— A você se estabelecer por conta própria? Não. Mas detesto a idéia e a Struan sairia perdendo. Juro por Deus que não vai acontecer, e se você me pedisse para sair, eu encontraria um meio de fazê-lo ficar... de persuadi-lo a ficar. Pode ter certeza.
— Muito obrigado.
Jamie tomou um gole grande do conhaque, sentindo-se um pouco melhor. Não pelo calor do conhaque, mas pelo que Malcolm acabara de falar. As últimas semanas haviam sido terríveis. Ontem, por causa da carta da Sra. Struan, tivera de confrontar uma verdade imortal: por mais leal que você seja a uma companhia por mais serviços que preste, a companhia pode e vai dispensá-lo quando quiser sem o menor escrúpulo. E o que é “a companhia”? Apenas um grupo de homens e mulheres. Pessoas. Como a Sra. Struan, por exemplo.
Pessoas constituem “a companhia”, e as que detêm o comando podem e sempre vão se esconder por trás dessa fachada, que “a companhia deve sobreviver” ou “para o bem da companhia” e assim por diante, arruinando ou promovendo por motivos pessoais, hostilidades ou ódios.
E não se esqueça que quase todas as companhias hoje em dia são familiares. Ao final, é a “família” que prevalece. O sangue fala mais alto do que a competência. Eles podem brigar entre si, mas ao final costumam se unir diante do inimigo, que pode ser qualquer um que não pertença à família. Por isso é que Alfred MacStruan foi escolhido para assumir o comando no Japão. E não há nada que eu possa fazer a respeito. Talvez os negócios de família sejam mais humanos, sejam melhores do que as instituições anônimas, burocráticas e impessoais, mas mesmo nelas, talvez ainda mais, você fica sujeito ao círculo da camaradagem. E, de qualquer forma, sai perdendo...
Na noite passada, numa atitude atípica, Jamie se embriagara em sua pequena casa na Yoshiwara, não encontrando conforto em Nemi. Cada vez que pensava na verdade sobre “a companhia” — somando-se ao crime que quase cometera, a injustiça de Tess Struan, a teimosia de Malcolm, e sua própria estupidez, sabendo que se não fosse detido teria violado a correspondência, arrancado as cartas e jogado no mar —, sua cabeça desatava a girar, e só mais um copo de rum interrompia a vertigem, até que nada mais podia controlá-la. Nemi não pudera ajudar.
— Jami, o que houve? Jami! Jami!
— Foi Maquiavel quem disse melhor — murmurara ele, a voz engrolada, as palavras incoerentes. — Não deposite sua confiança em príncipes sanguinários, pois eles sempre podem alegar a conveniência. Príncipes sanguinários, um tai-pan sanguinário, a mãe de um tai-pan, filhos de Dirk Struan e seus netos...
E, depois, ele desatara a chorar. Foi a primeira vez em anos, pensou agora, consternado. A última aconteceu logo depois que cheguei a Hong Kong, há vinte anos, e soube que a mãe morrera, enquanto me encontrava no mar. Ela já devia saber que estava morrendo quando parti.
— Faça uma boa viagem, meu filho querido, ganhe nossa fortuna e escreva todas as semanas...
Se não fosse por ela, todos nós teríamos morrido; foi sua força que nos manteve vivos, até que Struan surgiu e mudou nosso destino.
Chorei até a última lágrima. Como ontem à noite, embora as lágrimas fossem diferentes. Estava chorando por minha inocência perdida. Não posso acreditar que tenha sido tão ingênuo a ponto de acreditar na “companhia”. Dirk teria me deixado na mão? Nunca. O tai-pan não me abandonaria, não poderia fazê-lo, mas ele é apenas uma lenda. Tenho de encontrar a coragem para me estabelecer por conta própria. Estou com trinta e nove anos, velho na Ásia, embora não me sinta velho, como um navio sem leme. E o mesmo ocorre com Malcolm... Ou será que não? Ele fitou-o, ainda notando a mudança. Malcolm está diferente, mais como era antes pensou Jamie. Mais adulto... isso é possível? Não sei, mas de qualquer maneira seu destino já foi determinado, como o meu.
— Fico contente por não termos violado a correspondência... Não tenho palavras para expressar o quanto lamento ela tê-lo bloqueado.
— Eu também.
Malcolm relatara a Jamie o que Sir William dissera sobre o aviso da chegada da carta, e também sobre o ópio e as plantações de Bengala, notícias que haviam se espalhado naquela manhã, deixando a colônia em frenesi. A reunião ao meio-dia no clube fora mais tumultuada que o habitual, com uma moção unânime para que Sir William fosse enforcado ou, no mínimo, afastado do posto, se tentasse impor a estupidez do Parlamento. Malcolm percebeu que Jamie sentia-se muito infeliz e mais uma vez ficou tentado a revelar o novo e maravilhoso fato chamado Gornt. Mas lembrou o juramento.
— Estou muito confiante agora, Jamie. Não se preocupe. Vai à Yoshiwara esta noite?
— Não imediatamente, embora precise ver Nemi. — Jamie sorriu, desconsolado. — Tomei uma bebedeira na noite passada e quero levar um presente para ela. Não que seja necessário, mas Nemi é uma ótima pessoa e me proporciona boas risadas. Primeiro, tenho de conversar com Nakama. Phillip pediu-me para ter uma reunião de meia hora com ele. Parece que Nakama interrogou-o sobre negócios e bancos, capital, essas coisas... Phillip quer que eu lhe explique os rudimentos.
— O que é bastante curioso.
— Também acho. O patife tem uma mente inquisitiva. É uma pena que não seja tão franco conosco.
— Negocie os seus conhecimentos por alguma coisa que queremos saber. Creio que terei uma conversinha com Phillip amanhã. Peça a ele para me procurar, está bem? — A voz de Malcolm endureceu. — Devemos partilhar todas as informações... não foi esse o acordo?
— Foi, sim. — Jamie terminou o conhaque. — Obrigado... e obrigado também pela conversa.
Ele se levantou e acrescentou, com absoluta sinceridade:
— Torço com todo o meu coração para que tudo dê certo para você, Malcolm.
— Sei disso, Jamie. Também vai dar certo para você. Boa noite.
No silêncio do aposento, Malcolm esticou as pernas na direção do fogo, contente, ansioso pelo dia seguinte, na expectativa do novo encontro com Gornt.
Qual poderia ser o preço? especulou ele, contemplando o fogo. Podia ouvir vozes dentro do prédio e também lá fora, na praia. Risos ocasionais, uma ou outra canção. John Marlowe o procurara naquela tarde, trazendo uma mensagem do comandante, se ele poderia ir à nave capitânia no dia seguinte, se não fosse inconveniente, ou então ao escritório de Sir William.
— Posso ir ao gabinete de Sir William. A que horas?
— Meio-dia?
— Combinado. Qual é o problema?
— Não sei — respondera Marlowe. — Mas aposto que não é para conversa sobre o tempo.
Desde que voltara da campanha na baía de Mirs e de Hong Kong, o almirante Ketterer se mostrava furioso com os comentários adversos e críticos nos jornais e ainda mais irritado porque canhões de fabricação britânica haviam disparado contra seus navios.
— Creio que ele não gostou nem um pouco de alguns dos comentários mais rudes na reunião de hoje.
— Ele é mesmo metido a brigão — disse Malcolm, rindo, ainda inebriado pelas informações de Gornt.
Marlowe rira também.
— Pelo amor de Deus, não diga isso em seu convés ou todo o navio explodiria! Antes que eu me esqueça, minha viagem de testes foi aprovada, para segunda ou terça-feira, o tempo permitindo. Qual é o melhor dia para vocês dois?
— Quanto tempo ficaremos no mar?
— Zarparemos ao amanhecer e voltaremos no máximo até o pôr-do-sol.
— Terça-feira.
Um carvão caiu da grade, mas sem qualquer conseqüência. Malcolm empurrou-o com o atiçador, remexeu as brasas. As chamas alaranjadas se elevaram um pouco, mas logo tornaram a morrer, projetando imagens. Imagens positivas. Suas e dela. Malcolm olhou para a porta de comunicação. Não vinha qualquer som do outro lado.
Gornt é a chave para Tess.
É irônico que ele precise de mim, tanto quanto preciso dele, e somos inimigos. Tenho o pressentimento de que sempre será assim. Qual será o seu preço? Deve ser alguma coisa que eu possa oferecer. Gornt é bastante sensato para pedir algo assim. Por que tenho tanta certeza? A vingança é um motivo forte demais, sei disso.
Na estalagem dos Lírios, Phillip Tyrer estava sendo massageado por uma corpulenta japonesa, com braços maciços, os dedos de aço encontrando os pontos de pressão, nos quais ela tocava, como se formassem um teclado, sob os seus gemidos de prazer. A casa não era tão refinada ou cara quanto a das Três Carpas, mas a massagem era a melhor que ele já recebera e servia para afastar seus pensamentos de Fujiko, Nakama, André Poncin e Sir William, que estivera furioso durante toda a manhã, culminando ao meio-dia, quando o veneno violento do clube quase explodira os telhados de Iocoama.
— Como se fosse culpa minha o Parlamento ter enlouquecido! — gritara Sir William à mesa do almoço, com a presença do almirante, igualmente furioso. — Acha que é, Phillip?
— Claro que não, Sir William — respondera ele, participante do almoço contra a sua vontade, o general como o terceiro convidado.
— O Parlamento sempre foi arbitrário e estúpido! Por que não deixa o Ministério do Exterior cuidar das colônias, e acabar logo com toda essa aflição? Quanto a essa gentalha, esses homens que se intitulam mercadores, só posso dizer que me deixam com vontade de vomitar!
O almirante resmungara:
— Cinqüenta vergastadas fariam com que todos entrassem na linha, por Deus! Todos, sem exceção, especialmente os jornalistas! São uns canalhas, todos eles!
O general declarara, presunçoso, ainda agastado pela descompostura que Sir William lhe passara por ocasião do motim:
— O que pode fazer, meu caro Sir William, a não ser suportar como um homem? E no seu caso, almirante, meu velho companheiro, estava realmente pedindo por isso, ao fazer declarações políticas em público. Sempre pensei que a primeira regra para quem se torna almirante ou assume as estrelas de general era a de manter a calma, ser circunspecto nas orações públicas e sofrer em silêncio.
O pescoço do almirante Ketterer se tornou púrpura. Sir William conseguiu interromper a salva seguinte, ao dizer:
— Phillip, tenho certeza que há uma abundância de trabalho à sua espera. Toda a correspondência precisa ser copiada e o protesto ao Bakufu deve ser despachado ainda hoje.
Ele escapara do almoço, agradecido. Nakama o cumprimentara com a maior afabilidade.
— Ah, Taira-sama, espero que esteja se sentindo melhor. Mama-san Raiko me pede para perguntar como está sua saúde, pois não foi ao encontro com Fujiko, que está em lágrimas... que estava em lágrimas e...
— Minha saúde está ótima. Passei momentos muito agradáveis ontem à noite, na estalagem dos Lírios — dissera ele, atônito ao constatar que as predições de André eram acuradas. — Fujiko? Começo a ter dúvidas sobre o contrato.
Ele ficara bastante satisfeito ao perceber o espanto de Nakama, e mais ainda porque podia usar seu susto pelo mau humor de Sir William durante a manhã e no almoço para implementar o plano de André.
— Mas, Taira-sama, eu...
— E não vamos mais falar em inglês, também não quero ouvir perguntas sobre negócios. Pode conversar com McFay-sama da Casa Nobre e ponto final...
Tyrer gemeu alto, quando a massagista apertou-o ainda mais fundo. Os dedos pararam no mesmo instante.
— Iyé, dozo... — murmurou ele, em japonês. — Não, por favor, não pare. A mulher riu e respondeu:
— Não se preocupe, lorde. Quando eu acabar de trabalhar este seu corpo pálido e sem força, estará preparado para três dos melhores lírios da casa.
Tyrer agradeceu, sem compreender, mas também não se importando com isso.
Depois de três horas com Nakama, conversando só em japonês, e de ouvir mais comentários dele sobre Raiko e sua estalagem — como André previra — sua cabeça girava.
Depois de algum tempo, a massagista iniciou os contatos calmantes, com mãos experientes, usando óleo aromático. Ao terminar, enrolou-o com uma toalha quente e se retirou. Tyrer cochilou, mas despertou no instante em que a porta de shoji foi aberta, uma moça entrou, ajoelhou-se ao seu lado. Ela sorriu, Tyrer retribuiu, disse que se sentia cansado, que ela apenas ficasse sentada ali, até que ele acordasse, seguindo as instruções de André. A moça acenou com a cabeça tornou a sorrir, muito contente. Receberia seus honorários de qualquer maneira.
André é um gênio, pensou ele, também contente, mergulhando num sono feliz.
Aquela noite foi a segunda vez que André visitou Hinodeh. Fazia exatamente dez dias, vinte e duas horas e sete minutos que ele a contemplara em toda a sua glória, a noite gravada em sua mente para sempre.
— Boa noite, Furansu-san — dissera ela, tímida, seu japonês melodioso. A ante-sala ficava junto à pequena varanda, o bangalô no meio dos jardins das Três Carpas, tão fragrante quanto a própria Hinodeh. Os dourados e marrons de seu quimono de inverno fizeram movimentos graciosos, quando ela se inclinara e gesticulara para a almofada à sua frente. Por trás dela, a shoji para o quarto se encontrava entreaberta, apenas o suficiente para que ele pudesse ver os futons e cobertas, que seriam o primeiro leito partilhado.
— O saquê está como fui informada que gostaria. Frio. Sempre toma saquê frio?
— Sempre. Gosto melhor assim.
Ele se descobrira a gaguejar, seu japonês saindo um tanto ríspido, as mãos pareciam atrapalhar, as palmas suadas. Ela sorrira.
— Esquisito tomar bebidas frias no inverno. Seu coração é frio no inverno e verão?
— Ah, Hinodeh — murmurara André, a pulsação ressoando nos ouvidos e garganta —, acho meu coração como pedra, por muito tempo agora, pensar em você, não saber se quente, frio, ou o quê. Você é linda.
— Só para o seu prazer.
— Raiko-san contar tudo a você sobre eu?
Os olhos de Hinodeh eram serenos, no rosto alvo, as sobrancelhas arrancadas, com meias-luas pintadas no lugar, a testa alta, bico-de-viúva, cabelos pretos, empilhados, presos com travessas de casco de tartaruga, que André logo ansiara em soltar.
— Esqueci o que Raiko-san me contou. O que você me disse antes da assinatura foi aceito e esquecido. Começamos esta noite. É o nosso primeiro encontro. Deve me falar sobre você, tudo o que quiser que eu saiba. — Os olhos dela absorveram um pouco de luz e se contraíram, divertidos. — Haverá bastante tempo, não é?
— Haverá, sim, por favor. Para sempre, eu espero.
Depois que todas as cláusulas do contrato haviam sido acertadas, ao longo dos dias e postas no papel, lidas e relidas, nos termos mais simples, para que ele pudesse entender, André estava pronto para assinar, na presença de Hinodeh e Raiko. Tivera de recorrer a toda a sua coragem:
— Hinodeh, por favor, desculpe, mas a verdade tem de ser dita. A pior.
— Por favor, não há necessidade. Raiko-san me contou.
— Sim, mas, por favor, desculpe...
As palavras saíram hesitantes, embora as tivesse ensaiado uma dúzia de vezes, novas ondas de náusea invadindo-o.
— Devo dizer uma coisa: peguei doença ruim de minha amante, Hana. Sem cura possível, sinto muito. Nenhuma. Você pegar também, se virar minha consorte, sinto muito.
O céu invisível parecera se abrir para ele, enquanto esperava.
— Compreendo e aceito isso, escrevi no contrato que o absolvo de qualquer culpa em relação a nós, entende?
— Ah, culpa, entendo culpa. Obrigado...
Ele tivera de pedir licença, saíra correndo, com uma náusea violenta, mais nauseado que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida, mais do que ao descobrir que estava doente ou depois que encontrara Hana morta. Não se desculpara ao voltar, nem uma desculpa era esperada. As mulheres compreendiam.
— Antes de eu assinar, Furansu-san — dissera ela —, é importante para mim perguntar se promete me dar a faca ou veneno, como está acertado no contrato?
— Sim..
— Obrigada. Ambas as coisas importantes não precisam ser mencionadas de novo. Concorda, por favor?
— Sim — murmurara ele, abençoando-a.
— Então está tudo resolvido. Pronto, já assinei. Assine também, Furansu-san. Raiko-san é nossa testemunha. Ela diz que nossa casa ficará pronta em três dias. No quarto dia, a contar de hoje, me sentirei honrada em recebê-lo.
No quarto dia, sentado diante dela, no refúgio particular dos dois, André ficara atordoado com sua beleza, os lampiões a óleo brilhantes, mas não em excesso.
— Esta casa agradar você, Hinodeh? — indagara ele, tentando parecer interessado, mas apenas obcecado por tê-la sem adornos.
— É mais importante que lhe agrade, Furansu-san.
André sabia que ela apenas fazia aquilo para o que fora treinada, suas respostas ações seriam automáticas, empenhando-se ao máximo para deixá-lo à vontade, independentemente do que sentisse por dentro. Com a maioria dos homens japoneses, ele podia em geral perceber o que pensavam, mas isso quase nunca acontecia com as mulheres... mas também o mesmo ocorre com a maioria das mulheres francesas, pensara ele. As mulheres são muito mais reservadas do que os homens, e também muito mais práticas.
Hinodeh parecia muito serena, sentada ali, imóvel, refletira André. Ela está vulcânica, triste, apavorada... ou com tanto medo e aversão que se tornou entorpecida?
Mãe Santa, perdoe, mas não me importo, não no momento, talvez mais tarde me importe, mas não agora.
Por que ela concordara? Por quê?
Mas isso nunca deve ser perguntado. Jamais. É difícil obedecer a essa cláusula, mas é um tempero adicional, ou a questão que vai me destruir... destruir a nós. Ora, que se dane, tenho de me apressar!
— Gostaria de comer?
— No momento, eu... não sentir fome.
André não conseguia desviar os olhos da moça, nem ocultar seu desejo. O suor escorria pelo corpo.
O sorriso de Hinodeh não se alterara. Um suspiro. Depois, cada movimento lento, os dedos compridos soltaram a obi, ela se levantara, deixara o quimono exterior cair, durante todo o tempo observando-o, tranqüila como uma estátua. O quimono interno também caíra, em seguida a primeira combinação, a segunda, e finalmente a tanga. Ela se virara sem pressa, mostrando-se, parada de frente. Perfeita em tudo.
Mal respirando, André a contemplara a se ajoelhar, pegar seu copo, tomar um gole, mais outro, a pulsação em sua cabeça, pescoço e virilha o pressionando ao limite do controle.
Planejara ao longo dos dias ser galante com as palavras, gestos e movimentos, gaulês e japonês, vivido e prático, o melhor amante que ela já tivera, que jamais teria, sem arrependimentos, que a primeira união fosse uma experiência memorável e maravilhosa. Fora memorável, mas não maravilhosa. Sua vontade ruíra. Agarrara Hinodeh, levara-a às pressas para os futons, e ali se mostrara subumano.
Não a via desde aquela noite, nem a Raiko, evitando-as, abstendo-se de visitar a Yoshiwara. Enviara uma mensagem a Hinodeh no dia seguinte, dizendo que a informaria quando tencionava visitá-la de novo. No intervalo, efetuara outro pagamento em ouro a Raiko, seu salário comprometido por dois anos para cobrir o preço do contrato... e mais ainda.
Ontem, mandara avisar que a visitaria esta noite.
Ele hesitou, no limiar da varanda. Telas de shoji fechadas para a noite. Uma luz dourada no interior parecia chamá-lo. Sua pulsação era disparada; como antes, sentia um aperto na garganta. Vozes interiores se manifestavam, com uma linguagem vil contra ele, clamando que fosse embora, que se matasse... qualquer coisa para evitar os olhos de Hinodeh, a repulsiva imagem refletida de si mesmo que havia ali. Deixe-a em paz!
Todo o seu ser queria fugir, e todo o seu ser queria possuí-la outra vez, de qualquer maneira, por todas as maneiras, pior do que antes, qualquer que fosse o custo, odiando a si mesmo, melhor morrer, acabar com tudo, mas primeiro ela. Não posso evitar.
André forçou os pés a saírem dos sapatos, abriu a porta. Ela se encontrava ajoelhada, exatamente como antes, com a mesma roupa, o mesmo sorriso, a mesma beleza, a mesma mão delicada gesticulando para que ele sentasse, a mesma voz gentil.
— O saquê está como fui informada que gostaria. Frio. Sempre toma saquê frio?
Ele ficou boquiaberto. Os olhos que exprimiam tanto ódio, quando se afastara cambaleando na última vez, agora sorriam, com a doce timidez do primeiro momento.
— Como?
E ela repetiu, como se nunca tivesse falado antes, no mesmo tom:
— O saquê está como fui informada que gostaria. Frio. Sempre toma saquê frio?
— Eu... hum... sim.
André mal ouviu suas palavras, com um troar nos ouvidos. Ela sorriu.
— Esquisito tomar bebidas frias no inverno. Seu coração é frio no inverno e no verão?
Como um papagaio, ele balbuciou as respostas corretas, não encontrando qualquer dificuldade para recordar cada palavra e acontecimento, gravados de forma indelével; e embora sua voz fosse trêmula, Hinodeh parecia não ouvir, apenas se comportava como antes, os olhos serenos.
Nada mudara.
— Gostaria de comer?
— No momento, eu... não sentir fome.
O sorriso de Hinodeh não foi diferente. Nem o suspiro. Ela se levantou. Mas agora apagou os lampiões a óleo, foi para o quarto, apagou também os que haviam ali.
Quando seus olhos ajustaram-se à escuridão, André constatou que havia apenas uma claridade mínima do lampião na varanda, passando pelas telas de shoji, mal dava para divisar os contornos de Hinodeh. Ela estava se despindo. Momentos depois, o som das cobertas sendo puxadas.
André se levantou com algum esforço, foi para o quarto, sabendo que ela tentava salvar as aparências, enquanto ele queria apagar o que nunca poderia ser apagado.
— Da minha mente, nunca — sussurrou ele, dominado pela angústia, o rosto molhado pelas lágrimas. — Não sei sobre você, Hinodeh, mas eu jamais esqueci. Sinto muito, mas muito mesmo. Mon Dieu, como eu gostaria...
— Nan desu ka, Furansu-sama?
André demorou um pouco para se ajustar ao uso do japonês, e depois balbuciou:
— Hinodeh, eu dizer... apenas agradecer, Hinodeh. Por favor, desculpe, sinto muito...
— Mas não há nada para desculpar. Esta noite começamos. É o nosso princípio.
36
Quarta-feira, 3 de dezembro:
Hiraga percebeu seu reflexo de passagem na janela do açougue e não se reconheceu. Os transeuntes na High Street mal o notavam. Ele voltou, contemplou a imagem meio difusa... seu novo disfarce. Cartola, colarinho alto e gravata, uma sobrecasaca de ombros largos e apertada na cintura, de casimira escura, colete de seda azul, atravessado por uma corrente de aço inoxidável, ligada ao relógio de algibeira, calça justa, botinas de couro. Tudo presente do governo de sua majestade, exceto o relógio, dado por Tyrer... pelos serviços prestados. Hiraga tirou a cartola, tornou a se contemplar, de um lado e de outro. Agora os cabelos cobriam toda a cabeça, crescendo depressa, ainda não tão compridos quanto os de Phillip Tyrer, mas sem dúvida bastante longos para serem considerados europeus. Rosto raspado. A qualidade e o baixo custo das lâminas britânicas haviam-no impressionado bastante, outro exemplo espetacular das proezas industriais.
Ele sorriu para si mesmo, satisfeito com o disfarce, puxou o relógio, admirando-o, verificou a hora: 11:16 h. Como se dezesseis minutos importassem, pensou Hiraga, desdenhoso, embora contente por ter aprendido tão depressa o sistema de determinar a hora dos gai-jin. Aprendi muita coisa. Ainda não o suficiente, mas já é um começo.
— Não quer comprar um bom pernil de carneiro australiano congelado, que veio do porão de gelo do navio de correspondência? Ou que tal um bom toucinho de Hong Kong?
O açougueiro era barrigudo, careca, com braços que pareciam canhões e avental todo manchado de sangue.
— Como? — Hiraga notou as carnes e vísceras penduradas no outro lado da janela, com seus enxames de moscas. — Não, obrigado. Eu apenas olhando. Bom dia, senhor.
Ele esforçou-se para ocultar sua repulsa. Com um floreio, repôs a cartola na cabeça, do jeito como Tyrer ensinara, e continuou a descer pela High Street, na direção da cidade dos bêbados e da aldeia. A todo instante, levantava a cartola polidamente para outros pedestres e cavaleiros, que respondiam da mesma forma. Isso o agradou ainda mais, porque significava aceitação, pelos padrões dos gai-jin, muito diferentes dos costumes japoneses... dos padrões civilizados.
Tolos. Só porque uso suas roupas, e começo a me comportar como eles, pensam que mudei. Ainda são o inimigo, até mesmo Taira. Uma estupidez de Taira mudar de idéia em relação a Fujiko. O que há com ele? Isso não se ajusta ao meu plano.
Hiraga avistou Struan, saindo de seu prédio, claudicando, junto com Jamie McFay, a mulher de Ori entre os dois, numa conversa animada. O que o lembrou de seu encontro com o número dois da Casa Nobre. Sua cabeça ainda girava dos fatos e números ocidentais e ainda se sentia tonto de todas as informações que McFay lhe arrancara, sobre os emprestadores de dinheiro e mercadores de arroz, como a Gyokoyama.
— Jami-san, talvez encontrar um desses homens, se segredo — dissera ele, em desespero para escapar. — Eu intérprete se guardar segredo.
O shoya o esperava. Percebendo a ansiedade do homem em saber de tudo o que descobrira, Hiraga brincou com ele, aceitou o oferecimento de uma massagem. Depois, relaxado numa yukata, e durante um almoço requintado de arroz, lula seca, fatias tão finas quanto folhas de papel de perca-do-mar com soja, daikon — rábano — e saquê, ele disse que conversara com importantes gai-jin, e que haviam respondido às suas perguntas. Tomou um gole de saquê, sem acrescentar mais nada. Informações importantes precisavam de encorajamento. Reciprocidade.
— Quais são as notícias de Quioto?
— É tudo muito estranho — comentou o shoya, contente por receber aquela abertura. — Meus superiores informaram que o xógum e a princesa Yazu chegaram sãos e salvos e já se encontram no interior do palácio. Mais três emboscadas de patrulhas de Ogama a grupos de shishi... não, sinto muito, ainda não tenho detalhes de quantos foram mortos. Lorde Ogama e lorde Yoshi quase não saem de trás de seus muros... Mas samurais do xogunato agora guardam os portões, como no passado.
Os olhos de Hiraga se arregalaram.
— É mesmo?
— É, sim, Otami-sama. — O shoya ficou deliciado por a isca ter sido mordida. — Por mais estranho que possa parecer, há patrulhas secretas de samurais de Ogama nas proximidades e, de vez em quando, os capitães conferenciam em segredo.
Hiraga soltou um grunhido.
— Curioso...
O shoya balançou a cabeça e deu um puxão na linha, como bom pescador que era.
— Ah, sim... talvez não seja de grande importância para você, mas meus superiores acreditam que os dois shishi que mencionei antes, Katsumata e o shishi de Choshu chamado Takeda, escaparam à captura em Quioto e agora viajam pela Tokaidô.
— Para Iedo?
— Meus superiores não disseram. É óbvio que a notícia não tem qualquer valor.
O shoya tomou outro gole de saquê, escondendo seu divertimento pela tentativa de Hiraga de encobrir seu interesse intenso.
— Qualquer coisa relacionada com os shishi pode ser de significado.
— Neste caso... embora seja insensato relatar rumores — disse o shoya simulando embaraço e julgando o momento oportuno para puxar o peixe para terra —, eles avisam que circula uma história pelas estalagens de Quioto de que uma terceira pessoa também escapou da primeira emboscada. Uma mulher, samurai, hábil na arte do shuriken... o que foi, Otami-sama?
— Nada, nada... — Hiraga fez um esforço para manter a compostura, mil perguntas ricocheteando em sua mente. Apenas uma mulher samurai na escola de Katsumata já adquirira essa habilidade. — O que estava dizendo, shoya? Uma mulher de linhagem samurai escapou?
— É apenas um rumor, Otami-sama. Uma tolice. Saquê?
— Obrigado. Essa mulher... dizem mais alguma coisa a seu respeito?
— Não. Mal vale a pena relatar rumor tão tolo.
— Talvez possa descobrir se essa bobagem tem algum fundo de verdade. Eu gostaria de saber. Por favor.
— Neste caso... — murmurou o shoya, registrando a grande concessão do “por favor”, com um vestígio de humildade na voz. — Qualquer serviço para você e sua família, clientes valiosos, é uma honra para a Gyokoyama.
— Obrigado.
Hiraga terminou seu saquê. Sumomo estivera em Quioto com Katsumata. Onde ela se encontra agora? Por que não foi para Shimonoseki, como ordenei? 0 que fazia em Quioto? E onde está agora?
Em retribuição, e com algum esforço ele pôs essas e outras indagações de lado, para análise posterior, e tratou de se concentrar. Tirou do bolso um maço de anotações e começou a explicar, repetindo em parte o que “Taira” e “Mukfey’ haviam lhe dito, ao longo de horas. O shoya escutou com uma total atenção, grato porque a esposa os ouvia escondida e anotava tudo.
Quando Hiraga discorreu sobre empréstimos, financiamentos e atividades bancárias — não dava para entender a maior parte do que ele disse —, o shoya-impressionado com sua memória e percepção de coisas que lhe eram completamente estranhas, não pôde deixar de comentar:
— Extraordinário, Otami-sama.
— Outra questão importante. — Hiraga respirou fundo. — Mukfey disse que os gai-jin têm uma espécie de mercado, shoya, um stoku markit, onde as únicas mercadorias negociadas, compradas e vendidas, são pequenos pedaços de papel impressos, chamados stoku ou sheru, que de alguma forma representam dinheiro, grandes quantidades de dinheiro, cada stoku sendo parte de uma kompeni.
Ele tomou um pouco de chá. Constatando a falta de compreensão do shoya, respirou fundo outra vez.
— Digamos que o daimio Ogama deu toda Choshu, toda a terra e produto da terra a uma kompeni, a Choshu Kompeni, e determinou que a kompeni fosse dividida em dez mil partes iguais, dez mil sheru, entende?
— Eu... acho que sim. Por favor, continue.
— Assim, a stoku da Choshu Kompeni é dez mil sheru. Em seguida, o daimio, por conta da kompeni, oferece todas ou parte das sheru para alguém com dinheiro. Em troca de seu dinheiro, o homem ou mulher recebe esse pedaço de papel dizendo quantas sheru da Choshu Kompeni ele comprou. A pessoa possui assim essa parte da kompeni e, com isso, a mesma proporção de sua riqueza. O dinheiro que ele e outros pagam para a kompeni se torna então o kaipital, acho que foi isso que Mukfey disse, o dinheiro que eles precisavam para dirigir e melhorar a riqueza da kompeni, para pagar estipêndios, reivindicar terras, comprar armas, sementes, melhorar barcos de pesca, para pagar qualquer coisa que seja necessária para aumentar e fazer Choshu prosperar, para tornar mais alto o valor da kompeni.
Hiraga fez uma pausa.
— Mufkey explicou que... Ele disse que em qualquer mercado, shoya, os preços mudam, em tempos de fome até todos os dias, não é mesmo? É o que também acontece todos os dias nesse stoku markit, com centenas de diferentes kompeni, compradores e vendedores. Se a colheita de Choshu é enorme, o valor de cada parte da Choshu Kompeni será alto, se for pequena, fica baixo. O valor de cada sheru também varia. Está entendendo?
— Acho que sim — murmurou o shoya, compreendendo tudo muito bem, discretamente entusiasmado, cheio de idéias e perguntas.
— Ótimo.
Hiraga sentia-se cansado, mas fascinado por aquelas novas idéias, embora às vezes se perdesse em seu labirinto. Nunca barganhara num mercado, ou numa estalagem, apenas pagava o que lhe pediam, quando pediam, nunca em toda a sua vida protestara contra o custo de qualquer coisa ou pelo valor de uma conta... exceto desde que se tornara ronin. As contas eram sempre enviadas para quem recebia seu estipêndio, se você era um samurai. Se solteiro, normalmente para sua mãe. Comprar e cuidar do dinheiro era trabalho de mulher, nunca de homem.
Você comia o que ela — mãe, tia, avó, irmã ou esposa — comprava com seu estipêndio, vestia ou se armava da mesma maneira. Sem estipêndio, passava fome, você e sua família, ou se tornava ronin, ou tinha de renunciar voluntariamente à condição de samurai e se tornar camponês, um trabalhador, senão pior ainda, um mercador.
— Shoya — disse ele, franzindo o rosto —, os preços variam num mercado de comida ou peixe. Mas quem decide o preço?
A guilda de pescadores ou camponeses, o shoya poderia responder, ou mais provavelmente os mercadores, que possuíam de fato a produção, tendo emprestado o dinheiro para comprar as redes ou sementes. Mas ele era cauteloso demais, e a maior parte de sua energia se concentrava em tentar se manter impassível, diante de tantas informações de valor inestimável, mesmo que incompletas.
— Se há muitos peixes, são mais baratos do que na ocasião em que há poucos. Depende da pescaria ou da colheita.
Hiraga balançou a cabeça. Era evidente que o shoya estava sendo desonesto escondendo a verdade ou distorcendo-a. Mas isso é apenas o normal para mercadores e emprestadores de dinheiro, pensou ele, decidindo de repente manter em reserva qualquer encontro entre Mukfey e aquele homem, e também deixar para mais tarde a última informação sobre kompeni, que por algum motivo não podia compreender, e o intrigava mais do que o resto: que se fosse você quem formava a kompeni, decidia quantas stoku reservava para si mesmo, sem pagamento, e se o número equivalesse a cinqüenta e um ou mais de cada cem, então você tinha o poder sobre a kompeni. Mas por que...
Sua cabeça quase explodiu com a súbita compreensão: Sem nenhum desembolso, você se toma o xógum da kompeni, e quanto maior a kompeni, maior o xógum... sem desembolso!
Quando sonno-joi for um fato, pensou ele, nós — o conselho de samurais — vamos recomendar ao imperador que apenas o nosso conselho poderá formar kompeni, e assim, depois de tanto tempo, vamos controlar todos os parasitas, os mercadores e emprestadores de dinheiro!
— Otami-sama — disse o shoya, sem ter percebido qualquer mudança em Hiraga, sua própria mente em turbilhão pelas maravilhosas informações que obtivera —, meus superiores ficarão muito agradecidos, tanto quanto eu. Depois que conseguirmos avaliar todos os seus brilhantes pensamentos e idéias, eu poderia ter uma oportunidade de fazer umas poucas perguntas insignificantes?
— Claro — respondeu Hiraga, exultante com o futuro róseo. Quanto mais perguntas, melhor... pois me obrigarão a compreender primeiro. — Talvez quando tiver mais notícias sobre Ogama e Yoshi, ou os shishi, ou aquela mulher. Shuriken, você disse?
— Farei o melhor que puder — respondeu o shoya, sabendo que um acordo fora fechado. Depois, sua mente levou-o de volta a uma peça essencial do quebra-cabeça que estava faltando. — Por favor, posso perguntar o que é essa kompeni! E como parece?
— Não sei — respondeu Hiraga, também perplexo.
— Ainda bem que foi pontual, Sr. Struan — disse o almirante Ketterer, ríspido.
— Não é o normal para... hum... mercadores. — Ele ia dizer “vendeiros”, mas decidiu que havia tempo mais tarde para uma salva. — Sente-se, por favor. Aceita um xerez?
— Um seco. Obrigado, almirante.
O ordenança serviu um copo, reabasteceu o porto do almirante e se retirou. Eles levantaram o copo, sem qualquer cordialidade. Não havia outros papéis na mesa além de um documento oficial, um envelope aberto, e uma carta. Malcolm reconheceu a letra da mãe.
— Em que posso servi-lo? — perguntou ele.
— Sabe que alguns dos meus marujos foram mortos por piratas chineses, disparando canhões britânicos baseados na praia, durante o combate na baía de Mirs. Canhões britânicos.
— Já li os relatórios a respeito, mas não sei com certeza se eram mesmo de fabricação britânica.
— Pois eu tenho. Certifiquei-me pessoalmente. — Irritado, o almirante pegou o documento. — A investigação inicial do governador sugere que os prováveis culpados foram a Struan ou a Brock.
Malcolm sustentou sem medo o olhar do homem mais velho, de rosto corado.
— Ele pode sugerir o que quiser, almirante, mas é melhor que qualquer acusação formal esteja sustentada por provas, ou ficaríamos muito aborrecidos, e os Brocks apopléticos. Não estou a par de nenhum negócio assim e, de qualquer forma, a venda de armamentos não é proibida pelo Parlamento. Norbert Greyforth sabe de alguma coisa?
Jamie o avisara que Greyforth também fora convocado pelo almirante, às dez e meia, mas só aparecera às onze horas, e que a reunião durara apenas três minutos. O pescoço de Ketterer ficou vermelho, ao recordar a reação inflamada de Greyforth.
— Não. Aquele... aquele sujeitinho impertinente recusou-se a discutir o assunto. E você?
— Não sei o que quer discutir, almirante.
— A questão da importação e venda de armamentos para os nativos aqui. E navios de guerra. E ópio.
Malcolm disse, com o maior cuidado:
— Somos mercadores na China e negociamos de acordo com as leis britânicas. Nenhuma dessas mercadorias é proibida por lei.
— O ópio em breve será.
— Quando isso acontecer, deixará de ser negociado.
— É contra a lei chinesa, agora, e contra a lei nativa aqui!
— A Struan não negocia ópio aqui, deixe-me repetir, não negocia ópio aqui, embora não seja contra a lei britânica.
— Mas reconhece que o comércio é pernicioso e imoral.
— Reconheço, mas no momento é aprovado pelo governo de sua majestade e, infelizmente, é a única mercadoria que podemos negociar pelo chá da China, do qual o Parlamento obtém enormes tributos.
— Conheço muito bem o problema da China. Gostaria que você e sua companhia se antecipassem à lei agora, concordando voluntariamente em nunca importarem ópio para o Japão.
— Não estamos negociando ópio aqui.
— Ainda bem. Se eu descobrir navios transportando ópio, tenciono confiscar a carga e o navio.
— Eu diria que seria um risco legal, almirante. Sir William concordou ou aprovou sua intenção?
— Ainda não. Eu gostaria que você e os outros... mercadores fizessem isso de bom grado. E que o mesmo acontecesse com os fuzis de carregar pela culatra, cartuchos, canhões e navios de guerra.
— Greyforth concordou com uma proposta tão espantosa?
O pescoço tornou a ficar vermelho.
— Não.
Malcolm pensou por um momento. Ele e Jamie haviam concluído antes que seria esse o tema da reunião com o almirante. E mais a carta de sua mãe.
— Teremos uma reunião com Sir William dentro de poucos dias — disse ele. — Eu me sentiria honrado se comparecesse, como meu convidado especial. Todos os mercadores ouviriam o que tem a dizer.
— Minhas posições já são bem conhecidas. Vocês, entre todas as pessoas, deveriam saber de que lado do pão está a manteiga, que sem a esquadra para protegê-los e às suas rotas comerciais, ficariam desamparados. Se abastecem os nativos com canhões, ameaçam a marinha real, ajudam a afundar seus próprios navios, assassinam seus compatriotas e se expõem à ruína!
— Se tomar o exemplo da China ou de qualquer outro...
— É justamente o meu ponto, Sr. Struan! — exclamou o almirante. — Se os nativos não tivessem nossos armamentos, o motim nunca teria ocorrido, as revoltas por toda parte seriam contidas mais depressa, os selvagens no mundo inteiro poderiam ser educados com mais facilidade, o comércio útil seria conduzido em paz e a ordem no mundo floresceria, sob a benevolência da Pax Britannica. E piratas miseráveis não teriam os meios de disparar contra a minha nave capitânia! E sem a marinha real dominando os mares, não há Pax Britannica, não há império britânico, nem comércio, e voltaremos à idade das trevas!
— Confidencialmente, tem toda razão, almirante — disse Malcolm, com um fervor simulado.
Ele seguia o conselho de tio Chen:
— Quando um mandarim está furioso com você, por qualquer motivo, trate logo de concordar “confidencialmente” que ele tem toda razão. Sempre poderá assassiná-lo mais tarde, quando ele estiver dormindo.
Ao longo dos anos, eleja se envolvera na mesma discussão com o exército, marinha e representantes do governo. E testemunhara o pai e a mãe discutindo, o pai pelo livre comércio, a mãe pela moralidade, o pai esbravejando sobre o insolúvel triângulo do ópio, a mãe veemente contra o ópio mesmo assim — e também contra a venda de armas —, a verdade dos dois lados, ambos inflexíveis, a discussão sempre terminando com o pai bebendo até o estupor, a mãe sorrindo, com aquele seu sorriso fixo e irritante, que nada podia dissipar, e sempre a farpa final do pai:
— Meu velho... e seu príncipe encantado... o grande demônio de olhos verdes Dirk foi quem iniciou o comércio, com isso prosperamos e que Deus nos ajude!
Muitas vezes ele especulara — mas nunca ousara perguntar — se a mãe realmente era apaixonada pelo pai, em vez do filho, e só aceitara o filho porque não podia ter o pai. Sabia que nunca perguntaria, e se o fizesse, ela apenas exibiria aquele seu sorriso fixo e responderia: “Ora, Malcolm, não seja absurdo.”
— Confidencialmente, tem toda razão, almirante — repetiu ele.
Ketterer tomou o resto do porto em seu copo, serviu-se de mais.
— Já é alguma coisa, por Deus! — O almirante levantou os olhos. — Sendo assim, vai providenciar para que a Struan não se empenhe na venda de armas aqui?
— Claro que vou levar em consideração tudo o que disse e consultar os outros mercadores.
Ketterer tirou um lenço do bolso, assoou o nariz, aspirou uma pitada de rapé, espirrou, tornou a assoar o nariz. Depois que a cabeça desanuviou, os olhos irados fitaram o jovem, irritado por não perceber qualquer enfraquecimento.
— Pois então deixe-me expor o problema de outra maneira. Confidencialmente, você concorda que ajudar os japas a adquirir canhões, canhões britânicos, qualquer maldito canhão, ou navios de guerra britânicos, é uma estupidez?
— Se eles tivessem uma marinha comparável à nossa seria um er...
— Um desastre! Um desastre total e uma estupidez!
— Concordo.
— Ótimo. Gostaria que persuadisse todos os outros mercadores a partilhar de sua opinião: nada de armas de fogo aqui, canhões em particular, nem ópio. Confidencialmente, é claro.
— Terei o maior prazer em expor essas opiniões, almirante.
Ketterer soltou uma risada. Malcolm começou a se levantar, não querendo ser acuado.
— Um momento, Sr. Struan. Mais outro assunto, antes de se retirar. Um assunto particular. — O almirante gesticulou para o envelope e a carta na mesa. — Aquilo. Da Sra. Struan. Já sabe do que se trata?
— Sei, sim.
Ketterer empurrou a carta para o centro da mesa.
— Sua Casa Nobre é supostamente a primeira da Ásia, embora eu tenha sido informado que a Brock começa a ultrapassá-la agora. Mas não importa qual tenha a Primazia, podem ser um conduto para o bem. Eu gostaria que você e sua companhia estivessem comigo nesta causa justa. Muito justa, Sr. Struan.
Exasperado, Malcolm não disse nada, considerando que já respondera, e não se sentia disposto a ouvir outro sermão. Incisivo, Ketterer acrescentou:
— Confidencialmente, aqui entre nós, não costumo aceitar cartas assim de visitantes, em circunstâncias normais. Nem é preciso dizer que as regras e regulamentos a marinha real só interessam à marinha real. — Um gole do porto, um arroto reprimido. — O jovem Marlowe convidou-o e... à sua noiva para viajarem no Pearl, durante sua viagem de testes. Na terça-feira. Pelo dia inteiro. — Os olhos penetraram fundo pelos de Malcolm. — Não é verdade?
— É, sim, senhor — murmurou Struan, a mente em espasmo, com a sensação de que fora traído pelos ouvidos.
— Claro que minha permissão é necessária. — O almirante deixou a frase flutuar no ar, antes de acrescentar: — Por falar nisso, Sr. Struan, esse tencionado duelo é desaconselhável, e muito.
Malcolm piscou aturdido pelo non sequitur, e tentou se concentrar, enquanto o almirante continuava:
— Por mais que o tal de Greyforth mereça ser mandado desta para a melhor o mais depressa possível, duelar é contra a lei e uma imprudência, sempre pode haver erros. E terríveis. Entendido?
— Sim, senhor. Obrigado pelo conselho, mas estava dizendo...
— Obrigado, Sr. Struan — disse o almirante, levantando-se. — Obrigado por ter vindo me falar. Tenha um bom dia.
Atordoado, Malcolm também se levantou, sem saber se entendera direito.
— Quis dizer que eu...
— Quis dizer apenas o que falei, senhor. — A voz era cáustica, incisiva. — Assim como disse, confidencialmente, que levará em consideração tudo o que falei, também devo ressaltar, confidencialmente, que levarei em consideração tudo o que falar e fizer... até a meia-noite de segunda-feira. Tenha um bom dia.
Lá fora, o ar era puro e agradável, não havia complicações. Malcolm respirou fundo, várias vezes, até que sua força espalhou-se pela cabeça e peito. Esgotado e exultante, arriou no primeiro banco, e ficou olhando fixamente para a esquadra, sem vê-la.
Será que entendi Ketterer direito, Malcolm perguntou a si mesmo, muitas vezes, transbordando de esperança, ele pode estar mesmo disposto a esquecer a carta da mãe, dar permissão a Marlowe de nos receber a bordo e não proibi-lo de nos casar?
— Ketterer repisou o “confidencialmente” — murmurou Malcolm — e acentuou o “aqui entre nós”.
Isso significa que ele vai se manter quieto, se eu fizer a minha parte? O que posso fazer e dizer, antes da noite de segunda-feira, para persuadir o patife, pois é isso que ele é, um chantagista sem moral?
Besteira! É um negócio — ele me ofereceu um acordo —, um negócio maravilhoso para mim, e sem nada de ruim para ele. Eu teria de ser cuidadoso, os outros mercadores não aceitarão de bom grado um embargo voluntário. E tudo terá de ser feito às claras, porque o homem é esperto e não vai se satisfazer com meras promessas.
Em quem posso confiar com essa nova reviravolta no emaranhado da minha vida? Heavenly, Jamie? Marlowe? Claro que ele não. Angel? Não. Não ela. Se tio Chen estivesse aqui, seria ele, mas acontece que não está. Quem, então? Ninguém. É melhor não contar a ninguém!
Tem de fazer tudo sozinho... não é isso o que a mãe comentou que Dirk sempre dizia ao pai sobre ser o tai-pan? “É ficar sozinho, assumir a responsabilidade sozinho essa é a alegria e o sofrimento.” O que posso fazer sobre os canhões e...
— Boa tarde, Sr. Struan.
— Como? Ah, olá, Sr. Gornt.
— Parecia tão triste que não pude deixar de interrompê-lo.
— Não, não estou triste — murmurou Malcolm, cansado. — Apenas pensava.
— Desculpe. Neste caso, é melhor eu deixá-lo sozinho de novo, senhor.
— Não, por favor. Sente-se. Falou num preço, não é mesmo?
Edward Gornt acenou com a cabeça.
— Peço desculpas por não procurá-lo antes, senhor, mas acontece que o Sr. Greyforth não queria... ver a luz. Agora ele concorda com pistolas, pistolas de duelo de cano duplo, e um tiro ou dois, à sua escolha, a vinte passos.
— Ótimo. Que mais?
— Tentei dissuadi-lo do duelo, mas ele insistiu: “Não, a menos que Malcolm Struan peça desculpas publicamente.” Ou outras palavras com esse sentido.
— Certo. Mas vamos falar do outro assunto. Não há paredes ou portas aqui. — Malcolm gesticulou para o passeio quase deserto. — O preço?
— Também achei que este lugar era perfeito, mas não podemos passar muito tempo aqui e precisamos tomar cuidado, pois o Sr. Greyforth pode estar nos observando com um binóculo.
— E está?
— Não sei com certeza, senhor, mas sou capaz de apostar que sim.
— Vamos deixar a conversa para outro lugar? Mais tarde?
— Não. Aqui está bom. Mas ele é muito astuto, e não quero que fique desconfiado. O preço: se minha informação ajudar a frustrar o plano de Morgan para destruí-los, e levar os Brocks à bancarrota.
— Conhece os detalhes?
Gornt riu baixinho.
— Conheço, e muito bem, embora nem Morgan nem o Velho Brock saibam que eu sei. Nem o Sr. Greyforth. — Ele baixou a voz ainda mais, os lábios mal se movendo. — Tudo isso deve ser mantido em segredo entre nós, mas o preço é você liquidar Morgan Brock, pressioná-lo até a bancarrota, levá-lo à prisão, se for Possível... e se for necessário acabar com Tyler também, não me importo, mas dos destroços vai garantir que terei cinqüenta por cento de participação na Rothwell, livres e desimpedidos. Também terá de me ajudar a levantar no Victoria Bank os recursos necessários para comprar a metade de Jeff Cooper. Durante dez anos, não vai me pressionar de outra forma que não como um concorrente normal, proporcionando-me a condição de nação favorecida em todos os negócios... tudo constando de um contrato, escrito e assinado por você. Depois de dez anos, pode tirar as luvas.
— Concordo — respondeu Malcolm no mesmo instante, pois esperava por condições mais difíceis. — Mas os miseráveis do Victoria não são nossos amigos. Foi Brock quem iniciou o banco, e sempre nos excluiu. Portanto, não seremos de grande ajuda nesse ponto.
— Tal situação vai mudar em breve, senhor. Daqui a pouco todos os diretores vão peidar, se lhes disser peidem. Tudo isso deve ser mantido em segredo, é claro. O que planeja fazer depois do duelo?
Malcolm não hesitou, embora estranhasse poder confiar naquele homem tão depressa, e falou sobre o embarque no Prancing Cloud.
— Parto do pressuposto que serei o vencedor e não ficarei gravemente ferido. — Uma pausa e ele acrescentou, confiante: — Depois que chegar a Hong Kong, poderei esfriar as coisas.
— Tem condições de atirar direito apoiado nas bengalas?
— Uma é suficiente para me equilibrar por tão pouco tempo. — Malcolm sorriu. — Tenho praticado.
— Quero propor agora uma manobra para evitar as repercussões legais. Deu certo na Virgínia e o mesmo deve acontecer aqui, caso qualquer dos dois seja morto. Cada um escreve uma carta para o outro, datada e entregue na noite anterior ao duelo, dizendo que concordam, por consenso mútuo, em cancelar o duelo, e que “num encontro amanhã, na terra de ninguém, ambos aceitarão, como cavalheiros, um pedido de desculpas mútuo e simultâneo”. — Gornt sorriu. — Nós, os padrinhos, vamos testemunhar que, tragicamente, enquanto mostravam suas pistolas um ao outro, uma delas disparou, num lamentável acidente.
— Uma boa idéia. Norbert concordou?
— Concordou. Eu lhe entregarei a carta dele na terça-feira. Mande a sua pelo Sr. McFay. Mas é melhor manter em segredo, pois se trata de um estratagema.
“Terça-feira” continuava ecoando na mente de Malcolm, mas ele forçou para o lado. Gornt dizia, descontraído:
— Depois do duelo... seria melhor se o matasse, em vez de apenas feri-lo... irei para o clíper com você. Em troca do contrato escrito, explicarei em detalhes como pode arruinar totalmente a rede de segurança financeira da Brock, com um pacote de cópias autenticadas de cartas e documentos, o suficiente para qualquer tribunal de justiça e outros que lhe proporcionarão os meios de pressionar o Victoria.
Malcolm experimentou uma intensa exultação.
— Por que não agora? Por que esperar até quarta-feira?
— O Sr. Greyforth pode matá-lo — disse Gornt, calmamente. — Neste caso, as informações seriam desperdiçadas e eu correria um risco sem qualquer proveito.
Depois de uma pausa, Malcolm indagou:
— Digamos que ele me mate, ou me deixe gravemente ferido... como obteria a vingança que deseja?
— Procuraria a Sra. Struan imediatamente. Mas não creio que será necessário. Aposto no senhor, não nela.
— Ouvi dizer que não jogava, Sr. Gornt.
— Cartas, a dinheiro, não, senhor, nunca... constatei a inutilidade disso por meu padrasto. Com a vida? Até o limite. — Gornt sentiu que os olhos o fitavam e murmurou: — Alguém nos observa.
Ele olhou ao redor. Era Angelique, saindo do prédio Struan, no outro lado da rua. Ela acenou. Malcolm acenou em resposta e levantou-se. Os dois homens observaram-na se aproximar.
— Olá, Angel — disse Malcolm, afetuoso, as palavras do almirante aflorando em sua mente. — Quero apresentá-la ao Sr. Edward Gornt, da Rothwell, de Xangai. Minha noiva, mademoiselle Richaud.
— Madame!
Gornt pegou a mão de Angelique e beijou-a, galante.
— Sr. Gornt — murmurou ela, lendo seus olhos.
Houve um silêncio abrupto e curioso entre os três, e depois, sem qualquer razão aparente, desataram a rir.
— O que foi? — indagou ela, sentindo o coração acelerar.
— Joie de vivre — disse Gornt.
Angelique fitou-o, gostando do que via, animada pelo sorriso, depois pegou o braço de Malcolm, já relatando o encontro, na carta que interrompera:
Confesso, minha cara Colette, que os vi no passeio, assim resolvi pôr minha melhor touca e pegá-los de surpresa. Tratei logo de passar o braço pelo de Malcolm (DEFENSIVAMENTE), pois esse recém-chegado é alto e bonito, com um brilho malicioso por trás dos olhos, que percebi no mesmo instante, embora Malcolm não devesse estar consciente, ou se mostraria mais ciumento que o habitual, o pobre querido! Eu queria conhecer esse estranho alto casualmente. Ele tem um ligeiro sotaque sulista, ombros largos, cintura estreita, deve ser um esgrimista, e um magnífico dançarino... espero que seja um amigo, pois preciso de muitos por aqui...
— Ah, chéri... — murmurou ela, abanando-se contra o imediato e agradável calor interno, uma reação felina subconsciente à masculinidade de Gornt. — Desculpe, eu não queria interromper uma conversa importante...
— Não interrompeu, Angel — declarou Malcolm.
— Eu já ia embora—acrescentou Gornt. Não havia necessidade de esconder toda a sua admiração. — Foi um prazer conhecê-la, madame. — Ele fez uma reverência. — Bom dia, senhor. Ficarei em contato.
Eles observaram-no se afastar.
— Quem é o Sr. Gornt?
Malcolm disse, mas nada contou sobre o verdadeiro Sr. Gornt, seus pensamentos voltados para a próxima terça-feira.
— Mais porco no molho de feijão preto, irmã mais nova? — perguntou Ah Tok mastigando um pedaço de peixe.
— Obrigada. — Ah Soh inclinou-se com os pauzinhos para reabastecer sua tigela, mas mudou de rumo, optando pelo camarão frito que vinha cobiçando. — Por favor, continue, irmã mais velha.
As duas se encontravam no quarto de Ah Tok, o almoço servido em vários pratos, junto com um bule de chá de jasmim fresco.
— É muito difícil. Ilustre Chen não deu instruções precisas.
— Ele não costuma agir assim. — Ah Soh serviu-se de mais pedaços suculentos de carne de vaca, num molho de ostra. — É muito estranho.
— Concordo, mas também sua nova concubina, a prostituta de Soo Chow vem com certeza absorvendo a maior parte de sua concentração.
— É verdade que ela tem quatorze anos, sem pêlos púbicos?
Ah Tok pegou outra cabeça de peixe, sugou a carne, com satisfação.
— Só o povo do alho de Chosen é que não tem pêlos púbicos.
Ela cuspiu as espinhas no chão, selecionou outro pedaço.
— Interessante. Será por causa de todo o alho que comem? Posso reler a carta dele, irmã mais velha?
A carta dizia:
Saudações, Ah Tok, sexta prima em segundo grau. Fez muito bem ao me consultar de imediato. A rolha do vidro revelou vestígios claros de Escuro da Lua, que deve ser o expulsor da terra do cão no mar Oriental. Um aborto! A prostituta foi sensata e insensata ao usá-lo, o amo sensato e insensato ao propô-lo. Até sabermos se foi ele quem tomou a decisão, ou se foi ela sem o conhecimento do amo, você não deve fazer nada. Prima, escute-o dormindo — ele sempre murmurou no sono, desde criança —, talvez ele diga mais alguma coisa. Instrua Ah Soh afazer a mesma coisa, e as duas serão como morcegos. Obedeçam, e sejam persistentes.
— O que ele quis dizer em ser como morcegos? — indagou Ah Soh, irritada.
— Morcegos são silenciosos, mas guincham. Os morcegos podem voar no escuro, mas são cegos durante a claridade, são invisíveis à noite, desamparados de dia. Seus excrementos são valiosos, mas fedem demais. O que ele quis dizer?
— Olhos, ouvidos e narinas abertos, como um morcego, e vigiar onde larga seu excremento! — Ah Tok soltou uma risada. — Dez mil verões para Chen da Casa Nobre, pois sem ele não saberíamos que o portão de jade da mulher esteve na porta de meu filho!
— Como sabemos que foi ele? — especulou Ah Soh, com um vigoroso arroto. — Como sabemos que foi mesmo o amo, e não algum outro?
Ela baixou a voz, olhou ao redor, como se esperasse que ouvidos estranhos pudessem estar ouvindo. Os pauzinhos de Ah Tok hesitaram em pleno ar.
— Alguém como Nariz Pontudo, o mesmo tipo de demônio estrangeiro que é hem? Os dois são muito íntimos, como piolhos na virilha de um mendigo, e não foi ele quem jogou ao mar o vidro e as outras provas?
A velha Ah Tok não estava mais rindo.
— Fang pi! — exclamou ela, usando a imprecação rara. — É sobre isso que mestre Chen deve ter nos advertido! Morcegos dão voltas enquanto voam, não pousam no primeiro galho, e mesmo depois ficam pendurados de cabeça para baixo Ele está nos dizendo para descobrir que yang possuiu aquela yin! É isso mesmo! Concordo que é possível que Nariz Pontudo tenha feito meu filho usar um chapéu verde!
— O amo enganado! — Ah Soh revirou os olhos para o céu. — É verdade que Nariz Pontudo passou bastante tempo no quarto dela para... Ela parou de falar de repente, boquiaberta, e depois acrescentou:
— Mas é isso mesmo! Lembra o que aconteceu há algumas semanas, quando ela me mandou embora, e mais tarde gritou, porque pensava que alguém tentava entrar em seu quarto por fora, quando era apenas o vento sacudindo as janelas? Recordo tudo agora, cheguei a seu lado mais depressa que um morcego, mas Nariz Pontudo já se encontrava ali, e os dois... agora que penso a respeito, os dois estavam mais brancos que um cadáver de cinco dias! Teria sido a ocasião em que seu yang...
— Quando foi isso, irmã mais nova? O dia? Quando?
— Foi no dia... o dia seguinte ao amo trazer aquela prostituta nativa do bordel no outro lado do canal.
As duas puseram-se a fazer contas, as mentes tão velozes quando o ábaco. Hoje era o décimo segundo mês, quinto dia.
— Seria o décimo mês, décimo oitavo ou décimo nono dia, irmã mais velha.
— Não havia tempo suficiente, a menos que Escuro da Lua tenha sido tomado antes do prazo. — Distraída, Ah Tok sugou mais um pedaço de peixe, depois cuspiu as espinhas, com um ar de convicção. — Eles devem ter deitado juntos antes. A prostituta teve muitas oportunidades, não é mesmo? Ela estava sempre naquela casa bárbara, antes de vocês duas se instalarem aqui.
— Tem razão, como sempre, irmã mais velha. Devemos informar ilustre Chen imediatamente.
— Mas por que ela entregara seu portão de jade a um demônio estrangeiro tão feio, quando meu filho se mostra ansioso em possuí-lo?
Ah Soh deu de ombros.
— Bárbaros! Quem sabe o que eles pensam? Deve contar ao amo.
Tonta de excitamento, Ah Tok olhou para seu bar. Madeira, uísque, conhaque.
— Precisamos de força! — Ela escolheu o uísque, serviu duas doses enormes. — Ao trabalho! Devemos planejar, conspirar e pensar como fazer para que a prostituta e seu amante revelem a verdade!
— Muito bem! Juntas, conseguiremos!
— Mas nenhuma insinuação a meu filho, pois seria insensato para nós sermos portadoras de más notícias. Até termos certeza. — Elas bateram os copos. — Por todos os deuses, grandes e pequenos, ninguém vai enganar meu filho, fazê-lo usar o chapéu verde, e depois levar uma vida longa e feliz!
— Boa noite, padre Leo — disse Angelique, polida.
Ela se ajoelhou e beijou sua mão, descobrindo ser difícil conter a repulsa pelo intenso odor que ele exalava. Estavam sozinhos na pequena igreja, a nave mal iluminada, apenas umas poucas velas ardendo, o sol poente entrando pelo vitral pequeno e malfeito. Havia poucos católicos na colônia, a receita era ínfima, mas mesmo assim o altar e o crucifixo eram suntuosos. Lá fora, ao pôr-do-sol, Vargas esperava, para escoltá-la de volta.
— Queria me falar? — perguntou ela, inocente, sabendo que faltara de novo à missa no domingo. A touca rosa fora escolhida com todo cuidado, assim como o xale comprido de cashmere, caindo sobre o vestido de tarde, de uma seda escura. — Está com uma ótima aparência, padre.
— Fico contente em vê-la, minha criança — disse ele, com seu forte sotaque português. — Não compareceu à missa mais uma vez.
— São os vapores, padre. Ainda me recupero do distúrbio... e o Dr. Babcott aconselhou repouso — respondeu Angelique, pensando no que usaria naquela noite, para o banquete de aniversário do ministro russo, e o que poderia fazer para distrair Malcolm até lá. — Tenho certeza que me sentirei melhor na próxima semana.
Folgo em saber, minha jovem mentirosa, pensou Leo, desgostoso com a perfídia da humanidade. É uma impiedade dançar à noite e mostrar as partes desvestidas.
— Não importa. Ouvirei sua confissão agora.
Angelique quase que poderia bocejar, de tão previsível que ele era. Obediente, seguiu-o ao confessionário, ajoelhou-se, cumpriu o ritual, contente pela tela que os separava, confortada pelo pacto que fizera com a Virgem Maria, repetindo o código, fervorosa, como sempre:
—... e mais uma coisa, padre, esqueci de pedir perdão à Santa Mãe em minhas orações.
A absolvição foi rápida, uma modesta penitência de umas poucas ave-marias, e ela se sentiu melhor por isso. Começou a se levantar...
— Agora, minha criança, um problema particular. Há dois dias, o Sr. Struan mandou me chamar, para uma conversa confidencial, e pediu-me para casar vocês dois.
Angelique ficou boquiaberta, depois exibiu um sorriso glorioso.
— Oh, padre, que maravilha!
— Tem toda razão, minha criança. “Por favor, case-nos o mais depressa possível”, pediu o jovem Sr. Struan. Mas é difícil. — Noite e dia, ele remoera o problema. Enviara no mesmo dia uma carta urgente para o bispo de Macau, líder espiritual católico na Ásia, suplicando conselho, também urgente. — Muito difícil para nós.
— Por que, padre?
— Porque ele não é católico, e...
— Mas ele concordou que nossos filhos serão criados na verdadeira igreja. Foi o que me prometeu.
— É verdade, minha criança, ele me disse a mesma coisa. Mas o jovem Sr. Struan ainda não alcançou a idade para casar sem permissão, nem você. Mas eu queria lhe dizer, em segredo, que mesmo assim solicitei a Sua Eminência permissão para celebrar a cerimônia, pela maior glória de Deus, até mesmo... com ou sem aprovação de seu pai. Soube que seu pai desapareceu, em algum lugar da Indochina francesa ou Sião.
Os detalhes sobre as fraudes e a fuga do pai haviam circulado pela colônia, mas ninguém contara nada a Angelique, por deferência, nem a Struan.
— Se Sua Eminência concordar, tenho certeza que o senhor Seratard, in lócus parentis, também concordará.
O aperto na garganta de Angelique não desapareceu.
— Quanto tempo vai demorar para Sua Eminência responder... conceder sua aprovação?
— Até o Natal, ou pouco depois, antes disso, se estiver em Macau, e não viajando, em visita aos fiéis na China, e se for a vontade de Deus.— Como sempre, ele sentava do outro lado sem olhar para a tela, um ouvido próximo, para garantir a privacidade sussurrada, mas agora virou o rosto e pôde divisá-la, vagamente. — A questão sobre a qual desejo conversar, em particular, é a conversão do senhor Struan.
Ela ficou outra vez aturdida.
— Ele disse que se converteria?
— Não. Ainda não enxergou a luz, e é sobre isso que quero falar.
Padre Leo inclinou-se para mais perto da tela, saboreando a proximidade de Angelique, dominado por um desejo que sabia ser ímpio, enviado por Satã, o mesmo contra o qual lutava todos os dias e noites, de joelhos... o mesmo que enfrentava, com igual tormento, desde que ingressara na Igreja.
Que Deus me dê força, e que me perdoe, pensou ele, quase em lágrimas, querendo estender as mãos, acariciar os seios e o resto da moça, tudo oculto pela tela e o xale, pelo resto das roupas e a ira de Deus.
— Você deve ajudá-lo a adotar a verdadeira fé.
Angelique mantinha-se tão longe da tela quanto podia. Entreabriu as cortinas, Para reduzir a claustrofobia que a estrutura em forma de caixa lhe proporcionava. Os confessionários nunca foram assim, pensou ela, estremecendo. Só depois... depois do que nunca aconteceu.
— Eu ajudarei, padre, faço tudo o que posso — murmurou ela, o nervosismo aumentando, e de novo fez menção de se retirar.
— Espere!
A violência na voz a chocou.
— Padre?
— Por favor... espere, por favor, minha criança.
A voz era afável agora, mas a afabilidade era forçada, e isso a assustou, pois não era a voz de um padre, sacrossanta, num lugar santificado, mas a de um estranho.
— Devemos conversar sobre esse casamento, minha criança, sobre a conversão de seu noivo. É preciso tomar muito cuidado com as influências malignas. A conversão é indispensável, como um preparativo para... para a eternidade.
— “Indispensável”, padre? — murmurou Angelique. — Ia dizer “indispensável como um preparativo para o casamento”!
— Para... para a eternidade.
Ela fitou a sombra no outro lado da tela, convencida de que ele mentia, consternada por sequer considerar essa possibilidade, muito menos acreditar nela.
— Ajudarei em tudo o que puder, padre.
Ela se levantou, abriu as cortinas, em busca de ar. Mas padre Leo postou-se em seu caminho. Angelique notou o suor em sua testa e que ele pairava acima dela, em altura e volume.
— É para o bem dele, para sua própria salvação. A dele, minha criança. Seria melhor... seria melhor antes.
— Está dizendo, padre, que a conversão de Malcolm é indispensável para que possa nos casar? — indagou ela, apavorada.
— Não cabe a mim determinar as condições. O que Sua Eminência decidir vai nos orientar, pois somos servidores fiéis.
— Na igreja de meu noivo, ninguém disse que devo me tornar protestante. É claro que também não posso forçá-lo.
— É preciso que ele enxergue a verdade! Esse casamento é uma dádiva de Deus. Protestante? Essa heresia? Apostasia? Inadmissível! Estaria perdida para sempre, condenada, excomungada, sua alma eterna consignada ao tormento permanente no fogo, ardendo pelos tempos afora!
Angelique manteve os olhos baixos, era quase incoerente.
— Para mim, sim, para ele... milhões de pessoas acreditam de uma forma diferente.
— Todos estão loucos, perdidos, condenados e arderão para sempre! — A voz era ainda mais dura. — É isso mesmo! Devemos converter os pagãos! Malcolm Struan deve se con...
— Tentarei, padre. Adeus. Obrigada... tentarei.
Ela contornou-o, afastou-se apressada. Virou-se ao chegar à porta, por um momento, fez uma genuflexão e saiu para a luz. O padre continuou parado na nave de costas para o altar, sua voz ressoando pela igreja:
— Seja um instrumento de Deus, converta os pagãos, se ama a Deus, salve esse homem, salve-o do purgatório, se ama a Deus, salve-o, ajude-me a salvá-lo das chamas do inferno, salve-o para a glória de Deus, tem de fazer isso... antes de casar, salve-o, deixe-nos salvá-lo...
Naquela noite, uma patrulha de samurais saiu da casa da guarda no portão norte. Eram dez guerreiros, armados com espadas e uma armadura leve de combate, um oficial no comando. Atravessaram a ponte, passaram pela barreira, entraram na colônia. Um homem carregava um estandarte alto e estreito, com caracteres escritos. O samurai na vanguarda erguia uma tocha, que projetava estranhas sombras.
A High Street e o passeio a beira-mar ainda se encontravam bastante movimentados, no princípio de noite agradável. Mercadores, soldados, marujos, lojistas dando uma volta, ou parados em grupos, conversando e rindo, aqui e ali, com umas poucas canções e bêbados, um ou outro cautelosos prostitutos. Na praia, alguns marujos haviam acendido uma fogueira e dançavam uma hornpipe ao redor, embriagados, com um travesti no meio. Podia-se ouvir a distância o clamor habitual na cidade dos bêbados.
A presença ominosa foi logo notada. Todos pararam no mesmo instante. As conversas foram interrompidas no meio de uma frase. E depois cessaram por completo. Todos os olhos se viraram para o norte. Os mais próximos da patrulha trataram de sair da frente. Mais que uns poucos tatearam à procura do revólver e praguejaram por não encontrá-lo no bolso ou no coldre. Outros recuaram e um soldado de folga saiu correndo por uma viela para chamar o plantão noturno dos fuzileiros.
— Qual é o problema, senhor? — perguntou Gornt.
— Ainda nenhum — respondeu Norbert, com uma expressão sombria.
Os dois integravam um grupo no passeio, mas ainda longe dos samurais, que não prestaram qualquer atenção aos homens silenciosos que os observavam, caminhando encurvados, os passos irregulares, como era seu costume. Lunkchurch aproximou-se.
— Está armado, Norbert?
— Não. E você?
— Também não.
— Eu estou, senhor. — Gornt sacou sua pequena pistola. — Mas não fará muita diferença, se eles forem hostis.
— Quando em dúvida, meu jovem — disse Lunkchurch, a voz rouca —, saia correndo, é o que sempre falei.
Ele estendeu a mão para Gornt, antes de se afastar, apressado:
— Barnaby Lunkchurch, Sr. Gornt. Prazer em conhecê-lo. Seja bem-vindo a Yokopoko. Até mais tarde, no clube. Ouvi dizer que joga bridge. Será ótimo sentarmos para uma partida.
Todos trataram de se manter fora do alcance. Os bêbados se tornaram subitamente sóbrios. Cada um se encontrava de guarda, pois era muito bem conhecida a rapidez de uma repentina corrida de samurai brandindo as espadas. Norbert já escolhera uma linha de retirada, caso se tornasse necessário. Depois ele viu o pelotão de fuzileiros sair por uma rua transversal, em passo acelerado, os fuzis de prontidão, um sargento à frente, para assumir uma posição de vigia embora não provocadora. Norbert relaxou e comentou:
— Não há mais nada com que se preocupar agora. Sempre anda com isso Edward?
— Sempre, senhor. Pensei que tinha lhe dito.
— Não, não disse — respondeu Norbert, em tom ríspido. — Posso vê-la?
— Claro. Está carregada.
A pistola era pequena, mas mortífera. Cano duplo. Dois cartuchos de bronze. Coronha revestida de prata. Norbert devolveu-a.
— Muito boa. É americana?
— Francesa. Meu pai me deu quando fui para a Inglaterra. Disse que a ganhara de um jogador num barco no Mississippi, a única coisa que me deu em toda a sua vida. — Gornt riu baixinho, os dois observando os samurais se aproximarem. — Até durmo com ela, senhor, mas só a disparei uma vez. Foi contra uma dama que se esgueirava com minha carteira na calada da noite.
— Acertou-a?
— Não, senhor. Nem estava tentando. Queria apenas assustá-la. Uma dama não deve roubar, não é mesmo, senhor?
Norbert soltou um grunhido e voltou a se fixar nos samurais, considerando Gornt sob uma nova luz, mais perigosa.
A patrulha foi andando pelo meio da rua, as sentinelas na frente das legações britânica, francesa e russa — as únicas com guardas permanentes — aprontando seus fuzis, já alertadas.
— Soltar as travas de segurança! Não atirem, até eu mandar! — resmungou o sargento. — Grimes, vá avisar ao comandante. Ele está com os russos, a terceira casa descendo a rua.
O soldado se afastou. Os lampiões ao longo do passeio piscavam. Todos esperavam, ansiosos. O oficial dos samurais continuou a avançar, impassível.
— Um desgraçado de maus bofes, não acha, sargento? — sussurrou um soldado, as mãos empunhando o fuzil.
— Todos são desgraçados de maus bofes. Trate de se controlar.
O oficial alcançou o prédio da legação britânica e gritou uma ordem. Seus homens pararam, entraram em formação diante do portão. Ele se adiantou, falou ao sargento num japonês gutural. Um silêncio opressivo. Mais palavras, impacientes, imperiosas, obviamente ordens.
— O que você quer? — perguntou o sargento, meio metro mais alto. Outra vez as frases ásperas, mais furiosas.
— Alguém entende o que ele está dizendo? — gritou o sargento.
Não houve resposta, até que Johann, o intérprete, saiu da beira da multidão. fez uma reverência ao oficial dos samurais, que retribuiu de forma superficial, e lhe falou em holandês. O oficial respondeu em holandês, procurando as palavras Johann explicou:
— Ele traz uma mensagem, uma carta para Sir William, e tem de entregá-la pessoalmente.
O oficial começou a se encaminhar para o portão da legação, e todos os fuzis foram erguidos. Ele parou. Uma furiosa tirada contra o sargento e os soldados. Todos os samurais tiraram um quarto das espadas das bainhas, assumiram uma posição defensiva. Ali perto, a patrulha dos fuzileiros assumiu ordem de combate. Todos esperavam pelo primeiro erro.
Nesse momento, Pallidar e dois outros oficiais dos dragões saíram apressados da legação russa, um pouco adiante, em uniformes de gala, com suas espadas.
— Eu assumo o comando, sargento — declarou Pallidar. — Qual é o problema?
Johann informou-o. Pallidar, a esta altura bem versado nos costumes japoneses, fez uma reverência para o oficial samurai, esperou uma retribuição igual.
— Diga a ele que receberei a carta. Sou o ajudante-de-ordens de Sir William.
— Ele diz: Sinto muito, as ordens são para entregar pessoalmente.
— Diga-lhe que estou autorizado...
A voz de Sir William interrompeu-o:
— Capitão Pallidar... espere um momento! Johann, de quem é a carta?
Ele estava parado na entrada da legação russa, com Zergeyev e outros ao seu lado. O oficial apontou para o estandarte, gritou mais algumas palavras, e Johann traduziu:
— Ele diz que é do tairo, mas creio que se refere ao roju, o Conselho dos Anciãos. Recebeu ordem de entregá-la pessoalmente.
— Está certo. Vou recebê-la. Mande ele vir até aqui.
Johann obedeceu. Altivo, o oficial samurai fez sinal para que Sir William se adiantasse. Mas Sir William gritou, ainda mais ríspido, com menos cortesia ainda:
— Diga a ele que estou jantando. Se não quiser vir até aqui imediatamente, pode entregar a carta amanhã.
Johann era muito experiente para traduzir exatamente, e apenas deu ênfase suficiente para transmitir o significado. O oficial samurai respirou fundo, em fúria, depois avançou através do portão russo, passou pelos dois enormes guardas barbudos e parou diante de Sir William, esperando por uma reverência.
— Keirei! — berrou Sir William. Saudação! Era uma das poucas palavras em japonês que ele se permitira aprender. — Keirei!
O oficial corou, mas fez uma reverência, numa reação automática. Inclinou-se Como se fosse um igual, e sentiu-se ainda mais irritado quando Sir William apenas acenou com a cabeça, como se fosse um inferior. Mas também, pensou o oficial, esse homenzinho fétido é o líder gai-jin, com uma reputação de ira tão vil quanto seu cheiro. Quando atacarmos, eu mesmo o matarei.
Ele pegou o pergaminho, deu um passo à frente, entregou-o, recuou, fez uma reverência perfeita, esperou até que houvesse uma retribuição, embora grosseira, satisfeito por ter levado a melhor sobre o inimigo. Para descarregar sua raiva, gritou com seus homens, e afastou-se como se eles não existissem. Todos seguiram-no, também furiosos pela grosseria do gai-jin.
— Onde está Tyrer? — indagou Sir William.
— Mandarei alguém chamá-lo — disse Pallidar.
— Não precisa. Peça a Johann para vir até aqui.
— Se está em holandês, posso ler a mensagem, Sir William — interveio Erlicher, o ministro suíço.
— Obrigado, mas é melhor Johann, já que ele conhece japonês também.
Sir William não queria partilhar, de antemão, nada com ninguém, ainda mais com um estrangeiro que representava uma nação pequena, mas em crescimento com uma bem desenvolvida indústria bélica ansiosa por exportações, com uma reputação baseada na qualidade extraordinária e única de seus relojoeiros, uma das poucas áreas em que os fabricantes britânicos não podiam competir.
A sala de jantar, o maior cômodo do prédio, tinha uma mesa para vinte pessoas, com prataria e louça da melhor qualidade. Todos os ministros ali se encontravam, à exceção de von Heinrich, que continuava doente, além de Struan, Angelique, à cabeceira da mesa, alguns oficiais franceses e britânicos, com dois criados de libré por trás de cada lugar, e mais para servir.
— Posso usar a ante-sala, conde Zergeyev? — perguntou Sir William, em russo.
— Claro.
O conde Zergeyev abriu a porta. Esperaram por um momento, até que Johann entrasse, apressado, e depois ele fechou a porta.
— Boa noite, Sir William — disse Johann, satisfeito por ter sido chamado.
Seria o primeiro a saber qual era o problema e poderia continuar a ser útil para o ministro de seu país. Rompeu o lacre do pergaminho e também sentou-se.
— Em holandês e japonês. É curta.
Ele correu os olhos depressa pela carta, franziu o rosto, releu-a, outra vez, soltou uma risada nervosa.
— Está endereçada ao ministro britânico e diz: “Comunico por este despacho. Por ordem do xógum Nobusada, recebida de Quioto, todos os portos serão fechados imediatamente e todos os estrangeiros expulsos e obrigados a partir, pois não pre...”
— Expulsos? Obrigados a partir?
O berro de Sir William passou pela porta. Os convidados para o jantar caíram num silêncio apreensivo. Johann estremeceu.
— Isso mesmo, senhor. Sinto muito. É o que diz aqui: “...e obrigados a partir, pois não precisamos nem queremos quaisquer negócios entre estrangeiros e nosso povo. Envio este comunicado antes de uma reunião imediata para acertar os detalhes da retirada urgente de Iocoama. Respeitosa comunicação.”
— Respeitosa? Mas que maldita impertinência...
A explosão continuou. Assim que Sir William fez uma pausa para respirar, Johann disse:
— Está assinada por “Nori Anjo... Tairo”. Pelo que sei, Sir William, isso é quase como ditador.
37
QUIOTO
Quinta-feira, 4 de dezembro:
Yoshi Toranaga estava lívido.
— Quando a designação de tairo foi confirmada?
— Anteontem, Sire, pelo pombo-correio para lorde Anjo, em Iedo. — Wakura, o lorde camarista, chefe dos funcionários do palácio, falava em voz suave, indiferente à ira ostensiva de seu convidado, e disfarçando sua alegria, pois aguardara ansioso por aquele encontro, em seus aposentos, dentro do palácio. — O pergaminho formal, assinado pelo xógum, a pedido do filho do céu, foi enviado, se não me engano, para entrega urgente a lorde Nori Anjo no mesmo dia.
Isso deixou Yoshi ainda mais furioso. Seu ancestral, o xógum Toranaga, determinara que os pombos-correios seriam propriedade exclusiva do xogunato. Ao longo de dois séculos e meio esse método de comunicação entrara em declínio, por ser desnecessário, e agora era usado apenas para anunciar ocorrências vitais, como a morte de um xógum ou de um imperador. O Bakufu optava por ignorar que há anos alguns emprestadores de dinheiro da zaibatsu de Osaca vinham usando pombos-correios em segredo... o que os deixava expostos a medidas punitivas, tributos extras, ou favores, se o Bakufu decidisse impor a lei.
— E quando será entregue o insensato ultimato aos gai-jin? — perguntou Yoshi.
— Imediatamente, Sire. O pedido imperial foi incluído na mesma mensagem por pombo-correio, confirmado pelo xógum Nobusada, e com a ordem para apresentação imediata.
— A ordem é baka, a pressa ainda mais baka! — Yoshi ajeitou o manto alcochoado nos ombros. A chuva miúda que caía nos jardins lá fora acrescentava umidade ao frio. — Mande outro pombo-correio cancelando a ordem.
— Se dependesse de mim, Sire, faria isso sem hesitar, já que está sugerindo Assim que se retirar, Sire, solicitarei permissão, mas imagino que será tarde demais. O líder gai-jin já deve ter recebido a ordem, que pode até ter sido entregue ontem.
Wakura, feliz, manteve o rosto e a atitude de um penitente. Isso era a culminação de anos de intriga em apoio aos desejos do imperador, a opinião da maioria dos daimios, a maioria dos nobres da corte, de Ogama, que no momento detinha o poder em Quioto, embora os portões fossem mais uma vez ostensivamente guardados pelo odiado xogunato — mas apenas com a permissão de Ogama — também da princesa Yazu e, o mais importante de tudo, em apoio às suas próprias posições.
A escolha hábil e sagaz do momento oportuno, poucos dias antes, o deixara na maior satisfação. Abordara a princesa durante seu passeio matutino pelos jardins do palácio e, num único movimento, neutralizara o xogunato, o Bakufu e Yoshi, o mais perigoso de seus inimigos.
— Princesa imperial, soube que alguns cortesãos próximos do divino, com seus interesses em mente, sussurram que o lorde, seu marido, deveria designar lorde Nori Anjo como tairo, o mais depressa possível.
— Anjo? — dissera ela, incrédula.
— Pessoas de sabedoria, princesa, acreditam que deve ser feito depressa, e com absoluta discrição. As conspirações em Iedo abundam e isso evitaria a interferência de... de inimigos ambiciosos, inimigos que tentam a todo instante arruinar seu reverenciado marido e que têm ligações com os infames shishi. Lembre de Otsu!
— Como se eu pudesse esquecer! Mas Anjo... não que eu tenha qualquer influência para conseguir uma coisa assim... é um tolo. Como tairo, ele se tornará ainda mais arrogante.
— É verdade, mas elevá-lo acima dos outros anciãos pode ser um pequeno preço a pagar para fazer com que seu lorde xógum fique mais seguro durante sua minoridade e frustrar seu... seu único rival, lorde Yoshi.
— Um tairo poderia removê-lo de sua posição de guardião?
— Provavelmente, princesa. Outro ponto em favor de Anjo, sussurram os sábios, é o fato de ele ser o instrumento perfeito a se usar contra os gai-jin: simplório, mas obediente às solicitações imperiais. O divino notaria tal lealdade, e sem dúvida recompensaria os serviços prestados. Se for feito depressa, de maneira discreta, pelo que dizem os sábios, seria o melhor.
Fora muito fácil plantar a semente que desabrocharia como uma de minhas orquídeas de estufas superfertilizadas... como fui previdente ao manobrar para o casamento dela. As palavras da princesa nos ouvidos daquele jovem obtuso, a cooperação de alguns nobres dependentes, meus próprios conselhos, logo procurados e prontamente oferecidos, e tudo ficou resolvido.
E agora é a sua vez, Toranaga Yoshi, pensou ele, feliz, Yoshi, o belo, o astuto, forte, o usurpador bem-nascido, esperando e farejando nas asas do poder, pronto para iniciar a guerra civil que eu e todos tememos, à exceção de uns poucos nobres radicais, a guerra que vai esmagar a ressurgência do poder imperial, e mais uma vez deixar a corte imperial sob o tacão de qualquer belipotentado salteador que dominar os portões e poderá, com isso, reduzir nossos estipêndios e nos transformar de novo em mendigos.
Ele conteve um tremor. Há não muitas gerações, o imperador de então tinha de vender sua assinatura nas ruas de Quioto, a fim de levantar dinheiro para comer. Há não muitas gerações, os casamentos na corte eram arrumados para daimios ambiciosos e arrivistas, que mal pertenciam à classe dos samurais, tendo como uma única qualificação para uma posição superior o sucesso na guerra e o dinheiro. Há não muitos anos...
Não, pensou ele, nada disso vai acontecer. Depois que sonno-joi for um fato, nossos leais amigos shishi vão se dispersar e voltar para seus feudos, todos os daimios se submeterão a ele, nós da corte vamos reinar, e nossa época áurea voltará.
Wakura tossiu, ajeitou as mangas enormes do requintado traje da corte mais a seu gosto, observando Yoshi, os olhos contraídos no rosto maquilado, de acordo com o costume da corte.
— Sem dúvida, Sire, a ordem para expulsar os gai-jin é boa. A sábia e antiga aversão do imperador aos gai-jin e aos tratados será concretizada e nossa terra dos deuses se livrará deles para sempre. Isso deve agradá-lo também, lorde Yoshi.
— Se a ordem fosse significativa, sim. Se fosse obedecida, sim. Se tivéssemos os meios para impô-la, sim. Mas nada disso vai acontecer. Por que não fui consultado?
— Você, Sire?
As sobrancelhas pintadas de Wakura se altearam.
— Sou o guardião do herdeiro por designação imperial. O menino é menor de idade, não é responsável por sua assinatura.
— Oh, Sire, sinto muito... se dependesse de mim, é claro que sua aprovação seria procurada em primeiro lugar. Por favor, não me culpe, Sire. Não posso decidir nada, apenas fazer sugestões. Sou apenas um servidor da corte, do imperador.
— Eu deveria ter sido consultado!
— Concordo, Sire, mas estes são tempos estranhos.
O rosto de Yoshi era tenso. Os danos já haviam se consumado. Ele teria de arrancar o xogunato de seu próprio esterco. Idiotas! Como?
Primeiro Anjo... de um jeito ou de outro. Minha esposa tinha razão.
Ah, Hosaki, como sinto falta dos seus conselhos! Pensando na família, seus olhos vaguearam para fora e no mesmo instante a fúria pareceu se dissolver. Além da janela de shoji, avistou seus guardas, esperando ao abrigo do telhado requintado, os jardins por trás, a chuva indulgente, faiscando nos vermelhos, dourados e marrons combinados com o maior cuidado, uma imagem agradável para a vista e a alma... tão diferente de Iedo, pensou ele, distraído. Hosaki gostaria daqui grande mudança em nossa vida austera. Ela aprecia a beleza e gostaria daqui.
Seria muito fácil se deixar embalar, pelo tempo e os jardins, os céus gentis e a chuva delicada, a melhor música, poesia, alimentos exóticos, beldades de pele de alabastro da corte e também do mundo flutuante de Quioto, Shimibara, o mais procurado em todo o Nipão, sem qualquer preocupação no mundo, exceto a de procurar o próximo prazer.
Desde que chegara a Quioto, além da paz temporária com Ogama, pouco realizara, além dos tempos de prazer... tão raros para ele. O prazer com Koiko, o treinamento diário com espada e artes marciais, massagens maravilhosas —Quioto era famosa por isso — banquetes em cada refeição, jogar Go e xadrez escrever poesia.
Como foi sábio meu ancestral ao confinar o imperador e esses sicofantas vestidos com tanto exagero a Quioto, e construir sua própria capital em Iedo, longe de suas seduções e tortuosas manipulações... e como foi sábio ao proibir um xógum de vir para esta armadilha de mel.
Eu deveria ir embora. Mas como posso partir sem Nobusada?
A corte praticamente o afastara dele. E o próprio Nobusada não queria vê-lo. Por duas vezes, o jovem cancelara uma reunião no último momento, alegando um resfriado. O médico confirmara oficialmente o resfriado, mas seus olhos revelavam que era apenas um pretexto.
— Mas a saúde do lorde xógum me preocupa, lorde Yoshi. Sua constituição não é forte e sua virilidade deixa muito a desejar.
— A culpa é da princesa?
— Não, Sire. Ela é vigorosa, sua yin ampla é bastante sedutora para satisfazer o mais exigente yang.
Yoshi interrogara o médico com o maior cuidado. Nobusada nunca fora um espadachim ou caçador, alguém que gostasse da vida ao ar livre, como o pai e os irmãos, preferindo os esportes mais fáceis da falcoaria e arco e flecha, ou, ainda mais, as competições de poesia e caligrafia. Entretanto, não havia nada de errado com isso.
— Seu pai ainda é bastante vigoroso e a família é conhecida pela longevidade. Não há motivo para alarme. Dê-lhe uma de suas poções, convença-o a comer mais peixe, menos arroz polido, menos dos alimentos exóticos que a princesa tanto aprecia.
Ela participara do único encontro que ele tivera com seu pupilo, poucos dias antes. E tudo saíra errado. Nobusada recusara-se a considerar o retorno a Iedo, recusara-se até mesmo a discutir uma possível data, recusara seus conselhos em todas as outras questões, escarnecendo dele com Ogama:
— O Choshu controla as ruas, os homens de Ogama estão eliminando os infames shishi, primo. Não estou seguro cercado por nossos próprios guerreiros. Só me sinto seguro aqui, sob a proteção do imperador!
— Isso é um mito. Só ficará seguro no castelo de Iedo.
— Sinto muito, lorde Yoshi — interviera a princesa, a voz doce e insinuante — mas a umidade em Iedo é muito grande, o clima não se compara com o de Quioto. e a tosse do meu marido precisa de proteção.
— É isso mesmo, Yazu-chan, e eu gosto daqui, primo, pois pela primeira vez na vida estou livre, não confinado àquele castelo horrível! Aqui sou livre para vaguear, cantar, tocar, e me sinto seguro, estamos seguros, a tal ponto que posso ficar para sempre! Por que não? Iedo é uma cidade suja e fedorenta; governar daqui seria maravilhoso!
Yoshi ainda tentara argumentar, mas fora tudo em vão. E de repente Nobusada declarara, impulsivo:
— O que mais preciso, acima de tudo, até alcançar a maioridade, e não falta muito agora, primo, o que preciso é de um líder forte, um tairo. Nori Anjo seria perfeito.
— Ele seria péssimo para você e o xogunato — insistira Yoshi, paciente, e explicara mais uma vez, só que não fizera a menor diferença. — Seria uma insensatez...
— Não concordo, primo. Anjo me escuta, a mim, o que você nunca faz. Eu disse que queria apresentar meus respeitos ao divino, meu cunhado, ele concordou, e aqui estou, enquanto você se opôs! Ele me escuta! A mim! A mim, o xógum! E não se esqueça de que qualquer um é melhor do que você! Nunca será o tairo, nunca mesmo!
E ele deixara os dois, jamais acreditando — apesar da risada desdenhosa e irritante de Nobusada em sua esteira — que o tairo Anjo poderia se tornar uma realidade.
Mas agora é um fato, pensou ele, sombrio, consciente de que o lorde camarista Wakura o observava.
— Deixarei Quioto nos próximos dias — anunciou Yoshi, tomando uma súbita decisão.
— Mas não passou muito tempo aqui, Sire — comentou Wakura, dando os parabéns a si mesmo. — Nossa acolhida foi tão horrível assim?
— Não, não teve nada de horrível. Quais são as outras informações lastimáveis que tem para mim?
— Nenhuma, Sire. Sinto muito se relatei alguma coisa que o desagradou. Wakura tocou uma sineta. No mesmo instante, um criado todo maquilado entrou, com chá e um prato de tâmaras, os dentes também pintados de preto.
— Obrigado, Omi.
O rapaz sorriu para ele e se retirou.
— As tâmaras são as mais doces que já provei. De Satsuma.
Eram grandes, ressecadas ao sol, com mel. Os olhos de Yoshi se contraíram. Pegou uma; não era por coincidência que vinham de Satsuma.
— São excelentes.
— São mesmo. Uma pena que o daimio Sanjiro não seja tão doce quanto as frutas e outros alimentos que seus camponeses-soldados cultivam. É curioso o samurai em Satsuma pode ser as duas coisas sem perda de casta.
Yoshi escolheu outra tâmara.
— Curioso? É apenas o costume antigo deles. Um mau costume. É sempre melhor que os homens sejam samurais ou camponeses, uma coisa ou outra, de acordo com o legado.
— Ah, sim, o legado. Mas também o xógum Toranaga permitiu que a família conservasse seu feudo e suas cabeças, depois de Sekigahara, embora tivessem lutado contra ele. Talvez ele gostasse de suas tâmaras também. Interessante, neh?
— Talvez o xógum Toranaga se satisfizesse por eles terem encostado a cabeça na terra à sua frente, humildemente lhe concedendo o poder sobre Satsuma jurando fidelidade perpétua, e com humildade ainda maior agradeceram quando lhes foi concedido Satsuma como feudo.
— Ele foi um sábio soberano, muito sábio. Mas agora os Satsumas sob Sanjiro não são mais tão humildes.
— Isso também ocorre com outros — murmurou Yoshi.
— Como eu disse, vivemos em tempos estranhos. — Wakura demorou a escolher outra tâmara. — O rumor é de que ele prepara suas legiões para a guerra, apronta todo o feudo para a guerra.
— Satsuma sempre se mantém em pé de guerra. Outro costume antigo. Deve me dar o nome de seu fornecedor de tâmaras. Podemos aproveitar um fornece assim em Iedo.
— Será um prazer — respondeu Wakura, sabendo que nunca revelaria sua rede de espiões. — Alguns sábios conselheiros sugerem que desta vez Sanjiro realmente levará a guerra a todo o território.
— Guerra contra quem, lorde camarista?
— Presumo que contra todos aqueles que Sanjiro considera seus inimigos.
— E quem são eles? — indagou Yoshi, paciente, querendo que Wakura contasse tudo.
— Circulam rumores de que será contra o xogunato. Sinto muito.
— Ele se arrependeria se tentasse a guerra contra a lei da terra, lorde camarista. Esses sábios conselheiros que você mencionou talvez devessem aconselhá-lo a não ser tão estúpido. E os conselheiros também podem ser estúpidos, neh?
— Concordo — disse Wakura, sorrindo apenas com um retorcer da boca.
— E eu concordo que Sanjiro é combativo, mas não é estúpido. E o mesmo se pode dizer de Ogama de Choshu. E de Yodo de Tosa. Todos os lordes exteriores são militantes e manipuladores, sempre foram... como alguns altos funcionários da corte, mal orientados e ambiciosos demais.
— Mesmo que isso fosse verdade, Sire, o que uns poucos cortesãos poderão fazer contra o poderoso xogunato, quando toda a corte não possui exércitos, possui terras, nem koku, e todos dependem da generosidade do xogunato para seus estipêndios?
Yoshi sorriu também, um sorriso torcido.
— Eles promovem o descontentamento entre os daimios ambiciosos. E isso me lembra de uma coisa... — acrescentou ele, concluindo que Wakura fora longe demais e precisava de um açoite —... talvez, neste maravilhoso enclave, vocês ainda não saibam, mas haverá fome por todo o Nipão no próximo ano, inclusive no Kwanto. Corre o rumor de que o estipêndio da corte será cortado, este ano e no próximo, creio que pela metade.
Ele ficou contente ao ver que os olhos de Wakura quase se tornaram vesgos e arrematou:
— Sinto muito.
— Eu também sinto muito, pois seria lamentável. Os tempos já são bastante difíceis agora.
Wakura reprimiu o impulso de gritar e ameaçar, tentando avaliar o poder de Yoshi para promover e impor tal redução. Ele não é o único a querer isso, os daimios vivem se queixando, e é claro que o Conselho de Anciãos concordaria. Mas o tairo Anjo não permitiria, pois tem de fazer o que queremos. Ogama? Aquele cão arrogante aprovaria a redução, assim como Sanjiro e todos os outros. É melhor Anjo impor sua vontade! Wakura exibiu seu melhor sorriso.
— O príncipe conselheiro pergunta se lhe daria suas opiniões num memorial sobre Satsuma, Choshu e Tosa, em particular o perigo que Satsuma representa, e como, no futuro, a corte pode ajudar o xogunato... e evitar mal-entendidos.
— Eu teria o maior prazer — respondeu Yoshi, animando-se um pouco, pois seria uma oportunidade maravilhosa.
— Por último, tenho a honra de comunicar que o divino chamou-o, como seu convidado pessoal, o xógum Nobusada, alguns daimios, inclusive os de Tosa, Choshu e Satsuma, para o Festival do Solstício de Inverno. Os convites para Tosa e Satsuma já foram enviados, o seu e o de lorde Ogama serão apresentados com a devida cerimônia amanhã, mas eu queria ter o prazer de informá-lo.
Yoshi ficou aturdido, pois era uma honra excepcional para qualquer um fora do círculo íntimo. O solstício era naquele mês — o décimo segundo mês —, no vigésimo segundo dia. Dentro de dezesseis dias. As festividades se prolongariam no mínimo por uma semana, talvez mais. Ele poderia partir depois, haveria tempo suficiente para lidar com Anjo.
Espere! Esqueceu o que diz o legado: Tome cuidado ao acampar no covil do céu. Não é para nós. Somos homens, eles são deuses, e os deuses são como pessoas, ciumentos como as pessoas, e a intimidade gera o desprezo deles. A morte de nossa linhagem agradaria a esses falsos deuses. E isso só pode acontecer em seu covil.
Yoshi experimentou um súbito temor. O convite não podia ser recusado.
— Obrigado — murmurou ele, fazendo uma reverência.
Ao meio-dia, o vigia shishi postado diante do quartel-general de Toranaga observou quarenta samurais e porta-estandartes saírem e descerem pela rua, em direção ao portão leste do palácio. Era a troca de guarda rotineira do meio-dia. A maioria levava lanças, todos tinham duas espadas, mantos de chuva, e os chapéus de palha grandes e cônicos.
O shishi bocejou, ajeitou seu próprio manto nos ombros, quando uma chuva leve começou a cair, deslocou seu banco para baixo do toldo da barraca que vendia talharim, sopa e chá e pertencia a um simpatizante. Ele se encontrava de serviço desde o amanhecer. Tinha dezoito anos, uma barba cerrada. Um ronin de Satsuma.
Antes de deixar Quioto, o líder, Katsumata, ordenara uma vigilância rigorosa aos quartéis-generais de Toranaga e Ogama.
— No momento em que houver uma chance de atacar qualquer um dos dois, terá de ser fora de seus muros e com possibilidade concreta de sucesso... será desfechada uma investida de um só homem. Um único homem, não mais do que isso. Os shishi devem ser resguardados, mas também temos de estar preparados, Um ataque de surpresa é a nossa única oportunidade de vingança.
No portão, vários carregadores com cestos de legumes e peixes frescos pararam na barreira. Guardas atentos os inspecionaram, cada um com igual cuidado, e depois gesticularam para que passassem.
O jovem tornou a bocejar. Não havia a menor possibilidade de passar pelas barreiras. Ele especulou por um momento se a moça Sumomo conseguira entrar e se instalar lá dentro, como Katsumata concordara. Fora um milagre aqueles três escaparem pelo túnel. Um autêntico milagre. Mas onde eles estão agora? Não se tivera mais notícias de qualquer um desde a fuga milagrosa. Mas que importância isso tem? Devem estar seguros, como nós... Contamos com protetores importantes. Vamos nos reagrupar mais tarde. Teremos a nossa vingança. Sonno-joi vai acontecer.
Ele observou os guardas virarem a esquina e sumirem de sua vista. Sentia-se cansado agora, mas o pensamento de futons quentes e de sua amante à espera dissipou a maior parte da exaustão.
A patrulha do xogunato chegou ao portão leste. Havia uma casa de guarda encostada nos muros, estendendo-se pelos dois lados do portão, capaz de abrigar quinhentos homens e cavalos, se fosse necessário. O portão tinha seis metros de altura, a madeira reforçada por ferro, com um portão muito menor ao lado, que permanecia aberto. Os muros do perímetro eram mais altos, antigos, de pedra.
Por um instante, os novos guardas se misturaram ruidosamente aos antigos, todos bem agasalhados. Oficiais inspecionaram homens e armas, a guarda de saída começou a entrar em formação. Um oficial e um ashigaru, um infante, do grupo substituto, atravessaram a rua. A chuva parou. O sol irrompeu entre as nuvens. Os dois homens seguiram por outra rua e entraram em outro quartel, igual a muitos que havia em Quioto. Ali se encontravam alojados duzentos samurais de Ogama a alguma distância do portão, mas bastante perto.
— Quarenta homens, aqui estão seus nomes — disse o oficial a seu equivalente, fazendo uma reverência. — Nada de novo a informar.
— Ótimo. Os dois venham comigo, por favor.
O oficial de Ogama estudou a lista de nomes, enquanto os conduzia através a seus homens. Entraram numa sala vazia, com uma porta fechada no outro lado. O oficial bateu, abriu-a em seguida. Na outra sala só havia tatames e uma mesa baixa. Ogama estava de pé na janela, armado, cauteloso, mas sozinho. Os dois oficiais deram passos para os lados e se curvaram.
O ashigaru tirou o chapéu grande e se revelou como Yoshi. Em silêncio, ele entregou a espada longa a seu oficial, mantendo a curta, e entrou na sala. A porta foi fechada. Os dois oficiais deixaram escapar um suspiro. Estavam suados. Dentro da sala, Yoshi fez uma reverência.
— Obrigado por concordar com este encontro.
Ogama retribuiu a reverência, gesticulou para que Yoshi sentasse na sua frente.
— O que é tão urgente e por que tamanho sigilo?
— Más notícias. Você disse que aliados devem partilhar informações confidenciais. Sinto muito, mas Nori Anjo foi designado tairo.
A notícia deixou Ogama visivelmente abalado, e ele escutou com a maior atenção, enquanto Yoshi falava. Quando Yoshi falou sobre o convite imperial, um pouco de sua ira se dissipou.
— Ah, quanta honra e reconhecimento, no momento devido!
— Foi o que também pensei. Até sair do palácio. Só então percebi a profundidade da armadilha.
— Que armadilha?
— Ter os lordes de Satsuma, Tosa, você e eu, todos no mesmo lugar, ao mesmo tempo? Em trajes cerimoniais? Dentro dos muros do palácio? Sem armas nem guardas?
— O que Wakura poderia fazer? Ou qualquer dos outros? Eles não têm samurais... nem exércitos, nem dinheiro, nem armas. Absolutamente nada!
— É verdade, mas pense um pouco: quando nós quatro estivermos diante do filho do céu, juntos, seria o momento certo para alguém... Wakura, príncipe Fujitaka, o xógum Nobusada, ou a princesa... sugerir que, “como um presente para o divino, agora é o momento para os quatro maiores daimios da terra expressarem sua lealdade, oferecendo seus poderes a ele”.
A expressão de Ogama tornou-se sombria.
Nenhum de nós concordaria. Iríamos tergiversar, ganhar tempo, até mesmo mentir...
— Mentir? Para o filho do céu? Nunca. Escute mais: digamos que o príncipe conselheiro, antes da cerimônia, em particular, sugerisse o seguinte: “Lorde Ogama, o filho do céu deseja adotá-lo, torná-lo príncipe Ogama, capitão da guarda Imperial, lorde comandante dos portões, membro do Novo Conselho Imperial dos Dez, que governará no lugar do xogunato Toranaga usurpador. Em troca...”
— Que Conselho de Dez?
— Espere... “em troca precisa apenas reconhecê-lo por quem ele é: o filho do céu, imperador do Nipão, possuidor das insígnias sagradas... orbe, espelho e cetro... descendente dos deuses e com ascendência sobre todos os homens; em troca, você dedica seu feudo e samurais a serviço dele e cumprirá seus desejos que serão exercidos através da Corte Imperial dos Dez!”
Ogama fitava-o aturdido, gotas de suor no lábio superior.
— Eu... eu nunca renunciaria a Choshu!
— Talvez sim, talvez não. Talvez o porta-voz imperial diga também que o imperador o confirmará em seu feudo, como lorde de Choshu, conquistador dos gai-jin, guardião dos estreitos, sujeito apenas a ele, e ao Conselho Imperial dos Dez.
— Quem mais integra o conselho? — perguntou Ogama, a voz rouca.
Yoshi removeu o suor da testa. Todo o plano aflorara de repente, quando chegara a seu quartel. O general Akeda precipitara a conclusão com um comentário casual sobre como era insidioso o pensamento em Quioto, o que parecia impregnar o próprio ar que respiravam, que qualquer coisa considerada um prêmio num instante podia se tornar uma cilada no momento seguinte.
Sentira-se até fisicamente doente, sabendo que se poderia deixar seduzir com a mesma facilidade de qualquer outro... hoje mesmo, pouco antes, deixara-se embair para um falso senso de segurança, até compreender que ficaria isolado.
— Aí está, Ogama-sama, já se sente tentado. Quem mais está no conselho? Como se tivesse alguma importância o que lhe dissessem. Seria um contra os indicados deles. Lorde Sanjiro também. O lorde camarista Wakura e sua laia dominariam.
— Não concordaríamos. Eu não...
— Sinto muito, mas você concordaria... eles podem oferecer honrarias para tentar um kami... a maior tentação sendo a de que pretenderiam substituir o xogunato Toranaga pelo xogunato do Conselho dos Dez! Claro que não me seria oferecido um lugar no Conselho de Dez, nem a qualquer outro Toranaga, à exceção de Nobusada, que já é controlado por eles, por causa daquela princesa, como adverti. — A raiva de Yoshi era intensa. — Anjo é o primeiro passo.
Quanto mais os dois homens consideravam os desdobramentos, mais podiam perceber as incontáveis armadilhas pela frente. Ogama disse, a voz rouca:
— As festividades se prolongariam por semanas ou mais... seríamos obrigados a oferecer banquetes à corte, e uns aos outros. Venenos lentos poderiam ser introduzidos.
Yoshi estremeceu. Durante toda a sua vida, sentira um medo profundo de ser envenenado. Um tio predileto morrera em grande agonia, o médico dizendo “causas naturais”, mas o tio era uma farpa incômoda no flanco de um Bakufu hostil e sua morte fora bastante conveniente. Talvez o envenenamento, talvez não. A morte do xógum anterior, no ano em que Perry voltara, um dia saudável, no outro morto, também muito conveniente para o tairo Li, que o odiava e queria um títere — Nobusada — em seu lugar.
Rumores, jamais comprovados, mas o veneno era uma arte antiga no Nipão, assim como na China. Quanto mais Yoshi argumentava consigo mesmo — se a morte por envenenamento fosse seu karma —, mais cuidava para que seus mais cuidava que seus cozinheiros fossem de confiança, e se mostrava cauteloso com tudo o que comia, mas isso não eliminava o pânico que o dominava de vez em quando.
Abruptamente, Ogama cerrou o punho e bateu forte na palma da outra mão.
— Anjo tairo! Não posso acreditar!
— Nem eu.
Ao enviar o mensageiro para marcar aquele encontro secreto, Yoshi pensara como era irônico que agora ele e Ogama tivessem de fato de trabalhar juntos, se quisessem sobreviver. Não poderiam mais sobreviver isolados. Pelo menos no momento.
— Como podemos impedir que isso aconteça? Posso perceber que eles seriam capazes de me tentar.
Ogama cuspiu no tatame em aversão.
— Eles podem tentar qualquer um, Ogama-domo.
— São como kamis-lobos, isso eu posso entender. Estamos acuados. Se o divino nos convidar, seus sequazes insidiosos vão nos destruir. Vamos reunir as pessoas de quem você falou ou... Mandarei chamar Basushiro, pois sua mente é como a de uma serpente!
— Só estaremos acuados se aceitarmos o convite amanhã. Proponho que ambos deixemos Quioto esta noite, em segredo. Se não estivermos aqui... O que acha da idéia?
O sorriso súbito de Ogama era extasiado, mas se dissipou no instante seguinte. Yoshi percebeu o motivo e acrescentou:
— Uma manobra assim exige uma grande confiança entre nós.
— Tem razão. O que você propõe como precaução contra quaisquer erros?
— Não posso cobrir todas as alternativas, mas isso é temporário: ambos deixaremos Quioto esta noite, concordando em permanecer fora pelo menos por vinte dias. Seguirei imediatamente para Iedo e cuidarei de Anjo, tentando neutralizá-lo, e lá permanecerei até que isso seja consumado. O general Akeda ficará no comando aqui, como sempre, e dirá que tive de voltar de repente para o Dente do Dragão, uma doença na família, mas logo voltarei. Você vai para Fushimi, passa a noite ali. Amanhã, ao pôr-do-sol, depois que o convite deixou de alcançá-lo... porque ninguém, nem mesmo Basushiro, sabe onde se encontra, hem?
— É muito perigoso não contar a ele, mas continue.
— Deixo isso ao seu critério. Mas amanhã, ao pôr-do-sol, você manda entregar uma mensagem ao príncipe Fujitaka, convidando-o para um encontro Particular na manhã seguinte, talvez nas ruínas de Monoyama... — Era um dos lugares prediletos para excursões dos habitantes de Quioto. — Quando se encontrar com ele, manifeste seu espanto pelo “convite” e lamente não estar presente para aceitá-lo. Enquanto isso, é melhor ele garantir que não haverá outros convites até seu retorno. “E quando pretende voltar?” Você não tem certeza. Os gai-jin ameaçam com um iminente desembarque em Osaca. Você precisa ir até lá, fazer planos. Deixe claro para ele que é melhor não haver outros súbitos convite imperiais... por mais que humildemente agradeça... até decidir se vai aceitá-los
Ogama soltou um grunhido. Baixou os olhos para o tatame, perdido em seus pensamentos. Só depois de algum tempo é que falou:
— O que me diz de Sanjiro e de Yodo de Tosa? Eles virão, com uma força militar cerimonial, mas ainda assim com uma força.
— Diga a Fujitaka para providenciar o adiamento de seus convites... ele deve sugerir ao divino que este solstício está carregado de maus presságios.
— Uma boa sugestão. Mas o que fazer se eles não adiarem?
— Fujitaka dará um jeito.
— Se é tão fácil, por que não ficar, até mesmo com os convites? Basta eu dizer a Fujitaka para fazer a sugestão sobre os maus presságios. O festival é cancelado, não é mesmo? Isso pressupõe que Fujitaka tem o poder de sugerir ou dessugerir.
— Com Wakura, ele pode fazer isso. Creio que a insídia em Quioto impregna o ar que respiramos... cairíamos numa cilada.
Era o melhor que ele podia fazer. Não convinha a seus propósitos que Ogama ficasse sozinho em Quioto e ainda havia o problema dos portões a resolver.
— Eu poderia passar vinte dias em Fushimi ou Osaca — murmurou Ogama.
— Não poderia voltar a Choshu, pois isso deixaria minha posição em Quioto... ficaria exposto a um ataque.
— De quem? Não meu... somos aliados. Hiro não estará aqui, nem Sanjiro. Pode ir até Choshu, se assim desejar. Pode confiar em Basushiro para manter sua posição aqui.
— Não se pode confiar tanto assim num vassalo — declarou Ogama, irritado.
— O que me diz dos shishi?
— Basushiro e o meu Akeda continuarão a esmagá-los... nossos espiões do Bakufu continuarão a procurá-los.
Ogama franziu o rosto.
— Quanto mais penso a respeito, menos me agrada. Há perigos demais, Yoshi-dono. Fujitaka vai me dizer, com toda certeza, que seu convite também não foi entregue.
— Vai ficar surpreso. Sugiro que diga que minha desculpa sobre uma doença na família deve ser uma cobertura e que é mais provável que eu esteja correndo para Iedo, a fim de ver o que posso fazer para impedir que os gai-jin concretizem sua ameaça contra Quioto... e para garantir que abandonem Iocoama. — O rosto de Yoshi endureceu. — O que não vai acontecer.
— Então vamos obrigá-los a partir.
— No momento oportuno, Ogama-dono. — O rosto de Yoshi se tornou ainda mais duro. — Tudo o que eu previ aconteceu. Acredite em mim, não conseguiremos forçar os gai-jin a irem embora. Ainda não.
— Então quando?
— Em breve. Mas esse problema deve ser deixado de lado, por enquanto. A coisa mais importante agora é nos protegermos. Duas coisas: devemos partir juntos e voltar juntos. Permanecemos aliados secretos, até que, formalmente, num e encontro pessoal, a sós, decidamos o contrário.
Ogama riu, mas não disse nada. Yoshi acrescentou:
— E por último: durante a minha ausência, nosso acordo sobre os portões continua em vigor.
— Sua mente pula como um gato com espinhos nas patas. — Ogama limpou a garganta, ajeitou os joelhos de uma maneira mais confortável. — Talvez eu concorde, talvez não. Isso é muito importante para decidir de imediato. Preciso conversar com Basushiro.
— Não. Converse comigo. Posso lhe dar conselhos melhores, porque sei mais, e também, ainda mais importante, porque neste caso os seus interesses são meus... e não sou um vassalo que tem de procurar por pequenos favores.
— Só os grandes. Como os portões.
Yoshi riu.
— Este é pequeno, em comparação com alguns que vai me conceder, e eu concederei a você, quando se tornar o tairo.
— Então me conceda um favor agora, enquanto ainda não sou: a cabeça de Sanjiro.
Yoshi fitou-o nos olhos, escondendo sua surpresa. Não esquecera o que Inejin, seu espião-estalajadeiro na estrada para o Dente do Dragão, falara a respeito de Ogama e “céu escarlate”. Inejin contara como Ogama, com o apoio de Sanjiro, ou pelo menos sua neutralidade, prevaleceria sobre o xogunato, com a tática histórica da preferência dos daimios, um ataque de surpresa.
— Poderia se contentar com seus ovos? — indagou Yoshi, expondo o plano que vinha depurando há meses.
Ogama desatou a rir.
A guarnição substituída no portão leste voltou para o quartel, quatro homens lado a lado, Yoshi no meio, disfarçado como um infante. Embora tivessem sido avisados de antemão para tratá-lo como tal, os homens tinham dificuldade para não lançar olhares de esguelha ou pedir desculpas ao chegarem muito perto. Um dos soldados era um informante shishi, chamado Wataki. Não tivera a menor oportunidade para alertar sobre aquela excepcional oportunidade para uma emboscada.
Yoshi sentia-se cansado, mas contente. Ogama acabara concordando com tudo, por isso ele podia agora deixar Quioto, com os portões a salvo, nas mãos do xogunato, e o próprio xogunato a salvo.
Por algum tempo... tempo suficiente, pensou ele. Meu jogo é alto, e o plano cheio de buracos, que vão preocupar Ogama, se por acaso os perceber. Mas não importa, tenho certeza que, de qualquer maneira, ele planeja me trair. Era o melhor que eu podia fazer, e deve funcionar. Impossível para mim aceitar o convite imperial.
O dia melhorara agora, o sol disputava com as nuvens a posse do céu. Yoshi mal notou, assim como não prestava atenção ao ambiente, a mente ocupada com todos os detalhes de sua partida, a quem contar, o que fazer em relação a Koiko e ao general Akeda, quem levar em sua companhia, e sua preocupação geral: chegaria a tempo de atenuar ao mínimo os danos a Iedo?
Primeiro, um banho e massagem, as decisões depois...
Seus olhos focalizaram, e ele se tornou consciente das ruas, enquanto marchavam, os pedestres, barracas, pôneis, kagas, palanquins, as casas e choupanas, crianças e vendedores de peixe, ambulantes diversos, adivinhos, escribas, toda à movimentação dos mercados. Era uma experiência completamente nova para ele ser um entre muitos, incógnito na coluna, e passou a desfrutar aquela perspectiva tão diferente. Não demorou muito para que se tornasse boquiaberto como alguém do interior com as vistas, sons e cheiros da cidade grande, que nunca vira antes querendo parar, misturar-se à multidão, conhecê-la melhor, saber o que as pessoas pensavam, faziam, comiam, onde dormiam.
— Soldado — sussurrou ele para o jovem ao seu lado —, aonde vai quando está de folga?
— Eu, lorde? — balbuciou o homem, e quase deixou cair a lança, apavorado pelo altíssimo lhe dirigir a palavra, querendo se ajoelhar no mesmo instante. — Eu... eu vou beber, Sire.
— Não me chame de “Sire” — sussurrou Yoshi, surpreso pela súbita confusão causada por sua pergunta em todos os que se encontravam perto, alguns dos quais perderam o passo, e quase saíram de formação. — Aja normalmente... não olhe para mim! Todos vocês!
O soldado desculpou-se, e os outros ao redor tentaram fazer o que ele ordenara, achando quase impossível, agora que lorde Yoshi rompera o encantamento da invisibilidade. O sargento olhou ao redor, retornou apressado.
— Está tudo bem, lorde? Há...
— Está, sim, sargento. Volte a seu posto!
Automaticamente, o sargento fez uma reverência e obedeceu, os soldados retomaram o passo e seguiam adiante... o quartel a menos de cem metros de distância. Para alívio de Yoshi, aquela pequena confusão passou despercebida pela multidão, que se inclinava à passagem da coluna.
Mas foi observada por dois homens mais adiante. Eram o vigia shishi, Izuru e seu substituto, Rushan, um jovem ronin de Tosa, que naquele momento chegara à barraca na rua, não muito longe do portão Toranaga.
— Estou bêbado, Rushan? Um sargento fazendo uma reverência para um infante? Um sargento?
— Eu também vi, Izuru — sussurrou o outro. — Olhe para o soldado. Pode vê-lo agora, o mais alto, quase no final da coluna, veja como ele segura a lança. Não está acostumado a isso.
— Certo, mas... O que há com ele?
— Repare como os outros o observam, furtivamente!
Com crescente excitamento, eles ficaram observando o soldado, enquanto a coluna se aproximava. Embora as armas, o uniforme e todo o resto fossem iguais, havia uma grande diferença inequívoca: no porte, no passo, nas qualidades físicas do homem, por mais que ele tentasse se encolher.
— Lorde Yoshi! — murmuraram os dois ao mesmo tempo.
Rushan acrescentou, no instante seguinte:
— Ele é meu.
— Não, meu — protestou Izuru.
— Eu o vi primeiro! — insistiu Rushan, decidido, tão impaciente que mal conseguia falar.
— Nós dois, juntos, teremos uma chance maior.
— Não. Fale baixo. Um homem de cada vez, foi essa a ordem de Katsumata, e concordamos. Ele é meu. Dê o sinal no momento oportuno.
O coração disparado, Rushan esgueirou-se entre os fregueses e pedestres, a fim de assumir uma melhor posição de ataque.
A nova posição de Rushan era à beira da rua. Um último olhar para situar sua presa. Depois, ele sentou no banco, de costas para a coluna, os olhos no amigo Izuru, absolutamente em paz. Seu poema de morte para os pais estava nas mãos do shoya da aldeia, entregue anos antes, quando ele e dez outros estudantes samurais haviam se rebelado. Eram todos goshi e lhes fora negado o ingresso na escola para instrução superior, porque os pais não tinham recursos para pagar os subornos necessários às autoridades locais. Mataram as autoridades, declararam-se ronin, a favor de sonno-joi, e fugiram.
Dos dez, apenas ele continuava vivo. Muito em breve morreria, pensou, exultante, sabendo que se encontrava preparado, treinado, no auge de sua força, e que Izuru seria sua testemunha.
Izuru tinha o mesmo fervor. Já determinara seu próprio plano de ataque, se Rushan falhasse. Confiante, ele se deslocou para uma posição melhor. Seu olhar desviou-se da patrulha, foi se fixar no portão. Os guardas ali se preparavam para o ritual de inspecionar os outros de volta, na passagem pela barricada. Percebeu no mesmo instante que a atividade era maior, com mais ordens gritadas do que o habitual, os homens mais alertas, mais nervosos.
Ele praguejou para si mesmo. Os homens sabem! Claro que sabem, e sabem desde que a coluna partiu! Isso explica por que se mostraram tão irrequietos e irritados durante toda a manhã. Todos sabiam que lorde Yoshi se encontrava lá fora disfarçado. Mas por quê? E onde ele esteve? Ogama! Mas por quê? Planejaram outra emboscada contra nós? Fomos traídos de novo?
Seus olhos se deslocavam de um lado para outro, jamais esquecendo Rushan, avaliando as distâncias e os tempos. Já havia muitas pessoas nas proximidades fazendo a reverência. A qualquer momento o comandante da coluna a faria parar, o oficial no Portão se adiantaria para recebê-lo, ambos fariam uma reverência, juntos inspecionariam os homens que voltavam, que depois seguiriam em frente. O oficial ergueu a mão. A coluna parou. “Agora!”, Izuru quase disse em voz alta, enquanto gesticulava. Rushan viu o sinal e correu para a retaguarda da coluna de vinte metros, a espada comprida empunhada pelas duas mãos.
Ele passou pelos dois primeiros homens, derrubando-os, antes que os samurais sequer compreendessem que estavam sendo atacados, e desferiu um golpe contra Yoshi, que o fitou aturdido por uma fração de segundo. Só o aguçado instinto de Yoshi o levou a arremeter na direção do golpe fatídico, desviando-o para um soldado estupefato ao seu lado, que soltou um grito e caiu.
Gritando “sonno-joi!”, na súbita confusão ao seu redor, Rushan puxou a lâmina, enquanto os outros soldados tentavam abrir espaço, empurrando-se uns aos outros, mais guardas correndo do portão, espectadores por toda parte boquiabertos e paralisados. Wataki, o informante shishi, estava tão surpreso quanto qualquer dos soldados, e apavorado com a perspectiva de ser envolvido ou traído por aquele shishi, que parecia ter surgido do nada.
Wataki viu Rushan golpear de novo, e prendeu a respiração. Mas Yoshi recuperara o equilíbrio, embora ainda não tivesse tido tempo de desembainhar a espada, e por isso usou a haste da lança contra o golpe. A espada de Rushan cortou-a com a maior facilidade, mas a lâmina se desviou, perdeu o impulso, proporcionando a Yoshi apenas o tempo suficiente para se adiantar e segurar o cabo da espada na mão esquerda.
No mesmo instante, Rushan estendeu a mão direita para a espada curta, tirou-a, e desferiu um golpe contra a barriga, uma manobra clássica no combate corpo a corpo. Outra vez Yoshi se achava preparado. Largara a lança, e esticou o antebraço direito contra o pulso de Rushan, desviando a lâmina para seu manto, onde ficou presa. Rushan largou a espada curta, e a mão, agora uma arma mortífera, com dedos que pareciam garras, duros como pedra, as unhas afiadas, avançou para os olhos de Yoshi. As unhas erraram os olhos, mas afundaram logo abaixo.
Yoshi soltou um grito. Um homem menos treinado afrouxaria a pressão no cabo da espada comprida do atacante e logo morreria. Às cegas, ele continuou a segurá-lo, agora com as duas mãos, enquanto o homem se debatia, impotente, agora fora de controle. Isso deu a um soldado por trás de Rushan a abertura para agarrá-lo em torno da garganta, e Wataki, sabendo que a luta estava perdida, apavorado com a possibilidade do shishi ser capturado vivo, enfiou sua espada curta na parte inferior das costas. A força do golpe fez com que a lâmina atravessasse o corpo. Rushan gritou. O sangue saiu pela boca, mas ele continuou a lutar, enquanto a morte o envolvia, até ficar inerte. Mal transcorrera um minuto desde o primeiro ataque.
Embora suas próprias glândulas gerassem o pânico, Yoshi sentiu a vida se esvair do homem. E o súbito peso do corpo contra o seu. Mas não o largou, até ter certeza de que o homem morrera mesmo. Ainda assim, esperou que outras mãos puxassem o cadáver, antes de soltá-lo.
O sangue o cobria. Percebeu num instante que não era seu. A sorte não dissipou sua fúria pela falta de alerta dos homens próximos, que não o cercaram numa rede protetora, deixando-o com o encargo de combater o atacante. Xingou-os, ordenou que toda a patrulha entrasse, ficasse de joelhos, as espadas quebradas, à exceção dos dois que o haviam ajudado. Depois, ofegante, olhou ao redor. A rua movimentada se esvaziara.
Quando os gritos e a escaramuça em torno do solitário atacante foram entendidos e Yoshi se desvencilhara, sendo reconhecido, um murmúrio de espanto passara pela multidão. No mesmo instante, dois ou três se afastaram, desviando os olhos. Outros seguiram o exemplo. O filete cauteloso se transformara numa torrente, ninguém querendo ser mantido como testemunha ou mesmo acusado de cumplicidade.
Izuru foi um dos primeiros a se retirar, ao constatar que não havia qualquer expectativa razoável de êxito num segundo ataque. Rushan se atrapalhara todo no ataque, pensou ele, enquanto seguia pela rua transversal predeterminada, sob a proteção da multidão fugindo do local. O tolo deveria ter cortado a cabeça de um dos dois primeiros, como uma manobra diversionária, e depois, na recuperação, usando a mesma força rápida e brutal para golpear o alvo principal, na altura da cintura. Não haveria a menor probabilidade de Yoshi escapar a um golpe assim. Absolutamente nenhuma. Uma oportunidade excepcional desperdiçada! E quanto a permitir que Yoshi segurasse o cabo da espada, aparando o golpe contra a barriga...
Rushan merecia ser capturado vivo e usado para prática de espada! Espere, talvez tenha sido melhor assim. Se Rushan se mostrara tão inepto em seu supremo duelo, seria bem provável que cedesse sob interrogatório, revelando as casas seguras, as que conhecia. Não se pode confiar no pessoal de Tosa, shishi ou não!
Mas por que Toranaga Yoshi assumira um risco tão grande?
Soaram gritos lá atrás. Soldados perseguiam os retardatários na multidão, a fim de deter algumas testemunhas. Não havia chance de que o pegassem, por isso não precisava se apressar.
A chuva recomeçou. O vento aumentou. Ele aconchegou o manto em torno dos ombros, contente por usá-lo, e também o chapéu. Desceu por uma viela cheia de poças d’água, entrou em outra, atravessou uma ponte, as tábuas escorregadias. Logo se descobriu seguro, num labirinto de ruas pequenas, levando a uma entrada no muro dos fundos de uma enorme residência. O guarda reconheceu-o, deixou-o passar, indicando a casa segura dos shishi, perdida nos vastos jardins. O uniforme do homem exibia a insígnia do lorde camarista Wakura.
Na rua em que ficava o quartel-general de Toranaga, o vendeiro era conduzido para a casa da guarda, protestando aos brados que nada sabia, não era ninguém, e suplicando para que o deixassem ir embora... não ousara desaparecer junto com os outros, pois era bastante conhecido ali. Uns poucos retardatários, apanhados antes de escaparem, eram empurrados atrás dele. O toldo da barraca sacudia ao vento e chuva.
Koiko dava os retoques finais na maquilagem, com a ajuda de um espelho de mão de aço polido. Os dedos tremiam um pouco. Mais uma vez, ela efetuou um esforço consciente para esvaziar a mente e confinar seus medos, por Yoshi e por causa dele, por si mesma e por sua própria causa. As duas outras mulheres, Teko, sua maiko — aprendiz — e Sumomo, observavam atentamente. O quarto era pequeno e funcional, como o resto da suíte, adjacente aos aposentos de Yoshi, o suficiente para ela, quando dormia sozinha, e uma criada. Os outros aposentos, para suas atendentes, ficavam mais adiante.
Ao terminar, ela contemplou seu reflexo. Não podia detectar linhas de preocupação; quando ensaiou um sorriso, a pele do rosto se contraiu apenas no lugares corretos, os olhos eram brancos onde deveriam ser brancos, escuros onde deveriam ser escuros, sem deixar transparecer coisa alguma de sua profunda ansiedade. Isso a agradou. Teve um vislumbre de Sumomo. Sem saber que era observada, Sumomo exibiu por um momento um rosto aberto. Koiko sentiu o estômago revirar, percebendo conflitos demais ali.
Treinamento, treinamento, treinamento, o que seríamos sem isso, pensou ela, e virou-se para fitá-las. Teko, pouco mais que uma criança, pegou o espelho sem que fosse pedido, ajeitou uma mecha desgarrada no lugar, com extrema habilidade.
— É uma beleza, dama Koiko — murmurou Sumomo, fascinada.
Era a primeira vez que ela tinha permissão para entrar nos aposentos particulares de Koiko. Os segredos do processo de beleza haviam sido uma revelação, além de toda a sua experiência.
— É mesmo — concordou Koiko, pensando que ela se referia ao espelho, a perfeição de sua superfície tornando-o de valor quase inestimável. — E é também um espelho generoso. Poucos o são, Sumomo... é essencial nesta vida que uma mulher tenha um espelho generoso para se contemplar.
— Oh, não! Eu falava de toda a imagem que projeta, não disso — explicou Sumomo, embaraçada. — Do quimono ao penteado, a escolha das cores, como maquila os lábios e sobrancelhas, tudo enfim. Obrigada por me permitir testemunhar.
Koiko riu.
— Espero que com ou sem tudo isso o efeito não seja muito diferente!
— É a pessoa mais linda que já conheci! — exclamou Sumomo.
Em comparação com Koiko, ela sentia-se como uma camponesa, sem qualquer sofisticação, inepta, bovina, toda dedos, cotovelos e pés enormes, pela primeira vez em sua vida consciente da falta de feminilidade. O que meu amado Hiraga pode ver em mim? — perguntou a si mesma, consternada. Não sou nada, desgraciosa, nem mesmo uma Choshu, como ele. Não lhe trago terras, nem prestígio, nem dinheiro, e tenho certeza que, no fundo, seus pais me desaprovam — E provavelmente a mais linda que jamais verei!
E Sumomo pensou: Todas as damas do mundo flutuante são como você? Até mesmo a maiko será deslumbrante quando crescer, embora não como sua ama. Não é de admirar que os homens casem com mulheres como eu só para cuidar de suas casas, gerar seus filhos, porque lhes é fácil demais idolatrar em outras partes, desfrutar a beleza em outras partes.
Com a sinceridade, Koiko percebeu a infelicidade e inveja, que não podiam ser escondidas.
— Você também é bonita, Sumomo — murmurou ela, há muito consciente que causava esse efeito em muitas mulheres. —Teko-chan, pode ir agora, mas prepare tudo para mais tarde... e providencie para que não sejamos incomodadas, Sumomo e eu.
— Pois não, ama.
Teko tinha onze anos. Como acontecera com Koiko, seu contrato fora firmado a mama-san da casa da Glicínia por seus pais camponeses, quando tinha sete nos. Sua vida lucrativa começaria quando estivesse com quatorze ou quinze anos. Até lá, e enquanto a mama-san quisesse, o contrato tornava a mama-san responsável por seu sustento, roupas e treinamento para uma vida no mundo flutuante, e também, se ela demonstrasse aptidão, em suas várias artes: como música, dançarina, poeta ou conversadora, se não mesmo todas elas. Se a maiko provasse ser impossível de ser treinada, ou uma pessoa difícil, a mama-san poderia revender o contrato, a seu critério; mas se a escolha fora sábia, como no caso de Koiko, o considerável desembolso financeiro e risco assumido da mama-san teriam uma retribuição abundante, em dinheiro e reputação. Nem todas as mama-sans eram atenciosas, gentis ou pacientes.
— Saia, agora, e vá praticar suas escalas — disse Koiko.
— Pois não, ama.
Teko sabia que fora abençoada ao ser designada para aprendiz com Koiko, a quem adorava, empenhando-se ao máximo para agradá-la. Ela fez uma reverência perfeita e se retirou, com seu charme irrepreensível.
— Muito bem.
Koiko fitou Sumomo, sentindo apreensivo fascínio por ela, seu olhar direto, o comportamento e a força. Desde que concordara em permitir sua estada, cinco dias antes, quase não houvera oportunidade de conversarem a sós. Agora, chegara o momento. Ela abriu um compartimento mental: Katsumata.
Ah, meu amigo, o que fez comigo?
Ele a abordara durante sua visita à mama-san de Quioto, que por instigação de Meikin, sua própria mama-san em Iedo, providenciara criadas, cabeleireira, massagistas, durante sua permanência na cidade. Só Teko e uma criada vieram com ela de Iedo.
— Peço um favor por uma vida inteira — dissera Katsumata.
— Não deve! — protestara ela, chocada ao vê-lo, chocada por saber que ele a deixaria em perigo por aquele encontro clandestino, e chocada por Katsumata lhe pedir um favor que teria, sem dúvida, terríveis conseqüências. Uma vez concedido, nenhum outro favor jamais poderia ser pedido à mesma pessoa, pois a dívida inerente seria enorme. — Concordamos, quando lorde Toranaga Yoshi me acolheu, que todos os contatos pessoais entre nós deveriam cessar, exceto numa emergência.
— É por isso que lhe peço o favor de uma vida inteira.
Sete anos atrás, em Iedo, quando ela tinha quinze anos, Katsumata fora seu primeiro cliente. Logo se tomara muito mais: amigo, guru e mestre extraordinário. Abrira seus olhos para o mundo, para a importância do mundo real, assim com o mundo flutuante. Ao longo dos anos, Katsumata lhe ensinara a cerimônia do chá, a arte do debate, caligrafia, sobre poesia e os significados profusos da literatura política, relatara suas idéias e planos para o futuro, como aquele seu pequeno bando de acólitos samurais dominaria toda a terra, mostrara como havia um lugar vital para ela no quebra-cabeça chamado sonno-joi.
— Como cortesã de suprema classe, você se tornará a confidente de poderosos e como a esposa de um deles, pois assim casará, não se preocupe, terá filhos samurais, será indispensável para o novo futuro, com uma parcela do poder. Nunca se esqueça disso!
Meikin, sua mama-san, era partidária; assim, naturalmente, ela concordara, a imaginação devorada por sua bravura, coragem e seu grupo de shishi, o início de sua fortuna.
— Nossa sorte acabou — dissera ele e relatara a emboscada da noite anterior, sua fuga com mais duas pessoas. — Fomos traídos... não sei por quem, mas temos de nos dispersar... por enquanto.
— As cabeças de quarenta shishi espetadas em chuços? —sussurrara ela, transtornada.
— Isso mesmo, quarenta. E quase todos eram líderes. Só três escapamos, outro shishi, e uma moça... uma pupila minha. Preste atenção, Koiko-chan, pois não há muito tempo. O favor de uma vida inteira que quero lhe pedir é guardar essa moça, enquanto permanecer em Quioto, abrigá-la em sua casa, até mesmo levá-la de volta a Iedo, e...
— Por mais que eu quisesse, sinto muito, seria difícil demais já que o general Akeda é muito rigoroso com as pessoas. Trataria de interrogá-la pessoalmente... foi o que fez com todas as minhas ajudantes.
Koiko falara com o máximo de gentileza que podia, embora por dentro se sentisse horrorizada por ele ousar lhe fazer uma sugestão tão perigosa, a de acolher uma fugitiva shishi, mesmo que inocente.
— Claro que será difícil, mas tenho certeza de que você poderá arrumar tudo sem que ele a veja.
— Não creio que seja possível e temos de pensar também em lorde Yoshi.
Ela deixara esse problema adicional no ar, torcendo frenética para que ele retirasse o pedido de favor. Mas Katsumata insistira, suave, observando-a com seus olhos penetrantes e compulsivos, explicando que Sumomo ficaria segura com Koiko, que era samurai, noiva de um importante shishi, merecia toda confiança.
— Sinto muito, mas tenho de lhe pedir isso, por sonno-joi. Ela é de confiança. E se houver algum problema, mande-a embora. Ela fará qualquer tarefa que mandar... Agora tenho de ir, Koiko-chan. Um favor de uma vida inteira, para um velho amigo.
— Espere. Se... Terei de consultar o general Akeda, mas mesmo que possa evita-lo, devo consultar o resto do meu pessoal. E o que lhes direi? Não conheço essas pessoas de Quioto, não sei como elas são.
—A mama-san garante que merecem toda confiança — dissera Katsumata, com plena convicção. — Falei com ela, e obtive sua aprovação, Koiko, caso contrário não faria a sugestão. Diga a verdade, que Sumomo é uma moça voluntariosa, e que seu guardião... um velho cliente... quer reprimi-la, treiná-la nas úteis artes femininas. Não posso levá-la comigo e quero deixá-la protegida aqui. Tenho uma obrigação com seu noivo. Ela obedecerá a você em tudo.
Koiko estremeceu ao pensar no perigo a que se expunha, e também as pessoas pelas quais era responsável, Teko e suas atendentes, quatro criadas, uma cabeleireira e uma massagista. Felizmente, todas haviam concordado em aceitar aquela estranha e em ajudar a mudar seus hábitos... e o interrogatório de Akeda não descobrira qualquer falha.
Ah, Katsumata, pensou ela, você sabia que eu nada podia lhe recusar. É curioso com que rapidez você foi além de precisar de meu corpo, por uns poucos meses, querendo em vez disso possuir e expandir minha mente. Ainda estou presa por argolas de ferro, tenho uma dívida profunda. Sem você e o conhecimento que me proporcionou, eu não me encontraria no pináculo que alcancei agora... capaz de enganar o maior homem da terra.
— Sente-se, Sumomo. Dispomos de um pouco de tempo agora, antes de eu sair. Ninguém poderá nos ouvir aqui.
— Obrigada.
— Minhas atendentes estão preocupadas com você.
— Por favor, desculpe-me se não tenho sido correta.
Koiko sorriu.
— As criadas indagam se você tem uma língua na cabeça, todas concordam que sua cortesia precisa melhorar, e podem compreender um guardião querendo que mude.
— Preciso mesmo melhorar — murmurou Sumomo, sorrindo também.
Os olhos de Koiko se contraíram. A jovem à sua frente não era desgraciosa, tinha um corpo esguio e forte, o rosto sem maquilagem, o viço da juventude e saúde compensando essa deficiência. Seus cabelos são bons, mas precisam ser arrumados, refletiu ela, crítica. O estilo de Quioto lhe seria conveniente, com bons óleos nas mãos e braços, um pouco de sombra nas faces, um toque de cor nos lábios. A moça promete. Devemos nos banhar juntas, e assim saberei mais, embora duvide que ela possa se adaptar à nossa vida, mesmo que assim quisesse.
— Você é virgem, não é?
A moça corou, soltou uma risada contrafeita.
— Ah, sinto muito, claro que é. Por um momento, esqueci que não pertence ao nosso mundo. Por favor, desculpe, mas é raro para nós conhecermos forasteiras, ainda menos uma dama samurai, e ter uma em nossa casa, mesmo que por um curto período, é quase desconhecido.
— É assim que nos chamam, forasteiras?
— É, sim. Nosso mundo flutuante nos mantém apartadas. Veja a pequena Teko. Muito em breve sua outra vida terá desaparecido e ela só conhecerá a minha. É esse meu dever, treiná-la, mantê-la gentil e generosa, disposta a se sacrificar pelo prazer do homem... não por seu impulso. — Os olhos de Koiko adquiriram um súbito brilho. — É isso o que mantém os homens felizes e contentes, o prazer em todas as suas manifestações, neh?
— Sinto muito, mas não compreendo essas “manifestações”.
— Querem dizer “aparências ou qualidades” para demonstrar prazer em todos os seus graus.
— Ah, obrigado — disse Sumomo, impressionada. — Por favor, desculpe-me. Nunca imaginei que as damas do mundo flutuante eram tão... claro que presumia que eram bonitas, mas nunca tão belas quanto você. Também nunca pensei que pudessem ser tão instruídas e consumadas.
Nos poucos dias que já passara ali, ouvira Koiko cantar, tocar o samisen, e se sentira inspirada pela qualidade incomparável e seu repertório... ela também podia tocar o samisen, apenas um pouco, e sabia como era difícil. Ouvira-a ensinar a Teko a arte do haiku e outras poesias, como refinar uma frase, sobre sedas, como são produzidas, a urdidura, a trama e outros mistérios, os primórdios da história e maravilhas similares, um vasto âmbito de conhecimentos. Sumomo fez uma reverência, em tributo.
— Quero que saiba que me espanta, dama.
Koiko riu suavemente.
— Aprender é a parte mais importante de nosso trabalho. É fácil satisfazer o corpo de um homem... um prazer transitório... mas é difícil agradá-lo por um prazo mais prolongado, envolvê-lo, conservar seu favor. Isso deve vir através dos sentidos da mente. Para consegui-lo, é preciso treinar com extremo cuidado. Você deve começar a fazer isso também.
— “Quando há flores de cerejeira para admirar, quem olharia para pontas de cenoura?”
— Quando um homem está faminto, procura cenouras, não flores de cerejeira, e ele se mostra faminto a maior parte do tempo.
Koiko esperou, divertida. Viu Sumomo baixar os olhos, desorientada.
— Cenoura é comida de camponês, dama — murmurou ela, num fio de voz. — Sinto muito.
— Cerejas são um gosto adquirido, assim como suas flores. As cenouras podem oferecer muitos sabores, se tratadas da forma apropriada.
Mais uma vez ela esperou, mas Sumomo continuou de olhos baixos.
— Não em enigmas, para não deixá-la confusa. Não é sexo que os homens realmente procuram em meu mundo, mas romance... nosso fruto mais proibido.
Sumomo ficou surpresa.
— É mesmo?
— É, sim, para nós. Um fruto venenoso. Os homens procuram romance em seu mundo também, a maioria, e não é proibido para você, não é?
— Não.
— Seu futuro marido não é diferente, também procura romance, onde quer que esteja disponível. É melhor oferecer-lhe isso em casa, o máximo que puder, por tanto tempo quanto puder. — Koiko sorriu. — Assim, poderá ter cerejeiras e também boas cenouras. Os temperos podem ser adquiridos com a maior facilidade.
— Pois então me ensine, por favor.
— Fale- sobre esse homem, seu futuro marido.
— O nome dele é Oda, Rokan Oda — respondeu Sumomo, usando o nome de cobertura que Katsumata lhe fornecera. — O pai é um goshi... e ele vem de Kanagawa, em Satsuma.
— E seu próprio pai?
— É como eu disse, dama. Ele é da linhagem Fujahito. — Sumomo usava o seu novo nome de cobertura. — É de uma aldeia próxima e também goshi.
— Seu guardião diz que Rokan Oda é importante.
— Ele é muito generoso, dama, embora Oda-sama seja um shishi e tenha participado do ataque a lorde Anjo, nos portões de Iedo, e também matado o velho Utani.
Katsumata lhe dissera que seria melhor contar a verdade sempre que possível, pois assim haveria menos mentiras a recordar.
— Onde ele está agora?
— Em Iedo, dama.
— Quanto tempo quer ficar comigo?
— Por mim, dama, tanto tempo quanto puder. Meu guardião disse que Quioto era um lugar perigoso para mim. Não posso voltar para casa, porque meu pai desaprova o que faço, assim como os pais de Oda-sama o desaprovam, por minha causa.
Koiko franziu o rosto.
— Isso tornará a vida impossível.
— É verdade. Karma é karma, e o que tiver de ser será. Apesar de eu não ser de valor para ninguém, e creio que desconhecida para o Bakufu, sensei Katsumata aprova meu Oda-sama e aceitou a responsabilidade. Ele disse que devo lhe obedecer em todas as coisas.
— Melhor seria obedecer a seus pais, Sumomo.
— Sei disso, mas meu Oda-sama proibiu.
Uma boa resposta, pensou Koiko, vendo o orgulho e a convicção. Triste, ela olhou pela janela entreaberta. Aquele romance proibido acabaria com certeza como tantos outros. Em suicídio. Juntos, se Sumomo fosse abençoada. Ou ela sozinha, quando aquele Oda obedecesse a seus pais, como deveria, e tomasse uma esposa aceitável.
Ela suspirou. No jardim, o crepúsculo transformava-se em noite. Uma suave brisa.
— As folhas sussurram umas para as outras. O que estão dizendo?
Sumomo disfarçou sua surpresa, prestou atenção e disse, depois de um momento:
— Sinto muito, mas não sei.
— Fique escutando durante a minha ausência. É importante saber o que as folhas sussurram. Passará esta noite aqui, Sumomo. Talvez eu volte, talvez não Se eu voltar, conversaremos mais um pouco e você me dirá. Se eu não voltar continuaremos a conversa amanhã, e poderá então me dizer. Quando Teko voltar para arrumar os futons, diga a ela que quero que vocês duas façam um haiku. — Koiko pensou por um instante, depois sorriu. — Um haiku sobre uma lesma.
— Olá, Koiko — murmurou Yoshi, apático.
Ele estava de costas para a parede, a mão perto da espada, numa yukata púrpura de seda. Por fora, parecia calmo, mas Koiko percebeu que ele se sentia solitário, assustado, precisando de outras habilidades.
Seu sorriso daria para iluminar o dia mais tenebroso. No mesmo instante, ela viu os olhos de Yoshi abrandarem. Muito bem, o primeiro obstáculo.
— Tenho um poema para você — anunciou ela, com um ar solene, simulado.
Não é fácil
Ter certeza
Que ponta é o que
De uma lesma em repouso!
A risada de Yoshi ressoou pelo aposento. Muito bem, o segundo obstáculo.
— Estou satisfeita por ter me permitido vir para Quioto em sua companhia.
Os olhos de Yoshi assumiram um certo brilho, e ela se animou. Instintivamente, mudou o que ia dizer, que ele era muito bonito nas luzes bruxuleantes da noite. Em vez disso, murmurou o que havia em seu íntimo:
Foram tristes tempos
Quando, sem você,
Contemplei os dias subirem
Para descerem de novo.
Koiko ajoelhara-se à sua frente e ele se inclinou, pegou sua mão. Não havia necessidade de palavras. Para nenhum dos dois. Agora Yoshi sentia-se em paz, a tensão desaparecida, a solidão esquecida, junto com o medo. E Koiko também se sentia em paz. Tanta energia dispensada para tirá-lo de si mesmo. Tanta coisa revelada. Era uma insensatez revelar demais.
Você é muito importante para mim, ele estava dizendo, sem falar, usando a linguagem dos amantes.
E você me concede uma grande honra, respondeu Koiko, um ligeiro franzido na testa. Seus dedos acariciam o dorso da mão de Yoshi, delicados, dizendo eu amo você.
Olhos se encontraram. Ela ergueu a mão de Yoshi, roçou os lábios. O silêncio os envolvia, começou a se tornar opressivo. Num súbito movimento, Koiko foi para o lado dele, abraçou-o com força. Sua risada foi melodiosa.
— Estamos sérios demais para mim, Tora-chan! — Ela abraçou-o de novo, aninhou-se em seu peito. — Você me faz muito feliz.
— Não mais do que eu — murmurou Yoshi, contente porque a tensão se dissipara.— Você é adorada, assim como seus poemas.
— Aquele sobre a lesma era de Kyorai.
Ele riu.
— É de Koiko, o Lírio! É, não era.
Ela se aconchegou ainda mais, apreciando seu calor e força.
— Quase morri quando soube do que aconteceu esta manhã.
— Vida — disse ele. — Eu deveria estar mais alerta, mas me sentia fascinado pela rua.
Yoshi contou como tudo lhe parecera diferente.
— Foi uma experiência excepcional... a sensação de invisibilidade... boa demais para não experimentá-la de novo, por maior que seja o perigo. O perigo acrescenta um tempero? Experimentarei de novo em Iedo. Será mais fácil à noite; treinarei guardas especiais para me acompanharem.
— Por favor, desculpe, mas sugiro que tenha um certo comedimento no consumo dessa droga.
— É o que pretendo. — Os braços de Yoshi a apertaram, ambos se sentindo confortáveis. — Mas pode muito bem se desenvolver num vício.
Yoshi dormia no cômodo ao lado. Como todo o complexo de alojamentos, os aposentos eram masculinos, com um mínimo de móveis, o tatame de primeira qualidade, mas precisando ser trocado. Não terei nenhum desagrado ao sair daqui, pensou ele. Seus ouvidos captaram o som de passos se aproximando, e a mão deslocou-se para o cabo da espada. Os dois ficaram tensos.
— Sire? — disse uma voz abafada.
— O que é? — perguntou Yoshi.
— Sinto muito incomodá-lo, Sire, mas acaba de chegar uma carta do Dente do Dragão.
Sem precisar que lhe fosse pedido, Koiko foi para o lado da porta, fora do caminho, e ali se manteve, de guarda. Yoshi aprontou-se.
— Abra a porta, sentinela — ordenou ele.
A porta foi aberta. O homem hesitou, vendo Yoshi numa posição de defesa-ataque, a espada solta na bainha.
— Entregue o pergaminho à dama Koiko.
O homem obedeceu e se retirou em seguida. Depois que ele chegou ao final do corredor e passou pela porta que havia ali, Koiko fechou a porta do aposento. Foi entregar o pergaminho a Yoshi e ajoelhou-se na sua frente. Ele rompeu o lacre. A carta da esposa indagava por sua saúde, comunicava que os filhos e o resto da família passavam bem e aguardavam ansiosos por seu retorno. Depois, as informações começavam:
Os garimpeiros estiveram viajando diligentes, acompanhados por seu vassalo Misamoto. Ainda não encontraram ouro, mas informam a existência de grandes — a palavra que usaram foi “imensos”— depósitos de carvão de alta qualidade, fácil de extrair, próximo à superfície. Soube que eles dizem que isso é o “ouro negro” e poderia ser lucrativamente negociado com os gai-jin por dinheiro. Eles continuam a procurar. Recebemos a notícia de que Anjo foi feito tairo, e se gaba de que você será em breve convidado a se retirar do Conselho de Anciãos. Próximo assunto, o confidente que você visitou a caminho de Quioto diz o seguinte: a palavra de código que ele lhe deu a respeito de um inimigo é correta, e que há um plano similar pronto, como a política de estado do inimigo.
Céu Escarlate. Portanto, um ataque-relâmpago é “Política de Estado”! Meu acordo com Ogama será mantido?
Ele pôs essa questão de lado, para analisá-la mais tarde, e continuou a ler:
O ronin, Ori, que se tornou um espião gai-jin, morreu no acampamento gai-jin. Acredita-se que o outro ronin, Hiraga, também se encontre ali. Seu espião diz também que interceptou a “criada” que você mandou de volta, como ordenado, e despachou-a para o norte, para um bordel muito pobre. O amante ronin dela foi morto.
Yoshi sorriu. Era a criada de Koiko que sussurrara sobre o encontro secreto de Utani para seu ronin shishi. No meio do caminho para Quioto, ele a dispensara, mandando-a de volta a Iedo, por causa de uma desconsideração imaginária... e é claro que Koiko não fizera qualquer objeção. Ótimo, pensou ele. Utani está vingado, mesmo que em pequena escala.
Próximo assunto, a Gyokoyama: Concluí as negociações de dinheiro. Posso usar a possibilidade de carvão como uma garantia adicional para quaisquer armamentos encomendados? Talvez devêssemos tentar negociar com os gai-jin diretamente, talvez usando Misamoto? Por favor, dê-me seu conselho. Sire, sinto muita falta de sua presença e sábios conselhos. Por último, sinto muito, mas a escassez de víveres começou.
Yoshi releu a carta. Conhecendo Hosaki muito bem, sabia que a maneira como ela usara “garantia adicional” significava que a negociação fora difícil e o preço alto. Não importa, no próximo ano não haverá escassez, e a Gyokoyama, se eles continuarem a viver por tanto tempo nas terras que controlo, será paga.
Ele olhou para Koiko. Ela tinha o olhar perdido no espaço, mergulhada em sonhos que Yoshi sabia que nunca poderia partilhar.
— Koiko?
— Ah... Pois não, Sire?
— Em que está pensando?
— O que as folhas sussurram para as folhas.
Intrigado, ele comentou:
— Depende da árvore.
Ela sorriu, um doce sorriso.
— Um bordo, um bordo vermelho.
— Em que época?
— No nono mês.
— Se estiverem observando, sussurram: “Em breve tombaremos para nunca mais voltar. Mas eles são abençoados. Crescem na árvore da vida. O sangue deles é o nosso sangue.”
Koiko bateu palmas, sorrindo.
— Perfeito! E se fosse um pinheiro, na primavera?
— Não agora, Koiko-chan. Mais tarde.
Percebendo a súbita seriedade, ela também ficou séria.
— Más notícias, Sire?
— Não e sim. Partirei ao amanhecer.
— Para o Dente do Dragão?
Ele hesitou e Koiko especulou se cometera um erro ao perguntar, mas Yoshi pensava no que fazer com ela. Antes, avaliando a necessidade de outra marcha forçada, decidira seguir à frente e ela iria atrás, o mais depressa que pudesse. Agora, contemplando-a, não queria que Koiko ficasse longe. Seu palanquim os atrasaria. Ela sabia cavalgar, embora não muito bem, e a viagem seria árdua. De qualquer forma, o plano que combinara com Akeda persistiria:
— A primeira coluna de quarenta homens, com um duble usando uma das minhas armaduras leves, parte pouco antes do amanhecer, e segue sem pressa, de uma maneira óbvia, para a estrada do Norte. No meio do caminho para Iedo, fará a volta, retornando para cá, meu duble desaparecendo. A segunda coluna, a minha, com os homens que trouxe de Iedo, partirá pouco depois da primeira, e seguirá depressa para a Tokaidô. Marcha forçada, sob o comando do mesmo capitão. Estarei disfarçado como um samurai de cavalaria comum, e assim permanecerei, até me encontrar são e salvo no castelo em Iedo.
— Muito perigoso, Sire — protestara o general Akeda.
— Também acho. Você ficará vigiando Ogama. Será vantajoso para ele se eu conseguir controlar Anjo.
— Tem razão. Mas é um alvo irresistível lá fora e bem fácil. Veja o que aconteceu hoje. Deixe-me acompanhá-lo.
— Impossível. Se Ogama decidir desfechar sua ofensiva, atacará primeiro aqui... é melhor esperar por isso. Deve repeli-lo a qualquer custo.
— Não falharei, Sire — garantira o velho general.
E eu não falharei no empenho de alcançar Iedo, pensou Yoshi, com igual confiança. Quanto ao ataque, só faz me lembrar que não foi o primeiro e não será o último.
Ele constatou que Koiko o observava. É mais fácil ser equilibrado quando ela está perto de mim. A luz do lampião faiscava em seus lábios e olhos, ele admirou a curva das faces, a coluna do pescoço, os cabelos pretos, as dobras impecáveis do quimono, deixando à mostra um pouco de sua pele alva. Curvas suaves, a postura perfeita, as mãos, como flores, pousadas no colo de seda azul.
Ela teria de viajar sem bagagem. E sem criadas. Teria de se contentar com que pudesse encontrar nas sucessivas estalagens. O que a desagradaria, pois ela gosta de perfeição. Talvez rejeite essa desconsideração e o que seria para ela uma pressa desnecessária. Yoshi recordou a primeira vez que sugerira isso.
Acontecera há não muito tempo, logo depois que decidira obter sua exclusividade, e dissera à mama-san, Meikin, que partisse com ela para o Dente do Dragão, a fim de acertar tudo com sua esposa, o mais depressa possível — Hosaki julgara, de forma correta, que precisava se encontrar pessoalmente com a mama-san e Koiko, já que o compromisso financeiro seria enorme.
Meikin disse-lhe que seria preciso pelo menos uma semana para planejar a viagem, pois Koiko levaria sua cabeleireira, a massagista e três criadas.
— Ridículo! — protestara ele, impaciente. — Não há necessidade de tantas atendentes para uma viagem tão curta, e seria uma despesa desnecessária. Vocês duas partirão de imediato.
Elas haviam obedecido. E viajaram sem atendentes. Levaram três dias para chegar à primeira estação de posta, fora de Iedo, mais três dias até a seguinte. Furioso, ele percorrera a mesma distância, a cavalo, do amanhecer ao crepúsculo.
— Lorde Yoshi! — exclamara Meikin, cumprimentando-o efusiva, com uma surpresa simulada. — Que prazer vê-lo aqui!
— Por que tanta demora?
— Demora, Sire? Recebemos a ordem de partir imediatamente. Estamos fazendo o que mandou.
— Mas por que levaram tanto tempo para chegar aqui?
— Tanto tempo, Sire? Não nos ordenou uma marcha forçada.
— Terão de se apressar! — dissera ele, ríspido. — Avise a Koiko que desejo vê-la.
A mama-san fizera uma reverência e seguira apressada para os aposentos de Koiko, deixando-o a ferver de raiva. Ao voltar, ela anunciara, feliz:
— Koiko-san se sentirá honrada em recebê-lo, Sire, o mais depressa possível. Assim que puder arrumar uma criada conveniente para ajudá-la com os cabelos. Ela lamenta, mas seria impertinente recebê-lo sem os devidos preparativos que uma pessoa tão honrada e reverenciada esperaria, e acrescenta, humildemente: “Por favor, tenha a gentileza de esperar, serei tão rápida quanto for possível, assim que as criadas chegarem.”
Irritado, ele compreendera que teria de esperar, não importava o quanto insistisse Seu único recurso era irromper no quarto de Koiko e perder a classe, destruindo toda e qualquer possibilidade de tê-la outra vez à sua disposição.
Quem ela pensa que é? — Yoshi tivera vontade de gritar.
Mas não o fizera. Sorrira para si mesmo. Quando se compra uma espada excepcional, espera-se que seja feita do melhor aço, com o gume mais afiado, como se tivesse um fogo próprio. Ele acenara com a cabeça e dissera, com frieza:
— Mande trazer as criadas... assim como a cabeleireira e a massagista... de Iedo, o mais depressa possível. É culpa sua que não estejam aqui, pois deveria ter me dito como eram importantes para a dama Koiko. Ela está correta ao não me receber de maneira imprópria. Espero que isso nunca mais torne a acontecer!
Meikin o inundara de desculpas, fizera uma reverência abjeta, e ele rira por todo o caminho de volta a Iedo, tendo levado a melhor sobre as duas, fazendo com que ambas se humilhassem e dando uma advertência firme: Nunca mais tentem me manipular.
Os olhos de Koiko não se haviam desviado de seu rosto em momento nenhum, observando e esperando.
— Quando sorri, Sire, isso me deixa muito feliz.
— De que estou sorrindo?
— De mim, Sire. Creio que é porque o ajudo a rir da vida, e embora o tempo do Homem neste mundo seja apenas uma rápida caçada por abrigo, antes de a chuva cair, permite-me de vez em quando que lhe proporcione um abrigo contra a chuva.
— Tem razão — murmurou Yoshi, satisfeito. Se deixá-la aqui, não a verei por semanas, e a vida é apenas uma flor de cerejeira, exposta a um vento instável, que não conhece amo... minha vida, a vida de Koiko, toda e qualquer vida. — Não quero deixá-la aqui.
— Será bom voltar para casa.
Em seu coração secreto, ele pensou em Meikin. Não esqueci que ela é uma informante shishi, assim como sua criada. Foi uma estupidez da mama-san expor você ao perigo, possibilitar o risco de eu pensar que você também faz parte dessa escória assassina.
Algumas de suas criadas sabem cavalgar, Koiko?
— Não sei, Sire. Imagino que pelo menos uma deve saber.
Se você fosse comigo, teria de ir a cavalo também, com apenas uma criada, e viajar sem bagagem, pois um palanquim me atrasaria. Mas posso dar um jeito Para que viaje sem pressa, com todas as criadas, se assim preferir.
Obrigada, mas já que me prefere em sua companhia, sua preferência também é a minha. Se eu me tornar um fardo, poderá então decidir com a maior facilidade. Agradeço a honra de ter me chamado.
— Mas há alguma criada, uma criada aceitável, que possa acompanhá-la a cavalo? Se não houver, você pode partir depois, o mais depressa que for possível.
Mais uma vez, ele oferecia a Koiko a oportunidade de recusar de uma forma graciosa, sem ofensa.
— Há uma, Sire — respondeu ela, num súbito impulso. — Uma nova maiko, não chega a ser uma criada, mas uma aprendiz, e um pouco mais. Seu nome Sumomo Fujahito, filha de um goshi de Satsuma, pupila de um velho amigo, um cliente que foi bom para mim há muitos anos.
Ele escutou, enquanto Koiko falava sobre Sumomo. Era muito bem versado nos costumes do mundo flutuante para indagar sobre o outro cliente. Intrigado, ele mandou chamar a moça.
— Quer dizer que seu pai desaprova seu futuro casamento?
— Sim, lorde.
— É imperdoável não obedecer aos pais.
— Sim, lorde.
— Vai lhes obedecer.
— Sim, lorde. — Ela fitou-o, sem medo. — Já disse a eles, humildemente, que obedecerei, mas que morrerei antes de casar com qualquer outro homem.
— Seu pai deveria tê-la internado num convento por tal impertinência.
Depois de uma pausa, Sumomo murmurou:
— Sim, lorde.
— Por que está aqui, em Quioto, e não em sua terra?
— Eu... fui enviada para ser retreinada por meu guardião.
— Ele tem feito um trabalho ruim, não é?
— Sinto muito, lorde.
Ela inclinou a cabeça para o tatame, polida, com graça, mas Yoshi tinha certeza que sem qualquer penitência. Por que desperdiçar meu tempo? — pensou ele. Talvez porque eu esteja acostumado com a obediência absoluta de todos, exceto Koiko, que deve ser manobrada como um barco instável num vento forte, talvez porque possa ser divertido controlar essa jovem, treiná-la para o punho como o falcão-peregrino implume que ela parece ser, usar seu bico e garras para os meus propósitos, não para o seu lorde de criação Oda.
— O que fará quando esse Oda, esse goshi de Satsuma, decidir obedecer a seus pais, como tem o dever, e tomar outra mulher para esposa?
— Se ele me aceitar como uma consorte, mesmo sem intimidade, ficarei contente. Como uma mulher ocasional, ficarei contente. E no momento em que ele se cansar de mim, ou me dispensar, será o dia em que morrerei.
— É uma moça estúpida.
— Sim, lorde. Por favor, desculpe, esse é o meu karma.
Ela baixou os olhos, permaneceu imóvel. Divertido, Yoshi lançou um olhar para Koiko, que aguardava sua decisão.
— Digamos que seu lorde suserano, Sanjiro, ordenasse que casasse com outro homem e também ordenasse que não cometesse seppuku.
— Sou samurai e obedeceria sem hesitar — disse Sumomo, orgulhosa —, assim como também obedecerei a meu guardião e a Oda-sama. Mas a caminho do banquete de casamento poderia ocorrer um lamentável acidente.
Ele soltou um grunhido.
— Você tem irmãs?
Sumomo se surpreendeu com a pergunta.
— Sim, lorde. Três.
— São tão estúpidas e difíceis quanto você?
— Elas... não, Sire.
— Sabe cavalgar?
— Sei, Sire.
— O suficiente para viajar até Iedo?
— Sim, Sire.
— Koiko, tem certeza que ela pode agradá-la, se eu concordar?
— Acho que sim, Sire. Só receio que possa decepcioná-lo por minha falta de habilidade.
— Nunca vai me decepcionar, Koiko-chan. Muito bem, Sumomo, tem certeza de que será capaz de agradar a dama Koiko?
— Tenho, Sire, e a protegerei com a minha vida.
— Vai também melhorar suas maneiras, tornar-se menos arrogante, mais feminina e menos Domu-Gozen?
Era uma famosa samurai, amante de um xógum, uma assassina impiedosa, que séculos atrás se lançava à batalha ao lado de seu amante, igualmente violento. Ele viu os olhos de Sumomo se arregalarem e ela pareceu ainda mais jovem.
— Oh, não, não sou como ela... de jeito nenhum, lorde. Eu daria qualquer coisa para ser um pouquinho como a dama Koiko. Qualquer coisa.
Yoshi escondeu seu riso, enquanto Sumomo devorava a primeira isca que lhe lançara.
— Pode ir agora. Decidirei mais tarde.
Quando ficaram a sós de novo, ele soltou uma risada.
— Uma aposta, Koiko? Um quimono novo como Sumomo estará treinada quando chegarmos a Iedo... se eu decidir levar as duas comigo.
— Treinada de que modo, Sire?
— Concordará satisfeita em voltar para a casa dos pais, obedecer-lhes e casar sem seppuku.
Koiko balançou a cabeça, sorrindo.
— Sinto muito, mas qualquer que fosse a aposta, Sire, receio que você perderia.
O fato de que ela podia considerar que ele era capaz de cometer um erro de julgamento fez com que Yoshi perdesse um pouco de seu bom humor.
— Um quimono contra um favor — disse ele, ríspido, não pretendendo aquela rispidez.
— Aceito — respondeu Koiko, rindo. — Mas só se, com o presente do quimono, você concordar em receber o favor que vai me pedir.
Os olhos de Yoshi faiscaram de admiração pelo jeito como ela convertera seu equívoco num gracejo. Era um erro tentar uma mulher a uma aposta, qualquer aposta. E um erro se sentir confiante sobre as astúcias de uma mulher... um caminho certo para o desastre.
38
ALDEIA SAKONOSHITA
Sábado, 6 de dezembro:
Na estrada tokaidô, cerca de sessenta quilômetros a leste de Quioto, nas montanhas, ficava a sexta estação de posta, a aldeia de Sakonoshita. Enquanto o crepúsculo se adensava, o último dos viajantes e carregadores, encurvado contra o vento forte, passou apressado pela barreira, antes que fosse fechada. Todos estavam cansados e ansiosos por comida quente, saquê quente, por calor, até os guardas na barreira, uma meia dúzia, que batiam com os pés calçados com sandálias de palha contra o frio, verificando documentos de identidade ao acaso.
— Vai nevar esta noite — comentou um deles. — Detesto o inverno, detesto o frio, detesto este posto.
— Você detesta tudo.
— Nem tudo. Gosto de comer e fornicar. Na próxima vida, quero nascer filho de um emprestador de dinheiro e mercador de arroz de Osaca. Assim poderei comer, beber e fornicar só o melhor, e me manter aquecido, enquanto meu pai me compra uma posição de hirazamurai ou pelo menos de goshi... não de um mero e desprezado ashigaru.
— Sonhador! Renascerá como um camponês sem terra ou um dócil menino para divertir os outros, num bordel de décima categoria. Feche a barreira.
— Ainda não está escuro.
Deixe os retardatários congelarem, ou pagarem o habitual. Se o capitão ouvir, você vai se descobrir na ilha do Norte, onde dizem que o pau congela quando se tenta mijar.
O guarda olhou pela estrada, que seguia sinuosa na direção de Quioto, agora vazia, sob o céu escuro e ameaçador. Uma rajada de vento sacudiu os mantos de palha.
— Depressa, seu idiota! — gritou ele, impaciente, para um carregador seminu, cambaleando sob uma pesada carga.
Ele baixou a primeira barra, o rosto gretado pelo vento, e depois a segunda tomando a barreira firme, e se afastou em busca de abrigo e de uma sopa quente.
— Ei, olhe ali! — Uma falange de cavaleiros contornava a curva da estrada — Abra a barreira!
— Eles que esperem. Estão atrasados.
O guarda usou o dorso da mão para limpar um persistente corrimento do nariz contraindo os olhos contra o vento. Assim como os outros guardas, examinou os cavaleiros, calculou que eram trinta ou quarenta, cansado demais para contar com precisão. Como não havia estandartes, não devem ser importantes. Cobertos da poeira da viagem, os pôneis escumando. Havia duas mulheres no centro, escarranchadas, usando chapéus grandes com véus, presos por baixo do queixo. Ele riu para si mesmo. Não vão conseguir aposentos esta noite, não poderão dormir aconchegados, pois a aldeia está lotada. Pois que se danem.
Quando o grupo se aproximou, o capitão Abeh, na vanguarda, gritou:
— Abram a barreira!
— Estou indo, estou indo — resmungou o guarda, sem a menor pressa. Arrependeu-se um momento depois. Abeh saltou da sela, O golpe deixou o guarda sem sentidos.
— Abram a barreira! — berrou Abeh de novo, furioso.
Dois outros cavaleiros haviam desmontado também, Yoshi, com um lenço cobrindo o rosto, e Wataki, que fora recompensado por ajudar a salvar a vida de Yoshi. Um oficial saiu da casa da guarda, aturdido ao deparar com seu homem estendido no chão, inconsciente.
— O que está acontecendo aqui? Você está preso!
— Abram logo essa barreira!
— Você está preso!
Abeh contornou a barreira e ninguém podia se equivocar quanto ao perigo.
— Abram a barreira, depressa!
Guardas correram para obedecer, mas o oficial ainda insistiu:
— Quero ver os documentos de identidade, e...
— Escute aqui, seu macaco! — O capitão Abeh foi até o oficial, que ficou paralisado. — Visitantes importantes exigem boas maneiras, sem nenhum atraso numa noite fria, e ainda nem é o pôr-do-sol.
Com isso, ele desferiu um golpe no lado da cabeça do oficial, que cambaleou, para logo ser derrubado com um segundo golpe violento. Para os estupefatos guardas, Abeh acrescentou:
— Digam a esse tolo para se apresentar a mim ao amanhecer, ou vou usá-lo para prática de espada, assim como ao resto de vocês!
Ele acenou para que o cortejo passasse pela barreira, depois tornou a montar, e foi atrás. Poucos minutos mais tarde, já providenciara os melhores aposentos, na melhor estalagem. As pessoas para as quais estavam reservados fizeram reverências enquanto fugiam, gratas pelo privilégio de desocupá-los... ricos mercadores, outros samurais, nenhum dos quais disposto a uma briga até a morte, que seria inevitável se resistissem.
Yoshi tirou o chapéu e o lenço depois que as portas de shoji foram fechadas. O rotundo proprietário da estalagem dos Sonhos Agradáveis se encontrava de joelhos ao lado da porta, cabeça inclinada, esperando por ordens. Sua mente ressoava com imprecações por não ter sido avisado antes para a chegada daqueles retardatários, que iam perturbar sua tranqüilidade... quem quer que fossem. Não reconhecera ninguém e achava estranho que não exibissem estandartes, vestissem uniformes e símbolos simples do Bakufu, e não usassem nomes. Já percebera que até mesmo aquele samurai, agora tratado com tanto respeito em particular pelo infame capitão, recebendo seus aposentos mais caros, não era tratado pelo nome, nem pelo posto. E quem seriam as duas mulheres? A esposa e criada de um daimio? Ou apenas duas prostitutas de alta classe? A notícia da chegada do grupo espalhara-se depressa pela estalagem. O estalajadeiro já oferecera uma recompensa à criada que descobrisse a identidade deles.
— Seu nome, estalajadeiro? — perguntou Yoshi.
— Ichi-jo, Sire.
Ele achou que “Sire” era o título mais seguro.
— Primeiro um banho, depois massagem, a comida em seguida.
— Pois não, Sire. Posso ter a honra de lhe mostrar o caminho pessoalmente?
— Mande uma criada para cuidar disso. Comerei aqui. Obrigado. Pode ir agora.
O homem fez uma reverência untuosa, levantou-se e afastou-se bamboleando.
O capitão Abeh confirmou as disposições de segurança: sentinelas cercariam o bangalô de oito cômodos. Os aposentos de Koiko davam para a varanda, que seria vigiada durante todo o tempo. Entre seus aposentos e os de Yoshi, haveria um cômodo com mais dois guardas.
— Está certo, capitão. E agora vá dormir um pouco.
— Obrigado, mas não me sinto cansado, senhor.
Yoshi ordenara que o tratassem como um goshi comum, exceto em particular, quando o tratariam apenas como “senhor”.
— Mas terá de dormir. Preciso de você alerta. Ainda teremos muitos dias de viagem.
Yoshi percebeu um súbito brilho no fundo dos olhos injetados de fadiga do jovem e indagou:
— Oque é?
Apreensivo, Abeh murmurou:
— Desculpe, por favor, mas se é urgente a viagem para Iedo, seria mais seguro se fosse escoltado à frente da dama.
— Vá dormir — reiterou Yoshi. — Homens cansados cometem erros. Foi também um erro agredir o oficial. O guarda já era suficiente.
Ele dispensou o homem. Abeh fez uma reverência e se retirou, criticando a si mesmo pela estupidez de dizer uma coisa tão óbvia. Por três vezes ele fizera paradas desnecessárias naquele dia e duas no anterior. Foi verificar todas as sentinelas, seguiu para seu quarto e deitou-se. Em poucos momentos, mergulhou em profundo sono.
Depois do banho e da massagem, depois da comida, ingerida devagar, embora estivesse faminto, Yoshi saiu para o corredor. A decisão de trazer Koiko fora fácil. Ocorrera-lhe que ela seria um chamariz perfeito e dissera a Akeda para cuidar que todos soubessem que apenas a enviava sob escolta para Iedo, enquanto ele seguia separado.
— Perfeito! — concordara Akeda.
Ele entrou no cômodo exterior. Estava vazio, a porta de shoji fechada.
— Koiko? — chamou Yoshi, acomodando-se em uma das duas almofadas. A porta de shoji foi aberta. Sumomo se encontrava ajoelhada ali, segurando-a para Koiko, os olhos no tatame, os cabelos levantados, ao estilo de Quioto, as sobrancelhas depiladas, um pouco de maquilagem nos lábios. Uma melhoria agradável, pensou ele.
No momento em que o viu, Koiko também se ajoelhou, e as duas fizeram uma reverência ao mesmo tempo. Yoshi notou que a de Sumomo era perfeita, com a mesma graciosidade de Koiko, e isso também o agradou. Não havia qualquer sinal de que a viagem árdua afetara Sumomo. Ele retribuiu a saudação. As camas de futon já haviam sido arrumadas.
Koiko passou para o outro cômodo, sorrindo, e Sumomo fechou a porta de shoji.
— Como se sente, Tora-chan?
A voz de Koiko era doce, como sempre, o penteado perfeito, mas o quimono era o mesmo da noite anterior, o que jamais acontecera antes. Apreensivo, Yoshi notou um certo desconforto, quando ela se instalou na outra almofada.
— A viagem está sendo difícil demais para você?
— Os primeiros dias não podiam deixar de ser um pouco árduos, mas logo estarei tão resistente quanto... — Havia um brilho divertido nos olhos de Koiko. —... quanto Domu-Gozen.
Ele sorriu, mas sabia que cometera um erro de julgamento. Três estações de posta haviam sido cobertas no dia anterior, e o mesmo hoje, mas em nenhum dos dias fora percorrida a distância que ele desejava. A viagem a extenuava. Cometi um erro que não deveria ter ocorrido. Ela nunca vai se queixar, irá além de seu limite, pode até se prejudicar.
Preciso de tanta pressa? Claro que sim. Ela estará segura num palanquim, com uma escolta de dez homens? Com toda certeza. Seria sensato reduzir minha guarda em tantos homens? Não. Poderia chamar mais homens de Iedo esta noite, mas isso me custaria cinco ou seis dias. O instinto me diz que devo me apressar, os gai-jin são imprevisíveis. Anjo também, e até Ogama... que ameaçou: “Se você não cuidar deles, eu cuidarei.”
— Koiko-chan, vamos para a cama. Amanhã é amanhã.
De madrugada, Sumomo ficou deitada nos futons quentes, debaixo de cobertas, no quarto externo, um braço sob a cabeça, sonolenta, mas não cansada, e tranqüila.
A respiração de Yoshi era irregular, a de Koiko quase imperceptível. Ela podia ouvir os sons da noite lá fora. Um cachorro latindo em algum lugar, insetos noturnos, o vento na folhagem, um guarda murmurando para outro de vez em quando, o barulho de pratos e panelas na cozinha, onde o pessoal começava a trabalhar ainda cedo.
Seu primeiro sono fora ótimo. Os dois dias de exercícios vigorosos e liberdade haviam-na deixado vibrante. E também sentia-se satisfeita com os elogios de Koiko pela maneira como arrumara os cabelos naquela noite —ensinada por Teko — e acrescentara um pouco de cor aos lábios.
Tudo estava dando certo, melhor do que ela sonhara. Seu objetivo imediato fora alcançado. Fora aceita. E se encontrava a caminho de Iedo. Ao encontro de Hiraga. Integrava a comitiva de Yoshi e se mantinha contida. Katsumata lhe dissera:
— Não seja impetuosa. Não assuma nenhum risco, em qualquer circunstância, a menos que haja uma possibilidade de escapar. Perto dele, você é de grande valor. Não arruíne isso, nem envolva Koiko.
— Ela nada saberá a meu respeito?
— Apenas o que eu disse a ela, o mesmo que você sabe.
— O que significa que ela já está envolvida, não é? Falo isso porque o seu Yoshi pode me aceitar.
— Ele é que tomará a decisão, não ela. Seja como for, Sumomo, ela não é sua cúmplice. Se descobrisse suas verdadeiras ligações, em particular com Hiraga, e seus possíveis propósitos, trataria de detê-la... nem poderia agir de outra forma.
— Possíveis propósitos? Por favor, qual é o meu dever principal?
— Estar pronta. Melhor uma espada à espera do que um cadáver.
Não tenho espada, pensou Sumomo. Talvez pudesse tirar uma de um guarda, se conseguisse pegá-lo de surpresa. Tenho três shuriken, com veneno nas pontas, escondidos no fardo ao meu lado, sem falar na faca na obi, que sempre levo para toda parte. Mais do que suficiente, num ataque de surpresa. A vida é mesmo muito estranha. É estranho que eu prefira estar sozinha, com minha própria missão... tão diferente de nossa vida normal, sempre integrando uma unidade, todos pensando como uma só pessoa, concordando como uma só pessoa, em nossa cultura de consenso. Eu gostava de integrar uma unidade de shishi, mas... mas, para ser honesta...
— Seja sempre honesta com você mesma, Sumomo-chan — dissera-lhe o pai, muitas e muitas vezes. — É esse o seu caminho para o futuro, para se tornar uma líder.
Para ser honesta, descubro ser difícil reprimir meu impulso para conduzi-los até mesmo aos shishi, para fazer com que sigam o caminho correto, assumam o pensamento certo.
Será meu karma liderar? Ou morrer irrealizada, porque é uma autêntica estupidez uma mulher desejar ser líder no mundo do Nipão. É estranho querer o impossível. Por que sou assim, não como as outras mulheres? É porque o pai não teve filhos, e tratou a nós, as filhas, como filhos, dizendo-nos que devíamos ser fortes, manter a cabeça erguida, e nunca ter medo, até mesmo me permitindo contra o conselho da mãe, seguir Hiraga e sua estrela, também impossível...
Ela sentou nos futons por um momento, ajeitando os cabelos, para tentar desanuviar a cabeça, e evitar que a mente se turvasse com tantos pensamentos novos e incontroláveis. Tornou a deitar. Mas o sono não veio, apenas permutações de Hiraga, Koiko, Yoshi, Katsumata, ela própria. Muito estranho, sobre Yoshi.
— Devemos matá-lo e ao xógum — dissera Katsumata, ao longo dos anos, muitas e muitas vezes, suas palavras reiteradas por Hiraga. — Não por eles próprios, mas pelo que representam. O poder nunca voltará para o imperador enquanto eles permanecerem vivos. Por isso eles devem ser eliminados, principalmente Yoshi... ele é a cola que segura o xogunato. Sonno-joi é nosso farol, qualquer sacrifício deve ser feito para alcançá-lo!
Uma pena matar lorde Toranaga. Outra pena ele ser um bom homem, não vil, ao contrário de Anjo, embora eu nunca o tenha visto. Talvez Anjo seja também um homem gentil e tudo o que se diz a seu respeito não passe de mentiras de tolos invejosos.
Neste curto período, tenho visto Yoshi como ele é: dinâmico, gentil, forte, sábio e impetuoso. E Koiko? Ela é maravilhosa e me parece muito triste que esteja condenada. Lembre-se do que ela disse:
— A maldição de nosso mundo é que, por mais que nos condicionemos e sejamos treinadas para adquirir todas as defesas, adquirir a determinação de tratar um cliente apenas como um cliente, de vez em quando sempre aparece alguém que transforma sua cabeça em geléia, sua força de vontade em espuma e sua virilha numa bola de fogo. Quando isso acontece, é terrível, de uma forma assustadora e gloriosa. Você fica perdida, Sumomo. Se os deuses a favorecem, os dois morrem juntos. Ou você morre quando ele vai embora ou se permite continuar viva, embora esteja morta por dentro.
— Não permitirei que isso aconteça quando eu crescer — declarara Teko, ouvindo a conversa. — Não comigo. Já teve sua cabeça transformada em geléia, ama?
Koiko rira.
— Muitas vezes, criança, e esqueceu uma de suas lições mais importantes: fechar os ouvidos quando outras pessoas estiverem conversando. Vá se deitar agora.
Será que a cabeça de Koiko virou mesmo geléia? Claro.
Como uma mulher, sei que ela considera lorde Yoshi mais do que um cliente, apesar de ela tentar escondê-lo. Como vai terminar? É triste, muito triste. Ele nunca a fará sua consorte.
E eu? O mesmo acontecerá comigo? Acho que sim — o que eu disse a lorde Yoshi era a verdade: não terei outro marido que não seja Hiraga.
— É a verdade... — murmurou ela, o que a levou por uma espiral descendente — Pare com isso!
E tratou de seguir o método da infância, quando a mãe sempre arrulhava:
— Pense apenas coisas boas, pequena, pois este é o mundo das lágrimas muito em breve. Pense coisas ruins e, num piscar de olhos, estará mergulhada no mais escuro poço do desespero. Pense coisas boas...
Sumomo fez um esforço e mudou a mente: só Hiraga fazia com que sua vida valesse a pena.
Um calafrio percorreu seu corpo, quando um novo conceito aflorou, com a força chocante da realidade: Sonno-joi é uma tolice! Não passa de um lema. Como se pudesse mudar qualquer coisa. Uns poucos líderes mudarão e isso será tudo. Com os novos, as coisas serão melhores? Não, exceto se Hiraga for um deles, talvez se Katsumata for, mas, sinto muito, eles não viverão por tanto tempo assim.
Então por que segui-los?
Uma lágrima escorreu-lhe pela face. Porque Hiraga transforma minha cabeça em geléia, minha virilha...
Ao amanhecer, Yoshi saiu da cama, passou para o cômodo externo, ajeitou a yukata de dormir, a respiração visível no ar frio. Koiko remexeu-se, viu que ele estava bem e voltou a cochilar. No outro cômodo, os futons e cobertas de Sumomo já estavam guardados no armário, a mesa baixa posta para a primeira refeição do dia, as duas almofadas nos lugares corretos.
Lá fora, o frio era mais intenso. Ele calçou as sandálias de palha, atravessou a varanda para ir à privada, acenou com a cabeça para o criado à espera, escolheu um balde vazio na fileira que havia ali e urinou. O fluxo era forte, e isso o agradou. Havia outros homens ao seu lado. Yoshi não lhes dispensou qualquer atenção nem eles o fitaram. Ele dirigiu o fluxo para o constante enxame de moscas, não esperando afogar alguma.
Ao terminar, ele foi para a outra parte, agachou-se sobre um buraco vazio no banco, com homens e algumas mulheres nos dois lados, inclusive Sumomo. Em sua mente, Yoshi se encontrava sozinho, ouvidos, olhos e narinas fechados contra a presença dos outros, que também faziam a mesma coisa. Essa capacidade imperativa era cultivada desde a infância.
— Você deve se empenhar nisso mais do que em qualquer outra coisa ou sua vida se tornará insuportável — haviam incutido nele, como em toda criança. — Ali onde convivemos lado a lado, crianças, pais, avós, criados e outras pessoas, onde todas as paredes são de papel, a privacidade tem de ser cultivada em sua cabeça e só pode existir ali, por você e também como uma polidez essencial aos outros. Só assim poderá permanecer tranqüilo, só assim será civilizado, só assim, conseguirá permanecer são.
Distraído, Yoshi afugentou as moscas. Uma ocasião, quando era pequeno, perdera a paciência com duas ou três moscas que o atormentavam e tentara esmagá-las. O que lhe valera um imediato tapa, a face ardendo em dor, e mais ainda pela vergonha que lhe causara o pesar da mãe, a necessidade de aplicar a punição.
— Sinto muito, meu filho — murmurara ela. — As moscas são como o nascer e o pôr-do-sol, inevitáveis, exceto que podem ser um tormento... se você lhes permitir. Deve aprender a ignorá-las. Todos os dias, pelo tempo que for necessário por quantos dias forem necessários, fique de pé ali, por favor, deixe que as moscas pousem em seu rosto e mãos, sem se mexer. Até que elas se tornem nada. Moscas nada devem ser... use sua vontade, pois é para isso que a possui. Nada devem representar para você, pois assim não arruinarão sua harmonia, nem também, o que é ainda pior, a harmonia dos outros...
Agora, sentado ali, Yoshi sentia as moscas em suas costas e rosto. Não o incomodavam.
Ele acabou num instante. O papel-de-arroz era de boa qualidade. Sentindo-se vivo e bem, Yoshi estendeu as mãos para que o criado despejasse água. Depois que as mãos ficaram limpas, ele molhou o rosto com água de outro recipiente, estremeceu, aceitou uma pequena toalha, enxugou-se, voltou à varanda e conscientemente abriu os sentidos.
Ao seu redor, a estalagem despertava, os poucos pôneis sendo selados e escovados, homens, mulheres, crianças e carregadores já comendo, conversando ruidosamente ou partindo para a próxima etapa da viagem, indo ou vindo de Quioto. Na área comum, perto da entrada, Abeh inspecionava homens e equipamentos. Ao avistar Yoshi, ele foi ao seu encontro.
Porque havia pessoas por perto, o capitão não fez uma reverência, descobrindo que era algo muito difícil. O uniforme era elegante e ele parecia revigorado.
— Bom dia. — Ele teve de fazer um grande esforço para não acrescentar “senhor”. — Já estamos prontos para partir, no momento que desejar.
— Depois da primeira refeição. Providencie um palanquim para a dama Koiko.
— Imediatamente. Para pôneis ou carregadores?
— Pôneis.
Yoshi voltou a seus aposentos e comunicou a Koiko que ela não precisaria cavalgar naquele dia. Viajaria de palanquim, e ao cair da noite ele verificaria o progresso, para decidir como seria o resto da viagem. Sumomo cavalgaria, como antes.
Ao cair da noite, haviam coberto apenas duas estações de posta.
HAMAMATSU
Yoshi escolheu a estalagem das Garças Azuis para a noite, nem a melhor, nem a pior da aldeia, Hamamatsu — um conjunto aprazível de casas e estalagens à beira da Tokaidô, renomada por seu saquê, no ponto em que a estrada dava uma volta e descia em direção ao mar.