— Compreendo isso agora. Santa mãe, obrigada por nos abençoar, a mim e a ele. André está com ela, em paz, quando sabia que jamais encontraria a paz neste mundo. Mas agora eles se encontram sãos e salvos em seus braços, foi feita a sua vontade...



Os olhos de Angelique mal conseguiam divisar Sir William, através do pesar e da gratidão.



— Henri me falou sobre a doença de André. Pobre coitado, uma coisa terrível... e ele estava apaixonado, totalmente apaixonado. André foi gentil comigo e para ser sincera... — Angelique precisava dizer a verdade em voz alta. — ... também foi horrível, mas acima de tudo era um amigo. E sentia uma paixão irresistível por essa Hinodeh, nada mais no mundo tinha a mesma importância. Por isso, ele deve ser desculpado. Chegou a conhecê-la?



— Não. Nem sequer sabia seu nome. — Apesar de sua determinação em deixar a questão por aí, Sir William perguntou: — Por que ele foi horrível?



Angelique usou um lenço para enxugar as lágrimas e respondeu a voz triste, sem raiva:



— André sabia sobre meu pai e meu tio e usou isso e outras coisas para me deixar em dívida. Vivia me pedindo dinheiro, que eu não tinha, fazendo as promessas mais delirantes... e até mesmo, para ser franca, ameaças.



Inquisitiva, ela fitou-o, sem qualquer astúcia agora, franca e grata a Deus e à Virgem santa por liberar os dois, o passado consumido com ele, junto com toda a sordidez.



— Foi a vontade de Deus! — disse ela, fervorosa. — Fico contente por isso e também triste. Por que não podemos esquecer o que era ruim e apenas lembrar as coisas boas... já há suficiente mal neste mundo para compensar o nosso esquecimento, não acha?



— Tem razão — murmurou ele, com uma compaixão angustiante, os olhos desviando-se para a miniatura de Vertinskya. — É isso mesmo.



Aquela rara demonstração de emoção em Sir William desencadeou alguma coisa em Angelique, que no mesmo instante, antes de perceber o que fazia, pôs-se a revelar o seu medo mais profundo:



— É um homem sensato e tenho de contar a alguém. Sinto-me purificada, como nunca antes, mas é meu Malcolm que me preocupa. Acontece que não fiquei com nada seu, nem o nome, nem o daguerreótipo... não saiu... nenhum retrato e descubro que não consigo encontrar suas feições. A cada dia, parece um pouco pior. Estou assustada...



As lágrimas escorriam, silenciosas, e Sir William, sentado à sua frente, não era capaz de se mexer.



— É quase como se ele nunca tivesse existido e toda a viagem, o tempo em Iocoama, não passasse de um... um théâtre macabre. Estou casada, mas não estou, acusada de coisas horríveis que jamais aconteceram ou não ocorreram de propósito, inocente, mas culpada, odiada por Tess, quando apenas queria fazer o melhor que podia por meu Malcolm, claro que eu sabia que ele era um grande partido e meu pai maquinava um casamento, não eu, acho que não eu, mas não fiz coisa alguma que pudesse prejudicá-lo, e ele me amava, queria casar comigo, empenhei-me em fazer o melhor, juro que sim, e agora que ele morreu, tento ao máximo ser sensata, estou sozinha agora, ele se foi, tenho de pensar no futuro, estou apavorada, era uma criança quando cheguei, agora é diferente, tudo aconteceu muito depressa, e o pior é que não consigo me lembrar de seu rosto, está me escapando, e não há nada... Pobre Malcolm...


61





No crepúsculo, à beira da terra de ninguém, ao abrigo de uma casa na aldeia meio concluída, uma sombra se deslocou. E depois outra. Dois homens espreitavam, escondidos, observando. Em algum lugar, no meio dos telheiros e abrigos temporários da aldeia, em meio às habitações parcialmente reconstruídas, em meio às conversas abafadas, uma criança começou a chorar, para ser logo silenciada.



Onde antes a terra de ninguém fora uma sucessão de colinas e vales de lixo e refugos, a maior parte fora consumida pelo fogo e o resto assentara mais fundo na terra, e por cima de tudo se estendera uma camada de cinzas da qual ainda saíam filetes de fumaça. Só o poço de tijolos era proeminente. A primeira sombra transformou-se em Phillip Tyrer e ele correu até o poço, meio encurvado, agachando-se ao seu lado.



Cauteloso, correu os olhos ao redor. Até onde podia determinar, ninguém o vira. No outro lado, a cidade dos bêbados não passava de escombros fumegantes, detritos retorcidos, uns poucos incêndios isolados ainda ardendo, entre barracas de lona temporárias. Havia uns poucos homens por ali, belicosos, quase todos encolhidos contra o frio, sentados em barris virados, bebendo cerveja, uísque e rum saqueados.



Com o maior cuidado, Phillip inclinou-se para a beira do poço e assoviou. Lá de baixo veio um assovio em resposta. Ele tornou a se abaixar, reprimiu um bocejo nervoso. Momentos depois uma mão alcançou o topo dos tijolos. A cabeça de Hiraga apareceu. Phillip fez um sinal para ele. Em silêncio, Hiraga agachou-se ao seu lado, depois Akimoto. Ambos usavam casacos acolchoados e quimonos, por cima de calças largas, e carregavam as espadas camufladas com roupas extras. Cautelosos, encolheram-se quando três homens no lado da cidade dos bêbados começaram a atravessar o lugar em que antes existira uma viela, desviando-se entre os destroços do armazém. Um deles cantava uma canção do mar. Muito tempo depois de sumirem de vista, sua voz de barítono ainda ressoava, trazida pelo vento.



— Seguir eu, mas tomar cuidado!



Tyrer correu de volta à aldeia e parou ao lado do outro homem, junto ao bangalô inacabado. Jamie McFay. Quando estava seguro, Hiraga e Akimoto se juntaram aos dois, correndo com mais agilidade, sem qualquer barulho. Jamie McFay disse:



— Aqui, depressa.



Ele abriu o saco e entregou-lhes trajes de marujo, com casacos de lã e sapatos. Hiraga e Akimoto despiram-se, puseram as roupas de marujo. Os trajes descartados foram para o saco, que Akimoto pendurou nas costas. Tyrer viu Hiraga guardar uma pistola num bolso lateral.



Demorara apenas um ou dois minutos. Jamie seguiu na frente, ao longo do trecho em que antes existia a rua principal da aldeia... e em breve voltaria a existir. Podiam sentir olhos por toda parte. No céu, a lua saiu de trás das nuvens por um instante. Numa reação automática, Hiraga e Akimoto se congelaram em sombras, prontos para empunharem suas armas, criticando mentalmente a negligência inepta dos outros dois. A lua logo desapareceu e eles continuaram.



A casa do shoya estava três quartos reconstruída, a loja na frente vazia, mas os aposentos por trás concluídos, em caráter temporário, e habitáveis. Jamie esgueirou-se entre pilhas de vigas e shojis, foi bater numa porta improvisada. A porta se abriu e ele entrou. Os outros seguiram-no para a escuridão. A porta foi fechada.



Um momento depois, um fósforo foi riscado, e o pavio da vela aceso. O shoya estava sozinho, pálido de cansaço e de medo, que se esforçava em ocultar. Na mesa baixa, havia frascos de saquê e um pouco de comida. Hiraga e Akimoto devoraram a comida e esvaziaram dois frascos em segundos.



— Obrigado, shoya — disse Hiraga. — Não esquecerei.



— Tome aqui, Otami-sama. — O shoya entregou-lhe uma pequena bolsa com moedas. — São cem oban de ouro e vinte mexicanos.



Havia um pincel na mesa, a pena e o tinteiro preparados, ao lado do papel. Hiraga assinou o recibo.



— E meu primo?



— Sinto muito, mas isso é tudo o que consegui providenciar em tão pouco tempo — respondeu o shoya, lançando um rápido olhar para Jamie, que os outros não perceberam.



— Não importa. — Hiraga não acreditava nele, mas também Akimoto não tinha crédito, ninguém para pagar o empréstimo. — Obrigado. E, por favor, cuide para que meu fiador receba isto, o mais depressa possível.



Ele entregou um pequeno pergaminho. Era uma mensagem de despedida codificada para a mãe e o pai, relatando seu plano e dando a notícia sobre Sumomo. Por precaução, não continha nomes reais. Em inglês, Hiraga acrescentou:



— Taira-sama, pronto. Aqui acabado.



— Pronto, Jamie? — indagou Tyrer.



Ele se sentia estranho, nauseado, sem saber se a causa era excitamento ou medo, fadiga ou desespero. Desde o incêndio, o rosto de Fujiko aflorava de seu subconsciente a intervalos de poucos minutos, gritando, em chamas.



— Melhor apressar, Otami-sama — disse ele a Hiraga. Ambos haviam combinado que era melhor nunca mais usar Hiraga ou Nakama. — Baixar mais gorro sobre rosto. Domo, shoya, mataneh. Obrigado, shoya, boa noite.



Ele tornou a sair para a rua. Depois de verificar que era seguro, fez um sinal para os outros.



— Vá na frente, Jamie — sussurrou ele.



Em súbito pânico, todos se esgueiraram para as sombras, enquanto uma patrulha de granadeiros se aproximava e passava. Voltando a respirar, Tyrer murmurou:



— Eles estar procura saqueadores, ladrões, wakamarisu ka?



Wakamarisu.



Mais uma vez Jamie seguiu à frente, desviando-se entre os escombros, na direção do cais no outro lado do passeio, perto do lugar em que antes se erguia o prédio do Guardian. Havia muitos homens vagueando por ali, olhando impressionados para as ruínas da aldeia, Yoshiwara e cidade dos bêbados ou apenas passeando a esmo, pois ainda era muito cedo para dormir. Reconhecendo alguns, Jamie passou a andar mais devagar, não querendo atrair qualquer atenção. Dmitri era um deles, voltando para casa. Jamie não pôde reprimir um sorriso amargo. Naquela manhã, Dmitri, radiante, procurara-o para informar que descobrira Nemi durante a madrugada e que ela estava bem, tinha apenas umas poucas equimoses, salvara-se quase ilesa.



— Graças a Deus, Dmitri!



— A primeira coisa que ela disse foi Jami-san bem? Eu disse que sim e ela me deu um abraço para você. Dei o seu recado, de que a encontraria assim que fosse possível.



— Obrigado. Isso tira uma carga da minha cabeça. Receava que ela tivesse morrido. Acabei encontrando sua estalagem, mas era apenas uma pilha de cinzas, inclusive nossa casa. Não descobri ninguém que... Graças a Deus.



— Lembra o que eu...



— Claro que lembro, mas primeiro tenho de conversar com ela. Afinal, Nemi não é uma mera peça do mobiliário.



— Ei, companheiro, vamos com calma! Nem pense nisso. Não tive a intenção de insinuar qualquer coisa...



Jamie suspirou e continuou a avançar, passando pelas ruínas de um bar, agora não muito longe do passeio. Dmitri é um ótimo sujeito, pensou ele, mas Nemi era especial, e...



— Oh, Deus, olhe ali!



Ele apontou. Cinco guerreiros samurais exaustos agachavam-se ao redor de uma fogueira, ao lado do cais, fazendo um chá. Num instante, Jamie avaliou as alternativas. Não havia nenhuma.



— Não temos como evitar. Vamos embora.



Ao chegaram ao passeio, Lunkchurch emergiu da escuridão.



— Jamie — murmurou ele, soturno —, o que você vai fazer? Perdeu tudo, como eu...



Lunkchurch lançou um olhar para Phillip, mal notando os outros dois. Pareciam marujos asiáticos comuns, de um tipo abundante na frota mercante.



— É uma merda...



— Talvez não seja tão horrível assim, Barnaby. Tenho algumas idéias. Falarei com você amanhã.



Jamie continuou a andar, chegou ao cais, levantou o chapéu, polido, para os samurais e seu oficial, que retribuíram a saudação, distraídos. As estacas e o caminho de madeira do cais se estendiam por cinquenta metros, pelo mar adentro. Jamie sentiu um aperto no coração. Não havia nenhum cúter à espera e nenhum se aproximava do cais da Struan, ao norte. No meio da baía, o Atlanta Belle estava todo iluminado, cercado por um enxame de pequenas embarcações, chegando e partindo.



No início daquela tarde, Jamie perguntara a MacStruan se podia emprestar o cúter naquela noite, para uma rápida viagem, pois queria conversar com o capitão do Belle, Johnny Twomast, um velho amigo. Phillip, depois de deixar Sir William, que confirmara a suposta morte de Híraga, fora correndo se encontrar com Jamie. Tropeçando nas palavras, de tanto excitamento, Phillip contara, na maior satisfação, que Hiraga continuava vivo, escondido num poço na cidade dos bêbados, como o japonês salvara sua vida na noite passada e expusera seu plano para salvá-lo.



— Só precisamos levá-lo às escondidas para bordo do Belle, ninguém jamais saberá de nada.



— Ele está vivo? Fui informado que havia morrido no incêndio... ele está mesmo vivo?



— Está, sim. Tudo o que temos de fazer é levá-lo para bordo, junto com seu amigo.



— Pedirei a Johnny Twomast para escondê-lo, mas apenas se você obtiver a aprovação de Willie. Hiraga ainda é um assa...



— Hiraga morreu... Nakama, Hiraga, é tudo a mesma coisa, oficialmente, Willie disse que o sargento confirmou sua morte no incêndio. Nakama está morto, desapareceu para sempre, assim como Hiraga. Mandá-lo para fora daqui num navio é a solução perfeita e vale a pena salvá-lo. Só estamos ajudando dois samurais estudantes a conhecerem o mundo, o nosso mundo, durante cerca de um ano, e um deles se chama Otami.



— Se formos apanhados, Willie vai arrancar sangue... o nosso sangue.



— Não há motivo para sermos apanhados. Otami é mesmo Otami, seu nome verdadeiro, e ele me falou sobre você e o shoya combinando todos os tipos de negócios. Você será o vencedor quando ele voltar, todos nós sairemos ganhando. Temos de ajudá-lo de qualquer maneira!



Jamie acabara concordando e se encontrara com o shoya para acertar o empréstimo, pelo qual também se tornara fiador. A esta altura, já era o pôr-do-sol. Tyrer fora até o poço, para chamar Hiraga e Akimoto, e agora esperavam no cais.



— Onde está o cúter, Jamie? — indagou Tyrer, nervoso.



— Já vai chegar.



Sentindo-se bastante expostos, os quatro homens esperaram na extremidade do cais, perto dos degraus cambaios, escorregadios, cheios de algas, todos conscientes dos samurais ali perto, seu capitão andando de um lado para outro. Hiraga sussurrou:



— Taira-sama, aquele capitão lembrar? Ele vigilante. Lembrar ele, capitão no portão?



— Que portão?



— Em Iedo. Na sua casa grande em Iedo. Quando nós encontrar primeira vez.



— Oh, Deus!



Tudo voltou agora — o rude samurai que insistira em revistar a legação, quando se encontravam cercados e trancados, antes da evacuação, Hiraga escapando numa maca, disfarçado como um paciente de varíola.



— O que foi agora? — perguntou Jamie.



Tyrer contou. Por cima do ombro de Tyrer, Jamie constatou que o oficial os observava. Sua ansiedade aumentou. — Ele parece curioso demais.



— Posso reconhecê-lo agora — murmurou Tyrer. — Seria melhor se nós... Olhe, lá está!



O cúter surgiu da escuridão, as luzes de navegação acesas, mas quase indistintas. O contramestre acenou, eles acenaram em resposta. As ondas batendo no cais os salpicavam com borrifos.



— Tratem de embarcar o mais depressa possível — disse Jamie, num excitamento cada vez maior.



Phillip o convencera de que Hiraga não era um assassino, mas alguém que lutava pela liberdade. Além disso, já testemunhara pessoalmente como Hiraga podia ser útil. Agora, tinha ainda mais certeza do quanto um shishi e amigo que falava inglês poderia ser valioso no futuro, em particular se tivesse sido orientado e ajudado por ele. Até preparara um dossiê sobre pessoas que Hiraga deveria procurar na Inglaterra e Escócia, aonde ir, o que ver, e tencionava explicar tudo isso antes da partida do navio.



Phillip é um gênio, pensou ele, soltando uma risadinha. Foi nesse instante que olhou para trás e prendeu a respiração. O oficial japonês aproximava-se pelo cais.



— Por Deus, o patife está vindo para cá!



Todos olharam para o homem e depois para o cúter. Não havia a menor possibilidade de o barco chegar antes do capitão.



— Estamos perdidos!



Hiraga já chegara à mesma conclusão. Puxou os quimonos que cobriam suas espadas.



— Akimoto, vamos matá-lo!



— Esperar! Ficar aqui!



Tyrer entregou a Hiraga um envelope grande, que continha cartas de apresentação a seu pai e tio, também a um advogado e o diretor de sua universidade.



— Eu ia explicar tudo a eles no cúter — disse Tyrer, falando depressa. — Não há mais tempo agora. Jamie, faça isso por mim.



Ele fitou Hiraga nos olhos, pela última vez, estendeu a mão.



— Obrigado. Serei sempre seu amigo. Volte são e salvo.



Tyrer sentiu o aperto firme, divisou um breve sorriso, depois virou-se, com um suor frio, e partiu ao encontro do inimigo.



O capitão já percorrera a metade do cais quando Tyrer postou-se à sua frente, no meio da passagem, e fez uma reverência formal. Um grunhido, o homem hesitou, a mão no punho da espada longa, depois respondeu com outra reverência. Quando ele tentou passar, Tyrer fez uma nova reverência e disse, em seu melhor japonês, deliberadamente solene:



— Ah, senhor oficial, eu querer dizer como samurais combater bem o fogo. Lembrar de Iedo, sim? Por favor, desculpar, em nome meu superior, chefe gai-jin no Nipão, aceitar grande agradecimento por salvar todas casas nossas.



— Obrigado, mas agora eu quero ver...



— Ver? Olhar ali, senhor oficial!



Tyrer apontou na direção da cidade e ao redor, seu japonês se tornando cada vez mais incompreensível, dando um passo para o lado, cada vez que o homem tentava contorná-lo.



— Ver o que fogo...



— Saia da frente! — disse o samurai, furioso, a respiração com o cheiro de daikon. — Saia da frente!



Mas Tyrer fingiu não entender, sacudiu os braços para bloqueá-lo, tentando dar a impressão de que não era intencional, tomando cuidado para não tocá-lo, ao mesmo tempo em que dizia como a devastação fora terrível e como os samurais haviam demonstrado grande competência... Jamie e os outros se encontravam às suas costas, e por isso não tinha como calcular quanto tempo ainda precisava ganhar.



Baka! — rosnou o oficial.



Tyrer viu o rosto do homem se contrair em raiva e preparou-se para o golpe, mas nesse instante ouviu Jamie berrar:



— Vamos partir logo, pelo amor de Deus!



O capitão empurrou-o para o lado, bruscamente, e correu na direção do barco. Ofegando, Tyrer recuperou o equilíbrio e virou-se para avistar o cúter fazendo a volta, a toda velocidade, os três homens abaixados na cabine, o contramestre na casa do leme, um marujo na proa, as luzes na cabine apagadas no instante em que o samurai alcançou a extremidade do cais, gritando para que voltassem, a ordem abafada pelo barulho do motor. Um momento antes de as luzes se apagarem e de Hiraga e Akimoto virarem as costas, Tyrer teve a impressão de que podia ver seus rostos com toda nitidez... e se os vira, o oficial também vira.



— É minha imaginação — murmurou Phillip, já se afastando, no andar mais rápido de que era capaz.



Ergueu o chapéu para os samurais em torno da fogueira, que responderam de uma maneira superficial, e ao ouvir o grito do capitão, “Ei, você! Venha cá!”, já estava se fundindo com a multidão. Quando achou que era seguro, desatou a correr e só voltou a respirar quando se encontrava são e salvo na legação.



— Por Deus, Phillip! — exclamou Bertram, os olhos arregalados. — O que aconteceu?



— Ora, vá se foder! — balbuciou Tyrer, ainda aflito com a fuga por um triz.



— Por que ele deveria fazer isso? — indagou Sir William, da porta de sua sala, o rosto tenso, a voz ríspida.



— Oh... desculpe, senhor, foi... apenas uma brincadeira.



Um grunhido irritado foi o comentário.



— Phillip, você está de miolo mole! Onde se meteu? Há uma mensagem do Bakufu com a indicação de urgente em sua mesa, à espera de tradução, um despacho para Sir Percy que tem de ser copiado, antes de seguir no Atlanta Belle esta noite, quatro pedidos de pagamento do seguro para autenticar... já aprovei e assinei. Depois de acabar tudo, venha falar comigo. Estarei aqui, ou no cais, despedindo-me dos passageiros... Não fique parado aí! Trate de se apressar!



Sir William tornou a entrar em sua sala, fechou a porta, encostou-se nela. Seus olhos foram inexoravelmente atraídos para a pasta de André, bem no meio da mesa. E a tristeza tornou a aflorar.



Depois que Angelique fora embora, ele ficara quase sem se mexer por uma hora, ou mais, tentando tomar uma decisão, desesperado em fazer o que era certo, pois se tratava de fato de uma questão de vida e morte. A mente vagueara para os caminhos de sua própria experiência: a infância na Inglaterra, o posto em Paris, São Petersburgo, sua casa ali, o jardim, rindo com Vertinskya, na primavera, verão, outono e inverno, amando-a; o retorno à Inglaterra, missões nos campos de batalha da Criméia, momentos turbilhonantes, sinistros e indistintos, que ainda o assustavam.



Sentia-se contente pela voz de Phillip tê-lo atraído de volta à normalidade. Mais uma vez, seus olhos vaguearam pela sala, passando pelo fogo e a pasta, fixando-se no rosto jovem e adorável, em miniatura, que lhe sorria. Sentiu o coração partir, como sempre acontecia, mas logo se recuperou. Um pouco menos a cada vez.



Adiantou-se, pegou a miniatura, examinou-a, cada pincelada já gravada em sua memória. Se eu não tivesse o retrato, teria esquecido o rosto dela, como Angelique com seu Malcolm?



— Não há resposta para isso, Vertinskya, minha querida — murmurou ele, desconsolado, à beira das lágrimas, repondo a miniatura na mesa. — Talvez esquecesse... seu rosto... mas nunca você, nunca, nunca, nunca você.



E por mais que tentasse reviver o tempo em que se sentira mais vivo, a pasta de André era como uma porta de ferro a separá-los.



Ele que se dane!



Isso não importa, tome a decisão. Basta de vacilação, ordenou ele a si mesmo. Volte ao trabalho, enfrente o problema, a fim de poder continuar em frente, para coisas mais importantes, como Yoshi e a guerra iminente contra Satsuma... Você é o ministro de sua majestade britânica! Aja como tal!



A única maneira correta e apropriada de lidar com a pasta de André é lacrá-la, escrever um relatório particular sobre o que aconteceu, e quando, o que foi dito e por quem, despachar tudo para Londres e deixar que eles decidam. Há muitos segredos em seus cofres e arquivos. Se eles quiserem que seja mantido em segredo, cabe-lhes tomar essa decisão.



Muito bem, esse é o único curso correto e apropriado.



Confiante de que estava tomando a decisão acertada, Sir William pegou os papéis e jogou-os um a um no fogo, cantarolando para si mesmo, observando-os se enroscarem, enegrecerem e se transformarem em cinzas. Não é uma atitude incorreta. Tais documentos não constituem uma prova irrefutável e, de qualquer maneira, a pobre moça foi uma vítima, André era um agente secreto perigoso e ativo de uma potência inimiga e se for autêntica a metade dos males relatados em seu dossiê secreto, ele bem que merecia ser detonado uma dúzia de vezes. Verdades ou mentiras, neste caso o pó reverte ao pó.



Depois de acabar, ele levantou seu copo para a miniatura, sentindo-se muito bem.



— A você, minha querida — murmurou Sir William.


62





Já era quase meia-noite quando Tyrer finalmente deixou a legação, apressado, e se encaminhou para o cais da Struan. Sua cabeça doía como nunca antes, não tivera tempo para jantar, muito menos para pensar sobre Hiraga ou Fujiko, nenhum tempo para fazer outra coisa que não trabalhar. Levava uma bolsa oficial de despachos do governo de sua majestade e tinha no bolso a tradução que fizera por último, desejando ter sido a primeira coisa. Acelerou os passos.



Havia uma multidão no cais. Umas poucas pessoas ali se encontravam para se despedir dos passageiros, mas a maioria cercava ruidosamente o comissário de bordo do Belle, que recebia a correspondência de última hora para as matrizes em Hong Kong e Xangai — corretores de seguros, fornecedores, armadores, bancos —, qualquer um e todos que precisavam tomar conhecimento do incêndio e danos causados. Ele avistou Angelique conversando com Gornt. No outro lado da multidão, Pallidar falava com alguns oficiais que embarcariam como passageiros. Sir William estava perto da beira do cais, absorvido em conversa com Maureen Ross. Ao vê-la, Tyrer lembrou-se no mesmo instante de Jamie e Hiraga, de sua promessa a Jamie de esclarecer o caso dos “estudantes” com seu superior. Ele avançou pela multidão.



— Boa noite, miss Maureen. Com licença, Sir William, mas talvez queira ver isto imediatamente. — Tyrer entregou a tradução. — Providenciarei para que os despachos sejam levados para bordo.



Ele tratou de se afastar, na direção do comissário de bordo, não querendo estar por perto quando ocorresse a inevitável explosão. O comissário era pequeno e dispéptico e a fila irregular de homens se acotovelando para chegar até ele ainda era comprida. Tyrer foi até o começo da fila, ignorando os protestos de “Espere a sua vez!”, e declarou:



— Desculpe, senhor, mas são ordens de Sir William. Negócios do governo de sua majestade. Um recibo, por favor.



— Está bem, está bem! Por que a pressa?



Enquanto o comissário fazia o registro em seu livro, Tyrer lançou um olhar para Sir William, que fora se postar sob um lampião e lia a tradução, com os olhos contraídos. Enquanto ele observava, o rosto se contorceu, os lábios começaram a murmurar palavrões, levando os homens nas proximidades a recuar, chocados, não por causa da linguagem, mas por ser tão inesperada. Tyrer soltou um gemido e tornou a virar as costas.



O documento era dos roju, assinado pelo tairo Nori, ríspido, sem os floreios habituais, e endereçado com a maior desfaçatez Ao Líder dos Gai-jin. Ele traduzira da melhor forma que pôde, com o mesmo estilo, só interpolando quando era necessário:



Os roju dão os parabéns a você e aos outros gai-jin por terem escapado com vida e pouco mais dos incêndios ateados por descontentes e revolucionários. O governador de Kanagawa enviará amanhã quinhentos cules para ajudá-los na evacuação de Iocoama, de acordo com as inequívocas advertências dos deuses, e de acordo com os desejos do imperador, que lhe foram transmitidos muitas vezes. Quando vocês voltarem, se voltarem, devem nos dar um aviso com bastante antecedência. Serão providenciadas acomodações para os gai-jin selecionados em Deshima, no porto de Nagasáqui, de onde, como no passado, serão conduzidos no futuro todo o comércio e negócios dos gai-jin. Um comunicado cordial.





— Tyrer!



Ele fingiu não ter ouvido, continuou de costas para Sir William, aceitou o recibo do comissário, os homens impacientes na fila gritando em graus variados de irritação:



— Depressa, pelo amor de Deus! Não queremos passar a noite inteira aqui! Ei, ele já voltou!



O cúter vazio, voltando do Belle, estava atracando. Tyrer notou que Jamie não se encontrava a bordo. O contramestre inclinou a cabeça para fora da casa do leme e berrou:



— Todos a bordo, os que vão embarcar!



Na agitação imediata, Maureen se aproximou.



— Phillip, quando Jamie vai voltar?



— No último barco, com toda certeza, se não antes — respondeu ele, sem saber se Jamie contara o plano a ela. — Ainda resta uma hora, ou mais.



— Tyrer!



— Desculpe, mas tenho de ir agora. Pois não, senhor? — gritou ele. Tyrer respirou fundo, preparando-se mentalmente, e se afastou apressado.



— Em meia hora, Phillip — disse Sir William, vesgo de tanta raiva —, em apenas meia hora, precisarei que você traduza minha resposta, que será vigorosa, bastante acurada.



— Certo, senhor. Antes que eu me esqueça...



— Vá procurar... ah, lá está ele! Eu sabia que o tinha visto por aqui!



Um olhar para o rosto de Sir William foi suficiente para fazer com que a multidão silenciasse e lhe desse passagem, todos na maior atenção.



— Pallidar, chame os dragões. Quero que entregue um comunicado cordial ao governador de Kanagawa... imediatamente.



— Esta noite, senhor? — indagou Pallidar, para perceber a expressão no rosto dele e se apressar em acrescentar: — Claro, senhor. Imediatamente.



— Com licença, Sir William — disse Tyrer, falando depressa, antes que o ministro britânico pudesse se afastar. — Não tive tempo de lhe falar antes, mas ajudei dois estudantes japoneses a embarcar. Eles queriam viajar, visitar a Inglaterra. Salvaram minha vida ontem à noite. Espero que não se incomode.



— Por eles terem salvo sua vida? Tenho minhas dúvidas. — Os olhos penetraram fundo em Tyrer. — Se você se tornou agente de viagens durante o horário de expediente, suponho que terá uma resposta satisfatória, caso eu a exija. Pallidar, quero que siga com todo seu destacamento, dentro de uma hora, e entregue minha mensagem de uma forma um tanto rude!



Sir William afastou-se. Pallidar assoou o nariz, ainda bastante resfriado.



— O que houve com ele?



Tyrer inclinou-se e contou sobre o ultimato.



— Por Deus, não é de admirar! Mas que desfaçatez! Na verdade, até que é bom, pois agora teremos alguma ação. Todo esse suspense só serve para irritar o general, junto com suas hemorróidas.



Ele riu, mais de nervosismo do que pelo gracejo antigo. Nesse momento, Hoag chegou ao cais, ofegante, ainda usando a sobrecasaca de operar, as mangas e o peito rígidos de sangue ressequido, cartola na cabeça, carregando valises e pacotes.



— Pensei que tinha me atrasado. Qual é a graça?



— Tem bastante tempo — disse Tyrer.



E ele especulou, assim como Pallidar, o que haveria na carta de Angelique, cuja assinatura Sir William testemunhara, e que Hoag levaria para Hong Kong. Todos sabiam apenas que era uma resposta à carta, também ainda um mistério, entregue a Angelique quando Hoag tivera a certeza de que ela não esperava uma criança de Malcolm. Desde o primeiro dia do retorno de Hoag, as linhas gerais do ultimato de Tess eram do conhecimento geral e tema de acalorados debates particulares.



— Espero que faça uma boa viagem. Viajará para a índia em seguida, não é?



— Isso mesmo. Estarei lá no mês que vem. — O rosto feio desmanchou-se num sorriso. — Mal posso esperar. Podem ir me visitar. Garanto que vão adorar.



Pallidar disse:



— A Índia é meu próximo posto. Acabo de ser informado. A fronteira, Hindu Kush, passo Khyber.



Embora falasse em tom jovial, Pallidar odiara secretamente a perspectiva. Havia mortes demais naquele inferno, uma bala disparada do nada, uma adaga surgindo no meio da noite, poços envenenados, nenhuma glória ali, apenas violência e morte, tentar permanecer vivo naquela paisagem rochosa e árida, onde nada vicejava, a não ser a morte. E, no entanto, era um lugar vital para o império, pois passava por ali a rota histórica de invasão da índia britânica, por hordas mongóis, persas ou russas. Uma terrível premonição o dominou e ele não pôde resistir à tentação de acrescentar:



— Não há sepultamentos no mar ali, doutor.



— Não, nenhum, absolutamente nenhum — respondeu Hoag, interpretando errado o comentário. Depois, ele passou o braço pelos ombros de Pallidar, num gesto afetuoso. — Você é um bom sujeito, Settry. Se eu puder ajudá-lo na índia, será fácil me encontrar. Vai adorar aquilo lá. Boa sorte.



Ele se afastou, para cumprimentar Gornt e Angelique.



— O que foi? — indagou Tyrer, tendo notado a súbita mudança em Pallidar, O oficial deu de ombros, irritado com sua ansiedade e lapso, experimentando abrupta inveja de Hoag.



— O doutor Hoag me disse que não gosta de sepultamentos no mar e que se sentiu contente por perder o de Malcolm em Hong Kong.



Ele exibiu um sorriso irônico. Depois de relatar a Sir William o estranho comportamento de Hoag com os caixões, em Kanagawa, testemunhado pelo sargento, e de receber instruções e jurar segredo, Pallidar, sem ser observado, efetuara a troca de posição dos caixões, depois de examiná-los. Não havia qualquer diferença entre eles, ao que pudesse perceber. Assim, o caixão enviado para Hong Kong, a bordo do Prancing Cloud, continha o corpo de Malcolm, enquanto o outro. o que Hoag, Angelique, Jamie e Skye haviam sepultado, era o do aldeão, como Sir William ordenara.



— É uma pena que Malcolm tenha morrido — murmurou ele, a voz rouca. — A vida é curiosa, não acha? Nunca se sabe quando vai acontecer.



Tyrer acenou com a cabeça. A depressão de Pallidar era insólita. Gostando dele, Tyrer baixou sua guarda.



— Qual é o problema, meu velho?



— Não há nenhum. Você teve muita sorte ontem à noite, conseguindo escapar...



Sombras passaram pelo rosto de Tyrer e Pallidar censurou a si mesmo por sua estupidez.



— Desculpe, Phillip. Não tinha a intenção de transtorná-lo. Não sei o que acontece comigo esta noite.



— Já soube de... de...



Nem por sua própria vida, Tyrer seria capaz de dizer o nome de Fujiko, sua dor ainda intensa, empurrando-o para profundezas insondáveis, em que nunca estivera antes. Sua boca disse, enquanto ele tentava se mostrar bravo:



— Quando acontece uma coisa assim, tão terrível, meu velho costumava dizer... Tive uma irmã que pegou sarampo e morreu aos sete anos de idade, uma menina linda, que todos nós amávamos... Meu velho sempre dizia: “Essas coisas nos são enviadas para nos testar. Você chora e chora e depois... depois se recupera, diz que foi a vontade de Deus e tenta não odiá-lo.



Ele sentiu as lágrimas escorrendo pelas faces e não se importou. Os pés o levaram para a praia e ali, sozinho com as ondas, o céu e a noite, pensou de fato em Fujiko, lembrou-a com toda a sua paixão e, em seguida, a guardou numa pequena caixa, que pôs ao lado de seu coração.







A bordo do Atlanta Belle, o capitão Twomast estava dizendo:



— Muito bem, Jamie, deixarei que eles viajem, independente do que a Sra. Struan decidiu. Mas você a conhece, sabe que ela não é dada a generosidades.



— Basta lhe entregar minha carta quando chegar a Hong Kong.



Jamie contara a Twomast a verdade sobre Otami e seu primo, não querendo criar problemas para o amigo, e garantira o dinheiro da passagem dos dois, ida e volta, se Tess não concordasse com sua proposta: adiantar-lhes os recursos necessários, com prudentes apresentações a pessoas na Inglaterra e Escócia, contra um empreendimento meio a meio que ele formaria para aproveitar tudo o que os dois pudessem proporcionar, ao voltarem ao Japão.



Ele escrevera:





Sei que é um grande risco, Sra. Struan, mas Otami é muito inteligente, bem relacionado, até onde posso determinar, e representa o futuro no Nipão. Caso não concorde, por favor, tire o dinheiro da passagem da generosa doação que me fez. Agora, devo dizer que Albert MacStruan está indo muito bem, suas propriedades e prédios aqui nada sofreram com o incêndio e tudo se acha preparado para um grande futuro — continuarei a ajudar, se ele pedir. Por último, permita-me dizer que deve tomar cuidado com o novo gerente da Brock, Edward Gornt. Ele é um homem bom e corajoso, mas um rival perigoso.





— Vai sair bastante caro, Jamie — comentou Twomast, que era baixo e magro, o rosto curtido de marujo, cabelos escuros, olhos castanhos. — Pelo menos cem libras. Vale o risco?



— O navio é de Tess, o custo da passagem nada significa para ela.



— Ainda assim é caro, e ela se preocupa com os pence, tanto quanto com as libras. Mas não importa, a decisão cabe a ela. Descontarei o seu cheque em Londres, se ela não bancar a conta. Tem certeza que os seus japas compreendem que devem me obedecer?



— Tenho. Eu disse a eles que a bordo você é um rei, um daimio. Eles devem obedecer e permanecer a bordo, até que os mande desembarcar, em Londres. Mas trate-os como a nobreza, Johnny. Será bem recompensado.



Twomast riu.



— Serei, sim, só que no céu. Mas não importa, fiquei devendo algumas coisas a você, ao longo dos anos, e agora farei o que me pede.



— Obrigado.



Jamie correu os olhos pelo camarote. Pequeno, um beliche, mesa de cartas, mesa para quatro pessoas, tudo impecável, sólido, digno de um autêntico marujo... como Johnny Twomast, originalmente um norueguês, primo de Sven Orlov, o Corcunda, que assumira o comando da frota da Struan, depois de Dirk Struan. O Atlanta Belle, um vapor de mil toneladas, podia transportar quatro passageiros na primeira classe, dez na segunda, cinqüenta na terceira, e ainda sobrava espaço para uma carga substancial.



— Onde eles vão ficar?



— Com a tripulação. Onde mais poderia ser?



— Pode lhes dar um camarote, por menor que seja.



— Vamos partir lotados; eles aprenderão depressa, com a tripulação, os nossos costumes.



— Dê-lhes um camarote pelo menos até partir de Hong Kong. Não quero que sejam reconhecidos.



Johnny Twomast pensou por um instante.



— Eles podem ficar no camarote do terceiro-imediato, que tem dois beliches. Estão armados, Jamie?



— Claro que estão. São samurais.



— Nada de armas, nem esse negócio de samurai.



Jamie deu de ombros.



— Diga isso a eles. Mas, por favor, trate-os com todo respeito, não como meros nativos. Podem ser esquisitos, mas são japoneses importantes.



Mister! — gritou o capitão para o imediato. — Mande os dois entrarem!



Hiraga e Akimoto entraram, bem instruídos por Jamie.



— Qual de vocês fala inglês?



— Eu falar, anjin-sama. Eu Otami-sama.



— O Sr. McFay aqui garante você, Otami-sama, o seu bom comportamento, por toda a viagem até Londres. Concordam em me obedecer, permanecem a bordo se eu mandar, desembarcam e voltam como eu determinar, até a cidade de Londres. Vão me obedecer como se eu fosse seu chefe, seu daimio?



— Nós concordar fazer tudo que anjin-sama dizer — respondeu Hiraga, com o maior cuidado.



— Ótimo. Mas não quero armas, enquanto estiverem a bordo. Devem me entregar as espadas, pistolas, facas. Serão devolvidas quando desembarcarem. — Twomast percebeu o relance de raiva e registrou-o. — Vocês concordam?



— Mas se homens nos atacar?



— Se meus homens atacarem vocês, usem os punhos, até eu chegar. Eles serão avisados, cinqüenta açoites para cada homem, se começarem uma briga. E vocês não puxam briga com ninguém. Entenderam?



— Não, sinto muito.



Jamie explicou como os marujos seriam amarrados ao mastro e açoitados por desobedecer. Consternado com a crueldade, Hiraga transmitiu a explicação a Akimoto e depois disse:



— Mas, anjin-sama, você não ter medo? Se homem livre no navio, depois do insulto, não ter medo esse homem assassinar você?



Johnny Twomast riu.



— Ele seria enforcado, tão certo quanto Deus fez as maçãs. O motim é punido com a morte. Ordenarei que a tripulação não provoque vocês e vocês não provocam os homens... isso também é importante. Compreende?



— Eu compreender, anjin-sama — respondeu Hiraga, embora só compreendesse parcialmente, sua cabeça doendo.



— Qualquer problema, falem comigo. Nada de brigas, a menos que sejam atacados. Suas armas, por favor.



Relutante, Hiraga entregou as espadas envoltas por quimonos. E a pistola.



Mister!



A porta do camarote foi aberta.



— Pois não, senhor?



— Esses dois vão ficar no camarote do terceiro-imediato. Eu os levarei até lá.



Jamie levantou-se e estendeu a mão para Hiraga.



— Desejo uma viagem segura. Podem me escrever quando quiserem, e para Phillip... Taira-sama. Como eu expliquei, escreverei para meu banco, o Hong Kong Bank, no Mall. Está tudo nos papéis que entreguei a você, junto com a maneira de receber ou enviar correspondência. Não espere uma resposta por quatro meses. Boa sorte e um retorno seguro.



Eles trocaram um aperto de mão. Jamie fez a mesma coisa com Akimoto.



— Venham comigo, vocês dois — disse Twomast. Ele seguiu na frente pelo corredor, abriu uma porta.



— Vão dormir aqui e ficar fora de vista. O Sr. McFay não quer que sejam reconhecidos. Depois de Hong Kong, será mais fácil.



Twomast fechou a porta.







Em silêncio, Hiraga e Akimoto olharam ao redor. Era mais um armário do que um quarto. O espaço mal dava para ficarem de pé. Havia um lampião a óleo aceso. Dois beliches imundos, um por cima do outro, encostados na antepara, com gavetas por baixo. Colchões de palha sujos, cobertores de lã. Mau cheiro. Botas de borracha, roupas por lavar espalhadas. Impermeáveis de tempestade penduradas em ganchos.



— Para que servem essas coisas? — perguntou Akimoto, aturdido.



— É alguma espécie de roupa; mas muito rígida. Como se pode lutar com uma coisa assim? Eu me sinto nu sem as espadas.



— Eu me sinto como a morte, não apenas nu.



O convés balançava sob seus pés, podiam ouvir homens gritando ordens, outros cantando, enquanto preparavam o navio para o mar, o motor ruidoso fazendo vibrar o convés e anteparas, o cheiro desagradável de fumaça de carvão e óleo, o ar abafado, parecendo sufocá-los. O convés tornou a se inclinar, quando uma âncora foi recolhida, e Hiraga cambaleou contra os beliches, sentou no de baixo.



— Acha que é aí que devemos dormir?



— Onde mais? — murmurou Akimoto.



Os olhos aguçados, ele puxou o cobertor todo amarrotado. Todos os cantos do colchão estavam povoados por colônias de percevejos, vivos e mortos, a lona áspera manchada de sangue antigo, onde gerações haviam sido esmagadas. Ele conseguiu não vomitar.



— Vamos desembarcar — resmungou Akimoto. — Já vi o suficiente.



— Não — disse Hiraga, prevalecendo sobre seu próprio medo. — Realizamos um milagre, conseguimos escapar do Bakufu e de Yoshi e estamos partindo para o território do inimigo como convidados. Podemos espionar seus segredos e aprender como destruí-los.



— Aprender o quê? Como açoitar um homem até a morte, como viver nesta cloaca por meses? Viu como o capitão se retirou na maior grosseria, sem responder à nossa reverência? Vamos embora... mesmo que tenhamos de nadar até a praia!



Akimoto pôs a mão na maçaneta, mas Hiraga segurou-o pela camisa e puxou-o de volta.



— Não!



Akimoto gritou com ele, desvencilhou-se, chocou-se com a porta. Não havia espaço nem para lutar.



— Você não é mais um dos nossos! Foi infectado pelos gai-jin! Deixe-me ir! É melhor morrer civilizado do que viver assim!



Subitamente, Hiraga ficou paralisado. O tempo parou. Pela primeira vez, compreendia a enormidade em que lançara os dois: o mundo exterior, o mundo bárbaro, longe de tudo o que era civilizado, deixando para trás tudo o que valia a pena, sonno-joi, Choshu, shishi, família, sem ter ainda esposa e filhos... ah, minha brava e maravilhosa Sumomo, como sinto sua falta, tornaria minha partida mais fácil, mas agora...



Seu corpo começou a tremer, o coração batendo forte, a respiração sufocada, cada parte de seu ser clamando para que fugisse daquele inferno, que representava tudo o que detestava. Se Londres também era assim, qualquer coisa seria melhor, absolutamente qualquer coisa. Ele empurrou Akimoto para o lado, avançou para a porta. Mas parou.



— Não — balbuciou ele. — Suportarei isto! Tenho de suportar! Suportarei por sonno-joi. Devemos fazer isso por sonno-joi, primo. Mas não importa o que venha a acontecer, morreremos como samurais, faremos nossos poemas de morte, e os faremos agora, neste momento, depois nada mais importará nesta vida...







No cais, o contramestre gritou:



— Última chamada para o Belle! Todos a bordo!



— Boa sorte, Edward, e um retorno seguro — disse Angelique, ainda dominada pela melancolia, mas com um pequeno sorriso que o deixou radiante. — Tome cuidado!



Depois de deixar Sir William, ela esgotara as lágrimas na privacidade de sua suíte... tanto choro nestes dias, pensara, não sei de onde saem tantas lágrimas, mas depois que passa a angústia, a cabeça desanuvia, ressurge o pensamento lúcido. Outra vez sob controle, ela descera e tivera nova reunião com Gornt, em particular. E disseram tudo o que ainda precisava ser dito. A força, confiança e amor que ele irradiava haviam dissipado os pensamentos ruins.



Edward é bom para mim, refletiu ela agora, contemplando-o... não que algum dia possa substituir meu Malcolm, pois é diferente.



— Você está bem agora? — indagou ele.



— Estou, sim, obrigada, meu caro. Volte depressa. Ele beijou a mão estendida de Angelique.



— Cuide-se, madame.



A exultação fazia com que ele parecesse ainda mais infantil.



— Não se esqueça. — Angelique pedira-lhe que dissesse a Tess que esperava que pudessem um dia se encontrar como amigas. — É importante.



— Sei disso, não esquecerei, e voltarei antes do que imagina. — Para os que se encontravam nas proximidades, Gornt acrescentou, em voz mais alta: — Providenciarei para que toda a sua lista de compras seja atendida. Não se preocupe.



Uma pequena pressão final na mão de Angelique e ele saltou para o convés escorregadio, despreocupado, o último a embarcar. O contramestre tocou o apito, empurrou a alavanca para toda velocidade à popa e recuou pelas ondas crispadas. Gornt acenou e depois, sem querer ser indiscreto, entrou na cabine.



— Uma linda jovem — murmurou Hoag, pensativo.



— Tem toda razão, senhor, uma Belle para acabar com todas as Belles. Os dois ficaram observando o cais se afastar.



— Já esteve na índia alguma vez, Edward?



— Não, nunca. E você já esteve em Paris?



— Não, nunca. Mas a índia é o melhor lugar do mundo, a melhor vida no mundo para os ingleses.



Em sua imaginação, Hoag podia se ver chegando à casa da família, por trás de muros altos, tudo castanho e poeirento por fora, mas fresco e verde lá dentro, o som do chafariz se misturando com as risadas na casa principal e nos alojamentos dos criados, a cordialidade e serenidade que todos demonstravam, por causa da convicção total no nascimento, morte e renascimento, numa sucessão interminável, até que, pela misericórdia do infinito, alcançavam o nirvana, o lugar da paz celestial. Arjumand estará lá, pensou ele, e espero poder encontrar meu caminho para o nirvana também.



Seus olhos focalizaram o cais, Angelique e os outros, todas as pessoas que provavelmente nunca mais tornaria a ver. Angelique acenou agora pela última vez, depois se aproximou de Maureen Ross, que esperava sob o lampião. Espero que se tornem amigas, pensou Hoag, especulando sobre as duas. Mais um momento e elas e o cais tornaram-se parte da noite. Angelique está certa em se submeter a Tess, refletiu ele, embora não tivesse mesmo qualquer opção. Distraído, seus dedos se certificaram de que a declaração estava mesmo guardada no bolso.



Muito triste o que aconteceu com Malcolm, trágico. Pobre Malcolm, trabalhando com a maior diligência por toda a sua vida, por algo que nunca teria, algo que nunca seria. Malcolm Struan, o tai-pan que nunca foi... toda a sua vida como um homem ofuscado pela neve, no meio de uma nevasca, procurando por uma barraca branca que nunca existiu.



— Muito triste o que aconteceu com Malcolm, não acha?



Mas Gornt não se encontrava mais ao seu lado. Hoag olhou ao redor e viu que ele saíra para o convés, postara-se de costas para Iocoama e contemplava o Belle, à frente, sem chapéu, o vento agitando seus cabelos.



Por que o sorriso e o que ficou para trás?, especulou Hoag. Tão duro, mas ao mesmo tempo... Havia algo de estranho naquele jovem. Ele é um rei em ascensão ou um homem fadado ao regicídio?







A maioria das pessoas no cais já se afastara. Angelique permanecia ao lado de Maureen, perto do lampião, observando o Belle e o cúter desaparecendo. Logo ficaram sozinhas, a não ser por Chen e Vargas, conversando em voz baixa, à espera para descarregar o cúter, caso fosse necessário, e para escoltar as duas mulheres, embora ninguém tivesse lhes pedido.



— Maureen... — Angelique fitou-a. Seu sorriso adorável se evaporou, ao notar como sua nova amiga parecia infeliz. — Qual é o problema?



— Não é nada. Isto é... ora, não envolve você. Acontece que não vi Jamie durante o dia inteiro, ele esteve ocupado, e eu... tinha uma coisa importante...



As palavras definharam.



— Esperarei com você, se quiser. Ainda melhor, Maureen, por que não vem comigo? Podemos esperar na minha suíte, e observar pela janela. Avistaremos o cúter com bastante antecedência para vir recebê-lo aqui.



— Acho que... acho que é melhor esperar aqui.



Angelique pegou-a pelo braço, a mão firme.



— O que foi? Qual é o problema? Posso ajudar?



— Não... acho que não, minha cara Angelique. É que... apenas... — Maureen hesitou de novo, e depois gaguejou: — Oh, Deus, eu não queria preocupá-la com isso, mas... a amante de Jamie me procurou esta tarde.



— Da Yoshiwara?



— Isso mesmo. Ela se ajoelhou à minha frente, fez uma reverência e disse que eu não me preocupasse, pois cuidara dele muito bem e queria perguntar se, no futuro, deveria apresentar sua conta a mim todo mês ou anualmente.



Angelique ficou boquiaberta.



— Ela disse isso?



— Disse. — Maureen parecia esverdeada à luz do lampião e continuou, sempre gaguejando: — Também disse que se houvesse alguma coisa que eu quisesse saber sobre... sobre “Jami”, como o chamou, sobre seus hábitos na cama, suas po... posições e assim por diante, já que eu era virgem, e assim não poderia saber dessas coisas, teria o maior prazer em me esclarecer em detalhes, pois era uma profissional de segunda classe e prometeu me dar um livro de ilustrações, chamado “livro de travesseiro”, em que indicaria as... as especialidades dele, mas que eu não me preocupasse, porque Jami era experiente e seu... seu, ela chamou monge de um olho só, estava em perfeita ordem. Pronto, agora você já sabe de tudo!



Angelique estava espantada.



— MonDieu, minha pobre amiga, que coisa horrível! Mas... mas ela também fala inglês?



— Não, uma mistura quase incoerente de jargão e pidgin, e também algumas palavras de Jamie, mas compreendi muito bem o sentido. Parece que ela... ela é sua amásia há um ano ou mais. Era pequena, nem de longe bonita, não devia ter muito mais que um metro e meio, e eu disse... não sabia o que dizer, por isso comentei seu tamanho, como era pequena, e ela... ela riu e disse: “Vela muito grande, Jami tai-tai, entra mesma maneira, hem? Você mulher de sorte.”



— Oh, mon Dieu!



— O que vou fazer?



Angelique descobriu que sua cabeça fervilhava.



— Você poderia... não, isso não adiantaria...



— Talvez eu pudesse... não, não posso. É demais...



— E se você...



Angelique sacudiu a cabeça. Desamparada, ela olhou para a outra, nesse momento Maureen a fitou, cada uma vendo a si mesma na outra, o mesmo choque, repugnância, desprezo, a fúria estampada claramente nos dois rostos. Por um instante, ambas ficaram imóveis e depois Angelique soltou uma risadinha, no segundo seguinte Maureen fez a mesma coisa, e logo as duas desataram em gargalhadas.



Chen e Vargas olharam, o som das risadas se misturando com o barulho das ondas, que se desmanchavam na praia e batiam contra os pilares do cais. Angelique removeu as lágrimas, as primeiras lágrimas de um riso bom e saudável que derramava em muito tempo.



— Seu monge de um olho só...



E outra vez as duas soltaram risadas convulsivas, estridentes, até que suas barrigas doeram, e tiveram de se apoiar uma na outra.



Tão subitamente quanto surgira, o acesso de riso cessou. Mas persistiu uma certa aflição.



— É engraçado, Maureen, mas ao mesmo tempo não tem nada de engraçado.



— Tem razão, não é nada engraçado. Sinto... quero voltar para casa agora. Pensei que poderia suportar a Yoshiwara... Jamie não é diferente dos outros homens... mas não posso, sei disso agora. Não posso suportar esta vida em que a Yoshiwara existe... existe e sempre existirá, quer eu goste ou não. Dentro de um ou dois anos, Angelique, virão as crianças e depois de uns poucos anos ele achará que somos velhas, quem quer que ele seja... e seremos mesmo velhas, com os cabelos grisalhos, os dentes caindo, e quem quer que ele seja, vai tratar de se desguiar. O destino de uma mulher não é dos mais felizes. Eu gostaria de estar a bordo do Atlanta Belle neste momento, voltando para casa, não aqui, não aqui. Vou embora de qualquer maneira, assim que eu puder. Já decidi.



— Pense bem a respeito. Não diga nada a ele esta noite.



— É melhor dizer logo esta noite. É isso... é melhor assim.



Angelique hesitou.



— Esperarei até avistarmos o cúter e depois irei embora.



— Obrigada. Lamentarei deixá-la, agora que nos conhecemos melhor. Nunca tive uma amiga de verdade.



Maureen passou o braço pelo dela e tornou a olhar para o Atlanta Belle.



— Ai, ai... — sussurrou Chen, irritado, no dialeto das quatro aldeias, que ele e Vargas falavam fluentemente. — Por que aquelas duas prostitutas não podem ser sensatas e esperar dentro de casa? Assim, não teríamos de esperar no frio também.



— Jami não vai ficar nada satisfeito se ouvir você chamá-la assim.



— Por sorte, ele não fala este dialeto, nem mesmo cantonês, e de qualquer maneira eu não a chamaria de prostituta na frente dele, ou de qualquer outro demônio estrangeiro... embora seja assim que chamamos todas as mulheres deles, como você sabe muito bem... nem usaria palavras tão chulas perto deles. Usaria “Flor da Manhã” ou um de mil outros nomes, que ambos sabemos que significa “prostituta”, mas os demônios estrangeiros pensam que significa apenas “Flor da Manhã”.



Chen riu, agasalhado pelo comprido casaco acolchoado. Levantou os olhos para o céu, quando a lua surgiu por um instante no meio das nuvens.



— Aquela Flor da Manhã pensa que será a tai-tai de Jami. — Outra risada.



— Ela nunca será.



— Não, não depois de hoje — murmurou Vargas, sombrio. — Ela é do tamanho certo para ele, é tempo de Jami casar, e seria ótimo ter crianças por aqui.



Vargas sentia saudade dos próprios filhos, seis, que deixara com as duas esposas em Macau, até que tivesse condições de possuir sua própria casa aqui.



— O que acha de miss tai-tai e daquele Xangai Gornt? Ele vai conseguir aumentar o dinheiro dela?



— Se ele conseguir, será em seu próprio benefício, não dela. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa: o que há naqueles papéis?



— Que papéis?



— Os que Lun viu quando tai-pan Willum estava cochilando ao lado do fogo. Os papéis de Nariz Comprido Pontudo. Dew neh loh moh que Lun não saiba ler francês. Tai-pan Willum levou o maior choque, contou Lun.



— O que Nariz Comprido mandou para Willum da sepultura?



Chen deu de ombro



— Encrenca para miss tai-tai. Talvez fosse sobre Escuro da Lua, hem?



— Isso é apenas um rumor.



Chen não disse nada, mantendo o segredo, como Chen da Casa Nobre lhe ordenara, depois da morte de Malcolm.



— Não importa o que venha a acontecer, Tess tai-tai vai triturar em poeira miss tai-tai e demônio estrangeiro de Xangai.



— É mesmo? O que você soube?



Chen revirou os olhos.



— Tess tai-tai é tai-pan agora, é isso o que diz Chen da Casa Nobre... ele nos informou pela última correspondência e advertiu que tivéssemos cuidado. Já ouviu falar de uma imperatriz cedendo o seu poder, depois de conquistá-lo? Ou qualquer outra mulher, diga-se de passagem? Nunca, em todos os nossos quinhentos séculos de história. Ela é tai-pan agora, segundo Chen da Casa Nobre, e ele deve saber dessas coisas.



— Pensei que Xangai Albert seria o tai-pan.



— Nunca. Ela vai triturá-lo em poeira também... Velho Demônio de Olhos Verdes forçou a entrada dele e do irmão na Casa Nobre. O rumor é de que Tess tai-tai odeia os dois, porque são bastardos secretos daquela filha do demônio estrangeiro missionário... aquela dos muitos amantes, com o próprio Demônio de Olhos Verdes.



— A esposa do mestre do porto Glessing? Mary Sinclair? Nunca!



— Pode ser verdade. Ela fez Glessing de uma perna só usar o chapéu verde uma dúzia de vezes.



— Transformou-o num corno? Isso é outra lenda.



Vargas tratou de resguardar a reputação da mulher, como todos os seus ex-amantes. Agora ela estava na casa dos quarenta anos, gasta, mas ainda tão faminta quanto antes, refletiu ele, o oposto de Tess Struan, que abomina a fornicação, e empurrou o marido Culum à bebida e outras mulheres.



— Tess tai-tai deveria ter casado com o tai-pan... e não com seu filho Culum. Ele poderia tê-la lubrificado de forma gloriosa, no fundo era disso que ela carecia, e ainda restaria mais do que o suficiente para segunda esposa May-may e terceira esposa Yin Hsi.



— É verdade. Neste caso, estaríamos fortes, com muito mais filhos para continuar, e não fracos, fugindo do demônio de um olho só Brock. — Uma pausa, e Chen acrescentou, ominoso: — Chen da Casa Nobre está preocupado.



— Muito triste que filho número um Malcolm tenha morrido do jeito que morreu.



— Os deuses tinham saído naquele dia — comentou Chen, do alto de sua sabedoria. — Escute, você que se curva ao deus dos demõnios estrangeiros, ele lhe disse alguma vez por que os deuses passam mais tempo ausentes do que velando por nossos assuntos?



— Deuses são deuses, só falam entre si... olhe, o Belle está partindo...







Maureen disse:



— O Atlanta Belle está a caminho, Angelique.



Boa viagem, pensou Angelique, contraindo os olhos contra o vento suave, o navio apenas uma forma indistinta.



— E lá está o cúter.



— Onde? Puxa, como os seus olhos são aguçados! Mal consigo ver. — Angelique deu um aperto cordial no braço de Maureen. — Tenho certeza que você e Jamie vão...



Ela viu a cor se esvair do rosto da outra e acrescentou:



— Não se preocupe, Maureen. Tudo vai acabar dando certo. Tenho certeza.



— Acho que não posso encará-lo agora — murmurou Maureen.



— Neste caso... é melhor ir embora. Direi que você estava com dor de cabeça e o verá amanhã. Assim, terá tempo para pensar. Será melhor deixar o encontro para amanhã.



— Esta noite, amanhã, não faz diferença, já tomei minha decisão — respondeu Maureen.



As duas ficaram observando as luzes do cúter, que eram cada vez mais visíveis. Não demorou muito para que pudessem divisar o vulto alto de Jamie na cabine iluminada. Ele estava sozinho.



— Boa noite, Maureen — disse Angelique. — Eu a verei amanhã.



— Não, por favor, fique. Não serei capaz de fazer isso sozinha. Por favor, fique.



O cúter se encontrava agora a apenas cinquenta metros do cais. Elas viram Jamie se inclinar pela janela da cabine e acenar. Maureen não respondeu à saudação. Por trás delas, os lampiões estavam acesos ao longo do passeio, nas casas e armazéns intactos. Homens cantavam em algum lugar. Vervene tocava flauta na legação francesa. Os olhos de Maureen fixavam-se no homem que se aproximava do cais. Ele tornou a acenar, saiu para o convés.



— Maureen! — gritou Jamie, feliz por tornar a vê-la.



Angelique virou o rosto, viu os olhos de Maureen se abrandarem e compreendeu que fora esquecida. E com toda razão, pensou ela, sorrindo para si mesma. Maureen vai chorar, ter um acesso de raiva, jurar que partirá, mas continuará aqui. Fará com que ele sofra, mas acabará perdoando-o. Nunca esquecerá, mas ficará — e ficará porque o ama... ah, como as mulheres são tolas!



Em silêncio, despercebida, ela se afastou, contente por estar sozinha.



A noite era agradável. Na baía, os sinos dos navios assinalaram a hora. Lá longe, além do promontório, seu emissário seguia no Atlanta Belle, uma viagem de conquista, uma viagem sem retorno para ambos. E para a inimiga, a mulher de Hong Kong.



Edward vai pressionar aquela mulher horrível e viveremos felizes para sempre, passaremos mais de dois meses em Paris a cada dois anos, o verão na Provença, e iniciarei uma dinastia... com cinco mil guinéus só meus, sou uma herdeira, e cada sou que gastar me lembrará aquela mulher.



Edward roi muito tolo ao pensar que algum dia eu poderia me tornar amiga dela ou haveria de querer isso.



Aquela mulher é vil. Nunca a perdoarei pelas coisas que fez e escreveu. Ilegítimo, hem? Jamais esquecerei isso, e nós seremos vingados, meu Malcolm e eu, por toda a angústia que ela nos causou, a ele e a mim. Vamos nos vingar daquela megera.



Gosto dessa palavra, disse Angelique a si mesma, sorrindo. E este é um dos meus novos segredos. Percebi o que ela era desde o primeiro momento em que a conheci e durante as poucas vezes em que nos encontramos, nas ocasiões em que jantamos juntas, a megera mal falando comigo, sempre me desaprovando, por mais que eu me esforçasse. Ela é mesmo uma velha megera. Embora tenha apenas trinta e sete anos. Mas é e sempre será a megera Struan para mim.



Angelique tinha dezoito anos, seis meses e uns poucos dias. Entrou no saguão do prédio da Struan, sob o leão vermelho da Escócia e o dragão verde da China entrelaçados, subiu a enorme escada, e foi para sua suíte. Trancou a porta e, depois, na maior felicidade, foi para a cama... e mergulhou num sono tranquilo.





* * *





Sete dias depois, a seu pedido, Yoshi reuniu-se com Sir William e os outros ministros em Kanagawa e tratou de tranquilizá-los, contente por Anjo ter caído outra vez em sua armadilha, usando um porrete grande que nem era um porrete... embora também se sentisse Atônito pelo fato de os gai-jin não terem ido embora, escapando da devastação. Seu bálsamo foi prometer uma reunião com o xógum, assim que este voltasse.



E quando seria isso?, perguntou Sir William. Ao que Yoshi respondeu: Providenciarei esse encontro o mais depressa possível, passando por cima do tairo Anjo, se for necessário, ele está muito doente, o pobre coitado, embora ainda seja o tairo. Enquanto isso, posso confiar que as informações que solicitei para tornar possíveis os nossos futuros acordos estarão prontas em breve, e que minhas sugestões serão levadas em consideração?



Imediatamente, a fragata Pearl foi despachada para Kagoshima, com uma exigência formal para que Sanjiro pedisse desculpas, pagasse reparações e entregasse ou identificasse os assassinos. Sanjiro descartou a exigência como impertinente. Na semana seguinte, com Sir William e seu pessoal a bordo da nave capitânia, a esquadra de batalha zarpou — H.M.S. Eurylus, com 35 canhões, Pearl, 21, Perseus, 21, Racehorse, 14, Havoc, Coquette e a chalupa de roda Argus, 9 — e logo ancorou na entrada da baía de Kagoshima, fora do alcance das baterias em terra, que eram bem protegidas, em quatorze fortes, nos lados da baía. O tempo começou a piorar.



À medida que as condições se deterioravam, Sanjiro vacilava. Durante quatro dias. Ao amanhecer do quinto dia, a chuva e a tempestade ainda mais intensas, três vapores construídos no exterior, mas pertencentes a Satsuma, ancorados ao largo da cidade, foram capturados e afundados. Ao meio-dia, todas as baterias de terra começaram a disparar e o almirante Ketterer deu ordens para iniciar a batalha. Em linha, com a nave capitânia à frente, a esquadra avançou por águas desconhecidas. Ao se aproximarem dos fortes, os navios despejaram sucessivas surriadas, o fogo de retaliação muito mais intenso do que se esperava.



Uma hora depois do início da batalha, o Eurylus desviou-se da linha. Involuntariamente, colocara-se entre um forte e uma área de alvo em que os artilheiros haviam se exercitado com extrema precisão e uma bala de canhão arrancou as cabeças de seu capitão e imediato, ambos na ponte de comando, ao lado de Ketterer e Sir William, e uma granada explodiu no convés, matando mais sete marujos e ferindo um oficial. A Pearl assumiu seu lugar na vanguarda. Quase ao pôr-do-sol, o Perseus encalhou sob os canhões de um forte, mas a Pearl conseguiu retirá-lo de lá, sem maiores perdas.



O combate se prolongou até o pôr-do-sol. Vários fortes haviam sido avariados, com muitos canhões destruídos, alguns paióis explodidos e foguetes disparados contra Kagoshima. Nenhum navio fora perdido e as únicas mortes até aquele momento haviam sido as dos homens a bordo da nave capitânia. Naquela noite, Kagoshima ardeu, como acontecera com Iocoama. A tempestade aumentou. Ao amanhecer, sem que o tempo ruim mudasse, os mortos foram sepultados no mar e ordenado o reinício da batalha. O Eurylus tornou a assumir a vanguarda. Naquela noite, a esquadra tornou a ancorar fora do alcance das baterias em terra, todos os navios intactos, o moral alto, com muita munição de reserva. Kagoshima fora arrasada, a maioria das baterias ficara danificada. Ao amanhecer, com um vento cada vez mais forte e chuva intensa, para irritação de muitos a bordo, e apesar dos protestos de Sir William, Ketterer ordenou que a esquadra retornasse a Iocoama. Embora fora de alcance, uns poucos canhões em terra ainda dispararam em desafio, na esteira da esquadra.



Ketterer proclamou vitória, a cidade fora incendiada, Sanjiro humilhado e, o mais importante de tudo, a esquadra estava incólume... e o tempo tornara sua decisão necessária, alegou ele.



Em Quioto, no momento em que soube que Kagoshima fora destruída — com Sanjiro supostamente morto —, Ogama de Choshu desfechou um ataque de surpresa à noite, com o codinome de Céu Escarlate, a fim de recuperar o controle total dos portões, atraído a outra armadilha preparada por Yoshi. No mesmo instante, Yodo de Tosa e todos os outros daimios em cima da cerca se aliaram ao xogunato contra Ogama — melhor um xogunato fraco guardando os portões do que um solitário e todo-poderoso Ogama. Com isso, o golpe foi rechaçado e Ogama obrigado a se retirar de Quioto, voltando a Shimonoseki e seus estreitos, para lamber os ferimentos, jurando vingança, em particular contra seu ex-aliado Yoshi. E se preparar para a guerra.



Para o Nipão, nada fora resolvido. Nem Sanjiro fora morto, o que não passava de mais desinformação espalhada pelos espiões de Yoshi. Mas isso não importava, porque Yoshi sabia que dera um gigantesco passo à frente, para a conquista do futuro: tinha agora a posse exclusiva dos portões, por mais tênue que fosse, O gama fora banido, Kagoshima destruída, o xógum Nobusada voltando a Iedo, sem a sua princesa, convencido de que Quioto era insegura para sua pessoa, os shishi quase exterminados, Anjo não mais neste mundo... e os gai-jin temporariamente contidos.



Mas cerca de um mês depois, emissários de Sanjiro saíram de Satsuma, foram procurar Sir William em Iocoama e pediram a paz. Sanjiro admitiu que estava errado, pagou a indenização, indicou os assassinos, jurou amizade aos gai-jin, culpou o decadente xogunato por todos os problemas e convidou os gai-jin a irem à sua reconstruída Kagoshima para comerciar, para discutir a modernização em todos os seus aspectos e também, entre outras coisas, “lorde Sanjiro quer que vocês saibam que Satsuma é uma antiga potência naval e deveria ter uma marinha como a dos gai-jin. Ele é rico e pode pagar em ouro, prata ou carvão, o que for necessário para obter os navios ing'erish e instrutores ing'erish...”



Consternado, Yoshi soube da oferta quase que no mesmo instante, por intermédio de seu espião Inejin, e ficou na maior irritação. Não planejara aquilo, jamais concebera tal possibilidade, que mudava o equilíbrio do poder.



Não importa, pensou ele, deprimido, naquele pôr-do-sol em particular. Ele estava em seu refúgio no alto da torre do castelo em Iedo, por cima da cidade, o céu riscado de vermelho, fogo aqui e ali, iluminando a chegada da noite. Não importa, os deuses nos pregam peças, se é que existem deuses. Mas com deuses ou sem deuses, não importa, é isso o que torna a vida o que é. Talvez eu vença, talvez não. Karma. Lembrarei o legado. E terei paciência. Isso é suficiente.



Não, nunca é suficiente!



Deliberadamente, ele abriu o compartimento e recordou Koiko, em toda a sua beleza, todos os tempos bons por que haviam passado, todo o riso. Isso o alegrou e acalmou e o pensamento de Koiko levou-o depois de algum tempo a Meikin e seu desejo de morte: “Um banho e roupas limpas. Por favor. “Ele sorriu, feliz por ter concedido... mas apenas por causa das boas maneiras de Meikin.



Nesta vida, pensou ele, soltando uma risada para o ar noturno, neste mundo de lágrimas, a gente precisa de um senso de humor, neh?


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