Se, dentro de três semanas, sua declaração estiver assinada e pronta para o Dr. Hoag me trazer, então o Sr. MacStruan está autorizado a lhe conceder imediatamente um crédito de QUINHENTOS guinéus, por conta de seu fundo de investimentos, que será instituído em trinta dias, com a renda anual liberada em pagamentos trimestrais.



Caso recuse as condições acima (tem a minha palavra solene de que não são negociáveis) ou não procure o Dr. Hoag até a data especificada, 12 de fevereiro, no dia seguinte, 13 de fevereiro, sexta-feira, meus advogados entrarão com uma ação judicial contra você, arguindo o máximo que consideramos justificado, inclusive que foi uma premeditação dolosa que causou a morte do meu filho.



Um conselho: o Sr. Skye pode espernear e bradar que se trata de coação, que estas condições são ameaças contra sua pessoa. Não são. Meus advogados garantem que não são, que esta é uma maneira generosa e legal de remover um problema incômodo causado por meu filho, quaisquer que tenham sido as razões desavisadas.



Por favor, peça ao Dr. Hoag para voltar o mais depressa possível, com sua declaração juramentada, ou a não-concordância. Tess Struan, 28 de dezembro, Ano de Nosso Senhor de 1862, em Hong Kong.





Gornt levantou os olhos da carta.



— Não aceite.



— Foi exatamente o que o Sr. Skye me disse. — Um pouco da fúria de Angelique se dissipou. Sentava na cadeira alta, rígida, o rosto firme, Gornt à sua frente, no boudoir. — Fico contente por você concordar. Responderei nos mesmos termos para aquela mulher esta tarde.



— Não, seria um erro. Estou querendo dizer que não deve lutar, seria a pior coisa que poderia fazer. Chegue a um acordo.



Ela se tornou pálida de novo, mais do que furiosa.



— Acha que devo aceitar... essa sordidez?



— Estou apenas dizendo que pode chegar a um acordo, no momento oportuno — respondeu Gornt, a mente funcionando com perfeição, lógica, embora sentisse um aperto no peito e na garganta. — Tenho certeza de que pode melhorar as condições.



— Melhorar as condições? Quer dizer que aceita isso, em princípio? Aceita isso? Pensei que era um lutador, além de meu amigo, mas concorda em deixar que ela me arraste de cara na lama?



— Sei que ela disse que as condições são inegociáveis, mas não acredito nisso. Posso melhorar. A primeira oferta, dois ou três mil guinéus, já a deixa numa boa situação; com cinco mil já seria rica.



— Isso não compensa o comportamento infame daquela mulher, suas ameaças insidiosas, a constante hostilidade! Sou casada legalmente! Legalmente! — Angelique bateu com o pé no chão. — Não ser mais a Sra. Struan? Nunca mais pôr os pés em Hong Kong, ser tratada dessa maneira? Como ela ousa? Parece até que sou... que sou uma criminosa!



— Concordo. Posso renegociar, em seu nome.



— Jesus! Quero que ela seja humilhada, destruída!



— Eu também, mas este não é o momento.



— O quê?



— O grande Dirk Struan maltratou a família de minha mãe, os Tillmans, não tanto quanto Morgan, mas o que ele fez foi uma indignidade. — O sorriso de Gornt era cruel. — Se eu posso destruir os Brocks, por que não os Struans? É tudo a mesma coisa para mim. A vingança é uma refeição que podemos comer juntos, lentamente, pouco a pouco.



— Podemos? — Angelique experimentou um súbito calor no ventre; ele parecia muito bonito, forte e confiante. — Como?



— Primeiro, o que Skye disse?



— Disse que eu deveria lutar e me mostrou as petições que preparou para apresentar em Hong Kong, Londres e Paris...



— Paris? Por que Paris?



Angelique explicou a posição de “tutelada do Estado”.



— Ele diz que em Paris, com a proteção da França como um fato, podemos vencer, o casamento será declarado legal de acordo com a lei francesa e, depois, poderei fazer um acordo pelo meu critério, não o dela.



— Ele mencionou os honorários, Angelique?



Ela corou.



— Isso nada tem a ver com seu conselho.



— Bobagem — disse Gornt, a voz ríspida. — Nossa única segurança é enfrentar a verdade e compreender o jogo como é. Aquele pequeno bastardo... desculpe o termo, mas o uso com conhecimento de causa, ele é isso mesmo, descobri em Hong Kong... aquele pequeno bastardo só está pensando no próprio futuro, não no seu, imaginando-se em vários tribunais a defender essa pobre e linda viúva francesa, emocionando vários júris... e perdendo em todos.



— Não entendo... Por quê?



— Malcolm não deixou nenhuma herança.



— Mas... mas o Sr. Skye diz que, segundo a lei francesa...



— Acorde, Angelique!



A voz era ainda mais ríspida. Era vital que ela se livrasse daquela ira estúpida e inútil.



No momento em que entrara no boudoir, vira a raiva e os lábios comprimidos de Angelique, a carta tremendo em sua mão, ele compreendera que era a carta de que Hoag lhe falara, o que significava que não havia uma criança; agora o plano ‘A’ podia começar a ser executado. Sua alegria disparara.



Fingindo não saber de nada, Gornt apresentara cumprimentos efusivos, que haviam sido dispensados, a carta estendida em sua direção, a fúria tornando-a ainda mais atraente... a paixão boa para ambos, pensara ele, satisfeito. Mas agora devia ser canalizada e refinada, como a dele.



— Skye só tem presunção! Acorde!



— Estou acordada. Ele não é assim e não pense...



— Pare com isso! Use a cabeça, pelo amor de Deus! É você quem corre todos os riscos, não ele!



Por um instante, Gornt especulou mais uma vez sobre a segunda carta de Tess, O que conteria. Mas agora ninguém jamais saberia, pois Hoag dissera que parte do seu acordo com Tess era queimar a outra, sem abri-la, antes de entregar esta. Hoag realmente fizera isso ou a teria lido antes de queimá-la, apesar do juramento solene de cumprir todos os desejos dela? Eu bem que gostaria de saber, mas isso não passa, afinal, do glacê do bolo.



— Angelique, minha cara Angelique... — Ele jogou a carta na mesa, como se fosse uma coisa suja, mas achando que era maravilhosa, levantou-se, foi sentar ao lado de Angelique, pegou sua mão. — Paris, a lei francesa e todo o resto são apenas em benefício de Skye, não o seu. Mesmo que ele ganhasse, eu apostaria dez mil contra um que a decisão não teria qualquer efeito em Tess Struan e Hong Kong...



Como ela fizesse menção de interromper, ele alteou a voz para continuar:



— Não temos muito tempo e você precisa ser sensata. Enquanto você pede emprestado, mendiga ou se vende para pagar os custos dos processos, sem falar nos honorários de que ele precisa, acabará perdendo esta oportunidade. Ele só dispõe de uns poucos dólares. Como vai chegar a Hong Kong, muito menos a Londres e Paris? Não passa de um sonho irreal.



Angelique retirou a mão, bruscamente. Ele riu.



— Você é como uma pirralha mimada e a amo por isso!



— Você... — Ela parou. — É mesmo?



— Eu a amo ou acho que é uma pirralha mimada?



Com uma voz diferente, Angelique disse:



— As duas coisas.



— As duas coisas — murmurou Gornt, também com uma voz diferente. Ele tornou a pegar a mão de Angelique, sorriu quando ela tentou retirá-la. E desta vez não permitiu. Com uma firmeza igual e gentil, puxou-a e beijou-a, com ardor. A reação dela foi imediata, logo diminuiu, e o prazer prevaleceu. Para ambos. Ao soltá-la, Gornt esquivou-se no mesmo instante, antecipando corretamente que as unhas tentariam golpeá-lo.



— Calma, calma... — murmurou ele, como se enfrentasse um cavalo fogoso, satisfeito por poder avaliá-la. — Calma, Nelly!



Angelique riu, apesar de sua raiva.



— Você é um demônio.



— É possível, mas darei um excelente marido, madame.



O sorriso de Angelique se extinguiu. A raiva se dissipou. Ela se levantou, foi até a janela, contemplou a baía e os navios ali. Uma intensa atividade em torno dos navios de guerra. Gornt observou e esperou, torcendo para que seu julgamento fosse correto. Quando se sentiu pronta, Angelique disse:



— Diz para chegar a um acordo, Edward. Como?



— Eu pegaria o próximo e mais rápido navio para Hong Kong. Iria procurá-la imediatamentee providenciaria as mudanças que você e eu combinássemos, e creio que são possíveis. Tenho certeza que posso aumentar o estipêndio. Cinco em vez de dois ou três mil seriam aceitáveis?



— Ela diz que essas condições repulsivas não serão mudadas.



— Eu as mudarei... algumas.



— Quais?



— Podemos falar sobre isso hoje ou amanhã. Mas posso garantir que estou confiante sobre o dinheiro.



Mon Dieu, o dinheiro não é tudo e por que tão depressa? Ainda falta muito para o dia marcado.



— Devo ser o primeiro a procurá-la com a notícia, a fim de pegá-la desprevenida. Isso melhora minha posição de barganha. Por você.



Ela virou-se para fitá-lo.



— E também por você.



— Também por mim.



Aquelas voltas e rodeios, riscos e manobras, uma palavra errada podendo ser fatal, eram mais emocionantes do que o melhor jogo de pôquer de que ele já participara, com as apostas mais altas. Ela. Ela e o futuro dele, indissolúveis. E ela conta com a maioria dos ases, disse ele a si mesmo, embora não saiba: a concordância imediata de Angelique com as exigências, por persuasão dele, deixaria Tess mais propícia do que nunca a aceitá-lo como aliado, o que era vital para seu futuro; os cinco mil guinéus o ajudariam a consolidar a Rothwell-Gornt; seu veneno garantiria a destruição de Tess.



— Eu a amo e quero casar com você, Angelique.



— É muito cedo para dar uma resposta.



— Não concordo. Você é livre, sem qualquer compromisso.



— Porque não sou casada, e nunca fui?



— Acalme-se, meu bem. Precisa pensar com toda calma. Somos adultos, tenho o direito de perguntar, amo você, e quero casar.



Angelique baixou os olhos e reconheceu que precisava dele, era o único que podia protegê-la de Tess.



— Desculpe... a carta me deixou transtornada. Mas, realmente, ainda é muito cedo para dar uma resposta.



— Não concordo. Acho que você me ama, a promessa poderia ser particular, sem mais ninguém saber, só entre nós. Eu a amo e formaríamos um casal excepcional. — Gornt falava com absoluta sinceridade. — O futuro será vasto para nós, depois que isto... — Ele apontou para a carta. —... depois que isto não mais ameaçá-la. Temos muito em comum, assim como um objetivo comum, o de destruir nossa inimiga, com calma.



— Não o amo. Gosto de você, imensamente, talvez... talvez possa vir a amá-lo, com o tempo, e tentaria, se... se casasse com você... não, não se mexa, deixe-me terminar.



Seus dedos mexiam numa fivela de pérolas, que comprara na aldeia, e isso a lembrou que agora, já que MacStruan não mais aceitaria seus vales restantes, era a única jóia que ainda possuía, além do anel de noivado e do anel de jade. E André tornaria a procurá-la naquela tarde. Ela relegou essa preocupação para mais tarde e tratou de se concentrar. Curioso que Edward tenha a mesma idéia que eu. Pensamos igual, em muitas coisas.



— Prefiro deixar essa resposta para depois. Quando parte o próximo navio para Hong Kong?



— O melhor e o mais rápido seria o que vai zarpar amanhã de noite, o Atlant Belle, da Cooper-Tillman, direto para Hong Kong e depois San Francisco. — respondeu Gornt sem hesitar, as chegadas e partidas de todos os navios ocupando uma posição de destaque na mente de qualquer mercador. — Chegará a Hone Kong antes do nosso clíper, o Night Witch... que só deve chegar aqui dentro de três dias.



— E você gostaria de viajar no Atlanta Belle?



— Isso mesmo.



— Muito bem, Edward, vamos conversar sobre o que você acha que pode ser melhorado na proposta daquela mulher amanhã de manhã. Isso me daria tempo para pensar. Se concordarmos, então, por favor, siga o mais depressa possível para Hong Kong... e volte depressa.



— Combinado. Mas sua resposta ao meu pedido de casamento?



— Eu a darei quando você voltar.



— Preciso saber antes de partir.



— Por quê?



— Para o meu prazer.



Angelique percebeu o mesmo sorriso estranho e se perguntou o que havia por trás.



— Falando sério, por quê?



Gornt levantou-se, parou diante dela.



— Porque é vital para mim. Se casar comigo, o céu é o limite. Vai adorar Xangai, é a maior cidade da Ásia, faz com que Hong Kong pareça um lugar tacanho e atrasado, você será o grande sucesso da cidade e viverá feliz para sempre, eu prometo. E agora, por favor, quero sua promessa.



— Prometo que darei minha resposta quando você voltar. Deve haver confiança entre nós. — Angelique lembrou que dissera a mesma coisa a Tess. — Quando você voltar.



— Lamento, minha cara Angelique, mas preciso saber antes de partir.



— Ou não vai negociar com Tess por mim?



Ele não respondeu no mesmo instante.



— Negociarei por você. E gostaria de me casar amanhã, esta noite... não tem nada a ver com Tess. Mas não é possível partir sem uma resposta.



Gornt chegou mais perto, pôs as mãos nos ombros de Angelique, beijou-a na ponta do nariz.



Jolie mademoiselle, uma resposta, por favor? Até o pôr-do-sol de amanhã? Terei de embarcar então. Uma resposta, perante Deus.







Naquela tarde, a notícia sobre Katsumata e o suicídio de Meikin foi transmitida a Raiko, em seus aposentos particulares. Ela desmaiou. Quando começou a se recuperar, mandou uma criada pedir a Hiraga que localizasse Akimoto e Takeda, com toda urgência, e viessem procurá-la, pois havia fatos terríveis a relatar. Eles não demoraram a aparecer.



Chorando sem qualquer constrangimento, retorcendo as mãos, ela informou nue Yoshi capturara Katsumata, falou sobre a morte dele e a de Meikin. a mama-san de Koiko, mas não revelou que fora ela quem o traíra.



— É o fim... se Yoshi descobriu tudo sobre Katsumata e Meikin, também sabe do meu envolvimento, sabe de vocês. Fomos todos traídos. Quem será o traidor? É apenas uma questão de tempo... — Outra vez o terror a dominou. — Vocês devem partir imediatamente, antes que os vigilantes os descubram... não podem mais continuar aqui...



— Pare! — sibilou Hiraga, o rosto branco.



Ele não estava mais disfarçado como serviçal da cozinha. Usava um quimono comum e se encontrava preparado para correr até seu santuário no túnel, os vigias agora confiáveis, sob pena de morte. Akimoto e Takeda também ficaram abalados. O fato de que Katsumata pudesse morrer como um covarde era inconcebível.



Não posso acreditar que o sensei se deixasse capturar vivo, pensou Hiraga. E Yoshi permitir que Meikin fizesse uma coisa assim com ele era repulsivo, por mais que merecido. Baka ser capturado vivo!



— Deixe-nos agora, Raiko. Falarei com você mais tarde.



— Obrigada, Sire, sinto muito, mas...



— Deixe-nos!



Ela se retirou, trôpega, contente por se livrar deles, odiando todos os shishi, mas sensatamente escondendo seu ódio. Takeda cuspiu de raiva.



— Yoshi não tem honra ao permitir que uma coisa assim acontecesse. Katsumata deve ser vingado!



Akimoto olhou para Hiraga, também angustiado.



— O que devemos fazer, primo? Essa velha megera tem razão, a busca será intensificada. Devemos escapulir esta noite. Vamos tentar, hem?



— Você é baka! Estamos cercados como ratos numa carcaça!



Embora simulasse raiva, Hiraga, na verdade, sentia-se tonto de alívio. Com Katsumata morto, não haveria agora necessidade de um ataque. Mais uma vez, ele assumia o comando de seu próprio destino.



— Não devemos cometer nenhum erro.



Takeda disse:



— Concordo que somos ratos numa armadilha aqui. Portanto, vamos atacar, como o sensei planejou. Temos as bombas agora. Sonno-joi!



— Não. Estamos seguros, por enquanto.



Akimoto disse:



— Hiraga, se Yoshi entregou Katsumata a essa Meikin, foi uma recompensa, neh? Em troca por traí-lo? Raiko fará a mesma coisa com a gente. E não poderia ser ela a traidora que denunciou os dois a Yoshi, em primeiro lugar?



Takeda levantou-se.



— Vamos matá-la, para começar.



— Sente-se! — ordenou Hiraga. — Precisamos de Raiko. Ela já demonstrou seu valor no passado e vocês esquecem que nenhuma mama-san merece confiança total. Sente-se, Takeda, e seja lógico. Ela não vai nos trair... não passa de urn bruxa gananciosa, como qualquer outra mama-san. Se você deixar, ela lhe cobrará uma prostituta de terceira classe quando a mulher é apenas uma vagabunda da rua que mal vale um momme de cobre. Meikin nos forneceu boas informações no passado. Foi graças a ela que pegamos Utani, o pederasta. Ela própria foi traída. Yoshi e o Bakufu têm milhares de espiões.



— Não estamos seguros aqui. — Akimoto estremeceu. — Odeio este lugar. Esta Yoshiwara dos gai-jin se acha contagiada pela praga deles. Voto com Takeda Atacar, escapar ou morrer.



— Ainda não. Deixem-me pensar.



Takeda observava-o atentamente.



— Você conhecia essa Meikin?



— Há muitos anos...



Hiraga quase acrescentou que conhecera Koiko também, tentado a lhes contar o verdadeiro motivo para a traição, mas decidiu não fazê-lo, saboreando a maneira como Katsumata morrera. Agora Sumomo está vingada, Koiko também. Agora seus espíritos se tornarão kami ou renascerão no trigésimo primeiro dia, conforme os deuses decidirem... se é que existem deuses. Agora posso esquecê-las, embora elas vivam para sempre.



O sensei suplicando por misericórdia? Todos esses anos a idolatrá-lo, a escutar o que ele dizia? Fomos enganados, pensou Hiraga, revoltado. Não importa, aquele covarde será escarnecido e cuspido por toda parte, muito em breve poemas e peças de teatro contarão como ele traiu Sumomo e Koiko, a vingança da mama-san... e o desejo de morte. Ah, que classe ela tinha!



Involuntariamente, ele soltou uma risada nervosa e imitou a voz estridente de um onnagata — um ator que se especializava em papéis femininos, já que só os homens eram permitidos nos palcos.



— “Um banho e roupas limpas. Por favor?” Os teatros kabuki e de marionetes lotarão casas com isso por gerações.



Baka ao kabuki! — exclamou Takeda, furioso. — O sensei será vingado. A honra será redimida. Atacaremos esta noite, conforme o planejado, vocês afundam o navio, eu cuido da igreja, e também da outra, e mato todos os gai-jin que encontrar, até morrer. O que diz, Akimoto?



Ele se levantou, foi espiar pela janela. Não faltava muito para a noite. Subitamente, notou o vento agitando os arbustos.



— Olhem! É um sinal dos deuses! O vento está aumentando. E sopra do sul.



Akimoto foi se postar ao seu lado.



— É verdade, Hiraga!



Por um momento, Hiraga hesitou. Seria mesmo um sinal?



— Nada de ataque, não esta noite. Nada de ataque.



Takeda virou-se.



— Pois eu digo que devemos atacar. — Ele olhou para Akimoto. — Você concorda? Sonno-joi!



Akimoto não sabia o que fazer. A raiva e confiança de Takeda eram contagiantes.



— O fogo encobriria a nossa fuga, Hiraga.



— Um pouco, talvez — disse Hiraga, irritado —, mas não uma tentativa de incendiar toda Iocoama.



Seu cérebro ainda oscilava e ele não tinha ainda outra solução que não seu plano final e nenhum meio de pô-lo em execução sem a ajuda de Taira e da remoção da pressão de Yoshi em seu pescoço.



— Amanhã, ou no dia seguinte, pode...



— Esta noite — insistiu Takeda, mal conseguindo conter sua ira. — Esta noite é uma dádiva, os deuses nos falam!



— Nesta época do ano, o vento vai se prolongar. Precisamos de mais homens para incendiar a colônia. Um de nós deve ir a Iedo para buscá-los. Takeda, você poderia ir.



— Como? Você mesmo disse que os vigilantes estão por toda parte. Como?



— Não sei, Takeda. — Trêmulo, Hiraga levantou-se. — Esperem até eu voltar, e depois poderemos decidir. Falarei com Raiko, direi a ela que partiremos amanhã... não será assim, mas direi isso.



— Ela não mais merece confiança.



— Já disse que ela nunca mereceu.



Hiraga saiu e foi encontrá-la.



— Muito bem, Hiraga-sama, vocês podem ficar.



Raiko já dominara o pânico, o conhaque no estômago, permitindo que o destino se tornasse o destino.



— Taira virá aqui esta noite?



— Não, nem amanhã. Mas Furansu-san vem. Sei que vem.



— Mande chamar Taira. Pode fazer isso, não pode?



— Posso, sim, mas o que direi quando ele chegar? — indagou Raiko, apática. No instante seguinte, ela teve um sobressalto, quando Hiraga declarou, os dentes semicerrados:



— Diga a ele, Raiko, que Fujiko decidiu que não deseja mais assinar um contrato, que outro gai-jin a procurou, com uma proposta de negócio melhor.



— Mas o preço do contrato de Fujiko já é fantástico, bom demais, e ele não é nenhum tolo. Vai comparar os preços e o perderei para outra casa. Ele até já visitou algumas. Vou perdê-lo.



— Vai perder a cabeça, se a confusão em que se meteu não for resolvida e o resto do seu corpo bem-alimentado servirá de comida aos peixes.



— Resolver o problema? — Raiko se tornou toda atenção. — Há alguma possibilidade, Hiraga-sama? Tenho uma chance? Conhece algum meio?



— Faça o que eu mandar e talvez eu possa salvá-la. Mande chamar Taira agora.



Hiraga fitou-a com a maior frieza e voltou para junto dos companheiros. Estavam na varanda, observando os arbustos serem inclinados pelo vento.



— Estamos seguros, por um ou dois dias. Takeda disse, desdenhoso:



— Ela nem imagina que está morta, e hoje à noite Iocoama também morrerá será purificada dos vermes.



— Vamos adiar por um dia. Amanhã à noite será melhor.



A ira de Takeda começou a voltar.



— Por quê?



— Quer uma chance de escapar? Desfechar o golpe da morte, mas continuai vivo para apreciá-lo? Todos nós? Concordo com você que o momento chegou. Tem razão nesse ponto, Takeda. Mas amanhã me dá tempo para planejar.



Depois de um momento, Takeda exclamou:



— Akimoto!



— Vamos concordar com o adiamento. Para escapar também... Hiraga é sábio, Takeda, neh?



O silêncio tornou-se imenso.



— Adiamento. Um dia. Concordo.



Takeda levantou-se, seguiu para seu esconderijo, na casa de chá mais próxima. Uma pausa prolongada e Hiraga sugeriu:



— Akimoto, daqui a pouco vá sentar com ele, tranqüilizá-lo.



— Ele é Satsuma, primo. Katsumata era Satsuma. Hiraga olhou para os arbustos, inclinados pelo vento sul.



— Sente com ele. Tranqüilize-o.







Tyrer ficou transtornado.



— Não contrato, Raiko-san?



— Não, sinto muito. Fujiko mudou de idéia e recebeu uma oferta muito melhor. Sinto muito, mas ela está intransigente.



— Por favor? — suplicou ele, não entendo a maior parte das palavras em japonês.



Ela repetiu e acrescentou:



— Foi por isso que pedi para vê-lo com urgência. Sinto muito. Ela não vai vê-lo, nem esta noite, nem nunca.



A sensação de Tyrer era de que mergulhava num poço sem fundo. Interrogou-a em seu japonês mais polido e melhor, mas Raiko sacudiu a cabeça.



— Sinto muito — disse ela, encerrando a conversa e fazendo uma reverência para dispensá-lo. — Boa noite, Taira-sama.



Como se estivesse embriagado, Tyrer saiu para a varanda. A porta de shoji foi fechada. Ele cambaleou para o caminho através do jardim, praguejou ao perceber que esquecera os sapatos. Atordoado, sentou na varanda para calçá-los, murmurando:



— O que aconteceu?



Três dias atrás, quando voltara com Babcott de Iedo, tudo estava perfeito, o contrato acertado, a não ser por um pequeno detalhe, o pagamento seria efetuado dentro de uma semana. Sua conta anterior fora liquidada com sorrisos e reverências, Fujiko mais amorosa e mais doce do que nunca naquela noite. Quando Raiko enviara um criado à casa que ele partilhava com Babcott, pedindo uma reunião urgente, ele presumira, divertido, que era apenas para assinar o documento. Enviara uma mensagem antes, avisando que provavelmente não poderia ir naquela noite, nem estaria disponível no dia seguinte, pois teria de ir a Kanagawa. E, agora, aquilo...



— Não entendo...



Rajadas de vento agitavam mais folhas em torno de seus pés. Desesperado, ele se aconchegou no casaco. A noite parecia cada vez mais escura. Com um suspiro profundo, Tyrer levantou-se, foi andando pelo caminho sinuoso, mas parou abruptamente, quando um samurai quase esbarrou nele.



— Deus Todo-Poderoso! — explodiu ele. — Nakama!



Hiraga estendeu a mão para a espada e Tyrer pensou que ia morrer. Mas a espada permaneceu pela metade na bainha e ele viu os olhos avaliarem-no, compreendendo que fora por um triz.



— Não — balbuciou Tyrer, meio sufocado com a súbita aparição. — Eu... não estou armado.



Ele ergueu os braços em rendição, ficou imóvel, censurando-se por sua estupidez, quase morreu de novo quando Hiraga bateu com a espada na bainha.



— Taira-sama, eu não machucar você. Pensar era inimigo. Mas ser amigo.



Hiraga sorriu, estendeu a mão. Atordoado, Tyrer apertou-a e depois não pôde mais se conter:



— O que está fazendo aqui? Pensamos que havia fugido para Iedo. Que história é essa de ser um ronin? Temos de entregá-lo a Yoshi, sabe disso. Lorde Yoshi está à sua procura, sabia?



— Não aqui! — advertiu Hiraga. Ele pegou o braço de Tyrer, que sentiu o aperto de ferro. — Vir comigo.



Gesticulando para que ele se mantivesse em silêncio, Hiraga conduziu-o por outro caminho e, depois, por um labirinto de pequenas trilhas, separadas por sebes, até que Tyrer perdera por completo todo e qualquer senso de direção.



— Dentro, por favor.



Trêmulo de medo e desamparado, Tyrer obedeceu. Não havia a menor possibilidade de fugir. Viu Hiraga esquadrinhar a noite, para verificar se haviam sido seguidos. A porta de shoji foi fechada. Uma vela num quebra-luz iluminava o interior da casa comum, de um só cômodo, com pequeno banho adjacente. A chama oscilou, quase se apagou com a aragem.



— Sente! Por favor. Agora, dizer de novo, mas não depressa, a voz baixa. — Com uma expressão sinistra, Hiraga tirou a espada curta do cinto, largou-a no tatame, ao seu lado. — E então?



Tentando conter o temor que se misturava de forma nauseante com sua aflição, Tyrer relatou sobre Yoshi e Abeh, o assassinato de Utani e como todos pensavam que Hiraga já havia fugido para outro lugar.



— Temos de entregá-lo a Yoshi, aos guardas no portão, porque o capitão Abeh voltou para Iedo, Nakama, e... Como devo chamá-lo, Nakama ou Hiraga?



— Como quiser, Taira-sama.



— Hiraga então, pois esse é seu verdadeiro nome, não é?



— Sou chamado assim. Mas os japoneses ter muitos nomes, um no nascimento, outro sete anos, outro adulto, e tomar outro, se quiser. Sou Nakama ou Hiraga, seu amigo.



— Amigo? — repetiu Tyrer, amargurado, esquecendo o medo. — Por que não me disse que era um assassino? Você matou Utani, não é mesmo?



— Sim, ele um alvo, homem muito mau. Yoshi outro. Isto não ser Ing’rand, Taira-sama, não Ing’rand. Esses homens maus, Bakufu, roubar poder do imperador, eles tiranos.



Solene, Hiraga explicou da melhor forma que podia sobre os shishi e sua luta para eliminar o governo despótico — com uma sinceridade óbvia — falou da ganância de Utani e seus impostos exorbitantes, como os clãs e daimios Toranagas possuíam toda a riqueza da terra, os Toranagas mais do que todos os outros, sobre a corrupção do Bakufu, como o povo se tornara faminto e impotente.



— Nós querer devolver Nipão ao imperador, fazer governo justo para todas pessoas.



Por “todas pessoas” Hiraga se referia a todos os samurais, embora Tyrer presumisse que incluía todos os japoneses. E enquanto interrogava Hiraga, fascinado por aquela janela singular para a estrutura interna do Nipão — e a mentalidade dos japoneses —, ele foi se convencendo cada vez mais de que havia mérito no lado de Hiraga. Só tinha de considerar a história inglesa e a luta do povo para prevalecer sobre o “direito divino dos reis” e o domínio dos tiranos para se tornar mais e mais simpático. Não era difícil recordar o imenso custo em vidas para criar o Parlamento e o governo do povo pelo povo: a cabeça de um rei, outros humilhados, revolução, tumultos, mortes, antes de florescerem o Raj britânico e a Pax Britannica. Recordando também a dívida que tinha com aquele homem, ele disse, sombrio:



— Mesmo assim, não vejo qualquer esperança para você. No momento em que for avistado, será capturado, por seu povo ou pelo meu. E não há nada que eu possa fazer para evitar.



Hiraga respirou fundo e lançou-se no vazio.



— Uma coisa sim, poder fazer me ajudar. Ajudar entrar navio, navio ir Ing’rand.



Tyrer ficou aturdido.



— O quê? Você enlouqueceu!



— Por favor, falar baixo, muito inimigo aqui — murmurou Hiraga, no maior excitamento com aquela idéia surpreendente e radical, que surgira do nada, como se plantada pela própria deusa-Sol. — Por favor, escutar. Muitas vezes dizer eu aprender sobre gai-jin, seu país melhor, neh? Eu ir lá com meu primo. Nós aprender melhor maneira fazer governo, seu Parlamento. Nós aprender suas maneiras. Yoshi certo sobre marinha e exército, mas eu achar melhor aprender de banco, negócios, comércio. Nós precisar saber melhor maneira, neh? Sua maneira, a maneira ing’rish, neh?



Com eloqüência, Hiraga continuou a tecer sua teia, a ansiedade emprestando-lhe palavras extras e cadências suaves. Aquele era seu plano final, a única fuga possível da armadilha de Yoshi. Ele tinha certeza de que um ou dois anos passados entre os gai-jin, com as apresentações certas e a ajuda conveniente, seriam de enorme valor para sonno-joi.



É a solução perfeita para escapar da morte inevitável se eu ficar, raciocinara ele, exuberante. Voltaremos dentro de um ou dois anos, falando ing’rish com perfeição, conhecendo seus segredos sobre produk’shum e stoku markit, fuzis, canhões, táticas, estratégias, os métodos que usaram para conquistar o mundo exterior, até mesmo para humilhar a China.



Esta é a terra dos deuses! A China deve ser nossa, não dos gai-jin. Antes de partir, contarei meu plano aos nossos líderes shishi de Choshu e de alguma forma manteremos contato, através de cartas.



— Ser simples, Taira-sama. Você falar capitão, nós embarcar sem problema. Ninguém precisar saber.



— Sir William jamais concordaria.



— Talvez não precisar falar ele. — Hiraga inclinou-se para a frente, oferecendo sua opção, sem se sentir muito seguro. — Ou se falar, eu falar também, achar ele concordar, neh? Muito importante para ing’rish ter amigo Japão. Eu bom amigo. Jami-sama, ele ajudar também, se pedir.



— Quem?



— Jami, homem grande barbudo, maior que você. Jami.



— Jamie? Jamie McFay?



— Sim, Jami Mukfey.



Agora que absorvera a idéia, a mente de Tyrer passou a funcionar melhor. Havia tremendas possibilidades a longo prazo em fazer o que Hiraga sugeria. Sempre fora a política britânica educar — reeducar — estudantes estrangeiros devidamente selecionados, quanto mais importantes ou de famílias reais, melhor. Muitos eram radicais ou revolucionários em seus próprios países, em particular na índia. Hiraga era muito inteligente e não podia deixar de ser importante, se era inimigo de Yoshi. Julgue um homem por seus inimigos, dissera seu pai.



E enquanto remoía sobre a sugestão de Hiraga, ele também especulou como estavam o pai e a mãe, seus amigos, triste por não poder vê-los, por saber que tão cedo não voltaria a Londres... não havia licença por dois anos. Ao mesmo tempo, orgulhava-se de participar do serviço diplomático, de ser uma engrenagem, mesmo que mínima, na vastidão do império britânico.



A idéia de Hiraga é boa. Daria certo. Mas como tirá-lo daqui, como persuadir Sir William a ajudar... Willie é a chave.



Quanto mais Tyrer pensava a respeito, mais suas esperanças minguavam, mas tinha de admitir que era uma estupidez sequer considerar a possibilidade, tornando-se mais e mais certo de que Sir William não ajudaria, nem sequer ia querer ouvir um plano assim, não com aquele homem, um assassino confesso, não com Hiraga, que era apenas um peão na disputa muito maior por Yoshi. Não haveria retorno para Sir William — nenhuma compensação, nenhum motivo para se arriscar à hostilidade de Yoshi, nem o poder no futuro, ou qualquer outra coisa que Hiraga alegasse.



— Tentarei — disse ele, procurando se mostrar confiante, sem esquecer de que ainda era um prisioneiro de Hiraga, a espada muito próxima. — Não posso garantir coisa alguma, mas tentarei. Onde poderei encontrá-lo?



Hiraga sentia-se satisfeito, seu jogo imenso, entretanto, lhe concedera espaço para manobrar. Convencera Taira, agora outra vez do seu lado. O líder gai-jin se tornaria um aliado.



— Você guardar segredo?



— Claro.



— Mandar aviso Raiko. Nós encontrar na aldeia ou aqui. Dizer onde, Taira-sama. Achar quanto mais cedo, ser melhor, para navio, neh?



— Tem razão. Enviarei uma mensagem amanhã ou virei pessoalmente. Cauteloso, Tyrer começou a se levantar. Hiraga estava radiante.



— Ir ver Fujiko?



A desolação de Tyrer foi imediata.



— Não há mais Fujiko.



— Como? O que significar, por favor?



Tyrer contou tudo, viu o rosto de Hiraga corar.



— Mas você ter promessa, Taira-sama. Eu falar, arranjar tudo com Raiko, neh?



— Pode falar, mas agora o contrato foi cancelado. Raiko diz... Tyrer parou de falar, assustado com a expressão de Hiraga.



— Esperar, por favor!



Hiraga saiu, com cara de furioso. Tyrer espiou por uma janela lateral. Ninguém à vista, apenas os arbustos balançando, o cheiro de maresia no ar... fuja enquanto tem chance, ele disse a si mesmo, mas depois, subitamente, experimentou desesperada vontade de urinar. Usou o balde no banheiro e sentiu-se melhor. Agora estava com fome. E com sede. Olhou ao redor. Não havia bule de chá nem um cântaro com água. A fome e a sede eram excruciantes... assim como a idéia de Hiraga. Não havia meio de satisfazer qualquer das coisas. Sem a benevolência de Sir William, Hiraga seria como uma criança perdida na selva. Nem mesmo Jamie poderia ser de grande valia, agora que deixara a Struan. E por que ele ou qualquer outra pessoa haveriam de ajudar? Não havia qualquer compensação. Tyrer tornou a espiar pela pequena janela.



Saia enquanto pode, pensou ele, e se encaminhou para a porta. Foi nesse instante que ouviu passos. Voltou apressado para a almofada. A porta de shoji foi aberta. Raiko ajoelhou-se na sua frente, enquanto Hiraga mantinha-se na porta, ameaçador.



— Desculpe, Taira-sama — disse Raiko, engasgando com as palavras, numa pressa abjeta para apaziguá-lo. — Sinto muito. Cometi um erro terrível...



Suas palavras foram como uma fonte. Tyrer não entendeu tudo, mas absorveu a mensagem com clareza.



— Já chega — disse ele, com firmeza. — Trazer contrato agora. Eu assinar. Submissa, ela tirou o pergaminho da manga e estendeu-o.



— Espere! — interveio Hiraga. — Dê-me isso!



Raiko obedeceu no mesmo instante e tornou a baixar a cabeça. Ele examinou o documento curto, soltou um grunhido.



— Estar conforme combinado, Taira-sama, você assinar mais tarde — disse ele, voltando a falar em inglês. — Esta pessoa,... — Ele apontou para Raiko, irado. — ...dizer cometer erro, dizer Fujiko suplicar agora honra receber você, sentir muito pelo erro. Erro dela. Baka!



Uma pausa e Hiraga acrescentou em japonês, a voz ríspida:



— Trate este lorde muito bem ou destruirei sua casa de chá! Cuide para que Fujiko esteja pronta, à espera! E agora vá!



Hai, Hiraga-sama!



Murmurando desculpas em profusão, Raiko se retirou. Quando se encontrava a uma distância segura, ela riu, satisfeita com seu desempenho, com o êxito da trama de Hiraga, e por ter fechado o negócio.



Tyrer, exultante, agradeceu a Hiraga, feliz demais para se preocupar com a maneira pela qual seu óbvio amigo conseguira promover uma mudança tão depressa. Nunca seremos capazes de compreender algumas coisas sobre os japoneses, refletiu ele.



— Assinarei o contrato e o trarei de volta amanhã.



— Não ter pressa, deixar aquela cadela de mulher esperar. — Hiraga sorriu e estendeu-lhe o pergaminho. — Agora eu levar você até Fujiko. lkimasho.



Domo arígato gozaimashita.



Tyrer fez uma reverência como a que um japonês ofereceria a alguém a quem devesse um considerável favor.



— Amigo ajudar amigo — disse Hiraga, simplesmente.


57





Mais tarde, ainda naquela noite, Tyrer acordou, completamente satisfeito. Seu relógio marcava 9:20 h. Perfeito, pensou ele. Ficou deitado ao lado de Fujiko, mergulhada num sono profundo. Os futons e as colchas de plumas eram tão limpos e com um aroma tão suave quanto ela, quentes e confortáveis... muito melhor que sua cama, um colchão de palha duro, pesados cobertores de lã, com cheiro de umidade. A pele lustrosa de Fujiko era dourada à luz da vela, o pequeno quarto dourado e aconchegante, com o vento agitando o telhado, as telas de shoji e as chamas.



Outro breve cochilo, pensou ele, e depois irei embora.



Não seja tolo. Não há necessidade de voltar esta noite. Todos os documentos para a reunião com Yoshi amanhã já estão prontos, uma cópia do tratado em japonês e inglês na pasta de Wee Willie, tudo conferido esta tarde. O plano de batalha acertado contra Sanjiro de Satsuma está pronto, no cofre, à espera da assinatura dele e de Ketterer. Voltarei ao amanhecer, tão radiante quanto um guinéu de ouro que acabou de ser cunhado. Afinal, bem que mereço um prêmio, depois do choque-iú de Hiraga e do choque-iú ainda maior de Raiko. Ele sorriu, choque-iú, soando muito japonês. Um suspiro de satisfação, o bom e velho Nakama, isto é, Hiraga. Tyrer bocejou, fechou os olhos. E se aconchegou ainda mais. Fujiko não acordou, mas se abriu para ele.



Em outra parte dos jardins, Hinodeh aguardava impaciente por André, que deveria chegar a qualquer momento agora, como Raiko avisara. Ela se sentia quase doente na expectativa.



Raiko se encontrava em seus aposentos, relaxada, tomando saquê. Muito em breve passaria para o conhaque e o esquecimento, a bebida removendo todos os pensamentos desagradáveis: seu medo e aversão a Hiraga, suas esperanças por ele, o terror por Meikin, o desejo de vingança, tudo se misturando e se fundindo a cada taça esvaziada.



No outro lado dos jardins, escondido em sua casa segura, Hiraga sentava na posição clássica do Lótus, meditando para desanuviar a terrível dor de cabeça provocada pela notícia sobre Katsumata e o encontro com Tyrer. Muito em breve Akimoto voltaria. E depois ele decidiria sobre Takeda.



No outro lado da cerca, num bangalô nos jardins da casa de chá das Cerejeiras, Akimoto se encontrava bêbado de saquê. Refestelado à sua frente, Takeda arrotou tomou mais um gole de sua cerveja. Outro frasco de saquê foi esvaziado, lentamente, até que escapuliu dos dedos de Takeda, que tinha os olhos turvos. A cabeça baixou para os braços, e ele começou a roncar. Takeda sorriu, não tão embriagado quanto fingira.



Depois de se certificar de que Akimoto estava mesmo adormecido, ele abriu a porta de shoji, saiu e fechou-a sem fazer barulho. A noite era fria, o vento forte soprava do sul. Zunia ao seu redor, agitando seus cabelos curtos e incômodos. Takeda coçou com todo vigor, esquadrinhando a parte dos jardins que podia avistar. Uma criada com uma bandeja saiu apressada de um bangalô, retornando à casa principal. A distância, homens cantavam, embriagados, sob os acordes de uma samisen. Um cachorro latiu em algum lugar. Depois que a criada desapareceu, ele pôs o casaco escuro, acolchoado, enfiou as espadas no cinto, calçou as sandálias de palha e se afastou apressado por um caminho, passou para outro e mais outro, até chegar perto da cerca. Seu esconderijo era sob um arbusto. Cinco bombas, feitas por ele e Hiraga, com estopins de diversos comprimentos.



As bombas eram fabricadas com dois pedaços de bambu gigante, amarrados juntos, um palmo e meio de extensão, a metade disso na largura, o interior de um com a pólvora extra de Katsumata, o outro com óleo. Num instante, ele armou as três bombas, usando o mais longo dos estopins de que dispunha, com cerca de uma vela de duração... quase duas horas. O estopim era de corda de algodão, impregnada com uma solução de pólvora e posta a secar. Preparou as duas restantes com estopins para a metade desse tempo.



Um último olhar para o céu. As nuvens disparavam com o vento. Ótimo. Takeda pegou duas bombas e se afastou, fundindo-se com a noite. Passou pela porta secreta na cerca para o jardim da casa das Três Carpas, que ficava ao sul da casa das Cerejeiras, e se encaminhou para o mais meridional dos bangalôs ali, também erguido, como todos os demais, sobre meio metro do chão, apoiado em estacas baixas. Estava ocupado e iluminado. Cauteloso, Takeda rastejou por baixo. Acendeu o estopim com uma pederneira, o barulho abafado pelo vento. O estopim pegou. Os passos de uma mulher soaram por cima e ele ficou imóvel. O som da porta de shoji sendo aberta. Depois de um momento, foi fechada de novo.



Folhas caídas empilhadas sobre o estopim aceso o ocultavam quase que por completo e Takeda tornou a se afastar, uma sombra entre sombras... para se agachar por trás de arbustos, ao deparar com um gai-jin se aproximando. O homem passou sem percebê-lo e Takeda logo voltou a se movimentar, seguindo para o prédio principal. Outra bomba incendiária foi instalada ali, com o maior cuidado.



Ele voltou para a cerca, evitando um criado, esperando que uma criada velha e corpulenta passasse, chegou ao esconderijo, pegou a última das bombas de estopim comprido e outra vez partiu apressado. Acendeu-a e colocou-a debaixo de seu próprio bangalô. Podia ouvir os roncos de Akimoto lá em cima. Os lábios de Takeda se contraíram num sorriso. Pela última vez, ele correu de volta ao esconderijo, suado e eufórico. Até agora, tudo transcorrera de acordo com o plano de Ori. Hiraga estava infectado pelos gai-jin. E Akimoto também. O que já não acontecia com ele. Faria tudo sozinho.



Com as bombas restantes, ele atravessou o jardim, pulou a cerca para o seguinte, depois outro e mais outro, até alcançar o poço que era a entrada para o túnel secreto. Entrou no poço, pôs a tampa de volta no lugar. Não precisava temer a possibilidade de encontrar Hiraga ali embaixo.



No túnel, são e salvo, Takeda recomeçou a respirar e acendeu o lampião de óleo. A cama de Hiraga e uns poucos objetos espalhavam-se ao redor. A mochila de Katsumata, com as bombas nos cilindros de metal, estava debaixo de uma manta. Ele pôs na mochila suas duas bombas e ajeitou-a nos ombros, seguindo apressado pelo túnel. Logo deparou com a barreira de água. Tirou as roupas, amarrando-as numa trouxa.



A água enregelante deixou-o com dificuldade para respirar. Ao alcançar a parte mais estreita, onde o teto baixava na direção da água, sua cabeça ficou a poucos centímetros da rocha, a água subindo até o queixo. Não foi fácil manter a lanterna e a mochila acima da superfície. No outro lado, ele se vestiu, o mais depressa possível, estremecendo e praguejando. Ainda havia muita coisa a fazer. Não tinha importância, pois já começara. Dali a pouco terminaria tudo; depois viveria para sempre. Seu fervor aqueceu-o, fez com que esquecesse o frio.



Na extremidade do túnel, onde havia barras de ferro para subir e o poço desaparecia nas profundezas, Takeda parou, a fim de recuperar o fôlego. Agora, era o momento de subir. Escorregou numa das barras de ferro, quase caiu, mas conseguiu se equilibrar e ficou parado, até o coração se aquietar. E continuou a subir. Com a maior cautela, empurrou para o lado a tampa quebrada, ergueu a cabeça para espiar ao redor. A terra de ninguém se encontrava vazia. Acidade dos bêbados estava agitada, com risos, gritos, cantos embriagados, uns poucos homens cambaleando por vielas, não muito longe, cachorros latindo para eles.



A cidade dos bêbados situava-se ao sul da aldeia e da colônia, que se estendia ao longo da costa, numa linha sul-norte. A Yoshiwara ficava ao sul da cidade dos bêbados. Ori primeiro, depois Katsumata e Hiraga haviam planejado onde pôr os artefatos incendiários, a fim de que um vento sul espalhasse as chamas, que consumiriam tudo em seu caminho.



Takeda deixou a mochila no meio do mato e foi esconder uma das bombas de pavio curto junto a um armazém desconjuntado, a outra por trás de uma choupana. O lixo cobriu os estopins acesos.



Voltando apressado para o lugar em que deixara a mochila, com as bombas restantes, ele teve de se esconder por trás de uma pilha de lixo. Vindo da aldeia, uma patrulha de soldados fazia sua ronda noturna. Costumava sair da legação britânica, percorria a High Street, atravessava a aldeia, passava pela terra de ninguém, cruzava a cidade dos bêbados e voltava pelo passeio. Duas vezes por noite. Ao chegarem à viela, a trinta metros do lugar em que Takeda se encontrava, os soldados pararam, ao abrigo de um armazém, para fumar um cigarro e urinar.



Takeda praguejou silenciosamente, imobilizado ali. Mais de três quartos de uma vela já haviam transcorrido desde que acendera o primeiro estopim.







— Boa noite, Hinodeh — disse André, ao entrar no santuário que tinham no jardim, algum tempo antes. — Desculpar atraso.



— Boa noite, Furansu-san. Nunca está atrasado. Não importa o que faça, é sempre correto. — Sorrindo para ele. — Aceita saquê?



— Por favor.



Ele sentou na frente de Hinodeh, observou-a servir, suas pernas no espaço sob a mesa, onde um pequeno braseiro aquecia o ar, o calor mantido pelo edredom estendido por cima da mesa e envolvendo os dois. A graciosidade de Hinodeh era ainda mais sedutora, os cabelos pretos, brilhantes, presos com alfinetes ornamentais, um toque de ruge nos lábios, as mangas compridas afastadas com cuidado do frasco.



Naquela noite ela usava um quimono que André nunca vira antes, numa gloriosa tonalidade de verde, a cor predileta dele, com garças, símbolo de vida longa, bordadas em fio prateado por toda parte, a bainha de um quimono de baixo aparecendo, de forma sedutora. Com uma reverência, Hinodeh entregou-lhe a taça e depois, para surpresa de André, serviu-se de outro frasco, que continha saquê aquecido — o dele era frio, como preferia. Era muito raro Hinodeh beber. Com um sorriso, ela ergueu sua taça.



A ta santé, chéri, je t’aime.



Ela imitou o sotaque de André, como ele lhe ensinara.



A ta santé, chérie, je t’aime.



André sentiu um aperto no coração, não acreditando que ela o amasse; como poderia?



Bateram as taças e Hinodeh esvaziou a sua, engasgou um pouco, e logo tornou a servir mais aos dois. O mesmo sorriso e ela estendeu sua taça para tocar na de André. Esvaziaram de novo, Hinodeh encheu mais uma vez.



Mon Dieu, Hinodeh, tomar cuidado, sim? — disse ele, rindo. — Não acostumada saquê. Cuidado, não ficar embriagada!



Ela riu, os dentes brancos faiscando, os lábios sensuais.



— Por favor, Furansu-san, esta noite é especial. Beba e seja alegre. Por favor. Hinodeh tomou só um gole desta vez, fitando-o por cima da taça, os olhos brilhando, cintilando à luz das velas, olhos que ele sempre achara insondáveis, sempre o mantiveram desconcertado... parte do fascínio que ela exercia.



— Por que especial, Hinodeh?



— Hoje é Sei-ji-no-Hi, o dia da maioridade... para todas as pessoas que alcançaram vinte anos... você alcançou os vinte, neh? — Feliz, ela apontou para a vela grande na mesa. — Esta vela eu dediquei ao deus da minha aldeia, Ujigami, para você.



Hinodeh gesticulou para a porta de shoji. Por cima, havia um buque de agulhas de pinheiro e bambus.



— Aquilo é um kadamatsu, simbolizando estabilidade. — Um sorriso tímido ela tornou a servir, bebeu mais. — Espero que aprove.



— Claro que sim — murmurou ele, satisfeito. — Obrigado, Hinodeh.



Poucas semanas antes, André descobrira que era o aniversário dela e trouxera champanhe gelada, com uma pulseira de ouro. Hinodeh torcera o nariz para as borbulhas, dissera que o champanhe era delicioso, mas só bebera quando ele insistira. André tomara a maior parte da garrafa e naquela noite seu ato de amor fora frenético.



Ao longo do tempo juntos, André notara que a violência de seus movimentos não a perturbava, Hinodeh reagia da mesma forma, o que quer que ele fizesse, e depois se estendia de costas ao seu lado, esgotada. Mas ele nunca fora capaz de descobrir se Hinodeh de fato gostava, como também não podia apenas saboreá-la, e deixá-la assim, deixá-la com sua farsa, se assim era... e esquecer o enigma que ela se tornara. Ainda haveria um dia de deslindar o enigma. Tinha certeza. Só precisava de paciência, mais nada. Teria de desbastar a carapaça do enigma e depois o amor dos dois, com sua paixão frenética e insaciável, passaria a ser mais tranqüilo, e ele poderia viver em paz.



Hinodeh ainda era tudo para ele. Nada mais importava. Naquela tarde ele se humilhara com Angelique, adulara, suplicara e ameaçara, até que ela lhe dera um broche, em vez de dinheiro. Raiko o aceitara.



Angelique é uma idiota. Por que está hesitando? Claro que ela deveria aceitar a oferta de Tess Struan, ficar com o dinheiro, antes que a proposta fosse retirada. É uma oferta generosa e muito mais do que eu esperava, considerando a posição insustentável de Angelique: nenhum testamento em seu favor, e de qualquer maneira nenhuma herança para reivindicar! Quinhentos guinéus como adiantamento em três semanas! Maravilhoso... uma dádiva de Deus! Ela pode dispensar quatrocentos dessa quantia e encontrarei agiotas para adiantarem outros mil, contra seu fundo, dois mil, o que eu precisar. Skye é um tolo. Angelique vai concordar, depois que eu conversar com ela, e aceitar agradecida qualquer adiantamento, quando eu sugerir. Estou salvo!



Contemplando Hinodeh, ele exibiu um sorriso radiante, na maior satisfação.



— O que é?



Ela se abanou, contra o crescente calor alcoólico, a ponta da língua entre os dentes. Em francês, André disse:



— Estou livre, meu amor, muito em breve seu contrato será pago, e se tornará toda minha para sempre.



— Sinto muito, mas não entendi. Voltando ao japonês, ele murmurou:



— Esta noite eu ser feliz e dizer você minha. Ser muito bonita e ser minha.



Hinodeh inclinou a cabeça ao elogio.



— Você também é bonito e fico contente quando se sente feliz comigo.



— Sempre.



Mas isso não era verdade. Com bastante frequência, André se irritava, ia embora furioso. Sempre o mesmo problema, um comentário casual, levando-o a indagar, depois escarnecer, suplicar, exigir, implorar, gritar:



— Não precisamos de escuridão! Somos amantes e não precisamos mais do escuro. Somos amigos, além de amantes, estou comprometido com você para sempre. Para sempre! Amo você, não pode nem imaginar o quanto a amo, não pode saber, fico perguntando e perguntando, mas você apenas senta aí...



Sempre a mesma resposta paciente e submissa, a cabeça no chão, a voz baixa, com ou sem lágrimas, mas categórica:



— Por favor, desculpe, mas você concordou. Sinto muito, mas você concordou.



Ela tornou a beber e André percebeu o crescente rubor em suas faces, observou-a sair de novo, os dedos trêmulos, derramando uma gota. Hinodeh prendeu a respiração, com uma risada.



— Oh, sinto muito!



As duas taças, cheias, de novo logo se esvaziaram, a embriaguez de Hinodeh tornando-a ainda mais sedutora.



— Ah, mas isso é muito, muito gostoso, neh, Furansu-san?



Os dedos compridos, com unhas perfeitas, sacudiram o frasco, para descobrir que estava vazio. Hinodeh levantou-se no mesmo instante, graciosa, o quimono comprido arrastando no chão, criando a ilusão de que ela flutuou até o braseiro, onde havia outros frascos, em água fervendo, e até a pequena janela, onde havia uma prateleira para fora, com mais frascos, gelando. O vento entrou no cômodo por um instante, trazendo um odor inesperado. Fumaça de pólvora, tênue, mas inconfundível.



— O que é isso? — disse ele, em francês. Hinodeh fitou-o, surpresa.



— Por favor?



Agora que a janela fora fechada, o odor desaparecera.



— Nada... apenas pensei... — Naquela noite, tudo em Hinodeh o fascinava. — Nada... Por favor, sente aqui.



Obediente, ela sentou ao seu lado, esbarrando nele, rindo. Meio desajeitada, serviu de novo. Divertido, André bebeu com ela, o saquê esquentando-o, mas não tanto quanto aquecia Hinodeh. Sob a manta, as pernas se encontraram. Ele estendeu a mão para pegar a dela, a outra contornou sua cintura, beijaram-se, os lábios de Hinodeh macios e úmidos, a língua sensual. A mão de André foi subindo, ela se desvencilhou do abraço, rindo.



— Espere, espere, não aqui, esta noite...



Como uma colegial assustada, Hinodeh empurrou-o, levantou-se, foi para o quarto, com um único lampião, pronta para apagá-lo, e depois, quando estivesse no escuro, convidando-o para entrar. Mas naquela noite ela parou na porta, encostou-se nela, virou-se, os olhos cintilando.



Furansu-san...



Observando-o, ela cantarolou, enquanto tirava os alfinetes compridos dos cabelos, deixou-os caírem numa cascata até a cintura. Em seguida, soltou a obi e deixou-a cair. Uma risada. E veio a vez do quimono. André ficou fascinado incapaz de respirar. O dourado do quimono de baixo tremeluzia às chamas das velas, deixando entrever, mas também ocultando. Mais uma vez, a ponta da língua de Hinodeh percorreu os lábios. Coquete, ela desamarrou os laços, deixou o quimono abrir um pouco. Não havia outras roupas por baixo. Apenas as linhas estreitas de seu corpo reveladas, do pescoço aos pés mínimos. E durante todo o tempo o sorriso enigmático, os olhos sedutores, compelindo-o a esperar, prometendo, insinuando. O vento zunia pelas telas de shoji, mas nenhum dos dois o ouvia.



O coração de André batia forte, como nunca antes. Ele forçou-se a permanecer sentado. Podia agora ver o peito de Hinodeh subindo e descendo, os mamilos dos seios pequenos se projetando contra a seda. E depois ela suspirou. Com uma graça excepcional, ela deixou essa última cobertura escorregar, devagar, e ficou imóvel ali, em toda a sua pureza.



Para André, o tempo parou. Mal respirando, ele exultou com o presente que Hinodeh lhe oferecia, tão inesperado, e dado por livre e espontânea vontade. Quando não mais podia suportar a espera, ele se levantou. Seus braços foram gentis e beijou-a com toda a paixão que possuía, apertando-se fortemente contra ela, que ficou inerte em seus braços. Com a maior facilidade, André levantou-a, foi estendê-la sobre os futons no quarto, tirou as próprias roupas. Ajoelhou-se ao seu lado, contemplando-a em êxtase, na luz.



Jet’aime, jet’aime.



— Olhe, Furansu-san — murmurou ela, com um sorriso adorável.



Os dedos apontavam para a parte interna da coxa. Por um instante, ele não entendeu. E depois viu a abrasão. Seu coração quase saltou do peito, a bílis subindo à boca.



— Olhe — repetiu ela, a voz suave, o sorriso constante, os olhos muito escuros, na tênue claridade. — Começou.



— Não... não é nada — balbuciou André, a voz trémula. — Nada.



— É tudo. — Ela fitou-o nos olhos. — Por favor, dê-me a faca.



Ele sentiu a cabeça girar, sem ver mais nada, apenas a chaga, que parecia encher todo o mundo. Com um esforço gigantesco, André sacudiu a cabeça, para desanuviá-la. E forçou os olhos a ver. Mas isso não dissipou o gosto amargo e vil na boca.



— Não é nada, apenas... nada... absolutamente nada. — Quanto mais ele olhava, menos importante a chaga parecia. — Não passa de uma marca de esfoladura, só isso.



— Por favor? Deve falar em japonês, Furansu-san, sinto muito.



— Ah... não ser doença. Não isso. Apenas... apenas tanga apertada, não se preocupar.



André inclinou-se para cobri-la, apagar a luz, mas ela o deteve. Gentilmente.



— Sinto muito, mas já começou. Por favor, dê-me a faca.



Como sempre, a faca de André se encontrava na bainha em seu cinto. Junto com as roupas, por trás dele.



— Não, por favor, Hinodeh, não faca, faca ruim, não precisar faca. Isso apenas marca, sem importância.



Através de seu pesadelo, ele a viu sacudir a cabeça, sempre gentil, e repetir o pedido, que agora se tornara uma ordem. Os braços e pernas de André começaram a tremer, a cabeça balançava, de forma incontrolável, não havia como controlar, não havia como interromper a litania incoerente, o murmúrio em francês e japonês que se despejou por sua boca, suplicando, alegando e explicando que a pequena chaga era apenas uma esfoladura, não mais do que isso, não era nada demais, embora ele soubesse. Começara mesmo. Hinodeh tinha razão. Começara, começara de verdade. O estômago de André se contraiu. Mal conseguiu conter o vômito e continuou a murmurar, interminável.



Hinodeh não o interrompeu. Pior do que isso, continuou estendida ali, paciente, esperando que o acesso passasse. Pois em seguida haveria uma solução. André insistiu, balbuciando:



— Escute, Hinodeh, por favor, não faca. Por favor. Não pode... isso... não ser nada. Logo desaparecer. Olhar para mim, olhar! — Desesperado, ele apontou para si mesmo. — Nada, nenhum lugar. Essa pequena, logo sumir. Não faca. Nós viver. Não ter medo. Feliz. Sim?



Ele viu uma sombra passar pelo rosto de Hinodeh, seus dedos voltaram a tocar na abrasão e ela repetiu, outra vez com a mesma voz doce e monótona:



— Já começou.



André fixou um sorriso, sem saber que era grotesco, e por mais que adulasse, persuadisse, suplicasse, ela continuou a insistir, com extrema gentileza, enfurecendo-o mais e mais, até que ele se descobriu a pique de explodir.



— Não ser nada — disse ele, a voz rouca. — Compreender?



— Claro, eu compreendo. Mas já começou. Neh?



Ele fitou-a nos olhos, com uma expressão rancorosa, a raiva aflorou, e desatou a gritar:



— Pelo amor de Deus, sim! Sim, SIM! Hai!



Houve um silêncio profundo e prolongado, rompido por Hinodeh:



— Obrigada, Furansu-san. Agora, por favor, como concordou, já começou, como prometeu, dê-me a faca, por favor.



Os olhos de André estavam injetados, os cantos da boca cheios de espuma, o suor escorria pelo corpo, ele se achava à beira da loucura. A boca se abriu e disse o que ele sempre soubera que diria:



— Não faca. Kinjiru! Ser proibido. Não poder. Não poder. Você muito valiosa. Proibido. Não faca.



— Você recusa?



A pergunta foi feita gentilmente, sem qualquer mudança.



— Hinodeh, você sol, meu sol, minha lua. Não poder. Não fazer isso. Nunca, nunca, nunca. Proibido. Você ficar. Por favor. Je t’aime.



— Por favor, a faca.



— Não!



Um longo suspiro. Dócil, ela fez uma reverência, uma luz se extinguindo em seus olhos, foi pegar uma toalha úmida, outra seca, e ajoelhou-se ao lado da cama.



— Aqui, Sire.



O rosto franzido, todo suado, André observava-a.



— Você concordar?



— Sim, eu concordo. Se é esse o seu desejo.



Ele pegou-lhe a mão. Hinodeh não a retirou.



— Concordar de verdade?



— Se é o seu desejo. Como quiser. A voz era triste.



— Não pedir faca, nunca mais?



— Eu concordou. Já acabou, Furansu-san, se é esse o seu desejo. — A voz era doce, o rosto sereno, diferente, mas também o mesmo, com uma insinuação de tristeza. — Por favor, pare agora. Já acabou. Prometo que nunca mais tomarei a pedir. Por favor, desculpe-me.



André sentiu um peso removido de seus ombros. Ficou fraco de alívio.



— Oh, Hinodeh, je t’aime! Obrigado! Obrigado! — A voz era trêmula. — Mas, por favor, por favor, não triste. Je t’aime, obrigado.



— Por favor, não me agradeça. É seu desejo.



— Por favor, não triste, Hinodeh. Eu prometer ser tudo, ser muito bom agora. Maravilhoso. Eu prometer.



Ela acenou com a cabeça, devagar. Um súbito sorriso inundou seu rosto e toda a tristeza se desvaneceu.



— Sim, eu agradeço a você; sim, não ficarei mais triste.



Hinodeh esperou enquanto ele se enxugava, depois removeu as toalhas. Os olhos de André acompanharam-na, deleitando-se com sua imagem, exultantes com a vitória. Ela atravessou o tatame até o outro cômodo, voltou com dois frascos de saquê e murmurou, com um terno sorriso:



— Vamos beber dos frascos, melhor do que taças. O meu quente, o seu frio. Obrigada por comprar meu contrato. A ta santé.



A ta santé, je t’aime.



Ah, so ka! Je t’aime.



Hinodeh esvaziou o frasco, engasgou um pouco, depois riu, removeu o que escorrera para o queixo.



— Vamos para a cama, Furansu-san. Arrisca-se a pegar um resfriado.



A bebida lavou a boca de André, dissipou o sentimento de morte. Lentamente, ele puxou a colcha que a cobria, ansiando por ela.



— Por favor, não mais escuro. Por favor?



— Se assim deseja. Não mais escuro. Exceto para dormir, neh?



Agradecido, André inclinou a cabeça até o futon, renascido, depois deitou-se ao seu lado, amando-a, com um desejo monstruoso. Estendeu a mão.



— Ah, Furansu-san, posso descansar primeiro, por favor? — pediu ela, com profunda ternura, como nunca antes. — Tanta paixão me cansou. Posso descansar um pouco? Mais tarde, nós... mais tarde, neh?



Ele obedeceu, estendeu-se de costas, a virilha vibrando de desejo.



Na escuridão, Hinodeh sentia-se mais contente do que em muitos anos, contente como nos dias anteriores à morte de seu marido, quando viviam em sua casinha em Iedo, com o filho, o menino que agora se encontrava são e salvo, já na casa dos avós, aceito, protegido e crescendo para se tornar um samurai.



Foi lamentável Furansu-san não me dar a faca, como prometeu. Desprezível. Mas também ele é gai-jin e não merece a menor confiança. Mas não importa. Eu já sabia que ele não manteria sua parte do acordo, como eu mantive a minha... independentemente do que Raiko prometeu. Ele mentiu quando assinou o contrato, assim como ela também mentiu. Não importa, não importa mesmo. Eu me encontrava preparada para os dois, ambos mentirosos.



O sorriso de Hinodeh se alargou. O velho herbanário não mentiu. Não senti o gosto de nada, não sinto nada agora, mas a morte circula por meu corpo e só me restam uns poucos minutos neste mundo de lágrimas.



Para mim e para o animal também. Ele fez a escolha. Quebrou sua promessa. E, assim, o impuro paga por me enganar. Não vai iludir mais nenhuma dama. E vai para a morte sem saciar seu desejo!



André despertou, ouvindo sua risada ligeira e estranha.



— O que foi?



— Nada. Mais tarde, riremos juntos. Não haverá mais escuridão depois desta noite, Furansu-san. Não haverá mais escuridão.







Hiraga bateu com o punho no tatame, cansado de esperar por Akimoto. Saiu para a noite tempestuosa, seguiu pelos caminhos no jardim até a porta na cerca. Passou para o outro jardim, encaminhou-se para o bangalô de Takeda, errando a volta na primeira vez. Parou na varanda. Soavam roncos no interior.



— Akimoto, Takeda? — chamou ele, baixinho, não querendo abrir a porta de shoji sem avisar, pois eles podiam se mostrar perigosos se apanhados de surpresa.



Não houve resposta. Os roncos continuaram. Hiraga abriu a porta, sem fazer barulho. Akimoto estava arriado sobre a mesa, com frascos de saquê e garrafas de cerveja espalhadas pelo chão. Nenhum sinal de Takeda. Furioso, ele sacudiu Akimoto, xingando-o. O jovem saiu do estupor, os olhos turvos, apenas meio acordado.



— O que aconteceu?



A voz saiu engrolada, o rosto de Hiraga desfocado, oscilando.



— Onde está Takeda? Acorde! Baka! Onde está Takeda?



— Não sei. Nós... estávamos bebendo...



Por um segundo, Hiraga ficou imóvel, todo o seu mundo virando de cabeça para baixo, depois saiu correndo, atravessou o jardim, passou pela cerca, foi até o esconderijo das bombas.



Ficou atordoado. E depois se lembrou de que todos conheciam o plano, os melhores lugares para pôr as bombas. O pânico proporcionou velocidade a seus pés. Espiou debaixo do bangalô de Takeda, não pôde ver nada, mas logo sentiu o cheiro de fumaça de pólvora. Abaixou-se, rastejou entre os suportes baixos de pedra, mas o estopim fora bem escondido, a fumaça era dissipada pelas correntes de ar. Hiraga saiu lá de baixo e foi sacudir Akimoto de novo.



— Acorde! Levante-se!



Quando o primo, ainda embriagado, tentou empurrá-lo para longe, Hiraga bateu em seu rosto, com a mão aberta, duas vezes. A dor fez com que Akimoto recuperasse um pouco da percepção.



— Takeda pegou as bombas, está incendiando a estalagem, há uma aqui embaixo...



Hiraga obrigou-o a ficar de pé. Resmungando, apoiado nele, Akimoto saiu, trôpego, desceu os degraus para o jardim, o barulho do vento cada vez mais forte. E foi nesse momento que a bomba explodiu.



A explosão foi pequena, mas o suficiente para derrubá-los e abrir um buraco no chão, a maior parte do ruído abafada pelas vigas no chão e pelo vento. Mas o jato do óleo incendiado foi implacável. As chamas se projetaram para cima e para fora.



— Vá para o túnel e espere lá! — ordenou Hiraga, a voz rouca, antes de sair correndo.



O choque da explosão e de sua quase morte dissipou o estupor de Akimoto. Ele começou a correr, mas o vento arremessou algumas brasas, que o atingiram. Frenético, ele bateu em suas roupas, enquanto se afastava. Ao olhar de novo para o bangalô, constatou que se transformara num inferno — tatames de palha de arroz seca, telas de papel oleado, chão e vigas de madeira, telhado de colmo. Enquanto observava, o telhado desabou, com uma chuva de fagulhas, que foram sugadas para cima e levadas pelo vento para a habitação mais próxima. O colmo pegou fogo. Sinos de incêndio começaram a soar — criadas, servos, clientes, cortesãs, os guardas no portão, todos reagiram no mesmo instante.



Hiraga corria pelo caminho para o bangalô mais ao sul. Chegara a poucos metros de distância quando a bomba explodiu. O impacto foi menor do que o anterior, mas jogou-o contra os arbustos, o corpo batendo num dragão de pedra decorativo, fazendo-o soltar um grito de dor, a explosão bastante poderosa para derrubar todo um canto de suportes e parte do bangalô, que se inclinou, como uma pessoa embriagada. Uma parede irrompeu em chamas.



Ele forçou-se a levantar, pulou para a varanda, sem a menor hesitação, arremeteu pela parede de shoji em chamas, o óleo espirrado já provocando a devastação no interior, a fumaça sufocante. Hiraga levantou as mãos para o rosto, a fim de protegê-lo do calor escaldante, e prendeu a respiração contra a fumaça.



Avistou Tyrer jogado para um lado, tentando desesperado engatinhar, sufocado, cercado por chamas, que num instante transformaram a parede de shoji por trás dele, salpicada de óleo, num lençol de fogo. Outras chamas espalharam-se pelas demais paredes, as vigas de apoio e o telhado, lamberam o que restara do futon e da colcha em que Tyrer se deitava. A bainha de seu quimono de dormir rasgado pegou fogo. Hiraga saltou para a frente, bateu com os pés para apagar as chamas da bainha, ajudou-o a se levantar. Um olhar para Fujiko foi suficiente. A bomba a cortara ao meio. Já estava sem cabelos, virando cinza.



Meio cego pela fumaça, Hiraga arrastou Tyrer para fora do bangalô. No segundo em que saíram, o telhado desabou, derrubando-os no chão. O jato resultante de fagulhas e brasas, convertido num lança-chamas pelo vento, começou a incendiar outras construções, cercas, a casa de chá no jardim ao lado. Soavam gritos por toda parte, alertas contra incêndio, pessoas já formavam filas, correndo para um lado e outro com baldes, ou indo buscar mais baldes, a maioria usando agora máscaras molhadas contra a inalação de fumaça, o que todos já tinham feito, em abundância.



Atônito por ainda estar vivo, tossindo e engasgando, Hiraga bateu num trecho em brasa no peito do seu quimono, a espada curta no cinto, a espada longa desaparecida. Até onde podia determinar, Tyrer se encontrava ileso, mas era impossível ter certeza, já que ele não estava de todo consciente, o peito arfando, tossindo e vomitando devido à fumaça inalada. Desesperado, Hiraga ficou parado ao seu lado, a fim de recuperar o fôlego e o raciocínio. Olhou ao redor, à procura de novos perigos. A habitação mais próxima irrompeu em chamas, depois a seguinte, cortando seu caminho de fuga.



Katsumata tinha razão, pensou ele. Com este vento, a Yoshiwara está condenada. E também a colônia.







À beira da terra de ninguém, a patrulha de soldados ficou imóvel, chocada — assim como todas as pessoas na cidade dos bêbados que se encontravam sóbrias —, olhando por cima da cerca, na direção da Yoshiwara. Duas colunas de fogo e fumaça turbilhonante projetavam-se para o céu e soavam gritos e sinos distantes, os sons trazidos pelo vento. Ouviram o barulho fraco de uma terceira explosão. Uma terceira fonte de chamas. A fumaça começou a envolvê-los. Algumas fagulhas passaram por eles.



— Deus Todo-Poderoso! — exclamou o sargento, saindo de junto do armazém para ver melhor. — Isso foi uma bomba?



— Não sei, sarja. Pode ter sido um barril de óleo explodindo. Mas é melhor voltarmos, pois o fogo vem em nossa direção e...



A bomba incendiária que Takeda colocara no outro lado do armazém detonou nesse momento. Instintivamente, todos se abaixaram. Mais fumaça, fogo crepitando, berros dos moradores da cidade dos bêbados mais próximos, pedidos por baldes.



— Fogo! Fogo! Depressa, pelo amor de Deus! Aquele é o armazém em que fica guardado o óleo de lampião!



Homens seminus entravam e saíam correndo das casas próximas, na tentativa de salvar seus valores. Num ponto mais abaixo da rua, a casa da Sra. Fortheringill estava se esvaziando, mulheres e fregueses praguejando e suando, vestindo suas roupas. Mais sinos de alarme soaram. E o saque começou.



Mais além, no portão sul, os disciplinados samurais entraram em ação, correndo para a Yoshiwara com escadas e baldes, máscaras molhadas contra a fumaça cobrindo seus rostos. Uns poucos desviaram-se para combater o fogo no armazém, uns poucos seguiram em frente. As chamas do telhado do armazém, impelidas pelo vento, saltaram pela viela, para atacar a fileira seguinte de construções, que pegaram fogo no mesmo instante.



De seu esconderijo, na terra de ninguém, Takeda viu os soldados em confusão e exultou com o sucesso das bombas, grande parte da Yoshiwara já em chamas. Era tempo de continuar. Rapidamente, ele ajustou a máscara no rosto, que o fazia parecer ainda mais sinistro, junto com o quimono sujo de terra e fuligem.



Em alternações bruxuleantes de noite e luz, ele correu para o poço, pegou a mochila, enfiou os braços pelas alças e foi se esgueirando num caminho precário entre o lixo, tão depressa quanto ousava. Soaram gritos de advertência por trás. Takeda pensou que fora avistado, mas a manifestação era pelo prédio, no momento em que uma parede desabou, com um estrondo, provocando novos jatos de fogo, uma nova chuva de fagulhas, dispersando as pessoas, levando o incêndio ao prédio seguinte. Agora, a abundância de chamas permitia-lhe ver melhor. Exultante, ele começou a correr. Mais à frente ficavam a aldeia e a segurança.



— Ei, você!



Takeda não entendeu as palavras, mas o grito fez com que parasse, num sobressalto. Havia outro grupo de soldados britânicos à sua frente, sob o comando de um oficial. Era uma patrulha que viera correndo da área da aldeia, a fim de avaliar o perigo, e parara de repente, em surpresa. Bloqueavam a sua fuga.



— Deve ser um saqueador! Ou um incendiário! Ei, você!



— Por Deus, senhor, tome cuidado! É um samurai e está armado!



— Dê-me cobertura, sargento! Você aí, samurai! O que faz aqui? O que leva nessa mochila?



Em pânico, Takeda viu o oficial desabotoar o coldre, enquanto avançava em sua direção, e os soldados tirarem o rifle do ombro. Durante todo o tempo, o som do holocausto continuava, as chamas se alastrando, criando estranhas sombras. Takeda virou-se, saiu correndo. No mesmo instante, os soldados partiram em seu encalço.



No outro lado da terra de ninguém, o fogo no armazém escapara por completo a todo e qualquer controle e os soldados tentavam, sem muito resultado, organizar um grupo para combater o incêndio e evitar que as chamas se propagassem a outras construções. O fogo proporcionava bastante claridade para que Takeda corresse pela terra de ninguém, evitando a maioria dos obstáculos, a mochila batendo ern suas costas. A respiração era cada vez mais ofegante. Com súbita esperança, ele divisou a segurança, na viela vazia ao lado do armazém em chamas, bem à sua frente. Foi para lá que correu, distanciando-se com facilidade dos soldados em sua perseguição.



— Pare ou eu atiro!



As palavras nada significavam para ele, mas a hostilidade era inequívoca. E Takeda continuou a correr, em linha reta agora, não precisava mais de esquivas, tão perto da segurança. Esquecera que a claridade que o ajudava também ajudava aos soldados, delineando seu vulto contra as chamas.



— Detenha-o, sargento! Pode feri-lo, mas não o mate!



— Certo, senhor... Ei, por Deus, não é aquele patife que Sir William procura, o tal de Nakama, aquele assassino desgraçado?



— Tem toda razão, é ele mesmo! Depressa, sargento, trate de derrubá-lo logo!



O sargento mirou. Seu alvo já começava a escapar pela viela. Ele puxou o gatilho.



— Acertei! — gritou em seguida, exultante, começando a correr. — Vamos embora, pessoal!



A bala derrubara Takeda. Atravessara a mochila, no alto das costas, perfurara um pulmão e saíra pelo peito. Não era um ferimento fatal, se o homem tivesse sorte. Mas Takeda não sabia disso, tinha certeza de que estava perdido e ficou estendido na terra, uivando com o choque, mas sem dor, um braço inútil, dormente, o rugido do fogo próximo abafando seus gritos. O terror fez com que ficasse de joelhos, o calor do incêndio se aproximando era assustador, a segurança a poucos passos à frente, pela viela. Ele se arrastou para a frente. E depois, através das lágrimas, ouviu os gritos dos soldados logo atrás. Não tinha escapatória!



Seus reflexos assumiram o comando. Usando a mão incólume como apoio para se levantar, com um grito poderoso, ele se lançou para as chamas. O jovem soldado na vanguarda parou abruptamente, quase caindo, recuou para um ponto seguro, as mãos erguidas contra o inferno, a estrutura devendo cair a qualquer momento.



— Desgraçado! — O soldado olhou furioso para as chamas, que consumiam sua presa, o cheiro de carne queimada deixando-o nauseado. — Mais um segundo e eu pegaria o patife, senhor! Era mesmo ele, o homem que Sir William...



Foi a última coisa que o jovem disse em sua curta vida. As bombas de Katsumata na mochila explodiram com a maior violência, um pedaço de metal dilacerou a garganta do soldado, derrubando o oficial e outros homens como pinos num jogo de boliche, quebrando alguns membros. Como se fosse um eco, um tambor de óleo também explodiu, com a mesma violência, depois outro e mais outro, com um efeito cataclísmico. Chamas e fagulhas subiram pelo ar, foram apanhadas e usadas de forma implacável pelo vento cada vez mais forte, agora alimentado também pela intensidade do calor.



A primeira das casas da aldeia começou a arder.



O shoya, sua família e todos os aldeões, já com máscaras contra a fumaça e preparados num instante, desde o primeiro alarme, continuaram a trabalhar com uma rapidez bem ensaiada, mas estóica, guardando os objetos valiosos nos pequenos abrigos de tijolos, à prova de fogo, encontrados em todos os jardins. Todos os telhados ao longo da rua principal pegaram fogo.



Menos de uma hora depois da explosão da primeira bomba, a casa das Três Carpas não mais existia e quase toda a Yoshiwara fora destruída. Apenas as chaminés de tijolos, os suportes de pedra das casas e os abrigos de tijolos, pedras e terra, à prova de fogo, ainda continuavam de pé, no meio das cinzas e brasas. Taças e frascos de saquê com os formatos alterados pelo fogo. Os utensílios de cozinha de metal. Jardins em ruínas, arbustos queimados, grupos de habitantes atordoados reunidos aqui e ali. Milagrosamente, o fogo deixara duas ou três estalagens incólumes, mas ao redor havia um vazio desolado, feito de cinzas e brasas, até a cerca da Yoshiwara e o fosso além.



No outro lado do fosso ficava a aldeia. Estava em chamas. Além da aldeia, na colônia propriamente dita, os telhados de três prédios, perto da cidade dos bêbados, já haviam pegado fogo. Um desses prédios era o do Guardian, onde Jamie McFay tinha seu novo escritório.



Nettlesmith e seus empregados estendiam baldes com água para o topo da escada, onde Jamie se postava, tentando apagar as chamas no telhado. O fogo já devorava grande parte do prédio ao lado. Outros homens, mais criados chineses e Maureen, entravam e saíam correndo pela porta da frente, intrépidos, carregando nos braços pilhas de papel, moldes de impressão e tudo o mais que fosse importante. As telhas de madeira em chamas caíam em torno deles. A fumaça que vinha da cidade dos bêbados fazia com que tossissem, deixava-os sem respiração, dificultando o trabalho. Lá em cima, Jamie estava perdendo a batalha. Uma rajada de vento empurrou as chamas em sua direção. Ele quase caiu da escada e acabou descendo, derrotado.



— Não tem mais jeito — murmurou ele, ofegante, o rosto escurecido pela fuligem, cabelos chamuscados.



— Jamie, ajude-me com o prelo, pelo amor de Deus! — berrou Nettlesmith. Ele correu para o interior do prédio. Maureen fez menção de segui-lo, mas Jamie deteve-a.



— Não! Fique aqui e tome cuidado com seu vestido! — gritou ele, por cima do barulho, no momento em que uma chuva de fagulhas caía ao redor, para depois entrar no prédio também.



Numa reação sensata, Maureen recuou para o lado da rua que dava para o mar, ajudando outros a empilharem de modo mais seguro o que fora salvo. Todo o telhado pegara fogo agora, mais fagulhas caíram sobre Jamie e Nettlesmith, quando saíram cambaleando pela porta da frente, carregando o pequeno prelo portátil. Depois, constatando que era impossível salvar o telhado, Jamie tornou a entrar, apressado, para ajudá-lo a tirar os tipos, moldes, tinta e algum papel. Mas num instante se tornou perigoso demais entrar no prédio de madeira. Os dois ficaram parados na frente, praguejando, e logo recuaram para uma distância segura, quando algumas vigas começaram a cair.



— Porra de fogo miserável! — bradou Jamie, chutando uma caixa com tipos, furioso.



Ele se virou abruptamente, quando Maureen pegou sua mão.



— Sinto muito, amor — murmurou ela, as lágrimas escorrendo. Jamie abraçou-a e disse, fervoroso, com toda sinceridade:



— Não tem importância. Você está sã e salva e isso é tudo o que conta.



— Não se preocupe demais, Jamie. Espere até amanhã, quando poderemos pensar direito. Talvez a situação não seja tão desesperadora.



Nesse instante, bombeiros samurais voluntários passaram correndo. Por meio de sinais, Jamie perguntou a um deles onde podia conseguir uma máscara de incêndio. O homem soltou um grunhido, tirou um punhado da manga e partiu correndo. Jamie molhou-as num balde com água.



— Tome aqui, Maureen.



Ele entregou-lhe a primeira máscara, deu outra a Nettlesmith, sentado num barril, no lado do passeio que dava para o mar, praguejando em silêncio. O telhado desabou, convertendo o prédio num inferno.



— Terrível! — comentou Jamie para Nettlesmith.



— É verdade, mas não um desastre total. — O homem mais velho, esguio, gesticulou pelo passeio. O lado norte da colônia não fora atingido pelas chamas, os prédios da Brock, da Struan e das legações continuavam intactos. — Com um pouco de sorte, o incêndio não vai se estender até lá.



— Este vento é o maior perigo.



— Tem razão, mas estamos seguros no lado da praia...



Mais homens passaram correndo, com machados, inclusive Dmitri. Ele viu o prédio destruído e gritou, sem parar:



— Sinto muito por isso! Vamos tentar abrir um aceiro para impedir a passagem das chamas!



Maureen disse:



— Jamie, vá ajudar. Estarei segura aqui.



— Você não pode fazer mais nada aqui — acrescentou Nettlesmith. — Tomarei conta dela. Estamos seguros aqui e recuaremos para o prédio da Struan, se for necessário.



Ele tirou lápis e papel do bolso, passou a língua pela ponta do lápis, pensativo, e começou a escrever.







Os machados golpearam a construção de madeira, os prédios para o sul em chamas, o vento mais quente a cada minuto, mais forte do que nunca. Os homens redobraram seus esforços, mas logo uma rajada cheia de fagulhas forçou-os a recuar, seguida por outra. Todos fugiram para a segurança. Dmitri disse, desolado:



— Por Deus, já viu um incêndio se espalhar tão depressa? Tudo aqui é inflamável demais, autênticas armadilhas mortais. E agora?



— O que acha de tentarmos abrir um espaço ali? — gritou Jamie.



Ele apontou para a cerca mais próxima. Todos o acompanharam. Quanto mais se aproximavam da cerca e da Yoshiwara, no entanto, pior se tornavam a fumaça o calor e as chamas.



Havia bem pouco que ele ou qualquer outro pudesse fazer. Nada, para ser mais preciso. O fogo se espalhava depressa demais, as pessoas corriam para um lado e outro com baldes, mas no momento em que extinguiam um incêndio, dez outros começavam nas proximidades. Por trás de grupos de mulheres e criados atordoados, em busca de segurança, alguns carregando trouxas, a maioria de mãos vazias as poucas casas de chá restantes pegaram fogo também, parecendo mariposas em torno de uma vela, num instante vivas, no seguinte mortas.



Com quase tudo na Yoshiwara desaparecido, sob o céu coberto pela fumaça, os homens misturaram-se aos sobreviventes, procurando ansiosos por uma dama em particular, por uma mama-san. Jamie também se adiantou, seus olhos esquadrinhando cada rosto, tentando descobrir Nemi na multidão. Não a esquecera. Se alguém fosse capaz de escapar, pensara ele, seria Nemi. Mas, subitamente, ele já não tinha mais tanta certeza. Havia bem poucos sobreviventes aqui. Preocupado, Jamie procurou algum rosto conhecido. Não encontrou nenhum.



Gomen nasai, Nemi-san, wakarimasu ka? — disse ele, indagando se alguém a vira.



Mas todos responderam, apáticos, ou com graus diversos de reverências e sorrisos forçados, que não, sinto muito:



Iyé, gomen nasai.



Dmitri recuou do meio da fumaça, tossindo.



— Os samurais são tremendos bombeiros. Poderíamos aprender algumas coisas com eles, embora não sejam capazes de controlar esta merda. Viu Nemi?



— Não. Ia perguntar a você.



— Talvez ela esteja no outro lado ou por ali. — O peito arfando, com dificuldade para respirar, Dmitri apontou para a campina que levava à pista de corrida de cavalos, onde uns poucos lampiões acesos iluminavam a escuridão. — Darei a volta pelo outro lado, passarei pelo portão norte e atravessarei o canal. Você tenta a campina. Se eu a encontrar, o que quer que diga?



— Apenas que espero que esteja sã e salva e que a procurarei amanhã.



Os dois se abaixaram, quando uma língua de fogo passou por cima e foi atingir uma casa da aldeia por trás. Na confusão, Jamie se perdeu de Dmitri e continuou sua busca, ajudando onde podia. Em determinado momento, Heavenly Skye passou correndo e gritou:



— Jamie, acabei de saber que Phillip Tyrer sumiu, junto com todo o pessoal das Três Carpas!



— Deus Todo-Poderoso! Tem certeza? O que me diz...



Mas Skye já desaparecera na escuridão.



As legações, que ficavam para o norte, ainda não estavam diretamente ameaçadas. Nem os prédios da Struan e Brock, as casas e armazéns próximos, embora o vento fosse mais quente e mais forte a cada minuto. O passeio e as ruas estavam apinhados, todos se preparando para a última defesa, mais soldados e marujos desembarcando da esquadra, onde soara pela primeira vez o alarme geral. Samurais espalharam-se pela High Street, vindos de seus acampamentos, além dos portões. Traziam escadas e baldes, máscaras contra incêndio, demonstrando a maior eficiência. Em grupos, encaminhavam-se para os pontos mais perigosos.



Sir William, um capote comprido por cima do pijama, assumira o comando da defesa da legação. Na beira da praia, Pallidar supervisionava os dragões que ligavam bombas no mar, através de compridas mangueiras de lona. Ele olhou para trás e avistou o general sair apressado da noite, tendo ao lado um oficial-engenheiro, com um destacamento de soldados em sua esteira, até parar na frente de Sir William.



— Estou seguindo para a cidade dos bêbados e a aldeia — anunciou o general, esbaforido. — Planejo explodir algumas casas para abrir um aceiro que impeça a passagem do fogo... com a sua permissão. Concorda?



— Claro. Faça o que for necessário. Pode dar certo. Se o vento não diminuir, estaremos liquidados de qualquer maneira. Vá depressa!



— Por acaso eu observava do penhasco e tive a impressão de que três ou quatro incêndios começaram ao mesmo tempo na Yoshiwara, em pontos diferentes.



— Por Deus! Está querendo dizer que foi um incêndio criminoso?



— Não sei, mas quer tenha sido um ato de Deus ou do demônio, ou de um maldito incendiário, isto vai nos destruir!



Acompanhado por seus homens, o general se afastou pela escuridão. Sir William viu o almirante subir pela praia, do cais da legação, onde mais marujos e fuzileiros desembarcavam.



— Os barcos já estão prontos para a evacuação — avisou Ketterer. — Temos suprimentos em quantidade suficiente para toda a população. Podemos reunir o pessoal ao longo da praia, onde haverá segurança.



— Ótimo. A situação pode se tornar perigosa.



— Tem isso. Isso muda completamente os nossos planos, não é?



— Receio que sim. O incêndio não poderia ter ocorrido numa ocasião pior. Maldito fogo, pensou Sir William, furioso. Complica tudo — a reunião com Yoshi amanhã, o bombardeio de Kagoshima, logo no momento em que Ketterer finalmente concordava em obedecer às minhas instruções. O que faremos agora? Vamos evacuar Iocoama? Embarcar todo mundo na esquadra e voltar a Hong Kong, com o rabo entre as pernas? Ou transferir todo mundo para Kanagawa e que se dane o que os japoneses podem fazer? Não, não é possível. Kanagawa é uma armadilha pior, pois a baía ali é muito rasa para a esquadra nos ajudar. Ele olhou para Ketterer. O rosto do almirante era duro e curtido, os olhos pequenos fixados na distância. Ele vai optar pelo retorno a Hong Kong, pensou Sir William, consternado. Droga de vento!



Num ponto mais abaixo da rua, MacStruan tinha escadas encostadas na lateral de seu prédio. Vários homens suspendiam baldes com água pela escada, os que estavam no topo molhavam o telhado. No prédio da Brock, ao lado, Gornt e outros faziam a mesma coisa.



— Por Deus, olhem só! — gritou alguém.



As chamas se estendiam agora por toda a linha do horizonte da cidade dos bêbados e da aldeia. O vento era escaldante e forte, soprando contra seus rostos furioso, provocando-os, desafiando-os.



Mon Dieu! — murmurou Angelique.



Ela usava um casaco por cima da camisola, lenço na camisa. Vestira-se apressada, ao primeiro alarme, e saíra correndo para a rua. Era evidente que o fogo os alcançaria em breve, por isso ela tornou a entrar, subiu apressada para o seu quarto. Rapidamente, meteu suas escovas, pentes, pomadas, cremes e ruges numa bolsa, a melhor lingerie em outra. Um momento de pensamento e depois, não mais assustada, ela abriu a janela, gritou para que Ah Soh permanecesse lá embaixo e pôs-se a lhe jogar seus vestidos e casacos.



Ah Soh fungou, desdenhosa, e não se mexeu. MacStruan, ali perto, ordenou que ela começasse a trabalhar e apontou para o cais da companhia, no outro lado do passeio, onde empregados já guardavam caixas com documentos, fuzis e mercadorias diversas, enquanto Vargas e outros suavam para levar mais pacotes até lá. MacStruan decidira correr o risco de deixar dinheiro, lingotes e alguns documentos no cofre de ferro.



— Ah Soh, sua rameira sem mãe! — gritou ele, num cantonês perfeito. — Leve as coisas da tai-tai para lá, vigie tudo e não saia do lugar mesmo que o fogo do inferno caia em cima de você ou vou bater nas solas de seus pés até virarem uma polpa sangrenta!



Ela obedeceu no mesmo instante e MacStruan acrescentou, rindo:



— Angelique, teremos um aviso com bastante antecedência. Pode ficar aí até eu chamá-la.



— Obrigada, Albert.



Ela viu Gornt levantar os olhos, do prédio ao lado. Ele acenou. Angelique respondeu ao aceno. Não sentia mais medo agora. Albert a avisaria a tempo, a segurança a aguardava no outro lado da rua ou nos barcos que começavam a se concentrar perto da praia. Não havia mais qualquer preocupação em sua mente. Já decidira como cuidar de André, Skye e a mulher de Hong Kong. E de Gornt amanhã. Sabia o que fazer. Cantarolando Mozart, ela pegou uma escova, sentou-se diante do espelho, a fim de se fazer mais apresentável para todos. Era como nos velhos tempos. Agora, o que vou vestir? O que seria melhor?







Raiko seguiu o corpulento servo pelas ruínas de sua estalagem. Ele segurava um lampião a óleo e avançava com extremo cuidado, contornando as brasas que ainda luziam intensamente, uma advertência na escuridão, atiçadas pelo ar quente e acre. Ela tinha o rosto enegrecido, os cabelos impregnados de cinza e poeira, o quimono chamuscado, todo rasgado. Ambos usavam máscaras contra a fumaça, mas mesmo assim tossiam e espirravam de vez em quando.



— Vá mais para a esquerda — balbuciou Raiko, a garganta ressequida, continuando a inspeção.



Podiam ver apenas os suportes de pedras, formando quadrados perfeitos, por cima das cinzas, indicando os lugares em que antes havia habitações.



— Pois não, ama.



E eles seguiram em frente.



Acima do barulho do vento, podiam ouvir vagamente outras pessoas chamando, gritos ocasionais de dor e choro, sinos de incêndio distantes, na aldeia e na colônia, que também ardiam. Raiko superara o pânico inicial. Incêndios acontecem. Eram obra dos deuses. Não importa, estou viva. Amanhã descobrirei o que causou o incêndio, se foi mesmo uma explosão, como alguns alegam, embora na confusão este vento terrível possa enganar os ouvidos, e o barulho possa muito bem ter sido causado por um pote de óleo mal colocado caindo num fogo da cozinha e explodindo, assim o incêndio se iniciando. A casa das Três Carpas desapareceu. Assim como todas as outras ou quase todas. Mas não estou arruinada, ainda não.



Algumas cortesãs e criadas, várias chorando, surgiram da noite, umas poucas com queimaduras. Raiko reconheceu as mulheres do Dragão Verde. Não havia nenhuma das suas ali.



— Parem de chorar! — ordenou ela. — Podem ir para a casa das Dezesseis Orquídeas... todas estão se reunindo ali. Não foi muito afetada e há lugar para dormir, comida e bebida para todas. Onde está Chio-san?



Era a mama-san delas.



— Não a vimos — disse uma delas, entre lágrimas. — Eu estava com um cliente. Mal tive tempo de sair correndo com ele e ir para o abrigo subterrâneo.



— Ótimo. E agora tratem de ir. Sigam por este caminho e tomem cuidado. Raiko sentiu-se satisfeita ao recordar que, por ocasião da construção da Yoshiwara, há pouco mais de dois anos, com as mama-sans escolhidas por sua guilda — e contando com a aprovação prévia e dispendiosa do departamento encarregado do Bakufu —, ela sugerira que cada casa de chá tivesse uma adega à prova de fogo, perto da estrutura central, a estrutura de tijolos abaixo da superfície, como segurança adicional. Nem todas as mama-sans haviam aprovado, dizendo que não havia mérito nenhum na despesa extra. Não importa, elas é que saíram perdendo. Vamos ver quantas vão se lamentar e bater no peito amanhã, por não terem seguido o meu exemplo.



Ela acabara de inspecionar seu abrigo. Os degraus desciam para a porta revestida de ferro. O interior se encontrava impecável. Todos os bens valiosos se encontravam ali, todos os contratos, provas de dívidas, empréstimos feitos à Gyokoyama, declarações bancárias, vales, as melhores roupas de cama e mesa, os melhores quimonos... tanto os seus quanto os de suas damas, tão bons quanto novos. Desde o início, fora sua política que as melhores roupas não deveriam ser usadas à noite, mas guardadas no abrigo, o que quase sempre acarretava resmungos e protestos pelo trabalho extra. Não haverá resmungos esta madrugada, pensou ela.



Para seu imenso alívio, localizara todas as suas damas depois do incêndio, assim como os criados e clientes, à exceção de Fujiko, Hinodeh, Furansu-san e Taira, mais dois servos e duas criadas, que continuavam desaparecidos. Mas isso não a preocupava. Tinha certeza de que todos se encontravam sãos e salvos, em algum lugar. Um servo avistara um gai-jin, talvez dois, correndo na direção do portão.



Namu Amida Butsu, orou ela, que todos estejam em segurança, e me abençoe por minha sabedoria, ao cuidar para que meu pessoal sempre fizesse os exercícios de incêndio.



O horror do incêndio na Yoshiwara de Iedo, doze anos antes, lhe ensinara a lição. O fogo quase a matara e a seu cliente, um rico mercador de arroz da Gyokoyama. Ela o salvara, despertando-o do estupor da embriaguez, quase o arrastando para fora, ao risco da própria vida. Escapando pelos jardins, descobriram-se subitamente cercados pelo fogo, acuados, mas salvaram-se da morte ao cavarem uma vala na terra macia, com a ajuda da adaga que ela sempre levava na obi, deixando as chamas passarem por cima. Mesmo assim, ela sofrera queimaduras graves na parte inferior das costas e nas pernas, o que encerrara sua carreira de cortesã.



Mas o cliente não a esquecera. Ao se recuperar, convencera o pessoal da Gyokoyama a lhe emprestar os recursos para abrir sua própria casa de chá e depois passara a se dedicar a outra dama. O investimento já dera um lucro cinco vezes maior que o seu valor. Naquele incêndio, mais de cem cortesãs, dezesseis mama-sans, incontáveis clientes e criadas haviam perecido. Mais morreram no incêndio da Shimibara, em Quioto. Ao longo dos séculos, centenas em outros incêndios. No grande fogo das mangas pendentes, poucos anos depois de mama-san Gyoko ter construído a primeira Yoshiwara, o fogo fora devastador, custando cem mil vidas a Iedo. Em dois anos, tudo fora reconstruído, prosperava de novo, só para queimar outra vez, ser reconstruído, queimar, num processo interminável. E agora, como antes, jurou Raiko, reconstruiremos a nossa Yoshiwara para ser melhor do que nunca!



— A casa das Dezesseis Orquídeas seria nessa direção, ama, neh?



O servo hesitou, indeciso, entre as nuvens de fumaça. Ao redor, havia apenas brasas e cinzas, uns poucos suportes de pedra patéticos, sem que se pudesse divisar os caminhos sinuosos, sem os marcos de pedra para orientá-los. De repente, uma rajada de vento removeu cinzas para revelar os suportes de um bangalô e um dragão de pedra rachado pelo calor. Raiko reconheceu-o e compreendeu onde se encontravam. O bangalô de Hinodeh.



— Devemos voltar um pouco — disse ela. Foi nesse instante que alguma coisa atraiu sua atenção. Um brilho. — Espere um pouco. O que é aquilo?



— Onde, ama?



Raiko esperou. Outra vez o vento agitou as brasas e outra vez um objeto faiscou, um pouco à frente, à direita.



— Ali!



— Ah, sim.



Com todo cuidado, ele usou um galho enegrecido, sem folhas, para abrir caminho, foi se adiantando, ergueu o lampião para espiar à frente. Outro passo cauteloso, só para recuar apressado, quando uma nova rajada jogou fagulhas em sua direção.



— Vamos voltar. Procuraremos amanhã.



— Um momento, ama.



Estremecendo com o calor, ele usou o galho para remover mais cinzas. E soltou uma exclamação aturdida. Os dois corpos carbonizados estavam estendidos lado a lado, a mão esquerda de um na mão direita de outro. O brilho era de um anel de sinete de ouro, retorcido, parcialmente derretido.



— Ama!



Consternada, como uma estátua, Raiko postou-se ao lado dele. Furansu-san e Hinodeh, só podiam ser os dois, pensou ela, no mesmo instante. Ele sempre usava um anel de sinete... e lembro que me chegou a oferecê-lo, há poucos dias.



E, também no mesmo instante, seu espírito se animou, à visão das mãos dadas, a imagem que eles formavam em seu leito de brasas parecendo ser um berço de pedras preciosas, de rubis, faiscando, morrendo e renascendo a cada corrente de ar... como se os dois fossem permanecer assim até o final dos tempos.



Ah, muito triste, pensou Raiko, as lágrimas aflorando, muito triste, e ao mesmo tempo tão lindo. Como eles parecem serenos, deitados aqui, como parecem abençoados, morrendo juntos, de mãos dadas. Devem ter se decidido pela taça de veneno e partiram juntos, como um só. Muito sábio. A melhor coisa, para ambos.



Namu Amida Butsu — murmurou ela, como uma bênção, enquanto removia as lágrimas. — Vamos deixá-los em paz, amanhã resolverei o que fazer.



Raiko se afastou, com lágrimas entre amargas e doces, mas contente pela beleza que testemunhara. Mais uma vez, dois seres haviam escolhido o caminho para o ponto de encontro.



Um súbito pensamento aflorou em sua mente.



Se aqueles dois eram Furansu-san e Hinodeh, o gai-jin que escapara devia ser Taira. Isso é ótimo, muito melhor do que se fosse o contrário. Perdi uma boa fonte de informações, mas o ganho será maior a longo prazo. Taira e Fujiko são mais dóceis e têm futuro. Manipulado com habilidade, Taira poderá com a maior facilidade fornecer muitas informações, muito em breve conseguirei conversar diretamente com ele, seu japonês melhora a cada dia e já é muito bom para um gai-jin. Devo arrumar lições extras, ensinar frases políticas, não apenas a linguagem da cama e do mundo flutuante, que é tudo o que Fujiko conhece... e com um sotaque camponês ainda por cima. Com toda certeza, meu investimento a longo prazo é muito mais promissor e...



Raiko e o servo pararam ao mesmo tempo. Olharam um para o outro e depois, abruptamente, para o céu ao sul. O vento amainara.


58





Quarta-feira, 14 de janeiro:





Iocoama está acabada, William — disse o general, à primeira claridade da manhã, a voz rouca.



Estavam no penhasco, por cima da colônia, Pallidar junto com eles, todos montados. A fumaça ainda subia até ali. O rosto do general estava machucado e sujo, o uniforme rasgado, a pala do quepe chamuscada.



— Achei que era melhor chamá-lo para subir até aqui, de onde pode ter uma vista melhor. Um ato de Deus.



— Eu sabia que fora terrível, mas isto...



As palavras definharam. Sir William estava atordoado. Nenhum deles dormira. Os sinais de fadiga e preocupação estampavam-se em seus rostos, as roupas chamuscadas e sujas, a de Pallidar toda rasgada, em piores condições. Enquanto o sol surgia, podiam contemplar todo o panorama, até Hodogaya, na Tokaidô.



A Yoshiwara não mais existia, nem a aldeia, a maior parte da cidade dos bêbados, mais da metade da colônia, inclusive os estábulos. Ainda não havia um relatório confirmado de baixas, mas circulavam rumores abundantes, todos ruins. Também não havia ainda uma causa confirmada para a catástrofe. Muitos bradavam incêndio criminoso por japoneses, mas que japoneses, e por ordem de quem, ninguém sabia, embora a destruição da Yoshiwara e da aldeia não fosse incomodar nenhum deles, se com isso pudessem alcançar seus objetivos.



— Vai ordenar a evacuação esta manhã?



A cabeça de Sir William doía com mil perguntas e presságios.



— Primeiro, uma inspeção. Obrigado, Thomas. Pallidar, venha comigo. Ele esporeou seu pônei pela encosta abaixo. Parou por um momento diante da legação.



— Alguma novidade, Bertram?



— Não, senhor. Nem nomes ou números confirmados, por enquanto.



— Mande chamar imediatamente o ancião da aldeia, o shoya. Peça a ele para descobrir quantas baixas teve e vir falar comigo o mais depressa possível.



— Não falo japonês, Sir William, e Phillip Tyrer não está aqui.



— Pois então trate de encontrá-lo! — berrou Sir William, satisfeito pela oportunidade de descarregar um pouco de sua ansiedade acumulada e a preocupação com Tyrer. Foi recompensado ao ver o jovem empalidecer. — E aprenda logo japonês ou vou despachá-lo para a África, lá aprenderá o que é bom! Quero todos os mercadores seniores reunidos aqui dentro de uma hora... Não, não aqui, no clube é melhor. Vamos ver... São seis e vinte agora. Marque a reunião para as nove e meia e, pelo amor de Deus, comece logo a usar a droga da sua cabeça!



Idiota, pensou Sir William, afastando-se a trote, já se sentindo melhor. Sob o céu clareando, os habitantes de Iocoama começavam a recolher os fragmentos de suas vidas. A princípio, Sir William, escoltado por Pallidar, manteve-se na High Street, cumprimentando a todos, respondendo a perguntas, sempre com a mesma declaração:



— Primeiro, deixem-me dar uma olhada. Convoquei uma reunião no clube as nove e meia. Até lá, já terei uma avaliação melhor da situação.



Mais perto da cidade dos bêbados, o cheiro de prédios queimados piorou. Naquela madrugada, quando o vento amainara, por volta das duas horas, os incêndios haviam se extinguido rapidamente e as chamas deixaram de saltar de uma casa para outra. Só isso salvara a colônia da destruição completa. Todas as legações estavam salvas, assim como o prédio da capitania do porto, dos principais mercadores e seus armazéns, da Struan, Brock, Cooper-Tillman e outras companhias. O prédio de Lunkchurch fora destruído.



O fogo parara pouco antes da Santíssima Trindade, deixando-a intacta. Ele agradeceu a Deus por um milagre tão conveniente. Mais além, a igreja católica perdera a maior parte de suas janelas e telhado, tinha a entrada chamuscada, as vigas ainda fumegavam, dando a impressão de uma boca escancarada com dentes apodrecidos.



— Bom dia. Onde está o padre Leo? — perguntou Sir William a um homem que fazia limpeza no jardim.



— Na sacristia, Sir William. Bom dia, fico satisfeito por ver que está são e salvo, Sir William.



— Obrigado. Lamento por sua igreja. Convoquei uma reunião no clube, às nove e meia. Pode espalhar a notícia? O padre Leo será bem-vindo, é claro.



Sir William seguiu em frente. Ao contrário do que acontecia na aldeia e na Yoshiwara, onde pilhas de cinza limpa se acumulavam em montes, como neve, as áreas devastadas da colônia e da cidade dos bêbados eram uma confusão de tijolos, lajes de pedra, metal retorcido, restos de máquinas, ferramentas, armas, canhões, bigornas e outros produtos manufaturados, tudo transformado em lixo. A chaga purulenta da terra de ninguém estava limpa, exceto pelos metais, e isso o agradou.



Ele seguiu pelo caminho sinuoso para o portão sul. A casa da guarda desaparecera. Uma barreira improvisada fora erguida no vazio, e havia samurais de sentinela ali.



— Mas que idiotas! — murmurou Pallidar. — Eles estão fazendo uma barricada contra o quê?



Sir William não respondeu, absorto no que podia ver e no que podia fazer. À frente, junto ao canal e ao fosso, podia ver aldeões e outras pessoas circulando ou agachados em grupos desolados. No outro lado do fosso, onde antes existia a Yoshiwara, havia também grupos de mulheres, cozinheiros e outros criados sentados ou de pé, em torno da única estrutura parcial que não fora destruída, usando telas de lona como abrigo. Samurais ainda jogavam água em focos de fogo aqui e ali. O vento brando trazia o som de muitas pessoas chorando.



— Terrível, senhor — comentou Pallidar.



— Tem razão.



Sir William suspirou e fez novo esforço; cabia a ele dar o exemplo e, por Deus, iria agir como deveria fazer o ministro de sua majestade britânica para o Japão.



— Foi mesmo lamentável, mas dê uma olhada ali. — No penhasco, o acampamento de barracas continuava intacto. — Todos os nossos soldados estão sãos e salvos, os canhões seguros, todos os armamentos e o depósito de munições incólumes. E dê uma olhada ali!



Na baía, a esquadra continuava ilesa, a bandeira britânica tremulando orgulhosa nos mastros. Com o amanhecer se transformando em dia, todos os cúteres disponíveis navegavam de um lado para outro, trazendo homens para a praia ou levando-os de volta aos navios para comer, beber e dormir.



— Todo o resto é substituível, menos as pessoas. Reúna alguns soldados e inicie uma contagem de cabeças e montarias. Preciso saber quantos perdemos, até a reunião das nove e meia. Trate de se apressar.



— Pois não, senhor. Quase todos os estábulos se encontravam abertos e os cavalos correram para o hipódromo ou o penhasco. Vi o garanhão de Zergeyev ali, com dois cavalariços.



Subitamente, Pallidar ficou radiante, não se sentindo mais desesperado.



— Tem toda razão, Sir William! Oh, Deus, como tem razão! Enquanto o exército e a marinha estiverem sãos e salvos, estamos todos bem, não teremos maiores problemas. Obrigado.



Ele se afastou a galope. Sir William concentrou sua atenção no interior. O que fazer? O que fazer? Seu pônei puxou as rédeas, nervoso, escarvou a terra, sentindo a inquietação do cavaleiro.



— Bom dia, Sir William. — Pálido de fadiga, Jamie McFay aproximou-se, saindo de trás das ruínas de um prédio, agora uma pilha de estruturas de metal retorcidas, os restos de armações de cama, de móveis queimados. Suas roupas estavam rasgadas, chamuscadas em alguns pontos, os cabelos emaranhados. — Quantos perdemos? Quais são as últimas novidades?



— Ainda não temos nada de concreto. Pelo bom Deus, isso é... isso é tudo o que restou do prédio do Guardian e dos prelos?



— Receio que sim. Mas tome aqui.



Jamie parou o cavalo ao lado de Sir William e estendeu uma folha de papel mal impressa, com uma manchete borrada, que anunciava: IOCOAMA ARRASADA. SUSPEITA DE INCÊNDIO CRIMINOSO. PRÉDIOS DA STRUAN E BROCK INTACTOS, EXÉRCITO, MARINHA E TODOS OS NAVIOS SALVOS. CALCULA-SE QUE FATALIDADES FORAM ALTAS NA YOSHIWARA E ALDEIA. Depois, um breve editorial, com a promessa de que sairia uma edição naquela tarde, e um pedido de desculpas pelos problemas de impressão.



— Nettlesmith está ali.



Sob um telheiro improvisado, Sir William avistou Nettlesmith, desleixado e sujo, operando o prelo manual, diligente, seus funcionários ajeitando tipos em bandejas, outros ainda recuperando o que podiam das cinzas.



— Soube que você tirou alguns aldeões de um prédio, Jamie, salvou suas vidas.



Ainda era difícil para Jamie pensar direito. Vagamente, recordava que não encontrara Nemi, nem tivera qualquer notícia dela, mas não se lembrava de mais nada.



— Não me lembro muito bem... reinava o caos por toda parte... outros faziam a mesma coisa ou ajudavam pessoas a irem para o hospital... — A cabeça estava tonta de cansaço. — Soube ontem à noite que Phillip estava perdido. É verdade?



— Não sei. Espero que nada tenha lhe acontecido, mas também ouvi o rumor. — Sir William deixou escapar um suspiro ruidoso. — Passaram-me essa informação, há muitos rumores, mas aprendi que não se deve confiar em rumores. Correu a notícia de que Zergeyev morrera na Yoshiwara, assim como André. Há poucos minutos, no entanto, avistei Zergeyev. Portanto, como eu disse, é melhor esperar.



Ele indicou a folha de papel e indagou:



— Posso ficar com isto, Jamie? Obrigado. Convoquei uma reunião para as nove e meia, a fim de discutir o que devemos fazer. Sua opinião seria valiosa.



— Não há muito o que discutir, não é mesmo? Estou liquidado.



— Ao contrário, Jamie, há muito o que discutir. No fundo, tivemos muita sorte. O exército e a marinha... — Sir William desviou os olhos, levantou o chapéu. — Bom dia, miss Maureen.



Ela ainda usava as mesmas roupas, mas com o rosto lavado, um sorriso exuberante.



— Bom dia, Sir William. É um prazer vê-lo são e salvo, saber que nada aconteceu com a legação. Bom dia, amor.



O sorriso de Maureen tornou-se ainda mais especial. Abraçou Jamie, fazendo um esforço para não parecer muito ansiosa, resistindo à vontade de beijá-lo, por mais que desejasse... ele estava lindo em suas roupas chamuscadas, o rosto com a barba por fazer, contraído em preocupação, mas nada que uma sopa quente, um uísque e um bom sono não pudessem curar.



Ao vir para cá, ao seu encontro, muitos haviam lhe contado como Jamie se mostrara corajoso durante a noite. Ela passara a maior parte da noite acalmando a Sra. Lunkchurch e a Sra. Swann, seus maridos e outros no armazém da Struan, distribuindo a bebida do demônio, como sua mãe chamava todas as beberagens alcoólicas — embora não na presença de seu pai —, cuidando de queimaduras ou levando feridos a Hoag e Babcott, que haviam instalado um hospital de campanha tão perto quanto possível das piores áreas.



— Você parece muito bem, Jamie, apenas exausto.



— Não mais do que outros.



Sabendo que fora esquecido — e com alguma inveja por isso —, Sir William saudou-os com seu chicote.



— Até mais tarde, Jamie. Miss Maureen.



Os dois observaram-no se afastar a trote. A proximidade de Maureen era agradável para Jamie. Abruptamente, sua felicidade e apreensão pelo futuro afloraram, ele virou-se, abraçou-a e apertou-a, com toda a intensidade de sua angústia. Maureen fundiu-se nele, feliz, esperou, procurando lhe transmitir sua força.



Depois de algum tempo, Jamie sentiu que se recuperava, a coragem voltou, o senso de integração prevaleceu.



— Deus a abençoe, Maureen. Não posso acreditar, mas você me fez voltar à vida. Deus a abençoe.



Ele se lembrou de Tess, dos cinco mil guinéus que Maureen lhe arrancara, de Maureen dizendo que amanhã as coisas não serão tão ruins assim e sua alegria explodiu.



— Por Deus, Sparkles, você tem toda razão! — disse ele, tornando a abraçá-la. — Estamos vivos, temos sorte, tudo vai acabar bem, graças a você!



— Não precisa exagerar, meu rapaz — murmurou ela, com um pequeno sorriso, a cabeça encostada na de Jamie, não querendo largá-lo ainda. — Não tive nada a ver com isso.



É tudo obra de Deus, pensou Maureen, sua dádiva especial para as mulheres, assim como sua dádiva para os homens é fazer a mesma coisa pelas mulheres em ocasiões especiais.



— É apenas a vida, Jamie.



Ela usou “vida”, mas poderia também ter dito “amor”, embora não tivesse certeza total de que era mesmo isso.



— Estou orgulhoso de você, menina. Foi maravilhosa ontem à noite.



— Não fiz nada demais. E agora vamos embora. Você precisa tirar um cochilo.



— Não tenho tempo para cochilos. Preciso falar com o shoya.



— Um cochilo antes da reunião. Eu o acordarei com uma xícara de chá. Pode usar minha cama. Albert diz que é nosso quarto por tanto tempo quanto quisermos; não deixarei ninguém incomodá-lo.



Sorrindo, apesar da sugestão, ele perguntou:



— O que pretende fazer?



Maureen abraçou-o.



— Ficarei segurando sua mão e contarei uma história até você dormir. Vamos embora.







Tyrer abriu os olhos e descobriu-se no inferno, todos os ossos doendo, cada respiração queimando o peito, os olhos ardendo, a pele em tormento. Na escuridão acre e enfumaçada, podia ver rostos japoneses sem corpo espiando-o, dois deles, as bocas contorcidas em sorrisos cruéis, dando a impressão de que a qualquer momento tornariam a levantar seus forcados e recomeçariam a torturá-lo. Um rosto chegou mais perto. Ele recuou e deixou escapar um grito de dor. Através das brumas ouviu palavras em japonês e depois em inglês:



— Taira-sama, acorde, você seguro!



O nevoeiro que envolvia sua mente se dissipou.



— Nakama?



— Sim. Você salvo.



Agora ele percebeu a luz de um lampião a óleo. Pareciam estar numa caverna e Nakama lhe sorria. Assim como o outro rosto. Saito! O primo de Nakama, o que se interessava por navios... Não, este não é Nakama, este é Hiraga, o assassino!



Tyrer se empertigou abruptamente, caiu para trás, contra a parede do túnel, a dor de cabeça cegando-o por um momento, enquanto tossia e tossia, a bílis e um gosto horrível de fumaça provocando ânsias de vômito. Quando não havia mais nada para subir, depois que passou o espasmo, ele sentiu um copo comprimido contra seus lábios. Bebeu a água gelada, na maior ansiedade, engasgando um pouco.



— Desculpe... — balbuciou ele.



Hiraga tornou a ajeitar a manta em torno de seu quimono de dormir meio queimado.



— Obrigado.



Um momento depois ele prendeu a respiração, a mente se deslocando lentamente do vazio para um caleidoscópio de imagens, fundindo-se em mais imagens, paredes em chamas, Hiraga arrancando-o do meio do fogo, correndo, caindo, sendo ajudado a se levantar, casas desabando ao seu redor, arbustos explodindo em seus rostos, não conseguindo respirar, sufocando, não consigo respirar, Hiraga gritando “Depressa, por aqui... não, por aqui não, vamos voltar, por aqui...”, alguma coisa faltando, fugindo para um lado e outro, guiado entre paredes de fogo, na frente, por trás, nos lados, mulheres gritando, fumaça, e depois a entrada do poço, o fogo se projetando para eles, quase alcançando-os, “Desça, depressa, desça”, entrando no poço, o fogo se aproximando, uma luz lá embaixo, um olho na escuridão, o rosto de Saito, e depois, como um raio...



Fujiko!



— Onde está Fujiko? — gritara ele.



Ofegando para respirar, Hiraga gritara, acima do rugido das chamas:



— Depressa, descer, ela morta no quarto, Fujiko morta quando eu encontrar você... depressa ou você morto!



Tyrer se lembrava agora dessa parte com nitidez. Saíra do poço, desatara a correr de volta, o fogo ainda pior do que antes, a morte certa à frente, mas ele tinha de alcançá-la, precisava ter certeza, e depois caíra de cara no chão, uma dor ofuscante no pescoço, tentara se levantar, o calor monstruoso, e tudo o que recordava era de ter visto a quina da mão dura como pedra se aproximando do lado de seu pescoço.



— Você... eu ia buscá-la, mas você me deteve?



— Sim. Não ser possível salvar. Fujiko morta, sinto muito, eu vi. Ela morta, você também se voltar, por isso bater, carregar para cá. Fujiko morta no quarto.



Hiraga falou com voz gelada, ainda furioso com Tyrer por arriscar a vida de ambos em tamanha estupidez. Só tivera tempo de levantar Tyrer para seu ombro e descer pelo poço, quase perdendo o equilíbrio ao se projetar para a segurança, salvando a própria vida das chamas por um triz. E ele pensou, irritado, que até mesmo o homem mais baka deveria saber que não haveria a menor possibilidade de encontrá-la, não havia como sobreviver com todo o jardim e a casa de chá em chamas, e mesmo que ela não estivesse morta na ocasião, teria morrido quinze vezes desde então.



— Se não bater, você morto. Achar morto melhor?



— Não. — Tyrer sentia-se sufocado pela dor. — Desculpe. Devo-lhe minha vida, mais uma vez.



Ele esfregou o rosto, para tentar, em vão, conter a angústia. Fujiko morta... oh, Deus, oh, Deus!



— Desculpe, Na... isto é, Hiraga-sama. Onde estamos?



— Túnel. Perto Três Carpas. Ir até aldeia, por baixo da cerca, fosso. — Hiraga gesticulou para o alto do poço. — Ser dia agora.



Tyrer levantou-se, o corpo todo dolorido. De pé, sentiu-se um pouco melhor. A luz do dia no alto do poço era ofuscada pela fumaça turbilhonante, mas ele pôde perceber que o sol se encontrava prestes a surgir.



Dozo.



Com um sorriso, Akimoto entregou-lhe uma tanga e um quimono extra.



Domo.



Tyrer ficou chocado ao constatar a extensão em que seu quimono ficara queimado. Ele próprio tinha umas poucas queimaduras nas pernas, mas nada de mais grave. Hiraga subiu pelas barras de ferro precárias para dar uma espiada lá fora, mas foi obrigado a recuar pelo calor. Descendo de volta ao túnel, ele disse:



— Não bom. Quente demais. Aqui.



Ele ofereceu água outra vez, e Tyrer aceitou, agradecido.



— Taira-sama, melhor ir por ali. — Hiraga apontou pelo túnel. — Você estar bem?



— Estou. Fujiko morreu mesmo? Tem certeza?



— Sim.



— O que aconteceu? Eu estava dormindo e de repente... Foi uma bomba. Posso lembrar... acho que explodiu no outro lado do quarto... no lado de Fujiko. A sensação foi de que uma bomba explodiu embaixo da casa. Foi isso mesmo? E por que o incêndio? Tudo pegou fogo?



Akimoto tocou no ombro de Tyrer e disse, com um sorriso, em japonês:



— Taira-sama, você teve sorte. Se não fosse por Hiraga, estaria morto. Compreende isso?



Hai, wakamarisen.



Tyrer fez uma reverência solene para Hiraga e acrescentou, em japonês:



— Obrigado, Hiraga-sama, eu novamente em dívida. Obrigado pela vida.



Uma súbita vertigem o dominou.



— Desculpar, primeiro descansar um pouco. — Meio desajeitado, Tyrer sentou. — O que acontecer?



— Nós falar ing’erish. Por que fogo? Homem mau ter bomba de fogo. Atear fogo aqui, vento levar fogo Iocoama...



Tyrer recuperou o ânimo com o choque.



— A colônia também pegou fogo?



— Não saber, Taira-sama. Não ter tempo olhar, mas Yoshiwara destruída, achar aldeia também. Talvez Iocoama também.



Tyrer tornou a se levantar, foi até o poço.



— Não, não subir, por aqui. — Hiraga acendeu outro lampião. — Você seguir, sim?



Em japonês, ele acrescentou para Akimoto:



— Você fica aqui. Eu o levarei por parte do caminho. Quer ver o que aconteceu. Voltarei em seguida.



Avançando à frente pelo túnel, Hiraga voltou a falar, em inglês:



— Homem mau ter bomba de fogo. Querer ferir gai-jin. Vento sul fazer fogo pequeno fogo grande.



No mesmo instante, Tyrer compreendeu o significado do vento sul.



— Oh, Deus, tudo é tão combustível, vai arder como nenhuma outra coisa neste mundo. E se...



Ele parou, frenético de preocupação. A água escorria pelas paredes do túnel. Tyrer recolheu um pouco, para molhar a cabeça. A água fria ajudou.



— Desculpe. Continue, por favor. Um homem mau? Que homem mau?



— Homem mau — repetiu Hiraga, sombrio.



Ele sentia-se desorientado, a mente dividida: experimentava intensa fúria por Takeda ter tomado a iniciativa, destruindo seu refúgio seguro, mas ao mesmo tempo estava feliz com o sucesso das bombas incendiárias. Com o vento sul e a Yoshiwara em chamas, a aldeia fora atingida e também as casas dos gai-jin. E com a base em Iocoama perdida, os gai-jin teriam de ir embora, como Ori fora o primeiro a prever e Katsumata depois. Sonno-joi dera um grande passo à frente.



Há cerca de uma hora, ele tentara espiar pelo poço perto da cidade dos bêbados, verificar pessoalmente o que acontecera, mas o calor era intenso demais e tivera de recuar. Talvez os tijolos já tivessem esfriado o bastante para que ele pudesse observar a extensão da devastação ali. Ele se concentrou nessa esperança, sem esquecer que ainda precisava acertar tudo com Tyrer.



O sucesso de sua história dependia em grande parte do fato de Takeda ter sido ou não capturado vivo. Era uma boa aposta que Takeda não permitiria que isso ocorresse, e neste caso sua versão, em grande parte verdadeira, seria lógica.



— Homem mau querer destruir todos gai-jin, expulsar eles do Nipão. Homem do Bakufu. Bakufu querer todos gai-jin ir embora. Yoshi querer todos gai-jin longe do Nipão. Pagar espião para começar fogo, culpar shishi, mas homem do Bakufu.



— Conhece esse homem? Hiraga sacudiu a cabeça.



— Um homem de Satsuma, mama-san dizer.



— Raiko-san?



— Não, Wakiko, outra casa de chá — respondeu Hiraga, inventando um nome. Haviam alcançado a água. — Melhor tirar roupas. Mais seguro.



Despiram-se e vadearam a barreira, com o lampião suspenso acima da superfície. No outro lado, enquanto Tyrer prendia a tanga e vestia o quimono, com alguma dificuldade, Hiraga discorreu sobre o tema de que o Bakufu era insidioso, que eles atribuiriam a culpa a todos os outros, aos ronin, aos shishi, mas haviam planejado e executado a destruição de Iocoama, os verdadeiros culpados eram Anjo, os anciãos, acima de tudo Yoshi.



Para Tyrer, era bastante plausível. Outra vez um Satsuma, um dos demônios de Sanjiro. Na entrada do poço, Hiraga apontou para cima.



— Mesmo que outro. Primeiro, eu ver.



Ele entregou o lampião a Tyrer e subiu até o topo, os tijolos ainda quentes. Cauteloso, espiou para fora. A cena o deixou atordoado. Onde antes existia a terra de ninguém, com suas pilhas de lixo, havia agora um terreno plano, que lhe permitia ver claramente até o mar, além do espaço outrora ocupado pela cidade dos bêbados, além do espaço em que no passado se situava a aldeia, a vista se prolongando até a extremidade norte. Muitos prédios gai-jin continuavam intactos, mas isso não o preocupou. Em tudo e por tudo, Iocoama deixara de existir. Ele desceu.



— O que aconteceu, Hiraga-sama?



— Você ir ver. Eu ficar. Você ir agora, amigo. Hiraga não ir, não poder... samurai ainda procurar, neh?



Tyrer viu os olhos castanhos observando-o, aquele homem estranho, que sem dúvida arriscara sua vida para salvá-lo. E o salvara pela segunda vez. O que mais um amigo pode fazer além de arriscar a vida pelo amigo?



— Sem você, sei que eu estaria morto. Devo-lhe uma vida. Agradecer não e suficiente.



Hiraga deu de ombros, sem dizer nada.



— O que vai fazer?



— Por favor?



— Se eu quiser encontrá-lo, fazer um contato com você.



— Eu aqui. Taira-sama, não esquecer, Yoshi pôr preço minha cabeça, neh? Por favor, não dizer sobre túnel. Bakufu e Yoshi querer pegar eu qualquer maneira. Se Taira-sama falar, eu logo morto, não ter onde fugir.



— Não contarei a ninguém. Como posso lhe enviar uma mensagem?



Hiraga pensou a respeito por um momento.



— Hora sol se pôr, vir aqui, falar para baixo. Eu aqui hora sol se pôr. Compreender?



— Sim. — Tyrer estendeu a mão. — Não tenha medo. Não contarei a ninguém e tentarei ajudá-lo.



O aperto de mão de Hiraga foi firme.







— Phillip! Phillip, meu rapaz, graças a Deus que está são e salvo! — O rosto de Sir William iluminou-se de alívio, e ele se adiantou apressado, pondo as mãos nos ombros de Tyrer. — Circularam rumores de que você havia morrido na Yoshiwara. Venha sentar aqui, meu pobre amigo.



Ele ajudou-o a se acomodar na melhor cadeira no escritório, ao lado do fogo.



— Por Deus, você tem uma aparência horrível! O que aconteceu? Mas precisa antes de um drinque! O conhaque já está vindo!



Tyrer relaxou na cadeira alta, sentindo-se muito melhor. Depois do horror inicial pelos danos, tendo encontrado umas poucas pessoas à beira d’água, vendo bandagens e queimaduras, mas sem que ninguém falasse em mortes, constatando que os prédios das legações, da Struan e Brock e outras partes da colônia continuavam intactos — assim como o acampamento do exército e a esquadra —, tudo isso dissipara a maior parte de sua tensão. Ninguém parecia saber quem estava perdido, ou quantos, e por isso ele voltara apressado à legação. Tomou um gole grande de conhaque e disse:



— Fui apanhado pelo incêndio na Yoshiwara. Estava com... hum... com minha garota, e... hum... ela morreu.



Sua infelicidade tornou a invadi-lo, como um maremoto.



— Lamento muito saber disso. Estranho é que seu outro amigo, Nakama, Hiraga, qualquer que seja seu nome verdadeiro, também esteja morto.



— Como, senhor?



— Isso mesmo — disse Sir William, sentando na cadeira em frente e continuando a falar, satisfeito. — Identificação positiva. Uma patrulha avistou-o na terra de ninguém, no início do incêndio na cidade dos bêbados. A princípio, pensaram que fosse um saqueador e os soldados partiram em sua perseguição. Mas logo o reconheceram e atiraram no patife, ferindo-o, para que parasse. Mas não pode imaginar o que aconteceu então. O louco se levantou e jogou-se contra um prédio em chamas... o velho depósito de óleo. O sargento contou que poucos momentos depois houve uma terrível explosão e todo o lugar pareceu subir pelo ar.



— Mas não é possível que...



— Concordo que é improvável, lançar-se para o meio de um inferno, um absurdo, ninguém faria isso. Lamento dizer que dois dos nossos homens morreram quando tentavam agarrá-lo... atingidos pela explosão. Uma pena! É bem possível que Nakama tenha sido o incendiário, se é que houve algum, o que me parece implausível, se quer saber minha opinião. Seja como for, os barris de óleo estavam explodindo por toda parte.



Ele viu a agitação e palidez de Tyrer e se sentiu condoído.



— Lamento por você, Phillip. Lamento por você que Nakama tenha morrido porque sei que gostava dele, mas não lamento pelo outro lado... ele era um assassino e isso nos tira de uma encrenca enorme com Yoshi, não acha?



Sir William ficou esperando que ele concordasse, mas havia apenas um rosto vazio à sua frente.



— Deve ter sido um choque em cima do outro para você... uma coisa horrível não é?



Tyrer estava atordoado, era difícil assimilar o equívoco sobre a morte de Hiraga.



— A Yoshiwara... foi, sim...



Ele já ia esclarecer o engano, quando Sir William voltou a falar:



— Devo lhe dizer, Phillip, que tivemos uma sorte incrível. O exército está intacto, a marinha também, só temos a informação de uma única fatalidade em nossa comunidade, embora ainda estejamos verificando. Viu algum dos nossos ontem à noite na Yoshiwara?



— Não, senhor, nenhum dos nossos. — Tyrer não conseguia pôr a mente para funcionar direito. — Nem uma única alma. Deve compreender...



— É muito difícil tentar localizar a todos, não dá para fazer uma contagem acurada. A cidade dos bêbados é um caso perdido, mas mesmo lá dizem que apenas meia dúzia de vagabundos desapareceram, ninguém que tivesse um nome completo, apenas Charlie, Tom ou George. Fico contente em dizer que todas as jovens damas da Sra. Fortheringill estão sãs e salvas. É espantoso que tenhamos todos escapado, mas se o vento não tivesse amainado... mas acontece que amainou, devemos agradecer a Deus por isso... viu que a Santíssima Trindade também escapou? É verdade que os danos se elevam a centenas de milhares de libras. Graças a Deus pelo seguro, hem? Mas termine logo seu conhaque e vá tirar um cochilo. Depois que pensar bem a respeito, compreenderá como fomos afortunados com Nakama. Ele estava se tomando um grande desastre diplomático. Estou de saída, vou discutir um plano com a comunidade. Por que não fica deitado até eu voltar e...



Uma batida na porta. Bertram anunciou:



— O shoya está aqui, Sir William.



— Um momento bem oportuno. Mande-o entrar. Phillip, antes de ir se deitar, quero que traduza tudo para mim. Entre, entre, Sr. shoya.



O shoya fez uma reverência deferente, cauteloso.



— Meu superior cumprimentar você, shoya — traduziu Tyrer, ainda atordoado, a mente em outro lugar, ansioso em deitar, avaliar toda a situação. — Por favor, dizer quantos perder no fogo?



— Por favor, agradeça a ele por sua gentileza ao perguntar, mas diga que não precisa se preocupar com os nossos problemas.



O shoya achou a pergunta espantosa, pois aquilo não era da conta dos gai-jin. Que armadilha estão querendo armar para mim?, especulou ele.



— Meu superior dizer querer saber quantos perder?



— Oh, sinto muito, mas ainda não tenho certeza da contagem final, mas já sabemos que cinco pescadores e duas famílias foram para o outro mundo.



O shoya falou com toda polidez, inventando um número, já que o líder gai-jin insistia em saber “quantos perder”, o que indicava que esperava um número. Na verdade, não haviam perdido nenhum dos seus, nem crianças, nem barcos, já que o alarme soara com bastante antecedência.



— Meu superior dizer sentir muito. Ele poder ajudar aldeia?



— Ah, sim! Por favor, agradeça ao grande lorde. As famílias podiam aproveitar alguns sacos de arroz, talvez um pouco de dinheiro, qualquer ajuda em comida ou...



O shoya deixou a sugestão pairando no ar, para que eles pudessem decidir com que mais ajudariam. Seria outra armadilha?



— Meu superior dizer que mandar comida para aldeia. Por favor, contar como fogo começar.



O shoya refletiu que era uma loucura total dos gai-jin esperar uma resposta a tal pergunta. Era perigoso se envolver em política, ainda mais no conflito entre os shishi e o Bakufu. Embora lamentasse profundamente a perda de todos os seus lucros, quando os gai-jin deixassem suas praias amanhã, ou no dia seguinte, nem tudo estava perdido, porque todos os seus livros, recibos e lingotes se encontravam salvos, e por causa de seu acordo com o gai-jin Jami, que se tornara ainda mais importante agora. Tenho certeza de que minha stoku kompeni não será afetada.



Ao mesmo tempo, ele sentia-se satisfeito com os shishi ousando expulsá-los, atribuindo a culpa ao infame Bakufu. Sonno-joi. Estaremos melhor sem os gai-jin aqui. É muito melhor que eles fiquem restritos à pequena Deshima, em Nagasáqui, como no passado. Abrirei uma sucursal em Nagasáqui e estarei preparado quando eles voltarem. Se é que algum dia voltarão.



— Sinto muito, mas deve ter sido óleo derramado numa cozinha — respondeu ele, com uma reverência humilde. — Apenas na Yoshiwara cozinham de noite, nós não. Por favor, desculpem, mas isso é tudo o que sei.



— Meu superior dizer que esse homem Nakama, ou Hiraga, o shishi que lorde Yoshi procurar, ele visto soldados, que tentar apanhar ele. Ele fugir e morrer no fogo. Você conhecer ele?



O presságio ruim do shoya triplicou, embora também tivesse sido informado da morte, o que o deixara bastante satisfeito.



— Por favor, desculpem, mas só conhecia como um cliente, nunca como um shishi. Morto? Mas é ótimo que o assassino esteja morto. Maravilhoso!



Sir William suspirou, cansado das perguntas e respostas.



— Agradeça a ele, Phillip, e dispense-o.



O velho se retirou, agradecido. Sir William disse:



— E agora, Phillip, vá se deitar. Esteja pronto para partir ao meio-dia.



— Como, senhor?



— Para Kanagawa, a reunião com Yoshi. Não tinha esquecido, não é?



Tyrer ficou estupefato.



— Com toda certeza, senhor, Yoshi não deve estar nos esperando agora — balbuciou ele, experimentando uma náusea intensa à perspectiva de uma prolongada reunião, traduzindo as nuances do tratado. — Com toda certeza!



— E é justamente por isso que iremos até lá — declarou Sir William, radiante. — Para deixá-lo surpreso, hem? Somos britânicos, não um bando de idiotas fracos e vacilantes. Apenas tivemos um pequeno contratempo, um estorvo insignificante.



Ele pôs o casaco e acrescentou para Tyrer:



— Até meio-dia e não deixe de vestir seu melhor traje.



— Mas ele não vai aparecer, não depois do que aconteceu aqui!



— É possível. Mas se Yoshi não aparecer, ele é que vai ficar mal, não nós.



— Não posso ir, Sir William, não como intérprete. Estou... estou exausto e não poderei ir, não hoje. Sinto muito.



— Receio que terá de ir de qualquer maneira. Não podemos perder a pose e todas essas coisas.



Tyrer viu o sorriso fino, a frieza voltando. E a atitude inflexível.



— Desculpe, senhor, mas não posso. Por favor, deixe que André cuide disso. Ele é melhor do que eu.



— Você é que terá de ir — disse Sir William, sem o menor vestígio de bom humor agora. — André Poncin morreu.



Tyrer quase caiu.



— Não é possível... Como?



— Na Yoshiwara. Recebi a notícia pouco antes de você chegar, e foi por isso que me senti tão aliviado ao vê-lo são e salvo.



Ao dizer isso, Sir William lembrou-se subitamente do envelope lacrado que André deixara com ele, no cofre da legação, para ser aberto no caso de sua morte.



— Henri identificou-o, na medida em que se pode identificar um cadáver naquele estado. O anel de sinete ainda estava em seu dedo... — Ele sentiu uma náusea ao pensar no assunto. — O pobre coitado foi carbonizado em sua garçonnière. Fui informado que ficava a poucos metros da sua, na mesma casa de chá. Eu diria que você teve muita sorte, Phillip. Esteja pronto ao meio-dia.



Sir William deixou a legação, desceu pela rua, a caminho do clube. Vários homens seguiam para lá, de todas as direções. Passando pela Struan, ele olhou para o prédio, sentindo-se grato por estar incólume, assim como o prédio da Brock... um bom presságio, pensou, um dos dois é sem dúvida a Casa Nobre, e a Brock é muito melhor com Gornt do que era com Norbert. Ele notou Angelique em sua janela e acenou. Ela acenou em resposta. Pobre Angelique, eu me pergunto se Henri já a informou sobre André. Depois, ouvindo o tumulto no interior do clube, mesmo a distância, os gritos habituais, as imprecações, o barulho de copos, Sir William suspirou e concentrou sua mente nos problemas da colônia.



Houve silêncio quando ele entrou. O clube estava apinhado, o excesso de pessoas transbordando pela escada. Abriu-se um caminho estreito para a sua passagem, através das fileiras comprimidas e suadas. Sir William encaminhou-se para seu lugar costumeiro, perto do bar, e cumprimentou os outros ministros, Seratard, Erlicher e Zergeyev, que tinha parte do rosto enfaixado, das queimaduras, e um braço na tipóia. Todas as pessoas de alguma importância se encontravam presentes, assim como muitos que não tinham nenhuma importância, inúmeras enfaixadas, vários ossos fraturados, mas todos os rostos corados. Já havia alguns bêbados arriados nos cantos.



— Bom dia. Sinto-me feliz em comunicar que tivemos uma tremenda sorte...



Vaias interromperam-no, soaram gritos:



— Uma ova que tivemos! Estou arruinado!



— Mas o que está querendo dizer, pelo amor de Deus?



— Deixem-no falar!



— Ele está cheio de besteira, não viu...



— Ora, cale essa boca!



Sir William esperou um pouco e depois continuou, num tom mais firme:



— Tivemos realmente muita sorte, apenas a morte de André Poncin foi confirmada... — Um murmúrio audível de pesar, pois seu talento como pianista era muito apreciado. — ...e mais ninguém da comunidade. O Sr. Seratard identificou o corpo e o enterro será amanhã. Infelizmente, perdemos dois soldados e o funeral deles também será amanhã. Ainda há uns poucos desaparecidos na cidade dos bêbados, mas ninguém que conheçamos pelo nome. Nosso exército está intacto, com todas as suas armas, balas e munições. A marinha também está intacta. Tivemos de fato muita sorte e proponho que agradeçamos a Deus por isso.



No silêncio opressivo, ele acrescentou:



— Pedi ao padre que celebrasse um serviço especial ao crepúsculo. Todos estão convidados. Alguma pergunta até aqui?



— E nossas firmas? — gritou Lunkchurch. — Meu prédio pegou fogo!



— É para isso que todos temos seguro contra incêndio, Sr. Lunkchurch. Uma explosão de risos interrompeu-o.



— O que foi?



Heavenly Skye, o agente de seguros de Iocoama, responsável pelo encaminhamento a Hong Kong, onde todas as apólices eram aceitas, explicou:



— Lamento dizer, Sir William, mas a apólice de Barnaby venceu na semana passada e, para poupar algum dinheiro, ele se recusou a renová-la até o primeiro dia do mês.



O resto das palavras foi abafado pelos risos e zombarias.



— Eu lamento ouvir isso. De qualquer forma, pela correspondência que partirá esta noite, para o governador de Hong Kong, estou formalmente declarando a colônia uma área de desastre para todas...



Ele foi outra vez interrompido, por gritos de concordância, pois tal declaração garantia que todas as reivindicações fossem atendidas com a maior rapidez possível.



— ...uma área de desastre para todas as reivindicações legítimas, que devem ser comprovadas, exigindo minha assinatura para se tornarem válidas e...



Outros gritos, agora de protesto, pois ele era conhecido como um homem escrupuloso, ao contrário de certas autoridades do governo em Hong Kong, e o incêndio fora automaticamente considerado por muitos como uma dádiva divina uma oportunidade de engrossar seus estoques. Depois que o silêncio voltou, Sir William disse, em tom mais ameno:



— Não serão admitidas exceções, e quanto mais cedo as reivindicações estiverem em minha mesa, mais depressa serão aprovadas e despachadas...



Iniciou-se êxodo generalizado para a porta e ele berrou, com a voz potente demais para alguém tão magro:



— Ainda não acabei, por Deus! Vamos passar ao próximo assunto. Certas pessoas tolas e desavisadas acreditam que o curso mais sensato é abandonar nossa base aqui. O governo de sua majestade não tem a menor intenção de se retirar. Absolutamente nenhuma!



Argumentos em contrário surgiram aqui e ali, mas Sir William repeliu-os com frieza.



— Próximo assunto. Vocês são obrigados a se ajudarem uns aos outros, como cavalheiros britânicos e...



— E os malditos ianques? — gritou alguém, sob aplausos e vaias, a favor ou contra.



— Eles também! — berrou Sir William, seu humor voltando. — Uns poucos são cavalheiros e muitos mais poderiam se tornar.



Mais risos e ele continuou:



— Portanto, vamos agir como cavalheiros e reconstruir tudo, o mais depressa que pudermos. Isso é importante. Devemos confirmar nossa posição aqui, porque, o último assunto, e o mais sério, há rumores de que o incêndio foi criminoso.



— É verdade. Minha musume diz que foi mesmo.



— Um relato provável é o de que o incendiário foi o samurai Nakama, o sujeito procurado pelo Bakufu como um revolucionário, embora o Sr. Tyrer e eu... e o Sr. McFay também, se não me engano... o achássemos simpático, alguém que não constituía uma ameaça, e uma vasta fonte de informações.



— É verdade — declarou Jamie, revigorado pela ternura de Maureen. — Não creio que ele pudesse ser um incendiário, para dizer o mínimo.



— Seja como for, talvez nunca saibamos com certeza, porque ele está morto, foi surpreendido em circunstâncias suspeitas. Todos devem estar precavidos para a possibilidade de ter sido um incêndio criminoso. Pessoalmente, não estou convencido, mas se o incêndio foi um ato de violência contra nós, haverá outros. Se foi um ato de Deus... ora, esse é seu privilégio...



— Amém — disseram muitos, gratos por estarem vivos.



— ...portanto, fiquemos conscientes do possível perigo, mas vamos agir de modo normal e voltar ao trabalho. Obrigado a todos e bom dia.



— E o que vamos fazer com a Yoshiwara e a casa da Sra. Fortheringill?



Sir William piscou, aturdido. Pelo bom Deus, devo estar ficando velho, pensou ele. O problema da Yoshiwara não lhe ocorrera, mas era a única coisa que tornava o Japão suportável, e até mesmo desejável, para muitos homens.



— O estabelecimento da Sra. Fortheringill deve estar coberto pelo seguro, com certeza. Quanto à Yoshiwara... Vamos abrir um fundo de contribuições agora mesmo. Por uma semana. Eu começo, doando vinte guinéus, e... ora, como é parte de nossa área de desastre, o governo de sua majestade vai igualar, libra por libra, todas as contribuições.



Sob mais aplausos e tapinhas nas costas, Sir William conversou por um momento com os outros ministros, comunicando-lhes, para surpresa de todos, que a reunião com Yoshi continuava de pé, que ele e Seratard tratariam com Yoshi, mas todos jantariam juntos naquela noite, num encontro particular. Saindo para o passeio, ele enxugou o suor da testa. Satisfeito, encaminhou-se para a legação.



— Ei, olhem só! — gritou alguém, por trás dele.



Sir William virou-se e observou, espantado, com a maior inveja, assim como os outros que saíam do clube.



Na área desolada em que antes existia a aldeia, havia agora todo um enxame de homens, mulheres e crianças diligentes, limpando e trabalhando, com o mesmo empenho de formigas num formigueiro, todos com o mesmo objetivo: reconstituir o que desaparecera. Duas casas, com telhado e paredes de shoji, já se encontravam prontas e havia outras parcialmente erguidas. Muitas pessoas carregavam tábuas e paredes de shoji de pilhas além do portão sul.



É uma pena que o nosso pessoal não demonstre a mesma diligência, pensou Sir William, impressionado. Ele também viu, no outro lado do fosso, através da ponte reparada, a ponte para o paraíso, mais atividade, um portão provisório erguido, balançando à brisa.



Do lugar em que se encontrava, podia ler os caracteres chineses, tão apreciados, muito bem lembrados... a tradução para o inglês também inscrita ali, parecendo de certa forma exótica na caligrafia: O desejo não pode esperar, deve ser satisfeito.







Naquela tarde, o mar sereno, o céu ainda nublado, o cúter da Struan aproximou-se do cais em Iocoama, voltando da reunião com Yoshi em Kanagawa. O galhardete de Sir William tremulava no mastro. As pessoas na cabine, Sir William, Seratard e Tyrer, cochilavam... Tyrer como um morto. O contramestre tocou o apito, pedindo passagem aos cúteres que se acumulavam nas proximidades do atracadouro, mas soaram gritos de “espere a sua vez!”, com uma ampla variedade de palavrões como pontuação. Sir William abriu os olhos e berrou para o contramestre:



— Deixe-nos no cais da Brock!



Quando o contramestre sugeriu que o Sr. MacStruan não ia gostar, Sir William acrescentou:



— Faça logo o que estou mandando!



Os outros foram arrancados do sono, mas Tyrer murmurou algumas palavras incompreensíveis e voltou a dormir. Seratard esticou-se, reprimiu um bocejo.



— Grande almoço, William, um excelente peixe. — Sem notar, ele passou a falar em francês. — Eu teria preferido um molho de manteiga com alho e salsa. Mas não importa. Seu chefe inglês, o que mais poderia fazer?



— Ele é chinês — protestou Sir William, jovial.



A reunião transcorrera exatamente como ele planejara. Ou seja, não houvera nenhuma reunião. Haviam chegado a tempo, esperaram meia hora e depois chamaram o governador local, Tyrer dizendo que não podia entender o que acontecera com lorde Yoshi.



— Ele estar doente?



— Ah, sinto muito, não sei o que o lorde...



— Meu superior dizer: Perguntar pela saúde de lorde Yoshi, dizer nós estar aqui, conforme combinado. Assim que ser possível, marcar novo dia, por favor.



Deliberadamente, Tyrer abandonara todas as cortesias. O governador ficara vermelho, fizera uma reverência, do tipo reservado a superiores, pedira desculpas mais uma vez e se retirara apressado, consternado porque os gai-jin continuavam ali. Como não podia deixar de ser, todas as pessoas civilizadas, dali até Iedo, haviam visto o incêndio, presumindo que os gai-jin, os que restassem, lamberiam suas queimaduras, embarcariam nos navios, juntando-se ao êxodo, e iriam embora.



Depois que o governador e sua comitiva se retiraram, Sir William sugerira um almoço sem pressa, conduzindo Seratard à sua adega substancial.



— Merecemos uma celebração, Henri. O que gostaria de beber? Tivemos realmente muita sorte ontem à noite... exceto por André, pobre coitado.



— Tem razão. Uma pena. A vontade de Deus. — Seratard franzira o rosto, ainda olhando para os rótulos. — Ah, Montrachet, 51! Duas garrafas?



— Duas no mínimo. George vai nos acompanhar no almoço. Podemos também saborear um Margaux... recomendo o 48, Château Pichon-Longuville... e um Château d’Yquem com o pastelão.



— Perfeito. É uma pena que não tenhamos queijo. Não há a menor possibilidade de Yoshi aparecer agora?



— Se ele vier, não o veremos.



— Na reunião no clube, você disse que teríamos um jantar esta noite. Quer discutir alguma coisa com os outros?



— Isso mesmo. — A adega era fresca e agradável. Havia uns poucos copos no aparador, ao lado das prateleiras. Sir William selecionara meia garrafa de champanhe e começara a abri-la. — Acho que devemos fingir que o incêndio não é o desastre que realmente foi e prosseguir com os nossos planos contra Sanjiro e sua capital, Kagoshima.



— Agora? — Seratard ficara surpreso. — Mas não acha que seria perigoso demais enviar a esquadra num momento em que nos tornamos tão expostos? Não seria uma tentação para eles?



— E muito grande, mas é justamente esse o meu ponto. Minha proposta é enviarmos apenas navios de guerra britânicos, mantendo aqui sua nave capitânia e a dos russos, junto com os navios mercantes armados. Cancelamos o envio de unidades do exército para o desembarque proposto e despachamos apenas os fuzileiros. E nos limitaremos a um bombardeio do mar.



Ele tirara a rolha e servira o champanhe.



— Isso tornará a missão de Ketterer muito mais fácil. Ele jamais gostou da idéia de comandar um desembarque dos navios. Agora, pode ficar a distância na baía e arrasar os japoneses. Saúde.



Os dois homens bateram seus copos, Seratard avaliando a proposta para descobrir os perigos latentes, quaisquer lugares em que seu adversário plantara minas para prejudicar os interesses franceses. Não havia nenhum. Ao contrário, ajudava seu plano a longo prazo de se insinuar na confiança de Yoshi, fazendo-o compreender que os ingleses eram os bárbaros, não os franceses, e que a França, que comparava a si mesmo, merecia toda confiança, sabia ser paciente e via mais longe.



— Uma safra maravilhosa, William. En príncipe, sim, mas eu gostaria de consultar meu almirante.



— Por que não? Depois, faremos o seguinte...



O almoço fora bastante agradável. No momento oportuno, embarcaram no cúter e agora Sir William equilibrava-se com a maior agilidade, enquanto a embarcação era atracada no cais da Brock, uma ocorrência inédita. Avistou Gornt ao lado de alguns baús, junto com um empregado, perto dos degraus do cais.



— Espero que não tenha se incomodado, Sr. Gornt — disse ele. — Requisitei o cúter, que está sob a minha bandeira, não da Struan.



— O prazer é meu, Sir William. Como foi a reunião?



— O sujeito não apareceu. Acho que esperava que nós não comparecêssemos.



— Ele perdeu prestígio com isso, daqui até Timbuctu.



— Concordo. — O que fora a sua idéia, pensou Sir William, com um sorriso secreto, enquanto apontava para as malas. — Não vai embora, não é?



— Claro que não, senhor. Mas viajarei até Hong Kong, pelo paquete que zarpa esta noite, a fim de providenciar material de construção para nós e para os outros.



— Boa idéia. Desejo uma viagem segura e rápido retorno.



Sir William ergueu o chapéu e afastou-se em seguida, junto com Seratard. Tyrer, doente de cansaço, cambaleou atrás deles, mal reconhecendo Gornt.



— Leve estes baús para bordo, Pereira — ordenou Gornt. — Avise ao capitão que embarcarei dentro do horário. Olá, doutor.



Hoag aproximou-se, acompanhado por alguns cules, carregando um baú de viagem marítima e várias malas.



— Olá, Edward. Soube que você também vai viajar no Atlanta Belle. — Hoag estava sem fôlego, aflito, as roupas e as mãos manchadas de sangue e sujas, os olhos injetados. — Posso pedir a seu pessoal para levar minha bagagem para bordo? Ainda tenho uma dúzia ou mais de braços e pernas para encanar, várias queimaduras... muito obrigado.



Ele se afastou apressado, sem esperar por uma resposta.



— Leve isso para bordo também, Pereira.



Gornt franziu o rosto e se perguntou: por que Hoag está com tanta pressa em partir?



Tudo fora arrumado como deveria, tudo providenciado para que a Brock continuasse a operar sem problemas durante sua ausência: a que mercadores dar crédito, a que mercadores negar; amanhã ou no dia seguinte, os representantes de Choshu deveriam chegar para negociar os embarques de armas — um bom negócio para ele próprio usufruir, depois que os Brocks fossem destruídos, e depois, como planejado também, que adquirisse as instalações e o pessoal da companhia aqui... a preços de salvados de incêndio, é claro. Ele riu para si mesmo da piada. Em seguida, a concessão de carvão de Yoshi, que ele soubera que poderia ser transferida da Struan para Seratard, através da companhia comercial do falecido André Poncin, e que talvez ainda estivesse disponível para ofertas. Instruíra seu cambista a apresentar uma oferta, em segredo.



Pereira ficaria no comando. Na noite passada, ao saber por Maureen que o novo escritório de Jamie fora destruído no incêndio, ele planejara designá-lo; mas naquela tarde, para sua surpresa, Jamie agradecera e recusara, dizendo que achava que seria capaz de reiniciar seu próprio negócio.



Jamie seria mais glacê na glacê, pensou Gornt. Mas não importa, Jamie ainda vai assumir por mim, quando tudo for a Rothwell-Gornt. Sentia isso no íntimo.



O sinete de Norbert estava ali, assim como as duas cartas com datas atrasadas para Tess. Seu cinto de dinheiro tinha recursos da Brock, mais do que suficiente para as despesas, em mex de prata e ouro. Ótimo. Tudo resolvido.



Agora, faltava Angelique.







— Olá, Edward — disse ela, com um sorriso efusivo.



Era a primeira vez que ela o recebia em seu boudoir, no segundo andar. Ah Soh postava-se ao lado de um balde de gelar vinho e ele notou que a porta para o quarto estava fechada, o cortinado corrido, embora a claridade do dia ainda não tivesse desaparecido por completo, lampiões a óleo acesos, o cômodo feminino, convidativo, o comportamento de Angelique recatado, estranho.



— Vinho branco, para variar — disse ela, jovial. — La Doucette. Ou bourbon, se preferir.



— Vinho, por favor, madame. Nunca a vi com uma aparência melhor.



— O mesmo posso dizer a seu respeito, meu amigo. Por favor, sente aqui, ao lado do fogo.



O vestido de luto para a tarde, preto-azulado, era novo, o modelo sedutor, o decote quadrado e pudico. Mas, para o prazer de Gornt — e o dela —, havia um xale de seda multicolorido em torno de seus ombros, o efeito surpreendente, um sopro de primavera naquele dia de janeiro.



— Ah Soh, vinho — disse ela.



Depois que os dois foram servidos, Angelique acrescentou:



— Espere lá fora! Se eu quiser, chamarei!



A criada se retirou, arrastando os pés, e bateu a porta. Gornt comentou, em voz baixa:



— Ela deve estar com o ouvido comprimido na porta.



Angelique riu.



— Para ouvir segredos? Que segredos poderia haver entre nós? A uma viagem segura, Edward! — Ela tomou um gole, largou o copo. — Já arrumou tudo?



— Já, sim. Você está maravilhosa, eu a amo e gostaria de uma resposta ao meu pedido.



Angelique abriu o leque, começou a usá-lo, como deveria ser usado por uma jovem dama de classe, na presença de um homem solteiro de classe — e de duvidosa reputação —, para seduzir, flertar, prometer sem prometer, dar respostas, ou evitá-las, insinuar perguntas que seriam perigosas se formuladas abertamente.



— Eu o admiro muito, Edward.



— Não mais do que eu a admiro. Mas a resposta é sim ou não?



O leque foi fechado. Angelique sorriu, foi abrir uma caixa na cômoda, entregou-lhe um envelope. Endereçado à Sra. Tess Struan.



— Por favor, leia a carta. Estou enviando-a para Hong Kong por intermédio de Hoag, em resposta à carta que ela me escreveu.



A caligrafia de Angelique era impecável:





Prezada Sra. Struan:



Agradeço por sua carta e generosidade.



Concordo com tudo o que solicitou: juro solenemente e concordo por livre e espontânea vontade em renunciar a toda e qualquer reivindicação à herança de seu filho, concordo em nunca mais usar o título de Sra. Struan, concordo que sou católica e nunca fui casada de acordo com a minha Igreja, concordo em nunca mais pôr os pés em Hong Kong, exceto para uma baldeação, e nunca mais tentar entrar em contato com você, ou qualquer pessoa de sua família, concordo em me retirar destas instalações dentro de uma semana, e aceito, com sinceros agradecimentos, a oferta de um fundo que me dará dois mil guinéus por ano, até minha morte.





O espaço para sua assinatura estava em branco e, abaixo, ela escrevera confirmada como assinatura autêntica por Sir William Aylesbury, ministro no Japão, com outro espaço em branco para a assinatura e a data. Gornt levantou os olhos.



— Não pode estar falando sério. Isto entrega tudo a ela.



— Não me aconselhou a aceitar as condições dela?



— É verdade, mas disse para chegar a um acordo... renegociar.



— Não esqueci. Se você concorda, pedirei a Sir William para testemunhar agora, antes de sua partida. O Dr. Hoag prometeu levá-la esta noite, no mesmo navio em que você vai viajar. Assim, a carta estará lá quando você chegar.



— Mas sabe que isto cede tudo... como eu, ou qualquer outra pessoa, poderia negociar em seu nome?



— Há uma segunda página.



Angelique tirou-a da caixa, entregou-a, abriu o leque, começou a se abanar. Gentilmente.



Gornt tornou a se concentrar. A letra não era tão precisa, e havia manchas aqui e ali... poderiam ser manchas de lágrimas?, ele perguntou a si mesmo.





Prezada Sra. Struan:



Por motivos óbvios, esta parte deve ser separada, ficar só entre nós, pois não é da conta de Sir William. Mais uma vez, agradeço por sua generosidade. A gentil oferta de mais mil guinéus, se eu recasar, ou apenas casar, como diria, dentro de um ano, não posso aceitar, porque não tenciono recasar ou casar, qualquer que seja o termo que considere correto...





Ele tornou a levantar os olhos, aturdido.



— É esta a minha resposta?



O leque adejou.



— Termine a carta.



Os olhos de Gornt desceram apressados pela página.





Diante de Deus não posso evitar a convicção de que fui casada, embora renuncie por livre e espontânea vontade a qualquer pretensão pública e legal a esse estado. Não assumirei outro... não desejo magoá-la ou ofendê-la, mas quanto a casar de novo... não. É minha intenção, assim que for possível, instalar-me em Londres, porque me sinto mais inglesa do que francesa, a língua de minha mãe era o inglês, não o francês, minha tia foi minha verdadeira mãe.



Nunca mais usarei o título de Sra. Struan, como concordei, mas não posso evitar que outras pessoas se refiram a mim como tal. Sir William não aceitará Angelique, ou Angelique Richaud, e insiste que eu assine como Sra. Angelique Struan, née Richaud, para tornar o acima compulsório, pois segundo ele, e seu entendimento da lei inglesa, é esse o meu atual nome legal, até que eu torne a casar.





— Ele disse isso? — perguntou Gornt, em tom brusco.



— Não, mas o Sr. Skye garante que ele concordaria, se lhe for pedido.



— Hum...



Gornt balançou a cabeça, pensativo, tomou um gole de vinho e continuou a ler, mais devagar, com maior atenção:





Caso qualquer dos pontos acima seja insatisfatório, por favor escreva o que mais exige e entregue ao Sr. Gornt, que me disse que tornará a vê-la e depois voltará para cá, quase que imediatamente, e eu assinarei. Eu o recomendo, pois ele foi um bom amigo de seu filho e tem sido gentil comigo — aconselhou-me a aceitar suas generosas condições, assim como o Sr. Skye foi contra. Respeitosamente... Angelique.





Gornt recostou-se, deixou escapar um suspiro, fitou-a nos olhos, impressionado.



— E maravilhosa. Não há outra palavra. Você concorda com tudo, mas ainda mantém a espada de Dâmocles sobre a cabeça dela.



O leque parou.



— Como assim?



— Planeja viver em Londres, portanto sob a lei inglesa, uma ameaça latente e óbvia. Não usa uma única vez “marido”, mas a ameaça existe, e me lança bem no meio do palco, como amigo das duas partes, numa perfeita posição de negociação. E por mais insidiosa que ela seja, independente do documento que elaborar para a sua assinatura, você sempre pode derramar mais lágrimas e suspirar, alegar que houve coação, e acabaria vencendo. Uma maravilha de vinte e quatro quilates!



— Sendo assim, devo pedir a Sir William para testemunhar minha assinatura?



— Deve, sim — respondeu Gornt, fascinado por ela, tão esperta e ousada, e também perigosa. Talvez perigosa demais. — É o xeque-mate.



— Como assim?



— Tess só fica segura de uma forma: se você tornar a casar, e bloqueou essa possibilidade.



Embora o leque parasse, os olhos de Angelique observavam-no por cima. Depois, o movimento recomeçou, enquanto Gornt devolvia a carta, pensando: De uma esperteza diabólica... para você, não para mim.



— Skye a aconselhou de uma forma brilhante.



— Ninguém me aconselhou, exceto você... fui orientada por uma coisa que me disse.



O coração de Gornt pulou uma batida.



— Ninguém mais viu esta carta?



— Não. E ninguém mais verá. Pode ser um segredo entre nós.



Ele ouviu o “pode ser” e especulou para onde isso levava, desanimado agora, mas escondendo. O fogo na lareira precisava de atenção, por isso ele se levantou, foi usar o atiçador, ganhando tempo para pensar. O ar ainda estava impregnado de fumaça e do incêndio, mas ele não registrou isso, só se concentrava em Angelique.



Como ela pôde conceber tudo isso? É absolutamente brilhante, todas as peças estão no tabuleiro, para nós dois. Ela vai vencer, derrotará Tess, mas eu perdi. Ainda terei de negociar para ela e agora tenho mais certeza de que conseguirei aumentar seu estipêndio, mas Angelique não admitiu coisa alguma, deixou seu plano de jogo em aberto. Eu perdi. Não partilharei o grande prêmio: ela.



— Portanto, a resposta à minha pergunta é não, deve ser não?



Apenas o leque se mexia.



— Por quê? — indagou Angelique, sem emoção.



— Porque no momento em que disser sim, perde o jogo, perde todo o seu poder sobre Tess Struan.



— Tem razão, eu perderia.



Ela fechou o leque, largou-o em seu colo. Os olhos nunca se desviaram dos olhos de Gornt, nunca perderam a intensidade.



Por um momento, ele sentiu-se hipnotizado, depois sua mente tornou a entrar em ação, e uma súbita esperança o invadiu.



— Você disse eu perderia, significando que você perderia. Mas eu não? Eu não perderia o poder?



Agora, Angelique sorriu. Era uma resposta.



O sorriso de Mona Lisa outra vez, pensou ele, é estranho como o rosto de Angelique muda, como eu penso que muda, como ela é insidiosa e como terei de ser vigilante para domar esta potranca. Ainda não entendo, mas um coração fraco jamais conquista uma bela dama. Ele precisou de toda a sua força de vontade para manter os pés plantados no mesmo lugar.



— Eu a amo por todas as razões usuais e também a amo por sua astúcia. Agora, formalmente, quer casar comigo?



— Sim — respondeu Angelique.


59





Aleluia! — exclamou Gornt, inebriado, mas sem sair do lado da lareira.



O leque parou.



— Aleluia? Isso é tudo? — murmurou ela, o coração acelerando.



— Claro que não, mas primeiro deve me dizer quais são as condições. Angelique riu.



— Deve haver condições?



— Estou começando a entender a maneira como sua mente funciona... pelo menos algumas vezes.



— Quando vai embarcar no Atlanta Belle?



— No último momento. Há muito... para conversar.



— Tem razão. Edward, nossos filhos seriam criados como católicos, e nós nos casaríamos numa igreja católica?



— Isso é uma condição?



— Uma pergunta.



Ele franziu o rosto, deixando a mente se projetar à frente e ao redor, querendo ser cauteloso naquele mar infestado de rochedos.



— Não vejo por que não. Não sou católico, como sabe, mas se é isso o que você quer, não tem problema... — A peça final do quebra-cabeça ofuscou-o com sua força. — Aleluia!



— O que foi?



— Apenas uma idéia. Conversaremos a respeito dentro de um minuto. Agora, Angelique, chega de jogos. Quais são as condições? O que tem nessa sua mente mágica?



Angelique se levantou. Na ponta dos pés, encostou os lábios nos dele, num beijo gentil. Ela tinha lábios macios, uma respiração fragrante.



— Obrigada por me perguntar, e pelo que já fez por mim.



Gornt pôs as mãos nos quadris dela. Ambos notaram que seus corpos pareciam se ajustar, embora nenhum dos dois o admitisse.



— As condições?



— Diga-me quais são, Edward.



Agora que ela respondera à pergunta principal e lhe entregara as chaves, Gornt não tinha pressa.



— Acho que são três — disse ele, divertido. — Se eu estiver certo, vai me contar o resto?



— Concordo.



O corpo de Gornt, firme contra o seu, a agradava. E seu corpo suave e cheio de curvas contra o dele também o agradava, desviando sua concentração. Sem o menor esforço. Cuidado, é o maior trunfo de Angelique e o jogo se encontra agora no seu estágio mais perigoso... o acerto do futuro. Cuidado! E muito fácil tornar o beijo mais sério, fácil demais, e também será fácil tomá-la em meus braços, levá-la para a cama no quarto ao lado e perder — qualquer que seja o resultado — antes mesmo de alcançar a porta.



Era mais excitante para ele se conter, esperar pelo momento perfeito — como fizera com Morgan Brock —, aceitar o fato de seu desejo, mas pô-lo de lado e, em vez disso, projetar sua mente para a de Angelique. Três condições? Conheço pelo menos cinco, pensou ele, querendo vencer, precisando vencer, como acontecia em tudo.



— Não necessariamente nesta ordem — começou ele. — Uma, que eu consiga renegociar com sucesso um aumento, no mínimo para quatro mil por ano. Outra, que passemos algum tempo em Paris e Londres, digamos pelo menos um mês a cada dois anos... mais o tempo de viagem, que será em torno de seis meses. Depois, que o dinheiro do fundo de Tess, qualquer que seja, permaneça sob o seu controle, não o meu.



Ele viu os olhos de Angelique faiscando e compreendeu que vencera.



— E outra, para arrematar, que eu a ame loucamente para sempre.



— Você é bastante esperto, Edward. Tenho certeza de que seremos muito felizes. — O sorriso estranho ressurgiu. — Agora, cinco seriam melhor do que quatro e dois meses melhor do que um.



— Tentarei chegar a cinco, embora não possa prometer — disse ele no mesmo instante. — Também concordo com dois meses em Paris, todas as outras coisas permanecendo iguais. O que mais?



— Nada de importante. Precisaremos de uma casa em Paris, mas sei que você vai amá-la, depois que a conhecer. Nada mais, exceto que você tem de prometer que vai gostar de mim.



— Nem precisava perguntar isso, mas prometo.



Os braços de Gornt a apertaram. Ela encostou-se nele, percebendo como os corpos se ajustavam, sentindo-se segura, embora ainda não tivesse certeza sobre Gornt.



— Você é mais desejável do que qualquer outra mulher que já conheci — acrescentou ele. — Isso, por si só, já é bastante terrível, mas ainda por cima possui uma mente extraordinária, e suas maquinações... não, essa não é a palavra apropriada... seus voos de genialidade...



Por um momento, ele a manteve à distância dos braços, fitando-a nos olhos.



— Você é espetacular, sob todos os aspectos. Ela sorriu, não saiu de seus braços.



— Todos mesmo?



— Até pelo casamento católico.



— Ah...



— Isso mesmo, ah! — Gornt soltou uma risada. — É a sua solução de sonho, minha jovem e esperta dama, junto com sua carta. Ocorreu-me subitamente o que você já decidiu: um casamento católico faz com que deixe de ser uma ameaça a Tess para sempre. Afinal, para Tess, um casamento católico neutraliza completamente o casamento protestante, celebrado no mar, por mais legítimo que seja, perante a lei inglesa.



Angelique riu, aninhando-se contra ele.



— Se dissesse que achava que poderia me persuadir a casar com você e depois, como protestante, se oferecesse para fazer esse sacrifício deliberado, tenho certeza de que aquela mulher ficaria feliz em lhe dar tudo o que pedisse, para nós dois, se os pedidos fossem razoáveis. Não concorda?



— Concordo. — Gornt suspirou. — Em que pedido pensou?



— Nada demais, mas Malcolm me explicou uma ocasião a importância do Jóquei Clube, tanto em Xangai quanto em Hong Kong, e como, junto com os conselhos das duas cidades, todo o poder dos negócios se concentra ali. A influência daquela mulher não lhe conseguiria um título de sócio em um e uma vaga no outro?



Ele riu, tornou a abraçá-la.



— É mesmo incomparável, madame. Por isso, eu até me tornaria católico.



— Não precisa chegar a esse ponto, Edward.



— Vai adorar Xangai. Agora, também tenho condições.



— É?



Gornt ficou contente ao ver um brilho de preocupação nos olhos de Angelique, mas ocultou sua satisfação e assumiu uma expressão mais severa. Não preciso impor condições prévias, pensou ele, divertido: um marido tem direitos inalienáveis, como possuir todos os bens materiais da esposa. Graças a Deus que este mundo pertence aos homens.



— A primeira condição é que você me ame com todo o seu coração e alma.



— Tentarei, Edward, e me esforçarei para ser a melhor esposa que já existiu. — Ela apertou-o. — E que mais?



Gornt percebeu a preocupação latente e soltou uma risada.



— Isso é tudo, exceto que tem de prometer que me deixará ensiná-la a jogar bridge e mah-jongg... e assim nunca mais precisará pedir dinheiro a mim ou a qualquer outra pessoa.



Angelique fitou-o nos olhos por um momento, depois se ergueu na ponta dos pés. O beijo sacramentou o acordo e depois ele fez um esforço para relaxar, excitado demais.



— Mal posso esperar, Angelique.



— Eu também.



— Agora, devemos planejar, pois não resta muito tempo. Primeiro, temos de obter a assinatura de Sir William, o mais depressa possível. Minha querida, eu me sinto muito feliz por você ter me aceitado.



Angelique tinha vontade de ronronar.



— E eu me sinto mais feliz do que posso exprimir. Quando você voltar continuaremos aqui ou partiremos para Xangai?



— Iremos para Xangai o mais depressa possível... assim que os Brocks afundarem.



Ele beijou-a no nariz.



— Ah, os Brocks. Tem certeza? Tem certeza em relação eles? Todo o nosso futuro depende disso, não é?



— E de Tess. Tenho certeza. Minhas provas são irrefutáveis e o veneno de Tess será a pá de cal na ruína deles — ela deve ter compreendido isso também ou nunca teria feito essa oferta tão mesquinha; mesmo assim, precisamos ter cuidado, independente do que sejamos em particular, o que é uma situação diferente, pelo prazo de seis meses — precisarei de todo esse tempo para levá-la a Xangai, sua reputação imaculada, a Rothwell-Gornt consolidada, suas finanças definidas... devemos agir apenas como bons amigos. Eu adoro você.



Como resposta, Angelique tornou a apertá-lo e depois murmurou:



— Os americanos têm o costume de fazer um contrato de casamento?



— Não, mas o faremos, se você quiser. — Gornt percebeu o sorriso que encobria e prometia. — Não é necessário, não é mesmo? Estamos interligados, nosso futuro é comum, somos uma única entidade mesmo agora. O sucesso depende de nosso desempenho conjunto e da minha atuação. Nunca se esqueça de que Tess é muito hábil e astuta, não será enganada com facilidade e considera que um acordo é um acordo. Mesmo assim, prometo que você conseguirá o que quer.



Tem toda razão, vou conseguir, pensou Angelique.







Chocado, Sir William largou a última página escrita por André na mesa do lado. Era tudo em francês, com a letra de André.



— Por Deus! — murmurou ele, mudando de posição em sua poltrona velha puída, mas confortável.



A sala era agradável, um fogo crepitava alegre na lareira, as cortinas fechadas contra as aragens.



Ele levantou, sentindo-se muito velho, serviu-se de um drinque, ficou olhando para os papéis, incrédulo. Tornou a sentar, folheou-os. Aparte final da carta do pai de Angelique, reconstituída de forma meticulosa, sugeria sem qualquer dúvida um esquema calculado para seduzir Malcolm Struan, outras páginas fixavam datas e detalhes do estupro pelo assassino ronin em Kanagawa e sua estranha morte na legação francesa, o nome da mama-san que fornecera o medicamento, como fora pago com os brincos “perdidos” e como André saíra remando pelo mar para dar um sumiço nas provas — algumas toalhas, as ervas e um dos dois vidros, o outro guardado como prova, agora esperando na gaveta de sua mesa na legação. Sua carta de explicação dizia:





Sir William, quando ler esta carta, eu já estarei morto. O que existe aqui só deve ser usado se eu sofrer uma morte violenta. Confesso que usei meu conhecimento para arrancar dinheiro de Angelique, isso mesmo, fiz chantagem, se quiser usar essa palavra, mas também a chantagem é um instrumento diplomático, que você também tem usado, como todos nós. Eu lhe passo estas informações porque posso ter sido assassinado ou talvez minha morte tenha parecido acidental, mas não foi necessariamente assim e, sim, provocada por ela ou com sua ajuda — outra verdade é a de que não seriam poucos os que cometeriam assassinato por ela (Babcott, McFay, Gornt) —, porque meu conhecimento e participação em seus... “crimes “ é uma palavra forte demais... em suas manipulações me transformam num alvo.



Estas páginas apresentam os indícios para pegar a pessoa que me matou e atribuir a culpa à responsável suprema. Não guardo qualquer ressentimento contra Angelique, eu a usei quando precisava, embora nunca tenha ido para a cama com ela. Minha morte pode parecer acidental, mas talvez não seja. Se assim for, muito bem, já fiz minha confissão (embora não tenha revelado nada disso ao padre Leo) e partirei para a maior aventura — tão impuro quanto a maioria, talvez mais do que a maioria, que Deus me ajude.



Por que tenho de entregar isto a você, e não a Henri? Por quê?





A assinatura era firme.



— Por que eu? — murmurou Sir William. — E como é possível que aquela moça fosse capaz de esconder tudo isso por tanto tempo, esconder de Malcolm Struan? E de George e de Hoag? Impossível, certamente impossível, André deve ter perdido o juízo... e, no entanto...



Além da carta do pai — e mesmo esta, fora do contexto, poderia ser um exagero da verdade —, o resto é apenas opinião de André, a menos que ela seja pressionada e confesse. Estas histórias poderiam ser invenções de uma mente demente. Claro que ele também a queria, não foram poucas as ocasiões em que todos notamos a maneira libidinosa como André a contemplava e ainda houve aquele estranho incidente, quando Vervene o encontrou no quarto de Angelique. E é bastante curioso que ele tenha usado a palavra “impuro” desse jeito, quando de fato o era, o pobre coitado.



Sir William estremeceu. Seratard lhe contara o segredo de André. A sífilis era endêmica em todas as camadas da sociedade, em todas as cidades e aldeias, em São Petersburgo, Londres e Paris, nos palácios e nas habitações mais vis da Casbá, podia espreitar de qualquer bordel, de qualquer dama da noite, na China ou em nosso mundo flutuante aqui.



Ah, André, por que me entregar tudo isso? É curioso que tenha morrido como morreu, de mãos dadas com a moça que comprou para destruir. Que coisa terrível! Só que ela teve uma opção, como somos levados a acreditar. Sua morte foi um acidente. Foi mesmo? Henri não tem certeza.



— É tudo muito estranho, William — dissera-lhe Henri naquela manhã.__



Os corpos... seria mais acurado falar esqueletos... davam a impressão de mortos antes do fogo chegar, sem qualquer sinal de que tentaram escapar. Apenas se encontravam estendidos lado a lado, de mãos dadas. E isso me espanta. Apesar de todos os seus defeitos, André era um sobrevivente, e num incêndio o instinto é tentar escapar, não continuar deitado, sem fazer nada. Seria impossível.



— Então qual é a resposta?



— Não sei. Pode ter sido um pacto de suicídio, consumado antes do incêndio. Veneno, nada mais se ajustaria. É verdade que ultimamente André se mostrava mórbido, ao ponto da insanidade, e precisava muito de dinheiro para pagar o contrato da mulher. Tirando isso, André um suicida? Acredita nessa possibilidade?



Não, não André, pensou Sir William, inquieto. Ele foi envenenado ou ambos. Agora, há um motivo para assassinato. Deus Todo-Poderoso, seria possível? É, sim, mas quem?



Cansado, bastante transtornado, ele fechou os olhos. Quanto mais tentava encontrar uma resposta, mais perturbado se tornava. A porta foi aberta, sem barulho. Seu empregado número um entrou, começou a cumprimentá-lo, percebeu a palidez e envelhecimento no rosto de Sir William, franziu o rosto, presumiu que ele dormia, serviu um uísque, pôs o copo na mesa ao seu lado. Seus olhos esquadrinharam a carta de André, no alto da pilha, e depois ele saiu, tão silencioso quanto entrara.



Poucos minutos mais tarde, houve uma batida na porta. Sir William despertou com um sobressalto, no momento em que Babcott estendia a cabeça pela porta.



— Tem um minuto?



— Olá, George. Claro. — Sir William guardou os papéis numa pasta, consciente da atração que pareciam irradiar. — Sente-se e tome um drinque. Qual é o problema?



— Não há nenhum. — Babcott estava ainda mais cansado do que antes. — Não ficarei muito tempo. Só queria avisar que vou tirar umas poucas horas de sono. A contagem até agora é de três sujeitos da cidade dos bêbados, o australiano que trabalhava num bar e dois vagabundos sem documentos... pode haver outros corpos nas ruínas, mas ninguém sabe quando a limpeza será concluída. E ninguém parece muito preocupado com isso.



— O que me diz da aldeia e da Yoshiwara?



— Nunca teremos uma contagem. — Babcott bocejou. — Eles parecem considerar que estatísticas desse tipo são segredos nacionais. Não se pode culpá-los, pois nós somos os forasteiros. Eu diria que não tiveram muitas baixas. O mesmo em nossa Yoshiwara, graças a Deus... sabia que cada estalagem tinha um porão de emergência?



— Muito conveniente. Seria bom instituirmos a mesma idéia aqui.



— Uma pena o que houve com André... — murmurou Babcott, provocando outra pontada de angústia em Sir William. — Tivemos muita sorte, porque a maioria do nosso pessoal não foi apanhada pelo fogo. Mas até agora não sei como Phillip conseguiu escapar vivo. Ele ficou bastante abalado pela perda de sua garota, William. Por que não lhe dá uma licença de umas poucas semanas, deixa-o ir a Hong Kong ou Xangai?



— O trabalho é a melhor terapia e preciso dele aqui.



— Talvez você tenha razão. — Outro bocejo. — Por Deus, como estou cansado! Já sabe que Hoag vai embarcar no paquete esta noite?



— Ele me avisou antes. Disse que tinha conversado com você, que respondeu que não precisava mais dele aqui. Imagino que Tess ordenou que ele voltasse assim que soubesse... se ela não estivesse esperando.



— Deve ser isso mesmo. Mas em parte é pessoal, William, pois ele se mostra ansioso em voltar para a índia, acha que encontrará a felicidade por lá. — Babcott franziu o rosto, reprimiu um bocejo. — Ele lhe contou o que havia na carta de Tess?



— A carta para Angelique? Não. Disse que Tess não lhe mostrou o que escrevera, embora seja difícil acreditar nisso. — Sir William observava-o atentamente. — Heavenly esteve aqui antes. Também não disse nada a respeito, apenas informou que Angelique queria que eu testemunhasse sua assinatura numa carta que está enviando para Tess.



Um pouco do cansaço de Babcott se desvaneceu.



— Eu gostaria muito de saber o que diz a carta.



— Serei apenas testemunha da assinatura. Não preciso tomar conhecimento do conteúdo.



Babcott suspirou, tornou a bocejar. — Lamento profundamente por ela, gostaria de poder ajudar, faria qualquer coisa... uma moça tão boa, para quem a vida tem sido tão injusta. Com ela e com Malcolm. Seja como for, estou contente porque ela não vai nos deixar por enquanto. Tenho certeza que Angelique dará uma esposa espetacular para alguém. Tornarei a vê-lo dentro de algumas horas.



— Durma bem e obrigado por seu excelente trabalho. Por falar nisso — acrescentou Sir William, não querendo que ele se retirasse, mas receando que, se Babcott ficasse, poderia se sentir tentado a partilhar o que André revelara, pedir seu conselho —, quando vai ver Anjo de novo?



— Dentro de uma ou duas semanas, assim que acabar o láudano que deixei com ele... sem isso, Anjo vai sofrer muito.



— Não há esperança para ele?



— Não. Só vai durar mais uns poucos meses, os testes foram bastante acurados... suas entranhas se deterioraram. Yoshi é o nosso homem. — Outro bocejo. — Acha que foi Anjo ou Yoshi, se não mesmo ambos, que ordenaram o incêndio criminoso?



— Os dois, ou nenhum dos dois, nunca saberemos. — Ele observou Babcott se encaminhar para a porta, trôpego. — George, em termos médicos, se uma mulher estivesse sedada, um homem poderia possuí-la sem que ela soubesse?



Babcott piscou, aturdido, virou-se no mesmo instante, a fadiga desvanecida.



— Por que pergunta isso?



— Apenas um pensamento súbito, por você ter mencionado o láudano. Há poucos dias, Zergeyev expôs algumas teorias incríveis sobre drogas, o que havia de bom e ruim nelas. Isso poderia acontecer?



Depois de uma pausa, Babcott acenou com a cabeça, não acreditando nessa explicação. Sabia como a mente de Willie era sutil e especulou sobre o motivo da pergunta, mas era esperto demais para perguntar outra vez.



— Se a dose fosse maciça e o homem não se comportasse como um selvagem, sim, não seria problema.



Ele esperou, mas Sir William limitou-se a balançar a cabeça, pensativo. Diante disso, Babcott acenou com a mão e retirou-se.



Mais uma vez, Sir William abriu a pasta.



Seus dedos tremeram quando releu a carta de André. É bem claro. A droga em Kanagawa desencadeou a sucessão de eventos, a droga dada por George. Se ela tivesse despertado, o homem a mataria, não resta a menor dúvida quanto a isso. Assim, ela foi salva, mas também destruída. E por que o homem não a matou de qualquer maneira? Por que a deixou viva? Não faz sentido. E o que aconteceu na legação francesa naquela outra noite, quando ele voltou? Se não fosse por George...



E o que pensar de George? Se ele foi capaz de lhe dar uma droga assim, para ajudá-la a dormir, para proteger sua sanidade, é claro que poderia fazer a mesma coisa com André, para remover um chantagista da mulher a quem ama, com toda certeza. Uma dose excessiva da mesma droga...



George Babcott? Oh, Deus, devo estar perdendo o juízo! Seria impossível para ele fazer uma coisa dessas!



Ou será que não?



E Angelique... seria impossível para ela fazer tudo isso!



Ou será que não?



O que vou fazer?


60





Com licença, senhor — disse Bertram. — Miss Angelique está aqui.



— Mande-a entrar. E pode se retirar em seguida. O jantar será às nove horas. Providencie para que o Belle não zarpe sem os meus despachos.



— Pois não, senhor. É apenas ela. O Sr. Skye não veio junto.



Sir William levantou-se de sua velha cadeira, cansado, sentindo-se mal. A pasta com o material de André continuava em cima da mesa, virada para baixo.



Angelique entrou, fisicamente tão magnética quanto sempre, mas diferente, o rosto rígido, com uma força latente que ele não pôde interpretar. De casaco, touca e luvas. O preto se ajusta bem a ela, pensou Sir William, contrasta com sua pele alva, tão bela e tão jovem, mais jovem do que Vertinskya. Estranho... ela estivera chorando?



— Boa noite. Como vai, Angelique?



— Ah... vou muito bem, obrigada. — A voz era apática, diferente de sua personalidade controlada habitual.



— O Sr. Skye informou-o que eu precisava que testemunhasse minha assinatura esta noite?



— Informou, sim. — Ele foi para sua mesa, a concentração afetada pelas imagens que André descrevera com tanto vigor. — Eu... por favor, sente-se.



Angelique sentou. Enquanto ele a fitava, outra sombra passou por seus olhos adoráveis.



— Qual é o problema? — perguntou Sir William, gentilmente.



— Não é nada. Eu... esta tarde soube sobre André, que ele tinha morrido. Teria vindo antes, mas... — Com um esforço visível, ela relegou isso para um segundo plano, tirou o envelope da bolsa, pôs em cima da mesa. — Como devo assinar, por favor?



Sir William uniu as pontas dos dedos, apreensivo de novo, o espectro de André tornando a invadir a sala... embora não por sua vontade.



— Não tenho muita certeza. Pelo que Skye contou, entendi que você concordou com a Sra. Tess Struan, entre outras condições, a renunciar a seu título de Sra. Struan?



— Pode ler a carta, por favor, se assim o desejar — murmurou ela, apática.



— Agradeço, mas isso não é necessário — disse Sir William, resistindo ao impulso intenso de ler o curto documento. — O que acertou com ela não é da minha conta, a menos que precise de meu conselho.



Atordoada, Angelique sacudiu a cabeça.



— Sendo assim... Skye tem uma teoria legal. Não tenho certeza se ele está correto, mas não vejo nenhuma razão em contrário. Está renunciando ao título de “Sra.” para sempre. Mas ele ressaltou, de forma procedente, que isso só acontece depois que você assinar. Portanto, é melhor assinar Sra. Angelique Struan, née Angelique Richaud, o que deve cobrir todas as possibilidades.



Ele observou-a se concentrar, a mente dominada pela história terrível que André relatara de seu túmulo de chamas... não é possível que ela tenha escondido tanta coisa de nós, não é possível mesmo.



— Pronto — disse Angelique. — Já assinei.



— Sinto-me na obrigação de perguntar: tem certeza de que está fazendo a coisa certa... ninguém a obrigou, por qualquer meio, a assinar este documento, não importa o que contenha?



— Assino por minha livre e espontânea vontade. Ela... ela ofereceu um acordo, Sir William. E a verdade é que... a verdade é que se trata de um acordo justo. Algumas das cláusulas são distorcidas, poderiam ser melhoradas, talvez sejam, mas Malcolm era seu filho, ela tem o direito de ficar transtornada.



Angelique levantou-se, enfiou a carta no envelope, guardou-o na bolsa, querendo sair logo, mas ao mesmo tempo querendo ficar.



— Obrigada.



— Não se vá ainda. Talvez... não gostaria de jantar aqui amanhã, apenas umas poucas pessoas? Eu estava pensando em convidar Jamie e Miss Maureen.



— Seria ótimo, obrigada. Eu gostaria muito, mas... Eles são simpáticos, e ela é maravilhosa. Acha que vão casar?



— Se Jamie não casar com ela, é mais tolo do que eu pensava... Outro tomará seu lugar, se ele não casar. — Antes de poder se controlar, Sir William acrescentou. — Muito triste o que aconteceu com André, não acha? Henri lhe contou como o encontraram?



Abruptamente, ele viu os olhos de Angelique se encherem de lágrimas, o controle desaparecer.



— Desculpe. Não tinha a intenção de deixá-la tão transtornada.



— Sei disso, mas já me encontro tão transtornada que... ainda não posso... Henri me contou há cerca de uma hora como André e ela, juntos... a vontade de Deus para ambos, muito triste, mas também maravilhoso.



Angelique tornou a sentar, removendo as lágrimas e recordando que quase desfalecera ao saber. Depois que Henri se retirara, ela fora correndo para a igreja, ajoelhara-se diante da imagem da Santa Virgem... a igreja estranhamente mudada, imponente sem o telhado, mas as velas acesas, como sempre, a paz ali, como sempre. E agradecera, um agradecimento desesperado, por se livrar da servidão, e uma súbita e sincera compreensão de que André também se libertara de seu tormento, tanto quanto ela. E murmurara:

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