— Ao nosso só restaram suas espadas, não tem casa, vive numa cabana — declarara Joun. — Estamos tão endividados desde o tempo do bisavô que nunca teremos condições de pagar os empréstimos. Mas nunca mesmo!





— Sei como dar um jeito nesses vis adoradores do dinheiro, cancelar as dívidas ou matá-los — interviera outro. — Se os daimios às vezes saldam suas dívidas assim, por que não podemos fazer a mesma coisa?



— Uma ótima idéia — concordara Akimoto. — Só que lhe custaria a cabeça. Lorde Ogama o converteria num exemplo, caso seus próprios emprestadores parassem de lhe adiantar dinheiro contra... em que ponto estamos agora?... ah, sim, os tributos que deve receber daqui a quatro anos.



Outro acrescentara:





— O estipêndio de minha família não mudou desde Sekigahara, o custo do arroz subiu cem vezes desde então. Devemos nos tornar mercadores ou fabricantes de saquê. Dois tios e o irmão mais velho renunciaram às suas espadas e fizeram isso.



— É terrível, mas também tenho pensado nessa possibilidade.





— Os daimios traíram a todos nós.



— A maioria, mas nem todos — ressaltara Hiraga.





— É verdade — reconhecera Akimoto. — Mas não importa. Escolheremos nosso daimio após expulsarmos os bárbaros e acabarmos com o xogunato Toranaga. O novo xógum nos dará o suficiente para comer, a nós e nossas famílias, além de armas melhores, até mesmo alguns fuzis dos gai-jin.



— Ele os reservará para seus próprios homens, quem quer que seja.



— Por que faria isso, Hiraga? Haverá o suficiente para todos. Os Toranagas não entesouram de cinco a dez milhões de kokus todos os anos? É mais do que suficiente para armar muito bem a todos nós. Se tivermos de nos separar na escuridão, onde deveremos nos reagrupar?



— Na casa dos Salgueiros Verdes, ao sul da quarta ponte, não aqui. Se isso também for difícil, devemos nos esconder em algum lugar e voltar para Kanagawa...



Agora, na varanda, atentos a qualquer sinal de perigo, desfrutando a sensação, Hiraga sorriu, o coração batendo depressa, sentindo a alegria da vida e da morte emininente, mais próxima a cada dia. Dentro de poucos momentos, tornaremos a atacar. A ação novamente...





Passara vários dias no templo ao lado da legação inglesa, esperando impaciente por uma oportunidade de desfechar um ataque, mas sempre havia guerreiros geniais, estrangeiros e samurais. Todos os dias bancara o jardineiro, espionando, escutando, planejando... seria muito fácil matar o bárbaro alto que se encontrava ali, o mesmo que escapara do atentado na Tokaidô. Era espantoso que apenas um bárbaro tivesse morrido, do alvo fácil de três homens e uma mulher.





Ah, a Tokaidô! A Tokaidô significa Ori, Ori significa Shorin e os dois significam Sumomo, que vai completar dezessete anos no próximo mês, e que não vou considerar a carta de meu pai. Não vou de jeito nenhum! Não aceitarei o perdão de lorde Ogama, se para isso tiver de renunciar a Sonno-joi. Segurei sua orientação para qualquer morte a que me conduza.



Só eu continuo vivo agora. Ori está morto ou morrerá amanhã. Shorin se foi E Sumomo?



Na noite anterior, as lágrimas haviam molhado seu rosto, lágrimas do sonho em que a encontrara, com seu bushido e seu fervor, seu corpo e seu perfume chamando-o, mas perdida para ele por toda a eternidade. Fora impossível dormir e ele permanecera sentado na posição de lótus, a posição de Buda, usando o zen para transportar sua mente à paz.





E depois, naquela manhã, a dádiva dos deuses, a mensagem furtiva e cifrada da mama-san de Koiko sobre Utani, que recebera a informação, também secreta, da criada de Koiko. Hiraga pensara, na maior exultação: O que Yoshi faria se soubesse que nossos tentáculos se estendem até seu leito, até mesmo em torno de seus testículos?





Confiante agora de que ainda não haviam sido descobertos, ele se levantou de um pulo, foi até a porta, usou a faca para soltar a tranca. Entraram num instante. Akimoto manteve-se de guarda, no uniforme da sentinela. Os outros seguiram Hiraga sem fazer qualquer barulho, subiram a escada, a caminho dos aposentos das mulheres, um roteiro que lhe fora fornecido com antecedência. Tudo era suntuoso, as melhores madeiras, os tatames mais refinados, o mais puro papel oleado de shoji, os óleos mais fragrantes para os lampiões. Hiraga virou um canto do corredor. O guarda despreocupado fitou-o, aturdido. Abriu aboca, mas nenhum som saiu. A faca de Hiraga o sufocara.





Ele passou por cima do corpo, foi até o final desse corredor, hesitou por um instante, procurando se orientar. Agora, um beco sem saída. Nos lados havia paredes corrediças de shoji, com aposentos por trás. Na extremidade, apenas uma, maior e mais ornamentada do que todas as outras. Um lampião a óleo ardia lá dentro, o que também acontecia em outros cômodos. Uns poucos roncos, respiração pesada. Em silêncio, Hiraga gesticulou para que Todo e Joun o seguissem e os outros ficassem de guarda, depois se adiantou, como uma fera numa expedição de caça noturna. O som da respiração pesada aumentou.





Ele acenou com a cabeça para Joun. No mesmo instante, o jovem passou por ele, foi se agachar no outro lado da porta de shoji, que abriu a outro sinal. Hiraga entrou no quarto, acompanhado por Todo.



Havia dois homens estendidos de bruços nos futons e colchas de seda, nus e unidos, o rapaz com as pernas abertas, o mais velho por cima, agarrando-o e arremetendo, ofegante, alheio a tudo. Hiraga adiantou-se, ergueu a espada bem alto e, segurando o cabo com as duas mãos, enfiou a ponta pelas costas dos dois corpos, um pouco acima do coração, empalando-os no chão de tatame.



O velho arquejou e morreu no mesmo instante, braços e pernas tremendo além da morte. O rapaz se debateu, na impotência, incapaz de mover o tronco, podendo apenas agitar os braços, pernas e cabeça. Mesmo assim, não conseguiu virar a cabeça o suficiente para ver o que acontecera, e também não pôde compreender o que ocorria, sabia apenas que, de alguma forma, sua vida se esvaía pelo corpo aberto. Um uivo de terror subiu por sua garganta, enquanto Todo saltava para a frente e usava o garrote para abafá-lo... um instante tarde demais. Parte do grito ressoou pelo ar agora fétido.



Ele e Hiraga se viraram para aporta, todos os sentidos em alerta Hiraga ergueu sua faca. Todo, Joun e os outros no corredor levantaram suas espadas, os corações disparados, prontos para atacar, fugir, lutar, correr, morrer com orgulho. Por trás de Hiraga, as mãos delicadas do rapaz rasgaram o próprio pescoço, as unhas compridas, perfeitas e pintadas dilacerando a carne em torno do fio do garrote. Os dedos estremeceram, pararam, tremeram, pararam de novo, tornaram a se agitar. E depois ficaram imóveis.



Silêncio. Em algum lugar, uma pessoa dormindo se remexeu, ruidosamente, tomou a ficar quieta. Ainda não havia nenhum alarme nem gritos de advertência. Pouco a pouco os atacantes saíram de sua imobilidade, atordoados, suados. Hiraga sinalizou a retirada.



Todos obedeceram no mesmo instante, à exceção de Joun, que correu pelo quarto, para recuperar a espada de Hiraga. Postou-se por cima dos corpos, mas nem mesmo usando toda a sua força conseguiu remover a espada. Hiraga acenou para que ele se afastasse, também tentou tirar a espada e fracassou. As armas dos mortos se encontravam numa estante de espadas laqueada. Ele pegou uma. Na porta, olhou para trás.



Na luz firme do lampião a óleo, os dois corpos pareciam uma única e monstruosa libélula, de vários membros, cabeça humana, as colchas amarrotadas como suas asas gloriosas, a espada como um gigantesco alfinete de prata. Podia agora ver o rosto do rapaz... e era mesmo muito bonito.











Yoshi passeava pelas ameias, com Koiko a seu lado, uma cabeça mais baixa. Havia um prenúncio de frio na brisa, que trazia o cheiro do mar na maré baixa. Ele nem percebia. Mais uma vez, seus olhos esquadrinharam a cidade lá embaixo, contemplaram a lua, pensativos. Koiko esperava, paciente. Seu quimono era do melhor xantungue, com outro escarlate por baixo, os cabelos soltos, informalmente, caindo até a cintura. O quimono de Yoshi era comum, de seda, mas comum, as espadas também nada tinham de extraordinárias, embora fossem bastante afiadas.



— Em que está pensando, Sire? — perguntou ela, calculando que era tempo de dissipar a melancolia de Yoshi.



Apesar de estarem a sós, Koiko manteve a voz baixa, sabendo que nenhum luugar dentro das muralhas do castelo era realmente seguro.



— Quioto — respondeu ele, também em voz baixa.



— Vai acompanhar o xógum Nobusada?



Yoshi sacudiu a cabeça, embora já tivesse decidido que iria a Quioto, antes da comitiva formal — o embuste habitual.





De alguma forma, devo conter esse jovem tolo, e me tornar o único canal de comunicação entre o imperador e o xogunato, ele estivera pensando, a mente assediada pelas dificuldades com que se defrontava: a loucura daquela visita oficial, Anjo, cujo controle do conselho impusera a aprovação, Anjo, com seu ódio e conspiração, a armadilha em que me encontro aqui no castelo, a multidão de inimigos por toda parte, entre os quais se destacam Sanjiro de Satsuma, Hiro de Tosa e Ogama de Choshu, que agora domina os portões, que são nosso direito hereditário. E além de tudo isso, esperando para atacar, como lobos salivando, ainda há os gai-jin.



Era preciso dar um jeito neles, em caráter permanente. O garoto Nobusada e a princesa devem ser neutralizados, em caráter permanente.





A solução permanente para os gai-jin é óbvia: por qualquer meio que pudermos conceber, quaisquer que sejam os sacrifícios, devemos nos tornar mais ricos do que eles e mais bem armados. Esta deve ser a política nacional secreta, agora e para sempre. Como conseguir isso? Ainda não sei. Mas, como uma questão de polícia, devemos lisonjeá-los para que se tornem descuidados, mantê-los em desequilíbrio, fazer com que suas tolas atitudes se voltem contra eles próprios... e usar nossas habilidades superiores para isolá-los.



Nobusada? Também é claro o que se deve fazer. Mas ele não é a verdadeira ameaça. É ela. Não preciso me preocupar com ele, mas sim com ela, a princesa Yazu, que é o verdadeiro poder por trás de Nobusada, e também na frente.





A súbita imagem mental de Yazu com um pênis, tendo Nobusada como receptor, fê-lo sorrir. Daria uma maravilhosa shunga, pensou ele, divertido. Shunga era a xilogravura erótica, colorida, tão popular e apreciada entre os mercadores e lojistas de Iedo, que fora proscrita pelo xogunato, há mais de um século, como licenciosa demais para eles, as classes inferiores, e que podia, com a maior facilidade, ser usada como sátira contra seus superiores. Na hierarquia imutável do Japão, instituída pelo tairo, o ditador Nakamura, e depois tornada permanente pelo xógum Toranaga, em primeiro vinham os samurais, em segundo os camponeses, em terceiro os artesãos de todos os tipos, e por último, desprezados pelos outros, os mercadores, “sanguessugas de todos os outros trabalhadores”, como dizia o legado. Desprezados porque todos os outros precisavam de suas habilidades e riqueza... acima de tudo de sua riqueza. Em particular os samurais. Por isso, as regras, certas regras, podiam ser ignoradas. Assim, em Iedo, Osaca e Nagasáqui, onde viviam os mercadores mais ricos, a shunga, embora oficialmente proibida, era esculpida e pintada, produzida com a maior satisfação pelos melhores artistas, reproduzida pelos melhores artesãos. Em cada época, artistas disputavam entre si por fama e fortuna, vendendo gravuras aos milhares.



Exóticas, explícitas, mas sempre com genitálias enormes, fora de todas as proporções, num contraste hilariante, as melhores em detalhes perfeitos, bastante possessivos. Também muito apreciados eram os retratos ukiyo. Cresce o constante alvo de intrigas, escândalos e licenciosidade — a lei não omitia a existência de atrizes, e por isso homens especialmente treinados, nãgatta, representavam os papéis femininos — e ainda, acima de tudo, das mais famosas cortesãs.



— Eu gostaria que alguém a pintasse — comentou Yoshi.— É uma pena que Hiroshige e Hokusai estejam mortos.



Koiko soltou uma risada.



— Como eu deveria posar, Sire?



— Não na cama — respondeu ele, rindo também, o que não era comum, deixando-a satisfeita pela vitória. — Apenas andando pela rua, com uma sombrinha verde e rosa, usando seu quimono verde e rosa com a carpa dourada.



— Em vez de uma rua, Sire, não poderia ser em um jardim, ao crepúsculo, pegando pirilampos?



— Ah, muito melhor!



Yoshi sorriu, recordando os raros dias de sua juventude, nas tardes de verão, em que era liberado dos estudos. Nessas ocasiões, saía com irmãos e irmãs, além de amigos, pelos campos, em busca de pirilampos. Os insetos eram apanhados com redes, postos em pequenas gaiolas, e ficavam observando o milagre das luzes se apagando e acendendo, enquanto compunham poemas, riam e brincavam, jovens, sem maiores responsabilidades.



— Como me sinto com você agora — murmurou ele.



— Sire?



— Você me tira do sério, Koiko. Tudo em você.



Como resposta, ela tocou em seu braço, dizendo nada e tudo ao mesmo tempo, feliz com o elogio, toda a sua mente concentrada em Yoshi, querendo ler seus pensamentos e necessidades, querendo ser perfeita para ele.





Mas esse jogo é cansativo, pensou Koiko, mais uma vez. Este protetor é muito complexo, muito perceptivo, muito imprevisível, muito solene e muito difícil de entreter. Não posso deixar de especular por quanto tempo ele me manterá. Começo a detestar o castelo, odiar o confinamento, os testes incessantes, continuar longe de casa, da conversa e riso alegre das outras, Raio de Luar, Fonte da Primavera, Pétala, e acima de tudo de minha querida mama-san, Meikin.



Por outro lado, porém, eu me ufano de estar no centro do mundo, adoro o koku por dia que venho ganhando, exulto por ser quem eu sou, servidora do mais nobre rei e que no fundo é apenas outro homem e não passa, como todos os homens, de um menino rebelde fingindo ser complicado, e que pode ser controlado por mesurras, como sempre, e que pode, se você for esperta, decidir fazer apenas o que você já decidiu que ele pode fazer... independente do que acredite. A risada de Koiko foi vibrante.



— O que foi?



— Deixa-me alegre, Sire, cheia de vida. Terei de chamá-lo de Lorde Doador de Felicidade!



Ele sentiu uma profunda satisfação.



— É assim também na cama?



— Também na cama.



De braços dados, começaram a deixar o luar.



— Veja ali! — exclamou Yoshi subitamente.



Lá embaixo, uma das mansões palacianas pegara fogo. As chamas se projetaram para cima, cada vez mais, acompanhadas por nuvens de fumaça. Agora a distância, podiam ouvir os sinos de incêndio e avistaram pessoas como formigas se agrupando ao redor, e logo filas de outras formigas se formaram entre os tanques de água e a mansão em chamas. O fogo é nosso maior risco, não a mulher, escrevera o xógum Toranaga em seu legado, com raro humor. Contra o fogo podemos estar preparados, nunca contra a mulher. Todos os homens e mulheres em idade casadoura devem casar. Todas as habitações terão tanques de água de fácil acesso.



— Nunca vão conseguir apagá-lo, não é mesmo, Sire?



— Não — respondeu Yoshi, os lábios comprimidos. — Suponho que algum tolo derrubou um lampião ou uma vela.



— Tem razão, Sire, um tolo desajeitado — disse Koiko no mesmo instante, procurando acalmá-lo, sentindo nele uma ira inesperada... sem entender por quê. — Fico contente por saber que está no comando das precauções contra o fogo no castelo e, assim, podemos dormir em segurança. Quem quer que seja o responsável, deve ser repreendido com severidade. Eu me pergunto de quem é aquele palácio.



— É a residência de Tajima.



— Ah, Sire, continua a me espantar! — exclamou Koiko, com uma comovente admiração. — É uma maravilha que seja capaz de distinguir um palácio de outro, entre centenas, tão depressa, e de tão longe!





Ela fez uma reverência para esconder o rosto, sabendo que era o de Watasa, e que agora o daimio Utani devia estar morto, o ataque fora bem-sucedido.



— É mesmo um homem maravilhoso.



— Não, Koiko-chan, você é que é maravilhosa.



Yoshi sorriu para aquela mulher, tão meiga e tão pequena, e ao mesmo tempo tão observadora e perigosa.





Três dias antes, seu novo espião, Misamoto, sempre ansioso em provar seu valor, comunicara os rumores que circulavam nos alojamentos sobre o encontro amoroso entre Utani e o rapaz bonito. Ele ordenara que Misamoto deixasse que o segredo fosse ouvido pela criada de Koiko, que o transmitiria, com toda certeza, à sua patroa ou à mama-san de ambas, talvez mesmo às duas, se outros rumores eram procedentes: os de que essa mesma mama-san, Meikin, era uma fervorosa partidária de Sonno-joi, e permitia, clandestinamente, que sua casa fosse ponto de encontro e refúgio para os shishi. A notícia chegaria depressa ao conhecimento dos shishi, que reagiriam no mesmo instante a uma oportunidade tão espetacular para um grande golpe. Há quase dois anos que os espiões de Yoshi mantinham Meikin e sua casa sob vigilância, por esse motivo, e por causa da crescente importância de Koiko.



Mas nunca surgira qualquer vestígio de prova para confirmar a teoria e condená-las.



Agora, no entanto, pensou Yoshi, observando as chamas, Utani deve estar morto, se o palácio foi incendiado, e tenho uma prova concreta: um sussurro semeado numa criada gerou seu fruto maligno. Utani era — é — um grande golpe para elas. Como eu também seria, ainda maior. Um pequeno tremor percorreu seu corpo.



— O fogo me assusta — murmurou Koiko, interpretando errado o estremecimento, querendo resguardá-lo.



— Vamos embora, deixando-os com seu karma.





De braços dados, eles se afastaram. Yoshi tinha dificuldade para disfarçar seu excitamento. Eu me pergunto qual é o seu karma, Koiko. A sua criada lhe contou e você mandou que dissesse à mama-san; ambas são parte da corrente?





Talvez sim, talvez não. Não percebi qualquer mudança em você quando eu disse Tajima, em vez de Watasa, e a observava com extrema atenção. Tenho minhas dúvidas. Claro que você é suspeita, sempre foi, caso contrário não a teria escolhido; afinal, isso não acrescenta mais tempero ao meu leito? Sem dúvida que sim, e você é tudo que sua reputação prometia. Estou mais do que satisfeito, é verdade, e por isso esperarei mais um pouco. Mas agora é fácil atraí-la para uma armadilha, ainda mais fácil arrancar a verdade de sua criada, dessa mama-san não muito esperta e de você mesma, minha bela! Fácil demais, quando eu fechar a armadilha.





Será uma decisão difícil, porque agora, graças a Utani, tenho uma linha direta e secreta com os shishi, posso usá-la para desmascará-los, destruí-los, ou então lançá-los contra os meus inimigos, a meu capricho. Por que não?



Tentador!



Nobusada? Nobusada e “seu” princesa! Muito tentador! Yoshi começou a rir.



— Sinto-me contente por vê-lo tão feliz esta noite, Sire.











A princesa Yazu estava em lágrimas. Por quase duas horas usara todos os recursos sobre os quais já lera ou vira em livros eróticos para excitá-lo; embora conseguisse torná-lo forte, ele lhe falhara antes que pudesse alcançar as nuvens e a chuva. Depois, como sempre, Nobusada desatara a chorar, arengando que a culpa era dela, num paroxismo de tosse nervosa. Também, como sempre, a tempestade passara. Depressa, ele suplicou perdão, aninhou-se para beijar seus seios, e acabou adormecendo, sugando um seio, enroscado em seu colo.



— Não é justo — balbuciou ela, exausta, incapaz de dormir.



Preciso ter um filho, ou ele pode se considerar morto, e eu também, ou no Mínimo tão envergonhada que terei de raspar a cabeça e me tornar uma monja budista..., oh ko...



Nem mesmo suas damas puderam ajudá-la.



— São todas experientes, a maioria casada, deve haver algum meio de converter meu lorde num homem — gritara ela, depois de semanas de tentativas deixando-as todas tão consternadas que perderam o controle. — Descubram! É dever de vocês descobrir!



Ao longo dos meses, sua corte consultara herbanários, acupuntores, doutores até mesmo adivinhos, mas tudo em vão. Naquela manhã, ela mandara chamar sua matrona principal.



— Tem de haver um meio! O que aconselha?



— Só tem dezesseis anos, honrada princesa — dissera a matrona, de joelhos — e seu lorde também tem dezesseis...



— Mas todas concebem com essa idade, até antes, ou quase todas. Qual é o problema com ele... ou comigo?



— Nada com a princesa, já lhe dissemos muitas vezes. Os doutores nos asseguram que não há nada de er...





— O que me diz do doutor gai-jin, o gigante de que ouvi falar? Uma das criadas me contou que corre o rumor de que ele faz milagres, cura todos os tipos de doenças. Talvez possa curar meu lorde.





— Oh, alteza, sinto muito — balbuciara a mulher, consternada —, mas é inconcebível que qualquer dos dois consulte um gai-jin. Por favor, tenha paciência. Cheng-sin, o maravilhoso adivinho, nos disse que a paciência vai com certeza...



— Podemos fazer tudo em segredo, sua tola! Paciência? Há meses que venho esperando! Meses de paciência e meu lorde ainda não teve o menor vislumbre de que vai me dar um herdeiro! — Antes de poder se controlar, ela esbofeteara a mulher. — Dez meses de paciência e maus conselhos são demais, sua miserável! Vá embora! VÁ EMBORA PARA SEMPRE!





Durante todo o dia, ela planejara para aquela noite. Pratos especiais que ele apreciava foram preparados, temperados com ginsengue. Saquê especial, com ginsengue e pó de chifre de rinoceronte. Perfumes especiais, afrodisíacos. Preces especiais ao Buda. Súplicas especiais a Ameratsu, a deusa do sol, avó do deus Ninji, que descera do céu para governar o Japão e fora o bisavô do primeiro imperador mortal, Jimmu-Tennu, fundador da dinastia imperial, há vinte e cinco séculos... portanto, sua ancestral direta.



Mas tudo falhara.



Agora era a calada da noite e ela chorava em silêncio, deitada, o marido adormecido ao lado, não muito feliz no sono, sacudido por uma tosse vez em quando, braços e pernas tremendo, mas com um rosto que não era desagradável. Pobre e tolo menino, pensou ela, angustiada, é seu karma morrer sem herdeiro, como tantos de sua linhagem? Oh ko, oh ko, oh ko! Por que me permiti ser persuadida a este desastre, longe dos braços de meu amado príncipe.



Quatro anos atrás, quando tinha doze anos, e com a deliciada aprovação da mãe, a última e a predileta consorte de seu pai, o imperador Ninko, que morreu no ano de seu nascimento, e com a aquiescência também deliciada e necessária do Imperador Komei, seu meio-irmão muito mais velho, que assumira o trono imperial, ela se tornara noiva, na maior felicidade, de um companheiro de infância, o príncipe Sugawara.





Fora o ano em que o Bakufu formalmente assinara os tratados que abriam Iocoama e Nagasáqui, contra os desejos do imperador, da maioria da corte, e os conselhos veementes de quase todos os daimios. Fora o ano em que sonno-joi se tornara um grito de batalha. E o mesmo ano em que o então tairo, Li, propusera ao príncipe conselheiro que a princesa Yazu casasse com o xógum Nobusada.



— Sinto muito — dissera o conselheiro —, mas é impossível.



— Não só é possível como também muito necessário para ligar o xogunato à dinastia imperial e proporcionar mais paz e tranquilidade à terra — insistia Li. — Há muitos precedentes históricos de Toranagas concordando em casar com imperiais.



— Sinto muito. — O conselheiro era frágil, vestido e penteado de forma elaborada, os dentes escurecidos. — Como sabe muito bem, sua alteza imperial já está noiva, para casar em breve, assim que alcançar a puberdade. E como também sabe muito bem, o xógum Nobusada já está comprometido com a filha de um nobre de Quioto.



— Lamento, mas os noivados de pessoas tão ilustres constituem uma questão de política de Estado, sob o controle do xogunato, e sempre tem sido assim. — Li era baixo, corpulento e inflexível.— O noivado do xógum Nobusada, a seu próprio pedido, foi cancelado.



— O que é lamentável, pois ouvi dizer que seria uma boa união.



— O xógum Nobusada e a princesa Yazu têm a mesma idade, doze anos. Por favor, comunique ao imperador que o tairo deseja informá-lo de que o xógum se sentirá honrado em aceitá-la como esposa. Podem casar quando ela tiver quatorze ou quinze anos.





— Consultarei o imperador, mas receio que seu pedido não será possível. Espero que o filho do céu seja orientado pelo céu numa decisão tão importante. Os gai-jin se encontram em nossos portões, o xogunato e a dinastia devem ser fortalecidos.





— A dinastia imperial não precisa ser fortalecida. Quanto ao Bakufu, a obediência aos desejos do imperador com certeza melhoraria a paz.



Li protestara em tom áspero:



— Os tratados tinham de ser assinados. As esquadras e as armas dos bárbaros em nos humilhar, independente do que digamos em público! Estamos indefesos. Fomos obrigados a assinar!





— Isso é problema e culpa do Bakufu e do xogunato... o imperador Komei desaprovou os tratados e não queria que fossem assinados.



— A política externa e qualquer política temporal, como o casamento, são uma atribuição exclusiva do xogunato. O imperador... — escolhera suas palavras com o maior cuidado. — ...é preeminente em todas as outras questões.



— “Outras questões” ? Até poucos séculos atrás, o imperador reinava com era o costume por milênios.



— Sinto muito, mas não vivemos há poucos séculos atrás.





Quando a proposta de Li, considerada por todos que se opunham ao Bakufu como um insulto à dinastia, se tornara conhecida, houve um clamor geral. Poucas semanas depois, ele fora assassinado pelos shishi, por sua arrogância, e o assunto caíra no esquecimento.



Até dois anos mais tarde, quando ela completara quatorze anos.



Embora ainda não fosse uma mulher feita, a princesa imperial Yazu já era uma poetisa consumada, sabia ler e escrever o chinês clássico, conhecia todos os rituais da corte necessários ao seu futuro e continuava apaixonada pelo príncipe e vice-versa.



Anjo, precisando reforçar o prestígio do xogunato, cada vez mais sob ameaça, procurara o príncipe conselheiro, que repetira o que já dissera antes. Anjo também repetira o que Li já dissera, mas acrescentara, para espanto de seu oponente:



— Agradeço por sua opinião, mas o chanceler imperial Wakura não concorda com essa posição.



Wakura, na casa dos quarenta anos, tinha muita influência na corte, embora não fosse da nobreza, que, desde o início, assumira a liderança do movimento xenofóbico entre os nobres de classe intermediária que se opunham aos tratados. Como chanceler, era um dos poucos que tinham acesso direto ao imperador. Dias depois, Wakura solicitara uma entrevista com a princesa.



— Fico satisfeito em lhe comunicar que o filho do céu pede que concorde em anular seu noivado com o príncipe Sugawara, e em vez disso case com o xógum Nobusada.



A princesa Yazu quase desmaiara. Dentro da corte, um pedido imperial era uma ordem.



— Deve haver algum equívoco! O filho do céu opôs-se a essa sugestão arrogante, por motivos óbvios, há dois anos. Você também se opôs, e o mesmo aconteceu com todos... Não posso acreditar que a divindade me peça agora uma coisa tão horrível!



— Não é horrível e está sendo pedida.



— Mesmo assim, eu recuso... recuso terminantemente!



— Sinto muito, mas não pode recusar. Permita-me explicar...



— Não, não permito! Recuso, recuso, recuso!



No dia seguinte, outra entrevista solicitada e recusada; depois outra e mais outra. A princesa se mantivera inflexível.



— Não!



— Sinto muito, alteza — dissera-lhe sua matrona principal, desnorteada, mas o chanceler imperial solicita de novo um momento para explicar as razões do pedido.



— Não falarei com ele! Diga-lhe que quero conversar com meu irmão.



— Sinto muito, alteza, mas é meu dever lembrá-la de que o filho do céu deixou de ter amigos e parentes quando ascendeu ao trono.



— Eu... claro, claro. Por favor, desculpe-me. Sei disso. Estou cansadademais, o que me levou a falar assim.



Mesmo dentro da corte, só a esposa do imperador, as consortes, mãe, filhos, irmãos e irmãs, mais dois ou três conselheiros tinham permissão para fitá-lo no rosto sem permissão. Afora esses poucos íntimos, era proibido. ELE era divino.



Como todos os imperadores antes, a partir do momento em que completara os rituais que uniam misticamente seu espírito ao do imperador recém-falecido, seu pai, como este também fizera, e todos os antepassados, numa linhagem ininterrupta até Jimmu-Tennu, Komei deixara de ser mortal e se tornara divindade, o guardião dos símbolos sagrados — o orbe, a espada e o espelho —, o filho do céu.



— Por favor, desculpe — dissera Yazu, humilde, consternada por seu sacrilégio — Lamento muito. Por favor, peça ao lorde chanceler que solicite ao filho do céu que me conceda um momento do seu tempo.



Agora, através das lágrimas, Yazu recordou como, muitos dias depois, prostrara-se de joelhos diante do imperador e da onipresente multidão de cortesãos, todos de cabeça baixa. Mal o reconhecera em seus trajes formais... e fora a primeira vez em que o encontrara há meses. Suplicara e implorara, numa litania chorosa, usando a indispensável linguagem da corte, que mal era entendida pelos forasteiros, até se sentir exausta.



— Alteza imperial, não quero sair de casa. Não quero ir para aquele lugar horrível chamado Iedo, no outro lado do mundo. Peço permissão para dizer que somos do mesmo sangue, não belipotentados arrivistas de Iedo...





Também sentira vontade de gritar: Não descendemos de camponeses, que não sabem falar direito, não se vestem direito, não comem direito, não se comportam direito, não são capazes de ler e escrever direito, e fedem a daikon... mas não ousara. Em vez disso, balbuciara:



— Suplico que me deixe ficar.



— Primeiro, escute por favor, com toda atenção e calma, como convém a uma princesa imperial, o que o lorde chanceler Wakura tem a dizer.



— Obedecerei, alteza imperial.



— Segundo, não permitirei que isso seja feito contra a sua vontade. Terceiro, volte no décimo dia e tornaremos a conversar. Vá agora, Yazu-chan.



Fora a primeira vez em sua vida que o irmão a chamara pelo diminutivo. E, assim, ela escutara Wakura.



— As razões são complicadas, princesa.



— Estou acostumada a complicações, chanceler.





— Muito bem. Em troca do noivado imperial, o Bakufu concordou com a permanente expulsão de todos os gai-jin e em cancelar os tratados.



Mas Nori Anjo disse que isso é impossível!



— É verdade. Neste momento. Mas ele também concordou em iniciar imediatamente a modernização do exército e em criar uma marinha invencível. Dentro de sete ou oito anos, talvez dez, ele promete que seremos bastante fortes para impor nossa vontade.



— Ou em vinte, cinqüenta ou cem anos! Os xóguns Toranagas são mentirosos históricos e não merecem a menor confiança. Há séculos que mantêm o imperador confinado, usurparam sua herança. Não se pode confiar neles.



— Pois agora o imperador está persuadido a confiar. A verdade, princesa, é que não dispomos de poder temporal sobre eles.



— Neste caso, eu seria uma tola se me entregasse como refém.



— Sinto muito, mas eu ia acrescentar que seu casamento levaria a uma solução dos problemas entre o imperador e o xogunato, que é essencial para a tranquilidade do Estado. O xogunato passará a escutar o conselho imperia! E obedecerá aos desejos imperiais.



— Se eles se tornassem filiais. Mas como meu casamento faria com que isso acontecesse?



— Por seu intermédio, a corte poderia interferir e até mesmo controlar esse jovem xógum e seu governo.



O interesse de Yazu fora atiçado.



— Controlar? Por conta do imperador?





— Isso mesmo. Como poderia esse menino... comparado com sua alteza, ele não passa de uma criança... como poderia esse menino guardar qualquer segredo de sua alteza? Seria impossível. A esperança do filho do céu é que sua irmã se torne sua intermediária. Como esposa do xógum, saberia de tudo, e como é uma pessoa extraordinária, muito em breve teria em mãos todas as meadas do poder do Bakufu, através desse xógum. Desde o terceiro xógum Toranaga, não houve mais nenhum forte. Não teria perfeitas condições de exercer o verdadeiro poder?



A princesa pensara a respeito por um longo momento.



— Anjo e o xogunato não são tolos. Já devem ter deduzido isso.



— Eles não a conhecem, alteza. Acreditam que é apenas um junco que pode ser torcido e moldado, ao capricho deles, assim como o menino Nobusada. Por que outro motivo o escolheriam? Querem o casamento, sem dúvida, para reforçar seu prestígio, para aproximar a corte e o xogunato. E acham que uma jovem como sua alteza seria um fantoche dócil para subverter a vontade imperial.



— Sinto muito, mas pede demais a uma mulher. Não quero sair de casa nem renunciar a meu príncipe.



— O imperador pede que faça isso.



— Mais uma vez, o xogunato obriga-o a negociar, quando deveria apenas obedecer — comentara ela, amargurada.



— O imperador pede que o ajude a fazer com que eles obedeçam.



— Perdoe-me, por favor, mas não posso.





— Há dois anos, no ano terrível — continuara Wakura, sem perder a calma. — no ano da fome, o ano em que Li assinou os tratados, alguns estudiosos do Bakufu vasculhavam a história, à procura de precedentes de imperadores depostos.



Yazu ficara aturdida.



— Eles nunca ousariam... não isso!



— O xogunato é o xogunato, todo-poderoso, neste momento. Por que não ia considerar a remoção de um obstáculo... qualquer obstáculo? Afinal, ele não chegou a considerar, seu wa destruído, em abdicar a favor do filho, o príncipe Sachi?



— Rumores! — protestara ela. — Não podem ser verdadeiros!



— Creio que eram, princesa imperial — dissera o chanceler, muito sério. — Mas agora, ELE pede, por favor, ajude-o.



Desesperada, Yazu compreendera que, independente do que dissesse, tudo sempre voltaria ao “pedido”. Não havia escapatória. Ao final, teria de se submeter ou se tornar uma monja. Ainda abrira a boca para a recusa final, só que jamais ocorrera. Alguma coisa parecera aflorar em sua mente, e começara a pensar, pela primeira vez, por um processo diferente, não mais uma criança, agora uma adulta, e fora com esse espírito que dera sua resposta:



— Concordarei, desde que possa continuar a viver em Iedo, no palácio imperial...



Aquela conversa levara a esta noite de silêncio, rompido apenas por seus soluços.



Yazu sentou na cama, limpou as lágrimas. Mentirosos, pensou ela, amargurada, fizeram-me promessas, mas até nisso trapacearam. Um ligeiro som de Nobusada, que se virou, dormindo. À luz do lampião aceso, sem o que ele não podia dormir, parecia mais infantil do que nunca, mais como um irmão caçula do que como um marido... jovem, muito jovem. Gentil, atencioso, sempre a escutando, aceitando seu conselho, sem guardar segredos, tudo o que Wakura previra. Mas insatisfatório.



Meu querido Sugawara, agora impossível... nesta vida.



Um tremor a percorreu. A janela estava aberta. Yazu debruçou-se para fora, mal notando a mansão fumegando lá embaixo, com outros incêndios surgindo aqui e ali, pela cidade, o luar no mar além... cheiro de queimado no vento, o amanhecer clareando o horizonte a leste.



Sua determinação secreta não mudara desde aquele dia da conversa com Wakura: passar esta vida arruinando o xogunato que arruinara sua vida, despojá-lo do poder por quaisquer meios e devolver esse poder ao filho do céu.



Vou destruí-los como eles me destruíram, pensou ela, muito sensata agora para sequer sussurrar esse objetivo para um poço. Supliquei para não vir para cá, supliquei para não casar com este menino. Embora goste dele, detesto este lugar horrível, detesto estas pessoas horríveis.



Quero voltar para casa! E voltarei. Só isso fará com que a vida se torne suportável. Realizaremos a visita, não importa o que Yoshi faça ou diga, não importa o que qualquer outro faça ou diga. Voltaremos para casa... e ficaremos lá!














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