuadi-lo do duelo. Norbert fará tudo o que puder para matá-lo.
— Desculpe, mas isso não é da sua conta, e pode ter certeza de que eu também tentarei matá-lo. Mas concordo que é uma boa idéia desanuviar o ambiente, de uma vez por todas. Jamie, vai obedecer a mim como o tai-pan ou pretende renunciar a seu juramento?
— Claro que obedecerei ao tai-pan, como jurei.
— Ótimo. Depois do encontro com Sir William amanhã, pergunte em particular a Norbert se a próxima quarta-feira lhe convém...isso mesmo, Jamie, sei que é o aniversário dele. No hipódromo, por trás da arquibancada, ao amanhecer. Jure segredo, por sua cabeça. Não conte nem mesmo a Dmitri.
— Se você o matar, terá de deixar o Japão imediatamente.
— Já pensei nisso. Nosso clíper Storming Cloud estará na enseada. Embarcaremos nele e partiremos para Hong Kong. Poderei... ora... dar um jeito na situação, aconteça o que acontecer.
— Detesto toda essa idéia.
— Posso entender, mas isso não faz a menor diferença. Lembre-se de seu juramento; pretende mantê-lo?
— Claro.
— Obrigado, Jamie. Vamos ser amigos de novo...
Em meio a seu excitamento, ele ouviu Angelique dizer:
— Ah, isso me deixa muito feliz!
Malcolm teve de se esforçar para não dizer que marcara a data para o duelo, quando finalmente começaria sua vingançacontra a casa dos Brocks. Angel saberá muito em breve, e se sentirá orgulhosa de mim, pensou ele, confiante.
— Não precisa se preocupar com Jamie, minha querida, nem com Hong Kong. Ou qualquer outra coisa.
— Malcolm, meu caro, posso escrever para sua mãe? — perguntou ela.
Angelique sabia que devia começar a atrair a inimiga para a batalha. André avisara que o poder de Tess Struan dentro da companhia era imenso e que ela exercia uma vasta influência sobre Malcolm, seus irmãos e irmãs. Lembrara também que ele ainda não alcançara a maioridade e, assim, o casamento não poderia se realizar por vários meses ainda sem o consentimento da mãe; sem a sua boa vontade, talvez jamais viesse a se consumar. Como se eu precisasse de algum lembrete, pensou Angelique.
— Quero assegurar a ela minha eterna afeição e minha promessa de ser a melhor nora no mundo inteiro.
Ele se mostrou radiante com a idéia.
— Excelente idéia! Escreverei uma carta, também, e mandaremos as duas juntas. — Malcolm pegou a mão de Angelique. — Não existe nenhuma mulher tão maravilhosa quanto você, tão ponderada e gentil; tenho certeza de que a mãe vai amá-la tanto quanto eu.
Hiraga disse, mais uma vez:
— Quando os gai-jin fugiram, shoya disse para eu ir depressa... ele muito medo samurais, muito medo.
— Posso imaginar.
Tyrer mudou de posição na cadeira. Hiraga, sentado à sua frente, também se sentia desconfortável. A sala do pequeno bangalô no terreno da legação, que Tyrer partilhava com o Dr. Babcott, era escassamente mobiliada, com poucas cadeiras, duas escrivaninhas, e o cheiro de unguentos e poções nas prateleiras ao longo de uma parede. As janelas se achavam abertas para a noite; embora não estivesse frio, Hiraga estremecia de vez em quando, ainda perturbado por sua quase captura. No momento em que os atacantes fugiram, criando as condições para que escapasse pelos fundos, ele dissera ao shoya e ao ashigaru:
— Sabem o que acontecerá se eu for apanhado aqui. É melhor o silêncio, o silêncio e uma surra rápida, que logo será esquecida, do que uma viagem até a prisão, da qual nenhum de nós... nem sua esposa e filhos... sobreviverá. Sonno-joi!
Tyrer acrescentou:
— Mas não entendo por que o oficial num momento parecia normal, e no instante seguinte se tornou um bruto, para logo voltar a ser normal, com todos fingindo que nada acontecera.
Hiraga suspirou.
— Tudo muito simples, Taira-san. O capitão certo que ashigaru mentiu... certo ele não dizer a verdade, certo shoya não dizer a verdade, e homens não dizer a verdade, por isso bater neles para salvar aparências... não dizer verdade a samurai é muito ruim, contra lei, por isso muito ruim. Punição correta, todos felizes, não mais problemas.
— Talvez para eles, mas nós ainda temos muitos problemas — murmurou Tyrer, sombrio. — Sir William não está nada feliz, nem com o miserável que foi morto... nem com você.
— Eu não problema, eu não atacar, homens me atacar.
— Desculpe, Nakama, mas não é essa a questão. Ele diz que você é uma complicação incômoda e desnecessária. Sinto muito, mas ele tem razão. As autoridades saberão em breve de sua presença aqui, se é que já não sabem. Vão exigir que o entreguemos... não poderemos evitar; mais cedo ou mais teremos de atender ao pedido.
— Por favor? Não entender.
Tyrer precisou de várias tentativas, com palavras mais simples, para deixar o significado bem claro, e depois acrescentou:
— Sir William mandou lhe dizer que é melhor você ir embora, desaparecer enquanto pode.
O coração de Hiraga quase parou. Desde que escapara da armadilha na aldeia que vinha procurando, frenético, uma maneira de anular as conseqüências inevitáveis do tumulto e de ter sido visto... o oficial dos samurais deduziria, com toda certeza, que havia um shishi à solta na colônia. Nenhuma solução lhe ocorrera, exceto a de que deveria continuar escondido ali. Tentar fugir agora seria ainda mais perigoso. A vigilância dos samurais devia ter aumentado ainda mais... e se soubessem que Hiraga era o mesmo homem do cartaz...
Ele sentiu vontade de gritar bem alto, a mente abalada pela sucessão rápida e incontrolável dos acontecimentos, as profundezas do pânico e medo que suportara desde a traição de Ori. Depois, seus ouvidos sintonizaram, e ouviu uma palavra-chave na arenga de Tyrer sobre como lamentava “a perda de um aliado tão valioso na busca por conhecimento do Japão, mas parece que não há nenhuma maneira de evitar...” Sua cabeça voltou a ficar lúcida.
— Tenho idéia, Taira-san. Ruim para mim ir agora, certo morrer. Quero ajudar amigos ingleses, ser valioso aliado, muito valioso amigo. Conhecer sobre daimio Satsuma, conhecer segredos Satsuma. Shoya dar muita mande... desculpe dar muita informação. Posso explicar como fazer Satsuma obedecer, talvez mesmo Bakufu obedecer. Quero ajudar. Perguntar Sir William: eu dar informação para manter gai-jin seguro, você manter eu seguro, e dar informações eu, troca justa amigos, neh?
Excitado, Tyrer avaliou a oferta: Sir William com certeza vai concordar, mas apenas se as informações forem de fato valiosas, e apenas se vierem do interrogatório direto do próprio Nakama. Isso significa... oh, Deus, não posso! “Eu teria de revelar a Willie o segredo de que você fala inglês. Não há como evitá-lo e não posso dizer que tenho ocultado uma informação tão vital, pois seria demitido, sem a menor dúvida. Não posso assumir esse risco, não quando Willie se encontra num ânimo tão terrível!” Melhor seria que Nakama partisse antes de sua cabeça rolar e haver um incidente internacional.
— Desculpe — murmurou Tyrer, desesperado —, mas não é possível.
— Ah, sinto muito, talvez ter tempo. — Hiraga fez uma manobra final para ganhar tempo. — Ter mensagem de Fujiko... iii, Taira-san, fazer grande marca nela, agora Fujiko pensar você ser muito melhor amigo. Mama-san dizer sinto muito, mas Fujiko começar ontem doença de mulher, doença mensal, assim não poder receber você por um dia, dois dias.
Ele percebeu o desapontamento imediato de Tyrer, seguido pela resignação e a expectativa, em rápida sucessão.
Tonto de alívio, relaxou um pouco, ao mesmo tempo espantado mais uma vez, por constatar que um homem, ainda mais uma autoridade tão importante quanto Taira, se permitisse demonstrar seus sentimentos interiores de maneira tão ostensiva, em particular na presença de um inimigo. Aqueles bárbaros ficavam além da imaginação.
— Tome aqui — acrescentou ele, estendendo o leque com os caracteres que preparara. — Poema, Fujiko escrever: “Contando horas, muito triste. Horas passar depressa quando seu sol brilhar em mim, depois não triste, tempo parar.”
Ele observou Tyrer pegar o leque, reverente, satisfeito com sua escolha das palavras, embora tivesse se irritado com a incompetência de Fujiko na escrita. Mesmo assim, refletiu Hiraga, o efeito parece ser perfeito.
— Sobre chefe gai-jin, ter um plano, mas primeiro reunião com xógum, Taira-san, foi boa, sim?
Akimoto foi dominado por um acesso de risada, tão contagiante que Hiraga não pôde deixar de acompanhá-lo.
— Puxa, Hiraga-san, foi brilhante manipular o gai-jin desse jeito! Brilhante! Saquê, traga mais saquê!
Estavam refestelados no aposentado isolado no terreno da Casa das Três Carpas, as janelas de shoji fechadas contra os insetos noturnos. Ramos de bordo de outono num vaso verde decoravam o lugar. Lampiões a óleo. As espadas em prateleiras ao lado. Depois que a criada se retirou, eles tornaram a encher os copos, beberam, e Akimoto indagou:
— O que aconteceu em seguida?
— Depois que o peixinho Taira engoliu a isca, fomos nos curvar diante do grande mero, que engoliu nós dois. Eu disse a ele que, sem que Taira soubesse, falava um pouco de inglês, aprendido com os holandeses em Deshima...
— O que não é mentira — comentou Akimoto, tornando a encher os copos. Ele cursara a mesma escola para os talentosos samurais de Choshu, em Shimonoseki, mas não fora selecionado para o curso de línguas; em vez disso, recebera a ordem de se especializar em assuntos navais ocidentais, com aulas de um capitão holandês aposentado.
— Baka que eu nunca tenha aprendido holandês ou inglês. O que disse o líder dos gai-jin?
— Não muita coisa. Taira fingiu se mostrar também espantado, como havíamos combinado. Foi fácil desviar o homem com informações sem importância sobre Satsuma, Sanjiro e sua fortaleza em Kagoshima, um pouco de sua história, e assim por diante.
Hiraga falava descontraído sobre o encontro, que não transcorrera com tanta facilidade. As perguntas haviam sido objetivas e tivera alguma dificuldade para convencer o líder de que sua simulada sinceridade era genuína. Ansioso em obter permissão de ficar, ele dissera mais do que desejava, não apenas sobre a situação política dos lordes exteriores de Satsuma e Tosa, mas também sobre seu próprio feudo, Choshu, e até mesmo sobre os shishi.
Sentiu o estômago embrulhar mais uma vez ao recordar os olhos azuis e frios, parecidos com os de um peixe, que o fitavam fixamente, e conseguiram de alguma forma arrancar mais informações do que queria oferecer. Ao final, o comentário brusco:
— Vou considerar a permissão para que você continue aqui por mais alguns dias. Tornaremos a conversar amanhã. Enquanto isso, deve voltar à legação, como medida de segurança.
— Melhor eu ficar com shoya, Sir William.
— Vai se mudar para a legação esta noite e permanecer com o Sr. Tyrer. Só poderá sair com permissão dele ou minha. Quanto estiver na rua, tomará todo cuidado para evitar uma provocação a qualquer de nossos homens. Tem de obedecer sem hesitação ou será conduzido ao portão norte... imediatamente!
Mais uma vez, ele simulara submissão, desmanchara-se em agradecimentos abjetos, mas fervendo de raiva por dentro, pela ausência de boas maneiras do homem. Ainda sentia-se furioso, e mais determinado do que nunca a executar o plano de Ori, de incendiar a colônia... no momento em que julgasse mais oportuno. Todos os deuses, se é que existiam, amaldiçoavam todos os gai-jin.
— Saquê? — indagou Akimoto, um filete escorrendo pelo queixo.
— Quero, sim, obrigado. — O rosto de Hiraga se contraiu em ira.— Ori. Baka que ele tenha morrido antes que eu pudesse matá-lo!
— Tem razão. Mas agora ele morreu, assim como Shorin. Os dois só serviam para criar problemas, como todos os Satsumas. Os homens — ele se apressou em acrescentar, lembrando a irmã de Shorin, Sumomo —, não as mulheres.
— Os Satsumas são difíceis, concordo — murmurou Hiraga, com expressão sombria. — Quanto a Sumomo, não sei onde devo procurar notícias suas, onde ela se encontra, se chegou em casa sã e salva... talvez ela tenha levado semanas para voltar e mais semanas se passariam antes que o pai enviasse notícias para cá. Teríamos de esperar por uns dois meses, talvez três.
— Pediu a Katsumata para velar por ela. Ele deve ter espiões daqui até Quioto. E Sumomo sabe cuidar de si mesma. Terá notícias em breve. — Akimoto coçou a virilha, irritado. Era desconcertante ver Hiraga tão perturbado. — Já deve saber que estamos quase acuados aqui. As patrulhas de vigilantes do Bakufu foram reforçadas e vagueiam por toda parte, ao acaso. Todas as mama-sans andam nervosas; depois do tumulto de hoje é possível que Raiko... não nos deixe ficar por muito mais tempo.
— Ficaremos enquanto pudermos pagar. E, enquanto o túnel permanecer seguro, poderemos escapar pelo mar, se for necessário. Maldito Ori!
— Esqueça-o — disse Akimoto, impaciente. — O que devemos fazer?
— Esperar. Os gai-jin nos proporcionarão cobertura... Taira dará um jeito.
— Por causa de Fujiko? O homem é louco. O que ele vê naquela porca? Não consigo entender. Ela não passa de uma porca. — Akimoto soltou uma risada, passou os dedos pelos cabelos que começavam a crescer. — Acho que vou experimentá-la um dia desses, só para ver se ela tem algo especial... embora esteja contaminada.
— Experimente-a esta noite, se quiser. Taira não vai usá-la.
— Raiko já deve tê-la entregue a outros clientes... é gananciosa demais.
— Só que Fujiko já está paga.
— Como assim?
— Meu novo acordo é que Raiko não oferecerá Fujiko a outros sem que ela e eu concordemos primeiro... a fim de que eu possa mantê-la disponível para Taira a qualquer momento, em caso de necessidade. Experimente-a, se quiser. Ela é muito barata.
— Ainda bem. Preciso de todo o dinheiro que me resta. Raiko me arrancou um adiantamento, resmungando sobre a extensão do meu crédito. — Akimoto sorriu, esvaziou o saquê do frasco em seu copo. — Quero subornar um dos pescadores para me levar até a fragata... talvez eu consiga subir a bordo de um navio de guerra, fingindo vender peixe. Preciso conhecer o interior de uma casa de máquinas, de um jeito ou de outro.
O estômago tornou a se contrair quando ele pensou em sua própria visita.
— Talvez eu possa convencer Taira a me levar de novo, junto com você desta vez. Posso fingir que você é filho de um importante mercador de Choshu, construtor de navios, ansioso em fazer negócios com eles... mas todos os negócios devem ser mantidos em segredo do Bakufu.
Segredo? Por quanto tempo mais permaneceremos em segredo aqui? Um tremor percorreu o corpo de Hiraga.
— Faz frio esta noite — murmurou ele, para disfarçar o medo.
E Akimoto, mais uma vez, fingiu não perceber.
A poucos metros dali, Raiko, em seus aposentos, terminava de se maquilar e de se vestir para a noite. Decidiu pôr o novo quimono rosa. Uma garça enorme ornamentava as costas, bordada com filamentos de ouro. Cobiçara-o por muitos meses. Agora era seu, pago com parte do lucro imenso obtido na venda dos brincos de pérolas. Descobrira, ao final, que eram mais valiosos do que estimara.
O kami e os deuses que velam pelas mama-sans olhavam por mim naquele dia, pensou ela, feliz. Um grande negócio, todo o lucro lhe cabendo, menos a parte de Furansu-san. O dinheiro para o medicamento mal podia ser levado em consideração, embora ela tivesse registrado um débito substancial em seus livros. Raiko sorriu para si mesma. O custo nada representava, mas o conhecimento da planta, quem podia colhê-la, em que momento correto, como preparar a infusão, ah, tudo isso valia qualquer coisa que o mercado pudesse pagar.
— A princesa gai-jin será um valioso trunfo, a longo prazo — murmurou ela, contente, satisfeita com o que via no espelho de corpo inteiro.
Era o único moderno em toda a Yoshiwara, presente de um cliente, importado da Inglaterra especialmente para ela. Sua testa se franziu um pouco ao pensar nele: Kanterberri, o gai-jin que fora morto na Tokaidô por aqueles tolos, Ori e Shorin. Baka! Era um bom cliente, o que mais apreciava meus serviços para lhe oferecer a amante perfeita, Akiko, cujo nome é agora Fujiko... é muito conveniente para nós que nossos gai-jin ingleses raramente partilhem suas mulheres, preferindo fornicar em segredo, com uma única mulher, mantendo-a sem que ninguém mais saiba em nosso mundo flutuante, que se baseia na discrição e sigilo.
Taira não sabe de nada, Fujiko tem uma nova vida, um novo amante. É melhor para todos.
— O gai-jin Furansu-san acaba de chegar.
— Obrigada.
Raiko certificou-se de que a poção estava correta e colocou-a na mesa ao seu lado. Depois de manter André à espera pelo tempo apropriado, nem de menos, nem de mais, ela mandou chamá-lo.
— Ah, Furansu-san, seja bem-vindo à minha humilde casa. — Ela serviu seu melhor saquê em copinhos que pareciam dedais e fez um brinde. — Está com uma ótima aparência.
— Saúde! Dez mil verões — disse André, polido.
Raiko discorreu sobre o tempo e os negócios, só depois entrando no assunto principal.
— Sua escolna dos brincos foi mais perfeita do que eu imaginava e sua parte é pouco mais que o dobro do que pediu.
Os olhos de André se arregalaram.
— Tanto assim?
— É, sim.
Ela serviu mais saquê, exultante com sua perspicácia por conta de ambos depois que um acordo de negócios era acertado, tornava-se uma questão de honra fazer com que fosse cumprido de uma forma rigorosa.
— Meu banco, o Gyokoyama, encontrou o cliente certo, um mercador chinês de seda e ópio de Xangai, em visita a Kanagawa. — Outro sorriso e ela acrescentou suavemente: — Ele avisou que teria mercado para todas as jóias que eu possa fornecer.
O sorriso de André foi igual ao dela, ele tomou o saquê, estendeu o copo para uma nova dose, e fez um brinde:
— Às futuras jóias!
— A próxima coisa...
— Antes da próxima, Raiko. Por que ele pagou tanto?
— Em tempos difíceis, um homem sábio põe parte de sua riqueza em coisas pequenas, que possa carregar na manga. Ele não é tolo... cheguei até a pensar em ficar com os brincos, pelo mesmo motivo.
O interesse de André fora aguçado.
— Os tempos são difíceis na China?
— Ele disse que toda a China se encontra em revolta, a fome prevalece, os negócios dos gai-jin em Xangai são menores do que os habituais, mas agora que a esquadra inglesa devastou a costa de Mirs, afundando muitas embarcações dos piratas do Lótus Branco, as rotas marítimas se tornarão mais seguras, pelo menos por algum tempo, e o comércio ao longo do Yang-Tsé deva aumentar na primavera. Pelo que ouvi dizer, Furansu-san, eles afundaram centenas de juncos e massacraram milhares de pessoas, muitas aldeias viraram cinzas. — O medo de Raiko era evidente. — O poder de matança dos ingleses é terrível.
Ela estremeceu, sabendo que os japoneses podiam desprezar os chineses como fracos, mas partilhavam a mesma fobia: o temor aos gai-jin e a obsessão em mantê-los longe de suas terras para sempre.
— As esquadras gai-jin vão nos atacar quando voltarem?
— Vão, sim, Raiko, se o Bakufu não pagar o dinheiro das reparações. Haverá guerra. Não aqui, em Iocoama, mas em Iedo.
Raiko estudou seu copo por um momento, especulando como poderia se proteger ainda mais, e converter aquela informação em lucro, mais do que nunca convencida de que deveria, de alguma forma, livrar-se de Hiraga e Akimoto, antes que descobrissem que estava implicada no desastre de Ori, já que o abrigara, e aos outros dois, por mais justa que fosse a causa de Sonno-joi. Uma onda de apreensão a invadiu e ela se abanou, queixando-se de que o saquê era muito forte.
— Karma — murmurou ela, trocando o “pode ser” pelo “é”. — Agora, as boas notícias. Há uma moça que eu gostaria que você conhecesse.
O coração de André deu a impressão de que parava por um instante; quando recomeçou, estava mais fraco do que antes.
— Quando?
— Deseja vê-la antes de discutirmos as questões de negócios ou depois?
— Antes, depois, não faz diferença. Pagarei o que pedir, se ela me agradar.
Outra vez um dar de ombros gaulês, e o desespero patente e ostensivo. O que não deixou Raiko nem um pouco comovida. A fome de yang por yin é a essência do nosso mundo e, sem isso, o mundo flutuante não mais flutuaria.
É estranho que a obsessão de yang em se juntar a yin — entrando e saindo, arremetendo no portão, mais dor do que prazer, desespero ao final, desespero para continuar, se terminar nunca é suficiente, se não terminar é gemer pela noite afora — seja tão transitória, yin nunca absorvendo tudo. Nesse ponto, as mulheres são abençoadas, embora os deuses, se é que existem deuses, tenham conferido aos mortais um destino cruel.
Por três vezes tentei seguir adiante, sempre porque minha yin ansiava pelo possuidor de um yang em particular — quando um yang é sempre mais ou menos a mesma coisa —, sempre escolhas inúteis, que nada proporcionaram, além de sofrimento, sem qualquer futuro, e por duas vezes minha paixão não foi correspondida. Que absurdo! Por quê? Ninguém sabe.
E não importa. Agora, o anseio da yin pode ser saciado com a maior facilidade e para uma mama-san é até uma diversão. Sempre é fácil contratar um yang, ou harigata, ou convidar uma das damas para a sua cama. Fujiko, por exemplo, que parece apreciar a diversão, e cujos beijos podem ser celestiais.
— Raiko me conhece bem, não é mesmo? — indagou André.
Ela pensou: Claro que conheço.
— E eu conheço Raiko. Na verdade, não conhece.
— Somos velhos amigos, e amigos sempre se ajudam.
É verdade, tem toda razão, só que nós dois não somos velhos amigos — não no antigo sentido asiático — e nunca seremos. Afinal, você é um gai-jin.
— Furansu-san, velho amigo. Arrumarei um encontro, você e essa dama. André sentiu-se ansioso e tentou esconder.
— Está certo. Obrigado.
— Será em breve. Por último, o medicamento.
Raiko inclinou-se para o lado da mesa. O pequeno pacote fora amarrado com perfeição, num quadrado de seda castanho-avermelhada, uma apresentação sedutora, como se fosse um presente dispendioso.
— Escute com todo cuidado.
Mais uma vez, suas instruções foram explícitas. Ela fez André repetir, até ter certeza de que ele entendera tudo.
— Raiko-san, por favor, diga a verdade: o medicamento é perigoso, sim ou não?
— A verdade? Não sou uma pessoa séria? Sou Raiko das Três Carpas. Já não lhe disse tudo? É claro que pode ser perigoso e é claro que não é perigoso! Trata-se de um problema comum, que acontece durante todo o tempo, com todas as mulheres, e a cura raramente constitui um problema. Sua princesa é jovem e forte, e por isso deve ser fácil, sem problemas.
— Princesa? — André assumiu uma expressão brutal. — Sabe para quem é?
— Foi fácil adivinhar. Quantas mulheres existem na colônia, bastante especiais para que você as ajude? Não se preocupe, velho amigo. Segredo é segredo comigo.
Depois de uma pausa, ele perguntou:
— Qual é o problema possível?
— Dor de estômago e nenhum efeito, apenas muito enjoo. Neste caso, devemos tentar uma segunda vez, com um medicamento mais forte. Se isso não der certo, então há outro meio.
— Qual?
— Haverá tempo suficiente para falar disso mais tarde. — Confiante, Raiko afagou a seda. — Isto deve ser tudo o que é necessário.
28
— Você compreendeu tudo, Angelique?
— Claro, André — respondeu ela, os olhos fixados no embrulho de seda. Sua salvação estava ali, em cima da mesa de André Poncin. Falavam em voz baixa, apesar de manter a porta da sala fechada, como precaução contra ouvidos indesejáveis.
O relógio bateu dez horas da noite. Ele tornou a fitá-la, inquieto.
— A mama-san disse que seria melhor se você estivesse em companhia de sua criada.
— Isso não é possível, André. Não posso confiar em Ah Soh, nem em qualquer outra pessoa... não disse isso a ela?
— Disse, mas foi o que ela falou.
Da outra extremidade do corredor vinham os sons abafados de homens rindo, à mesa de jantar, da qual ela acabara de se retirar — Seratard, Vervene, Dmitri e uns poucos oficiais franceses — alegando cansaço e que queria se deitar cedo. Indo para sua suíte por acaso avistara André em sua sala, conforme a combinação anterior.
— Acho que nós... é melhor verificarmos se está tudo aí.
Ele não fez o menor movimento para abrir o embrulho. Em vez disso, limitou-se a ajeitar um canto, com evidente nervosismo.
— Se Ah Soh não estiver presente para ajudar, quem... quem vai dar um jeito... jogar fora os vidros e ervas... você não pode deixar tudo no quarto, e ainda precisará de alguém para fazer a limpeza.
Por um momento, o cérebro de Angelique ficou confuso, pois não considerara esse problema.
— Hum... não precisarei de ajuda, não haverá... nada além dos vidros e ervas... e toalhas. Não posso confiar em Ah Soh, é óbvio que não posso confiar nela, nem em qualquer outra pessoa, exceto você. Não precisarei de ajuda.
Sua ansiedade em iniciar o tratamento e acabar com aquilo para sempre prevalecia sobre todas as preocupações que a angustiavam.
— Não se preocupe. Trancarei a porta e... direi a ela que vou dormir até tarde e não quero que ninguém me incomode. Afinal, tudo deve terminar em poucas horas, até o amanhecer, não é mesmo?
— Se Deus quiser, é isso mesmo. Foi o que a mama-san me disse. Ainda acho que deve correr o risco com Ah Soh.
— É evidente que você não está pensando direito. Absolutamente não. Você é o único em quem posso confiar. Bata em minha porta bem cedo, deste jeito.
Angelique bateu na mesa três vezes, uma pausa, outra batida.
— Só abrirei a porta para você.
Impaciente, ela abriu o embrulho. Lá dentro havia dois vidros pequenos, tapados com rolha, e um maço de ervas.
— Tomo um vidro agora, e depois...
— Mon Dieu, não! — interrompeu-a André, cansado, os nervos tão tensos quanto os dela. — Deve fazer tudo na ordem correta, Angelique. Primeiro, faça uma infusão com as ervas na chaleira com água quente. Depois que estiver pronta, beba o conteúdo de um vidro, de uma só vez, e não se preocupe se o gosto for horrível. Use um chá verde com mel ou um doce para dissipar o gosto.
— Tenho alguns chocolates suíços que monsieur Erlicher me deu. Acha que servirão?
— Claro. — André pegou um lenço para enxugar o suor das mãos, sua imaginação projetando as cenas mais tétricas. — Depois que a infusão estiver morna, talvez em meia hora, beba a metade... o gosto também não será agradável. Relaxe em seguida, espere, tente dormir.
— Haverá alguma reação? Sentirei qualquer coisa de imediato?
— Não. Eu já disse que não! A mama-san me garantiu que normalmente nada acontece até algumas horas depois... deve ser como uma forte dor de barriga.
Quanto mais ele falava a respeito, menos lhe agradava seu envolvimento. E se alguma coisa saísse errada? Mon Dieu, espero que não haja uma segunda vez, pensou, contrafeito, e tratou de reprimir os maus pressentimentos — e o embaraço — procurando ser objetivo.
— Deve ser apenas como uma dor de barriga — repetiu ele, suando cada vez mais. — É o início, Angelique, uma cólica. Vou voltar ao início. Tome o primeiro vidro, depois beba a metade da infusão, a metade, lembre-se de que deve fazer tudo na sequência correta... relaxe, tente dormir um pouco, quanto mais relaxada estiver, mais fácil será. Assim que as cólicas começarem, tome o outro vidro, acompanhado por um pouco de mel ou um doce, e depois deve começar... a mama-san disse que seria como uma menstruação mensal mais forte... por isso deve estar preparada... com uma toalha.
André fez uma pausa, tornou a usar o lenço.
— É uma noite abafada, não acha?
— Está frio e não precisa ficar nervoso. — Angelique abriu um dos vidros, cheirou o conteúdo. Torceu o nariz.— É pior do que um banheiro de rua parisiense em agosto.
— Tem certeza que não vai esquecer a seqüência?
— Absoluta. Não se preocupe, eu...
Uma batida naporta provocou-lhes sobressalto. Angelique recolheu apressada os dois vidros e o maço de ervas, guardou tudo na bolsa.
— Entre — disse André.
O Dr. Babcott ocupava todo o vão da porta.
— Ah, Angelique, a criada me avisou que você estava aqui. Vim na esperança de conversar com você por um momento. Boa noite, André.
— Boa noite, monsieur.
— Estou muito bem, doutor — disse ela, com súbita pontada de inquietação, sob o olhar penetrante do médico. — Não precisa se preo...
— Só queria tirar sua temperatura, contar a pulsação e verificar se precisa de um sedativo. É sempre melhor prevenir.
Como ela começasse a protestar, Babcott acrescentou, em tom firme, mas gentil:
— É melhor prevenir, Angelique, é sempre mais seguro, e não vai demorar mais do que um minuto.
— Está bem.
Ela desejou boa noite a André e seguiu em frente, pelo corredor, a caminho de sua suíte. Ah Soh esperava no boudoir.
— Ah Soh — disse Babcott, polidamente, em cantonês —, só volte quando eu chamá-la, por favor.
— Pois não, honorável doutor. Obediente, ela se retirou.
— Eu não sabia que você falava chinês, George — comentou Angelique, enquanto ele sentava ao seu lado e começava a contar a pulsação.
— Falei cantonês. Os chineses não possuem uma única língua, Angelique, mas centenas de línguas diferentes, embora tenham apenas uma forma de escrever, que todos podem compreender. Curioso, não acha?
É muita estupidez me explicar o que já sei, pensou ela, impaciente, sentindo vontade de gritar com ele. Vamos, apresse-se! Como se eu não tivesse visitado Hong Kong, como se Malcolm e todos os outros não tivessem me contato isso uma centena de vezes... como se eu tivesse esquecido que você é a causa de todo o meu infortúnio.
— Aprendi quando trabalhava em Hong Kong — continuou Babcott, distraído. Ele encostou a mão na testa de Angelique, tornou a verificar o pulso, notou que o coração estava acelerado, havia um brilho de suor no rosto... nada com que se preocupar, levando em consideração a provação por que ela passara.
— Umas poucas palavras, aqui e ali. Passei dois anos no hospital geral... seria ótimo se tivéssemos uma instalação igual aqui.— Ele manteve as pontas dos dedos pousadas de leve no pulso de Angelique. — Os médicos chineses acreditam que há sete níveis de batimentos cardíacos ou pulsações. Alegam que podem senti-los, sondando mais e mais fundo. É seu principal método de diagnóstico.
— E o que está ouvindo em meus sete corações?
Angelique fez a pergunta num súbito impulso, apreciando o calor daquelas mãos curativas e desejando muito, apesar de seu ódio, poder confiar nele. Nunca sentira mãos assim, nem a sensação agradável que pareciam irradiar acalmando-a.
— Não ouço nada além de boa saúde — respondeu Babcott.
Ele especulou se haveria algum fundo de verdade na teoria das sete pulsações Em seus anos na Ásia, testemunhara percepções e curas extraordinárias por parte de médicos chineses... assim como uma abundância de bobagens supersticiosas. O mundo é estranho, mas as pessoas são ainda mais estranhas. Ele tornou a estudar Angelique. Seus olhos eram cinzas, penetrantes e gentis. Mas havia sombras no fundo, e ela percebeu-as.
— O que o perturba? — perguntou ela, com repentino medo de que Babcott tivesse diagnosticado sua verdadeira condição.
Ele hesitou, depois enfiou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel de seda, que embrulhava sua cruz de ouro.
— Creio que isto é seu.
Numa violenta agitação, Angelique ficou olhando fixamente para a cruz, os lábios ressequidos, sem se mexer, embora a cabeça conjurasse uma negativa imediata, um dar de ombros indiferente, que foram substituídos no mesmo instante nauseante por:
— Eu... perdi uma assim... tem certeza que é minha? Onde a encontrou?
— Pendurada no pescoço do intruso.
— No pescoço dele? Mas... que coisa estranha!
Angelique ouviu sua voz, observou a si mesma, como se fosse outra pessoa, forçando-se a manter o controle, embora sentisse vontade de gritar bem alto, pois sabia que se encontrava de novo numa situação crítica... enquanto seu cérebro, frenético, procurava por uma explicação plausível.
— Pendurada no pescoço daquele homem?
— Isso mesmo. Eu a tirei do cadáver. Na ocasião, não pensei duas vezes a respeito, só me ocorreu que ele era um convertido católico. Depois, quase que por acaso, vi a inscrição... mal dá para notar. — Uma risada curta e nervosa. — Minha visão é melhor do que a de Hoag. “Para Angelique, de Mama, 1844.”
A boca de Angelique murmurou:
— Pobre mamãe... ela morreu ao dar à luz meu irmão, apenas quatro anos depois.
Ela viu seus dedos pegarem a cruz, os olhos examinarem-na, meio contraídos à luz do lampião a óleo, incapazes de ler com clareza a inscrição mínima... e amaldiçoando a escrita. O instinto logo a dominou, e ela disse:
— Eu a perdi, ou pensei ter perdido, na Tokaidô, talvez em Kanagawa, na noite em que fui visitar Malcolm, lembra?
— Claro que lembro. Uma noite terrível, depois de um dia terrível. — Babcott levantou-se, hesitante. — Eu... hum... achei que devia devolvê-la.
— Obrigada. Fico contente por tê-la de volta. Muito contente mesmo. Mas, por favor, sente-se de novo, fique mais um pouco — convidou Angelique, por mais que quisesse que ele fosse logo embora. — Quem era ele... aquele homem, como encontrou a cruz? E onde?
— Nunca saberemos, não agora. — Babcott observou-a por um momento. -— Malcolm lhe contou que achamos que era um dos demônios assassinos da Tokaidô, embora nem ele nem Phillip tivessem certeza?
Apesar do seu medo, debatendo-se naquela nova armadilha, Angelique experimentou um impulso quase irresistível de cair numa gargalhada histérica e dizer: Ele não era um demônio, não para mim, não na primeira vez, deixou-me viver naquela ocasião, e também não foi um demônio depois que lhe tirei a roupa. Não me matou, embora eu soubesse que era essa a sua intenção, tenho certeza de que faria isso, um momento antes de eu persuadi-lo a partir... Não, não era um demônio, mas mesmo assim merecia morrer, tinha de morrer...
Mon Dieu, ainda nem sei o seu nome, fiquei tão confusa que me esqueci de perguntar... devo estar enlouquecendo por pensar nessas coisas.
— Quem era ele?
— Ninguém sabe. Ainda. O rei de Satsuma pode dizer o seu nome, agora que ele morreu, mas é bem provável que dê um nome falso. São todos mentirosos... não é bem assim, acontece apenas que aquilo a que chamamos de mentira parece ser um modo de vida para eles. O homem deve ter encontrado a cruz em Kanagawa. Não lembra exatamente quando descobriu que a perdera?
— Não, não lembro. Só percebi quando voltei para cá. — Ela tornou a constatar que os olhos de Babcott a sondavam bem fundo, e sua mente bradou: Minha pulsação ou pulsações lhe revelaram a minha verdadeira condição? — Mas foi encontrada, graças a Deus. Não tenho palavras para agradecer. Mas por que ele a usava é uma coisa que não consigo entender.
— Concordo que é muito estranho. O silêncio foi se tornando opressivo.
— O que o Dr. Hoag acha?
Babcott fitou-a nos olhos, mas ela não foi capaz de ler o que ele de fato pensava.
— Não perguntei. Preferi não conversar a respeito com ele, nem com Malcolm. — Seus olhos tornaram a se fixar nos de Angelique, deram a impressão de que assumiam uma cor mais profunda. — Hoag é um homem da Struan... e sua tigela de arroz vem de Tess Struan. Não sei por que, mas achei que deveria conversar com você primeiro.
Outra vez um silêncio prolongado. Angelique desviou os olhos, sem confiar em si mesma, desejando poder confiar no médico, querendo confiar em mais alguém além de André — o fato de ele saber já era bastante terrível —, mas convencida de que isso era impossível. Tinha de se ater ao plano: estava sozinha, devia se salvar por si mesma.
— Talvez... não, com certeza, ele deve ter encontrado minha cruz em Kanagawa, deve ter me visto ali, e talvez... — Ela fez uma pausa, e logo acrescentou, apressada, persuadindo-o, inventando enquanto falava: — Talvez ele a tenha guardado para se lembrar de mim... não sei realmente... para quê?
Babcott comentou, contrafeito:
— Obviamente, minha cara, com a intenção de atacá-la, de possuí-la, de uma forma qualquer, para matá-la. Desculpe, mas deve ser essa a verdade. Pensei a princípio, como todos os outros, que ele era apenas um desses proscritos chamados ronin, mas sua cruz mudou essa perspectiva. No momento em que descobri que pertencia a você... como disse, ele deve tê-la visto na Tokaidô, seguiu Malcolm e Phillip Tyrer até Kanagawa, junto com o outro, pretendendo liquidá-los, talvez para evitar a identificação. Foi então que tornou a vê-la, encontrou a cruz e decidiu guardá-la, só porque era sua. Perseguiu-a até aqui, tentou entrar em seu quarto, querendo... desculpe ter de dizer de novo... querendo possuí-la a qualquer custo. Não se esqueça de que seria fácil para um homem assim sentir-se atraído por uma mulher como você, ficar completamente obcecado.
Pelo modo como ele falou, deixou claro que também se encontrava sob o encantamento de Angelique. Ainda bem que ele compreendeu a verdade, pensou ela, aliviada por outro risco ter sido eliminado. Sua mente desviou-se para os vidros e para o dia seguinte, quando estaria purificada, pronta para iniciar uma vida nova, com um futuro maravilhoso.
— Os japoneses são curiosos — continuou Babcott. — Diferentes. Acima de tudo, diferentes num ponto importante, o de não terem medo de morrer. Quase que dão a impressão de que procuram a morte. Você teve muita sorte em escapar. Bom, acho melhor eu ir agora.
— Muito obrigada por tudo. — Ela pegou a mão de Babcott, comprimiu-a contra seu rosto. — Vai contar a Malcolm e ao Dr. Hoag? Assim acabaremos logo com isso.
— Deixarei Malcolm aos seus cuidados. — Por um instante, ele pensou em pedir a ajuda de Angelique para o problema do vício em ópio de Malcolm, mas concluiu que ainda não era uma coisa urgente; além do mais era responsabilidade sua, não dela. Pobre Angelique, já sofreu demais. — Quanto a Hoag, por que isso seria da sua conta ou dos intrometidos e intrigantes de Iocoama? Não é da conta deles, nem da minha, não é mesmo?
Ele contemplou os olhos claros de Angelique, no rosto risonho e radiante, a pele translúcida, toda ela irradiando juventude e saúde, com a sensualidade magnética e inconsciente que sempre a envolvia, e que parecia ter aumentado de poder, contra todas as expectativas médicas. Espantoso, pensou Babcott, sentindo a maior admiração por tamanha flexibilidade. Eu gostaria apenas de conhecer seu segredo, descobrir por que algumas pessoas vicejam em adversidades que destruiriam a maioria das outras.
Abruptamente, a sua parte de médico desapareceu. Não posso culpar aquele ronin, nem Malcolm, nem qualquer outro homem, por ser louco por ela, pois também a desejo.
— É curioso o que aconteceu com sua cruz — murmurou ele, a voz meio rouca, nem um pouco envergonhado por isso. — Mas também a vida é uma sucessão de curiosidades, não é mesmo? Boa noite, minha cara. Duma bem.
A primeira cólica arrancou-a de um sono irrequieto, povoado por demônios aprisionados, grosseiros, estupradores com olhos negros como carvão, as mulheres grávidas, os homens com chifres, afastando-a de Tess Struan, que montava guarda sobre Malcolm como um espírito maligno. Uma segunda cólica veio logo em seguida, e despertando-a para a realidade, para o que estava acontecendo.
O alívio por ter começado ofuscou as horas anteriores de apreensão, que lhe pareceram uma eternidade antes de conseguir adormecer. Passava um pouco das quatro horas da madrugada agora. Eram quase duas e meia na última vez em que consultara o relógio. Outra cólica, mais forte do que a anterior, sacudiu todo o seu corpo, levando-a a se concentrar na seqüência.
Os dedos trêmulos tiraram a rolha do segundo vidro. Outra vez ela engasgou com o gosto pútrido e quase vomitou o líquido, mas conseguiu mantê-lo no estômago, que se contraía em repulsa, com a ajuda de uma colher de mel.
Recostou-se nos travesseiros, ofegando. Um fogo parecia se espalhar, a partir do estômago. Em poucos momentos, o suor porejou por todo o corpo. Mas logo passou, deixando-a inerte, encharcada, mal respirando.
Esperando. Como antes, nada. Apenas uma inquietação nauseante, a mesma que experimentara antes, após horas de ansiedade, ao mergulhar no sono perturbado. Sua consternação aumentou.
— Santa Mãe, faça com que funcione — balbuciou ela, em meio às lágrimas. Mais espera. Ainda nada. Os minutos foram passando.
E então, ao contrário de antes, uma cólica surpreendentemente diferente quase a dobrou. Outra. Apenas suportável. Mais, ainda suportável. Ela se lembrou da segunda metade da infusão, sentou na cama, começou a tomá-la, aos goles. O gosto era ruim, mas não tanto quanto o líquido nos vidros.
— Graças a Deus não tenho mais que beber aquilo — murmurou ela. Tomou outro gole. E mais outro. Depois de cada gole, uma mordida no chocolate...
Outras cólicas, mais fortes agora. Num ritmo crescente. Não se preocupe, tudo está acontecendo conforme André explicou, pensou ela. Os músculos da barriga começavam a parecer distendidos e doloridos. Mais goles, mais cólicas, e depois o último gole desceu por sua garganta. O pote de mel quase vazio... o resto do chocolate, mas agora nem mesmo sua doçura podia se sobrepor ao gosto bilioso. Uma aragem passou por baixo da porta do boudoir, balançando a chama do lampião na mesa ao lado da cama, fazendo com que as sombras na parede mudassem e dançassem. Com o maior estoicismo, Angelique recostou-se, contemplou-as, as mãos comprimindo a barriga contra as pontadas de dor, os músculos contraindo-se e relaxando, cada vez mais tensos, saltando sob seus dedos.
— Observe as sombras, pense em coisas boas — sussurrou ela. — O que você vê?
Navios e velas, os telhados de Paris, arbustos, ali está a guilhotina, não, não a guilhotina, mas um caramanchão, coberto por roseiras por que é o nosso chalé no campo, perto de Versailhes, para onde iríamos na primavera e o verão, enquanto crescíamos, meu irmão e eu, a querida mamãe, há tanto morta, e o pai, que só Deus sabe onde se encontra, a tia e o tio nos amando, mas não sendo capazes de substituir a queri...
— Oh, Mon Dieu! — balbuciou ela, quando o primeiro dos violentos espasmos a dominou.
Soltou um grito no seguinte, enfiou parte do lençol na boca, frenética, a fim de sufocar os berros, que saíam contra a sua vontade, e teriam atraído todo mundo na legação, para bater na porta trancada.
E foi então que começaram os calafrios. Pingentes de gelo em suas entranhas. E mais violência, vinte vezes pior do que em suas piores cólicas mensais. O corpo estremecia sob a pressão, pernas e braços se agitavam no ritmo das ondas de tormento que subiam da virilha para a cabeça.
— Vou morrer... vou morrer... — gemeu Angelique, os dentes rangendo no lençol, abafando os gritos.
Mais e mais espasmos, mais e mais calafrios, até que tudo cessou. Abruptamente.
A princípio, ela pensou que morrera de fato, mas logo os sentidos recuperaram o foco e percebeu que o quarto parara de girar, a chama do lampião se tornara baixa, mas ainda ardia, pôde ouvir o tiquetaque do relógio. Os ponteiros indicavam 5:42 h.
Angelique fez um esforço para sentar na cama, sentindo-se horrível. Uma olhada no espelho de mão assustou-a. O rosto pálido, cabelos grudados na cabeça pelo suor, lábios descoloridos pelo medicamento. Enxaguou a boca com um pouco do chá verde, cuspiu no urinol, que tornou a empurrar para baixo da cama. Encontrou a maior dificuldade para tirar a camisola suja, usou uma toalha úmida para limpar o rosto e o pescoço da melhor forma que podia, escovou os cabelos e tornou a se estender na cama, exausta, mas sentindo-se melhor pelos cuidados que se dispensara. Foi só nesse momento que notou a mancha vermelha na camisola, jogada ao acaso no tapete puído.
Um rápido exame confirmou que o sangue continuava a escorrer. Ela ajeitou uma toalha limpa entre as pernas e recostou-se mais uma vez, perto do amanhecer, quase afundando no colchão de fadiga. Um calor espalhou-se pelo corpo cansado. O fluxo aumentou.
29
Domingo, 9 de novembro:
— Ilustre Chen disse para lhe contar tudo o que possa afetar o tai-pan, irmã mais velha — Ah Soh sentiu-se apreensiva. — Uma noite antes de Púbis Dourado iniciar sua purgação do mês, ela...
— Ah, então foi por isso que ela ficou na cama e não viu meu filho — comentou Ah Tok. Estavam em seu quarto, no final do corredor, a salvo de ouvidos bisbilhoteiros. — Ele ficou como uma criança na dentição durante o dia inteiro, pior esta manhã. É tempo de voltarmos para casa.
— Tem razão. Mas escute o resto: ela diz que é a purgação do mês, mas conheço suas datas tão bem quanto as minhas. Não parece possível. Normalmente, ela é como qualquer jovem virgem civilizada, regular, mas...— Ah Soh puxou sua bata, nervosa. —... mas agora me lembro, a última foi bastante escassa, quase como se a tivesse perdido.
A mulher mais velha arrotou, levou um palito aos dentes.
— Perder, ou ter pouco, ou ser irregular, com toda a ansiedade pelos ferimentos de meu filho, e pelos bárbaros infames e assassinos que nos cercam aqui, é uma coisa comum, não há nada de excepcional.
Na mesa entre as duas havia várias tigelas, com os restos do almoço de Ah Tok: sopa agridoce, ensopado de legumes fritos, peixe com gengibre e soja, iscas de carne de porco em molho de feijão preto, camarões ao alho e arroz.
— É normal, irmã mais nova — acrescentou Ah Tok.
— O que não é normal é que na manhã de ontem, quando levei seu chá e água quente para o banho, tive de bater várias vezes para despertá-la e ela não me deixou entrar, apenas gritou rudemente “Vá embora!”, através da porta, naquela sua voz vulgar, e depois... — Ah Soh pediu-lhe que baixasse a voz, numa atitude dramática. —... apenas poucos minutos mais tarde, Grande Nariz Pontudo, aquele outro tipo de demônio estrangeiro que os nossos demônios estrangeiros chamam de comedores-de-rãs, bateu de leve na porta, assim... — Ela bateu na mesa três vezes e, depois, uma quarta. — E ela o deixou entrar no mesmo instante!
Ah Tok piscou os olhos, surpresa.
— No mesmo instante? Ele? O francês? Ela deixou aquele homem entrar, mas não a você? E você viu isso?
— Vi, sim, mas ele não me viu.
— Foi muita esperta, irmã mais nova. Continue.
— Ele ficou lá dentro por alguns minutos e saiu carregando coisas embrulhadas num pedaço de seda marrom. Como um ladrão na noite mais escura. Mas não me viu a espioná-lo. — Ah Soh fez uma pausa, adorando, como todos os chineses, ser a mensageira de intrigas e segredos. — Também não me viu quando o segui.
— Por todos os deuses, grandes e pequenos, é mesmo? — Ah Tok serviu dois copos do madeira, que ambas saborearam. — Vida longa, irmã mais nova, que o seu portão de jade nunca a incomode. Continue.
— Ele desceu até a praia, entrou num bote e remou para o mar. Depois de algum tempo, eu o vi largar o que tirara do quarto na água.
— Não!
— É verdade. Ele voltou em seguida, mas não me viu. Em momento nenhum.
— O que podia ter sido?
Ah Soh inclinou-se mais um pouco.
— Quando miss me deixou entrar, olhei ao redor com a maior atenção. Sua cama e camisola estavam encharcadas de suor, e ela parecia ter sofrido um acesso da febre do Happy Valley. Suas toalhas íntimas se encontravam encharcadas também, mais pesadas do que habitualmente. Ela me mandou limpar tudo, trazer toalhas quentes, e não deixar ninguém entrar... nem mesmo o tai-pan. Assim que acabei o que era necessário, ela arriou na cama e voltou a dormir.
— Isso não é estranho, mas a presença de Nariz Pontudo é! — Ah Tok balançou a cabeça, ponderada. — É como bosta de burro, brilhante por fora, mas nem por isso deixa de ser bosta. É evidente que ele jogou fora alguma coisa por ela.
Ah Soh hesitou.
— Seu honrado filho... há alguma possibilidade de que ele tenha deitado com a miss?
Ah Tok soltou uma risadinha.
— Tenho certeza que tentou, mas Púbis Dourado não permitiu que seu talo celestial desfrutasse o rompimento de seu portão, embora ela o pavoneie sempre que pode. Ouvi-o balbuciando o nome dela no sono, pobre coitado. Uma coisa horrível. Se ela fosse uma pessoa civilizada, eu poderia acertar o preço e estaria tudo resolvido.
Ah Soh observou Ah Tok pegar um pedaço da cabeça do peixe com os pauzinhos, pensativa, limpar a espinha e cuspi-la na tigela. A mulher mais jovem teria com o maior prazer partilhado aquelas sobras, já que seu cozinheiro não era tão bom quanto o de Ah Tok.
— Como anda o seu cozinheiro agora? — perguntou ela, com um ar inocente.
— Melhorando. O cão vem da minha aldeia e por isso parecia prometer. Continuo a treiná-lo, é claro. — Ah Tok fez uma careta. — Desconcertante, irmã mais nova. Como está a imperatriz hoje?
— Irritada, como sempre. O fluxo continua, mais forte do que o normal.O gigante da medicina foi vê-la esta manhã, mas ela não o recebeu, pediu que eu o mandasse embora. Há alguma coi...
— Ela já viu meu filho?
— Vai se encontrar com ele esta tarde.
— Ótimo. Hoje a língua dele parece uma áspide, por causa da mãe. Nariz Pontudo e Púbis Dourado numa conspiração secreta? Isso cheira mau, muito mau. Mantenha os olhos e ouvidos bem abertos, irmã mais nova.
— Há mais uma coisa.
Ah Soh revirou os olhos em excitamento. Enviou a mão no bolso, pôs uma rolha em cima da mesa. A parte inferior tinha uma mancha púrpura, quase preta.
— Encontrei isto debaixo da cama, quando me abaixei para pegar o urinol. O rosto encarquilhado de Ah Tok contraiu-se ainda mais, em perplexidade.
— E daí?
— Cheire, irmã mais velha.
Ah Tok obedeceu. O odor era pungente, um pouco familiar.
— Oque é?
— Não tenho certeza... mas para mim o cheiro é de Escuro da Lua. Acho que o vidro que essa rolha tapava continha Escuro da Lua... junto com outras ervas.
A mulher mais velha soltou uma exclamação de espanto.
— O expulsor? Para causar um aborto? Impossível! Por que ela haveria de fazer isso?
— Seria terrível para seu filho ser chamado de pai antes do casamento, não é mesmo? Sabe como os demônios estrangeiros são com o casamento, escândalos e virgindade, nada de fornicação antes do casamento... o homem é sempre o culpado, uma tolice. Seria ruim para seu filho. Teria que dar explicações a tai-tai Tess e também ao mesquinho e vingativo deus dos demônios estrangeiros.
As duas mulheres estremeceram. Ah Tok tornou a farejar a rolha.
— Acha que Nariz Pontudo jogou o vidro no mar?
— Também está faltando um bule de chá, que pode ter servido para as outras ervas. Ela havia pedido também água quente e mel.
— Para tirar o gosto! É isso mesmo! — Solene, Ah Tok acrescentou:— Meu filho é... é bastante desequilibrado por essa mulher.
— O que devemos fazer?
— Agiu bem ao me contar. Escreveremos para ilustre Chen e mandaremos a rolha para ele, pela primeira correspondência. Ele saberá se você está certa e nos dirá o que fazer.
Trêmula, Ah Tok serviu mais vinho para ambas.
— Mantenha os olhos bem abertos, fique de boca fechada como uma ostra, e farei a mesma coisa... nem uma única palavra para ela, meu filho, ou qualquer outra pessoa, até que o ilustre Chen nos diga o que fazer.
Malcolm Struan claudicava pela High Street, a caminho do prédio Struan, apoiado em suas bengalas. O céu estava nublado, um vento fraco soprava do mar, a tarde era fria, e sua preocupação mais angustiante desaparecera. Vira Angelique, convencendo-se de que ela estava bem, mais adorável do que nunca, embora pálida e sonolenta, fizera isso. Permanecera em seu quarto por alguns minutos apenas, não querendo cansá-la.
Alguns mercadores montados pararam seus cavalos, polidamente, para deixá-lo passar, erguendo os chicotes em saudação.
— Bom dia, tai-pan — disse Lunkchurch, tão risonho quanto os outros. — Estará no clube ao pôr-do-sol?
— O que vai acontecer? — perguntou Struan.
Lunkchurch sacudiu o polegar para o vapor de casco preto, com dois mastros, ancorado na enseada, perto da fragata de Marlowe. Exibia a bandeira da Brock & Sons.
— Aquele navio e suas notícias. Norbert convocou uma reunião; apenas os mercadores, sem a presença de Sir William.
— Eu ia fazer a mesma coisa. Ao pôr-do-sol, ótimo, estarei lá — disse Malcolm, muito tenso.
O Ocean Witch — todos os principais navios da Brock tinham Witch como segundo nome, enquanto a Struan usava Cloud — chegara inesperadamente na noite anterior, com notícias, correspondência e as últimas edições dos jornais de Hong Kong.
Os editoriais de todos os jornais falavam do almirante Ketterer e de seu ataque bem-sucedido aos ninhos dos piratas chineses, na área da baía de Mirs, informando que ele se encontrava a caminho de Xangai, para reabastecimento. O Guardian, em letras grandes, resumira a situação:
Num despacho para o governador, o almirante Ketterer escreveu que haviam sofrido algumas baixas, porque as baterias costeiras chinesas estavam equipadas com canhões modernos... canhões fabricados em Birmingham, saídos de Hong Kong, adquiridos por meios legais ou ilegais por Wu Sung Choi, o líder das frotas do Lótus Branco, que infelizmente não foi capturado, nem morto.
Por mais espantoso que possa parecer, o almirante recomendou, por causa desse pequeno incidente (os canhões foram destruídos por um destacamento de fuzileiros que desembarcou na praia), que todas as vendas de armas — e de ópio — fossem declaradas ilegais, proibidas em toda a Ásia, de imediato, em particular na China e no Japão, com as penalidades mais rigorosas para qualquer violação.
Essa injustificada interferência no comércio legítimo, essa inadmissível imputação de culpa a todos os mercadores na China — renomados por seu senso de justiça, por sua intrépida capacidade de desenvolver o império. Pela lealdade a sua majestade, que Deus a abençoe, e por colocarem a pátria acima do lucro — merecem os protestos mais vigorosos.
Os editores gostariam de perguntar ao almirante: quem fornece os impostos para pagar pela maior marinha que o mundo já conheceu (da qual ele é, sem dúvida, um membro extraordinário, embora desinformado sobre questões vitais do interesse da coroa), sem a qual nosso império deixa de existir: apenas e sempre os incansáveis mercadores e seu ofício...
— Ketterer é um idiota — disse Struan. — Norbert tem razão nesse ponto. Talvez agora Sir William veja a luz e peça um substituto imediato. Temos de lidar com os japas aqui e Ketterer não vai fazer nada sem ordens expressas.
— Não resta a menor dúvida de que precisamos de um homem com muita coragem — concordou Lunkchurch. — Ketterer é muito fraco.
Um dos outros homens interveio:
— Ei, Charlie, ele destruiu os piratas quando recebeu a ordem e fará a mesma coisa aqui. Que diferença pode haver em alguns meses a mais? — Uma pausa e ele indagou, ansioso: — Ei, tai-pan, podemos saber como está miss Angel?
— Está bem agora.
— Graças a Deus!
A notícia de que ela se encontrava acamada circulara depressa pela colônia, no dia anterior, e a preocupação aumentara ao se saber que se recusara a receber Babcott, Hoag, e até mesmo o tai-pan.
— Por Deus, é a comida francesa, ela está envenenada... Não, pegou a praga deles... Os franceses não têm pragas, apenas piolhos... Todos temos piolhos... Ouvi dizer que foi cólera...
Um alívio universal se espalhara por Iocoama ao meio-dia de hoje, quando o ministro Seratard divulgara um boletim oficial, informando que ela gozava de perfeita saúde, apenas sofria uma indisposição temporária... e logo as pessoas sussurraram que se tratava do incômodo mensal.
— Minha noiva está bem — reiterou Malcolm, orgulhoso.
— O que é um alívio — comentou Lunkchurch. — Já soube que o Witch vai zarpar com a maré alta esta noite?
Malcolm olhou para o mar, muito de sua inquietação voltando. Ontem à noite, ao ser informado da chegada do navio, fora dominado por um pânico súbito e nauseante, pensando que Tyler Brock ou Morgan Brock podiam estar a bordo. Só conseguira pensar com clareza quando Jamie lhe assegurara que não.
Por que Tyler Brock me deixa apavorado, mesmo agora? — ele perguntou a si mesmo, mais uma vez. Posso compreender tal reação quando eu era pequeno, mas agora sou quase da sua altura, embora Tyler continue tão feio quanto sempre, o rosto rude, a boca suja, com a barriga imensa, o único olho sempre injetado. Qual é o problema? Há muitos homens como ele em Hong Kong, até mais feios. E vários são inimigos. Mas não me assustam. Tyler sempre foi nosso inimigo e conseguimos detê-lo em todas as ocasiões... Dirk fez isso, meu pai também, até a mãe, e eu devo, mas... Por Deus Todo-Poderoso, detesto aquele canalha, pelo sofrimento que causou à mãe e à nossa família! Ele respirou fundo, voltou a se concentrar no Ocean Witch.
— Mas ele só deveria partir daqui a dois dias.
— É esse o rumor.
— Mas por que uma mudança de plano tão repentina?
— Não sei, mas é essa a notícia que começou a circular.
— Saberemos de tudo em breve. Bom dia.
Malcolm tratou de reprimir seu presságio e se afastou. Mais adiante ficava o prédio da Struan, para onde seguia, e depois a torre da Santíssima Trindade. Fora ao serviço cedo naquela manhã, orara por Angelique e para ter mais força, sentindo-se melhor em seguida. Mas que Deus amaldiçoe todos os Brocks para sempre, que me permita matar Norbert e...
— Tai-pan!
Arrancado de seu devaneio, ele se virou. Phillip Tyrer se aproximava apressado, vindo da legação britânica.
— Desculpe, mas todos queremos saber como está miss Angelique.
— Está bem.
Por trás de Tyrer, Malcolm avistou Sir William, observando-o de uma das janelas do térreo. Acenou com uma bengala, fez o gesto de polegar para cima, meio sem jeito, e Sir William acenou em resposta. Pouco antes de o ministro britânico recuar, Malcolm vislumbrou um outro homem ao seu lado.
— Aquele é seu samurai domado, Nakama?
— Quem? Ah, sim, o próprio. Ela está mesmo bem?
— Claro que sim.
— Graças a Deus! Ficamos todos na maior preocupação! — Phillip Tyrer exibia uma expressão radiante, uma imagem de saúde, corado, forte, mais alto, apenas porque Struan agora andava encurvado. — Você também parece muito melhor.
— Eu bem que gostaria que isso fosse verdade. — Abruptamente, a inveja de Malcolm levou-o a dizer, em tom um tanto brusco: — Soube que Nakama vem lhe fornecendo todos os tipos de informações, a você e a Sir William.
O sorriso de Tyrer se desvaneceu.
— É verdade.
— O acordo foi que você passaria as informações para Jamie e eu. Sobre tudo. Não é verdade?
— É, sim, mas Sir William... ele vem tentando descobrir qual é a situação política no Japão e...
— A política e os negócios de um país são como um par de luvas, Phillip. Não poderia nos visitar amanhã, antes do almoço? Eu me sentiria grato por saber das novidades. — Malcolm forçou um sorriso. — Por favor, transmita meus cumprimentos a Sir William. Até amanhã.
Ele seguiu claudicando pela rua, furioso consigo mesmo por ter sido tão cáustico, desesperado por andar daquele jeito, subiu a escada do prédio da Struan, a caminho de seus aposentos. As costas e a barriga doíam, de forma alarmante. Não mais do que o habitual, pensou ele, irritado, e isso não era motivo para ser ríspido com Phillip. Ele apenas tentava ser simpático. Mas não importa, um pouco do elixir de Ah Tok e voltarei a me sentir bem. Convidarei Phillip para jantar, e...
— Tai-pan!
— Olá, Jamie. — Malcolm parou no meio da escada. — Já soube que o Ocean Witch vai zarpar antes do prazo previsto? Talvez com a maré cheia desta noite?
— Era o que eu ia lhe contar. Ouvi o rumor, tentei obter uma confirmação de Norbert, mas ele se encontra ocupado no momento... Como está Angelique?
— Muito bem — respondeu Malcolm, distraído. — É melhor aprontar logo nossa correspondência, se o Witch partir mesmo mais cedo.
— Pode deixar que cuidarei de tudo. Irei buscar suas cartas assim que receber uma confirmação.
Jamie franziu o rosto, ao perceber como Malcolm parecia distante.
— Mande alguém procurar Angelique, pois ela também tem correspondência para enviar.
A carta para a mãe dele, escrita e reescrita, até ambos ficarem satisfeitos. É uma boa carta, pensou Malcolm.
— Achou-a realmente bem, tai-pan?
— Maravilhosa!
Malcolm sorriu, as dores momentaneamente esquecidas, o Witch esquecido. Angelique parecia espetacular na cama, viçosa, embora pálida, feliz e atenciosa, bastante satisfeita por vê-lo.
— Ela disse que amanhã à noite já terá se recuperado por completo, Jamie. Por que não realizamos um grande jantar aqui? Nós, Dmitri, Babcott, Marlowe, se estiver de folga, e Pallidar, pois os dois são ótimas companhias, apesar de adularem Angelique como cachorrinhos.
— E o que me diz de Phillip e Sir William?
— Phillip, sim, mas não Sir William... não, é melhor deixá-los de fora. O que acha do conde Zergeyev? Ele sempre nos proporciona boas risadas.
— Se o convidar, terá de incluir todos os ministros... não poderia deixar Sir William de fora.
— Tem razão. Providencie um jantar simples, e deixaremos para convidá-los outra noite.
— Cuidarei de tudo.
Jamie sentia-se contente por ter restabelecido o relacionamento amigável com Malcolm. Entraram juntos na suíte. Todos os danos causados pelo incêndio já haviam sido reparados, embora ainda restasse um leve cheiro de fumaça.
— O que acha de Ketterer?
— Ele tem de defender nossos interesses ou cai fora. — Malcolm sentou à sua escrivaninha, começou a empilhar a correspondência que queria enviar. — A mãe já teve ter conversado a respeito com o governador.
— É verdade.
Malcolm levantou os olhos subitamente, percebendo certa estranheza na voz de Jamie. Depois de um momento, ele comentou:
— É curioso como nos sentimos confiantes de que ela fará isso e não temos a menor confiança de que serei capaz de persuadi-la a aprovar meu casamento.
— Não sei como responder a isso, tai-pan— murmurou Jamie, com alguma tristeza —, se é uma pergunta.
Malcolm balançou a cabeça, devagar, observando o rosto firme e curtido pelo tempo, o corpo forte e resistente, e especulou se também seria assim ao completar trinta e nove anos... daqui a dezenove anos.
— Recebeu outra carta dela?
— Recebi, trazida pelo Ocean Witch, e não contém boas notícias, lamento dizer.
— É mesmo? Sente-se, Jamie. O que ela diz?
— Desculpe, mas... Ela reiterou a ordem para que eu ajude o Dr. Hoag a despachá-lo de volta para Hong Kong imediatamente, confirmando que seria despedido ao final do mês, se isso não acontecer.
— Pode esquecer. Escreveu para ela, como eu mandei, dizendo que deve obedecer às ordens do tai-pan, às minhas ordens, e não às dela?
— Escrevi.
— Eu também. Ponto final neste assunto. Sua carta e a minha devem ter cruzado com a dela. — Malcolm acendeu um charuto, percebeu que seus dedos tremiam. — Você nunca fumou?
— Nunca. Experimentei uma vez e não gostei.
— Esqueça essa bobagem de dispensa. Quais são as outras más notícias?
— Tenho toda a correspondência e recortes à sua espera, quando quiser. Os negócios andam ruins por toda parte. Perdemos o Racing Cloud... já deveria ter chegado a San Francisco há muito tempo.
— Mas que droga!
O Racing Cloud integrava a frota de clíperes, vinte e dois navios. Os clíperes, com três mastros, dominavam os mares, eram muito mais velozes nas rotas marítimas de longo curso do que os pesados vapores, que tinham de carregar o carvão. Sua carga era de chá, seda e especiarias, mercadorias sempre muito procuradas e agora, por causa da guerra americana, astronomicamente valiosas... ainda mais se desviadas para o Sul.
— O seguro nos dá cobertura, não é?
— Receio que não. Isso nunca ocorre, nem mesmo por parte do Lloyd's. Podem alegar que foi um ato de guerra. Afinal, é uma zona de guerra.
— Tem razão. Vai nos custar um bom dinheiro. E é lamentável a perda da tripulação. O capitão não era Caradoc?
— Isso mesmo. Eles devem ter enfrentado um furacão... há informações sobre vários, ao largo do Havaí, embora estejam atrasados este ano. O imediato era meu primo, Duncan McGregor.
— Sinto muito.
Ainda mais deprimido, Struan olhou para a cômoda, onde o elixir o esperava. Fico imaginando se as mesmas tempestades não afundaram também o Savannah Lady, junto com o jovem Pedrito Vargas e nosso pedido para cinco mil fuzis, pensou ele, distraído. O que o lembrou de uma coisa.
— Aqueles canhões na baía de Mirs... não foram vendidos por nosso intermédio, não é?
— Não, ao que eu saiba.
Era a resposta normal a tal pergunta. Ambos tinham conhecimento das grandes vendas de armas para os mercadores chineses, que sempre representavam o governo manchu. O que acontecia depois da entrega em Cantão ou Xangai era outro problema.