LIVRO QUATRO42





IOCOAMA





Terça-feira, 9 de dezembro:





Na claridade que antecedia o amanhecer, o cúter da Struan afastou-se da fragata Pearl e voltou para o cais da companhia. Desenvolvia a velocidade máxima, deixando uma trilha de fumaça em sua esteira. O vento era firme, soprando de terra, com o céu nublado, que prometia se abrir por volta de meio-dia.



O binóculo do contramestre fixava as janelas do prédio da Struan. Havia uma luz acesa, mas não dava para determinar se Struan se encontrava ali ou não. E foi nesse momento que o motor engasgou, parou, e seus colhões pareceram subir, atingindo-o no queixo. Toda a vibração do barco cessou. Poucos segundos depois, o motor pegou de novo, mas tornou a engasgar, pegou mais uma vez, só que agora fazia um barulho estranho.



— Deus Todo-Poderoso! Roper, desça para ver o que aconteceu! — gritou ele para o mecânico. — E vocês outros, tratem de pegar remos, para o caso de enguiçarmos... McFay vai nos esfolar vivos se pararmos... Roper, qual é o problema, pelo amor de Deus? Diga logo o que aconteceu!



Outra vez ele fixou o binóculo na janela. Nenhum sinal de ninguém. Mas Struan se encontrava ali, seu binóculo focalizando o cúter. Observava-o desde que alcançara a fragata. Ele praguejou, pois agora podia ver o contramestre com toda clareza, e o homem deveria saber que era observado, poderia facilmente transmitir um sinal, sim ou não.



— A culpa não é dele — murmurou Malcolm. — Foi você quem esqueceu de combinar um sinal. Idiota!



Ora, não tinha importância, pois o tempo era bom, não havia qualquer prenúncio de uma tempestade, e uma pequena chuva não afetaria a Pearl. Ele tornou a focalizar a nave capitânia. Seu cúter voltava de uma visita à Pearl. Devia ter ido até lá para entregar as ordens.



A porta por trás dele foi aberta, e Chen entrou, jovial, trazendo uma xícara de chá fumegante.



— Bom dia, tai-pan. Não está mais dormindo, um bom chá, chop chop?



— Quantas vezes tenho de lhe dizer para falar uma língua civilizada e não pidgin? Seus ouvidos ficaram entupidos com a bosta dos ancestrais e seu cérebro coalhou?



Chen manteve o sorriso no rosto, mas soltou um resmungo interior. Esperava que o gracejo arrancasse uma risada de Struan.



— Ah, sinto muito. — Ele acrescentou a tradicional saudação chinesa, o equivalente a “bom dia”. — Já comeu arroz hoje?



— Obrigado.



Pelo binóculo, Malcolm viu um oficial sair do cúter e subir para a nave capitânia. Nada que indicasse qualquer coisa. Droga!



Ele pegou a xícara.



— Obrigado.



No momento, não sentia qualquer dor especial, apenas a dor constante normal, suportável. Já tomara sua dose matutina. Durante a última semana, conseguira reduzir a quantidade. Agora, tomava uma dose pela manhã e outra à noite, mas jurara que, no futuro, tomaria apenas uma por dia, se tudo corresse bem hoje.



O chá estava ótimo, misturado com leite de verdade, engrossado com açúcar, e por ser o primeiro do dia, continha um pouco de rum, uma tradição iniciada por Dirk Struan, como dissera seu pai.



— Chen, pegue meu culote grosso e uma camisa. Vou usar também um casaco.



Chen ficou surpreso.



— Ouvi dizer que a viagem foi cancelada, tai-pan.



— Em nome de todos os deuses, quando ouviu isso?



— Ontem à noite, tai-pan. Quinto primo na casa do chefe demônio estrangeiro ouviu-o falando com Nariz de Cogumelo Esmagado do grande navio, que disse: “Não viagem.”



Malcolm sentiu um frio no estômago e foi até a janela. Chocado, viu o cúter balançando a duzentos metros da praia. Sem ondas na proa. Pôs-se a praguejar, furioso, e depois avistou a fumaça começando a sair pela chaminé, as ondas na proa aparecerem, enquanto o cúter adquiria velocidade. Esquadrinhou o convés com o binóculo, mas só pôde ver o contramestre gritando, com os remos num lado, para o caso de outro colapso. Àquela velocidade, o cúter alcançaria o cais da companhia em menos de dez minutos.



Ele se vestiu, ajudado por Chen. Uma rápida olhada indicou que o cúter se encontrava quase atracando. Ele abriu a janela, esticou a cabeça para fora enquanto o contramestre subia para o cais e desatava a correr, tão depressa quanto a enorme barriga permitia.



— Ei, contramestre!



O homem grisalho ofegava ao se aproximar da janela.



— O Capitão Marlowe envia seus cumprimentos — balbuciou ele. — Espera senhor e a dama a bordo.



Struan deixou escapar um grito de alegria. Mandou chamar Ah Soh e ordenou-lhe que acordasse e vestisse Angelique, o mais depressa possível. Depois, em loz baixa, acrescentou:



— Preste atenção, Chen, e não me interrompa, ou vou explodir como uma bomba...



Ele deu instruções sobre o que embalar, e o que ordenar que Ah Soh embalasse, para depois despachar os baús para o Prancing Cloud, ao pôr-do-sol.



— A dama e eu jantaremos a bordo, e também dormiremos ali. Vocês dois também ficarão no navio, e voltarão para Hong Kong conosco...



— Hong Kong! Ah, tai-pan...



— ...e ambos ficarão com a boca mais fechada do que o ânus de uma mosca ou pedirei a Chen da Casa Nobre para remover seus nomes do livro da família.



Chen empalideceu. Malcolm nunca usara essa ameaça antes. O livro da família era a ligação de todo chinês do sexo masculino com a imortalidade, com seus ancestrais no passado místico e com os descendentes distantes, quando ele próprio seria considerado um remoto ancestral. Sempre que nascia um chinês no mundo, seu nome era escrito nos registros da aldeia ancestral. Sem isso, ele não existia.



— Pois não, amo. E Ah Tok?



— Falarei com ela. Vá chamá-la.



Chen passou pela porta. Ah Tok esperava ali fora. Ele se afastou apressado. Ela entrou. Struan comunicou que decidira que ela iria no navio seguinte e ponto final.



Oh ko, meu filho — murmurou Ah Tok, na voz mais suave. — O que decide para sua velha mãe não é o que sua velha mãe decide que é melhor para si mesma e para seu filho. Voltaremos para casa. Manteremos silêncio. Nenhum dos fétidos demônios estrangeiros jamais saberá. Mas é claro que todas as pessoas civilizadas vão se interessar pela trama. Voltaremos para casa juntos. Vai levar sua prostituta com você?



Ela resistiu às invectivas de Malcolm, ordenando-lhe que nunca mais usasse aciuela palavra... ou qualquer outra parecida.



— Ah... — murmurou ela, ao se retirar, a voz definhando a pouco e pouco, — por sua velha mãe não chamará aquela prostituta de sua prostituta outra vez, mas e todos os deuses são testemunhas de que se não é prostituta que devo chamá-la, então prostituta não é o tratamento correto? Meu filho está demente...



Mas a raiva de Malcolm se evaporou quando viu Angelique.



— Ah, mas você está linda!



Ela usava um traje de montaria, botas, saia comprida, justa na cintura, colete, gravata e casaco, um chapéu com uma pluma verde e luvas, mas sem o chicote.



— Achei que seria o melhor para um passeio de barco, querido. —murmurou Angelique, com um sorriso glorioso.







— Sejam bem-vindos a bordo.



Marlowe esperava-os no alto da escada, esplêndido em seu uniforme. Antes de passar para o convés, Malcolm, meio desajeitado, apoiou-se com a mão esquerda, Angelique segurando suas muletas, e ergueu a cartola, formal.



— Permissão para ir a bordo?



Marlowe bateu continência, com um sorriso.



— Sejam bem-vindos. Posso?



Ele ofereceu o braço a Angelique, tonto pela intensidade do sorriso dela e pelo corte do casaco, que realçava o corpo. Levou-os para a ponte de comando, à frente da chaminé. Esperou que Malcolm se acomodasse numa cadeira, antes de dizer a seu número um, Davyd Lloyd:



— Vamos zarpar, mister Lloyd. Um quarto à frente e mantenha uma velocidade firme.



A Pearl zarpou, impulsionada pelo motor a vapor.



— Assim que nos afastarmos, vamos aumentar a velocidade — explicou Marlowe. — O almirante ordenou que conduzíssemos os testes à vista da nave capitânia.



A felicidade de Struan se desvaneceu.



— À vista dele? Não vamos sair para alto-mar?



Marlowe riu.



— Acho que ele gosta de manter seus “filhos” sob rédea curta. Mas prometo que será divertido.



Ou seja, estamos a bordo, mas não pelo motivo certo, pensou Struan. O desgraçado é um sádico! E se o almirante estivesse a bordo naquele momento, ele tinha certeza de que o mataria com a maior satisfação. Isto é, não chegaria a esse ponto, mas daria uma boa lição no patife. Ele vai se arrepender de não ter me ajudado. Quando eu voltar, inverterei tudo e criarei um problema que ele nunca mais vai esquecer.



Mas, até lá, o que faço agora?



Havia tanta coisa acontecendo que Marlowe e Angelique não notaram seu desespero, que Struan se esforçou em ocultar. A fragata avançava pelo meio da esquadra, com inúmeros marujos e oficiais dos outros navios admirando Angelique, e alguns também a maneira impecável como a Pearl era manobrada. A bordo da nave capitânia francesa, o vapor de roda de vinte e um canhões, por que passaram bem perto, os marujos assoviaram e acenaram, deixando consternados os oficiais britânicos.



Por Deus, pensou Marlowe, que péssimos modos, e que disciplina ainda pior. Mesmo assim, ele observou com um ar afável, enquanto Angelique acenava em resposta, sob um coro de assovios e gritos. Para distraí-la, Marlowe comentou:



— Vamos realizar testes de velocidade, Angelique, primeiro sob vapor, e depois com as velas. Temos de verificar o novo mastro. Não se lembra, mas perdemos nosso mastro anterior na tempestade. Vai ver...



Ele continuou a falar, explicando isso e aquilo, respondendo as perguntas que Angelique se sentiu na obrigação de fazer.



Ela simulava interesse, mas no fundo queria apenas ficar em silêncio, sentir o vento desmanchar seus cabelos, agora que tirara o chapéu, e se deleitava com a nova liberdade, querendo que o ar marinho dissipasse o mau cheiro sempre presente de locoama, um fato da vida ali, e também em Hong Kong, de tal forma que mal se notava, querendo apenas olhar para o futuro, sonhar com o canal da Mancha, os mares azuis, a bela costa da França, o retorno à sua terra. Nós, franceses, desejamos demais nossa terra, enquanto os ingleses parecem ser capazes de se sentir à vontade em qualquer lugar, não precisam realmente da Inglaterra, não como nós precisamos da França...



— Vamos ancorar ao meio-dia — disse Marlowe, na maior alegria por ser o capitão da Pearl. — Servirei um almoço leve em meu camarote, e há um beliche ali, se quiser fazer uma sesta...



A manhã transcorreu muito agradável. A cada meia hora, o sino do navio anunciava as manobras. Até mesmo Malcolm foi arrancado de seu desespero, enquanto a fragata navegava de uma extremidade a outra da baía, fazia a volta, disparava na direção oposta.



— Daqui a pouco — informou Marlowe — vamos suspender o vapor, e usar apenas as velas.



— Eu prefiro as velas — disse Angelique. — O barulho do motor é horrível. Velejar é mais agradável. Não concorda, Malcolm chéri?



— Claro que sim — respondeu Malcolm, contente, o braço em torno da cintura dela, amparando-a contra a inclinação do convés.



— Também concordo, assim como todos os homens da marinha britânica. Claro que ainda temos de velejar durante a maior parte do tempo... não podemos carregar combustível suficiente e o carvão é imundo! Mas, numa noite de tempestade, quando o porto se encontra logo à frente, com o vento contrário, ou o inimigo tem o dobro de canhões, mas usa as velas, e você não, temos de abençoar o velho Stephenson e os engenheiros britânicos por nos proporcionarem a bênção de ir contra o vento. Eu gostaria de levá-los lá embaixo, mas há poeira de carvão por toda parte, um barulho insuportável.



— Mesmo assim, eu adoraria dar uma espiada. Posso?



— Claro. Malcolm?



— Não, obrigado... podem ir vocês dois.



Ele visitava as casas de máquinas de seus vapores desde que era menino; os motores nunca o haviam interessado, apenas sua eficiência, custo e a quantidade de carvão que consumiam.



Antes de deixar a ponte de comando, Marlowe verificou a posição da fragata e o vento. Estavam a três quartos de milha da praia, bem distantes da esquadra e dos navios mercantes.



— Número Um, assuma o comando. Quando emparelharmos com a nave capitânia, suspenda o vapor e ice as velas, com curso para leste.



— Certo, senhor.



Malcolm observou Marlowe conduzir Angelique para a passagem no meio do navio, com uma pontada de inveja pelos passos ágeis do oficial britânico, ao mesmo tempo divertido com o charme contagioso com que ele envolvia Angelique. Respirando fundo, Malcolm relaxou na cadeira. O mar, o céu, o vento e o espaço haviam dissipado seu desalento. Era ótimo estar no mar, maravilhoso ser parte de um navio de guerra tão eficiente, bem cuidado e orgulhoso, ainda melhor estar confortável e seguro nas ondas. Sua mente projetou planos diferentes para enfrentar o amanhã e os dias subsequentes.



Joss, o destino. Não vou me preocupar com coisa alguma, ele prometeu a si mesmo. Lembre-se de seu juramento e da nova era!



Depois que Gornt chegara a Iocoama, como uma dádiva do céu, Malcolm agradecera a Deus pela perspectiva de salvação, e jurara que, se a informação de Gornt fosse mesmo o que ele alegava, faria sempre o melhor que pudesse, e não se contentaria com menos. Com informações suficientes para destruir os Brocks, ele tinha certeza, acima e além de qualquer dúvida, que a mãe viria para o seu lado. Angelique era tudo o que importava, assim como ser tai-pan, mas não apenas no nome.



Naquela mesma noite, fora impelido a se contemplar no espelho. Tinha de ser feito. Alguma força o obrigara a ver de verdade, pela primeira vez em anos, a se estudar de fato, profundamente, e não apenas o rosto.



Ao final, pensara: É isso o que você é, continua ferido gravemente por dentro, não pode se empertigar direito, suas pernas não funcionam como deveriam, mas pode ficar de pé, pode andar, e vai melhorar. O resto do seu corpo funciona e a mente também. Aceite. Lembre o que a mãe e o pai sempre lhe disseram, desde que era criança: “Aceite seu joss, é o que Dirk Struan sempre dizia. Dirk não tinha a metade de um pé e isso não o impedia de fazer as coisas. Dirk foi baleado e cortado uma dúzia de vezes, quase morreu em Trafalgar como carregador de pólvora, quase foi destruído por Tyler Brock meia dúzia de vezes. Aceite seu joss. Seja chinês, era o conselho de Dirk. Faça o melhor que pode e o resto que se dane.



Seu coração batera forte. Dirk, Dirk, Dirk. Que se dane Dirk Struan! Detesto quando jogam Dirk na minha cara, sempre me apavorei com a possibilidade de não ser capaz de me mostrar à altura de sua imagem impossível. Admita-o!



O reflexo não respondera. Mas ele o fizera.



— Tenho o sangue dele, tenho sua Casa Nobre para dirigir, sou tai-pan, faço o melhor que posso, mas nunca ficarei à sua altura, admita isso, que Deus o amaldiçoe, é essa verdade! É esse meu joss.



Ótimo, seu reflexo parecera dizer. Mas por que odiá-lo? Ele não o odeia. Por que odiá-lo como tem odiado por toda a sua vida... porque o odiou por toda a vida, não é mesmo?



— Isso é verdade, eu o odeio, sempre odiei!



Dizer em voz alta deixara-o chocado. Mas era verdade... todo o amor e respeito não passavam de uma impostura. Sempre o odiara, mas de repente, na frente do espelho, não mais o fazia. Por quê?



Não sei. Talvez seja por causa de Edward Gornt, talvez ele seja o bom espírito que me libertou do passado, assim como quer se libertar do seu. Morgan não envenenou sua vida, a de sua mãe e a de seu pai? Não que Dirk envenenasse a minha, mas seu espectro se interpôs entre a mãe e o pai e envenenou-os... não era esse o joss deles, que o pai morresse odiando-o, e por mais que a mãe o idolatre abertamente... também não o odeia, no fundo de seu coração, por ele não ter casado com ela?



Ali, na ponte de comando da fragata, Malcolm recordou o suor frio que o encharcara, e depois mais tarde, bebendo algum uísque, mas não a outra coisa, rompendo sua obsessão naquele momento, e tomando conhecimento de outra verdade: ansiava pela poção, tornara-se um viciado.



Verdades demais confrontadas. Não era fácil encarar a si mesmo, a missão mais difícil — e mais perigosa — que um homem pode realizar, e deve fazer pelo menos uma vez na vida, para ficar em paz. E foi o que eu fiz, gostando ou não.



— Número Um — disse o jovem sinaleiro ao tenente Lloyd, a luneta focalizada em seu equivalente distante — mensagem da nave capitânia, senhor.







Dois conveses abaixo, a casa de máquinas era uma masmorra de calor e barulho vibrando, poeira, escuridão e mau cheiro, iluminada por quadrados de carvões em brasa, quando foguistas seminus abriam as fornalhas sob as enormes caldeiras para jogar mais carvão ou retirar as brasas para a entrada de mais e mais carvão.



Angelique e Marlowe estavam parados numa das grades de ferro por cima, o ar impregnado pelo cheiro de coque, fogo, óleo ardendo, suor e vapor. Os corpos lá embaixo brilhavam de suor, homens barrigudos, com músculos estufados, as pás raspando no convés de ferro para ficarem cheias de carvão, que era lançado com um movimento hábil na fornalha, e espalhado numa camada igual, para pegar fogo no mesmo instante, e logo precisar de reabastecimento.



Na direção da popa, o motor vibrando brilhava de cuidado e óleo, mais homens usando latas com bicos compridos esguichavam óleo nas juntas, enquanto outros limpavam com refugos de algodão, outros cuidavam dos mostradores, bombas e válvulas, o motor girando o hélice contra a pressão do mar. Jatos de vapor das válvulas, mais óleo e limpeza, uma constante atenção dispensada aos êmbolos, alavancas, engrenagens, mais carvão jogado nas fornalhas. Angelique achou tudo muito excitante... os homens lá embaixo pareciam alheios à presença deles.



Orgulhoso, Marlowe apontava e explicava, por cima do barulho, e ela respondia com um aceno de cabeça, um sorriso de vez em quando, segurando em seu braço de leve, para se firmar, sem ouvir nada, nem preocupada em escutar dominada pela casa de máquinas, que lhe parecia um Valhalla masculino, onde máquinas casavam com homens, agora eram parte deles, primitivas, mas ao mesmo tempo futuristas, escravos cuidando de seus amos, e não o contrário.



Sem ser percebido, o sinaleiro aproximou-se por trás e bateu continência. Não sendo visto, ele se adiantou, bateu continência de novo e rompeu o encantamento de Angelique. Entregou a mensagem escrita a Marlowe, que a leu rapidamente depois balançou a cabeça para o sinaleiro e gritou:



— Mensagem recebida! — Ele inclinou-se para Angelique e acrescentou: — Sinto muito, mas temos de subir agora.



Nesse momento, ouviu-se ali embaixo o sino da ponte de comando. O oficial de máquinas apressou-se em cumprir a ordem. Homens correram para fechar válvulas, abriram outras, acionaram alavancas, verificaram os mostradores. À medida que a força do vapor diminuía, o enorme eixo e o motor se tornaram mais lentos, o barulho diminuiu, os foguistas apoiaram-se agradecidos em suas pás, os peitos arfando para aspirar o ar impregnado de poeira de carvão, torceram as toalhas penduradas no pescoço. Um homem virou-se, praguejou, sua voz ainda abafada pelo barulho, abriu a calça e urinou sobre os carvões, num jato que terminou em vapor, sob as risadas dos outros. Marlowe apressou-se em pegar Angelique pelo braço e tirou-a dali. Um foguista a notou, depois outro, e antes que ela desaparecesse, todos olhavam em silêncio para seu vulto se afastando. Assim que ela saiu, um deles fez movimentos obscenos, sob mais risadas, misturadas com um silêncio repentino e triste.



No convés lá em cima, com a súbita falta de barulho, aspirando o ar marinho, ela sentiu-se tonta por um instante, e apoiou-se no braço de Marlowe.



— Você está bem?



— Estou, sim. Obrigada, John. Foi... extraordinário.



— Acha mesmo? — murmurou ele, distraído, sua atenção nos marujos no cordame, içando e ajustando as velas. — Imagino que é a reação de todo mundo, na primeira vez. No mar, durante uma tempestade, as coisas lá embaixo não são fáceis. Foguistas e engenheiros formam uma raça à parte.



Marlowe conduziu-a até Malcolm.



— Lamento, mas tenho de deixá-los por um momento.



Ele desceu para seu camarote, que ficava na popa. O fuzileiro de sentinela bateu continência à sua passagem. O cofre da fragata ficava embaixo de seu beliche. Marlowe abriu-o, nervoso. A mensagem do almirante era curta: “Cumpra as ordens lacradas, l/Al6/12.” Havia no cofre o diário de bordo, códigos, dinheiro para pagamento, livro de pagamento, livro de punições, manuais, manifestos, recibos, os regulamentos navais e vários envelopes lacrados, que recebera dan capitânia naquela manhã.



As mãos tremiam um pouco quando ele encontrou o envelope correto. Seria a ordem de retornar à esquadra ou de se preparar para a guerra? Marlowe sentou à mesa, cercada por cadeiras, tudo aparafusado no convés, e rompeu o lacre.







— Foi extraordinário lá embaixo, Malcolm! Terrível, de certa forma, todos aqueles homens, uma coisa espantosa... e se é assim num pequeno navio como este, como seria num grande vapor... como, por exemplo, o Great Eastern?



— É de fato um navio incrível, Angel. Testemunhei seu lançamento no Tamisa, na última vez em que estive em Londres, há quatro anos, quando concluí a escola... e não pode imaginar como me senti contente por terminar os estudos. O navio é todo de ferro, quatro toneladas, o maior do mundo até agora, construído para transportar emigrantes, milhares de cada vez, até a Austrália. O lançamento prolongou-se por semanas... foi efetuado de lado e quase afundou. O pobre Brunel, que projetou e construiu o navio, quebrou muitas vezes, arrastando várias companhias na queda. Era um navio azarado, pegou fogo na viagem inaugural, quase naufragou... e isso o matou. Nunca viajarei nele... azarado como é, desde o início...



Malcolm avistou Marlowe aproximando-se pelo convés e franziu o rosto. Não havia agora qualquer sinal de jovialidade no rosto do oficial. O contramestre badalou o sino oito vezes. Meio-dia.



— Assuma o comando, Número Um — disse Marlowe.



— Pois não, senhor.



— Por que não leva miss Angelique para a proa? Talvez ela goste de examinar de perto os nossos canhões.



— Com prazer. Vamos, miss?



Obediente, Angelique seguiu-o pelo convés. Ele era baixo, sardento, e da sua altura.



— É galês, Sr. Lloyd? — perguntou ela.



Ele riu e respondeu numa voz monótona:



— Tão galês quanto as colinas de Llandridod Wells, onde nasci.



Angelique riu também, inclinou-se contra o convés inclinado e sussurrou:



— Por que estou sendo afastada como uma colegial?



— Não faço a menor idéia, miss. — Ela viu os olhos castanhos de Lloyd se desviarem para trás, e depois se fixarem nela. — O capitão quer falar sobre o almoço, com certeza, ou perguntar a ele, a seu homem, se quer usar o banheiro. Conversa de homem.



Os olhos sorriam enquanto ele falava.



— Gosta dele, não é?



— O capitão é o capitão. E agora os canhões, miss!



A risada de Angelique ressoou, os marujos nas proximidades ficaram encantados. Malcolm e Marlowe, na ponte de comando, também ouviram, e viraram-se para olhar.



— Ela é uma imagem graciosa, Malcolm.



— Também acho. Mas estava me falando do almoço.



— Acha que é satisfatório? O cozinheiro é de primeira classe na torta de maçã.



O cardápio seria guisado de peixe, pastelão e bolinhos fritos de galinha e carne de porco, galinha assada fria, queijo Cheddar e torta de maçã.



— Tenho duas garrafas de Montrachet 55, geladas, que venho guardando para uma ocasião especial, e um Chambertin 52.



— Você vive muito bem — comentou Malcolm, impressionado.



Marlowe sorriu.



— Nem tanto, mas é um dia especial, e para dizer a verdade, surrupiei o Chambertin... era o favorito do meu velho. E ele me deu duas caixas do Montrachet, quando parti.



— Ele é da marinha?



— É, sim. — A maneira como Marlowe falou expressava surpresa pela pergunta. — É comandante-em-chefe em Plymouth.



Ele hesitou, fez menção de falar, parou.



— Qual é o problema? Recebeu ordem para voltarmos?



— Não. — Marlowe fitou-o nos olhos. — Esta manhã me entregaram diversas ordens lacradas, junto com a permissão de trazê-lo para bordo, e voltar ao pôr-do-sol, sem falta. Há poucos minutos, a nave capitânia ordenou-me que abrisse um dos envelopes lacrados. Não havia uma ordem expressa para lhe contar, nem para deixar de contar. Talvez você possa me explicar tudo. A mensagem dizia: “Devo um favor peculiar ao Sr. Struan, e você pode, se assim o desejar, concedê-lo.”



O mundo parou para Malcolm Struan. Não sabia se estava vivo ou morto, a cabeça girava, e com certeza teria caído se não estivesse sentado.



— Deus Todo-Poderoso! — exclamou Marlowe. — Contramestre, vá buscar uma dose de rum, o mais depressa possível!



O contramestre afastou-se, enquanto Malcolm conseguia balbuciar:



— Não, não precisa... estou bem... mas, para ser franco, um trago de rum seria ótimo.



Ele podia ver os lábios de Marlowe se mexendo, e sabia que era sacudido, mas seus ouvidos não escutavam coisa alguma além das batidas do próprio coração. Um momento depois, no entanto, sentiu o vento no rosto e o som do mar retornou.



— Tome aqui, senhor — disse o contramestre, aproximando o copo de seus lábios.



O rum escorreu pela garganta. Em segundos, Struan sentiu-se melhor. Fez menção de se levantar.



— Melhor ir devagar, senhor — murmurou o contramestre, preocupado. — Parece que viu um fantasma.



— Não um fantasma, contramestre, mas vi um anjo... seu capitão! Marlowe ficou aturdido, e Malcolm acrescentou, tropeçando nas palavras.



— Não estou louco. John... desculpe, capitão Marlowe... há algum lugar aqui em que possamos ter uma conversa em particular?



— Claro. Aqui mesmo.



Contrafeito, Marlowe gesticulou para o contramestre, que deixou a ponte de comando. Só o timoneiro e o sinaleiro permaneceram.



— Sinaleiro, vá para a proa. Timoneiro, tape os ouvidos.



Struan disse:



— Meu pedido peculiar é o seguinte: quero que você navegue para alto-mar e celebre meu casamento com Angelique.



— Como?



Foi a vez de Marlowe ficar atordoado. Ouviu Malcolm repetir, e balbuciou:



— Você está mesmo louco!



— Não, não estou. — Malcolm tinha o controle agora, seu futuro em jogo, com as palavras do almirante, e você pode, se assim o desejar, concedê-lo, gravadas em seu cérebro. — Deixe-me explicar.



E ele começou. Poucos minutos mais tarde, o camareiro subiu à ponte de comando e logo se retirou. Voltou mais tarde, para anunciar:



— Com os cumprimentos do cozinheiro, senhor, o almoço está servido em seu camarote.



Marlowe, no entanto, acenou-lhe outra vez para que se retirasse, concentrado, não querendo interromper.



— ...e esse é o motivo — concluiu Malcolm —, o porquê do almirante, meu, seu, de minha mãe. Agora, por favor, vai conceder meu favor peculiar?



— Não posso. — Marlowe sacudiu a cabeça. — Sinto muito, meu velho. Nunca casei ninguém e duvido que os regulamentos permitam.



— O almirante lhe deu permissão para fazer o que eu pedisse.



— Ele teve o maior cuidado: “conceder, se eu assim o desejar”. Por Deus, meu caro, isso é pôr meu pescoço no laço do carrasco. — Marlowe sentia a boca ressequida, enquanto previa todos os tipos de desastres futuros. — Não conhece Ketterer como eu, nem qualquer outro oficial superior, diga-se de passagem! Se eu escolher errado neste caso, ele vai me esfolar vivo, minha carreira estará liquidada...



Ele fez uma pausa para respirar, balançou a cabeça, e acrescentou:



— Não poderia fazer isso de jeito nenhum, não...



— Por que não? Não nos aprova?



— Claro que aprovo vocês dois, mas sua mãe não... isto é, ela diz não ao casamento, Sir William meteu-se na história, a igreja não vai celebrar o casamento, nem os outros capitães, e não posso esquecer que os dois são legalmente menores de idade, e por isso, se eu me envolvesse... afinal, ela é menor, e não pode... não posso assumir o risco... — Marlowe teve uma súbita idéia, olhou na direção da praia — A menos que sinalize para Ketterer. Pedirei permissão.



— Se fizer isso, perderá prestígio para sempre. Se Ketterer quisesse que você fizesse isso, teria dito expressamente.



Marlowe tornou a olhar para ele, irritado. Releu a mensagem do almirante, soltou um grunhido. Seu futuro estava em jogo. Deus Todo-Poderoso, por que os comvidei para um passeio? Lembrou o que o pai sempre dizia: Na marinha, você comanda seu navio pelas normas e regulamentos, exceto se for o maldito Nelson, e só existiu um Nelson!



— Lamento, meu caro, mas não é possível.



— Você é a nossa última esperança... e agora a nossa única esperança.



— Lamento, mas a resposta é não.



Struan suspirou, relaxou um pouco, e jogou seu último trunfo.



— Angel!



Ela ouviu-o na segunda chamada e voltou, com o tenente Lloyd ao seu lado.



— Angel, gostaria de casar hoje, neste momento? — indagou ele, amando-a demais. — John Marlowe pode celebrar a cerimônia, se quiser. O que acha?



Angelique mostrou-se espantada, e não ouviu Marlowe dizer que lamentava muito, mas não podia fazê-lo. Só que ele foi detido pelo ardor do abraço e beijo de Angelique, que depois fez a mesma coisa com Struan, várias vezes.



— Mas claro que eu adoraria! Oh, John, seria maravilhoso... obrigada, muito obrigada... seria maravilhoso... por favor...



Ela suplicou com outro abraço, e Marlowe se ouviu dizer:



— Claro, claro... por que não? Terei o maior prazer.



Ele falou as palavras fatídicas baixinho, embora se sentisse por dentro mais furioso do que nunca, e ainda tivesse a intenção de dizer não. O timoneiro sacramentou a questão com um grito alegre:



— Três vivas para o capitão Marlowe! Teremos um casamento a bordo!







O almoço foi um hilariante festim pré-nupcial, apenas dois ou três copos de vinho para testar e saborear a qualidade excepcional, o resto deixado para mais tarde, com todos muitos excitados, e ansiosos em começar logo. Depois de tomar a decisão, Marlowe ordenou que a fragata partisse para alto-mar com todas as velas içadas e tornou-se o mais entusiástico partidário, querendo que a cerimônia fosse memorável e perfeita. Mas antes de propor um brinde pré-nupcial, ao final da refeição, ele disse, solene:



— Só Deus sabe se será mesmo legal, mas nada pude encomtrar nos regulamentos navais para dizer que não será, ou que não pode ser consumado, nada se refere à idade das pessoas, apenas que ambos devem declarar sua concordância formal, diante de testemunhas, que dão seu consentimento por livre e espontânea vontade, e assinarem um depoimento, que incluirei no diário de bordo. Ao desembarcarmos, todo o inferno ficará à solta, além dos parabéns. Talvez devam providenciar uma cerimônia religiosa, pois as duas Igrejas vão protestar com veemência pelo que vamos fazer.



Angelique percebeu uma certa apreensão por trás das palavras.



— Mas está tudo bem, não é, John? Malcolm me falou sobre as oposições e o padre Leo... — Ela torceu o nariz, em repulsa. — Você não vai se meter numa encrenca, não é?



— Nem pense nisso, pois o almirante deu permissão — respondeu Marlowe com mais entusiasmo do que sentia. — Mas chega de falar sobre isso. À saúde de vocês e às futuras gerações!



Angelique começou a se levantar para beber também, mas Struan a deteve.



— Desculpe, querida, mas dá azar beber à própria saúde. É um velho costume. Além disso, a bordo dos navios da marinha real, as pessoas sempre fazem o brinde sentadas.



— Ah, sinto muito!



Sua mão esbarrou num copo, jogando-o contra outro, que começou a retinir. No mesmo instante, Marlowe e Struan se inclinaram para interromper a vibração. Malcolm explicou:



— É outra antiga superstição do mar, querida. Se você deixa o retinido de um copo acabar por si mesmo, um marujo se afoga em algum lugar do mundo.



— Ahn... — O rosto de Angelique perdeu o brilho. — Eu gostaria de saber disso antes. Muitas vezes, no passado...



— Não precisa se preocupar — interrompeu-a Marlowe. — Se você não sabe, então a superstição não conta. Certo, Malcolm?



— É isso mesmo. Eu gostaria de propor um brinde, Angelique, a John Marlowe, capitão da marinha real, cavalheiro, e o melhor amigo que temos!



O pequeno camarote transbordava de conversa animada e risos. Lloyd veio anunciar que estava tudo pronto no convés superior. Um último beijo entre os dois, muito terno, e foram para o convés, onde ficaram de mãos dadas.



A fragata navegava a favor do vento, as velas enfunadas. Os marujos que podiam ser dispensados de suas funções entraram em formação no convés, arrumados e empertigados, virados para o tombadilho superior, onde Malcolm e Angelique postavam-se diante do capitão. Marlowe era ladeado por uma guarda de honra de dois fuzileiros. Abriu o livro dos regulamentos navais na página certa e gesticulou para que o corneteiro dos fuzileiros desse uma clarinada. O contramestre soprou seu apito e os marujos assumiram posição de sentido.



— Estamos aqui reunidos como testemunhas do casamento destas duas pessoas, à vista de Deus...



As ondas encapeladas não os incomodavam, nem o vento, que soprava em rajadas cada vez mais fortes. Havia nuvens nimbos no horizonte, ainda não ameaçadoras, mas potencialmente perigosas. O céu continuava claro, e Marlowe especulou, por um instante, se o tempo não seria um presságio. Ainda não havia motivo para alarme, pensou ele. A cerimônia foi logo concluída, estranhamente rápida para todos, quase um anticlímax para Malcolm. Ele usara o anel de sinete de seu dedo mínimo como o anel de casamento. Era grande demais para Angelique, mas ela o segurou com firmeza, contemplando-o na maior incredulidade.



— Agora, eu os declaro marido e mulher.



Enquanto eles se beijavam, soaram exclamações estrondosas, até que Marlowe ordenou:



— Vamos interromper esse abraço!



Ele ordenou em seguida que fosse servida uma dose de rum a todos os tripulantes, sob mais aclamações.



— Sra. Struan, posso ser o primeiro a lhe dar os parabéns?



Angelique abraçou-o, comovida, lágrimas de alegria escorrendo por suas faces.



— Obrigada, muito obrigada...



— De nada — murmurou Marlowe, embaraçado, e depois apertou a mão de Struan. — Parabéns, meu velho. Por que nós não...



Uma breve rajada fez as velas estalarem.



— Por que vocês dois não descem? — sugeriu ele. — Irei me juntar a vocês daqui a pouco.



Marlowe virou-se, esquecendo-os pelo momento, para cuidar de seu navio.



— Vamos dar a volta, Número Um. Fixe um curso para Iocoama, sob velas até novas ordens. Ligaremos o vapor para ancorar... e talvez enfrentemos alguma chuva. Sinaleiro, dê-me seu bloco. Quando estivermos à vista da nave capitânia, transmita isto.







Edward Gornt sentava à vontade junto da janela panorâmica do prédio da Brock, os pés em cima de uma cadeira, contemplando a baía. As nuvens haviam se espalhado e prometiam uma tempestade, embora naquela época do ano se dissipassem tão depressa quanto surgiam. Por trás dele, Norbert Greyforth se encontrava sentado à sua escrivaninha, absorvido no trabalho. Haviam observado a Pearl sumir no horizonte, mas não atribuíram qualquer significado especial a isso.



— Imagino que é parte dos testes que estão realizando, senhor — dissera Gornt. — Ainda não consigo conceber o que há de tão importante a bordo.



Norbert balançara a cabeça, secretamente divertido, e voltara a assinar e conferir documentos e manifestos. Havia um cargueiro da Brock no porto, deveria zarpar dentro de poucos dias, e toda a carga que levaria do Japão tinha de ser contabilizada: vinte quilos de ovos de bicho-da-seda para o mercado francês — trinta a cinquenta mil ovos em cada trinta gramas —, fardos de seda crua e panos de seda para o mercado de Londres, objetos laqueados, barris de saquê que estavam tentando introduzir no mercado inglês, e também para os japoneses nas Filipinas, cerâmicas baratas como lastro, carvão, qualquer coisa e tudo que pudesse encontrar um mercado, junto com o resto da carga trazida antes que não fora vendida e seria agora negociada na volta. Algumas armas de fogo e ópio, em caixotes especiais.



— Charuto? — indagou Gornt.



— Obrigado.



Eles acenderam os charutos finos e compridos, saboreando-os.



— Marquei um encontro com McFay para finalizar os acertos para amanhã, senhor.



— Ótimo.



Norbert soprou para o alto uma nuvem de fumaça, assinou o último documento. Tocou uma sineta. Um momento depois, seu escriturário-chefe e cambista entrou na sala.



— Está tudo pronto, Pereira.



— Certo, senhor. — Aquele homem pequeno e louro, com olhos orientais, era um eurasiano de Macau, como muitos que trabalhavam em todas as grandes companhias. — O que faremos com as cargas especiais, senhor?



— Ficam fora do manifesto e deverão ser entregues aos cuidados especias do capitão.



— Corre um rumor de que a marinha vai subir a bordo e fiscalizar a carga ao acaso.



— Pois que façam isso. Nenhuma de nossas cargas especiais é ilegal, não importa o que os idiotas dos Struans façam.



Norbert dispensou-o e concentrou toda a sua atenção em Gornt. Alguma coisa nele deixava-o desconfiado.



— Edward, talvez eu devesse cancelar o duelo, comunicar a Struan esta noite que aceito seu compromisso, pois ele já mordeu a isca, não é mesmo? Talvez seja melhor deixá-lo ir para Hong Kong, para se afundar ainda mais na merda, pensando que venceu. O que acha?



— Pode fazer isso, mas por que poupá-lo de uma noite de medo? Ele está apavorado, com toda certeza... por que confortá-lo? Struan por acaso o confortaria?



Norbert observou-o com toda atenção, viu o lábio superior se contrair ligeiramente, numa satisfação insidiosa. Riu para si mesmo, pensando no quanto aquela noite poderia ser especial para Struan, se Ketterer fosse um homem diferente, e que a perspectiva do duelo, agora mais do que nunca, tiraria o que restava do sono de Struan.



— Não pensei que se ajustasse a nós, os Brocks. A vingança é doce para você também?



— Para mim, senhor? — Gornt alteou as sobrancelhas. — Eu pensava no senhor... estou aqui para servi-lo, não foi essa a idéia?



— É verdade. — Norbert ocultou seu sorriso. — Muito bem, deixaremos para amanhã. Mas agora...



Seus olhos aguçados divisaram uma mancha no horizonte, através da janela Por trás de Gornt.



— Será a Pearl?



Ele se levantou, foi até janela, focalizou seu binóculo. Era mesmo a fragata.



— Vem firme como foi — murmurou Gornt.



Gornt se perguntou o que isso podia significar. A Pearl se achava no processo de ferrar as velas, com nuvens pretas por trás.



— O vento está aumentando por lá — comentou Gornt, também focalizando seu binóculo.



A fumaça da fragata formava um ângulo ao sair da chaminé. O resto da esquadra e os navios mercantes estavam ancorados na baía. Umas poucas cristas espumantes. Norbert virou seu binóculo para o Prancing Cloud. Nada de estranho acontecendo ali. E depois para a nave capitânia. Também nada. Voltou a observar a fragata. E ficaram esperando. A Pearl aproximava-se depressa. A nave capitânia outra vez. Nada. A fragata. Norbert pôde reconhecer apenas Angelique, de pé ao lado de um homem, que devia ser Struan.



— Olhe ali! — exclamou Gornt de repente, excitado. — Pode ver o sinaleiro?



— Onde? Ah, sim, estou vendo.



— Ele está transmitindo uma mensagem para a nave capitânia, fazendo os primeiros sinais com as bandeiras. “Capitão da Pearl para almirante. A mensagem diz: P-E-D-I-D-O C-O-N-C-E-D-I-D-O” — Perplexo, Gornt olhou para Norbert por um instante. — O que isso significa?



— Observe a nave capitânia, à espera de alguma resposta!



Gornt obedeceu e Norbert acrescentou:



— Onde aprendeu a ler as bandeiras de sinalização da marinha?



— Em Norfolk, Virgínia, senhor. Quando era garoto, gostava de observar os navios, os nossos e os britânicos. Tornou-se uma espécie de passatempo. Depois, meu pai comprou um livro americano e outro britânico, com a maioria das frases padrões e alguns de seus códigos. Costumava ganhar apostas para meu pai quando ele recebia oficiais, em geral para jogar cartas. Minha mãe e ele gostavam de receber, sempre com a maior generosidade, antes do desastre com o algodão, quando perderam a maior parte de seu dinheiro.



— Pode ler todas as bandeiras? Todos os códigos? — perguntou Norbert, especulando como poderia aproveitar esse conhecimento de Gornt. — Seria capaz de ler as bandeiras da Struan, de navio para navio, ou de navio para terra?



— Se usarem os códigos internacionais de sinalização, embora seja provável que eles também tenham, como a Brock, códigos especiais... Espere um instante, uma mensagem da nave capitânia, no código normal. “Para capitão da Pearl de almirante Ketterer: Volte imediatamente a seu ancoradouro.” Em seguida: “Quando ancorado em segurança, apresente-se na nave capitânia.” Em seguida as letras “C-O-M E-L-E”. Última bandeira padrão: “Acuse recebimento.” — Gornt lançou um olhar rápido para trás. — “Com ele”, Sr. Gornt? Seria Struan?



— No alvo!



— Bandeira acusando o recebimento. — Gornt baixou o binóculo, esfregou os olhos, pois a concentração deixara-o com dor de cabeça. — No alvo? Sabe o que tudo isso significa?



— O que havia de tão importante a bordo da Pearl? Capitão desgraçado Marlowe, da marinha real.



Norbert não demorou muito a explicar.



— Casados? — disse Gornt. — Mas é brilhante, senhor!



— Nunca pensei que Ketterer fosse concordar, mas parece que foi isso mesmo. Por quê? Ele não tem nada a ganhar. — Norbert ficou perplexo, mas depois exibiu um sorriso rancoroso. — A menos... a menos que ele tenha chamado os dois para passar uma descompostura em Marlowe e desfazer o casamento de imediato... para espetar a faca ainda mais em Struan, torturá-lo mais um pouco.



— E ele pode fazer isso?



— Aquele patife pode fazer o que bem quiser, verdade seja dita. — Norbert cuspiu na escarradeira e jogou a ponta do charuto ali. — Todos os homens a bordo da esquadra têm o dever de obedecer a ele e nenhum se esquiva!



— Está querendo dizer que ele pode obrigá-los a irem contra a lei?



— Vamos pôr de outra maneira: eles têm de obedecer imediatamente ou sofrer as conseqüências... que variam do açoite à passagem por baixo da quilha, preso por uma corda. Se ele quisesse, poderia enforcar qualquer homem e depois alegar que foi enganado pelos subalternos... escapando de qualquer corte marcial. Enquanto isso, você está morto.



— Então como o senhor pode... se opor a ele com tanta veemência, Sr. Greyforth?



— Porque Ketterer respeita a lei, eles são condicionados assim na marinha real, a obedecer às ordens de quem está por cima, mas acima de tudo porque contamos com Wee Willie... que ocupa uma posição superior. Ele é a nossa proteção contra Ketterer, o general, os japas, e todos os outros inimigos... mas isso não salvará o jovem Struan da fleuma de Ketterer.







— Ou seja, capitão Marlowe, o pedido especial que o Sr. Struan lhe fez foi o de navegar para alto-mar... e casá-lo com miss Angelique Richaud?



— Isso mesmo, senhor.



Marlowe se encontrava em posição de sentido, incapaz de ler o rosto do almirante. Ketterer se achava ladeado à mesa, no enorme camarote na popa, pelo capitão da nave capitânia. Por trás deles, seu ajudante-de-ordens também se mantinha imóvel.



— E fez isso, sabendo que ambos eram menores?



— Sim, senhor.



— Por favor, apresente-me um relatório, por escrito, até o pôr-do-sol, especificando suas razões, exatamente, e relatando o que ocorreu, exatamente. Dispensado.



Marlowe bateu continência e começou a se retirar, enquanto Ketterer se virava para o capitão, um homem feio e rude, o rosto curtido, conhecido pelo rigor de sua disciplina, e pelo culto aos regulamentos navais.



— Capitão Donavan, poderia fazer o favor de pesquisar a situação legal?



— Pois não, senhor.



Seus olhos azuis tinham uma expressão implacável.



— Obrigado. Isso é tudo... por enquanto.



Foi a última coisa que Marlowe ouviu, antes de fechar a porta, e teve a sennsação de que seu coração recomeçava a bater. Struan esperava na ante-sala. Os fuzileiros montavam guarda, desconfiados.



— Por Deus, você se estrepou?



— Não, absolutamente. — Marlowe esforçava-se para aparentar calma. — O almirante, corretamente, quer um relatório por escrito, isso é tudo. Voltarei para meu navio. Vejo-o mais tarde. Antes que ele pudesse se retirar, a porta do camarote foi aberta e Marlowe morreu mais um pouco. O capitão Donavan passou por ele, mal reconhecendo sua presença ou a sua continência. Da porta, o ajudante-de-ordens anunciou:



— Sr. Struan, o almirante apresenta seus cumprimentos e pede que faça gentileza de entrar, por favor.



Struan entrou claudicando no camarote. O ajudante-de-ordens não o seguiu, mas fechou a porta e ficou esperando ali. Antes de se retirar, Marlowe fitou-o, mas seus olhos nada deixaram transparecer... e é claro que nenhum dos dois diria qualquer coisa na presença dos fuzileiros. Ketterer gesticulou para que Malcolm sentasse.



— Por um lado, posso lhe dar os parabéns — disse ele, com uma formalidade sombria, estendendo a mão.



— Obrigado, senhor. — Malcolm pegou a mão estendida, sentindo que o aperto do almirante era firme, mas a palma macia. — E por outro?



— Por outro, parece que vai ter um trabalho dobrado para cumprir suas promessas.



— Como assim?



— Parece que atiçou uma cova de serpentes malignas entre seus companheiros. Sir William vem sendo assediado por queixas.



— Como eu disse antes, farei o melhor possível.



— Deve fazer mais do que isso, Sr. Struan.



— Desculpe, almirante, mas o que isso significa?



— Significa nada mais ou menos do que já prometeu.



No curto silêncio que se seguiu, Malcolm decidiu que não se deixaria ser sufocado, mas também não esqueceria que aquele homem tornara seu casamento possível... não, não possível, ele se corrigiu no mesmo instante, “permitira” que fosse possível. John Marlowe tivera a coragem de tomar a iniciativa.



— O capitão Marlowe não se meteu em nenhuma encrenca, não é?



— O capitão Marlowe está sujeito aos regulamentos navais.



— Sei disso, mas creio que ele nos casou de acordo com os regulamentos navais, senhor. Li o parágrafo antes e não havia qualquer referência à questão da idade.



— Os regulamentos também declaram que qualquer casamento assim fíca sujeito à revisão imediata para determinar a sua viabilidade. É o que acontece neste caso.



— Ou seja, estou casado, mas ao mesmo tempo não estou. É isso o que está querendo dizer?



— Apenas ressalto, Sr. Struan, que todas as ocorrências fora do normal estão sujeitas a uma revisão, o que é a norma na marinha real.



Malcolm forçou um sorriso.



— Correto, senhor. Minha... — Ele quase usou a palavra “leitura”, mas pensou duas vezes e trocou-a. — ...minha compreensão da ordem, senhor, é de que lhe dava permissão.



Ketterer alteou uma sobrancelha.



— O capitão Marlowe lhe mostrou uma mensagem lacrada que enviei para ele?



— Pelo que compreendi, senhor, a ordem lhe concedia uma permissão qualificada... e confesso que me empenhei em perguntar as palavras exatas e persuadi-lo de que era esse o caso.



— Era o que eu esperava que fizesse — comentou o almirante, secamente. — Portanto, era uma permissão qualificada?



— Minha ordem foi enunciada com clareza: Se você solicitasse um favor peculiar, ele poderia concedê-lo, se assim o desejasse. Ontem à noite, não mencionou que gostaria de ir para alto-mar? Seu pedido peculiar poderia ser apenas isso... as ordens dele eram para realizar os testes à vista da nave capitânia.



Struan se esforçava para manter o controle, sentindo os recifes do desastre sob seus pés.



— Tem razão, senhor, poderia pensar assim. Se houve algum mal-entendido, foi meu, não do capitão Marlowe.



— Anotarei isso, Sr. Struan.



Malcolm observava o homem mais velho com todo cuidado, e escutava com mais atenção ainda, querendo descobrir para onde o almirante ia, agora com receio de que houvesse uma continuação do jogo de gato e rato. Estou outra vez em suas garras... nunca conseguirei escapar?



— Posso perguntar, almirante, por que deu ao capitão Marlowe o que foi talvez uma permissão qualificada, mas que eu certamente interpretaria da maneira errada? — Ele manteve o rosto impassível, não esquecendo que estava casado, até que a cerimônia fosse declarada ilegal. — Nunca pensei que o faria, ontem à noite.



Durante a noite, Ketterer fora assediado pela presença de Consuela. “Dê uma chance a esse rapaz, Charles”, dissera ela, com aquele seu sotaque melodioso e adorável, tão sensual na memória quanto a profundidade de seus olhos castanhos em vida. “Nunca nos deram uma chance. Sendo assim, por que não dar a ele? E não se esqueça de que você não era muito mais velho do que ele na ocasião. Obteve dele um gigantesco passo à frente e pode ter certeza de que o rapaz cumprirá sua promessa. Por que não ser generoso... como os nossos pais e o infame almirantado não o foram? Ele está muito apaixonado, Charles, como acontecia com você, mas ao contrário de você, já sofreu um golpe cruel, pelo capricho de Deus...”



Ele acordara com as palavras de Consuela ressoando em seus ouvidos, a maneira como ela pronunciava seu nome ainda fazendo o coração disparar, mesmo depois de tantos anos. Mas não é a mesma coisa, pensara ele, endurecendo seu coração. Os Struans são contrabandistas de ópio, contrabandistas de armas... não esquecerei meus marujos mortos. Sinto muito, meu amor há tanto tempo perdido, mas o casamento será declarado ilegal imediatamente... Struan não vai se livrar tão fácil. O dever é o dever.



Agora, olhando para Struan, recordando a maneira como ele entrara, determinado a parecer forte, quando Hoag e Babcott haviam confirmado em particular que ele sentia uma dor quase que constante, e era duvidoso que algum dia voltasse a correr, ou que pudesse andar a cavalo sem problemas, recordando as palavras ao contrário de você... pelo capricho de Deus... Ketterer suspirou.



— Um súbito capricho, Sr. Struan — disse ele, resolvendo ser indulgente —, somado à convicção de que vai fazer o que prometeu.



O almirante levantou-se, com um sorriso nos olhos, foi até o aparador sentindo-se curiosamente jovem.



— Aceita um xerez?



— Obrigado.



Struan começou a se levantar, mas balançou, fraco de alívio pela admissão de Ketterer.



— Pode deixar que eu levo até aí. Tio Pepe? Ótimo. Saúde!



Tocaram os copos. Ketterer tomou um gole grande.



— Escute, meu jovem — disse ele, a voz inesperadamente suave e gentil — terei de consultar Sir William, é claro, e vou persuadi-lo a ler os regulamentos navais. É mais do que provável que o relatório do capitão Marlowe seja aceito, depois das devidas considerações... devemos cuidar para que nossos oficiais sempre estejam conscientes das consequências da ação independente, mas ele não se encontra em nenhuma “encrenca”, para repetir seu termo. Só que isso é outro segredo entre nós. Entendido?



— Claro, senhor. Obrigado. Cumprirei o que prometi. — Malcolm respirou fundo. — Então meu casamento é legal?



— Isso depende do seu ponto de vista. No que me diz respeito, no que se refere à marinha, essa é a minha convicção, e portanto deve ser legal. Quanto às duas Igrejas envolvidas, e às inevitáveis objeções jurídicas que terá de enfrentar, sugiro que corra as escotilhas, e se prepare para o pior. Mais uma vez, meus parabéns, por um lado. E transmita meus cumprimentos à Sra. Struan... em particular, é claro.


43





Ao anoitecer, A notícia já se espalhara por toda a colônia, cidade dos bêbados e Yoshiwara.



As especulações foram imediatas, ruidosas, com muitas discussões, teorias contra e a favor do casamento, alguns prevendo que a cerimônia era totalmente ilegal, outros repudiando isso, com a maior veemência, muitos dos mercadores mais belicosos — e todos os moradores da cidade dos bêbados — usando palavras de baixo calão, gestos obscenos e punhos cerrados para defender suas posições, enquanto uns poucos dos mais sensatos diziam:



— Ah, o jovem patife esperto, então foi por isso que ele apoiou o almirante! Foi um acordo! Muito hábil... eu faria a mesma coisa, se estivesse no lugar de Struan. E agora que ele tem a garota, ainda será contra o comércio de ópio, contra o comércio de armamentos? Não há a menor possibilidade...



Por causa da notícia, irromperam várias brigas na cidade dos bêbados e um bar foi destruído pelo fogo. Circulou o rumor de que o padre Leo sofrera um ataque apoplético e agora se encontrava prostrado diante do seu altar, enquanto o reverendo Tweet, naquele exato momento, protestava com veemência num encontro com Sir William. No clube, Lunkchurch e Grimm, inevitavelmente em lados opostos, iniciaram mais uma batalha e foram jogados na rua.



Malcolm e Angelique estavam na cabine da lancha da companhia. Aproximaram-se do cais, de mãos dadas, e avistaram um grupo à espera ali, para lhes dar os Parabéns, com Jamie McFay à frente. A prometida tempestade não se concretizara e apenas caíra um chuvisco no final da tarde. O vento ainda soprava forte, o céu continuava nublado, mas isso não arrefeceu a explosão de boas-vindas. Lá vamos nós, Sra. Struan — disse Malcolm, abraçando-a.



Ela beijou-o e sussurrou:



— É verdade, meu marido querido. Oh, Malcolm, parece tão estranho, tão maravilhoso... Não é um sonho, não é?



— Não, embora eu também sinta a mesma coisa.



O Cúter balançava no mar agitado, jogando-os um contra o outro, aos risos, e que aproximou de lado do cais, entre gritos e aplausos, na atracação mais impecável que o contramestre já efetuara.



— Depressa nos cabos, rapazes! — ordenou ele.



Mas nem havia necessidade, pois mãos ansiosas recolheram os cabos, prenderam nos postos, com vários marujos se adiantando para ajudar.



— Parabéns, tai-pan, Sra. Struan! — gritou Jamie.



Os gritos e aclamações chegaram ao clube, no outro lado da High Street. Todos saíram para a rua, tirando o chapéu, até mesmo a Sra. Lunkchurch e a Sra. Grimm, contagiadas pelo espírito festivo.



Gornt e Norbert Greyforth observavam de janelas do segundo andar do prédio da Brock. Todos os criados chineses agrupavam-se diante das casas, de olhos esbugalhados, enquanto os samurais no portão norte se mostravam aturdidos. Os ministros e suas equipes saíram das respectivas legações: Sir William, com uma expressão severa, acompanhado por um risonho Phillip Tyrer e por Michaelmas Tweet, com um ar sombrio, furioso; Zergeyev radiante, aplaudindo com o maior entusiasmo; Dmitri, gritando parabéns e acenando com uma bandeira americana; e Seratard e André, divididos entre a exultação pelo fato de o casamento ter se consumado e a irritação por não terem sido consultados.



— André, traga-a o mais depressa possível. Jésus, a estúpida gamine deveria ter nos transmitido o segredo... era sua função controlá-la! — Seratard falou pelo canto da boca, enquanto acenava com vigor, em resposta ao aceno de Angelique. — Struan deve fazer um testamento de acordo com o Código Napoleão imediatamente. Cuide disso. Só Deus sabe que truques sujos William vai tentar, a favor ou contra... mas independentemente do que ele disser, nossa posição é de que se trata de um casamento legal, mas devemos exigir que se conforme à lei francesa. Fale com o padre Leo. Ele celebrará um casamento apropriado na semana que vem... Mon Dieu, olhe só para aqueles cretinos!



Angelique e Struan eram assediados por todos os lados. Com crescente dificuldade, tentaram abrir caminho pela multidão. Todos queriam beijar a noiva, como tinham direito, mas eram impedidos por outros, aumentando o tumulto.



Ela começou a entrar em pânico. Isso aumentou a tensão dos que se encontravam mais próximos. A multidão turbilhonava, ameaçava sufocá-la, Struan fazendo um esforço para se manter ao seu lado. Jamie pôs-se a empurrar com vigor as pessoas à frente, alguém desferiu um soco e começou uma briga violenta. Sir William gritou para os fuzileiros de sentinela:



— Vão até lá e abram caminho para os dois! Depressa, pelo amor de Deus, ou eles serão esmagados! — Os quatro homens desataram a correr, enquanto ele acrescentava: — Phillip, trate de supervisioná-los; leve Struan à minha sala o rnais depressa possível.



O sargento berrou:



— Ei, vocês aí!



O demônio da turbulência, que às vezes se manifestava numa multidão sem qualquer razão aparente, desapareceu por completo. Calmo e firme, o sargento forçou a passagem entre as pessoas.



— Comportem-se, dêem espaço à moça!



Todos obedeceram e Struan alcançou Angelique.



— Você está bem, Angel?



— Estou, sim, amor. — Agora que havia mais espaço, o pânico dissipou-se. Ela ajustou o chapéu e constatou que a pluma quebrara. — Olhe só para isso!



— Deixem-me ajudá-los! — disse Tyrer, solene. — Vocês todos, tratem de se afastar! Deixaram a pobre moça assustada. Você está bem, Angelique? Malcolm?



— Claro que estamos — respondeu Malcolm. Agora que ela estava segura, sua felicidade voltou e ele acrescentou: — Obrigado pela recepção! Drinques por conta da Casa Nobre! O bar do clube está franqueado a todos e assim continuará até segunda ordem!



Houve uma debandada geral nessa direção. Um momento depois, só Malcolm, Angelique, McFay e Phillip Tyrer permaneciam ali. E a presença azeda de Michaelmas Tweet, que disse:



— Sr. Struan, a cerimônia não é legal e devo adverti-lo...



— Pode estar certo, reverendo, mas fui informado do contrário — interrompeu-o Malcolm, com firmeza, já tendo formulado um plano para Tweet, outro para o padre Leo, e um terceiro para Sir William. — Não obstante, creio que há uma solução feliz. Não gostaria de ir amanhã ao meu escritório, por volta de meio-dia? Posso lhe assegurar que tudo acabará bem.



Depois, ele sussurrou para Jamie:



— Tire-o daqui.



E acrescentou para os outros:



— Sigam para o escritório, o mais depressa que puderem.



Eles tiveram de passar pelo meio de alguns retardatários, até que Angelique murmurou:



— Phillip, vamos mais depressa!



Ela correu na frente com ele, a fim de evitar o padre Leo, que se aproximava pela rua, o mais depressa que sua corpulência e a batina permitiam. Entrando no saguão, onde quase todo o pessoal esperava em fila, com Vargas à frente, Chen com um sorriso frio, Angelique soltou uma risada nervosa.



— Não queria ter de falar com ele.



— Por que não? — O sorriso de Tyrer era radiante. — Você está casada e Ponto final... pelo menos Sir William vem cuspindo fogo desde que soube, amaldiçoando a marinha, Ketterer, Marlowe... por isso, acho que estão mesmo casados, e tudo o que quero dizer é meus parabéns, e posso beijar a noiva?



Ele não esperou e beijou-a como um irmão. Angelique abraçou-o e deixou escapar outro suspiro de alívio. Struan entrou, junto com McFay.



— Tranquem a porta — ordenou ele.



Ajudado por Vargas, McFay obedeceu, empurrando para fora, polida mas firmernente, uns poucos mercadores mais persistentes. Bateram e trancaram a porta no instante em que o padre Leo ali chegou, tentou a maçaneta, depois martelou-a, como se fosse um portal de catedral.



Mas ninguém prestava a menor atenção, escapando para o escritório, com um bando de crianças levadas, e ali arriaram em cadeiras. Exceto Malcolrn.



— Champanhe, Chen. Obrigado, Vargas. Voltaremos a conversar mais tarde — disse ele, interrompendo as congratulações. E acrescentou em cantonês para Chen: — Traga logo o champanhe, seu fingido.



Jamie McFay fechou a porta depois da saída de Chen e sentou na última cadeira.



— Ah! — exclamou Malcolm, borbulhante como o champanhe.— Nunca imaginei que seria assim. Phillip, mais uma vez obrigado pelos votos de felicidade. Obrigado a você também, Jamie. Você está bem, Angel?



— Estou, sim, Sr. Struan, maravilhosa.



— É uma notícia sensacional, Malcolm — disse Tyrer.—E antes que eu me esqueça, Sir William deseja lhe falar, o mais depressa possível.



A maneira como ele falou, especulativa, como se fosse uma coisa irrelevante quando todos sabiam que recebera a ordem aos berros, causou repentino silêncio rompido quando todos desataram num riso histérico.



— Amanhã de tarde, com o maior prazer — respondeu Malcolm.



Logo os copos ficaram cheios, foram esvaziados ainda mais depressa, enchidos de novo, todos falando em voz alta, sem que ninguém escutasse. A porta foi aberta. Vargas fez um sinal para McFay, lhe sussurrou alguma coisa. Jamie acenou com a cabeça.



— Já estou indo. Tai-pan, pode me dar licença? E há um recado para Ange... para a Sra. Struan: o Sr. Seratard quer dar seus parabéns pessoalmente, na legação, o mais depressa possível, e... o padre gostaria de lhes falar por um momento.



— Jamie, primeiro termine seu drinque. Vargas, mande avisar a Seratard que o poremos no alto da lista, mas antes diga ao padre Leo para me procurar aqui no escritório amanhã, às cinco horas da tarde.



Vargas se retirou. Malcolm percebeu uma apreensão no rosto de Angelique.



— Falarei sozinho com ele, Angel. Não precisa se preocupar com isso. Prometo que a situação estará calma até o domingo. Tenho tudo sob controle. Assim que escurecer, voltaremos ao cúter.



— Ao cúter? Para que, Malcolm?



— Outra surpresa. Vamos jantar no Prancing Cloud e passar a noite ali Haverá mais surpresas amanhã, muitas e muitas, inclusive um plano para a lua-de-mel. Sairemos dentro de uma hora; você nem precisa trocar de roupa. Mandei Ah Soh embalar algumas roupas para você, que já foram levadas para bordo. — Para Jamie, ele acrescentou: — Tem mesmo de sair? Qual é o problema?



— Marquei um encontro com Gornt e esqueci-o por completo, no excitamento. Ele espera na minha ante-sala. Pediu a Vargas para transmitir aos dois seus parabéns e também os de Norbert.



— Agradeça a ele por mim, mas não demore muito.



— Agradeça também por mim, Jamie — disse Angelique.



— Pois não, Sra. Struan.



MacFay tentava se acostumar com as palavras, achando difícil e artificial, as palavras lembrando Tess Struan, e agora ele se sentia bilioso sempre que pensava nela. No momento em que soubera do casamento, o motivo para a carta de Malcolm ao Guardian e do anúncio da noite anterior havia se tornado evidente, até mesmo a ocasião escolhida para o duelo, tudo passara a se encaixar.



Casados! Oh, Deus!



As implicações para Malcolm eram imensas. Para ele próprio, não importava que tivesse feito as pazes com Malcolm e consigo mesmo. Duvidava da possibilidade de algum dia fazer as pazes com Tess Struan. Embora ela fosse uma Struan fanática, ao mesmo tempo herdara a sede e a necessidade implacável de vingança do pai. Ele testemunhara essa vingança em cima do contramestre que comandava o barco que emborcara, afogando os gêmeos e seu segundo filho. Acusara-o de assassinato, exigindo que fosse enforcado. O juiz considerara-o culpado de negligência, causando homicídio involuntário, e lhe aplicara a pena máxima, dez anos de trabalhos forçados na prisão de Hong Kong, a que o homem não sobreviveria. Negligente? Não fora bem assim, McFay e a maioria pensaram na ocasião, a tempestade fora repentina, como costumava acontecer naquela estação, um lamentável acidente. Mas ela era Tess Struan, da Casa Nobre. O verdadeiro erro do contramestre, refletiu ele agora, com tristeza, fora ter sobrevivido e deixado as crianças morrerem.



— Angelique — disse Malcolm —, por que não vai se lavar? Farei a mesma coisa, e partiremos dentro de uma hora... só tenho umas poucas coisas para acertar com Jamie.



Os dois trocaram um beijo e ela se retirou. Malcolm disse a Chen, em cantonês, que providenciasse água quente para ele e sua esposa e acrescentou em seguida:



— Depois, iremos para o Prancing Cloud. Está tudo preparado?



— Está, sim, amo.



— Ótimo, e é melhor vocês três se manterem tão silenciosos quanto morcegos e tão contentes como porcos na bosta, mais do que nunca!



Para Tyrer, ele acrescentou, jovial, em inglês:



— Phillip, pode nos dar licença? A partir de amanhã, iniciaremos as comemorações, com banquete de casamento, e assim por diante, convites formais. Por favor, transmita meus cumprimentos a Sir William e não conte a ninguém que passaremos esta noite no Prancing Cloud... nem mesmo a Sir William. Não quero faceiros bêbados circulando o navio durante toda a noite. Desejamos ter privacidade, entende?



— Claro que entendo, e mais uma vez meus parabéns.



Tyrer sentiu-se satisfeito por sair dali. Ainda precisava se reunir com Hiraga para concluir outro despacho brusco para o tairo Anjo, antes de poder atravessar a ponte ao encontro de Fujiko. Depois do conselho de guerra naquela manhã, entre William e Seratard, com a presença dele e André, na qual haviam sido definidos os detalhes finais para o iminente bombardeio e a campanha punitiva contra Iedo.



André lhe sussurrara:



— Já acertei tudo. Fujiko está ansiosa em vê-lo. Até insiste em lhe servir um banquete japonês. Portanto, chegue lá com fome e com sede, mas não esqueça de bancar o durão.



Depois que os outros saíram, um pouco da fadiga de Malcolm transpareceu.



— Jamie, pode me servir um copo? Obrigado. Tudo foi organizado?



— Para esta noite, sim, e para amanhã também. Ah Tok e Ah Soh já se encontram a bordo, com os baús, Chen irá com você e a Sra. Struan. Até onde posso determinar, só eles, Strongbow, eu e agora Phillip sabem que vocês dormirão no Prancing Cloud.



— Ótimo. Phillip foi um erro, mas não importa. Eu me deixei levar pela exuberância, mas não deve haver problemas. Não creio que ele fale. O que Gornt quer?



— Apenas acertar os detalhes finais. — McFay fitou-o nos olhos. — Seu casamento não deve fazer uma diferença agora?



— Poderia, mas não fará, a menos que Norbert peça desculpas.



— Gornt queria trocar uma palavra com você em particular, se tiver um momento disponível.



— Está certo. Diga a ele para vir me falar agora, e depois acerte os últimos detalhes.



A cordialidade de Gornt povoou a sala. Para Malcolm, ele parecia um velho companheiro.



— Champanhe?



— Obrigado, tai-pan. Posso lhe dar os parabéns?



— Claro que pode. Saúde!



— À sua também, senhor.



— Desculpe, mas precisamos ser rápidos. Teremos bastante tempo amanhã. Qual é o problema?



— Eu queria lhe dizer, em particular, que o Sr. Greyforth vai aceitar um acordo. Não haverá duelo.



Struan sorriu.



— É a melhor notícia que recebi... não, a segunda melhor notícia que tive hoje!



— Tem razão. — Gornt franziu o rosto. — Se ele fala sério.



— Como assim?



— Acho que deve se preparar para uma traição. Lamento ser um balde de água fria num grande dia, mas queria alertá-lo. Sei que ele vai mudar de idéia.



Malcolm observou-o em silêncio por um instante, depois balançou a cabeça, imperturbável.



— Com Norbert e todos os Brocks, esperamos a traição a qualquer momento — Eles bateram seus copos. — Saúde... e riqueza... e felicidade!



A sala parecia cheia de calor para ambos, mas Malcolm notou algo estranho em Gornt, e não pôde determinar o que era.



— Ainda planeja me dar amanhã a informação de que preciso?



— Claro. — Gornt levantou-se. — E meu contrato?



— Já ficou pronto. Minha assinatura pode ser testemunhada amanhã.



— Obrigado. Até amanhã, e mais uma vez meus parabéns.



Outra vez Malcolm sentiu algo mais que um estranho humor nele.



— Aguarda a ocasião com a mesma ansiedade que eu.



Os olhos de Gornt pareceram entrar em foco.



— É isso mesmo. Será outro grande dia, com um final e um começo.







Lá em cima, Angelique se postava diante do espelho, virando distraída o anel de sinete em seu dedo. Estava sozinha pela primeira vez naquele dia, na privacidade de seu quarto, com a porta trancada, e o clamor das verdades e paradoxos a dominara abruptamente, assim que sentara: tudo acontecia muito depressa, casada, mas sem esperar por isso, nunca daquela maneira, não a bordo de um navio, esperando e rezando, mas não acreditando que fosse possível, tantos eram os obstáculos entre os dois; casada, mas não aos olhos de Deus, casada com um homem que me empenhei em conquistar, persegui com denodo, e encorajei a me perseguir; o homem a quem adoro, mas que enganei — o estupro não foi culpa minha, o aborto era necessário, os brincos o único recurso, o sigilo a maneira de proteger minha vida, mas ainda assim trapaceei —, esse homem, que me ama até a loucura, arriscando tudo, de quem roubei, a quem enganei e atraí para um leito nupcial maculado, e no entanto...



Por três vezes, ao voltarmos para terra, tentei lhe contar.



Não foi verdade, a parte dos brincos, quis lhe dizer, mas em cada ocasião sua exultação prevaleceu, e me deteve, enquanto ele despejava a verdade sobre sua mãe e as cartas — e Skye, padre Leo, o sacerdote inglês, o almirante, e Sir William —, como fora bloqueado em todos os seus esforços, para só triunfar no final... venci, minha amada esposa, conquistei você, e agora ninguém vai tirá-la de mim...



Os dois abraçados, com lágrimas de êxtase.



Como Deus é testemunha, sei que ele seria destruído se eu começasse a falar, e tenho certeza de que se começasse, o resto sairia. E meu pobre adorado morreria. Pois é isso o que ele é, o homem mais adorado em minha vida. Sei agora que o amo com a mesma força... ninguém seria capaz de tentar com tanto afinco, superando tantas barreiras. E, no entanto...



O que devo fazer?



Ela viu seu próprio rosto a contemplá-la. Não gostando de se ver tão indefesa, tratou de baixar os olhos. Viu seus dedos girando o anel, para um lado e outro, como André fazia com seu anel de sinete. O anel de Malcolm era de ouro, pesado, com o timbre da Struan: o leão da Escócia entrelaçado com o dragão da China. Será o bem com o mal?, ela perguntou a si mesma, com um súbito calafrio.



Para se distrair, começou a escovar os cabelos, com vigor, mas isso não a ajudou. Os pesamentos sinistros voltaram, mais depressa, cada vez mais depressa, todos... e também ele.



Tudo se tornou um vômito fétido, prestes a se despejar. Angelique sentiu-se tonta, comprimiu as mãos contra as têmporas.



— Não... você deve ser forte... deve ser forte... está sozinha... deve...



O murmúrio cessou quando outro pensamento afugentou os doentios e ela acrescentou, em voz alta, mais firme:



Mas você não está sozinha. Há duas pessoas agora, e Malcolm precisa de você... são os dois, você e Malcolm, e ele precisa de você, Malcolm, seu marido...



A imagem expandiu-se em sua mente, preenchendo-a por completo, e depois ela ouviu-o chamando lá de baixo, a voz jovial:



— Angel, é hora de partirmos... depressa!



Ela continuou a se arrumar, sem qualquer pressa, foi se ajoelhar diante da imagem da Santa Virgem e se entregou por completo: “Mãe de Deus, perdoe esta pecadora. Pequei de forma lamentável e suplico seu perdão. Pequei de forma lamentável, vivo uma mentira, mas juro que serei a melhor esposa que puder, por tanto tempo quanto me for permitido, pois amo esse homem com toda a força do meu coração...”







— É um prazer tornar a vê-la, Raiko-san — disse Meikin, com um sorriso, ajoelhada na frente da outra. — Já faz muito tempo.



Ela era a mama-san da casa da Glicínia, que supervisionava Koiko, e as duas se encontravam no santuário mais privado de Raiko.



— É verdade e agradeço pela honra. — Raiko sentia-se feliz por rever sua velha amiga, embora mais do que um pouco surpresa por Meikin ter respondido tão prontamente a seu convite para uma conversa de negócios. — Por favor, Sirva-se da comida. A enguia está ótima. Saquê ou conhaque dos gai-jin?



— Primeiro saquê, por favor.



Meikin recebeu a taça de uma criada atenciosa. Os negócios por aqui devem andar muito bem, pensou ela, notando os ornamentos dispendiosos daquela habitação isolada e segura dentro dos muros da casa das Três Carpas.



— Embora os tempos sejam difíceis, os gai-jin não têm muita noção do valor do dinheiro, e por mais repulsivos que possam ser, os lucros são altos, e pequeno o custo de água quente, toalhas limpas e perfume.



As duas riram, observaram e esperaram. Meikin provou o sushi — delicioso — e pôs-se a comer, em quantidade incrível para uma mulher tão pequena. Seu quimono de viagem era deliberadamente medíocre. Qualquer um que a visse presumiria que era esposa de um pequeno mercador, não uma das mama-sans mais ricas de Iedo, proprietária da mais dispendiosa casa do prazer da cidade, na maior Yoshiwara da terra — recentemente reconstruída e renovada, depois do incendio do ano passado —, a mama-san de dez das mais talentosas gueixas, vinte das mais adoráveis cortesãs, além de dona do contrato de Koiko, o Lírio. Ela correu os olhos pelo santuário interior de Raiko, reservado para ocasiões especiais, admirando a sedas excepcionais, as almofadas, os tatames, conversando enquanto comia especulando sobre os motivos para o encontro.



Depois que as duas comeram, as criadas foram dispensadas e Raiko serviu seu melhor conhaque.



— Saúde e dinheiro!



— Dinheiro e saúde! — A qualidade da bebida era superior a qualquer coisa que Meikin já provara. — Os gai-jin têm seus pontos favoráveis.



— No mundo dos vinhos e bebidas fortes, sim, mas não em seus apêndices — comentou Raiko, com sabedoria. — Por favor, permita que eu lhe dê uma garrafa. Um dos meus clientes é Furansu.



— Obrigada. Fico contente por saber que os negócios vão bem, Raiko-chan.



— Poderiam ser melhores, sempre.



— E Hinodeh? — indagou Meikin, que possuía a metade do contrato. Quando Hinodeh a procurara pela primeira vez, ela a encaminhara para uma prima, a mama-san de outra casa que possuía. Mais tarde, por acaso, soubera do pedido estranho e heterodoxo de Raiko para um tipo especial de moça. Fora fácil acertar tudo, pois Raiko era uma velha amiga, conhecida ao longo dos anos, merecedora de sua confiança, desde o tempo em que eram maiko, em que eram cortesãs. — O arranjo continua a ser satisfatório?



— Tenho outro pagamento para você, embora o homem esteja atrasado.



Meikin riu.



— Não estou surpresa. Você é uma maravilhosa negociadora.



Ela fez uma reverência em agradecimento.



— Ele promete uma quantia maior dentro de poucos dias. Talvez mais brincos.



— Ah! — Meikin vendera os outros, com grande lucro. — Esse negócio tem sido bastante satisfatório.



A entrada que o cliente pagara pelo contrato de Hinodeh fora mais do que suficiente para absorver todos os custos pelo menos por um ano.



— Como ela está?



Raiko relatou o primeiro encontro e os subsequentes, a outra mulher demonstrando o maior interesse.



— Ela tem toda razão em chamá-lo de animal — comentou Meikin.



Ele não é tão mau assim. Acho que a doença o deixa enlouquecido de vez em quando. Pelo menos Hinodeh conhece o pior e aceita que o homem é seu karma.



— Posso perguntar se ainda não há sinais?



— Nenhum, absolutamente nenhum. Mas todos os dias ela me faz examinar partes que não pode ver pessoalmente, nem com um espelho.



— É estranho, Raiko-chan. — Meikin ajeitou uma travessa nos cabelos. — Quando e se aparecer alguma coisa que não possa ser oculta... ela vai procurar a faca?



Raiko deu de ombros.



— Nunca se pode saber com certeza.



— Por acaso ela lhe contou por que aceitou esse karma?



— Não. Gosto dela, e posso ajudar, mas apenas um pouco. Mas é muito estranho ela nada nos contar, neh?



Raiko tomou um gole do conhaque, cativada pelo calor interior, e o prazer excepcional de receber sua amiga mais antiga e de maior confiança. As duas haviam sido inseparáveis quando maiko, amantes na juventude, e sempre trocado confidências... as confidências seguras.



— Esta noite ele a visita. Se desejar, poderá observá-los por algum tempo.



Meikin riu.



— Há muito que já perdi o interesse e excitamento pelas atividades dos outros, vigorosos e ardentes... até mesmo dos bem-dotados gai-jin.



Ela sentia-se feliz demais pela companhia da velha amiga para contar a história triste de Gekko e Shin Komoda, que insistira em saber, antes de mandá-la para Iocoama.



Quando Hinodeh morrer, Raiko-chan, eu lhe direi tudo, e poderemos partilhar uma lágrima pelos pesares que nós, mulheres, temos de suportar. Até lá, o segredo de Hinodeh estará seguro, como combinamos, o nome de seu filho seguro, e também o lugar para onde foi enviado. Ela sentiu um calor percorrer seu corpo, adorando os segredos e o jogo da vida.



— Portanto, Hinodeh está assentada. Ótimo. E agora?



— Agora — disse Raiko, baixando a voz —, posso ter informações importantes sobre os planos de batalha dos gai-jin.



A cor aumentou no rosto de Meikin, que se tornou tão tensa quanto a outra mulher.



— Contra Iedo?



— Isso mesmo.



— Pode ser uma informação valiosa, mas seria um conhecimento perigoso... perigoso demais.



— Concordo, e ainda mais perigoso para aproveitar, embora de valor excepcional para a pessoa correta.



Meikin removeu uma gota de conhaque, que poderia passar por transpiração.



— E depois que tal conhecimento é comprado, provado ser correto ou incorreto, cabeças têm o hábito de rolar.



— É verdade.



Raiko compreendia o perigo, mas sentia-se mais excitada do que em qualquer outra ocasião nos últimos anos. Nunca participara do fluxo da política em Iedo, mas a proximidade de Hiraga, as informações sobre os shishi que obtivera por seu intermédio — e os segredos sobre ele e Ori que o shoya lhe revelara — haviam aguçado seu apetite. Isso e mais seu relacionamento com Furansu-san, sabendo por ele sobre os gai-jin, paradoxalmente a fonte de toda a sua riqueza, e ao mesmo tempo os inimigos de sua sagrada terra dos deuses. E também por causa de sua repulsa ao Bakufu e Anjo, que haviam assassinado outra velha amiga, Yuriko, mama-san da casa dos Quarenta e Sete Ronin, por ter abrigado alguns shishi.



Ela estremeceu ao pensamento de sua própria cabeça adornando um chuço, dominada pelo medo, mas também experimentando um estranho êxtase. Yuriko já fora imortalizada nas gravuras de ukiyo-e do mundo flutuante, seu nome o novo predileto das gueixas, e muito em breve haveria uma peça apresentando-a como heroína.



— Você tem razão — sussurrou ela —, mas certas informações podem valer o risco. E se... se eu tivesse um conhecimento secreto do que... do que altas autoridades planejam em segredo contra os gai-jin, poderia também aproveitar, em benefício mútuo.



O suor se acumulara na beira de sua peruca requintada. Ela removeu-o com um papel de seda rosa.



— Está quente, neh?



— Não tão quente quanto o fogo em que poderíamos nos meter.



— Quanto valeria o dia inicial do ataque... e o plano de batalha dos gai-jin?



Furansu-san lhe dera naquela manhã detalhes mais do que suficientes para tentar até o mais cético dos compradores a ser generoso.



Meikin sentiu o coração bater forte. Já esperava que o convite de Raiko seria para tratar de alguma coisa assim. Durante os últimos dois anos, ela insinuara indiretamente o potencial, estimulada pelo sensei Katsumata, para quem qualquer informação sobre os gai-jin era valiosa. E também porque, pouco tempo antes, houvera instruções secretas a todos os espiões do Bakufu, com promessas de ricas recompensas, para se concentrarem em Iocoama, e descobrirem os segredos dos gai-jin, e quem andava fornecendo ao inimigo informações proibidas sobre as coisas japonesas. O fato de Raiko ter feito o primeiro movimento ostensivo era crucial; na verdade, era a única pessoa em quem podia confiar num jogo tão arriscado.



— Quando será o ataque?



— Seria possível obter algum segredo importante para os gai-jin, como parte da troca?



Meikin acomodou-se confortável, pensou por um longo tempo.



Com toda certeza, Raiko merecia toda confiança... até sua vida ser ameaçada. E também não restava a menor dúvida de que um canal para informações, numa base contínua, seria valioso, não apenas pelo dinheiro, mas ainda pela causa — sonno-joi — que ela apoiava com todo entusiasmo. E também porque podia ser usado para abastecer os gai-jin com informações falsas, fabricadas com o maior cuidado.



— Raiko, minha velha amiga, não tenho qualquer dúvida de que o tairo Anjo e até Yoshi pagariam muito bem para conhecer essas datas, entre outros detalhes, mas é muito difícil, infelizmente, encontrar um meio de pôr as informações nas mãos deles, e o dinheiro nas nossas, sem comprometer qualquer das duas.



— Conhaque, Meikin-chan? — Raiko serviu, tonta de excitamento. — Se há alguém que pode resolver esse problema, é você.



As duas avaliaram uma à outra, e sorriram.



— Talvez.



— Tenho certeza. E, agora, talvez já seja o suficiente, por enquanto. Podemos continuar mais tarde, ou amanhã, se assim desejar. Posso planejar sua diversão noturna, se não estiver cansada?



— Obrigada. Não, não estou cansada. A barca que me trouxe de Iedo é confortável e não estava muito cheia, o mar se manteve sereno, e minhas criadas providenciaram para que o capitão atendesse a todos os meus desejos.— Meikin chegara aos cais da aldeia pouco antes do anoitecer. — Posso perguntar o que sugere?



— Temos gueixas, mas não à altura de seus padrões. Há alguns jovens que podem ser adequados. — Os olhos de Raiko faiscaram com seu sorriso, recordando os bons tempos da juventude. — Ou talvez uma maiko?



Meikin riu, tomou outro gole de conhaque.



— Isso seria uma diversão agradável, e me lembraria dos velhos tempos Raiko-chan. Ela me ajudará a pensar, me ajudará a verificar se posso lhe fornecer o que precisamos. Boa idéia. E concordo que já falamos sério o bastante por enquanto. Vamos conversar agora sobre os tempos áureos, como andam os negócios, e como vai seu filho.



— Ele está bem, ainda subindo na escada da Gyokoyama.



— Posso interceder junto a eles... embora sem dúvida isso seja desnecessário. Um excelente banco, o melhor, obtenho os juros mais altos, e meus depósitos são diversificados, como segurança... a fome se aproxima, e por isso tenho investido muito no arroz futuro. Seu filho tem vinte e quatro anos, neh?



— Vinte e seis. E sua filha?



— Graças a todos os deuses ricos e pobres, consegui casá-la com um goshi, e assim seus filhos serão samurais. Ela já tem um menino, mas o marido é muito dispendioso! — Meikin balançou a cabeça de um lado para outro, depois riu. — Mas não devo me queixar. Apenas converto os pingos imprestáveis de uns poucos velhos ricos numa herança que nunca sonhamos possível. Neh?



O som de passos misturou-se ao das risadas. Uma batida na porta de shoji.



— Ama?



— O que é, Tsuki-chan?



A maiko entreabriu a porta, de joelhos, fitou-as com um sorriso inocente.



— Sinto muito, mas shoya Ryoshi, o ancião da aldeia, suplica ser recebido, e ser seu hóspede.



Raiko franziu as sobrancelhas.



— Meu hóspede?



— Isso mesmo, ama.



Meikin também franziu o rosto.



— Ele costuma saudar visitantes?



— Só os mais importantes, e sem dúvida você é importante, e sua presença uma honra para todos nós. Com toda certeza, ele foi informado de sua chegada. Sua rede de informações é ampla, Meikin-chan, e ele merece confiança absoluta... e ainda por cima é o chefe da Gyokoyama em Iocoama. Vamos recebê-lo?



— Está certo, mas apenas por um momento. Fingirei uma dor de cabeça e, depois, poderemos continuar nossa conversa até a refeição noturna.



— Pequena — disse Raiko —, traga o shoya aqui, mas antes avise às criadas para providenciarem chá fresco e saquê quente... e tirarem estes copos, esconderem meu conhaque. Meikin-chan, se ele soubesse que tenho uma garrafa, seria uma presença diária!



Tudo foi feito depressa, a mesa se encontrava limpa e perfeita, os hálitos das duas purificados com ervas, antes do shoya entrar e fazer uma reverência.



— Por favor, damas, peço desculpas — disse ele, com uma ansiedade inconveniente, ajoelhando-se. — Por favor, perdoem meus péssimos modos, chegando sem marcar encontro, mas queria prestar minha homenagem a uma figura tão augusta, e dar as boas-vindas à minha aldeia.



Ambos ficaram surpresas por ele parecer tão solene, já que aquela não era uma ocasião formal. Meikin nunca o encontrara antes, mas seu contato na Gyokoyama o mencionara, garantindo que se tratava de um homem de integridade. Por isso, sua resposta foi tão polida e entusiástica quanto convinha a uma pessoa eminente da maior cidade do mundo, cumprimentando-o pela situação da Yoshiwara, e o pouco que vira da aldeia.



— É um homem de grande reputação, shoya.



— Obrigado, obrigado.



— Chá ou saquê? — perguntou Raiko.



Ele hesitou, fez menção de falar, parou. O clima na sala mudou. Raiko rompeu o silêncio:



— Por favor, shoya, desculpe-me, mas qual é o problema?



— Sinto muito... — Ele olhou para Meikin. — Sinto muito, dama, é uma cliente muito prezada por nossa companhia... Eu...



O shoya enfiou a mão trêmula na manga, tirou um pedaço de papel, estendeu para ela. Meikin contraiu os olhos.



— O que é isto? O que diz aqui? Não consigo ler uma escrita tão pequena.



— É uma men... uma mensagem de pombo-correio.



O shoya tentou falar de novo, não foi capaz, apontou para o papel, atordoado.



Sobressaltada, Raiko pegou-o, aproximou-o da luz. Seus olhos correram pela escrita pequena. Ela empalideceu, ficou tonta, quase desfaleceu, arriou sobre os joelhos.



— Diz aqui: Uma tentativa de assassinato contra lorde Yoshi, ao amanhecer, na aldeia Hamamatsu, fracassou. A assassina shishi solitária foi morta por ele. A dama Koiko também morreu na luta. Comunique nossa grande tristeza à casa a Glicínia. Mais informações assim que for possível. Namu Amida Butsu...



Meikin também empalideceu. Balbuciou “Koiko morta?”, sem que nenhum som saísse.



— Deve ser um engano! — exclamou Raiko, angustiada. — Só pode ser! Koiko morta? Quando aconteceu? Não há data! Shoya, como... Deve ser mentira, só pode ser mentira...



— Sinto muito, mas a data está em código no alto — murmurou ele. Aconteceu ontem, perto do amanhecer. Em Hamamatsu, uma estação de posta na Tokaidô. Não há engano, dama, sinto muito.



Namu Amida Butsu! Koiko? Koiko morta?



Meikin fitou-a, as lágrimas escorrendo pelas faces, e desmaiou.



— Criadas!



Elas vieram correndo, trouxeram sais de cheiro e toalhas molhadas, cuidaram de Meikin e de Raiko, que tentava recuperar o controle, a fim de determinar como aquilo a afetaria. Pela primeira vez não tinha certeza se devia continuar a confiar em Meikin, ou se a amiga se tornara um risco, e devia ser evitada.



O shoya continuava ajoelhado, imóvel. Fora necessário — e ainda era — que ele fingisse estar assustado e consternado por ser o portador de más notícias, mas no fundo sentia-se contente por estar vivo para testemunhar aqueles acontecimentos espantosos.



Não mostrara a segunda mensagem. Era só para ele, em código, e dizia: Assassina era Sumomo. Acredita-se que Koiko estava implicada na conspiração, foi ferida com shuriken e depois decapitada por Yoshi. Prepare-se para encerrar as contas de Meikin. Evite mencionar Sumomo. Proteja Hiraga como um tesouro nacional, suas informações são de valor inestimável. Pressione-o por mais, sua família está sendo refinanciada, como foi combinado. Solicitamos com urgência os planos de guerra dos gai-jin, a qualquer custo.



No momento em que recebera a mensagem, ele verificara em seus livros as contas de Meikin, calculando o que sua sucursal lhe devia, embora conhecesse a quantia com precisão. Não precisava se preocupar com essa parte. Quando ela fosse despachada para o outro mundo por lorde Yoshi, ou se conseguisse escapar da armadilha, de qualquer forma o banco lucraria. Se ela morresse, outra mama-san tomaria seu lugar, e usariam o que restasse de sua riqueza para financiar a substituta. A Gyokoyama monopolizava todas as operações bancárias na Yoshiwara, uma imensa e permanente fonte de receita.



Como a vida é irônica, pensou ele, especulando o que aquelas duas pensariam se conhecessem o motivo para o controle indissolúvel da Gyokoyama. Um dos maiores segredos da zaibatsu era o fato de ter sido fundada não apenas por uma mama-san, mas também uma mulher de gênio.



No início do século XVII, com a aprovação entusiástica do xógum Toranaga, ela projetara um distrito murado, onde no futuro todas as casas de prazer de Iedo, altas e baixas, teriam de conduzir seus negócios, exclusivamente — naquele tempo, os bordéis espalhavam-se por toda a cidade —, um lugar chamado Yoshiwara, a área dos juncos, que fora oferecido por Toranaga. Depois, ela criara uma nova classe de cortesãs, as gueixas, treinadas e qualificadas nas artes, que não eram disponíveis para o travesseiro, em caráter rotineiro.



Mais tarde, ela passara a emprestar dinheiro, concentrando-se na Yoshiwara de Iedo, para em seguida estender seus tentáculos a todas as outras, à medida que eram institucionalizadas por todo o país, já que o xógum Toranaga previra, sabiamente, que em tais distritos as prestadoras de serviços e seus clientes seriam controlados e taxados com mais facilidade.



Por último, o que fora incrível naquele tempo, ela persuadira o xógum Toranaga — ninguém sabia ainda como — a fazer de seu filho mais velho um samurai. Em pouco tempo, seus outros filhos prosperaram: na construção de barcos, como mercadores de arroz, fabricantes de saquê e cerveja, e seus descendentes eram hoje proprietários ou silenciosos controladores de uma vasta rede de negócios. Em poucos anos, ela obtivera permissão para que o ramo samurai assumisse o nome de Shimoda. Agora, o Shimoda era daimio hereditário do pequeno, mas próspero feudo do mesmo nome, em Izu. Fora ela quem escolhera a inscrição sobre o portão da Yoshiwara: O desejo não pode esperar, deve ser satisfeito. Morrera aos noventa e dois anos de idade. Seu nome de mama-san era Gyoko, dama sorte.



Shoya — disse Meikin, entre soluços —, por favor, aconselhe-me sobre o que devo fazer.



— Deve esperar, dama, ser paciente e esperar — respondeu ele, hesitante, ainda exibindo sua máscara de apreensão.



Também notou, de imediato, que os soluços podiam ser mais altos e mais desesperados, mas os olhos se mostravam mais impiedosos do que jamais os vira.



— Esperar? Esperar pelo quê? Esperar, é claro, mas o que mais?



— Ainda não sabemos de tudo, não conhecemos os detalhes, dama, o que de fato aconteceu. Sinto perguntar, mas há alguma possibilidade de que a dama Koiko participasse da conspiração?



Ele cravava e torcia uma faca no ferimento já aberto, pelo puro prazer do tormento. Embora a Gyokoyama não tivesse provas, desconfiava que Meikin dispensava perigoso apoio a sonno-joi, e tinha ligações com o Corvo — contra as advertências indiretas deles —, outro motivo para que fosse aconselhada a comprar arroz futuro, não apenas como um investimento sensato, mas também como uma precaução do banco contra uma possível acusação e condenação.



— Koiko numa conspiração? Minha beleza, meu tesouro? Claro que não! — explodiu Meikin. — De jeito nenhum!



— Meikin-san, pode ter certeza de que lorde Yoshi, ao voltar, mandará procurá-la, como a mama-san de Koiko. E para o caso, sinto muito ter de dizer isso, para o caso de inimigos terem sussurrado contra você, seria sensato ter... ter prontos símbolos de... de seu respeito.



Não havia razão para qualquer das mulheres perguntar que inimigos. O sucesso gerava a inveja e ódios secretos por toda parte — em particular entre os melhores amigos —, e no mundo flutuante, um mundo só de mulheres, mais que em qualquer outro lugar. E as duas eram bem-sucedidas.



Meikin já superara o choque inicial e sua mente se concentrava nos meios de escapar — caso Yoshi desconfiasse, ou Koiko a tivesse denunciado, ou ele tivesse provas de que tanto ela quanto Koiko apoiavam sonno-joi, os shishi, e conheciam Katsumata. Não havia nenhuma maneira real de escapar, nem para outra identidade, nem para outro lugar, pois o Nipão era todo muito bem compartimentado. Por toda a terra, dez chefes de família constituíam a unidade básica responsável por seu próprio comportamento e obediência à lei, dez dessas unidades formavan outro agrupamento, também responsável, dez agrupamentos formavam outro e assim por diante, até o supremo mandante das leis, o daimio. Portanto, ela não podia fugir para parte alguma, não tinha onde se esconder.



— O que eu poderia dar ao grande lorde Yoshi? — indagou Meikin, a voz rouca, sentindo-se mais desesperada do que nunca antes.



— Talvez... talvez informações.



— Que tipo de informações?



— Sinto muito, mas não sei — respondeu o shoya, com uma tristeza simulada.



Amanhã poderia ser diferente, mas naquela noite ele ainda precisava fingir, manter as aparências, independentemente do que pensasse da estupidez das duas! Pois era uma estupidez abraçar a sedição com um pênis, ainda mais quando os possuidores shishi eram poucos, e quase todos estavam sendo dispersados ou mortos, continuando a cometer o mais imperdoável dos pecados: o fracasso.



— Não sei, dama, mas lorde Yoshi deve estar preocupado, bastante preocupado, com o que a infame esquadra dos gai-jin pode fazer. Eles se preparam para a guerra, neh?



No momento em que disse isso, ele percebeu que os olhos de Meikin se tornaram ainda mais frios, fixados em Raiko, que corou um pouco. Ah, pensou ele, exultante, elas já sabem... e não podia deixar de ser assim, já que deitam com os abomináveis gai-jin! Por todos os deuses, se existem deuses, o que elas sabem a Gyokoyama deve saber também, e o mais depressa possível.



— Essa notícia pode... atenuar a dor de lorde Yoshi — acrescentou ele, balançando a cabeça, com o ar sensato de banqueiro. — E também a sua.







A meia centena de passos de distância, numa habitação dentro dos muros, no meio dos jardins, Phillip Tyrer sentava de pernas cruzadas, de banho tomado, repleto de comida e saquê, nu sob o yukata, e num estado de êxtase. Fujiko ajoelhava-se por trás, as mãos experientes massageando os músculos de seu pescoço, encontrando os pontos de prazer e dor. Ela usava um yukata de dormir, os cabelos soltos, e agora chegou mais perto, mordeu delicadamente o lóbulo de sua orelha, perto do centro, o ponto mais erótico. Sua língua aumentou o prazer de Tyrer ainda mais.



Os dedos se insinuaram sensuais por seus ombros, em movimentos rápidos, dissipando suas preocupações, as reuniões com Sir William e Seratard, ajudando seu chefe a lidar com aquele francês e suas constantes e insidiosas tentativas de conquistar uma vantagem, por menor que fosse, quando a verdade, pensara ele, que o homem contava apenas com dois navios medíocres, quando nós temos uma esquadra inteira de navios de primeira linha, tripulados por homens, não por sicofantas.



Tomando anotações, e depois ordenando tudo em dois planos de batalha alternativos, em inglês e francês diplomáticos corretos para os respectivos governos, e em ordens mais objetivas mais para o almirante e o general executarem, o tempo passando depressa, e a dor de cabeça aumentando. Mas André fora um trunfo na reunião daquela manhã, bem preparado, durante todo o tempo sugerindo idéias e datas, manobrando os dois participantes principais a concordarem e tomarem decisões, todos os quatro fazendo um juramento de sigilo.



E, finalmente, deixando a legação, atravessando a ponte, batendo na porta, aberta no mesmo instante pela própria Raiko, que fizera uma reverência, atravessando o jardim, tomando um banho, comendo e bebendo, mas antes disso Raiko começara por fim a tratá-lo como uma autoridade importante merecia.



Já não era sem tempo, pensou ele, mais do que um pouco satisfeito, cada nervo sintonizado com os dedos de Fujiko...



A maior parte da mente de Fujiko se concentrava na advertência de Raiko: — Alguma pessoa de baixa classe, vil e faminta, da casa do Lírio, seduziu nosso lorde gai-jin a se afastar de nós. A grande custo, consegui atraí-lo de volta, fazendo muitas concessões aos intermediários. Não falhe esta noite, pois pode ser a sua última chance de prendê-lo a nós com cordões de seda. Use todos os recursos, todas as técnicas... até mesmo a lua por trás da montanha.



Fujiko hesitou. Nunca tentara aquilo antes, nem mesmo no embate mais ardente. Não importa, ela disse a si mesma, estóica, é melhor uns poucos momentos insólitos de comportamento excêntrico... do que não ter nenhum pagamento gai-jin esta noite, nenhum pagamento para um ano de lazer.



Enquanto seus dedos chegavam mais perto, os suaves murmúrios começavam, imagens de devaneio de sua casa de fazenda passaram a se intrometer, as crianças, o marido maravilhoso, os arrozais, tudo lindo, espetacular... Com firmeza, ela relegou as imagens para o fundo da mente. Até o cliente adormecer, ordenou a si mesma.



Esta noite você vai seduzir o cão ingrato para sempre! É uma questão de honra para toda a casa das Três Carpas! Preterida por uma pessoa de baixa classe da casa do Lírio?



De jeito nenhum!


44





O clíper Prancing Cloud deu um puxão na âncora, com a mudança da maré noturna.



— Está bem seguro, senhor — disse o primeiro-piloto.



O capitão Strongbow acenou com a cabeça, e continuou a fumar seu cachimbo. Estavam no tombadilho superior. O vento fazia ranger a mastreação por cima. Strongbow era um corpulento homem de cinquenta anos, perspicaz e experiente.



— Será uma boa noite, mister, fresca, mas não fria. — Ele sorriu, e acrescentou baixinho: — Boa para os nossos hóspedes, hem?



O primeiro-piloto, também alto, duro e curtido, mas com a metade de sua idade, olhou para os dois hóspedes, e sorriu também.



— Tem toda razão, senhor.



Angelique e Malcolm se encontravam no convés principal lá embaixo, apoiados na amurada, contemplando as luzes de Iocoama. Malcolm vestia uma sobrecasaca por cima da camisa e calça informais, com sapatos macios nos pés, e pela primeira vez, sem muito desconforto, usava apenas uma bengala a bordo. Angelique tinha um grosso xale vermelho em torno dos ombros, com um vestido longo e folgado. Estavam perto de um canhão. O navio tinha dez canhões de trinta libras, a bombordo e boreste, com cachorros de proa e popa, e seus artilheiros eram tão competentes quanto os da marinha real. O que era o orgulho de Strongbow. O mesmo não se aplicava a todos os clíperes, outros navios mercantes e vapores.



— Lindo, não é, minha querida esposa? — murmurou Malcolm, genuinamente feliz, uma das poucas ocasiões em sua vida.



— Esta noite tudo no mundo é lindo, mon amour — disse ela, aconchegando-se contra ele.



Haviam acabado de jantar, e esperavam que o camarote que ocupavam fosse devidamente preparado. Era grande, e ocupava toda a extensão da popa. Os alojamentos do capitão, a menos que o tai-pan estivesse a bordo — uma das muítas leis fixadas por Dirk Struan, trinta anos antes, a frota ainda governada por suas determinações, até os mínimos detalhes, a melhor paga, limpeza, treinamento-prontidão para o combate.



Strongbow observava a maré, avaliando-a. Naquelas águas, uma mudança na maré podia anunciar a chegada, horas depois, de uma tsunami, uma onda gigantesca gerada talvez a mil e quinhentos quilômetros de distância, por um terremoto suboceânico, que engolfaria qualquer coisa em seu caminho no mar, e as cidades costeiras, quando encontrasse terra pela frente.



Depois de constatar que a alteração fora normal, ele tornou a olhar para Struan. Sentia-se contente por tê-lo a bordo, e a nova ordem para zarpar amanhã cedo, seguindo a toda velocidade para Hong Kong, sabendo, como todos sabiam, que ela ordenara que o rapaz voltasse para casa, semanas antes. Mas ele sentia-se perturbado por levar também a moça.



Não sei se conseguirei chamá-la de Sra. Struan... afinal, só há uma assim, pensou Strongbow. E o jovem Malcolm casou? Apesar das ordens dela? Apesar de sua oposição? Ele deve ter enlouquecido! O casamento é legal? Pela lei do mar, é, sim, se eles fossem adultos, mas acontece que não são. Será revogado? Um penny partido ao meio contra um guinéu de ouro. Ela terá vinte meios de anulá-lo, sem a menor dificuldade.



E o que será da moça? O que vai lhe acontecer? E o jovem Malcolm? Como ele poderia vencê-la? Fico contente por não ter sido eu quem os casou, graças a Deus. Concordaria em casá-los, se ele me pedisse? Claro que não! Jamais!



Ela vai cuspir fogo, indignada por eles serem menores de idade e pelo fato de a moça ser católica. Será a causa de uma batalha real, desta vez mãe contra filho, um combate até a morte, sem regras, e todos sabemos que ela é uma gata selvagem quando provocada — pior do que a minha Cat —, embora o jovem Malcolm tenha mudado, esteja mais duro do que antes, mais determinado do que nunca. Por quê? Por causa da moça? Só Deus sabe, mas é uma mudança bem-vinda, será ótimo ter outra vez um tai-pan de verdade, um homem.



Não resta a menor dúvida de que o jovem Malcolm está perdidamente apaixonado por ela. Quem pode culpá-lo? Não eu! Casaria com ela, se tivesse a oportunidade, mas desta vez não vou me apressar em apresentar um relatório, prefiro correr para beber, ir para a cama com a minha Cat. Ele riu. Cat era sua amante há anos, uma moça de Xangai cujo temperamento e ciúme eram legendános, mas cujo ardor era incomparável.



— O que acha da mudança de ordens, senhor?



Strongbow deu de ombros. Era certo que não havia necessidade de Malcolm voltar às pressas para terra, antes do amanhecer, para tornar a voltar ao navio em seguida, ainda mais andando tão mal... com uma ou duas bengalas, não fazia diferença. Qualquer problema, coisas a assinar, poderiam ser trazidas para bordo por McFay. Mas, afinal, o que Jamie anda escondendo? Alguma coisa que cheira mal... por que então todo o sigilo, todas as licenças em praia da tripulação canceladas?



Ele ouvira rumores sobre um iminente duelo. Era o tipo de aventura tola a que Struan seria precipitado por seu orgulho, um problema a resolver antes da partida, qualquer coisa para humilhar os Brocks, quando todos sabem que deveríamos fazer as pazes, a rivalidade já foi longe demais, eles estão em ascendência, e nos sufocando por todos os lados. Estaremos hasteando a bandeira deles no Natal? Por Deus, espero que não!



O jovem idiota não saiu ao pai, muito menos ao avô. Ah, que homem aquele! Strongbow navegara diversas vezes com Dirk Struan, negociando ópio ao long da costa chinesa, primeiro como um aprendiz, depois como ajudante do artilheiro e terceiro-piloto, sob o comando de Stride Orlov, o Corcunda... comandante da frota de clíperes abaixo do tai-pan.



Ele viu Malcolm passar o braço em torno da moça, que se aconchegou ainda mais, e seu coração se confrangeu pelos dois. Era difícil crescer, difícil ser o tai-pan da Casa Nobre, ou quase o tai-pan, com um avô assim... e com uma mãe assim. Decidido, ele atravessou o tombadilho superior e olhou na direção do mar. O primeiro-piloto seguiu-o. Ambos levantaram os olhos para as velas recolhidas, onde se empoleiravam umas poucas aves marinhas, gritando. Uma delas mergulhou lá de cima, e eles a acompanharam até que desapareceu na escuridão, para a pescaria noturna. Outra seguiu-a, também silenciosamente.



Malcolm e Angelique não haviam saído do lugar, perdidos em sua serenidade. A ampulheta de meia hora na ponte de comando se esvaziou. No mesmo instante, o oficial de vigia virou-a, e tocou seis badaladas. Onze horas da noite. O som foi repetido por outros navios na baía. Os dois saíram de seu devaneio.



— Já é hora de descer, Angel?



— Daqui a pouco, meu amado. Chen disse que nos avisará quando o camarote ficar pronto.



Ela pensara várias vezes nisso desde que Malcolm indagara se não gostaria de casar hoje... Angelique sorriu, beijou-o no queixo, preparada, em paz.



— Sabe, meu querido marido, prometo que teremos uma vida maravilhosa. Não sentirá mais dor, e vai recuperar toda a sua forma física. Promete?



— Mil vezes... minha esposa querida.



Mais aves marinhas alçaram vôo do cordame. Chen subiu e disse que tudo ja fora arrumado como o tai-pan ordenara. Malcolm declarou, em cantonês:



— Lembre-se de uma coisa: não acorde a tai-tai quando for me chamar. Tai-tai significava suprema do supremo, primeira esposa... que era a suprema lei dentro de qualquer casa chinesa, assim como o marido era supremo lá fora.



— Durma bem, amo, dez mil filhos, miss.



— Tai-tai — corrigiu Malcolm.



— Dez mil filhos, tai-tai.



— O que estavam falando, Malcolm? — indagou ela, sorrindo.



— Ele lhe desejava um feliz casamento.



Dohjeh, Chen — disse ela. Obrigada.



Chen esperou até que os dois se despedissem dos oficiais do navio e descessem, Malcolm usando apenas uma bengala, apoiando-se em Angelique com a outra mão. Ah, pensou ele, encaminhando-se para a passagem do castelo de proa, que todos os deuses, grandes e pequenos, protejam o amo, e lhe proporcionem uma noite que compense toda a dor, passada e futura, mas primeiro se lembrem de mim e de meus problemas, e expliquem ao ilustre Chen e à tai-tai Tess que nada tive a ver com esse casamento. Do tombadilho superior, Strongbow observou Chen descer.



— Todos os criados já foram deitar?



— Pusemos redes na sala de velas de boreste. Ficarão bem ali, a menos que enfrentemos uma tempestade.



— Ótimo. Não quer tomar seu chá agora, mister?



— Quero, sim, obrigado. Voltarei mais alerta.



O primeiro-piloto tinha naquela noite o turno de vigia de meia-noite às quatro horas da madrugada e desceu do tombadilho superior em passos ágeis. O camarote ficava na extremidade do corredor da popa. A porta estava fechada. Ele ouviu o barulho da tranca sendo empurrada. Sorrindo, assoviando silenciosamente uma jiga, ele seguiu para a cozinha.







Malcolm encostou-se na porta, palpitando de expectativa, determinado a andar sem ajuda até o leito nupcial. Angelique parara ao lado do beliche e o fitava. O camarote fora todo arrumado. E aquecido. A enorme mesa de jantar e as cadeiras eram presas no chão. Assim como o beliche espaçoso, também preso no chão, cabendo duas pessoas sem qualquer problema, outra das leis do tai-pan. Era alto, e a cabeceira se situava bem no centro da antepara da popa, com proteções de lona contra o balanço do navio, quando navegassem com todas as velas içadas. Agora, estavam dobradas. Havia a bombordo um pequeno banheiro e vaso sanitário, e a boreste um armário para roupas. De uma viga do teto pendia um lampião a óleo, projetando sombras agradáveis.



Os dois hesitavam, inseguros.



— Angel...



— O que é, chéri?



— Eu amo você.



— Também amo você, Malcolm. E me sinto muito feliz.



Ainda assim, nenhum dos dois se mexeu. O xale de Angelique caíra um pouco, revelando os ombros e o vestido verde-claro, de cintura alta, ao estilo Império, as dobras de seda se acumulando sob o busto, que subia e descia, no ritmo de seu coração. O vestido era a mais avançada haute couture, tirado do último número de L’Illustration enviado por Colette, ainda não em plena voga, ousado na sua simplicidade. Quando ela se apresentara para o jantar, os dois homens — Malcolm e Strongbow, como convidado — não puderam conter um murmúrio de admiração.



Os olhos dela eram espelhos dos olhos de Malcolm, e agora, incapaz de suportar a expectativa e a necessidade dele, que parecia se projetar, envolvê-la e sufocá-la. Angelique correu para seus braços. Ardente. O xale caiu no convés, sem ser notado. Um pouco tonta, ela sussurrou:



— Vamos, chéri...



Pegou-a pela mão e sustentou parte de seu peso. Fez outra prece silenciosa por ajuda, aniquilando o passado e o futuro, para se abandonar por completo ao presente, e conduziu-o para o beliche, determinada a ser tudo o que ele desejava e esperava. Desde a cerimônia súbita e inacreditável hoje, Angelique vinha planejando para aquele momento, para o seu papel, analisando suas próprias idéias e o que Colette contara sobre a maneira como algumas damas da corte se comportavam na primeira noite:



— É importante, Angelique, ser a guia, controlar o garanhão como uma boa amazona deve fazer, com mãos fortes, rédea curta, com firmeza, mas também com gentileza, para remover a violência inicial até mesmo do mais dócil dos maridos, para atenuar a dor. Esteja preparada...



A impaciência de Malcolm era tremenda, as mãos enormes vagueavam por toda parte, os lábios se mostravam fortes e insistentes.



— Deixe-me ajudá-lo — murmurou ela, a voz rouca, também querendo começar logo.



Tirou a sobrecasaca dele, depois a camisa, teve um arrepio ao ver a extensão da cicatriz na cintura.



Mon Dieu, eu havia esquecido como você foi gravemente ferido...



A paixão de Malcolm murchou, mas não o trovejar de seu coração. Todo instinto o levava a querer se enrolar com a camisa ou o lençol, mas forçou-se a não fazê-lo. A cicatriz era um fato de sua vida.



— Desculpe.



— Não tem de que se desculpar, mon amour — balbuciou ela, com lágrimas nos olhos, apertando-o com força. — Eu é que peço desculpas, por recordar todo aquele horror...



— Não pense mais nisso, minha querida. É joss. Muito em breve, será apenas um pesadelo distante para nós dois. Prometo.



— Sei disso, meu querido. Foi uma tolice da minha parte.



Angelique continuou a abraçá-lo. Depois que a angústia por ele diminuiu, sentiu raiva de si mesma, removeu suas lágrimas — e, com elas, sua tristeza momentânea —, beijou-o às pressas, fingindo que nada acontecera.



— Sinto muito, meu querido, foi uma bobagem minha. E agora sente ali por um instante.



Malcolm obedeceu. Observando-o com os olhos meio fechados, mas brilhantes, ela soltou o cinto de seda, abriu os botões nas costas e deixou o vestido cair, como planejara. Ficou apenas com meia combinação e a pantalona. Ele estendeu os braços, mas Angelique riu, esquivou-se, foi até o baú em que estavam seu espelho, pomadas e perfumes. Sem qualquer pressa, passou perfume atrás das orelhas, nos seios, provocante e sedutora. Mas ele não se importou, fascinado por ela, que lhe explicara várias vezes, em palavras diferentes:



— Os franceses são diferentes de vocês, meu querido Malcolm. Somos francos sobre o amor, recatados, e ao mesmo tempo não recatados, o oposto dos ingleses. Achamos que o amor deve ser como uma refeição maravilhosa, uma emoção para os sentidos, todos os sentidos, e não da maneira como se ensina às nossas pobres irmãs inglesas e seus irmãos... uma coisa que deve ser feita depressa, no escuro, acreditando por algum motivo que o ato é sórdido, e os corpos vergonhosos. Vai ver só, quando casarmos...



E agora eram casados. Ela era sua esposa, e se mostrava coquete, para seu prazer, proporcionando-lhe intensa alegria e vibração. Graças a Deus por isso, pensou Malcolm, com um alívio monumental, pois se preocupara por semanas, recordando a moça da Yoshiwara, quando nada dera certo.



— Angel... — balbuciou ele, a voz rouca.



Tímida, ela tirou a pantalona e a anágua, foi até o lampião, abaixou o pavio, deixando apenas a claridade necessária, mais adorável do que Malcolm imaginara. — a visão de seu corpo nu era como um sonho, e ao mesmo tempo de uma realidade profunda e angustiante. Sem pressa, ela foi para o outro lado do beliche, deitou-se ao seu lado.



Sussurrando palavras de amor, as mãos tocando, explorando, a respiração de Malcolm pesada, seu corpo chegando mais perto, lábios quentes, beijos ardentes. As mãos de Angelique, hesitantes, sob um cuidadoso controle, também explorando, toda a sua mente concentrada na imagem de primeiro amor feliz e inocente que queria transmitir... ansiosa em agradar, mas também um pouco assustada.



— Oh, Malcolm... Malcolm...



Murmurando e beijando-o, amando-o profundamente, rezando para que fosse verdade o que Babcott dissera, em resposta às suas perguntas:



— Não se preocupe. Por algum tempo, ele não será capaz de montar a cavalo direito, nem poderá dançar uma polca da maneira correta, mas isso não importa, pois será capaz de guiar uma charrete, comandar um navio, dirigir a Casa Nobre, gerar muitos filhos... e ser o melhor marido do mundo...



A necessidade que ela sentia era muito forte agora. Mas tratou de abrandá-la, conteve o desejo, apegando-se ao plano, ajudando e guiando, e depois veio um ofego estridente, mas ela não titubeou, apertou-o com força agora, reagindo e reagindo, até que ele gritou, todo o corpo de Angelique abalado pelas contorções do orgasmo dele, com gemidos que se prolongaram, intermináveis, e depois seu corpo desamparado, ofegante, a esmagá-la... mas sem sufocá-la.



Como é estranho que eu possa suportar seu peso com tanta facilidade, tudo se ajustando com perfeição, pensou ela, sua boca sussurrando palavras doces e ternas, Calmando os gemidos arfantes, contente porque a primeira união fora consumada de uma forma tão agradável.



Malcolm se encontrava apenas meio consciente, perdido em algum estranho platô, sem peso, vazio, sem nada sentir, ao mesmo tempo saciado de amor por aquela incrível criatura, que era, nua, tudo o que ele imaginara, e muito mais. Seu cheiro, gosto e essência. Cada parte dele satisfeita. Tudo valera a pena. Em euforia. Agora ela é minha, fui homem, ela se mostrou mulher... oh, Deus, espero não tê-la machucado.



— Você está bem, Angel? — murmurou ele, a voz ainda rouca, o coração quase parando, mal conseguindo falar. — Não a machuquei?



— Oh, não, meu querido... eu o amo demais.



— Também amo você, Angel, e não tenho palavras para expressar o quanto.



Ele beijou-a, começou a erguer o corpo, apoiado nos cotovelos.



— Não, não se mexa, ainda não, por favor, eu gostaria que... O que foi querido?



Subitamente nervosa, Angelique contraiu os braços, que o enlaçavam.



— Nada, nada... — balbuciou ele, tentando resistir à dor repentina, que partira da virilha, e se irradiara até a base do crânio, quando se movimentara.



Cauteloso, ele tentou de novo, e desta vez foi melhor. E conseguiu não gemer.



— Não se mexa, Malcolm — disse ela, com toda ternura. — Fique quieto, descanse, mon amour, gosto de você assim... por favor...



Agradecido, ele obedeceu, começando a sussurrar o quanto a amava, confortável, sereno, tão satisfeito que pôde resvalar para o sono, um sono profundo. O sino do navio badalou uma vez, meia-noite e meia, mas ele não se mexeu Angelique continuou deitada da mesma maneira, tranquila, satisfeita, seu futuro conquistado, desfrutando o sossego do camarote, as madeiras rangendo de vez em quando, as ondas batendo contra o casco, saboreando também a sensação de realização.



Sem despertá-lo, ela saiu de baixo de seu corpo, foi ao banheiro, lavou-se. Suspirou, pediu perdão. Um pequeno talho com a ponta de uma faquinha. André dissera:



— É difícil para um homem, quase impossível, determinar se a mulher é virgem ou não na noite de núpcias, se ele não tem motivos para desconfiar. Um pouco de medo, um gemido no momento certo, um pouco de sangue denunciador, o sinal incontestável, e pela manhã tudo estará como deve ser.



Que cínico terrível é André, pensou ela. Que Deus me proteja dele, e me perdoe por meus pecados. Sinto-me contente por estar casada, a caminho de Hong Kong muito em breve, para nunca mais ter de pensar nele, apenas no meu Malcolm...



Angelique voltou ao beliche quase dançando. Tornou a se deitar, segurou a mão de Malcolm, fechou os olhos, imagens gloriosas do futuro aflorando em sua mente. Eu o amo tanto...







Ela despertou subitamente, pensando que experimentara outro terremoto. O camarote se encontrava às escuras, a única claridade era a chama mínima do lampião, balançando um pouco. E depois ela se lembrou de tê-lo diminuído, e compreendeu que o som que a acordara era do sino do navio, e não o da catedral durante o terremoto de seus sonhos. Agora, o terremoto era apenas o balanço do navio, sem nada do pesadelo. E depois, vendo-o estendido ao seu lado, experimentou um amor profundo, diferente de qualquer coisa antes, sabendo que estavam casados, e que isso também não era um sonho.



Quatro badaladas? Duas ou seis horas da manhã? Não, sua tola, não pode ser, pois neste caso haveria claridade além das vigias, e Malcolm dissera que precisava desembarcar antes de poderem levantar âncora, a caminho da civilização, para enfrentar o dragão em seu covil... não, para cumprimentar uma sogra que vou envolver e seduzir, que logo vai me amar, e se tornar a avó perfeita.



Ela observou-o na semi-escuridão. Malcolm dormia de lado, a cabeça aninhada no braço direito, o rosto sem as linhas da preocupação, a respiração suave, o corpo quente, com seu cheiro viril e agradável. Este é meu marido, eu o amo, sou apenas dele, o outro nunca aconteceu. Como sou afortunada!



Sua mão começou a tocá-lo. Ele se mexeu. Também estendeu a mão para ela. Não de todo desperto, ele murmurou:



— Olá, Angel.



Je t’aime.



Je t’aime aussi.



A mão de Malcolm procurou-a. Ela reagiu. Apanhado de surpresa, ele virou-se para Angelique, prendeu a respiração, quando uma dor intensa saltou para o fundo de seus olhos. Depois a dor passou, ele exalou.



— Je t’aime, chéri. — Ela inclinou-se para beijá-lo, e sussurrou entre os beijos: — Não, não se mexa, continue deitado assim, fique quieto.



Angelique soltou uma risadinha e acrescentou, a voz rouca de desejo:



— Fique imóvel, mon amour.



Em momentos, a paixão dominou-o. Excitado e vidrando, tudo esquecido, ora a sensualidade partilhada, ora os movimentos bem lentos, ora mais rápidos, outra vez lentos, mais profundos, a voz gutural de Angelique a instá-lo, ele reagindo, e continuando sempre, sem parar, cada vez mais forte, todas as suas glândulas, músculos e anseio se concentrando, até que ela ficou próxima, muito próxima, se afastando, próxima de novo, enlaçando-a, ajudando-a, arremetendo, até sentir o corpo de Angelique se desvanecendo, seu peso desaparecer, tudo sumir, e ela arriou por cima dele, com seus espasmos e gritos, fazendo com que a penetrasse ainda mais fundo, o corpo de Malcolm se comprimindo contra o dela por vontade própria, descarregando por vontade própria, até que passou o último espasmo, frenético, bem-vindo, e todos os movimentos cessaram.



Apenas respirações ofegantes se misturavam, o suor se misturava, os corações se misturavam.



Depois de algum tempo, Malcolm se tornou consciente. O peso adormecido de Angelique em seu peito não era nada. Ele continuou deitado assim, em espanto, vibrante, eufórico, um braço a mantê-la segura na posição, sabendo que ela era tão bela quanto uma esposa podia ser. A respiração de Angelique esfriava suas faces, longa, lenta, profundamente. Ele tinha a cabeça lúcida, uma visão clara do futuro, sem qualquer resquício de dúvida. Com uma segurança absoluta de que acertara ao casar com ela, certo de que agora poderia encerrar o conflito com sua mãe, e juntos destruiriam os Brocks, assim como ele acabaria com Norbert, acabaria com as vendas de ópio e canhões, persuadiria Jamie a permanecer e dirigiria a Struan como devia ser dirigida... como o tai-pan gostaria que fosse dirigida. Até que, com o passar do tempo, cumpriria seu dever, e faria com que a Casa Nobre voltasse a ser a primeira na Ásia, para entregá-la ao próximo tai-pan, o primogênito, a quem dariam o nome de Dirk, o primeiro de muitos filhos e muitas fílhas.



Por quanto tempo ficou assim, ele não sabia, com uma suprema confiança, transbordando de alegria e êxtase, seus braços a envolvê-la, amando-a, aspirando sua respiração, mais feliz do que jamais se sentira, do que jamais poderia se sentir, seus lábios dizendo a ela que a amava, a mente o levando ao sono, em bem-aventurança, para longe da recordação daquela terrível, maravilhosa, angustiante suprema explosão de imortalidade, que parecera dilacerá-lo por completo.


45





Quarta-feira, 1O de dezembro:





Ao amanhecer cinzento, Jamie McFay subiu apressado do cais da cidade dos bêbados, e virou a esquina. Avistou Norbert e Gornt na terra de ninguém, esperando onde deveriam esperar, notando sem interesse a pequena valise na mão de Gornt, que devia conter as pistolas de duelo que haviam combinado. Além dos três — e enxames de moscas —, o vazadouro fétido e cheio de mato se encontrava deserto. Ele não cruzara com ninguém, exceto bêbados encolhidos e roncando nos cantos de barracos, estendidos em bancos, ou no chão. E não reparara neles.



— Desculpem — balbuciou ele, esbaforido. Como os outros dois, também usava uma sobrecasaca e chapéu, contra o ar frio e úmido do amanhecer. — Lamento o atraso, mas...



— Onde está o tai-pan da Casa Maldita? — indagou Norbert, grosseiramente, empinando o queixo. — Ele é covarde ou o quê?



— Vá se foder! — berrou Jamie, o rosto tão branco quanto o céu nublado. — Malcolm morreu! O tai-pan está morto!



Ele viu-os se desmancharem em espanto e também ainda não podia acreditar.



— Acabo de voltar do navio. Fui buscá-lo antes do amanhecer, pois eles... ele passou a noite a bordo do Prancing Cloud. Estava...



As palavras lhe faltaram. As lágrimas afloraram, e ele recordou toda a cena, Strongbow na amurada, pálido e assustado, gritando, antes mesmo que ele subisse a bordo, que o jovem Malcolm morrera, que mandara seu cúter buscar um médico, mas o tai-pan já estava morto.



E depois a subida pelos degraus. Notara Angelique encolhida num canto do tombadilho superior, envolta por cobertores, o primeiro-piloto ao lado, mas passara apressado pelos dois, rezando para que não fosse verdade, para que fosse apenas um pesadelo, antes de descer.



Encontrara o camarote todo iluminado. Malcolm estava deitado de costas no beliche. Os olhos fechados, sereno na morte, sem preocupações, um lençol levantado até o queixo. Ocorrera a Jamie que o amigo parecia como nunca o vira antes, numa paz suprema.



— Foi... foi Chen... — dissera Strongbow, falando num fluxo rápido, transtornado — ...foi o criado Chen quem o encontrou assim, Jamie. Veio acordá-lo há uns dez ou quinze minutos, Jamie, e o descobriu... pode-se destrancar a porta por fora, como acontece na maioria dos camarotes de navios... ele abriu a porta, viu os dois dormindo, como pensou. Ela dormia, mas não Malcolm. Ele sacudiu-o, percebeu que Malcolm estava morto, e quase morreu também. Saiu correndo, foi me chamar, e a esta altura ela já acordara. A pobre coitada não parava de gritar desesperada, gritava tanto que deixava todo mundo nervoso, tirei-a do camarote mandei que o primeiro-piloto cuidasse dela e voltei para cá, mas não havia qualquer equívoco, pobre rapaz, ele estava como você o vê agora, só que fechei seus olhos, mas olhe... olhe isso...



Tremendo, Strongbow puxara o lençol. Malcolm estava nu, a parte inferior do corpo numa poça de sangue, já ressequido agora, formando uma crosta, o colchão encharcado.



— Ele... deve ter sofrido uma hemorragia, só Deus sabe por que, mas suponho...



— Oh.Deus!



Jamie cambaleara para uma cadeira, praguejara, atordoado. Malcolm?



— O que vou fazer agora? — perguntara a si mesmo, desolado.



A voz de Deus ressoara pelo camarote, na resposta:



— Empacote-o em gelo e mande-o para casa!



Assustado, ele se levantara de um pulo. Strongbow o fitava, perplexo, e no mesmo instante Jamie compreendera que fora o capitão que respondera, sem ter percebido que ele próprio fizera a pergunta em voz alta.



— Isso é tudo o que pode dizer, pelo amor de Deus? — gritara ele.



— Desculpe, Jamie, não tive a intenção... não queria... — Strongbow enxugara o suor da testa. — O que você quer que eu faça?



Depois de outro século, os ouvidos ainda ressoando, a cabeça latejando, ele murmurara:



— Não sei.



— Normalmente, nós o sepultaríamos no mar, pois não posso manter... mas você pode sepultá-lo em terra... o que quer que eu faça?



A mente de Jamie parecia funcionar muito devagar. Só então notara Ah Tok, agachada perto do beliche, pequena, uma velha megera agora, balançando sobre os calcanhares, a boca se mexendo, mas sem que qualquer som saísse.



— Ah Tok, pode subir agora, não há nada que possa fazer aqui, está certo?



Ela não lhe prestara qualquer atenção. Continuara a se balançar para a frente e para trás, a boca se mexendo em silêncio. Ele tentara de novo, mas fora em vão. Acrescentara para Strongbow:



— É melhor você esperar aqui, até a chegada de Babcott ou Hoag.



Ele tornara a subir, fora se ajoelhar ao lado de Angelique, ainda no escuro antes do amanhecer. Mas ela também não respondera, por mais ternamente que falasse, dizendo como lamentava, que gostaria de ajudá-la. Por um instante, ela ainda levantara os olhos, sem reconhecimento, enormes olhos azuis na brancura do rosto, depois voltara a se encolher dentro dos cobertores, olhando sem ver para o convés.



— Vou desembarcar, Angelique, desembarcar. Está me entendendo? E... é melhor contar a Sir William, entende?



Ela acenara com a cabeça apática, e Jamie a tocara como um pai faria. Antes de deixar o navio, ainda dissera a Strongbow:



— Ponha a bandeira a meio mastro, todos os tripulantes devem permanecer a bordo, sua ordem de zarpar está cancelada. Voltarei assim que puder. E acho melhor não tocar em cada, até a chegada de Babcott ou Hoag.



Voltando para a praia, ele experimentara uma náusea violenta, e agora se descobria diante de Norbert e Gornt. Gornt estava chocado, e os olhos de Norbert faiscaram. Em meio à sua angústia, ouviu-o dizer:



— Malcolm está morto? Mas como ele morreu?



— Não sei — respondeu Jamie, meio sufocado. — Mandamos chamar Babcott, mas parece que foi uma hemorragia. Agora, tenho de comunicar a Sir William.



Ele se virou para ir embora, mas a risada escarninha de Norbert deteve-o.



— Está querendo dizer que o jovem patife morreu fodendo? Morreu em ação? Vim aqui para matá-lo, mas ele se fodeu ao passar pelos portais de pérola? O velho Brock vai ter um acesso de riso...



Cego de raiva, McFay desferiu um golpe, o punho direito acertando o rosto de Norbert, que cambaleou para trás. McFay errou um violento uppercut com a esquerda, perdeu o equilíbrio, caiu de joelhos. Norbert virou-se com a agilidade de um gato, berrando em fúria, o rosto ensanguentado, o nariz achatado, e deu um chute contra a cabeça de Jamie. Aponta de sua botina atingiu a gola de McFay, o que desviou e amorteceu o impacto, ou teria quebrado o pescoço, em vez de jogá-lo de costas no chão. Norbert limpou o sangue do rosto, enquanto corria para a frente, desferindo outro chute brutal. Mas desta vez Jamie se encontrava preparado e contorceu-se para o lado, antes que Norbert conseguisse alcançá-lo de novo, e levantou-se, os punhos cerrados, o braço esquerdo inútil por um momento.



Por um segundo, os dois se encararam, a dor ofuscada pelo ódio. Gornt tentou detê-los, mas no mesmo instante os dois homens atacaram, desvairados, empurrando-o para o lado, como uma folha. Punhos, pés, todos os golpes sujos, uma briga de rua. Joelhos na virilha, unhas rasgando, arrancando pedaços de roupa e cabelos, qualquer coisa para destruir o outro, a hostilidade de anos irrompendo numa ferocidade incontrolável. Eram da mesma altura, mas Jamie tinha quinze quilos a menos, Norbert era mais duro, mais brutal. Uma faca apareceu em sua mão. Tanto Jamie quanto Gornt gritaram quando ele arremeteu, errou, recuperou o equilíbrio, atacou de novo, e desta vez arrancou sangue, Jamie meio desajeitado, perdendo, prejudicado pelo ombro lesionado. Com um vitorioso grito de guerra, Norbert avançou, para mutilar, não para matar. Só que ao mesmo tempo o punho de Jamie acertou na ponte de seu nariz, esmagando-o desta vez, e Norbert caiu gemendo, ficou no chão, de quatro, sem ver coisa alguma, dominado pela dor, derrotado.



Jamie parou na frente dele, ofegante. Gornt esperou que ele liquidasse o oponente, com um chute na virilha, outro na cabeça, e depois talvez usasse calcanhar para esmagar seu rosto para sempre. Era o que ele faria... afinal, não era atitude de um cavalheiro sacar, ou escarnecer da morte de outro homem, mesmo um inimigo, pensou ele, sentindo uma satisfação intensa pela vitória de McFay.



A morte de Malcolm não o agradara nem um pouco. Era a única opção para a qual não planejara, não hoje. Agora, seu esquema teria de ser revisto, depressa. Em nome de Deus, como? Talvez aquela briga pudesse ser aproveitada, especulou avaliando as possibilidades, enquanto esperava para saber o que Jamie faria em seguida.



Agora que vencera, a raiva de Jamie se dissipou. Seu peito arfava. Bílis e sangue enchiam sua boca. Ele cuspiu. Por anos, tivera vontade de humilhar Norbert, e agora o conseguira, desforrara-se de uma vez por todas... e ainda por cima vingara Malcolm, que fora provocado deliberadamente.



— Norbert, seu filho da puta — balbuciou ele, atônito pelo som de sua voz e por se sentir tão mal —, se disser mais alguma coisa contra o meu tai-pan, qualquer coisa, ou rir dele pelas costas, juro que vou transformá-lo em picadinho.



Atordoado, ele passou cambaleando por Gornt, mal o vendo, a caminho do cais. Dez ou quinze metros depois, seu pé pisou num buraco, e ele caiu, praguejando, e ficou de quatro, alheio aos outros, exausto.



Norbert começava a se recuperar, cuspindo sangue, o nariz quebrado, uma massa de dor, tremendo de raiva por ter sido derrotado. E apavorado. O velho Brock não vai perdoá-lo, seu cérebro bradou, vai perder sua gratificação e o estipêndio que ele prometeu, será alvo de riso em toda a Ásia, vencido, humilhado para sempre pelo filho da puta do Jamie, que nem de longe é do seu tamanho, um lacaio da Struan...



Ele sentiu que alguém o ajudava a levantar. Trôpego, forçou os olhos a se abrirem. Ofegando para respirar, confuso, o rosto e a cabeça em fogo, os olhos inchados, fechados quase que por completo, ele viu McFay se levantando com dificuldade, a poucos passos de distância, de costas, Gornt meio na sua frente, ainda segurando a pistola de duelo de cano duplo.



Meio louco de dor, um emaranhado de pensamentos afloraram: Não posso errar a esta distância, Gornt é a única testemunha, diremos no inquérito que “McFay tentou pegar a arma, Sir William, tivemos uma briga, mas foi ele que me acertou primeiro, Edward, diga a verdade de Deus, e depois foi terrível, estávamos engalfinhados, e não sei como a arma disparou, o pobre Jamie...



Norbert pegou a pistola, levantou-a.



— Jamie! — gritou Gornt, em advertência.



McFay virou-se, surpreso, entreabriu a boca ao deparar com a arma apontada, enquanto Norbert ria e puxava o gatilho. Mas Gornt estava preparado e, com outro grito de advertência, desviou o tiro para cima. Em seguida, de costas para McFay, encobriu a pistola com seu corpo, segurando-a com as duas mãos, demonstrando uma força surpreendente, e simulou luta momentânea com Norbert pela posse da arma. E durante todo o tempo fixava os olhos de Norbert, que só viu, transtornado, a morte na sua frente. Ele virou o cano para o peito de Norbert e apertou o segundo gatilho. Norbert teve morte instantânea. Depois, fingindo estar transtornado, Gornt deixou o corpo cair. Tudo levara apenas uns poucos segundos.



— Deus Todo-Poderoso! — balbuciou Jamie.



Consternado, ele se adiantou, cambaleando, arriou de joelhos ao lado do corpo.



— Por Deus, senhor, eu não sabia o que fazer. O Sr. Greyforth ia alvejá-lo pelas costas e tudo o que fiz... oh, Deus, Sr. McFay... viu o que ele ia fazer, não é mesmo, ainda gritei em advertência, mas... ele ia matá-lo...



Era fácil convencer McFay, que se afastou de olhos turvos, trôpego, para buscar ajuda.



Sozinho agora, em segurança, Gornt deixou escapar um suspiro. Satisfeito consigo mesmo. Exultante por ter previsto o que Norbert faria e apostado sua vida nisso.



— Quando está jogando, o tempo e a execução devem ser perfeitos — dizia sempre o seu padrasto, ao lhe ensinar a arte do baralho. — Às vezes surge uma grande chance, jovem Eddie, uma dádiva das Parcas. Elas lhe oferecem alguma coisa especial, você aproveita, e tira a sorte grande, mata o adversário. Ganha tudo, e não pode fracassar, se elas ofereceram de fato, pois sempre escolhem o momento perfeito. Mas não se deixe enganar pelo demônio... ele vai enganá-lo, sua oferta pode parecer com a outra, mas é diferente, reconhecerá a diferença quando surgir em seu caminho...



Gornt sorriu, sarcástico. O padrasto não se referia a matar literalmente, mas fora assim que ocorrera para ele. Sua dádiva das Parcas fora Norbert. O momento perfeito, o assassinato perfeito, o álibi perfeito. Norbert tinha de ser despachado para o outro mundo, por muitos motivos. Um deles era porque Norbert poderia evitar parte do desastre para os Brocks, desviando-o para a Struan. Outro porque o velho Brock ordenara que Norbert matasse de qualquer maneira que pudesse, e um terceiro — o mais importante — porque Norbert era vulgar, não tinha boas maneiras, nenhuma sutileza, nem senso de honra, nunca fora nem seria um cavalheiro.



As moscas já enxameavam ao redor do cadáver. Gornt afastou-se um pouco, acendeu um charuto. Seus olhos vasculharam a terra de ninguém, através da neblina. Ainda não havia olhos estranhos, nenhum movimento. O amanhecer mal rompia o céu nublado. Enquanto esperava, ele retirou os cartuchos da outra pistola, apistola de Malcolm, que Norbert insistira em levar. Sorriu para si mesmo. Teria feito a troca, dando a Norbert as balas de pólvora seca, se ele decidisse lutar mesmo o duelo, em vez de cancelá-lo, como fora combinado.



Norbert era sem dúvida um desgraçado, pensou ele. Boa viagem. Mas lamento por Malcolm. Não importa, agora irei para Hong Kong, e farei o acordo com sua mãe... o que será mais seguro e melhor. Norbert tinha razão, ela é a verdadeira tai-pan. Negociarei o que teria dado a Malcolm, os meios reais e as provas para destruir a Brock and Sons... para esmagar Morgan, o diabo encarnado.



A vingança é minha, disse o Senhor. Mas não para mim, Edward Gornt, o filho de Morgan. Ah, pai, se ao menos soubesse como a vingança será gloriosa, com é correto o parricídio! Em pagamento pelo “casarei com aquela vagabunda se ...”



É irônico, Morgan, você passou a vida tentando arruinar sua única irmã e a família dela — seu pai, a mesma coisa, com sua única filha —, e eu sou seu único filho, e Nêmesis, protegendo a ela para arruiná-lo.



Será mais seguro e melhor negociar com Tess do que com Malcolm. Ela me entregará a Rothwell em Xangai e subscreverá os empréstimos no Victoria Bank que eu precisar, e ainda me conseguirá um assento no conselho de administração. Não, não isso, ela vai me considerar uma ameaça, com toda razão, a vaga só virá mais tarde. Enquanto isso, o próximo na lista, Cooper-Tillman.



Enquanto isso, o que fazer? Partir para Hong Kong o mais depressa possível. É curioso que Norbert tenha morrido e Malcolm também. Muito estranho.



Morte em ação? Que maneira de morrer!



Ao remover Malcolm, as Parcas me concederam outro prêmio. Angelique. Ela é livre e rica agora, tem a riqueza da Casa Nobre. Seis meses é o prazo perfeito, tempo suficiente para o luto, e para que eu possa me organizar. A esta altura, Tess Struan ficará contente em vê-la longe de Hong Kong. E casada. E se ela estiver grávida? Deixarei para me preocupar com isso mais tarde, pois é um se. De qualquer maneira, não faz diferença, assumirei a Casa Nobre mais cedo do que planejava.



Sua risada baixa misturou-se com o zumbido das moscas.







— O Dr. Babcott está lá fora, Sir William — anunciou Tyrer.



— Pois mande-o entrar, pelo amor de Deus! George, bom dia... o que aconteceu com o pobre coitado? Uma notícia terrível! E como está Angelique? Já soube de Norbert? O desgraçado tentou atirar em Jamie pelas costas há cerca de duas horas!



— Já soube. — Babcott não fizera a barba e se encontrava visivelmente transtornado. — Hoag levou Angelique para a legação francesa, todos desembarcamos juntos... e ela não queria voltar para o prédio da Struan.



— Posso compreender. Não a culpe por isso. Como ela está?



— Em choque, como não podia deixar de ser. Nós lhe demos sedativos, foi horrível para ela... passou por maus momentos aqui, a Tokaidô, depois aquele maldito ronin, agora isto. É muito azar. Ela ficou bastante abalada.



— E isso vai fazê-la perder o juízo?



— Espero que não, mas nunca se sabe. Ela é jovem e forte, mas... nunca se sabe. Por tudo o que é sagrado, espero que não. — A preocupação dos dois era evidente. — Uma coisa terrível, parece que tudo é inútil.



Sir William balançou a cabeça.



— Devo confessar que fiquei furioso com o casamento, mas quando recebi a notícia, esta manhã, daria qualquer coisa para que não tivesse acontecido. — Seu rosto se endureceu. — Viu o corpo de Norbert?



— Não. Hoag cuidará disso, assim que assentar Angelique. Achei melhor vir direto para cá, e lhe contar tudo.



— Fez bem. O que aconteceu com Malcolm?



Apesar de sua angústia, Babcott tornou-se frio e objetivo:



— Hemorragia. Uma artéria ou veia rompeu-se. Durante a noite, enquanto ele dormia, sem qualquer dor ou contorções, ou ele a teria acordado. A vida simplesmente se esvaiu de seu corpo. Farei uma necropsia, que é indispensável para o atestado de óbito.



— Muito bem, se é isso o que recomenda. — Sir William desligou a mente desse processo macabro, considerando-o desagradável, também não gostando de estar perto do médico, de qualquer médico, com as roupas sempre manchadas de sangue aqui e ali, e sempre com um tênue cheiro de substâncias químicas e ácido carbólico, por mais que se limpassem. — Pobre jovem Struan. Terrível. Ele sangrou até a morte?



— Isso mesmo. Pelo que vale, Malcolm... ele parecia o homem mais sereno que já vi na morte, como se a desejasse.



Sir William mexeu num tinteiro na mesa.



— George, ele poderia estar... terminando... seria essa a causa? Um tremendo excitamento?



— Deve ter sido isso o que aconteceu. Não o orgasmo propriamente dito, mas a tensão incontrolável que gera poderia com a maior facilidade dilacerar tecidos enfraquecidos ou causar um rompimento. Os órgãos genitais se encontravam em perfeitas condições, mas a cavidade estomacal era fraca. Reparei a maior parte do intestino grosso, suturei algumas artérias, pois o ferimento foi bastante grave. Ele não estava se recuperando como eu gostaria e o fígado...



— Não preciso dos detalhes agora — interrompeu-o Sir William, supersensível, já sentindo um pouco de náusea. — Por Deus, o jovem Struan! Parece impossível... e Norbert ainda por cima! Se não fosse por Gornt, teríamos um assassinato em nossas mãos. Aquele sujeito merece uma medalha. Ele disse, antes que eu me esqueça, que Jamie foi provocado, e Norbert fez jus ao castigo. Sabia e Malcolm e Norbert iam se encontrar na cidade dos bêbados para um duelo?



— Não, até um momento atrás. Phillip me contou. Loucos, os dois. E você os advertiu!



— É verdade. Os idiotas, embora Gornt jure que ambos haviam concordado em aceitar as desculpas um do outro. Mas ele também contou que Norbert lhe disse esta manhã que mudara de idéia e pretendia matar Struan. O miserável! — Aflito, Sir William mexeu nas coisas em sua mesa, endireitando papéis, o pequeno retrato com moldura de prata. — O que faremos agora?



— Em relação a Norbert?



— Não, Malcolm. O que faremos com Malcolm?



— Efetuarei a necropsia hoje, ao final da tarde. Tomei a liberdade de providenciar o envio do corpo para Kanagawa... será mais fácil ali. Hoag funcionar como meu assistente e você receberá um relatório pela manhã Assinaremos o atestado de óbito e tudo será normal.



— Estou me referindo ao corpo — explicou Sir William, irritado.



— Pode sepultá-lo como quiser. Com este tempo, não há pressa, pois ficará bem preservado.



— Haverá tempo para enviar o Prancing Cloud a Hong Kong e descobrir que sua... o que a Sra. Struan deseja fazer? Afinal, ela pode querer sepultá-lo lá e...



— Por Deus, eu não gostaria de transmitir essa notícia a ela!



— Nem eu. — Sir William puxou a gola. Como sempre, fazia frio no escritório, o fogo de carvão era mínimo e uma aragem forte entrava pelas janelas mal-ajustadas. — Hoag é o médico da família, ele pode ir. Mas o que eu quero saber, George, é se o corpo ficará preservado por tanto tempo. Levar a notícia para ela, voltar, pegar o corpo... e se for isso o que ela quiser?



— É melhor você tomar a decisão, sepultá-lo aqui ou despachá-lo para Hong Kong imediatamente. Nós o conservaríamos em gelo, cercaríamos o caixão com gelo, sob uma cobertura de lonas, não deve haver maiores problemas.



Sir William acenou com a cabeça, repugnado.



— Phillip! — gritou ele pela porta. — Peça a Jamie para vir até aqui o mais depressa possível! George, acho que a decisão mais sensata, desde que... desde que o corpo fique preservado, é mandá-lo de volta. Qual é a sua opinião?



— Concordo.



— Ótimo. Obrigado. Mantenha-me informado sobre Angelique. Também não esqueça do nosso jantar esta noite. E a nossa partida de bridge?



— É melhor adiar as duas coisas para amanhã.



— Tem razão, será melhor assim. Obrigado outra vez... droga, eu já ia esquecendo. O que faremos com Norbert?



— Um enterro rápido, logo esquecido, e nunca lamentado.



— Terei de realizar um inquérito. Edward Gornt é americano, um cidadão estrangeiro... ele está preparando um depoimento assinado. Ainda bem que Adamnson está de licença, pois ia querer se intrometer. Ele é advogado, não é mesmo. além de chargéd’affaires dos Estados Unidos?



— De qualquer forma, não importa. Hoag e eu podemos dar o testemunho médico. — Babcott levantou-se e acrescentou friamente: — Mas o “tiro pelas costas”? Não é uma boa propaganda para Iocoama.



— É o que estou pensando. — O rosto de Sir William se contraiu. — Não gostaria que isso transpirasse.



— Para os nossos anfitriões?



— Isso mesmo. Eles terão de ser informados, é inevitável. Mas também não posso fazer um relato formal do que aconteceu exatamente. É óbvio que Norbert sofreu uma morte acidental. E Struan?



— Diga-lhes a verdade — respondeu Babcott, consternado com a perda, furioso consigo mesmo por seu trabalho não ter sido bastante bom, e porque desejava, desesperadamente, não como médico, tomar Angelique em seus braços para protegê-la de tudo. — E a verdade é que a morte desnecessária e prematura daquele jovem extraordinário pode ser atribuída aos ferimentos sofridos no ataque sem qualquer provocação na Tokaidô!



Sir William acrescentou, amargurado:



— Por assassinos miseráveis que ainda não foram levados à justiça. Tem toda razão.



Ele deixou Babcott se retirar, acenou para que Tyrer ficasse longe e foi se postar à janela, perturbado por sua atual impotência. Tenho de enquadrar o Bakufu o mais depressa possível ou estaremos liquidados, e nossa idéia de abrir o Japão se perderá. Eles não farão isso por si mesmos; assim, temos de ajudá-los. Mas eles precisam se comportar como pessoas civilizadas, que respeitam as leis... enquanto isso, o relógio continua batendo; sei, lá no íntimo, que uma noite dessas eles nos atacarão, vão nos tacar fogo, e tudo acabará. Tão certo quanto Deus fez as maçãs!



Claro que haveria uma retaliação... com a perda de muitas vidas. Mas terei fracassado em meu dever, todos estaremos mortos, o que é um pensamento dos mais desagradáveis. Se ao menos Ketterer não fosse tão teimoso... Como posso submeter o desgraçado obstinado à minha vontade?



Ele suspirou, conhecendo uma resposta: primeiro, terá de fazer as pazes com ele!



O encontro tempestuoso na noite passada, por causa do ostensivo descaso do almirante ao pedido da Sra. Struan e ao seu próprio conselho, que não suspeitava do verdadeiro motivo, até arrancá-lo pouco antes de Jamie McFay, acabara se deteriorando para uma confrontação aos gritos:



— Foi um erro permitir que Marlowe...



— Achei que era melhor assim! E agora vai me escutar...



— Melhor? Mas que droga! Acabei de saber que você achou melhor interferir estupidamente em questões políticas e comerciais, tentando negociar um acordo não compulsório com o pretendente ao trono Struan, alienando assim a verdadeira chefe para sempre! Não é verdade?



— E o senhor está querendo interferir em questões que são uma prerrogativa exclusiva do Parlamento, como a declaração de guerra, e o verdadeiro motivo para ser tão desavisado, em sua linguagem, para se mostrar tão transtornado, é o fato de que eu não quero iniciar uma guerra que não podemos vencer, que não podemos sustentar com nossas forças atuais, se é que o conseguiríamos sob quaisquer cicunstâncias; na minha opinião qualquer ataque à capital será considerado pelos nativos, com toda razão, como um ato de guerra, e não um incidente. Boa noite!



— Mas concordou em aju...



— Concordei em exibir alguns sabres, disparar alguns tiros de exercício para impressionar os nativos, mas não concordei em bombardear Iedo, e não o farei jamais, a menos que me apresente uma autorização por escrito, aprovada pelo almirantado. Boa noi...



— A marinha e o exército estão sujeitos ao controle civil, e sou eu quem manda aqui!



— É, sim, mas só se eu concordar! — berrara o almirante, o rosto e o pescoço roxos. — Não manda em meus navios, e até eu receber ordens em contrário aprovadas pelo almirantado, comandarei minha esquadra como achar melhor! Boa noite!



Sir William foi sentar à sua escrivaninha. Suspirou, pegou uma pena e escreveu em seu papel timbrado:





Prezado almirante Ketterer: Muito do que disse ontem à noite era correto. Por favor, desculpe o uso de algumas palavras desavisadas no calor do momento. Talvez queira fazer a gentileza de me procurar esta tarde. Já deve ter sido informado da triste morte do jovem Struan, que segundo o Dr. Babcott pode ser atribuída aos ferimentos recebidos no ataque sem qualquer provocação na Tokaidô. Apresentarei outro protesto ao Bakufu, mais severo, pelo falecimento desse extraordinário cavalheiro inglês, e ficaria muito satisfeito em ouvir seus conselhos sobre os termos em que deve ser redigido. Com toda sinceridade, meu prezado senhor, permaneço seu servidor obediente.





— O que tenho de fazer pela Inglaterra — murmurou ele.



Depois, enquanto assinava a mensagem, e cobria com pó para secar a tinta, Sir William gritou:



— Phillip!



— Pois não, senhor?



— Tire uma cópia e depois despache para Ketterer, por mensageiro especial.



— Jamie acaba de chegar, senhor, e há uma delegação pedindo que decrete um dia de luto.



— Recusado! Mande Jamie entrar.



Jamie estava bastante machucado, o ombro agora enfaixado.



— Sente-se melhor, Jamie? Ótimo. George Babcott já me apresentou um relatório. — Sir William relatou o que se dissera sobre o corpo de Malcolm. — O que acha devemos fazer?



— Devemos mandá-lo para Hong Kong, senhor.



— É o que também penso. Você vai... acompanhá-lo?



— Não, senhor. A Sra. Struan... receio que ela não me aprove mais e, se eu voltar, só vai agravar uma situação que já é terrível para ela, a pobre dama. Aqui entre nós, estarei despedido ao final do mês.



— Mas por quê? — indagou Sir William, chocado.



— Não importa, não agora. Angelique, a nossa Sra. Struan, irá junto, assim o Dr. Hoag... Já sabia que ela mudou de idéia, e decidiu permanecer em seus aposentos, conosco, e não mais na legação francesa?



— Não, não sabia, mas acho que é melhor assim. Como ela está?



— Hoag diz que o melhor que se podia esperar, o que quer que isso signifique. Despacharemos o Prancing Cloud assim que nos autorizarem. Quando poderá ser?



— George disse que efetuaria a necropsia ainda hoje e assinaria o atestado de óbito. Terei providenciado tudo até amanhã. O clíper pode zarpar amanhã. O único problema seria Angelique, quando ela teria condições para viajar. — Sir William fitou-o nos olhos. — Qual é a situação dela?



— Não sei, não realmente. Não a vejo desde... desde que ela foi para bordo. Não falou comigo desde então, nem uma única vez, não demonstra qualquer lucidez. Hoag ainda continua com ela. — Jamie tentou conter sua angústia. — Só nos resta torcer.



— Um azar terrível. Isso mesmo, não há qualquer dúvida a respeito. Agora, vamos falar sobre Norbert. Teremos de realizar um inquérito.



— Sei disso. — Jamie levou a mão ao rosto, afugentando uma mosca impertinente, que procurava o sangue ressequido. — Gornt salvou minha vida.



— É verdade. Ele será elogiado por isso. Jamie, o que fará quando deixar a Struan? Voltará para casa?



— Aqui é a minha casa... aqui ou na China. Encontrarei algum meio de abrir minha própria firma.



— Seria ótimo, pois eu não gostaria de perdê-lo. Não posso imaginar a Casa Nobre aqui sem você.



— Nem eu.







À medida que o dia passava, a mortalha sobre Iocoama se adensava. Choque, incredulidade, raiva, medo da guerra, medo em geral — a Tokaidô recordada —, misturando-se com muitos comentários vulgares sussurrados, mas com extrema cautela de quem os dizia, pois Angel tinha defensores violentos, e qualquer comentário rude ou risada escarninha insinuava desrespeito. Malcolm não foi tão afortunado. Tinha inimigos, muitos se mostravam contentes em escarnecer, felizes porque outro desastre se abatera sobre a descendência de Dirk Struan. E os dois sacerdotes, sob vários aspectos, também se sentiam satisfeitos, vendo a retaliação de Deus.



— André — disse Seratard à mesa do almoço, na legação, tendo Vervene como o terceiro homem —, ele deixou um testamento?



— Não sei.



— Tente descobrir. Pergunte a ela ou a Jamie... é provável que ele saiba mais.



André Poncin balançou a cabeça, desolado, na maior preocupação. A morte de Struan acabara com seu plano de arrancar mais dinheiro de Angelique, a fim de pagarRaiko.



— Está certo.



— É muito importante que continuemos a ressaltar sua cidadania francesa fim de protegê-la, quando a sogra tentar anular o casamento.



Vervene interveio:



— O que o faz ter tanta certeza de que ela agirá assim, que vai se mostrar tão antagônica?



Mon Dieu, isso é óbvio! — respondeu André por Seratard, irritado — A atitude dela será a de que Angelique “assassinou” seu filho. Todos sabemos que ela a odiava antes, quanto mais agora? É inevitável que acuse Angelique só Deus sabe de quantas insídias, por causa do seu deturpado dogma sexual anglo-saxão em particular, se não em público. E não se esqueça de que ela é uma protestante fanática.



Ele virou-se para Seratard e acrescentou:



— Henri, talvez seja melhor eu procurar Angelique.



André já a interceptara e sussurrara que ela deveria voltar para o prédio da Struan, em vez de ficar na legação:



— Pelo amor de Deus, Angelique, seu lugar é com o pessoal de seu marido! Era tão óbvio que ela deveria reforçar sua posição na Struan — a qualquer custo — que André quase lhe gritara, mas a súbita ira se transformara em compaixão ao perceber a profundeza de seu desespero.



— É melhor eu ir agora.



— Por favor, faça isso.



André saiu e fechou a porta.



— O que há com ele? — perguntou Vervene, fungando.



Seratard pensou, antes de responder, e concluiu que já estava na hora.



— É provável que seja a sua doença... a doença inglesa.



Vervene baixou o garfo, chocado.



— Sífilis?



— André me contou há algumas semanas. Você deve saber, o único em toda a equipe, já que essas explosões podem se tornar mais freqüentes. Ele é valioso demais para que o despachemos de volta.



André anunciara que tinha uma nova fonte de informações, muito bem situada:



— O homem diz que lorde Yoshi voltará a Iedo dentro de duas semanas. Por uma quantia relativamente modesta, ele e seus contatos no Bakufu garantem uma reunião particular, a bordo de nossa nave capitânia.



— Quanto?



— O encontro valeria qualquer coisa que custasse.



— Concordo, mas quanto? — insistira Seratard.



— O equivalente a quatro meses do meu salário —, respondera André amargurado —, uma ninharia. Por falar nisso, Henri, preciso de um adiantamento ou a bonificação que me prometeu há vários meses.



— Nada ficou acertado, meu caro André. Na ocasião oportuna, você receberá, mas agora não pode ter nenhum adiantamento, lamento muito. Muito bem, concordo com a quantia pedida, depois do encontro.



— Metade agora, metade depois. Ele também me contou, sem cobrar, que o tairo Anjo está doente e pode não durar um ano.



— Ele tem alguma prova disso?



— Ora, Henri, sabe muito bem que tal prova não é possível!



— Diga a seu contato para fazer esse macaco tairo procurar Babcott para um e... eu lhe darei um aumento de cinqüenta por cento.



— O dobro do salário de hoje, o dobro, e precisarei dar a meu contato um adiantamento substancial.



— Cinqüenta por cento a partir do dia do exame, e trinta mexicanos de ouro, cinco adiantados, e o resto depois. E mais nada.



Seratard percebera a esperança de André aumentar. Pobre André, começa a perder a classe antiga. Claro que compreendo que uma grande parte do dinheiro ficará grudada em seus dedos, mas não importa, tratar com espiões é um negócio sujo, e André é particularmente sujo, embora muito esperto. E infeliz.



Ele estendeu a mão, e pegou a última fatia do único queijo Brie, que chegara no gelo, a um custo fantástico, no último navio de correspondência.



— Seja paciente com o pobre coitado, Vervene, está bem?



Todos os dias ele esperava descobrir sinais da doença, mas nada surgira até agora; todos os dias André parecia um pouco mais jovem, perdendo a expressão atormentada anterior. Só o seu temperamento se deteriorara.



Mon Dieu! Um encontro particular com Yoshi! E se Babcott pudesse examinar aquele cretino do Anjo, talvez até mesmo curá-lo, por iniciativa minha — não importa que Babcott seja inglês, negociarei esse golpe com Sir William por alguma outra vantagem —, teremos dado um tremendo passo à frente. Ele ergueu seu copo.



— Vervene, mon brave, a sífilis para os ingleses, e Vive Ia France!







Angelique estava deitada na cama de dossel, apática, recostada em travesseiros empilhados, nunca mais pálida ou mais etérea. Hoag se acomodara numa cadeira ao lado da cama, cochilando. O sol do fim de tarde rompeu as nuvens por um momento, para animar um dia sombrio, de vento constante. Na baía, os navios puxavam os cabos das âncoras. Meia hora antes — para ela, um minuto ou uma hora eram a mesma coisa — o canhão de sinalização anunciara a iminente chegada do navio de correspondência, despertando-a, não que estivesse de fato dormindo, apenas oscilava entre a consciência e a inconsciência, sem qualquer fronteira definida. Seus olhos vaguearam além de Hoag. Viu a porta para os aposentos de Malcolm... não os seus aposentos, nem os aposentos deles, agora apenas aposentos para outro homem, outro tai-pan...



As lágrimas ressurgiram, em dilúvio.



— Não chore, Angelique — murmurou Hoag, com extrema ternura, cada fibra concentrada, atento a sinais indicadores de algum desastre. — Está tudo bem agora, a vida continua, você vai se recuperar.



Ele segurava a mão dela. Com um lenço, Angelique removeu as lágrimas.



— Eu gostaria de tomar um chá.



— Agora mesmo.



O rosto feio de Hoag se encheu de alívio. Era a primeira vez que ela falava desde a manhã, de forma apropriada, coerente, e os primeiros momentos de volta eram sempre indicadores vitais. Quase dando vivas, Hoag abriu a porta pois embora Angelique falasse num fio de voz, não havia histeria, nem por baixo nem por trás, a luz em seus olhos era boa, o rosto não se achava mais inchado das lágrimas, e a pulsação, que ele contara enquanto segurava sua mão, era firme e forte, noventa e oito por minuto, não mais disparada de uma maneira assustadora.



— Ah Soh — disse ele, em cantonês —, traga um chá fresco para sua ama, mas não fale nada e saia logo em seguida.



Hoag voltou a sentar ao lado da cama.



— Sabe onde está, minha cara?



Angelique limitou-se a fitá-lo.



— Posso fazer algumas perguntas? Se estiver cansada, basta me dizer, e não tenha medo. Lamento, mas é importante para você, não para mim.



— Não tenho medo.



— Sabe onde está?



— Em meus aposentos.



A voz era monótona, os olhos vazios. A preocupação de Hoag aumentou.



— Sabe o que aconteceu?



— Malcolm morreu.



— Sabe por que ele morreu?



— Morreu em nossa noite de núpcias, na cama nupcial, e eu sou a responsável.



Sinos de advertência repicaram no fundo da mente de Hoag.



— Está enganada, Angelique. Malcolm foi morto na Tokaidô, há vários meses — disse ele, a voz calma e firme. — Lamento, mas essa é a verdade. Ele vivia de tempo emprestado desde então. Não foi culpa sua, nunca foi culpa sua, mas sim a vontade de Deus, e posso lhe assegurar uma coisa, com todo o meu coração, nós, Babcott e eu, nunca vimos um homem mais sereno, mais em paz na morte, nunca mesmo.



— Sou culpada.



— A única coisa pela qual você é responsável foi a alegria nos últimos meses de sua vida. Ele a amava, não é mesmo?



— Amava, mas morreu, e...



Angelique quase acrescentou e o outro homem também, nem sequer sei seu nome, mas ele também morreu, e me amava também, mas morreu, e agora Malcolm está morto, e...



— Pare com isso!



A voz ríspida arrancou-a da beira do abismo. Hoag recomeçou a respirar, sabia que aquilo tinha de ser feito, e depressa, ou ela estaria perdida, como outros que já vira antes. Precisava livrá-la do demônio que espreitava em algum lugar de sua mente, prestes a irromper, esperando para dar o bote, para transformá-la numa lunática incoerente ou no mínimo para afetá-la de uma forma radical.



— Sinto muito, mas você tem de entender isso da maneira correta. Só é cul... — em pânico, ele se conteve, antes de usar essa palavra, e trocou-a. — ...responsável pela alegria de Malcolm. Repita para mim. Só é res...



— Sou culpada.



— Diga comigo: só sou responsável por sua alegria — disse Hoag, com extremo cuidado, mais uma ordem, notando com alarme as pupilas anormais, revelando que ela retornava para a beira do abismo.



— Sou cul...



— Responsável, que droga! — exclamou ele, com uma ira simulada. — Diga comigo, só sou responsável por sua alegria! Responsável por sua alegria! Diga isso!



Ele viu o suor aflorar na testa, ela disse outra vez a mesma palavra, ele interrompeu-a, repetiu a palavra correta, “responsável, responsável por sua alegria!”, e mais uma vez ela disse a outra palavra, sendo corrigida, e enquanto isso Ah Soh trouxe o chá, mas nenhum dos dois a viu, e ela fugiu em terror, enquanto Hoag continuava a ordenar, Angelique continuava a recusar, até que, de repente, ela gritou em francês, a voz estridente:



— Está bem, está bem, só sou responsável por sua alegria, mas ainda assim ele está morto, morto, morto... meu Malcolm está morto!



Hoag tinha vontade de abraçá-la, murmurar que estava tudo bem, mas não o fez, julgando que era cedo demais. Sua voz era dura, mas não ameaçadora, e ele disse, em seu bom francês:



— Obrigado, Angelique, mas agora falemos em inglês. Lamento muito, todos lamentamos que seu adorável marido tenha morrido, mas a culpa não é sua. Diga isso!



— Deixe-me em paz! Saia daqui!



— Quando você disser que não foi culpa sua.



— Não... não... deixe-me em paz!



— Quando disser que não foi culpa sua!



Angelique fitou-o, odiando seu algoz, mas depois gritou, estridente:



— Não foi culpa minha, não foi culpa minha, não foi culpa minha! E agora que está satisfeito, trate de sair daqui!



— Depois que me disser que compreende que seu Malcolm morreu, mas você não é absolutamente culpada por isso.



— Saia!



— Diga isso! Vamos, diga logo!



Subitamente, a voz de Angelique tornou-se como o uivo de uma besta selvagem:



— Seu Malcolm morreu, seu Malcolm morreu, morreu, morreu, morreu, mas não é cul... você não é culpada... não é culpada... culpa...



Tão abruptamente quanto começara, a voz se transformou numa lamúria:



— ...não é culpada, não sou culpada, não sou mesmo, oh, meu querido sinto muito, sinto muito, não o quero morto, oh, Santa Mãe, ajude-me, ele está morto, e eu me sinto horrível, oh, Malcolm, por que você morreu, eu o amava tanto, tanto, tanto... oh,Malcolm...



Desta vez ele a abraçou, apertou-a com firmeza, absorvendo os tremores e os soluços profundos. Depois de algum tempo, a voz definhou, os soluços diminuiram, e Angelique mergulhou num sono irrequieto. Ainda abraçando-a, gentilmente, mas com firmeza, suas próprias roupas grudadas no corpo pelo suor, Hoag manteve-se imóvel, até que o sono se tornou profundo. Só então a soltou. Sentia uma dor intensa nas costas, e empertigou-se com cuidado, torturado, os músculos em espasmo. Quando conseguiu relaxar os ombros e o pescoço, ele sentou, para recuperar as forças.



Foi por pouco, pensou Hoag, o prazer por ter vencido desta vez eliminando parte da dor, contemplando-a como ela era, jovem, bela e segura.



Sua memória voltou a Kanagawa, à outra moça, a irmã japonesa do homem que ele operara, igualmente jovem e bela, só que japonesa. Qual era mesmo seu nome? Uki alguma coisa. Salvei seu irmão para que atormentasse ainda mais esta pobre criança. Estou contente por ela ter escapado. Mas será mesmo que escapou? Uma linda mulher. Como era minha pobre e querida esposa. Como foi terrível e insensato da minha parte, como foi insano tirá-la da índia, para uma morte prematura em Londres.



Dharma? Destino? Como esta criança e o pobre Malcolm. Coitados dos dois, coitado de mim. Não, não coitado de mim, pois acabei de salvar uma vida. Você pode ser atarracado e feio, meu velho, pensou ele, verificando o pulso de Angelique, mas, por Deus Todo-Poderoso, é um bom médico, e um bom mentiroso... não, não bom, apenas afortunado. Desta vez.


46





Quinta-feira, 11 de dezembro:





Boa tarde, Jamie — disse Phillip Tyrer, triste. — Com os cumprimentos de Sir William, aqui estão três cópias do atestado de óbito, uma para você, uma para Angelique, e a outra para Strongbow levar com o corpo. Ele achou que o original deve seguir pela mala diplomática para o gabinete do governador, e ser entregue ao juiz principal de Hong Kong, que providenciará o registro, e depois encaminhará a Sra. Struan. Terrível, não é, mas aconteceu.



— Tem razão.



A correspondência que acabara de chegar se achava empilhada na mesa de Jamie, além de vários documentos sobre negócios que tinham de ser acertados. Ele tinha os olhos injetados de cansaço.



— Como está Angelique?



— Ainda não a vi, mas Hoag passou aqui pela manhã. Disse que é melhor deixá-la sossegada, até ela tomar a iniciativa do primeiro contato, mas acho que está melhor do que ele esperava. Angelique dormiu por mais de quinze horas. Em sua opinião, ela deve estar bastante bem para viajar amanhã, e recomendou que Quanto mais cedo partisse, melhor. Ele também irá, como não podia deixar de ser.



— Quando o Prancing Cloud deve zarpar?



Amanhã. Com a maré noturna. Strongbow estará aqui a qualquer momento para receber as novas ordens. Tem alguma correspondência para enviar?



— Claro que sim. Uma mala diplomática. Avisarei a Sir William. Ainda não posso acreditar que Malcolm esteja morto. Ah, por falar nisso, a audiência sobre a morte de Norbert foi marcada para as cinco horas. Gostaria de jantar comigo depois?



— Obrigado, mas esta noite não será possível. Vamos deixar para amanhã, se tudo correr bem. Confirmaremos depois do desjejum.



Jamie especulou se deveria contar a Tyrer as maquinações de seu amigo samurai Nakama e a reunião com o emprestador de dinheiro local... que Nakama não queria que chegasse ao conhecimento de Tyrer e Sir William. A sugestão de Nakama o intrigara, embora acolhesse com satisfação a oportunidade de conversar diretamente com um homem de negócios, mesmo de importância menor.



A reunião marcada para o dia anterior fora cancelada, é claro. Ele considerara o adiamento para a próxima semana, mas decidira se encontrar com o homem naquela noite... poderia distraí-lo por um momento da tragédia.



Não é da conta de Phillip... e não se esqueça que Phillip e Wee Willie andaram ocultando todos os tipos de informações, quando o acordo era para que tudo fosse partilhado.



— Até mais tarde, Phillip. E obrigado por isto.



— Até mais tarde, Jamie.



Os atestados de óbito eram assinados por Babcott e Hoag. A autópsia confirmara o que já se dissera sobre a morte, causada por hemorragia interna de uma artéria rompida, que cessara de funcionar corretamente, a condição de enfraquecimento podendo ser atribuída, de forma direta, aos ferimentos sofridos durante o incidente sem qualquer provocação na Tokaidô.



Jamie acenou com a cabeça para si mesmo. Os médicos haviam contornado a questão do motivo do rompimento. Não havia razão para ser mais específico, a menos que alguém exigisse uma resposta mais específica. Alguém como Tess Struan, pensou ele, sentindo uma pontada de dor no estômago. É inevitável que ela pergunte e o que Hoag dirá então? O mesmo que me disse esta manhã:



— Na condição de Malcolm, Jamie, tal rompimento poderia ser causado por qualquer um de meia dúzia de movimentos bruscos, como dormir de mau jeito, virar-se de repente porque teve um pesadelo, até mesmo a pressão de um intestino com prisão de ventre.



— Ou mais ainda durante o intercurso sexual?



— Essa é uma das várias possibilidades. Por quê?



— Ora, você conhece Tess Struan muito bem.



— Não vou culpar Angelique, se é isso o que quer saber. Afinal, há necessidade de duas pessoas para o ato, e ambos sabemos que ele fez de tudo para casar, estava perdidamente apaixonado.



— Não estou querendo saber de nada, Doc. Tess vai culpá-la de qualquer maneira, independente do que diga o atestado.



— Concordo, Jamie, mas ela não terá nenhuma ajuda da minha parte. Nem de George. É evidente que um intenso orgasmo causou o rompimento e o subseqüente sono eufórico dos dois encobriu o problema. Isso é lógico, mas nada pode ser provado; e mesmo que fosse possível, ela não tem a menor culpa, absolutamente nenhuma...



Pobre Angelique, ela será culpada, como eu também. Mas não importa no meu caso.



— Quem é? Pode entrar. Ah, olá, Edward.



— Tem um segundo? — perguntou Gornt.



— Claro.



Desde ontem, seu relacionamento com Gornt era diferente. Insistira num tratamento pelo primeiro nome. Por Deus, pensou Jamie, como me enganei em relação a ele!



— Sente-se. Já falei uma dúzia de vezes, mas obrigado de novo... você salvou minha vida.



— Não foi nada. Só estava cumprindo meu dever.



— Graças a Deus por isso. Em que posso ajudá-lo?



— Corre o rumor de que vai enviar o corpo de Malcolm para Hong Kong,



onde será sepultado, e eu gostaria de saber se pode me arrumar uma passagem em seu navio.



— Claro. — Jamie hesitou. — Para apresentar seu relatório a Tyler Brock e Morgan?



Gornt sorriu.



— Não podemos evitar a verdade, Jamie. Levarei o resultado do inquérito, mas cabe a mim lhes contar diretamente, de homem para homem.



— Tem razão. — A tristeza tornou a dominar Jamie. — Lamento que Malcolm não esteja vivo para saber o que você fez por mim, e lamento também que agora ele não possa mais ser seu amigo, pois sei que o admirava muito. Lamento ainda que você trabalhe para eles.



— Depois do encontro, é bem provável que deixe de trabalhar. Só fui emprestado pela Rothwell. Portanto, isso não tem muita importância. Voltarei para Xangai, depois de Hong Kong.



— Se eu puder ajudá-lo por qualquer meio, basta me dizer.



— Não me deve nada, Jamie, pois apenas cumpri meu dever. Mas um homem sempre precisa de um amigo de verdade. Obrigado, e se me encontrar perdido, pedirei sua ajuda. Posso contar com um camarote no Prancing Cloud?



— O navio vai zarpar amanhã de noite.



— A Sra. Struan também irá com ele? É difícil pensar em Malcolm como morto, não é?



— É, sim. O Dr. Hoag diz que ela terá condições de viajar até amanhã.



— Tremenda falta de sorte. Terrível. Obrigado, e até mais tarde.



Jamie observou-o sair, com uma estranha inquietação. Nada que pudesse definir. Acho que apenas me sinto tão desorientado que qualquer coisa me parece esquisita. Por Deus, até Hoag se comportou de um modo insólito, mas também sem nada de específico.



Ele se forçou a trabalhar por algum tempo e depois, precisando de alguns docurnentos na mesa de Malcolm, levantou-se, foi andando pelo corredor, até a sala do tai-pan. Ergueu a mão para bater, num gesto automático. Desolado, não o fez, abriu a porta e parou no meio de um passo. Angelique sentava-se na cadeira de Malcolm, por trás da mesa de Malcolm. Heavenly Skye, sentado no outro lado, estava dizendo:



— Pelo que sei...



Ele virou a cabeça.



— Olá, Jamie — disse Angelique, a voz calma. O vestido escuro realçava a textura de alabastro da pele, os cabelos erguidos acima do pescoço longo, os olhos claros, uma tênue cor natural nos lábios. — Como se sente?



— Ahn... estou bem — balbuciou Jamie, perplexo com seu controle e nova beleza... diferente de antes, agora um tanto distante, inacessível, mas ainda mais atraente. — Desculpe, mas eu não esperava... O Dr. Hoag disse para não incomodá-la até que me chamasse. Como se sente agora?



— Pedi a ele para fazer isso. Eu... estou bem, obrigada. Havia algumas coisas que eu queria acertar esta manhã. Fiquei desolada ao saber... do seu encontro fatídico com Norbert Greyforth. Pobre Jamie, saiu todo machucado... não sofreu nada mais grave, não é?



— Não, obrigado. — Jamie sentia-se cada vez mais desconcertado. A voz de Angelique era calma, calma demais, e havia nela uma certa dignidade, que no momento ele não podia definir. — Já soube que Edward Gornt salvou minha vida?



— Já, sim. Ele próprio me contou, há poucos minutos... para ser mais precisa, não foi bem assim. Ele veio apresentar suas condolências e o recebi. Foi o Sr. Skye quem me falou sobre sua bravura. E sobre o duelo.



— Ahn...



Jamie teve vontade de amaldiçoar Skye por sua interferência.



— Pobre Malcolm... — murmurou Angelique. — Fico satisfeita por não ter sabido antes dessa insensatez, pois a teria impedido, de alguma forma. Por sorte, Edward estava lá. Como algumas pessoas podem ser tão horríveis?



— Tem razão, mas o mais importante agora é: como você está realmente?



— Não muito bem, nem muito mal. Sinto-me vazia.



— Essa é a palavra certa. Também me sinto vazio.



Jamie olhou para Heavenly, que sorriu, neutro. O silêncio foi se tornando opressivo. Contrafeito, ele percebeu que ambos queriam que se retirasse.



— Posso ajudá-la em alguma coisa?



— Não no momento, Jamie. Obrigada.



Ele acenou com a cabeça, pensativo.



— Preciso pegar alguns documentos.



— À vontade, por favor.



Angelique recostou-se na cadeira, que a ofuscava, calma, sob controle. Embaraçado, Jamie pôs-se a vasculhar as bandejas de Entrada e Saída, decidiu levar tudo, pôs uma em cima da outra.



— Se precisar de alguma coisa... basta me chamar.



— Depois que o Sr. Skye e eu terminarmos, podemos conversar por alguns minutos, se você estiver livre.



— Quando quiser. Toque aquela sineta.



Skye interveio:



— Jamie, por acaso já recebeu o atestado de óbito?



— Já, sim.



— Posso ver uma cópia, por favor?



Jamie fitou-o nos olhos.



— Com que propósito?



— Para examiná-lo.



Angelique disse:



— Mal... meu marido havia contratado os serviços do Sr. Skye... sabia disso, não é, Jamie?



— Sabia. — Jamie percebera como ela trocara de Malcolm para meu marido, e viu Heavenly balançar a cabeça, em aprovação, o que acionou um sinal de perigo em sua mente. — E daí?



Skye explicou, a voz suave:



— Quando soube da desastrosa notícia, senti-me na obrigação de oferecer meus serviços à viúva... — A palavra foi realçada de forma imperceptível. —...que aceitou. O tai-pan pedira-me para realizar uma certa pesquisa, e achei que a Sra. Struan poderia desejar que eu continuasse.



— Certo.



Jamie acenou com a cabeça, polido, e começou a se retirar.



— E o atestado de óbito, Jamie?



— O que deseja fazer, Angelique... Sra. Struan?



— O Sr. Skye é meu advogado agora, Jamie. Ele compreende essas coisas, o que não acontece comigo, e concordou em me representar. — A voz era incisiva, sem qualquer emoção. — Eu gostaria, por favor, que lhe prestasse toda ajuda que ele precisar.



— Claro. Se quiser me acompanhar, Heavenly...



Jamie saiu, foi para sua sala, ficou de pé atrás da mesa, fingindo procurar entre os papéis que guardara na gaveta, por segurança.



— Pode fechar a porta, por favor? Tem uma aragem entrando.



O homenzinho obedeceu, e Jamie acrescentou, mantendo a voz baixa, mas sem qualquer possibilidade de equívoco no tom ameaçador:



— Escute, se você a enganar, fizer qualquer coisa que não deve, cobrar demais, vou arrebentá-lo todo.



O homenzinho chegou mais perto, os óculos rachados e sujos.



— Nunca fiz isso com nenhum cliente, em toda a minha vida — disse ele, Slbilando como uma cobra. — Umas poucas contas grandes, é verdade, mas nunca mais do que o mercado podia absorver. Aquela mulher precisa de ajuda, e sou eu quem pode dar, não você.



— Posso, e darei, por Deus!



— Não concordo. Malcolm me contou que a outra Sra. Struan, a mulher em Hong Kong, o despediu. Verdade ou mentira? E é verdade ou mentira que você e Malcolm vinham recebendo cartas furiosas dela, até ameaçadoras, há semanas, cartas paranóicas contra minha cliente e o noivado, com todos os tipos de acusações infundadas? É verdade ou mentira, pelo amor de Deus, que aquela moça precisa de amigos?



— Concordo que ela precisa de amigos, e não me oponho a que tenha um advogado, mas quero ter certeza de que você agirá de uma maneira correta.



— Nunca enganei um cliente em toda a minha vida. Posso ser um advogado morto de fome, mas sou muito bom, Jamie, e quero lembrá-lo de que estarmos do mesmo lado. Ela precisa de amigos, Malcolm a amava, e você era amigo de Malcolm... ele me falou sobre as cartas pelas quais você se arriscaria à forca.



— Não importa o que...



— Não quero discutir com você, Jamie. Ela é minha cliente, e jurei que faria o melhor que puder para ajudá-la. O atestado de óbito, por favor.



Irritado, Jamie abriu a gaveta, entregou uma cópia.



— Obrigado... ah, três, hem? Uma para os seus arquivos, outra para acompanhar o corpo, e a terceira para ela. Absolutamente correto, embora eu me sinta surpreso por terem se lembrado dela. O original segue para Hong Kong por mensageiro especial. — Heavenly examinou o documento. — Deus Todo-Pode-roso!



— Qual é o problema?



— Hoag e Babcott. Eles podem ser bons médicos, mas são um desastre como testemunhas de defesa. Merda! Eu deveria ter sido informado antes que eles escrevessem isto... qualquer idiota poderia lhes indicar uma redação melhor.



— Mas do que está falando?



— Assassinato ou, pelo menos, uma acusação de assassinato.



— Ficou louco?



— Não seria a primeira vez para Tess Struan. Lembra do contramestre? Todos em Hong Kong sabiam que foi um acidente, mas ela acusou-o de assassinato, o pobre coitado foi considerado culpado de homicídio involuntário e condenado a dez anos!



— Foi o júri quem o considerou culpado, não Tess, e...



— Mas foi ela quem apresentou a acusação! — retrucou Skye, mantendo a voz baixa. — E também vai apresentar uma acusação neste caso. Se isto for lido no tribunal, num processo criminal ou cível, nosso advogado oponente alegaria que ele morreu fodendo... por favor, perdoe minha vulgaridade... “e a outra metade do ato está sentada ali, no banco dos réus, senhoras e senhores do júri, uma mulher cujo pai é um criminoso fugitivo, cujo tio se encontra numa prisão francesa, uma aventureira sem dinheiro, uma Jezebel que seduziu insidiosamente aquele pobre rapaz, menor de idade, levando-o ao casamento, e depois, senhoras e senhores do júri, com uma perfídia deliberada, seduziu-o a uma morte prematura... com uma perfídia deliberada... sabendo muito bem que os ferimentos do pobre rapaz fariam o trabalho por ela!” Verdade ou mentira?



Jamie sentou, mais pálido do que antes. As palavras de Hoag afloraram e sua mente.



— O que pretende fazer?



— Primeiro, tentarei mudar esta redação. Não creio que eles concordem, mas tentarei. Tem o testamento de Malcolm?



Jamie sacudiu a cabeça.



— Ele nunca me falou num testamento.



— Eu disse a ele que era importante fazer um testamento, quando me procurou pela primeira vez... isso é rotina. Tem certeza?



— Sei que não tenho nenhum testamento, não em nosso cofre.



Jamie franziu o rosto. Malcolm teria feito um testamento? Se eu estivesse para casar trataria de fazê-lo. Espere um pouco, fui noivo de Maureen por anos, e jamais cuidei disso. Por Deus, eu gostaria de saber como ela está, o que pensou ao receber minha carta.



— Ele nunca me mencionou um testamento. Falou alguma coisa a respeito com Angelique?



— Não. Essa foi minha primeira pergunta. Talvez ele tenha feito um testamento sem que vocês soubessem. Ele tinha um cofre particular ou algum lugar para guardar seus documentos pessoais?



— Não. Se tivesse, seria em Hong Kong. Mas há um pequeno cofre em seus aposentos.



— Vamos examiná-lo.



— Não podemos fazer isso.



As palavras saíram ríspidas e formais:



— A Sra. Angelique Struan era sua esposa legal, e agora é sua viúva, a herdeira imediata de todos os seus bens materiais, a menos que seu testamento enuncie o contrário. Se não há testamento, então ela herda tudo, depois da homologação pelo tribunal, e do pagamento dos honorários legais e impostos. Vamos dar uma olhada no cofre.



— Não podemos presu...



— Devemos resolver isso entre nós três, como amigos, ou providenciarei uma ordem judicial formal, através de Sir William, ainda hoje, para o seqüestro de tudo, de todos os seus documentos, de todos os documentos da Struan, em Iocoama e Hong Kong, para a busca de um testamento, a que a minha cliente tem direito. — Seu olhar era inflexível. — Desculpe, meu velho, mas tem de ser assim. Certo?



— Vamos perguntar a Angelique.



Inseguro, sabendo que nunca poderia permitir que alguém de fora examinasse os documentos e registros da Casa Nobre, Jamie seguiu Skye de volta à sala do tai-pan. Por que ainda penso assim? — perguntou-se ele, irritado. Deve ser porque é mesmo a sala do tai-pan. Mas quem é o novo tai-pan? Oh, Deus, que confusão!



Angelique continuava sentada onde a haviam deixado. Impassível, ela escutou Skye.



— Não há necessidade de nos acompanhar, Sra. Struan. Pode ter certeza de que agirei em seu nome.



— Obrigada, mas eu gostaria de estar presente.



Eles seguiram-na pela escada imponente, a primeira vez para Skye, que tentou não se mostrar impressionado demais pelo lustre espetacular e os óleos valiosos. Jamie abriu a porta da suíte do tai-pan. Ardia ali um agradável fogo de carvão. A cama de dossel estava arrumada, à espera. Escrivaninha impecável, sem papéis em cima. Ah Tok agachava-se num canto próximo da porta, murmurando, em desespero, parecendo ainda menor agora, mais feia, uma anciã. Não lhes prestou a menor atenção. Angelique estremeceu, seguiu os dois, foi sentar na cadeira de encosto alto de Malcolm, de frente para eles. Observando-os atentamente.



O pequeno cofre de ferro na parede ficava atrás de um quadro a óleo, outro Aristotle Quance. Skye sorriu. O quadro mostrava uma menina chinesa carregando no colo uma criança loura, de pele clara, com um rabicho, um menino, tendo a fundo uma paisagem de Hong Kong. Ele já ouvira falar do quadro, mas nunca o vira. Quance era o decano dos pintores que haviam feito a crônica de Macau e dos primeiros tempos de Hong Kong, um irlandês que ali vivera por muitos anos e morrera há poucos anos, em Macau, onde fora sepultado. Era também um voraz bêbado, jogador e libertino, mas velho amigo e devotado a Dirk Struan. O rumor era de que a moça era a famosa May-may, a amante chinesa de Dirk, a que morrera com ele no tufão de 1842, em seus braços, e a criança o primogénito dos dois.



Ele olhou para Angelique, que observava Jamie, impassível, procurando num molho de chaves. Especulou se ela sabia dos primos eurasianos de Malcolm e de seu tio, o compradore Gordon Chen — filho de Dirk com outra amante —, que segundo as intrigas de Hong Kong “conhecia mais segredos e tinha mais taéis de ouro do que um boi tinha pêlos”. O relógio no consolo da lareira bateu três horas.



— Quem mais tem chaves, Jamie? — indagou Skye.



— Apenas eu e... e o tai-pan.



— Onde estão as dele?



— Não sei. Presumo que ainda... ainda se encontram a bordo.



A porta do cofre foi aberta. Umas poucas cartas, todas com a letra de Tess Struan, exceto uma com a letra de Malcolm, aparentemente inacabada, uma pequena bolsa de camurça e uma carteira. A carteira continha uns poucos daguerreótipos desbotados de seu pai e mãe, espiando contrafeitos para a câmera, o sinete de Malcolm, uns poucos documentos... promissórias, uma lista de dívidas e devedores. Heavenly folheou tudo.



— Seriam dívidas de jogo que ele tinha, Jamie?



— Não faço a menor idéia.



— Dois mil, quatrocentos e vinte guinéus. Uma quantia considerável para um jovem emprestar ou dever. Reconhece algum destes nomes?



— Apenas este. Jamie fitou-o.



— Madame Emma Richaud? Quinhentos guinéus.



Angelique explicou:



— É minha tia. Ela e tio Michel me criaram, Sr. Skye. Chamava minha tia de mamãe, pois ela sempre foi uma mãe para mim, já que a minha morreu quando eu era pequena. Precisavam de ajuda, e Mal... Malcolm teve a gentileza de lhes enviar esse dinheiro. Pedi a ele.

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