— ...pelo amor de Deus, tome cuidado...
Nenhum machado poderá fazer com que esse desgraçado nos largue, pensou Jamie, desesperado, abraçando um pontalete no momento em que uma onda violenta avançou sobre a amurada em sua direção, jogando-o contra o caixão e depois puxando-o de volta para o embornal, sufocado, meio afogado. Depois que a onda passou, ele ficou atônito ao descobrir que ainda continuava a bordo. Não perca tempo, o cérebro lhe bradou de novo, a próxima ou a seguinte pode arrastá-lo e afogá-lo.
Por isso, ele deixou seu lugar seguro, adiantou-se, até ficar por cima do caixão odiando-o, detestando estar ali, ter se permitido participar daquela estupidez, arriscando a vida de Angelique e dos outros por nada, mas acima de tudo odiando o seu próprio medo. A onda seguinte puxou-o com força, mas ele sobreviveu, baixou o machado com toda força, escorregou, agarrou-se no lado do telhado da cabine, enquanto outra onda o alcançava, arremessava-o contra o lado do caixão. Ofegante, Jamie fez um tremendo esforço para se levantar, golpeou outra vez, acertando agora o próprio caixão, odiando a coisa maligna em que se transformara.
A lâmina cortou um dos cabos, mas não teve qualquer efeito nos aramados, uma massa emaranhada, e foi se cravar na tampa coberta pelas bandeiras ou no fundo — ele não sabia qual dos dois, nem se importava — abrindo uma rachadura. Mas, ainda assim, o caixão continuou pendurado. Nem mesmo usando toda a sua força ele conseguiu deslocar o caixão, empurrou-o, chutou-o, praguejando, a maior parte pendendo para fora, entrando na água, puxando-os.
Outro golpe, mais outro e mais outro, agora usando a cabeça do machado, como se fosse um malho, para arrebentar o caixão em pedaços, sempre praguejando. A madeira rachou, mas resistiu, depois um golpe violento esmagou o lado e o topo, ele escorregou, estatelando-se no chão. O machado escapuliu de seu controle e o dilúvio seguinte jogou-o contra o caixão, depois tornou a puxá-lo. Passada a espuma, ele conseguiu respirar, forçou os olhos a se abrirem. Ainda a mesma coisa. Ainda firme. Mais uma vez, ele se adiantou, mas agora perdera as forças, as mãos mal davam para se segurar.
E foi então que ele viu um cabo quase rompido. O emaranhado de cabos rangia sob a tensão, contorceu-se, ficou um pouco desembaraçado, mais um pouco, depois o caixão deslizou, a extremidade bateu no oceano, começou a se arrebentar. Por um instante, ainda manteve a extremidade na superfície, depois atundou, deixando espuma e bolhas em sua esteira. Um pedaço de pano, que era a bandeira da Struan, aflorou à superfície. O vagalhão seguinte varreu o mar, subiu a bordo, puxou suas pernas, arrastou-o contra a base do gurupés, depois sugou-o de volta, ao longo do convés, o contramestre lutando para recuperar o controle do cúter
Atônito por estar vivo, Jamie se descobriu ofegando na popa. No limite de suas forças, cambaleou até a porta da cabine e caiu lá dentro.
Skye continuava em seu canto, vomitando, semi-inconsciente, Hoag estendido de barriga para baixo, inconsciente, Angelique enroscada no banco em que a deixara, gemendo e soluçando, os olhos fechados. Estremecendo, Jamie arriou ao seu lado, o peito arfando, sem pensar, sabendo apenas que ainda se encontrava vivo e que eles ainda estavam seguros.
Depois de algum tempo, seus olhos clarearam. Avistou terra a cerca de um quilômetro e meio de distância, notou que a chuva diminuíra, tornar se acalmara um pouco. Agora, apenas uma ou outra onda passava por cima da amurada. Num armário por baixo do banco, ele encontrou cobertores, envolveu-se com um, passou o outro em torno de Angelique.
— Estou com muito frio, Jamie... onde você esteve? — balbuciou ela, como uma criança assustada, apenas meio consciente. — Estou com muito frio, solitária, me sentindo horrível, mas contente pelo que fizemos, muito contente, oh, Jamie sinto muito frio...
Quando encostaram no cais da Struan, havia umas poucas estrelas enevoadas cintilando. Ainda era cedo, a noite mal começava a cair. O céu limpara e prometia um bom dia para amanhã. Os navios mercantes e a esquadra continuavam ancorados, sãos e salvos, tranqüilos, as luzes de ancoragem acesas. Havia uma atividade intensa apenas no navio de correspondência, com muitos lampiões a óleo acesos, como vaga-lumes.
Com a maior agilidade, o foguista pulou para o cais com um cabo, amarrou o cúter e depois ajudou os outros a desembarcarem. Angelique foi a primeira, depois Skye e Hoag. Jamie subiu os degraus sem dificuldade, ainda envolto pelo cobertor, sentindo frio, mas não muito. Skye e Hoag estavam brancos, estômago e cabeça ainda doloridos, as pernas fracas. Mas Angelique parecia muito melhor agora. Sua dor de cabeça desaparecera. Não sentira qualquer enjoo. Mais uma vez, chorara tudo o que tinha para chorar. Na última meia hora, deixara o ar abafado e fétido da cabine e fora se juntar a Jamie na popa. Ali, virara o rosto para o vento e deixara que desanuviasse seu cérebro.
Por trás dela, Hoag tossiu, cuspiu o catarro na água, se chocando com os pilares do cais.
— Desculpem — murmurou ele, precisando desesperadamente de um trago. Notou a confusão na proa, algumas tábuas quebradas, o gurupés desaparecido, as adriças também, a maior parte da amurada. — O que aconteceu?
— Alguns detritos foram lançados para bordo, como se fossem um caixote respondeu Jamie. — O que me deixou apavorado por um momento.
— Tive a impressão de ouvir um estrondo... acho... acho que vou dar um pulo até o clube... antes de me deitar.
— Vou com você — declarou Skye, precisando de mais do que um drinque para assentar o estômago. — Jamie? Sra. Angelique?
Ela sacudiu a cabeça, e Jamie disse:
— Podem ir. Não há mais nada a fazer esta noite... e não se esqueçam do plano.
Haviam combinado que nada seria dito, e que se alguém perguntasse se limitariam a informar que haviam realizado um sepultamento simbólico no mar, só isso.
Por sorte, nenhum dos outros vira o caixão voltar ao cúter, nem a luta de Jamie para soltá-lo... exceto o contramestre. Assim que pudera, ele subira à casa do leme e dissera:
— Contramestre, sobre o caixão, os outros lá embaixo nada viram. Assim na sua cabeça, você também não viu, e nada dirá a respeito. É um segredo nosso.
— Como quiser, senhor. — O contramestre lhe entregara o frasco. — Obrigado. Se não fosse por sua ação, teríamos afundado, todos nós... junto com ele.
Quase não restava mais nada no frasco, mas ajudara.
— Pensei que nunca conseguiria. Mas vamos esquecer. Um juramento seu. hem?
— Como quiser, senhor. Mas antes de esquecermos, quando o caixão afundou e se rompeu, ele apareceu. Pensei que estava tentando voltar para bordo.
— Deus do céu! — balbuciara Jamie. — Você está imaginando coisas, não vi nada... é apenas sua imaginação.
— Não é, não, senhor. Eu estava mais alto e podia ver melhor, certo? E vi o patife, pedindo seu perdão, vi quando ele voltou à superfície, se debatendo, antes de afundar.
— Está imaginando coisas, pelo amor de Deus! Que coisa horrível para dizer!
— É a verdade de Deus, senhor! Claro que foi apenas por um instante, e o mar espumante o envolvia, mas vi muito bem!
O contramestre cuspira na direção do vento, batera na madeira, e fizera o sinal contra o mau-olhado e o diabo, puxara o lóbulo da orelha para reforçar, antes de acrescentar:
— A verdade de Deus, senhor, e que um raio caia na minha cabeça se estiver mentindo. Fez meus colhões pularem até o reino e voltarem. Juro que ele aflorou à superfície, antes de Davy Jones, o espírito do mar, puxá-lo para o fundo, completamente nu.
— Não diga bobagem! E pare de inventar coisas! — Jamie estremecera, batera também na madeira, por precaução. — Imaginou tudo isso, embora eu seja capaz de jurar por Deus que o maldito caixão parecia ter vontade própria... e maligna ainda por cima!
— O que estou querendo dizer, senhor, é que estava possuído pelo próprio diabo. — O contramestre tornara a cuspir a favor do vento, suando. — Ele se debateu para chegar à superfície, parecia diferente, os olhos abertos e tudo o mais e pensei que vinha nos buscar.
— Pelo amor de Deus, pare com isso! Malcolm jamais haveria de querer que alguma coisa ruim nos acontecesse — garantira Jamie, contrafeito. — Foi apenas sua imaginação.
— Eu estava vendo tudo de cima, senhor...
— Esqueça o que pensa que viu! Tem mais algum rum?
O contramestre tossira, inclinara-se, abrira um armário escondido, tirara outro frasco. Estava pela metade. Jamie tomara um gole grande, engasgara, tomara outro.
— Haverá dez caixas de rum para você pegar em nosso armazém, contramestre, com os meus agradecimentos. Fez um bom trabalho, assim como o foguista... quatro caixas para ele.
O contramestre agradecera, efusivo. O calor do rum no estômago de Jamie prevalecera sobre o frio. Fitara o rosto curtido, os astutos olhos azuis.
— Nunca fiquei tão apavorado em toda a minha vida. Pensei que ia morrer umas três ou quatro vezes.
— Não eu, senhor. — O contramestre sorrira. — Não com o senhor a bordo. Mas confesso que fiquei feliz quando o patife e seu caixão afundaram, nos amaldiçoando até o fundo...
Agora, apesar de são e salvo em terra, Jamie estremeceu, pensando nisso. Angelique disse:
— Você deve tirar essas roupas molhadas.
— Já estou indo — anunciou Hoag.
Angelique abraçou-o, beijou-o no rosto, fechando as narinas ao cheiro de vômito.
— Muito obrigada. Até amanhã.
Ela fez a mesma coisa com Skye. Os dois se afastaram, em passos trôpegos.
— Eles ficarão bem?
— Não têm nada que uns poucos uísques e uma noite de sono não possam curar — respondeu Jamie.
— Mas não estão em condições de discutir qualquer coisa, não é?
— Não. O que você quer discutir?
Angelique passou o braço pelo dele.
— Apenas decidir sobre amanhã.
— Podemos conversar enquanto andamos.
Despediram-se do contramestre e do foguista, ambos agradecendo de novo pelo rum. Foram andando de braços dados.
— Angelique... antes de você dizer qualquer coisa, quero que saiba que me sinto contente pelo que fizemos.
— Eu também, meu caro Jamie. Você é maravilhoso e me sinto contente e feliz por nada ter saído errado, ninguém ter se machucado. — Um tênue sorriso. — Apenas um pouco de enjoo.
— Não há com que se preocupar. E amanhã?
— Decidi não seguir no navio de correspondência... não, por favor, não diga nada, já decidi. Estou mais segura aqui. Até receber notícias de Tess formalmente.
É verdade, Jamie, estou mesmo mais segura aqui. E tenho certeza que Hoag e George concordariam que seria mais sensato, por motivos médicos. E acho que você também não deve ir.
— É meu dever contar tudo, Sra. Struan... à Sra. Tess Struan.
— Pode me chamar de Angelique. Afinal, sempre me tratou assim, e sou Sra. Struan há bem pouco tempo. — Ela suspirou, continuou a andar na direção do prédio da Struan. — É melhor eu ficar. Ela terá de declarar quais são as suas intenções e é melhor que seja por uma carta despachada para cá. Malcolm foi sepultado no mar e isso era tudo o que eu queria. Precisa mesmo ir?
— Com este vento — disse Jamie, pensando em voz alta — o Prancing Cloud pode desenvolver de quinze a dezessete nós e chegar a Hong Kong em cinco dias e ela ficará muito ocupada com uma notícia tão importante, a carga ainda mais importante.
Todos haviam concordado que em público — e agora também em particular — considerariam que o caixão continha o corpo do tai-pan.
— O navio de correspondência só conseguirá uma média de oito nós — continuou Jamie —, e assim só chegará no prazo habitual, dez dias e pouco. Quando atracar, o funeral já terá sido realizado, Tess saberá de tudo, de dezenas de pontos de vista diferentes... meu relatório está a bordo, assim como o de Sir William, e dezenas de outros, com toda certeza. Ela me dispensou ao final do mês, o novo homem chega dentro de poucos dias, e fui instruído a lhe mostrar tudo.
Havia ainda os motivos, que ele decidira não enunciar em voz alta. Deveria procurar outras hongs — como as grandes companhias eram às vezes chamadas —, em busca de um emprego. Mas o único emprego disponível, à altura de sua experiência, seria na Brock and Sons e certamente ele receberia uma oferta. Precisava também decidir sobre Maureen, e ainda tinha de pensar em Nemi. Jamie sorriu para Angelique, desolado.
— No final das contas, também não tenho nenhuma razão para ir, não é mesmo?
Ela aconchegou-se contra seu passo, indiferente aos que passavam.
— Fico contente por isso. Não vou me sentir tão sozinha se você ficar aqui.
— Jamie! — chamou Phillip Tyrer, da porta da legação britânica, pondo apressado a sobrecasaca e o chapéu, e se adiantando. — Boa noite, Angelique, Jamie. Sir William apresenta seus cumprimentos e pede que vocês dois... e os outros passageiros e tripulantes do cúter... façam a gentileza de procurá-lo amanha de manhã, antes da igreja, e antes de embarcarem no navio de correspondência. Deve zarpar às duas horas.
— Com que propósito, Phillip? — perguntou Jamie.
— Acho... acho que ele gostaria... merda! Desculpe, Angelique. É óbvio que ele deseja perguntar o que vocês estavam fazendo.
— Fazendo?
Tyrer suspirou.
— Desculpe, meu velho, mas a idéia não é minha. Estão metidos numa encrenca, apenas transmiti a mensagem, mais nada. Não se zanguem comigo. Sou apenas o mensageiro mais próximo.
Angelique e Jamie riram, a tensão se dissipando.
— Dez horas?
— Obrigado, Jamie. Deve ser tempo suficiente. — Tyrer olhou para o cúter. — Parece que vocês tiveram uma travessia difícil. O que aconteceu com a proa?
Jamie olhou para trás. Os danos eram claramente visíveis à luz do lampião no cais, e ele compreendeu que poderiam ser percebidos sem qualquer dificuldade das janelas da legação, por meio de um binóculo.
— Um caixote... ou o que parecia um caixote... foi jogado para bordo, e depois levado de volta pelas ondas. Não chegou a criar maiores problemas.
50
Domingo, 14 de dezembro:
— Não concordo, Jamie. é evidente que temos um problema. — Sir William sentava atrás de sua mesa, fitando-os, com Phillip ao lado. O clima na sala insípida era inquisitorial. — Vamos começar de novo. Como parece ser o porta-voz, vou me dirigir a você. Eu disse expressamente que não haveria funeral aqui, o corpo seria enviado para Hong Kong, e...
— E já partiu, Sir William, no Prancing Cloud — repetiu Jamie, o queixo empinado.
Discutiam há meia hora, ele e Sir William, os outros respondendo cautelosos, todos instruídos por Jamie e Skye a só falarem quando interrogados diretamente, e mesmo assim não oferecerem qualquer informação voluntária, apenas responderem ao que fosse indagado, da maneira mais simples possível: Hoag, Skye, o contramestre, o foguista, Angelique. Hoag era sem dúvida o elo mais fraco na corrente e, por duas vezes, quase revelara o motivo. Angelique usava um véu, vestido preto, pronta para ir à igreja.
— Fizemos um funeral simulado.
— Sei disso, e já perguntei, várias vezes, se era apenas simbólico, por que usar um caixão de verdade, com um cadáver de verdade, embora de um nativo, e jogá-lo pela amurada com uma cerimônia de sepultamento cristão no mar?
Jamie deu de ombros, embatucado com aquela pergunta inevitável. Naquela manhã, Skye lhe dissera:
— É melhor ignorar a questão, exibir a maior desfaçatez, manter a maior discrição, pois não há muito que ele possa fazer, a não ser cuspir fogo.
Agora, Jamie murmurou:
— O caixão estava ali e achei que seria uma boa idéia.
— Ah, quer dizer que foi tudo idéia sua?
— Foi, sim — respondeu Jamie, lançando um olhar furioso para Hoag, que já começava a abrir a boca. — Fiz a sugestão, e os outros apenas concordaram. Era o desejo do tai-pan... o desejo de Malcolm e da Sra. Struan. Não havia mal nenhum.
— Pois eu discordo. Toda a idéia é macabra, foram deliberadamente contra a minha decisão. Parece haver um espantoso colapso do pensamento racional e um desejo de todas as pessoas reunidas aqui para evitar me contar a verdade, a explicação simples, um conluio para ocultar... para ocultar o quê? Não concorda, Phillip?
Tyrer teve um sobressalto em sua cadeira.
— Hum... sim, senhor, se é o que diz.
— Por que usar um caixão de verdade, um corpo de verdade?
Hoag remexeu-se em sua cadeira, contrafeito. Todos sabiam que a qualquer momento ele perderia o controle. Angelique concluiu que o momento era agora e começou a chorar.
— Por que não nos deixa em paz? Não fizemos mal nenhum, apenas o que achávamos melhor, o que meu marido queria, o que eu queria para ele...
— Angelique, por favor, não cho...
— ...o que ele queria, e o senhor nos proibiu. A culpa é sua, Sir William. Pensei que era nosso amigo. Se fosse mesmo amigo, e se mostrasse... razoável, não teríamos todo esse problema, pois é claro que não foi nada agradável fazer uma coisa às escondidas, embora eu ache que o senhor estava errado, e...
— Sra. Struan, eu...
— ...é claro que foi horrível, nenhum de nós queria fazer aquilo, mas pelo menos fizemos de boa fé, diante de Deus, pelo menos estes amigos, amigos de verdade, ajudaram a fazer direito o que meu marido e eu... não era pedir demais...
Por um momento, ela pensou em sair correndo da sala, mas sensatamente não o fez, compreendendo que isso nada resolveria e deixaria os outros à mercê de Sir William. Por isso, continuou onde estava, desmanchando-se em soluços ainda mais desesperados, sabendo que não mentira, e dissera a verdade pura e simples, que tudo fora culpa dele.
Em segundos, todos se agruparam ao seu redor, tentando acalmá-la, todos se sentindo aflitos, exceto Skye, impressionado pela maneira brilhante como Angelique escolhera o momento certo, e Sir William, que no fundo se divertia com a situação, embora simulasse, para salvar as aparências, que se encontrava também perturbado. Ele se limitou a observar e a esperar, ainda irritado com as maquinações — quaisquer que fossem — que todos haviam concebido em conjunto. O que dera neles, quem seria o verdadeiro culpado? Não podia ter sido Jamie, não é mesmo? Fora uma tremenda estupidez o que fizeram. Uma coisa absurda. Não havia o menor sentido em arriscarem a vida daquele jeito.
As pessoas não prestam. Nem mesmo Angelique. Ah, mas que dama, que tesouro, que atriz... de onde será, em nome de Deus, que ela tira tudo isso? Como a maioria das moças dessa idade, sua instrução é mínima, e no seu caso ainda por cima a recebeu num convento, o que é muito pior. Heavenly a instruiu para o julgamento do século? Ou sou apenas um velho tolo e cético? De qualquer forma vou me sentir muito triste ao perdê-la.
O relógio na cornija da lareira bateu um quarto para a hora. Tempo de ir para a igreja, pensou ele, tempo de parar... iria ler a Bíblia durante o culto e ainda não tivera tempo de analisá-la.
— Calma, Sra. Struan, calma... — murmurou ele, como faria um pai bondoso, embora severo. — Não há necessidade de lágrimas. Todos já tivemos muito por que chorar, recentemente. Devo admitir que ainda desaprovo totalmente o que fizeram, uma coisa lamentável, mas nas circunstâncias emocionais creio que é melhor deixar as coisas como estão, pelo menos por enquanto.
Outra vez ele fingiu não notar o suspiro de alívio coletivo, nem a maneira como os soluços de Angelique se desvaneceram, e continuou:
— Agora, chegou o momento de irmos para a igreja, e depois embarcará no navio de correspondência, acompanhada por nossos desejos de bon voyage e uma vida longa. Para ser sincero, lamentaremos muito, ficaremos muito tristes, por vê-la partir de nossas praias.
— Eu... não vou embora agora, Sir William.
— Como?
Sir William e Tyrer ficaram atônitos. Entre soluços, a cabeça baixa, Angelique murmurou:
— O Dr. Hoag me aconselhou a não viajar pelo menos por mais uma semana. Hoag apressou-se em dizer:
— É isso mesmo. Por motivos médicos, não é uma boa idéia, Sir William, não é absolutamente uma boa idéia.
Naquela manhã, Skye, apoiado por Jamie, insistira que era melhor que Angelique não viajasse por algum tempo.
— O que ela precisa, doutor, é de um atestado médico, que possa ser aceito por Tess Struan. Com tanta emoção, não acha que ela não deveria viajar agora, nem tentar qualquer confrontação, enquanto não estiver mais forte?
Hoag concordara prontamente e dizia agora a Sir William:
— Como pode verificar, ela fica transtornada por qualquer coisa; dei-lhe um atestado médico, embora isso não seja necessário.
Por um momento, Sir William não sabia o que pensar. Por um lado, não a perderiam agora; por outro, havia o problema que ela já representava, e o espinho incômodo em que inevitavelmente se tornaria quando a ira de Tess Struan se abatesse sobre a sua pessoa e todos os outros, ainda em sua jurisdição.
— Acho realmente que deveria partir, madame. Pensei que era ímportante comparecer ao funeral.
— Bem que quero ir, mas... — A voz tremeu, um novo soluço sacudiu todo o corpo de Angelique. — O Dr. Hoag seguirá em meu lugar. Não me sinto em condições... é melhor...
— Mas você também vai, Jamie, não é?
— Não, senhor. Recebi ordens da Sra. Tess Struan para fazer determinadas coisas aqui.
— Que Deus abençoe minha alma! — Sem muito empenho, Sir William tentou dissuadi-la, acabou suspirando. — Muito bem, se é o Dr. Hoag quem diz, não há mais o que discutir. Afinal, ele é o médico da Struan.
Sir William levantou-se. Visivelmente aliviados, todos lhe agradeceram e começaram a se retirar.
— Espere um pouco, Dr. Hoag. Eu gostaria de lhe falar por um momento, por favor.
Ele escondeu sua satisfação por ver Jamie e Skye empalidecerem e acrescentou, incisivo, enquanto eles se afastavam:
— Bom dia, Jamie, Sr. Skye. Phillip, não precisa ficar.
A porta foi fechada. Hoag era como uma lebre diante de uma naja.
— E agora, doutor, diga-me a verdade. Como ela está?
— Está muito bem, na superfície, Sir William — respondeu Hoag, no mesmo instante. — É uma cura superficial. O que há por baixo, ninguém sabe. Pode durar dias, semanas, um ano, ou mais... e depois o pesadelo voltará. O que acontecerá então...
Ele deu de ombros.
— Vai conversar com Tess Struan?
— Assim que eu chegar.
Hoag esperou, trêmulo, receando o interrogatório, sabendo que cederia. Pensativo, Sir William levantou-se, serviu um uísque, entregou a Hoag. A bebida logo desapareceu.
— Não voltará a Iocoama por algum tempo, talvez nunca mais. Preciso saber, em termos confidenciais, de uma coisa: quais são as possibilidades médicas de que ela esteja esperando uma criança de Malcolm?
Hoag piscou, o uísque e a inesperada gentileza acalmando-o, mas também deixando-o atordoado, pois não previra aquela linha de interrogatório. Respondeu com a maior sinceridade:
— Claro que isso depende de Deus, senhor. Mas Malcolm era saudável, e ela também, duas excelentes pessoas, infelizmente marcadas pelo destino... muito triste. Eu diria que as possibilidades são grandes, pois não houve uma fantasia ociosa, o ato de amor entre os dois deve ter sido muito ardente, quase uma paixão arrebatada.
Sir William franziu o rosto.
— Ótimo. Quando se encontrar com Tess Struan... acho que a nossa Sra. Struan vai precisar de toda ajuda que puder obter. Não concorda?
— Pode ter certeza de que intercederei por ela.
Sir William balançou a cabeça, estendeu a mão para a gaveta. O envelope estava lacrado, com a indicação de Pessoal, Confidencial e Particular, a ser entregue em mãos, endereçado a Sir Stanshope, governador de Hong Kong, de Sir Wlliam Aylesbury, ministro para o Japão.
— Tenho uma missão oficial para você, secreta. Quero que entregue isto ao governador, pessoalmente, assim que chegar.
Ele escreveu no rodapé “Entregue pessoalmente pelo Dr. Hoag”. Decidira usá-lo no momento em que soubera que Jamie não viajaria no navio de correspondência e porque não havia ninguém a bordo do Prancing Cloud em quem pudesse confiar.
— Deve ser entregue pessoalmente, a mais ninguém, assim como ninguém deve saber que é um mensageiro da rainha. Entendido?
— Claro, Sir William — respondeu Hoag, orgulhoso.
Ele sabia que Hoag se tornara dócil e poderia lhe arrancar qualquer coisa que quisesse. Quem começara a maquinação, o que haviam pensado no mar, por que fizeram aquilo, o que acontecera de fato em Kanagawa. Sir William sorriu para si mesmo, desfrutando sua posição, mas motivos pessoais levaram-no a não insistir no assunto.
— Tenha boa viagem. Aguardo ansioso a oportunidade de revê-lo em Hong Kong.
— Obrigado, senhor.
Hoag se retirou, exultante por ter escapado com sua honra intacta. Jamie e Skye o aguardavam na High Street, ansiosos.
— Não houve nada, sinceramente — disse Hoag, excitado. — Ele só queria fazer perguntas médicas, particulares.
— Foi isso mesmo?
— Juro por meu coração e que um raio me caia na cabeça se estiver mentindo. Vamos depressa, pois dá tempo de tomar um trago antes da igreja. Ainda me sinto todo encharcado.
Eles se afastaram, felizes, sem notarem que Sir William os observava de sua janela. Eu me pergunto se esses canalhas continuariam tão felizes se pudessem ler minha carta para o governador, pensou ele, de cara amarrada. Ainda não se livraram da encrenca, nenhum de nós se livrou. Como se um caixão pudesse ter alguma importância com o mundo inteiro desmoronando, a Rússia à beira da guerra outra vez, a Prússia lambendo os beiços com as entranhas da Europa Central, os franceses com seu orgulho militante e exagerado, nosso império indiano e colônias asiáticas em perigo por causa de idiotas desnorteados no Parlamento; nós aguardando o iminente extermínio pelos japoneses.
Na superfície, a carta era inócua. Decifrada, dizia: Solicito urgente todos os reforços possíveis de esquadra e exército, pois espero que a colônia seja atacada a qualquer momento por legiões de samurais do Bakufu, talvez tenhamos de abandonar nossa base aqui.
A igreja católica estava iluminada por velas, o altar faiscando, a congregação escassa, e o padre Leo conduzia a litania da missa ao final, sua voz profunda de barítono melodiosa, em meio ao perfume familiar de incenso que envolvia a todos... o serviço mais curto do que o habitual, já que algumas pessoas embarcariam no navio de correspondência.
Angelique ajoelhava-se no primeiro banco, absorvida em oração, Seratard ao seu lado, André alguns bancos atrás, Vervene no fundo, com o resto do pessoal da legação, uns poucos mercadores, eurasianos portugueses, e alguns oficiais e marujos dos navios franceses de licença em terra. A maior parte dos marujos franceses assistia a outras missas, antes ou depois. Não havia padres nos navios, pois considerava-se que trazia má sorte tê-los a bordo, em qualquer navio, de qualquer bandeira.
O padre Leo inclinou-se para o altar, rezou e depois concedeu a bênção à congregação. Angelique respirou fundo, concluiu sua oração sem pressa e esperou que Seratard se levantasse.
Já fizera a confissão. Dissera no confessionário:
— Perdoe-me, padre, pois eu pequei.
— Que pecados cometeu esta semana, minha criança?
Ela percebera a impaciência maldisfarçada de saber de cada pensamento e ato que havia ocorrido, sendo aquela a primeira vez que se confessava desde o início de seus problemas.
— Esqueci de pedir perdão à Santa Mãe, certa noite, em minhas orações — dissera ela, com absoluta calma, persistindo em seu pacto, no plano e palavras que projetara. — Tive muitos pensamentos e sonhos ruins, senti medo, e esqueci que me encontrava nas mãos de Deus, e assim nada precisava temer.
— E que mais?
Um pequeno sorriso se insinuara no rosto de Angelique, ao constatar que a impaciência aumentara.
— Pequei no meu casamento, embora tenha sido legal aos olhos da gente de meu marido, de sua lei e sua Igreja. Mas não houve tempo para nós celebrarmos o casamento na verdadeira Igreja.
— Mas... mas isso, senhora, não é por si só um pecado, já que não foi responsável pelo que aconteceu, ele nos foi tirado abruptamente. Que outros pecados cometeu?
Ela mantivera as narinas fechadas ao máximo que podia, contra o cheiro de alho, vinho ordinário e roupas sujas, usando um lenço perfumado.
— Pequei por não conseguir persuadir Sir William a permitir que sepultasse meu marido conforme ele desejava e, portanto, eu desejava também.
— Isso... isso por si só não é um pecado, minha criança. O que mais?
— Pequei por não conseguir persuadir meu marido a se tomar católico antes de nos casarmos.
— Isso também não é um pecado, senhora. O que mais?
Ele começara a parecer exasperado. Como Angelique esperava. É estranho que eu não tenha mais medo desse homem e seja capaz de perceber as nuances que ele tenta esconder. Será outra dádiva de Deus?
— Cometeu... cometeu pecados da carne?
Os olhos de Angelique se contraíram, o sorriso congelara, e o desprezara ainda mais, ao mesmo tempo em que o perdoava em parte, por sua magnanimidade em abençoar o outro caixão.
— Tenho sido uma esposa correta, de acordo com os ensinamentos da Igreja.
— Sei disso, mas coabitou com ele, não sendo devi...
— Era devidamente casada de acordo com as leis do meu marido e agi de acordo com os ensinamentos da verdadeira Igreja — insistira ela, para acrescentar num tom um pouco incisivo: — E agora, padre, gostaria que me concedesse à absolvição.
Isso era contrário à prática aceita, e ela esperara, prendendo a respiração pronta para se retirar, se ele tentasse esmiuçar mais fundo contra a prática aceita.
— Como... como vai partir hoje, senhora, é necessário ter certeza, para conceder a absolvição...
— Não vou viajar no navio de correspondência, padre. Não hoje.
— Não vai? — murmurara o padre Leo, deixando que Angelique sentisse a exultação e o alívio. — Neste caso, minha criança, poderemos conversar mais, para a glória de Deus. Ah, como são maravilhosos os caminhos de Deus!
Ele concedera a absolvição, com uma penitência mínima, e Angelique deixara o confessionário para se juntar à congregação.
Gostara muito de superar esse obstáculo. Sua mente vagueava, mas estava normal. Agora podia relaxar, satisfeita consigo mesma. Conseguira tudo o que queria: Malcolm sepultado aqui, como ela desejava, Gornt lançado, Hoag a caminho, Tess neutralizada... com a ajuda de Deus.
Deus está do meu lado, tenho certeza. Ele aprova, tenho certeza. Exceto por Malcolm, ah, Malcolm, Malcolm, meu amor...
— Posso acompanhá-la até em casa, Angelique? — perguntou Seratard, interrompendo seus devaneios.
— Obrigada, monsieur — disse ela, formal —, mas não sou muito boa companhia neste momento e prefiro voltar sozinha.
— Temos muito o que conversar antes de sua partida.
— Oh... pensei que já sabia que não vou mais viajar no navio de correspondência... o Dr. Hoag proibiu, o que muito me entristece.
O sorriso de Seratard se alargou.
— Magnífico! É a melhor notícia que recebi em muitos dias! Gostaria de jantar na legação esta noite, apenas duas ou três pessoas... discretamente?
— Obrigada, mas também não. Talvez no final da semana, se eu me sentir melhor.
— Na quinta ou sexta-feira, quando achar melhor.
Seratard beijou-lhe a mão e Angelique saiu da igreja. O vento voltara a soprar. Ela sentiu-se contente pelo véu que a camuflava, pois assim não havia necessidade de se esconder por trás da fachada do rosto. As pessoas por quem passava a cumprimentavam, com tristeza, inclusive Nettlesmith.
— Lamento profundamente a sua partida, madame.
— Obrigada, Sr. Nettlesmith, mas não vou embarcar no navio de correspondência, não hoje. — Outra vez ela viu um rosto se iluminar à notícia e acrescentou, divertida: — O Dr. Hoag proibiu-me de viajar, o que muito me entristece.
— Oh! Posso compreender. Não vai mais, hem? Ah... Pode me dar licença, madame?
Ele correu para o clube. Dentro de poucos minutos, a notícia se espalharia por toda a colônia e não haveria necessidade de anunciá-la a mais ninguém. Ela avistou André mais adiante, esperando-a.
— Olá, André.
— Fico contente porque não vai mais viajar.
— Ah, as notícias circulam depressa.
— Boas notícias. Preciso conversar com você em particular.
— Sobre dinheiro?
— Sobre dinheiro. Você mudou muito, Angelique.
— Para melhor, espero. Como tem passado, meu velho amigo?
— Velho.
André sentia-se desanimado, hoje, cansado. Estivera com Hinodeh, noite passada, e sombras surgiram entre os dois. E violência. Enquanto ela o massageava, André estendera a mão, a fim de puxá-la pela gola do quimono e beijar seu seio, amando-a até a loucura. Mas ela se desvencilhara, fechando o quimono.
— Você prometeu não... — balbuciara ela.
A fúria contra si mesmo por ter esquecido — qualquer violação assim a mergulhava num pesar patético e abjeto, que o enfurecia ainda mais — se transformara em fúria contra ela e ele berrara:
— Pare de se comportar assim! Baka!
Nunca havia lágrimas quando André estava lá, apenas o constante e abjeto murmúrio “gomennasai, Furansu-san, gomennasai, gomennasai, gomennasai”, interminável, até deixarem-no enlouquecido, e ele tornara a gritar:
— Cale-se, pelo amor de Deus!
Hinodeh se calara. E permanecera ajoelhada, olhando para o tatame, as mãos no colo, imóvel, exceto por um tremor ocasional, como um cachorro açoitado.
Ele quisera pedir desculpas, abraçá-la, seu amor incessante, mas isso não o ajudaria, apenas faria com que perdesse a dignidade ainda mais. Por isso, levantara-se, mal-humorado, vestira-se e saíra da casa sem dizer mais nada. Deixando a Yoshiwara, e depois de atravessar a ponte, descera para a praia, chutara o barco de pesca mais próximo, praguejando, até ficar esgotado. Depois, sentara sobre os seixos frios, sufocado de frustração, sabendo que ela estaria chorando naquele momento, também furiosa por não ter contido o erro dele com mais habilidade, sabendo que no dia seguinte recomeçariam como se nada tivesse acontecido, mas André tinha certeza de que, não muito abaixo do comportamento doce e gentil, havia um vasto reservatório de ódio. Por ele.
— E por que não? — murmurou ele.
— Por que não o que, André? — indagou Angelique.
— Oh... nada, estava apenas divagando.
— Vamos procurar um banco vazio. Poderemos sentar ali, e conversar.
O banco era de frente para o mar. O navio de correspondência atraiu a atenção de Angelique e ela especulou sobre o que poderia acontecer se decidisse partir. Só conseguiria entrar no covil da leoa mais cedo do que o necessário, refletiu ela. Não havia necessidade de se preocupar com isso, não havia necessidade de se preocupar com qualquer coisa... apenas assumir meu novo ser, verificar seus limites e esperar. A fumaça começou a subir da chaminé. O navio de correspondência se preparav para zarpar. Apenas uns poucos tênderes continuavam a seu lado.
— Não sou uma companhia muito boa, André, desculpe.
— Pode me arrumar algum dinheiro?
— Só tenho um pouco. Quanto precisa?
— Mil guinéus.
— Para quê?
Ele respirou fundo.
— O nome dela é Hinodeh.
André contou que se apaixonara, queria-a só para si, não revelando o verdadeiro motivo, sua doença.
— É difícil contar tudo, é claro que não posso fazê-lo, mas não consigo viver sem aquela mulher, e o dinheiro é necessário para seu contrato. Preciso obtê-lo, de qualquer maneira.
— Não tenho a menor possibilidade de conseguir essa quantia, André — murmurou Angelique, chocada, mas também comovida. — O que me diz de Henri? Ele não poderia lhe dar um empréstimo?
— Ele recusou, até mesmo recusou a me dar um adiantamento sobre o meu salário. Acho que gosta da minha dependência...
— Se eu falasse com ele...
— Não, não deve fazer isso, seria pior. — Ele fitou-a de uma nova maneira. — Quando conseguir seu acordo de casamento, espero que seja rápido, trabalharei para que saia o mais depressa possível, quero que me empreste o dinheiro, mil guinéus.
— Se eu puder, André, pode contar.
— Pode me emprestar algum agora? Cem guinéus... isso manterá a mama-san sem me pressionar por uma semana... foi ela quem a ajudou.
Angelique deixou passar a farpa, sabendo muito bem que ele a ajudara por vários meios e que prometera não mencionar qualquer deles. Sua mente saltou em frente, novas conclusões: essa Hinodeh é uma segurança adicional para mim.
— Pedirei um adiantamento a Jamie.
— Há o dinheiro que Sir William disse que podia ficar com você, os duzentos e sessenta e três guinéus que estavam no cofre.
— É verdade, restou alguma coisa.
Ela contemplou o mar, a fim de evitar os olhos de André, com uma intensidade perturbadora, e se perguntou como ele soubera. Também queria disfarçar sua aversão àquele André diferente, com sua histeria latente. É uma tolice ser assim, será que ele não compreende que as Parcas estão unidas? Mas, por outro lado, ele está apaixonado, e assim posso perdoá-lo.
— Mandei algum para casa.
— Estou trabalhando por sua conta, Angelique, todos os dias, com Henri. A tutela do Estado, ele tem certeza de que vai conseguir. Henri é importante para o seu futuro, ele e o embaixador serão seus defensores na luta iminente, eu garanto. Foi sensata ao decidir ficar aqui e esperar. É mais seguro, melhor.
Ela recordou como, não muito tempo atrás, André lhe dissera que era vital que fosse para Hong Kong.
Ele a observava, era difícil ver claramente através do véu, lembrando o depoimento assinado que guardara, junto com seu testamento, no cofre do ministro britânico, não confiando em Seratard... contra qualquer “acidente” que lhe acontecesse. Relatava o ato de amor do assassino da Tokaidô e o estupro — quando e como ocorrera, o sepultamento da prova — e a verdade sobre a morte do assassino. Havia ainda a segunda página da carta que o pai de Angelique enviara meses antes, que ele rasgara na sua frente, mas depois juntara os pedaços, o documento que acabaria com qualquer acordo que Tess Struan pudesse conceder... tudo isso a ser usado quando fosse necessário, pois Angelique era seu único passaporte para a posse de Hinodeh e um futuro confortável.
Raiko e Meikin vendendo e comprando segredos? Um sonho irreal, disse ele a si mesmo, amargurado. Eu lhes entreguei todo o plano de campanha e o que recebi em troca? Promessas... e nenhuma chance para abater a minha outra dívida.
— Cem guinéus — repetiu André, muito cansado e furioso para dizer por favor.
Angelique não desviou os olhos do mar.
— Por quanto tempo teremos de esperar... para Tess agir?
— Depende da maneira como Tess receberá a notícia, ou a Hoag, o que ela fará no funeral. De qualquer forma, esperará trinta dias... para saber se você está ou não grávida... antes de decidir.
André falou no mesmo tom indiferente, insistindo no passado, querendo-a dependente de novo. Ela fitou-o agora, satisfeita pelo véu. Ele teve a impressão de que seus olhos eram amistosos... talvez com medo, talvez não.
— Acrescente dez dias para que a notícia chegue ao conhecimento dela, Angelique. Dez para pensar, dez para enviar uma mensagem de volta. Cerca de dois meses, talvez menos.
— Qual será a mensagem?
— Venenosa. — Os olhos de André se contraíram. — Mas tenho algumas idéias, planos. Posso ajudá-la a se tornar rica. Temos de esperar, não há nada a fazer por algum tempo, apenas esperar. Paciência, Angelique. Paciência e um Pouco de sorte... Tenho algumas idéias.
E eu também, André Chantagista. Muitas. E planos. Para você, para Tess e para o futuro. Ternamente, ela inclinou-se, tocou-o.
— Fico contente que você tenha um amor para acalentar. É abençoado.
Angelique falou com sinceridade. Depois, como só uma mulher era capaz ela pôs a ternura de lado para sempre e repôs seus planos no lugar.
— O dinheiro estará à sua espera às seis horas, André... fico contente porque você é meu amigo.
— Eu também me sinto contente... e obrigado pelo empréstimo.
— Portanto, devemos ser pacientes de novo e esperar? É isso o que devemos fazer, não é mesmo? Um pouco de sorte e paciência? Posso ser paciente. Um pouco de sorte e paciência. Muito bem. Que assim seja.
Ele observou-a se afastar, empertigada e confiante, e também, apesar de toda a sua esplêndida pequeneza, um tanto alta.