— O plano de Ori exige tempo e um vento sul — acrescentou Hiraga. — Mas concordo que é um plano melhor. Devemos esperar.



— Não! — exclamou Katsumata, ríspido, agressivo. — Com coragem, podemos fazer as duas coisas, com coragem! Podemos fazer! As duas coisas! Com a coragem dos shishi!



Hiraga ainda se sentia abalado com os soldados imprevistos, a mente continuava lerda. O fato de acreditar que matara o homem na terra de ninguém não incomodava nem um pouco; avistara-o no chão, imóvel, quando se encaminhara mais tarde para o poço, por onde descera, avançando às cegas pelo túnel estreito, a área enregelante.



— Impossível com apenas três — disse ele —, e amanhã de noite é cedo demais, qualquer que seja a nossa decisão. Se o plano for incendiar a colônia precisamos de três dias para espalhar os inflamáveis e os pavios. Aconselho contra a precipitação.



Ele se envolvera com uma manta, nu por baixo, à exceção de uma tanga enquanto as criadas secavam suas roupas, encharcadas da passagem pelo túnel. Fazia frio no pequeno bangalô, o vento zunia em torno das shojis e ele tinha de recorrer a toda a sua força de vontade para não estremecer abertamente. A concentração era difícil. Ainda não podia entender por que os soldados o procuravam. No momento em que chegara, Katsumata, irado, pedira a Raiko que enviasse espiões à colônia, a fim de descobrir o que acontecera, e os três poderem fazer planos para escapar da casa das Três Carpas, caso os soldados entrassem na Yoshiwara.



Agora, ele observava Katsumata servir-se de mais saquê. A ira contraíra suas feições já afiladas, fazendo com que parecesse ainda mais perigoso.



— Hiraga, minha opinião é a de que devemos atacar amanhã.



— E minha opinião é a de que só devemos entrar em ação quando tivermos uma possibilidade de êxito — respondeu Hiraga, com igual firmeza —, não antes... sempre foi esse o seu conselho... a menos que sejamos surpreendidos em campo aberto e nos defrontemos com a morte ou a captura. Takeda, qual é a sua opinião?



— Primeiro, eu gostaria de saber qual seria o plano. Você conhece o alvo como ninguém. O que faria?



Hiraga tomou seu chá quente, aconchegou-se ainda mais na manta, fingindo pensar, grato porque Takeda tendia para a sua posição.



— Se ainda tivesse meu acesso normal, Akimoto e eu poderíamos pôr todos os inflamáveis nos lugares em três dias... já tenho quatro preparados e escondidos em minha casa na aldeia — disse ele, embelezando a história. — Precisamos de uns seis, o ideal seriam oito: um em cada dos dois prédios de dois andares, são de madeira, quase queimaram no terremoto; um na casa do líder dos gai-jin; um na casa ao lado; três ou quatro na cidade dos bêbados; um em cada igreja. Na confusão, podemos escapar em nosso barco para Iedo.



— Quanto tempo isso levaria? — indagou Katsumata, ainda mais rude, fazendo os dois se remexerem, apreensivos. — Quantos dias, agora que você não tem o “acesso normal”?



— Posso lhe dizer isso assim que souber por que os soldados me procuram — respondeu Hiraga.



As espadas de Katsumata se encontravam ao seu lado, as espadas de Hiraga tainbém ao alcance fácil. Assim que chegara, ele pedira as espadas a Raiko, que as havia escondido... para o caso de serem obrigados a efetuar uma fuga súbita por cima dos muros e pelo arrozal por trás da Yoshiwara. Todos haviam concluído que seria perigoso demais se esconderem no túnel.



— O que acha, Takeda?



— Proponho esperarmos até sabermos qual é o problema. Depois, podemos combinar um plano final, sensei... mas se pudermos fazer como Hiraga diz, sou a favor.



— Devemos atacar amanhã. Esse é o nosso plano final.



Pensando melhor agora, Hiraga lançou uma isca.



— Se pudéssemos fazer as duas coisas, afundar o navio e incendiar a colônia, seria o melhor — declarou ele, com a intenção de apaziguar Katsumata. — Seria possível se planejássemos assim, mas precisaríamos de mais homens. Uns poucos homens a mais, sensei.



Hiraga usou o título de respeito, que evitara até então, para lisonjear Katsumata ainda mais, e depois acrescentou:



— Poderíamos trazer três homens de Iedo. Takeda iria até lá, ele não é conhecido, voltaria com os homens em três ou quatro dias. Sou um homem marcado e não posso me movimentar até o ataque. Você nos comandará contra o navio... e posso dizer aos outros onde colocar os inflamáveis, explicar onde ir, como fazer.



— É um bom plano, sensei — disse Takeda, querendo aproveitar a oportunidade de escapar de barco, pois nunca fora favorável a um ataque suicida. — Irei até Iedo, e encontrarei os homens.



— Seria apanhado — garantiu Katsumata, os lábios contraídos numa linha fina. — Nunca chegaria lá... e mesmo que chegasse, não conheceria os lugares, não saberia para onde ir. Seria capturado.



Sua raiva se achava a pique de irromper, pois nunca poderia atacar sozinho, e precisava daqueles dois, ou de outros homens, e nada seria realizado sem um consenso. Se alguém tivesse de ir, só poderia ser ele. Tal pensamento não o desagradou, pois não gostava daquele lugar, não havia muitos pontos de fuga, nem esconderijos suficientes... só se sentia seguro em Quioto, Osaca ou Iedo, e também em sua terra natal, Kagashima. Ah, seria ótimo rever os amigos e a família. Mas eles devem esperar, pensou Katsumata, endurecendo seu coração: “Sonno-joi deve ser levado adiante, Yoshi tem de ser humilhado...” Ao mesmo tempo, os três homens estenderam as mãos para as espadas. Sombras apareceram na porta de shoji.



— Katsumata-sama? — Era Raiko. — Tenho uma criada comigo.



— Por favor, entre.



Eles relaxaram. Raiko entrou, fez uma reverência, a criada também, e eles retribuíram.



— Conte tudo, Tsuki-chan — disse Raiko à criada.



— Fui à casa do shoya, Sires. Ele disse que Akimoto-sama foi levado à presença do líder dos gai-jin e depois para a prisão. Ainda não foi possível falar com ele, mas com sua primeira refeição, servida por um dos nossos, poderemos descobrir mais.



— Ótimo. Ele foi espancado e arrastado? — perguntou Katsumata.



— Não, lorde, nenhuma das duas coisas.



— Tem certeza que ele não foi espancado?



— O shoya também ficou surpreso, Sire. Akimoto-sama assoviava e cantava e ouviram-no dizer, como se fosse parte da canção, “alguém traiu alguém”.



Hiraga comentou, sombrio:



— Foi isso que ele disse na aldeia. O que mais o shoya contou?



— O shoya diz que sente muito, mas ainda não sabe por que os soldados o procuram. Os guardas continuam lá. Assim que ele souber o motivo, enviará o aviso.



— Obrigada, Tsuki-chan — disse Raiko, dispensando-a em seguida.



— Se ele não foi espancado — murmurou Katsumata —, não seria porque deu a informação que eles queriam, e o puseram na prisão para protegê-lo de você?



— Não — respondeu Hiraga. — Ele não diria coisa alguma.



A mente de Hiraga divagava: quem seria o traidor? Seus olhos fixaram-se em Raiko, que estava dizendo:



— Talvez eu possa descobrir. Um cliente gai-jin, que pode saber de tudo, chegará a qualquer momento. Se ele não souber, com certeza pode descobrir.







André entrou na sala com um sorriso forçado.



— Boa noite, Raiko-san — disse ele, repugnado com a própria fraqueza. Ela cumprimentou-o com frieza, ofereceu chá. Depois de tomado o chá, André lhe entregou a bolsinha com as moedas.



— Aqui outro pagamento, sinto muito não tudo, mas bastante no momento. Quer falar comigo?



— Esperar um pouco é polido, Furansu-san, entre amigos — disse ela, irritada. Avaliando o peso da bolsa, Raiko sentiu-se secretamente contente pela quantia e por ter acertado essa primeira e importante questão. Mesmo assim, acrescentou, para manter a pressão, tão importante com os clientes: — Um pouco é aceitável, entre amigos, mas muito não é correto, de jeito nenhum.



— Prometo mais em um ou dois dias.



— Lamento que seus pagamentos estejam tão atrasados.



André hesitou, mas acabou tirando o anel de sinete de ouro.



— Tome aqui.



— Não quero isso. Devo liberar Hinodeh, permitir que ela vá embora, depois você...



— Não! Por favor, não... escute, tenho informações...



André não se sentia bem, tanto por causa da recepção fria de Raiko, como por causa de uma enxaqueca adquirida durante a reunião com Angelique, Que se recusou a desaparecer. E por causa de Angelique. E porque Tess Struan não viera no Prancing Cloud, o que lhe facilitaria a negociação de um acordo e a obtenção da riqueza de que precisava. Não tinha o menor desejo de ir a Hong Kong para desafiá-la, ali, no covil da Casa Nobre.



Angelique ainda é a única chance que você tem, seu cérebro continuava a martelar. Seratard tornara a consultar Ketterer, Sir William e até mesmo Skye, sobre a validade do casamento. Todos estavam convencidos de que resistiria num tribunal.



— Mas em Hong Kong? Não tenho a mesma certeza — comentara Ketterer, desdenhoso.



Os outros haviam dito a mesma coisa, com palavras diferentes, em graus diferentes... exceto Sir William.



— Há muitos desonestos ali, os juizes não são iguais aos de Londres... são coloniais, há muita corrupção, muita fraude. Uns poucos taéis de prata... e não podemos esquecer que a Struan é a Casa Nobre...



Raiko inclinou-se para André.



— Informações, Furansu-san?



— Isso mesmo. — Era agora ou nunca com Raiko... e Hinodeh. —Especiais. Segredos sobre a reunião secreta de Yoshi com os gai-jin.



So ka! — exclamou Raiko, toda atenção. — Continue, Furansu-san. Ele contou o que acontecera, em detalhes, para o profundo interesse de Raiko, que prendeu a respiração várias vezes, não pôde conter diversas exclamações. E quando, abruptamente, André entrou na parte de Yoshi exigindo a entrega de Hiraga, ela empalideceu. A ansiedade de André se evaporou, ele ocultou sua satisfação, e fechou a armadilha.



— Então Hiraga amigo seu?



— Não, claro que não, ele é cliente de uma amiga — apressou-se em dizer Raiko, abanando-se.



Sua mente fervilhava com as informações maravilhosas a transmitir ao shoya e à Gyokoyama, informações que lhe valeriam um enorme crédito... e também para Meikin. Ah, Meikin, pensou ela, de passagem, por quanto tempo mais você permanecerá viva? Sinto muito, mas você, e só você, terá de pagar, de um jeito ou de outro, Yoshi investiu demais em sua falecida Koiko, mas já sabe disso. O que me leva ao meu problema atual e premente: como posso, em nome de todos os deuses e de Amida Buda, me livrar de Hiraga, Katsumata e os outros dois, que se tornaram perigosos demais, e... Foi nesse instante que ela ouviu André dizer, com uma voz diferente:



— Então Hiraga cliente mama-san amiga na Yoshiwara. Hiraga com amiga agora. Neh?



Raiko tornou a suspender a guarda.



— Não sei onde ele se encontra. Imagino que está na colônia, como sempre, lorde Yoshi o procura? Por quê?



— Porque Hiraga é shishi. — André usou a palavra pela primeira vez, consciente do que significava, pelas revelações de Yoshi. — Também por matar daimio. Utani. Outras mortes também.



Ela não permitiu que o medo transparecesse em seu rosto.



— Terrível. Shishi, hem? Já ouvi falar deles. Sobre essa informação, velho amigo, posso perguntar...



— Hiraga desaparecer, Raiko. Não na colônia. Muitos soldados procurar. Sumir, Raiko. Procurar todos lugares. Ele sumir.



— Desapareceu, hem? Soldados? Foi para onde?



— Veio para cá. Ao encontro de sua amiga. Onde está sua amiga?



— Ah, sinto muito, mas duvido que ele esteja aqui. — Raiko falou com sinceridade, sacudiu a cabeça, enfática. — Provavelmente ele foi avisado e fugiu para Kanagawa ou algum outro lugar. Sinto muito, velho amigo, mas essa não é uma boa pergunta para se fazer. Suas informações são muito interessantes. Tem mais?



André suspirou. Sabia que ela sabia. Agora, Raiko se encontrava à sua mercê. Por algum tempo.



— Samurai Yoshi vir amanhã para seu Hiraga — disse ele, sem sentir mais medo, pois bastaria uma palavra sua e as patrulhas, japonesas ou britânicas, arrasariam a casa das Três Carpas... depois que Hinodeh fosse levada para um lugar seguro. — Se gai-jin não ter Hiraga amanhã muito problema, Raiko. Para gai-jin, Yoshiwara, todos.



A maneira como ele falou provocou um calafrio em Raiko.



— Talvez gai-jin mandar vigilantes aqui, ali, todos lugares — acrescentou André, deixando a ameaça pairar no ar.



— É mesmo? — murmurou ela, uma gota de suor se formando em seu lábio superior, apavorada pelo que estava para acontecer, todo o resto esquecido.



— Ter idéia: se você... desculpar... se sua amiga esconder Hiraga poucos dias, lugar secreto, seguro. Depois, momento certo, entregar Hiraga líder gai-jin, talvez ganhar muito dinheiro, bastante para você, Hinodeh, neh? — Ele a observava e Raiko fazia um grande esforço para não tremer. — Ou sua gente entregar Hiraga a Yoshi. Hiraga ser shishi, valioso... melhor do que brincos.



André viu-a estremecer e arrematou:



Shishi valioso, neh?



Quando o coração parou de trovejar tanto, e podia confiar em sua voz, Raíko empenhou-se em exibir o melhor sorriso de que era capaz, pois era evidente que ele acreditava que ela estava a par da presença de Hiraga ali, e assim poderia, provocado, lançá-la e à casa das Três Carpas a um perigo letal.



— Perguntarei à minha amiga se o tem visto, ou sabe onde ele se encontra, depois poderemos conversar.



Ela assumiu um tom conciliador, tendo decidido que era melhor tirar todos shishi de sua vida, o mais depressa possível. De preferência, ainda naquela noite.



— Que maravilhosas informações você descobriu, muito valiosas, e darão algum lucro, sem dúvida! Ah, Furansu-san... — acrescentou ela, como se urna súbita lembrança, para desviá-lo ainda mais — ...soubemos que uma dama gai-jin chegou de Hong Kong esta noite. É a famosa mãe do tai-pan?



— Como? Não — murmurou André, distraído. — Ela prometida casamento mercador. Por quê?



— Seria um dos meus clientes, velho amigo?



— Não. Acho ele ir estalagem Suculenta Alegria, um ano, talvez mais. Jamie McFay.



— Jami-san? Jami-san da Struan?



Puxa, pensou Raiko, no mesmo instante, Nemi vai precisar saber disso, e depressa. Deve estar preparada para se apresentar a esta dama na casa grande da Struan, fazer uma reverência, dar as boas-vindas, assegurar que vem cuidando bem de Jami-san — é muito importante haver boas relações entre nee-go-san, a segunda dama, uma consorte, e oku-san, a esposa —, porque a esposa paga todas as contas, e depois convidá-la a uma visita de retribuição na casa de Jami nos jardins da Suculenta Alegria. Seria ótimo, pois assim todas nós poderíamos dar uma boa olhada nela.



— Furansu-sama, há um rumor de que os gai-jin puseram um japonês na prisão esta noite.



— O quê? Não saber nada respeito. Talvez descobrir mais tarde. Não importante. Escute, sobre Hinodeh...



Raiko interrompeu-o, jovial:



— Hinodeh me perguntou, antes, se você a honraria com sua visita esta noite. Ela ficará muito satisfeita por você ter vindo.



André sentiu uma pressão no peito. Agora que tinha Raiko sob seu controle, pediria a ela, não, mandaria que dissesse a Hinodeh para renunciar à condição da luz. Mas, de repente, ele teve medo de fazê-lo.



— O que é?



— Nada — murmurou André. — Eu ir Hinodeh.



Depois que ele saiu, Raiko tomou um pouco de conhaque para firmar os nervos, mastigou algumas folhas de chá fragrantes para eliminar o cheiro e depois, preocupada, procurou os três shishi, e relatou parte das informações de André, sobre Yoshi exigindo a entrega de Hiraga, e que seus homens chegariam no dia seguinte para assumir a custódia.



— Sinto muito, mas seria melhor se partissem esta noite, mais seguro para vocês — disse ela, a voz impregnada de medo. — Katsumata-sama, esse cliente jurou que vigilantes e soldados gai-jin devem aparecer aqui a qualquer momento, procurando por toda parte.



Os três ficaram em silêncio, ao tomarem conhecimento das negociações secretas de Yoshi com os gai-jin. Katsumata sentiu-se mais determinado do que nunca a criar problemas entre eles.



— Obrigado, Raiko-san, prestou-nos um grande serviço. Podemos partir ou podemos ficar, mas de qualquer forma você será bem recompensada.



— Acredito com toda sinceridade que seria melhor se fossem embora e...



A voz ríspida de Katsumata nao a deixou continuar:



— De qualquer maneira, você será bem recompensada. Enquanto isso, vamos conversar sobre o melhor modo de protegê-la.



Ela não queria se retirar, mas fez uma reverência, agradeceu e saiu para a noite. Ao se encontrar a uma distância segura, amaldiçoou-o e aos outros, também a André, ao mesmo tempo em que decidia quem seria a pessoa de confiança que levaria as informações de André a Meikin.



— Acendam as lanternas — ordenou Katsumata.



Todas haviam sido abaixadas, a maioria apagada, quando Raiko abrira e fechara a porta e o vento invadira a sala. Com a porta fechada outra vez, as poucas chamas restantes assentaram, a não ser por uma ou outra aragem isolada.



— Escute, Hiraga — disse ele, bem baixo, para que ninguém lá fora pudesse ouvir —, vou buscar mais homens e voltarei em três dias. Esconda-se aqui, é mais seguro do que ir comigo, use um novo disfarce, refugie-se no túnel. Se for esperto, estará seguro.



— Certo, sensei.



— Daqui a três dias arrasamos Iocoama, afundamos o navio, matamos tantos gai-jin quanto pudermos e escapamos. Trarei uniformes do Bakufu. Takeda, ajude Hiraga com os artefatos incendiários. Devem estar prontos quando eu voltar.



— É melhor eu acompanhá-lo, sensei — propôs Takeda. — Posso guardar suas costas, caso seja visto ou interceptado.



— Não. Fique com Hiraga. — Katsumata não queria ser estorvado e se sentia contrafeito demais dentro da cerca da Yoshiwara. — Partirei no momento em que as barreiras forem abertas.



— É o melhor plano — disse Hiraga. — Sonno-joi.



Ele sentia-se nauseado e inebriado ao mesmo tempo, consternado com a perspectiva dos homens de Yoshi chegando no dia seguinte, ou vigilantes, e de ser capturado — o que era inevitável, agora que Yoshi se empenhava pessoalmente nisso — sabendo também que o sensei tinha razão, mais uma vez: a colônia murada e a Yoshiwara cercada eram armadilhas.



Ao mesmo tempo, experimentava profundo alívio. Agora que seu fim se tornara inevitável, não havia motivo para não se lançar com todo o ânimo ao ataque.



Três dias constituem uma vida inteira. Com Katsumata ausente, quem sabe o que pode acontecer? De qualquer jeito, não serei capturado vivo.







— Por Deus, Jamie, olhe só! — exclamou Dmitri.



Jamie olhou para a porta, assim como os outros vinte convidados espalhados pela sala de recepção da legação russa. As conversas cessaram por um instante e logo recomeçaram, alvoroçadas. Angelique entrava no braço de Sir William. Um vestido preto simples, de mangas completas, que realçava a palidez, mas também o lustro da pele e o pescoço perfeito, a cintura pequena, as curvas dos seios, um traje condizente com o luto, mas não havia como duvidar da magia oculta. Os cabelos levantados. Sem jóias, exceto um colar fino de ouro e o anel de casamento — O anel de sinete de Malcolm, agora ajustado para ficar firme em seu dedo.



— Ela é de vinte e quatro quilates.



— Concordo — murmurou Jamie.



Depois, sentindo outra comoção, ele olhou ao redor. Do outro lado da sala, Maureen sorriu-lhe, cercada por homens, entre os quais Pallidar. Jamie retribuiu ao sorriso, gostando do que via, ainda atordoado pela chegada de Maureen, impressionado por sua coragem em fazer sozinha uma viagem tão formidável. O que vou fazer?



— Incrível a história de Hong Kong e o funeral de Malc, hem?



— É verdade, Dmitri. Eu teria apostado que Tess nunca faria isso.



Quais são as intenções dela?, perguntou-se, mais uma vez. E o que continha a carta para Angelique? Ainda não tivera a oportunidade de perguntar e a aparência dela não oferecia nenhuma indicação. Acarta que ele recebera fora esclarecedora:





Prezado Jamie:



O Sr. Gornt me relatou em detalhes como você se mostrou um grande amigo de meu filho. Agradeço do fundo do meu coração. Mas ainda assim não posso perdoá-lo por não haver cumprido meus desejos — política da companhia —, por não desviar meu filho de volta a seu dever e persuadi-lo a abandonar seu interesse por aquela mulher ou, no mínimo, enquadrá-la nas proporções devidas e despachá-lo para cá; não posso perdoá-lo por ajudar e apoiar meu filho em sua loucura, em particular depois que ressaltei sua menoridade e que ele podia ser tai-pan no nome, mas não exercia os poderes até a posse formal na função.



Soube também, pelo Sr. Gornt, que você tenciona abrir sua própria companhia. Desejo-lhe sorte e agradeço por seus muitos anos de bons serviços. Anexo uma carta de crédito contra Londres, no valor de cinco mil guinéus. Por favor, transmita meus cumprimentos à sua noiva. Gostei de conhecê-la. Tess Struan.





Ele sentiu-se radiante ao pensar no dinheiro. Tornava sua companhia possível, em pequena escala, é verdade, e proporcionava o tempo de que precisava, além de reforçar sua posição com o shoya, embora não imaginasse como aqueles empreendimentos poderiam prosperar sem a contribuição de Nakama/Hiraga. Tinha pena dele. E de Tess. No caso dela, podia compreender, e a perdoava, não por causa do dinheiro.



— O que é, Dmitri?



— Você tem toda razão em se sentir presunçoso. Sua Maureen é sensacional.



— Também acho.



— O que pretende fazer com Nemi?



O sorriso de Jamie desapareceu, o constrangimento voltou e ele virou as costas para a porta.



— Um problema terrível, Dmitri. Eu tinha marcado um encontro com ela para esta noite.



— Essa não! Na Struan?



— Não, graças a Deus. Em nosso... na casa dela.



— Foi muita sorte. Você vai?



— Claro. Por que não? Deus Todo-Poderoso, não sei... Quando Maureen chegou inesperadamente... não é que eu não goste dela, mas ainda me encontro em estado de choque.



— Pode ser, mas um bom choque... você tem sorte. Escute, somos velhos companheiros e posso falar com franqueza. Se você... se decidir parar com Nemi, suspender sua pensão, encerrar o negócio, qualquer coisa, posso pedir que me avise? Ela é bem atraente, uma boa diversão, e fala um pouco da nossa língua.



— Está certo, mas...



Os risos dos homens em torno de Maureen atraíram a atenção dos dois. Que depois se desviou para Angelique.



— Ela é espetacular, não é? — murmurou Jamie. — Estou me referindo a Angelique...







Angelique e Sir William esperavam que Zergeyev se juntasse a eles. O vestido e o penteado daquela noite haviam sido determinados com bastante antecedência... escolhidos expressamente para Tess e aquele sarau, que seria o primeiro campo de batalha. Embora a inimiga não tivesse vindo, Angelique resolvera não alterar seu plano, pois o efeito era bastante satisfatório. Considerara a possibilidade de usar o anel de jade imperial que Malcolm encomendara de Hong Kong para ela e que fora trazido pelo navio de correspondência uma semana depois de sua morte, provocando-lhe outro fluxo de lágrimas particulares. Se Tess estivesse ali, ela não hesitaria. Sem esse motivo, o anel era errado.



Na verdade, estou satisfeita por ela não ter vindo, disse Angelique a si mesma. Graças a Deus que Vargas me avisou. Preciso de mais tempo para me preparar para o combate... ah, tempo, estou ou não esperando uma criança de Malcolm?



— Boa noite, conde Zergeyev — disse ela, com um sorriso gentil. — Obrigada por ter me convidado.



— É sempre bem-vinda e já converteu a noite num sucesso. Boa noite, Sir William. Já conhecem a todos, exceto uma nova convidada.



Num súbito silêncio, todos observando, comparando, Zergeyev chamou Maureen do círculo de admiradores, entre os quais figurava Marlowe agora.



Miss Maureen Ross, de Edinburgh, a noiva de Jamie. Madame Angelique Struan.



No momento em que entrara, Angelique avistara Maureen, avaliara-a da cabeça atraente aos sapatos impecáveis, e decidira que a outra não era uma ameaça... notando Gornt também, de passagem, mas deixando-o para mais tarde.



— Seja bem-vinda ao posto avançado britânico mais distante no mundo, mademoiselle Ross — disse ela, jovial, especulando que idade a outra teria, pensando: É verdade, à noite, toda agasalhada, esta poderia ser facilmente confundida com aquela mulher, pois também é alta, o mesmo porte imponente, o olhar direto. — Jamie tem muita sorte.



— Obrigada.



No momento em que Angelique entrara na sala, Maureen também a avaliara, da cabeça deslumbrante aos pés pequenos, reconhecera sua beleza, simpatizara instintivamente, mas ao mesmo tempo decidira que se tratava de uma ameaça — seus olhos deslocaram-se para Jamie, deparando com sua admiração ostensiva, e os homens ao redor, não havia como se equivocar com os murmúrios gerais de apreciação — e se aprontara para a batalha.



— Sinto-me muito satisfeita em conhecê-la e lamentei muito ao saber de sua tragédia... todos lamentaram. — Com um sentimento genuíno, ela se inclinou, encostou o rosto no de Angelique. — Espero que nos tornemos amigas.



Um sorriso especial e Maureen arrematou:



— Por favor, vamos ser amigas. Precisarei de uma amiga aqui. Jamie disse que você tem sido uma boa amiga dele.



— Não há necessidade de “por favor”, Maureen... posso chamá-la de Maureen, e você me chamar de Angelique?



Ela também ofereceu um sorriso especial, reconhecendo e compreendendo a advertência apresentada com suavidade, sem necessidade de mostrar as garras, de que Jamie era propriedade pessoal, um homem com quem não deveria flertar.



— Seria ótimo ter uma amiga aqui. Poderíamos tomar um chá amanhã?



— Puxa, eu adoraria. Angelique... um lindo nome e um lindo vestido. Austero demais, mas também cinturado demais para o luto.



— E o seu também, essa cor combina muito bem com os seus cabelos. — Seda verde, dispendioso, mas inglês, não parisiense, e o feitio era antiquado. Não importa. Isso pode ser melhorado, se ela se tornar uma amiga íntima. — Jamie foi um grande amigo de meu marido, e também meu, quando precisei, desesperadamente. Tem muita sorte. E, agora, onde se encontra o seu belo noivo? Ah, lá está ele!



Todos observando, Angelique passou o braço pelo de Maureen. Todos ficaram radiantes com a entende cordiale. Ainda o centro das atenções, ela guiou Maureen até Jamie.



— Tome cuidado, Jamie, pois é fácil perceber que esta dama é muito preciosa... e há piratas demais em Iocoama.



Os homens ao redor riram, Angelique deixou-os, voltou para Sir William, cumprimentou Ketterer no caminho — um cumprimento e um sorriso especiais para ele, assim como para Marlowe, mais tarde — e também Settry Pallidar, esplendoroso e rivalizando com Zergeyev, que usava seu uniforme de cossaco.



— Ah, Sir William, como temos sorte! — murmurou ela.



— Por estarmos... — Zergeyev conteve-se a tempo. Quase dissera “Por estarmos vivos?” Em vez disso, pegou um copo de champanhe, de uma bandeja de prata levada por um criado de libré, e acrescentou: — Por estarmos na presença de duas damas tão adoráveis, somos afortunados! Saúde!



Todos beberam e continuaram a comparar. Zergeyev estava preocupado demais para seguir o exemplo, absorvido nas outras notícias terríveis que haviam chegado com o Prancing Cloud.



Um despacho urgente e cifrado de São Petersburgo — remetido três meses antes — fora-lhe entregue. Primeiro, relatava os problemas habituais com a Prússia, tropas se concentrando nas fronteiras ocidentais, seis exércitos enviados para lá; problemas esperados em breve com o império otomano e os muçulmanos ao sul, três exércitos enviados para lá; fome por toda parte, com intelectuais como Dostoievski e Tolstoi defendendo as mudanças e a liberalização. Segundo, recebera ordem para pressionar os japoneses a retirarem suas aldeias de pescadores das Kurilas e Sakhalin, sob a ameaça de “graves consequências”. E, terceiro, um grande transtorno para ele, pessoalmente: Foi designado governador-geral do Alasca russo. Na primavera, o navio de guerra Tsar Alexander chegará aí, com o seu substituto no Japão, e o levará e à sua comitiva para a nossa capital alasquiana, Sitka, onde fixará residência pelo menos por dois anos, para promover amizade.



— Por que tão soturno, meu amigo? — perguntou Sir William, em russo. Zergeyev viu que Angelique se encontrava cercada outra vez, por isso levou-o para um lado, e falou sobre seu novo posto. Mas não sobre “Amizade”. Era o codinome de um plano de Estado ultra-secreto para facilitar a emigração maciça e compulsória de vigorosas tribos siberianas para seus vastos territórios alasquianos-americanos, que se estendiam por centenas de quilômetros para o interior, pelo Canadá, e desciam pela costa para o sul, terminando não muito longe da fronteira americano-canadense. Eram povos vigorosos e resistentes, belicosos, que poderiam, ao longo de uma, duas ou três gerações, se expandir para o sul e para leste, pelas vastas pradarias e exóticas terras quentes da Califórnia, talvez até possuindo toda a América um dia. O plano fora proposto por um tio, vinte e cinco anos antes.



— Dois anos! Uma terrível sentença de prisão!



— Concordo. — Sir William também se sentia contrafeito com as vicissitudes de seu próprio Ministério do Exterior, a aptidão que demonstravam para removê-lo de repente, despachá-lo para postos distantes. — Alasca? Ufa! Não sei nada a respeito... já esteve lá alguma vez? No ano passado, o navio em que eu viajava fez escala em Vancouver, nossa colônia ali. É apenas um posto avançado, e não seguimos mais para o norte.



— Sitka não fica muito longe. Estive lá uma vez, quando era jovem. Agora, temos um povoado permanente, muitos mercadores, algumas centenas de habitações — disse Zergeyev, amargurado. — Peles, gelo, ausência da lei, índios, bêbados, nenhuma sociedade. O lugar é uma horrível terra desolada, descoberto por Bering e Chirikov há cento e tantos anos... a princípio, pensaram que era apenas parte de nossos territórios setentrionais, no outro lado de uma enseada de cerca de oitenta quilômetros, sem perceberem que se tratava de um estreito, a que depois deram o nome de Bering. Há sessenta e poucos anos, um dos meus tios-avôs ajudou a formar a Companhia de Peles Russo-Americana, nosso monopólio do comércio de peles, e designou um arrogante filho de uma prostituta... um primo chamado Baranof... para ser o diretor, e ele transferiu a capital para Sitka. Fica numa ilha perto da costa, desolada e miserável, e chamada... adivinhe... ilha Baranof! Infelizmente, minha família fez do Alasca um interesse especial. Daí a minha transferência para o novo posto. Matyeryeybitz! Os dois!



Sir William riu, e Angelique virou-se para eles.



— Posso partilhar o gracejo?



— Ahn... não foi... não foi muito engraçado, minha cara — disse ele, registrando a informação tão interessante para transmitir a Londres. — Apenas uma vulgaridade russa.



— Humor inglês, Angelique. — Zergeyev soltou uma risada. — E com esse pensamento feliz, é tempo de jantar.



Galante, ele fez uma reverência, adiantou-se e conduziu Maureen para a sala de jantar, Sir William e Angelique logo atrás, depois os outros. Prataria abundante na mesa comprida, criados de libré por trás de cada cadeira, outros para trazer vastas quantidades de carnes, borscht, pastelões, jarros de vodca gelada, champanhe, vinhos franceses e sorvetes. Músicos ciganos do navio russo, e mais tarde dançarinos cossacos, da comitiva de Zergeyev, como entretenimento.



O burburinho de conversas, e todos ainda comparando: pequena e alta, francesa contra uma das nossas, o delicioso sotaque francês, o tranquilo escocês. As duas sedutoras, Angelique muito mais, ambas aceitáveis, as duas casadouras, Maureen muito mais.


54





Sábado, 3 de janeiro:





Mister baixo escada, miss tai-tai.



Mister Gornt?



Ah Soh deu de ombros, parada na porta do boudoir de Angelique.



Kwailoh mister.



Com a mão, ela indicou alguém alto e depois fechou a porta, com a batida costumeira.



Angelique contemplou-se no espelho por um instante. O excitamento reprimido era toda a maquilagem de que precisava. Mais um momento para fechar seu diário e guardá-lo. Uma inspeção final e ela saiu. Vestido preto de seda, com muitas anáguas, os cabelos presos por uma impecável echarpe de chiffon, também preta. O anel de sinete do casamento. E desceu a escada, alheia aos criados, empenhados nas tarefas matutinas.



Entrou na sala do tai-pan. Gornt estava de pé junto da janela, olhando para a baía. Chen esperava, com uma expressão lúgubre.



— Bom dia, Edward.



Ele virou-se, sorriu.



— Bom dia, madame.



— Posso pedir café ou champanhe?



— Não, obrigado. Acabei de comer o desjejum. Só queria lhe falar sobre Hong Kong e sua lista de compras. Espero não estar incomodando.



— Claro que não. Chen, espere lá fora.



No momento em que ficaram a sós, ela disse, em voz baixa:



— Este escritório é agora de Albert e o tomo emprestado enquanto ele está na sala de contabilidade com Vargas. Portanto, não temos muito tempo... é difícil encontrar algum lugar para uma conversa particular. Vamos sentar aqui, Edward. — Angelique indicou a mesa ao lado da janela, as cortinas abertas. — Os transeuntes poderão nos ver, mas isso não é problema, porque você era amigo de Malcolm. Por favor, conte depressa o que aconteceu.



— Posso dizer primeiro que tem uma aparência maravilhosa?



— Você também. — A ansiedade de Angelique era ostensiva agora. — Como foi?



— Tudo correu bem, eu acho. Tess se manteve impassível, como uma jogadora de pôquer, por isso não posso ter certeza, Angelique. Em nosso primeiro encontro, eu lhe falei das informações sobre os Brocks, como havíamos combinado, dizendo várias vezes, de maneiras diferentes, que só a procurava por sua causa. Não o...



— Foi o primeiro do navio a vê-la?



— Fui, sim, tenho certeza, porque desembarquei no barco do piloto, antes que o Prancing Cloud atracasse, junto com o capitão Strongbow. Depois que falei a Tess sobre os Brocks, não houve muita reação. Ela escutou atentamente, fez algumas perguntas, e depois disse: Por favor, volte amanhã, com os documentos, logo depois do amanhecer. Use a porta lateral, na viela, que estará destrancada. Venha encoberto e tome cuidado, pois os Brocks têm espiões por toda parte. No dia seguinte...



— Espere! Falou com ela sobre a morte de Malcolm e sobre o nosso casamento?



— Não. Deixei essa parte para Strongbow. Começarei pelo início. Desembarcamos juntos, no barco do piloto, por sugestão minha, mantendo discrição a respeito, sem dizer nada a Hoag... ele é um boca frouxa. Tinha me oferecido para apoiar e ajudar Strongbow, por ter sido testemunha... o pobre sujeito estava apavorado, embora fosse seu dever contar a ela. Quando ele disse que Malcolm morrera, ela ficou branca. Recuperou o controle em poucos segundos, com uma rapidez espantosa, e depois perguntou a ele, a voz firme, como Malcolm morrera. Strongbow estava transtornado e gaguejou: “Trouxe o atestado de óbito, Sra. Struan, as atas do inquérito, e uma carta de Sir William. Foi de causas naturais e aconteceu a bordo do Prancing Cloud. Nós o encontramos morto pela manhã, depois da noite de seu casamento.”



Gornt fez uma pausa.



— Ela se levantou de um pulo e gritou, a voz estridente: “Casou meu filho com aquela mulher?” Strongbow quase morreu e contou toda a história, tão depressa quanto podia, sobre a Pearl, o duelo, eu salvando a vida de Jamie, matando Norbert, como encontrou Malcolm, como você ficou em estado de choque, tudo o que ele sabia. O suor escorria por todo o seu corpo, Angelique. Devo admitir que eu também suava... Depois do primeiro grito, Tess se manteve impassível, só com os olhos em fogo, como uma Medusa. E depois Strongbow lhe entregou algumas cartas, vi que uma era de Sir William, balbuciou que lamentava muito, mas era seu dever contar a ela, e se retirou, trôpego.



Tirando um lenço do bolso, Gornt enxugou a testa. Angelique sentia-se fraca, tonta com a força de sua inimiga... se Tess podia fazer Gornt suar assim, o que não seria capaz de fazer com ela?



— Ela simplesmente ficou imóvel por um momento, depois seus olhos se viraram para mim. É incrível como uma mulher pode parecer tão... tão alta. E dura. Dura num momento, suave no seguinte, mas nunca baixando a guarda. Tive de forçar meus pés a não recuarem e olhei ao redor, fingindo ter medo de que alguém pudesse ouvir, e me apressei em dizer que também lamentava muito, Malcolm era de fato meu amigo, que você também era minha amiga, e era por sua causa que eu levava as informações que destruiriam Tyler e Morgan Brock. No instante em que falei em destruir Tyler, a loucura a deixou, ou pelo menos o fogo assustado em seus olhos se extinguiu. Ela sentou, ainda sem desviar os olhos de mim, também sentei. Só depois de um longo momento é que Tess indagou: “Quê informações?” Eu disse que voltaria no dia seguinte, mas ela insistiu, com uma voz que parecia uma faca afiada: Que informações? Relatei apenas o essencial... Desculpe, Angelique, mas posso tomar um drinque? Não champanhe, mas uísque ou bourbon, se tiver.



Ela foi até o aparador, serviu uísque para Gornt, água para si mesma, enquanto ele continuava:



— No dia seguinte, levei todos os documentos e deixei com Tess. Ela...



— Espere. Ela se mostrava igual ao dia anterior?



— Sim e não. Obrigado, saúde, e uma vida longa e feliz. — Gornt tomou um gole grande, engasgou, quando o uísque prendeu na garganta. — Obrigado. Quando acabei de falar tudo, ela me fitou, e pensei que havia fracassado. É uma mulher terrível, eu não gostaria de ser seu inimigo.



— Mas eu sou? Mon Dieu, Edward, diga-me a verdade!



— É, sim, mas isso não importa, no momento. Deixe-me continuar. Eu...



— Entregou minha carta a ela?



— Ah, sim, esqueci de mencionar isso. Entreguei a carta no primeiro dia, antes de sair, como havíamos combinado, ressaltando de novo que era tudo idéia sua, que o meu acordo era com Malcolm, o tai-pan, e ele estava morto, eu considerara o negócio encerrado, pretendia voltar a Xangai, a fim de esperar por um novo tai-pan. Mas você me procurara, suplicara para que eu a procurasse, alegando que devia isso a meu amigo Malcolm, que ele mencionara minha proposta a você em segredo... sem dar os detalhes... e você tinha certeza de que seria o desejo dele que as informações fossem transmitidas à sua mãe, o mais depressa possível, e que isso deveria ser feito com urgência. A princípio, eu não queria, mas você insistira, e acabara me persuadindo. Por isso, ali estava eu, por sua causa, e você também me pedira para trazer uma carta. E entreguei-a.



— Ela leu na sua frente?



— Não. Isso foi no primeiro dia. No dia seguinte, em nosso encontro ao amanhecer, depois que lhe passei parte das informações, ela fez muitas perguntas, inteligentes, e me disse para voltar depois do pôr-do-sol, outra vez pela porta lateral. Assim fiz. Ela foi logo me dizendo que o dossiê era incompleto. Eu lhe disse que sim, sem dúvida, não havia sentido em mostrar tudo, enquanto eu não soubesse até que ponto ela estava empenhada... se tinha mesmo interesse, como Malcolm, em arruinar os Brocks? Ela respondeu que sim, e perguntou por que eu estava atrás deles, qual era o meu interesse.



Gornt fez outra pausa.



— E eu contei, sem rodeios. Toda a história de Morgan, a verdade. Era Morgan quem eu queria arruinar, se o pai caísse também, tudo bem por mim. Não mencionei que isso a tornava minha tia, nem uma única vez, em qualquer dos encontros, e ela também não disse nada a respeito. Nunca. Também não mencionou a carta que você mandou. Nem uma única vez. Ela se limitou a fazer perguntas. Depois das revelações sobre Morgan, esperava que ela dissesse alguma coisa, como lamentava a situação, ou que era típico de Morgan... afinal, ele é seu irmão. Mas nada. Ela não disse nenhuma palavra, pediu detalhes sobre o meu acordo com Malcolm, e lhe entreguei o contrato. — Ele terminou o drinque. — Seu contrato.



— Seu contrato — disse Angelique, nervosa. — Deve odiá-la muito, Edward.



— Está enganada, não a odeio. Acho que compreendia que ela vivia com os nervos à flor da pele. A morte de Malcolm a abalou, por mais que tentasse esconder e se colocasse acima. Tenho certeza. Malcolm era o futuro da Casa Nobre, agora ela enfrenta o caos... seu único raio de esperança era eu e meu plano, que mal chega a ser legal, diga-se de passagem, até mesmo em Hong Kong, onde as leis são flexíveis como em nenhum outro lugar. Posso?



Gornt levantou seu copo.



— Claro — murmurou Angelique, especulando sobre ele.



— Ela leu o contrato com todo cuidado, depois se levantou, contemplou a enseada de Hong Kong lá embaixo, parecendo frágil por um lado, mas feita de aço por outro. “Quando terei o resto dos documentos?”, perguntou ela. Eu disse que agora, se concordasse com o acordo. “Negócio fechado”, declarou ela. Tornou a sentar, assinou o contrato, aplicou o sinete, na presença da secretária, como testemunha, e depois mandou que o guardasse no cofre, e se retirasse. Ela...



— Ela nunca mencionou minha assinatura como testemunha.



— Não, embora eu tenha certeza de que foi a primeira coisa que notou, como você previu. Continuando... fiquei com ela por umas quatro horas, orientando-a pelo labirinto de documentos e cópias de documentos, não que Tess precisasse de muita orientação. Depois, ela juntou tudo numa pilha impecável, e me interrogou sobre o atentado na Tokaidô, Malcolm, você, McFay, Tyrer, Sir William, Norbert, o que Morgan e Tyler haviam me dito em Xangai, minhas opiniões a seu respeito, sobre Malcolm, ele se empenhou em conquistá-la, ou foi o contrário, não fazendo qualquer comentário, perguntas e mais perguntas... esquivando-se às minhas... sua mente tão aguçada quanto a espada de um samurai. Mas juro por Deus, Angelique, que cada vez que aflorava o nome de Morgan ou do Velho Brock, cada vez que eu mencionava outra manobra que os documentos permitiam, ou sugeria outra farpa para abalar o império deles, Tess quase salivava.



Angelique estremeceu.



— Acha que há alguma possibilidade de paz comigo?



— Creio que sim, mas deixe-me terminar, em seqüência. Ela perguntou de novo se o acordo que Malcolm assinara ainda era uma recompensa aceitável e respondi que sim. E ela disse: “Amanhã o substituirei por um documento mais legal, assinado e sacramentado, como o outro. Agora, vamos à última questão Sr. Gornt. O que devo dar “àquela mulher?” Eu tinha dito a ela, Angelique, que você não me pedira nada, só queria que os desejos e esperanças de seu marido fossem apresentados a ela, e que, se fossem úteis... afirmei a ela que você nada sabia do conteúdo... essa seria toda a sua recompensa.



— Usou essa palavra, “marido”? E ela deixou passar?



— Deixou, mas disse logo em seguida: “Fui informada de que esse casamento, independente do que ela alega, ou do que Sir William diz, não é válido.”



Angelique começou a se eriçar, mas Gornt disse:



— Não tão depressa, minha cara, seja paciente. Estou lhe contando o que ela disse. Seja paciente, há tempo suficiente para fazermos o nosso jogo. Depois desse encontro, ela queria outro, na noite seguinte. Para manter tudo às claras, eu disse a ela que estivera com os Brocks e lhes contara a mesma história de Iocoama, em particular sobre o duelo, entregando uma cópia do inquérito sobre a morte de Norbert. O velho Tyler ficou tão furioso quanto um buldogue atiçado, mas Morgan acalmou-o, disse que atirar em Jamie McFay pelas costas os prejudicaria muito mais do que a perda de um gerente, facilmente substituível.



Angelique observou-o organizar seus pensamentos; seu coração batia forte, de tantas perguntas ainda sem respostas.



— Ela vai... vai agir com base nas informações?



— Vai, sim, e depressa. Terei minha vingança e você conseguirá um acordo.



— Por que tem tanta certeza?



— Porque tenho, madame, não se preocupe. Precisei de anos mordendo a língua, bancando o subserviente, mas muito em breve... vai ver só! Quando lhe falei sobre o meu encontro com os Brocks... ela se pôs a me fazer perguntas sobre eles, qual fora a reação de Tyler ao casamento e morte de seu filho, e nem uma única vez usou o termo “pai”. Contei a ela, com toda franqueza, que os dois haviam rido de seu casamento naval, por ter ido contra os desejos dela, e que o velho Brock declarara: “É uma boa lição para aquela vaca, por ter agido contra a minha vontade!” Disse que os dois se mostraram exultantes pela morte de Malcolm, Morgan dizendo que agora que eles não têm tai-pan e quando chegar 1o de fevereiro, Tess sairá do Jóquei Clube, ficará arruinada em Hong Kong, com Tyler acrescentando e eu serei O Tai-pan, o nariz de Dirk ficará na merda e a Casa Nobre e seu nome serão esquecidos para sempre!



— Disse isso a ela? — indagou Angelique, aturdida.



— Disse, madame, mas apenas repeti o que Tyler falou... e juro que falou isso mesmo. E ele é o meio de levá-la à loucura, por isso que deveria relatar acuradamente. Quando o fiz, madame, a cabeça dela tremia tanto que os olhos tinham dificuldade em acompanhar e pensei que a Medusa ia voltar. Mas não voltou, não desta vez. O fogo do ódio foi contido desta vez, mas não desapareceu, madame de jeito nenhum. Só que ela o reprimiu, manteve-o lá no fundo, mas mesmo assim tenho certeza... desculpe, estou especulando. Não é próprio para uma mulher sentir tanto ódio assim, mas depois de conhecer Tyler e Morgan, é fácil compreender de onde veio.



Gornt pensou por um instante.



— Depois que ela esfriou um pouco, contei a ela que Tyler acabara concordando com a sugestão de Morgan de que eu deveria voltar para cá como gerente, em experiência pelo prazo de um ano, com uma porção de ameaças sinistras por um eventual fracasso. Ela perguntou meu salário e disse: “Excelente. Em público, seremos inimigos, mas secretamente seremos aliados e, se a Brock and Sons naufragar para sempre, o que peço a Deus que aconteça, a sua Rothwell-Gornt tomará o lugar.” Isso é tudo, Angelique, exceto que ela resolveu mandar Hoag de volta para cá, e estava lhe escrevendo uma carta.



Ele tomou um gole do bourbon, o gosto se tornando suave.



— Não perguntei o que a carta continha, e não fiz outra defesa sua, além de continuar a dizer, de vários modos, que se meu plano ajudasse a destruir os Brocks, ela teria de agradecer a você também. O que havia na carta?



Angelique entregou-lhe a carta.



— Um monte de esterco com os fardos de algodão — comentou Gornt, devolvendo-a. — É a primeira posição de barganha de Tess Struan... e deixa evidente que cumpri minha parte do acordo: ela está convencida de que deve lhe agradecer também. Você vai ganhar.



— Ganhar o quê? Não haverá uma ação judicial?



— Isso e mais um estipêndio. Ela admite que tem uma dívida com você.



— Pode ser, mas não há mais nada, só ameaças.



— Temos alguns trunfos?



— Quais?



Eles ouviram vozes lá fora.



— O tempo, entre outros, Angelique. Esta noite a convidarei para um jantar informal. Poderemos conversar em segurança e...



— Não no prédio da Brock, nem a sós — apressou-se em dizer Angelique. — Devemos ter cuidado. Por favor, convide também Dmitri e Marlowe. Precisamos ter muito cuidado, Edward, devemos simular que não somos muito ligados... pois isso deixaria aquela mulher desconfiada; seria inevitável que ela soubesse, já que Albert está totalmente do seu lado. Se não for possível conversarmos esta noite, darei uma volta pelo passeio amanhã, às dez horas, e poderemos continuar...



A fim de prevenir o abraço, que sentira iminente, Angelique beijou-o de leve no rosto, e estendeu-lhe a mão, agradecendo, efusiva.



Quando ficou sozinha de novo, na privacidade de seu boudoir, ela deixou a mente vaguear. Que trunfos? Que ases? E por que o sorriso estranho? E o que ele acertara de fato com Tess? É verdade, a julgar pela carta, que ele a convenceu da minha ajuda e isso é importante. Ou será apenas estou sendo desconfiada demais? Se ao menos eu estivesse presente na ocasião...



E, depois, o estou-ou-não-estou dominou-a, deixando agoniada. Num momento assim, assustada, ela mencionara a questão a Babcott, que respondera.



— Seja paciente e não se preocupe.



Por um instante, ela especulou se Babcott e Phillip Tyrer voltariam de Iedo, escapando das teias do inimigo, em que haviam se metido de bom grado, enviados por Sir William.



Os homens com sua estupidez de paciência, falsidade e prioridades erradas... o que eles sabem?







No castelo, em Iedo, Yoshi sentia-se ansioso e irritado. Era o meio da manhã, ele se encontrava em seus aposentos, e ainda não tinha qualquer notícia sobre o exame do tairo pelo doutor gai-jin. Ao chegar a Iedo, de volta de Kanagawa, no dia anterior instalara Babcott e Tyrer num dos palácios de daimio fora dos muros do castelo escolhido com o maior cuidado, guarnecido e cercado por guardas de confiança com segurança adicional, e logo em seguida convidara Anjo para o exame.



O tairo chegara num palanquim fechado e anônimo, protegido por sua própria guarda; afinal, a tentativa de assassiná-lo ocorrera a poucos mais de cem metros dali. Isso e mais o ataque em massa dos shishi ao xógum Nobusada e os vários atentados contra Yoshi haviam aumentado a preocupação e necessidades de segurança dos anciãos.



Yoshi, com Babcott e Phillip Tyrer ao seu lado, recebera o palanquim clandestino no pátio. Fizeram uma reverência, a de Yoshi a mais profunda, rindo por dentro, enquanto Anjo, com uma dor evidente, era ajudado a saltar.



Tairo, este é o doutor gai-jin, B’bc’tt, e o intérprete, Firrup Tiara. Anjo ficara boquiaberto ao olhar para Babcott.



— Ei, o homem é mesmo grande como uma árvore! Grande demais, parece um monstro! Seu pênis terá a mesma proporção? — Depois, ele fitara Phillip Tyrer e rira. — Cabelos de palha, cara de macaco, olhos azuis de porco e um nome japonês... é um dos seus nomes de família, Yoshi-dono, neh?



— O nome tem quase o mesmo som — respondera Yoshi, bruscamente e depois acrescentara para Tyrer: — Quando o exame acabar, mande esses dois homens ao meu encontro.



Ele apontara para Misamoto, o pescador, seu espião e falso samurai, e o constante guarda de Misamoto, o samurai que tinha a ordem para nunca deixá-lo a sós com qualquer gai-jin.



— Anjo-dono, creio que sua saúde está em boas mãos.



— Obrigado por arranjar este encontro. O doutor será enviado a você quando me aprouver, não há necessidade de deixar estes homens aqui, nem qualquer de seus homens...



Isso acontecera ontem. Yoshi se preocupara durante toda a noite e pelo início da manhã. Seus aposentos haviam mudado. Eram agora mais austeros. Todos os vestígios de Koiko foram removidos. Dois guardas postavam-se atrás dele e dois na porta. Irritado, Yoshi afastou-se da mesa de escrever, foi até a janela, inclinou-se para fora. Podia avistar o palácio do daimio lá embaixo, no círculo interior. Os homens do tairo montavam guarda ali. Nenhum outro sinal de atividade. Acima dos telhados de Iedo dava para ver o oceano e as trilhas de fumaça de navios mercantes e um navio de guerra, a caminho de Iedo.



O que eles transportam?, especulou Yoshi. Armas? Soldados e canhões? Que insídia os gai-jin planejam?



A fim de controlar os nervos, ele voltou a sentar à mesa, e continuou a praticar caligrafia. Em circunstâncias normais, o exercício o tranquilizava. Hoje, porém, não lhe proporcionou qualquer paz. Os traços refinados de Koiko continuavam a se formar no papel e ele não conseguia, por mais que tentasse, impedir que o rosto dela aflorasse em sua mente.



Baka! — exclamou ele, fazendo um traço errado, arruinando uma hora de trabalho.



Jogou o pincel longe, esparramando tinta no tatame. Os guardas se remexeram, apreensivos, e Yoshi censurou-se pelo lapso. Deve controlar sua memória. De qualquer maneira.



Koiko o assediava desde aquele dia sinistro. A delicadeza de seu pescoço, mal sentindo o golpe, depois se afastando apressado, sem acender sua pira fúnebre, as noites piores que os dias. Solitário ao deitar, com frio, mas sem o desejo do corpo de uma mulher, ou de socorro, todas as ilusões perdidas. Depois da traição de Koiko, permitindo o acesso a seus aposentos da mulher-dragão Sumomo... nenhuma desculpa era aceitável para isso, absolutamente nenhuma, ele disse a si mesmo de novo, absolutamente nenhuma. Ela devia saber sobre Sumomo. Não há desculpa, não há perdão, nem mesmo o seu sacrifício, como ele acreditava agora, de se adiantar para receber o shuriken que o teria abatido. Nunca mais poderia confiar em nenhuma mulher. Exceto sua esposa, talvez, e a consorte, talvez. Não mandara chamar nenhuma das duas, apenas escrevera, dizendo-lhes que esperassem e guardassem seus filhos, mantendo o castelo são e salvo.



Yoshi não sentia nenhuma alegria genuína, nem mesmo por sua vitória sobre os gai-jin, embora tivesse certeza de que fora um magnífico passo à frente e também que os anciãos ficariam extasiados, quando lhes contasse. Até mesmo Anjo. Será que aquele cão está mesmo muito doente? Espero que sim e que seja uma doença fatal. O gigante fará sua magia, conseguirá curá-lo? Ou devemos acreditar naquele doutor chinês, o que Inejin garantiu que nunca erra, e que sussurrou uma morte em breve?



Não importa. Anjo, doente ou não, vai me escutar mais agora, os outros tombem escutarão, e concordarão com minhas propostas. Por que não? Os gai-jin foram contidos, agora não há mais ameaça da esquadra e podemos considerar que Sanjiro será destruído pelos gai-jin; Ogama continuará em Quioto, satisfeito. O xógum Nobusada receberá a ordem de retornar a Iedo, que é o lugar a que ele pertence, depois que explicasse o papel que o menino deveria desempenhar no grande plano. E não apenas voltará, mas também voltará sozinho, deixando a esposa hostil, a princesa Yazu, para “segui-lo em poucos dias”, o que jamais aconteceria, se Yoshi pudesse prevalecer. Não havia necessidade de revelar o que pretendia fazer aos outros. Só a Ogama.



E o próprio Ogama não saberia de tudo, apenas a parte para manipular a princesa e levá-la ao divórcio, por “solicitação” imperial. Ogama cuidaria para que ela não interferisse, até que fosse neutralizada em caráter permanente, contente em viver para sempre nas areias movediças palacianas, de competições de poesia, misticismo e outros cerimoniais temporais. E teria um novo marido. Ogama.



Não, não Ogama, pensou, cínico e divertido, embora eu vá propor a união. Não, um outro, alguém com quem ela se contente... o príncipe a quem foi outrora prometida e a quem ainda adora. Ogama será um excelente aliado. Sob muitos aspectos. Até seguir para o outro mundo.



Enquanto isso, não há necessidade de partilhar uma verdade imortal que descobri sobre os gai-jin... nem com Ogama, nem com Anjo, nem com qualquer outro: Os gai-jin não compreendem o tempo como nós, não consideram ou pensam sobre o tempo como nós. Pensam que o tempo é finito. O que não acontece conosco. Preocupam-se com o tempo, minutos, horas, dias... os meses são importantes para eles, os prazos exatos são sagrados. Sua versão do tempo os controla. Portanto, esse é o instrumento que podemos usar para derrotá-los.



Ele sorriu para si mesmo, adorando segredos, sonhando com mil maneiras de usar o tempo dos gai-jin contra o tempo real para dominá-los, e também o futuro, por intermédio deles. Paciência, paciência, paciência.



Enquanto isso, ainda tenho os nossos portões, embora os homens de Ogama controlem meus homens que guardam os portões. Isso não importa. Muito em breve os possuiremos por completo e prevaleceremos sobre o filho do céu. Viverei para testemunhar isso? Se viver, testemunharei; se não viver, não testemunharei. Karma.



A risada de Koiko provocou um calafrio por sua espinha. Ah, Tora-chan, você e o karma! Surpreso, Yoshi olhou ao redor. Não era ela. A risada vinha do corredor, misturada com vozes.



— Sire?



— Entre — disse ele, reconhecendo Abeh.



Abeh entrou, deixando os outros lá fora. Os guardas relaxaram. Abeh era acompanhado por uma das criadas, uma mulher jovial, de meia-idade, carregando uma bandeja, com chá fresco. Ambos se ajoelharam, fizeram uma reverência.



— Ponha a bandeja na mesa — ordenou Yoshi.



A criada obedeceu, sorrindo. Abeh continuou ajoelhado, perto da porta. Eram as novas ordens: ninguém podia se aproximar a menos de dois metros sem permissão.



— Do que estava rindo?



Para surpresa de Yoshi, ela disse, efusiva:



— Do gigante gai-jin, Sire. Eu o vi no pátio, pensei que era um kami — dois na verdade, Sire, o outro de cabelos amarelos e olhos azuis de um gato siamês. E tive de rir, Sire. Imagine só, olhos azuis! O chá é desta estação, como ordenou. Gostaria de alguma coisa para comer, por favor?



— Mais tarde. — Yoshi dispensou-a, sentindo-se mais calmo agora, a natuza jovial da mulher contagiosa. — Abeh, eles se encontram no pátio? O que aconteceu?



— Por favor, Sire, perdoe-me, mas não sei — respondeu Abeh, ainda furioso porque Anjo ordenara a retirada de todos no dia anterior. — O capitão da guarda do tairo me procurou há um momento e ordenou... ordenou a mim... que os conduzisse de volta a Kanagawa. O que devo fazer, Sire? Vai querer falar com eles antes, tenho certeza.



— Onde está o tairo Anjo agora?



— Só sei que os dois gai-jin devem ser levados de volta a Kanagawa, Sire. Perguntei ao capitão como fora o exame e ele retrucou, insolente, “que exame?”, afastando-se em seguida.



— Traga os gai-jin aqui.



Pouco depois, soaram passos pesados no corredor, passos estranhos. Uma batida na porta.



— Os gai-jin, Sire.



Abeh deu um passo para o lado, gesticulou para que Babcott e Tyrer se adiantassem, ajoelhassem, e fizessem uma reverência. Só que eles fizeram a reverência de pé, ambos com a barba por fazer, visivelmente exaustos. No mesmo instante, um dos guardas, enfurecido, deu um empurrão em Tyrer, que se estatelou no chão. O outro guarda tentou fazer a mesma coisa com Babcott, mas o doutor, com uma rapidez surpreendente para alguém tão grande, agarrou-o pela roupa, perto da garganta, só com uma das mãos, e suspendeu-o, empurrando-o de costas para a parede de pedra. Por um segundo, ele manteve o homem inconsciente ali, depois arriou-o até o chão, com todo cuidado. No silêncio chocado, Babcott disse, descontraído:



Gomen nasai, Yoshi-sama, mas esses idiotas não deveriam empurrar os visitantes. Phillip, traduza isso, por favor, e diga que não o matei, mas o patife mal-educado ficará com uma tremenda dor de cabeça por uma semana.



Os outros samurais saíram de seu transe, estenderam as mãos para as espadas.



— Parem! — ordenou Yoshi, furioso com os gai-jin e furioso com os guardas. Todos ficaram imóveis. Atordoado, Phillip levantou-se, ignorou o guarda inerte, e disse, em seu japonês exótico e hesitante:



— Por favor, desculpar, Yoshi-sama, mas doutor-sama e eu fazer reverência, O costume estrangeiro. Polido, sim? Não má intenção. Doutor-sama diz por favor, desculpe, homem não morto, apenas... — Ele procurou a palavra correta, não a encontrou, apontou para sua cabeça. — Dor, uma semana, duas. Yoshi riu. A tensão se dissipou.



— Levem-no. Quando ele acordar, tragam-no de volta.



Ele acenou para que os outros voltassem a seus lugares, gesticulou para que os ingleses sentassem à sua frente. Depois que eles se acomodaram, meio desajeitados, Yoshi perguntou:



— Como está o tairo? Como foi o exame?



Babcott e Phillip responderam com gestos e palavras simples, que haviam combinado de antemão, explicando que o exame correra bem, o tairo tinha uma hérnia — uma ruptura —, que Babcott poderia ajudar a aliviar a dor com um funda e um medicamento, que teria de ser feito e trazido da colônia, e que o tairo concordara em que ele voltasse uma semana depois, para ajustar a funda, e trazer os resultados dos testes. Enquanto isso, o tairo recebera um medicamento que acabaria com quase toda a dor e o ajudaria a dormir. Yoshi franziu o rosto.



— Essa “hérnia” é permanente?



— Doutor-sama diz que...



— Sei que o doutor fala por seu intermédio, Taira — disse Yoshi, ríspido insatisfeito com o que acabara de ouvir. — Apenas traduza suas palavras, sem títulos cerimoniais!



— Sim, Sire. Ele dizer dano ser permanente. Tairo Anjo precisar... precisar sempre medicamento para dor, sinto muito, todo dia, e também usar todo dia essa “funda”. — Tyrer usou a palavra inglesa e com as mãos explicou a cinta e o ponto de pressão. — Doutor acha tairo-san ter se cuidar. Não poder... não pode lutar espada.



Yoshi amarrou a cara, pois os resultados não eram muito animadores.



— Quanto tempo... — Ele parou, acenou para que os guardas saíssem. — Esperem lá fora.



Abeh ficou.



— Você também.



Relutante, o capitão saiu, fechou a porta. Yoshi disse:



— A verdade. Quanto tempo ele viverá?



— Só Deus sabe.



— Ah, deuses! Quanto tempo doutor acha que tairo viverá?



Babcott hesitou. Esperava que o tairo lhe ordenasse que nada dissesse a Yoshi, mas depois que falara da hérnia e medicamento, dera um pouco de sua tintura de láudano, que aliviara a dor quase que no mesmo instante, o tairo rira e o encorajara a relatar a “boa notícia”. Mas a hérnia era apenas parte do problema.



Seu diagnóstico completo, que não revelara a Anjo, nem a Phillip Tyrer, querendo reservar o julgamento até efetuar uma análise das amostras de urina e fezes, consultar Sir William e fazer um segundo exame, era o de que receava que podia haver uma perigosa deterioração dos intestinos, de causas desconhecidas.



O exame físico só levara cerca de uma hora, a sondagem verbal se prolongara por várias horas. Aos quarenta e seis anos, Anjo se encontrava em péssimas condições. Dentes podres, que com certeza provocariam uma septicemia, mais cedo ou mais tarde. Reações negativas à pressão no estômago e outros órgãos, óbvias constrições interiores, próstata muito inchada.



O maior problema do diagnóstico era decorrente da falta de fluência sua e de Phillip, pois o homem se mostrara impaciente, ainda não confiava nele e não queria falar sobre os sintomas. Fora preciso um interrogatório diligente para que ele pudesse determinar as prováveis dificuldades experimentadas pelo paciente nos movimentos intestinais, passagem da urina e incapacidade de manter ereções — o que parecia preocupá-lo acima de qualquer outra coisa — embora Anjo tivesse dado de ombros e não admitisse expressamente nenhum desses sintomas.



— Phillip, diga a lorde Yoshi que acho que o tairo viverá mais ou menos a média para um homem em sua condição, com a mesma idade.



A dor de cabeça de Tyrer voltara, agravada por sua ansiedade em realizar um bom trabalho.



— Ele viver mais ou menos mesma coisa um homem mesma idade. Yoshi pensou a respeito, compreendendo as dificuldades de sondar questões delicadas numa língua estrangeira, com uma interpretação inadequada. Por isso, devia manter as perguntas bem simples.



— Pergunte: dois anos, três anos, um ano? Ele observava Babcott atentamente, não Tyrer.



— Difícil dizer, lorde. Em uma semana talvez saber melhor.



— Mas agora? A verdade. Um, dois ou três, o que acha?



Babcott compreendera, antes de deixar Kanagawa, que sua função ali não era apenas como médico. Sir William dissera:



— Falando francamente, meu caro, se o paciente for mesmo Anjo, você também é um importante representante do governo de sua majestade, meu, da colônia, e ainda um espião... portanto, George, por favor, não desperdice essa oportunidade de ouro...



Por si mesmo, ele era primeiro e acima de tudo um médico. Com o sigilo médico-paciente. Não restava a menor dúvida de que Yoshi era inimigo do paciente, um poderoso inimigo, mas também, em potencial, um poderoso amigo do governo de sua majestade. Pondo os dois na balança, Yoshi era mais importante, a longo prazo. Anjo emitira o ultimato para evacuar Iocoama, era o chefe do Bakufu, e com toda certeza morreria antes de Yoshi, a menos que o segundo tivesse um fim violento. Se forçado, o que você responderia?, ele perguntou a si mesmo. Dentro de um ano. Em vez disso, porém, respondeu:



— Um, dois ou três, Yoshi-sama? Verdade, sinto muito, não saber agora.



— Poderia ser mais?



— Sinto muito, não possível dizer agora.



— Poderá dizer na próxima semana?



— Talvez poder dizer próxima semana não mais três anos.



— Talvez saiba mais do que diz, agora ou na próxima semana.



Babcott sorriu com a boca apenas.



— Phillip, diga a ele, polidamente, que estou aqui a seu convite, um hóspede. Como médico, não mágico, e não preciso voltar na próxima semana, nem em qualquer outra.



— Mas que droga, George! — murmurou Tyrer. — Não queremos encrenca.



Não sei como traduzir esse “mágico” e não tenho como explicar tais nuanças Pelo amor de Deus, encontre uma resposta mais simples.



— O que você disse, Taira? — indagou Yoshi, ríspido.



— Oh, Sire... difícil traduzir palavras altos líderes quando... quando ter muitos significados, e não saber menor palavra... melhor palavra, por favor, desculpar



— Deveria estudar mais — disse Yoshi, irritado por não estar com seu próprio intérprete. — Faz um bom trabalho, mas não o suficiente, deve estar mais É importante que saiba mais. Agora, o que ele disse, exatamente?



Tyrer respirou fundo, suando.



— Ele dizer ser doutor, não como deus, Yoshi-sama, não saber exato sobre tairo. Ele... ele aqui convite Yoshi. Sinto muito, se não quiser vir Iedo, doutor-sama não vir Iedo.



Ele morreu um pouco, ao ver Yoshi sorrir da mesma maneira insincera de Babcott. Não havia como se enganar quanto ao significado daquele sorriso; Tyrer amaldiçoou o dia em que decidira se tornar um intérprete.



— Sinto muito.



So ka!



Sombrio, Yoshi avaliou seu movimento seguinte. O doutor provara ser útil, embora estivesse lhe escondendo fatos. Se assim fosse, podia deduzir que os fatos concretos eram ruins, não bons. E esse pensamento agradou-o. Um segundo pensamento também o agradou. Baseava-se numa idéia sugerida por Misamoto, sem saber, meses atrás. Yoshi no mesmo instante iniciara a prática, através do seu chefe de espionagem, Inejin, para uso futuro: um meio de controlar os bárbaros era através de suas prostitutas.



Inejin fora diligente, como sempre. Assim, Yoshi sabia agora muita coisa sobre a Yoshiwara dos gai-jin, quais eram as estalagens mais populares, sobre Raiko e a prostituta daquele jovem esquisito e tão feio, Taira, a velha de muitos nomes agora chamada Fujiko. E sobre a estranha prostituta de Furansu-san. O líder gai-jin, Sur Wrum, não tinha nenhuma prostituta especial. Serata usava duas, esporadicamente. Nemi era chamada de a consorte do chefe mercador gai-jin e uma boa fonte de informações. O doutor não visitava a Yoshiwara. Por quê? Meikin vai descobrir...



Ah, sim, Meikin, a traidora, você não está esquecida!



— Diga ao doutor que aguardo ansioso a sua visita na próxima semana — disse ele, incisivo. — E agradeça a ele. Abeh!



Abeh entrou na sala, ajoelhou-se.



— Escolte-os até Kanagawa. Não, leve-os pessoalmente até o líder gai-jin, em Iocoama, e traga de volta o renegado Hiraga.







— Olá, Jamie! Está na hora do almoço! Ontem à noite você disse para vir chamá-lo a uma hora! — Maureen sorriu da porta, de touca, vestida com elegância, as faces coradas pela caminhada apressada desde o prédio da Struan. — Uma hora, você disse, para o almoço no seu clube.



— Já estou indo, menina — disse ele, distraído, concluindo a carta para seu banqueiro em Edimburgo, sobre o empreendimento conjunto com o shoya, e anexando a ordem de pagamento de Tess Struan para depósito. Tenho de falar de alguma forma com Nakama-Hiraga, assim que ele for encontrado. Onde será que se meteu? Espero que não tenha fugido, como todos pensam. — Sente-se. Albert vai com a gente.



Ele estava tão absorvido que não percebeu o desapontamento de Maureen. O novo escritório ficava no prédio do Guardian, perto da cidade dos bêbados, na High Street. Era muito menor do que o escritório anterior, no prédio da Struan, mas tinha uma vista agradável da baía, o que era importante, permitindo que o mercador observasse as chegadas e partidas dos navios. Não mobiliado, exceto por uma escrivaninha e três cadeiras, meia dúzia de arquivos. Pilhas de livros e caixas, maços de papel em branco, penas e cadernos de contabilidade, que tomara emprestado até que chegasse sua encomenda de Hong Kong, espalhavam-se por toda parte. Na mesa, havia mais papéis, cartas, pedidos e uma circular, anunciando o lançamento de sua nova companhia e pedindo negócios. Tudo tinha de ficar pronto para a partida do Prancing Cloud.



— Dormiu bem, Jamie?



Ele fechou a carta, mal ouvindo-a.



— Dormi, sim, obrigado. E você?



Jamie pegou outra pilha de correspondência. As cartas haviam sido copiadas por dois escriturários portugueses que ocupavam uma sala no final do corredor, ao lado da oficina gráfica. Os escriturários foram emprestados por MacStruan, até que ele pudesse ter empregados permanentes.



— Albert é um bom sujeito, não acha? — murmurou ele, distraído. — Eu disse que poderíamos nos atrasar um pouco.



Se dependesse dele, não iria ao clube, apenas pediria a um dos escriturários que lhe fizesse um sanduíche ou encomendasse um pouco da comida chinesa que os dois mandavam vir todos os dias da cidade dos bêbados. Meia hora depois, Jamie largou a pena e disse, jovial:



— Vamos?



— Hum, hum...



— Qual é o problema?



— É que eu esperava que pudéssemos almoçar a sós, pois temos muito o que conversar... obviamente, não houve tempo ontem à noite. Foi uma bela festa, não é?



— Foi, sim. Os dançarinos cossacos eram espetaculares. E teremos muito tempo para conversar. Desculpe, mas achei que não era importante.



— Angelique também foi espetacular, assim como muitos de seus amigos, entre os quais Marlowe e Pallidar!



Maureen riu, descontraída. Aliviado, ele baixou a guarda, pegou o chapéu e o casaco, abriu a porta.



— Fico contente que tenha gostado.



— Você saiu ontem à noite, depois que nos despedimos.



Jamie tornou a levantar a guarda, baixo demais para evitar o rubor de culpa



— Ahn... é verdade.



— Bati na sua porta, mas não houve resposta... queria apenas conversar, não me sentia cansada. Você disse que estava cansado.



— E estava mesmo, mas depois o cansaço desapareceu. Vamos embora?



— Claro. Estou com fome.



Saíram para o passeio. Não havia muitas pessoas ali. O dia não era dos melhores, o mar encapelado, o vento forte.



— Não é tão ruim quanto Glasgow nesta época do ano — comentou Maureen alegre, passando o braço pelo dele.



— Tem razão. O frio não vai durar. Muito em breve chegará uma das melhores épocas do ano. A primavera e o outono são maravilhosos aqui.



Ele respirava melhor, agora que o assunto ficara para trás. Mas Maureen indagou, sempre jovial:



— Você foi à Yoshiwara?



Um alfinete de gelo saltou de seus testículos para o coração e voltou. Mil respostas afloraram, a melhor das quais era: se eu quiser ir à Yoshiwara, por Deus, irei quando me aprouver. Não somos casados e mesmo que eu fosse... e lhe diria que não queria casar, pelo menos ainda não, não agora que o novo negócio tem possibilidades. Confiante, Jamie abriu a boca para dizer tudo isso, mas por alguma razão a voz saiu estrangulada e hesitante:



— Eu... hum... fui, sim, mas...



— Divertiu-se?



— Escute, Maureen, há algumas coisas...



— Já sei sobre a Yoshiwara, meu caro, e sobre os homens — disse ela, gentilmente. — Divertiu-se?



Jamie parou, abalado pela voz gentil e o comportamento afável:



— Hum... acho que sim... mas deve compreender, Mau...



— Faz frio demais para a gente parar, Jamie. — Ela tornou a pegar o braço dele, forçou-o a continuar a andar. — Muito bem, você se divertiu. Por que não me contou? E por que inventar a mentira de que se sentia cansado?



— Porque... — Outra vez uma dúzia de respostas, mas sua boca emitiu apenas: — Porque é óbvio. Eu não queria...



Jamie não podia dizer: Eu não queria magoá-la, porque tinha um encontro marcado, queria me encontrar com Nemi, mas ao mesmo tempo não queria, também não queria que você soubesse dela, e a verdade é que me senti horrível.



Quando entrara na pequena casa, encontrara Nemi vestindo o seu melhor quimono de dormir, o santuário dos dois impecável, comidas e saquê à espera, ela rindo e feliz, muito atenciosa.



— Ei, Jamie-san, bom ver você! Ouvir boa notícia do barco. Você casar dama da Scut’rand, hem?



Ele ficara Atônito pela rapidez com que a notícia circulara.



— Como soube?



— Toda Yoshiwara saber! Importante, neh? — Nemi se mostrava esfuziante. Dois dias eu ir Casa Grande conhecer breve oku-san.



— HEM?



— Importante, Jami-san. Quando casamento? Importante, para oku-san, nee goh-san amiga, neh?



— Você ficou doida? — explodira ele.



Nemi não entendera.



— Doida, Jami-san? Oku-san pagar agora. Oku-san pagar, Jami-san, Iyé? Importante oku-san nee...



— Não é assim que as coisas são feitas, pelo amor de Deus!



— Não compreender... importante Nemi ir oku-san...



— Você está doida!



— Não compreender...



Ela se mostrara assustada com a atitude belicosa de Jamie e concluíra que a fuga era a melhor defesa para aquele comportamento incrível... mas a fuga em lágrimas, é claro.



Nemi saíra antes que ele pudesse detê-la, a mama-san não conseguira convencê-la a voltar e por isso, furioso, ele fora para casa e quase não dormira. Deus Todo-Poderoso, Nemi indo ao prédio da Struan para se encontrar com Maureen? E Maureen pagando a Nemi no futuro? Importante amante e esposa serem boas amigas? Deus do céu! Devo ter entendido mal.



Não, seu idiota, não entendeu errado. Foi isso mesmo o que ela disse.



Acabara indo para o escritório. Antes do amanhecer. Pensara no caso durante toda a manhã e descobria agora que tinha duas mulheres para enfrentar.



— Escute, Maureen, desculpe ter mentido — balbuciou ele. — Mas... não sei o que mais dizer.



— Não se preocupe, pois essas coisas acontecem.



Maureen sorriu.



— Hem? Não está aporrinha... desculpe, não está zangada?



— Não, meu caro, não desta vez... não até termos uma conversinha.



Não havia ameaça na voz ou atitude de Maureen, pelo menos que ele pudesse perceber, e ela continuava a segurar seu braço com a maior ternura; mesmo assim, todo o seu ser interior bradava perigo, pelo amor de Deus, controle a língua, não diga nada.



— Conversinha? — ele se ouviu indagar.



— Isso mesmo.



Houve um silêncio ensurdecedor, apesar do barulho do vento nos telhados e calhas, os sinos de igreja, os apitos dos navios no porto, os cachorros latindo. Controle a língua, dois podem entrar nessa negociação, Jamie advertiu a si mesmo.



— E o que isso significa?



Maureen tateava o caminho com cuidado, gostando do aprendizado — e do ensinamento — do processo. Era apenas a primeira de uma sucessão intermináve1 de confrontações.



— Todos os homens são horríveis, Maureen — declarara sua mãe, em outros conselhos. — Alguns são piores do que outros, mas todos são mentirosos embora uma esposa esperta sempre seja capaz de perceber as mentiras de seu homem. No começo, os maridos são doces, deixam a mulher nas nuvens, com seu amor e carinhos, pequenas gentilezas. No começo. Depois chegam as crianças é preciso cuidar da casa, a maioria sempre sem dinheiro suficiente. A esta altura você se sente propensa a se largar, nas roupas, nos cabelos, na sua pessoa. É muito difícil, com as crianças, a falta de sono, um cansaço mortal. Não demora muito para que seu homem vire as costas na cama, desate a roncar... o que não é tão incômodo assim, se você aprende a fechar os ouvidos. E depois eles passam a procurar outras mulheres... mas não se preocupe, é uma coisa temporária, não dura muito, e se você for uma esposa esperta, o homem sempre volta, pois você sempre tem as crianças e tem Deus. Lembre-se de que não é fácil ganhar o pão de cada dia, como ele deve se lembrar também que não é fácil criar as crianças e manter a casa em ordem. Só que eles nunca se lembram disso. Seu pai não foi diferente, com suas mulheres ou mulher na índia, mas ele está em casa agora, e seu problema é outro. Eu já deveria saber que ele era casado com o regimento quando casamos. Pelo menos esse Jamie não é do exército, pois é muito difícil para uma esposa competir contra isso.



— Como a gente pode se tornar uma esposa esperta, mamãe?



— Eu bem que gostaria de saber, menina, juro que gostaria. Mas algumas regras são certas: escolha o seu homem com esperteza, pôr um freio na língua sempre ajuda, um bom cabo de vassoura e um acesso de raiva no momento certo também ajudam, muita compreensão e perdão durante todo o tempo, e um peito quente para o pobre coitado chorar...



Conversinha? — repetiu Jamie, a voz sufocada.



Maureen quase riu. Manteve o sorriso e a atitude de quem perdoava, mas o cabo de vassoura e o temperamento de prontidão.



— Soube da Yoshiwara no barco.



Ela deixou a informação em suspenso e Jamie se apressou em abocanhar a isca.



— Gornt lhe contou? Ou Hoag? Foi ele? Mas que idiota!



— Não, foi o seu bom capitão Strongbow... e o Dr. Hoag não é nenhum idiota, rapaz. Perguntei a Strongbow como vocês todos faziam para não enlouquecer sem amigas, se a mesma coisa acontecia na índia e na China. — Maureen riu, recordando como fora difícil persuadi-lo a falar com franqueza. O uísque é maravilhoso, pensou ela, abençoando o pai por ensiná-la a beber, quando necessário. — Acho que a Yoshiwara de vocês é uma coisa muito sensata.



Ele já iadizer “é mesmo?”, mas desta vez, no entanto, ficou calado. O silêncio de Maureen o torturava. Quando concluiu que chegara o momento, ela disse:



— Amanhã é domingo.



Jamie fitou atordoado, despreparado para aquele non sequitur.



— É, sim... acho que amanhã é domingo. Por quê?



— Pensei que poderíamos procurar o reverendo Tweet esta tarde. Espero que não seja um homem tão tolo quanto seu nome. Devemos lhe pedir para publicar os proclamas.



Jamie piscou, mais aturdido do que nunca.



— O quê?



— Os proclamas, Jamie. — Ela riu. — Não esqueceu que os proclamas devem ser lidos por três domingos consecutivos, não é?



— Não, mas já lhe disse que escrevi para...



— Isso foi quando eu estava lá. Acontece que não estou mais lá e, sim, aqui, e amo você.



Maureen parou, fitou-o, viu que ele era maravilhoso, tudo o que desejava na vida, e de repente todo o seu controle se foi com o vento.



— Jamie, querido, estamos noivos e creio que devemos casar, porque serei a melhor esposa que um homem já teve, prometo, prometo e prometo, não apenas porque estou aqui, amei você desde o primeiro momento e agora é o melhor momento para casar, tenho certeza, mas voltarei, voltarei para a Escócia, e nunca... se quiser que eu volte, voltarei, pelo próximo barco, mas eu amo você, Jamie. Juro que partirei, se você quiser.



As lágrimas afloraram a seus olhos e ela removeu-as.



— Desculpe, é apenas o vento, rapaz. — Mas não era o vento, toda a astúcia se desvanecera, seu espírito aberto, para que ele visse. — Acontece apenas que eu amo você, Jamie...



Os braços de Jamie a enlaçaram, ela comprimiu a cabeça contra seu ombro, sentindo-se mais angustiada do que em qualquer outro momento de sua vida, desesperada pelo amor daquele homem, as lágrimas escorrendo.



Depois que o terror amainou, contido pelo carinho de Jamie, ela ouviu-o dizer palavras bonitas, misturadas com o barulho do vento e das ondas, que a amava, e a queria muito feliz, que não se preocupasse, não ficasse triste, mas aquela tarde seria cedo demais, e tinha muito trabalho a fazer pela companhia, seria bastante difícil começá-la e mantê-la viva.



— Não se preocupe com a nova companhia, Jamie, pois a Sra. Struan disse que...



Ela parou, horrorizada. Não tencionava lhe contar, mas era tarde demais agora, os braços de Jamie apertando e depois afastando-a



— Ela disse o quê?



— Não importa. Vamos...



— O que ela disse a você? O quê? — O rosto de Jamie era severo, os olhos penetrantes. — Disse que estava me mandando dinheiro?



— Não, não disse. Apenas falou que você era um bom mercador e seria bem-sucedido. Vamos logo comer. Estou famin...



O que ela disse? Exatamente.



— Já expliquei. Vamos al...



— Conte-me o que ela falou. E diga a verdade, exatamente! Ela lhe falou sobre o dinheiro, não é?



— Não, não exatamente.



Maureen desviou os olhos, furiosa consigo mesma.



— A verdade! — Jamie segurou-a pelos ombros. — E agora!



— Está bem.— Ela respirou fundo e pôs-se a falar, com uma velocidade cada vez maior. — Foi assim que aconteceu, Jamie, exatamente assim. Quando fui ao prédio da Struan para perguntar onde você estava, se no Japão ou em outro lugar, mandaram-me esperar. E depois ela me chamou, a Sra. Struan, para aquela sala grande de onde se podia ver toda Hong Kong, mas uma mulher muito triste, embora com bastante força. Largue-me por um momento.



Maureen tornou a enxugar os olhos, assoou o nariz e, depois, sem saber o que fazer com as mãos, passou o braço pelo dele, e sua mão encontrou o caminho para o bolso do casaco de Jamie.



— Vamos andar, Jamie, é mais fácil falar andando. Faz muito frio. A Sra. Struan me convidou a sentar, disse que você fora dispensado. Perguntei por que e ela me contou. Protestei que não era justo, não era problema seu se o filho dela era um pequeno demônio, loucamente apaixonado por uma aventureira inaceitável chamada Angelique... não sei nada sobre aventureiras, Jamie, mas depois de ter visto Angelique posso compreender por que o filho dela ou qualquer outro homem se apaixonaria por uma mulher assim, e tendo conhecido a mãe, também compreendo por que havia ira entre eles...



Uma rajada de vento agitou seus chapéus, tiveram de segurá-los, e depois Maureen continuou:



— Nós... tivemos uma briga. Não se esqueça que isso foi dias antes de sabermos da morte do rapaz. Foi uma briga terrível, Jamie. Logo estávamos as duas de pé e receio ter perdido o controle. Você ficaria envergonhado de mim. Ainda por cima, usei algumas palavras horríveis de papai.



Ele parou, aturdido.



— Teve uma briga com Tess?



— Isso mesmo. Nunca, em toda a minha vida, tive uma briga tão terrível, nem mesmo com minhas irmãs e meu irmão, em segredo. Não me sentia muito corajosa, mas tamanha injustiça me deixou enfurecida, a coisa transbordou, e lhe dei... — a boa natureza e o senso de humor de Maureen voltaram e ela riu, nervosa. — Puxa, foi como uma briga de rua em Glasgow, duas peixeiras no mercado, dispostas a arrancar os cabelos uma da outra. Em determinado momento, algumas pessoas entraram, mas ela expulsou-as... Muito bem, miss Ross, disse ela, os lábios contraídos, finos como o gume de uma adaga escocesa, as duas ofegando, sem qualquer sinal de amizade, o que acha que devo fazer? Fazer?, repeti. Primeiro dê ao Sr. McFay uma boa gratificação de dispensa, pois ele a mereceu uma dúzia de vezes, ao longo de seus anos de serviços, e lhe dê negócios para começar seus negócios e também lhe escreva um bom bilhete.



— Você disse isso? A Tess?



— Disse, sim. — Ela viu e ouviu a incredulidade e tratou de dissipá-la no mesmo instante. — Juro que é essa a verdade de Deus, Jamie. Não ia lhe contar, mas você insistiu e eu não mentiria. Pelo Senhor Deus, juro que é a verdade!



— Eu sei. Desculpe. Por favor, continue.



— Não precisa se desculpar, pois eu mesma não acreditei na ocasião. Depois que eu disse o que tinha de dizer, sem a menor gentileza, a Sra. Struan riu e riu, e me disse para sentar. Muito bem, concordo, mas sem o bilhete. Não é suficiente, insisti. E perguntei qual era a compensação justa. Seu sorriso desapareceu e ela respondeu mil guinéus. Falou igualzinho ao pai quando está com raiva. É muito pouco. Dez mil.



Maureen parou de novo, fitou-o, inquisitiva.



— Tive de acertar em cinco. Foi certo? Eu não sabia se era suficiente. Acha que é?



— Você acertou? Você acertou em cinco mil?



— Foi preciso algum tempo e mais imprecações... naquela noite pedi perdão a Deus pelas imprecações, mas o fato é que usei mais palavras do pai. Espero que tenha sido um acordo justo, Jamie, junto com os negócios extras... e ela concordou que não faria nada contra você, seriam amigos nos negócios, considerei que isso era importante. Depois de concordar, ela arrematou, com seu sorriso gelado: Vá se encontrar com o seu Sr. McFay, com os meus cumprimentos.



Maureen olhou para as ondas por um momento, organizando os pensamentos. Outro dar de ombros, nervoso, e depois ela tornou a fitá-lo, com um ar ingênuo.



— Foi isso o que aconteceu, e o fiz por você, não por mim, nem por nós, só por você. Não tinha a intenção de mencionar.



— Jamie! Miss Ross!



Lunkchurch saiu de seu escritório, juntou-se a eles, antes que se dessem conta. Cumprimentou-os, efusivo, quase asfixiando Maureen com o cheiro de uísque, convidou-os para jantar naquela noite, e depois se afastou, cambaleando.



— Ele está sempre bêbado por volta das duas horas da tarde, mas é um bom sujeito — comentou Jamie. — Nem vai se lembrar do convite ou de nossa recusa.



Desta vez ele pegou a mão de Maureen, meteu-a no bolso de seu casaco, para esquentar, e segurou-a ali, enquanto continuavam a andar.



— Maureen, eu...



— Antes de dizer mais alguma coisa, deixe-me acabar. Não tencionava lhe contar o nosso encontro, mas escapuliu. Lamento profundamente, juro por Deus que não queria que você soubesse, é a verdade de Deus, não quando estamos conversando a sério sobre... sobre nós, você e eu. Por favor, acredite nisso, é a verdade de Deus.



— Acredito em você, não precisa se preocupar com isso. Tess me escreveu, cumpriu a palavra, mandou o dinheiro, mais do que já tive em toda a minha vida, O suficiente para começar, tudo graças a você.



Lágrimas de remorso começaram a escorrer.



— Não por minha causa, Jamie, você seria injustiçado, a Sra. Struan lhe devia isso... eu não queria contar, mas você insistiu. E tinha razão de se zangar, eu errei ao dizer esta tarde, por favor, perdoe-me, foi apenas... você tem razão, esta tarde é cedo demais, está certo, e eu errada por fazer tal sugestão. Podemos esperar Jamie, por favor? Podemos esperar, digamos uma ou duas semanas, um mês, para você verificar se gosta mesmo de mim? Por favor?



— Vai me escutar agora — disse Jamie, apertando-lhe a mão. — Gosto demais de você e não quero que vá embora; sim, vamos esperar um pouco; não não estou zangado; sim, acredito em você, agradeço de todo coração; não, você não estava errada ao fazer a sugestão. Vamos pensar a respeito e conversar durante o jantar, Sparkles, só eu e você, hem?



Antes de perceber o que fazia, Maureen inclinou-se, beijou-o em agradecimento, o uso do apelido um presságio alegre. As mãos tornaram a se encontrar, mergulharam no bolso.



— Você é lindo, Jamie, essa é a verdade, eu amo você e...



Maureen ia acrescentar que ele não precisava dizer isso, enquanto não estivesse pronto. Mas não o fez. Retirou-se desse precipício.



— Você é um bom rapaz.



— E você é uma boa menina.



Jamie sentia-se mais calmo agora em relação a ela, como não acontecia há anos, a ânsia e a culpa não mais prevalecendo. E o casamento?, ele perguntou a si mesmo, pela primeira vez sem estremecer. Claro que um homem deve casar e ter filhos, no momento correto. Não me oponho ao casamento, longe disso. Quando? Depois que os negócios estiverem assentados, os lucros entrando? Ela é sensacional, inteligente, atraente, boa família, paciente e fiel, e me ama, é incrível que tenha enfrentado Tess, feito o que fez, demonstrando como é esperta. Pode dar certo. Eu a amo? Gosto muito dela...



Tenho trinta e nove anos. Continuo em boa forma física, já deveria ter casado... há bastante tempo. Ela tem vinte e oito anos, também parece jovem para a sua idade, deve conhecer a própria mente, e não resta dúvida de que cintila.



Ontem à noite, Marlowe e Pallidar também notaram... até demais! Aquele desgraçado devasso do Settry não a deixava em paz, não que eu me importasse... bastava sacudir a cabeça e ela viria correndo para mim. Ele apertou o braço de Maureen, gostando disso.



— O que é?



— Nada. Estou contente por você ter gostado da festa ontem à noite. — Jamie pensou que podiam esperar três ou quatro meses, não havia necessidade de pressa... e não era uma má idéia. — Chegamos.



Entraram no pátio do clube. MacStruan conversava com Dmitri nos degraus. Avistou-os e virou-se. Dmitri acenou, jovial. Jamie sentiu um frio nas entranhas. Nemi! Quando Nemi pegar o freio nos dentes...



Deus Todo-Poderoso, pensou ele, consternado, como vou lidar com Nemi, a Yoshiwara e Sparkles? Não é possível. Mas tenho de encontrar um meio. O que foi mesmo que ela disse sobre a Yoshiwara? Não ficou aporrinhada desta vez... não até termos uma conversinha. Uma conversinha?



— Está com frio, Jamie querido?



— Não, não... estou bem.







— Phillip, diga outra vez ao capitão Abeh que sinto muito, mas Hiraga não pode ser encontrado no momento. — Sir William postava-se de costas para a lareira, numa das salas de recepção da legação. Tyrer, Babcott e Abeh haviam acabado de chegar de Iedo. Era o crepúsculo. — Ainda estamos procurando por toda parte. E mais uma coisa, Phillip, tire esse sorriso de satisfação do rosto, ou quer realmente irritá-lo?



Abeh estava furioso. E Sir William também. Fizera tudo o que podia, a colônia fora vasculhada e os soldados efetuavam outra revista na cidade dos bêbados e na aldeia. A Yoshiwara era mais difícil. Não se permitia armas ali, o acesso às estalagens era quase impossível sem arrombamento, uma idéia inconcebível, e fadada a criar um incidente internacional. Se ele assim ordenasse, os samurais nos portões insistiriam no mesmo direito. No começo da colônia, ficara acertado que a Yoshiwara seria deixada em paz, para prestar seus serviços, desde que não houvesse tumultos ali.



— Ele diz que não pode voltar sem Hiraga, e que foi prometido que Hiraga seria entregue a lorde Yoshi hoje.



Sir William reprimiu a imprecação. Em vez disso, murmurou:



— Por favor, peça a ele para esperar. Na casa da guarda. Tenho certeza que Hiraga será encontrado em breve, se ainda estiver por aqui.



— Ele pergunta: Ainda aqui? Se não aqui, onde ele está?



— Se eu soubesse, já teria mandado capturá-lo para lorde Yoshi. Talvez ele tenha fugido para Iedo, Kanagawa ou algum outro lugar.



Até mesmo Sir William ficou chocado com a fúria intensa no rosto de Abeh, que disse algumas palavras em japonês, a voz ríspida, depois virou-se e saiu.



— Mas que patife grosseiro!



— Ele disse que é melhor encontrar logo Hiraga, Sir William. — Tyrer esfregou o rosto com a barba por fazer, sentindo-se sujo, ansioso em tomar um banho, receber uma massagem e fazer a sesta, antes de ir se encontrar com Fujiko. A maior parte de sua fadiga se dissipara ao saber que Hiraga não se encontrava preso e agrilhoado. — Não posso deixar de sentir pena de Abeh, senhor. Ele não pode voltar sem Naka... sem Hiraga, pois sua vida está em jogo.



— O problema é dele. Tem alguma idéia do possível paradeiro de Nakama?



— Não, senhor, se ele não estiver na aldeia ou na Yoshiwara.



— Tente descobrir, pois obviamente é importante. — Sir William olhou para Babcott. — Agora, o mais importante. E o paciente, George? Era Anjo?



— Era, sim.



— Viva! Phillip, você parece exausto. Não precisa esperar. Podemos conversar mais tarde. George pode me contar tudo. Se Nakama-Hiraga aparecer, ponha-o a ferros imediatamente.



— Certo, senhor, e obrigado. Antes de eu sair, posso perguntar o que aconteceu em Hong Kong?



Ao chegarem, ambos haviam perguntado, ao constatarem, ansiosos, que o Prancing Cloud voltara, mas Sir William responderia que primeiro tratariam de Abeh.



— Está tudo tranquilo em Hong Kong e tudo tranquilo aqui, graças a Deus Sir William falou sobre o funeral, o retorno de Hoag e o motivo para isso.



— A razão deveria ser confidencial, mas é do conhecimento comum. Tudo se resume a um jogo de espera. Tess está esperando, parece que Angelique concordou em esperar, pelo que diz Hoag, não que ela tenha outra coisa a fazer. Ou está grávida ou não está.



— Se não estiver, saberá dentro de poucos dias — comentou Babcott. — E nós também saberemos.



— Oh, Deus! — murmurou Tyrer. — O que acontece, se ela estiver ou se não estiver?



Sir William deu de ombros.



— Temos de esperar também. E agora pode ir, Phillip. Uísque ou conhaque, George? Importa-se de me contar tudo agora... ou sente-se muito cansado?



— Não. — Os dois se encontravam a sós agora. — Conhaque, por favor. Iedo foi muito interessante.



— Saúde! O que aconteceu?



— Saúde. Antes de Iedo, sabemos mais sobre Hong Kong.



Sir William sorriu. Os dois eram amigos antigos e Babcott era o vice-ministro.



— Tudo correu muito bem. Isso mesmo. Tess me escreveu uma carta particular de agradecimento. Posso lhe contar a maior parte agora. Hoag trouxe três cartas para Angelique, mas ela não sabe disso, diga-se de passagem. Hoag entregou a primeira assim que chegou, não houve reação perceptível, de um jeito ou de outro, nenhuma pista, ele presumiu que era apenas um pedido para que Angelique esperasse. Tess me confirmou o conteúdo dessa carta, que propôs uma trégua, até se determinar se Angelique está ou não grávida. Se Angelique tiver a menstruação, ele entrega uma carta; se não, espera o segundo mês para ter certeza e entrega a outra carta. Hoag jurou que não conhece o conteúdo de nenhuma das duas e Tess nada revelou na carta que me escreveu.



Ele tomou um gole de uísque, pensativo.



— Mas, infelizmente, um item da carta de Tess indica seu pensamento. Os advogados da Struan estão preparando uma petição para pedir no tribunal a anulação do casamento, a “cerimônia ridícula”... ela sublinhou isso... independentemente da legalidade ou ilegalidade, independentemente do resultado da gravidez. Também vão contestar qualquer testamento, se for encontrado alguns em Hong Kong ou no Japão.



— Que coisa! Pobre Angelique... uma coisa terrível!



— Um enfático sim a isso. Minha carta pedindo clemência não teve efeito. Terrível, não é? — Sir William foi até sua mesa, pegou um despacho. — É isso o ue eu queria realmente discutir... confidencial, é claro.



Babcott acendeu o lampião. A luz do dia diminuía depressa. O governador de Hong Kong escrevera, formalmente:





Prezado Sir William:



Obrigado por seu despacho do dia 13. Receio que não seja possível enviar tropas extras no momento. Acabei de receber o aviso de Londres de que todas as tropas são necessárias em outros lugares, que considerações orçamentarias impossibilitam a mobilização de novos recrutas na índia ou em qualquer outro lugar; assim, você terá de operar com o que tem. Contudo, estou enviando outra fragata a vela, de vinte canhões, H.M.S. Avenger, num empréstimo temporário. Mas pode ter certeza de que se houver um grande ataque a Iocoama, este será devidamente punido, no momento oportuno.



Fui instruído por Londres a informá-lo das seguintes diretivas, para ação prudente imediata: deve cobrar a indenização exigida, junto com a entrega dos assassinos (ou testemunhos de seu julgamento e execução), punir e submeter o tirano responsável, Sanjiro de Satsuma. Devo ainda comunicar que os efetivos da marinha e exército que têm agora à sua disposição são considerados mais do que adequados para lidarem com um príncipe insignificante.





Babcott soltou um assovio e só falou após longo momento:



— Um bando de idiotas, todos eles.



Sir William riu.



— Pensei a mesma coisa. Mas feito o comentário, o que você acha?



— “Ação prudente imediata”? Isso é uma contradição.



— A verbosidade diplomática não encobre seus rabos, obviamente.



— Já temos a indenização e...



— O ouro foi adiantado por conta de Sanjiro. Foi um empréstimo, não um pagamento pela parte culpada.



— Tem razão. E é bem provável que os dois assassinos estejam mortos.



— É verdade, mas foi por acaso, não como uma punição pelo crime e não há cem por cento de certeza.



— Concordo. Nós... — Babcott suspirou. — O que eu acho? Aqui entre nós, que você já decidiu desfechar um ataque punitivo contra Sanjiro, provavelmente em Kagoshima, ainda mais agora que Yoshi concedeu sua aprovação tácita.



— Possível aprovação. O despacho e minhas respostas são suficientes para convencer Ketterer de que um ataque foi autorizado?



— Não há qualquer dúvida a respeito. Eles lhe deram as diretivas. O despacho torna o ataque obrigatório, por mais que eu o desaprove e considere uma estupidez.



— Porque é um médico?



— Isso mesmo.



— Se algum dia tiver de assumir o comando, George, espero que esqueça que é um médico.



— Não precisa dizer isso, William. Sei em que lado do pão está a minha manteiga. Enquanto isso, não deposite sua confiança em príncipes, burocratas ou generais, pois eles alegarão conveniência, ao mesmo tempo em que derramam seu sangue de uma distância segura. — Babcott levantou seu copo. — A Londres, Por Deus, como estou cansado!



— Enquanto isso, lembre-se que Maquiavel também disse: A segurança do Estado é o dever supremo do soberano ou algum outro chavão parecido.— Os olhos de Sir William faiscaram. — Agora, passemos a Anjo.



Babcott contou tudo. E, sendo indagado, deu seu diagnóstico abalizado.



— Seis meses. Um ano, não mais do que isso. Dependendo dos resultados dos testes.



— Interessante...



Sir William pensou bastante, por longo tempo. Lá fora, a noite assentara, a esquadra se recolhia. Ele fechou as cortinas contra as correntes de ar, foi até a lareira, atiçou o fogo.



— Pondo esse problema de lado por enquanto, minha propensão é ordenar uma presença naval imediata ao largo de Kagoshima, seguindo-se o bombardeio, se Sanjiro não nos der satisfações... tanto em benefício de Yoshi, Anjo e o Conselho de Anciãos, mas também pelo patife do Sanjiro. Especialmente por Yoshi.



— Enviar a esquadra para lá deixará a colônia exposta. O que me diz das informações sobre samurais nos cercando... vimos uma grande quantidade ao longo da Tokaidô.



— É um risco que temos de assumir.



Babcott fitou Sir William com firmeza e não disse mais nada. A decisão não era sua. Obedeceria feliz, como todos os outros, insistindo em participar da expedição. Ele se levantou.



— Acho que vou tirar um cochilo antes do jantar. Não dormi muito ontem à noite. Antes que eu me esqueça, Phillip fez um excelente trabalho. Iniciarei os testes mais tarde e o informarei assim que souber de alguma coisa.



— Quer alguma coisa para comer? Às nove horas? Está certo. E obrigado por Anjo, isso é muito importante. Torna Yoshi ainda mais importante. Se é que podemos confiar nele. Se.



— Nesta terra, isso é sempre um grande problema. — Uma pausa e Babcott acrescentou, ainda injuriado pela atitude de Tess: — Lamentável essa idéia de ação judicial. Será terrível para Angelique, não acha?



— A vida alguma vez foi justa, meu velho?







Na hora do jantar, Angelique bateu na porta do gabinete do tai-pan, vestida para sair.



— Albert?



— Entre. Ei, adorei o chapéu!



Era um elegante chapéu para jantar, discreto, ainda apropriado para o luto, azul escuro, mas com umas poucas flores de seda, que ela prendera na faixa.



— Obrigada. Está trabalhando até tarde.



— Faz parte do emprego.



Como todos os outros, ele especulava sobre o que continha a carta de Tess para Angelique. Todos os rumores mais absurdos circulavam pela colônia, de que Tess ordenara que ela deixasse a Ásia imediatamente a uma acusação de assassinato. Não havia nenhum sinal no rosto de Angelique, apenas uma cativante melancolia.



Na carta que mandara para ele, Tess advertira-o a ser bastante cauteloso antes de assumir quaisquer compromissos sobre armamentos e, se propostos, que os mantivesse confidenciais. E usasse McFay, se necessário.





Pedi a ele que cooperasse com você. Claro que o principal interesse de McFay será promover o seu próprio negócio, mas você deve tratá-lo como amigo. Agora que o Sr. Edward Gornt assumiu o controle da Brock no Japão, ele é o inimigo — tome cuidado com esse homem, é mais astucioso do que presumimos. Quanto àquela outra pessoa, o Dr. Hoag concordou em me ajudar. Soube que ela ainda ocupa aposentos em nosso prédio, concedidos por meu filho. Você será informado mais tarde de novas disposições.





— Onde vai jantar? — indagou MacStruan. — Na legação francesa?



— Aceitei um convite para jantar no prédio ao lado, com o Sr. Gornt. — Angelique viu o rosto dele endurecer. — Foi um convite para jantar no último minuto, com amigos comuns, Dmitri e Marlowe. Ele me pediu para convidá-lo a se juntar a nós, e me escoltar, se... está livre?



— Lamento, mas não é possível. Terei o maior prazer em levá-la até a porta, e depois ir buscá-la, mas é o escritório da Brock and Sons, ele é o chefe, e eu trabalho para a Casa Nobre.



— Deveriam ser amigos e poderiam continuar a ser concorrentes nos negócios. Ele era um grande amigo de meu marido, de Jamie e meu.



— Lamento, mas o problema é meu, não seu. — MacStruan tornou a sorrir. — Vamos.



Pegando Angelique pelo braço, sem se dar ao trabalho de vestir um capote, ele conduziu-a para o frio da rua. O vento agitou o chapéu dela, mas não o deslocou. Angelique o prendera com uma echarpe de chiffon.



— Boa noite, madame.



O guarda na porta da Brock fez uma reverência.



— Boa noite. Obrigada, Albert. Não precisa vir me buscar. Um dos outros me acompanhará na volta. É melhor ir agora ou vai pegar um resfriado.



Ele riu e se foi. No mesmo momento, Gornt apareceu para recebê-la.



— Boa noite, madame... puxa, está deslumbrante!



Agora, enquanto ele pegava seu agasalho, a preocupação de Angelique tornou a se avolumar. Que trunfos? Uma explosão de risos veio de uma sala interior. Ela reconheceu Marlowe. Viu que o guarda se afastara, não havia criados por perto e se encontravam a sós por um instante.



— Edward — sussurrou ela, a preocupação prevalecendo sobre a cautela — por que tem tanta certeza de que tudo vai acabar bem para mim?



— Tess me convidou a voltar. Não se preocupe, está sob controle. E é melhor deixarmos para conversar durante seu passeio amanhã... esta noite é apenas para uma boa conversa entre amigos, um prazer gentil. Sinto-me honrado por ter aceito meu convite... graças a você é que sou o chefe aqui.



Gornt pegou-a pelo braço e acrescentou, em voz normal:



— Seja bem-vinda à Brock and Sons, Angelique. Vamos entrar?



A sala de jantar era tão grande quanto a da Struan, com o mesmo luxo, a prataria da mesma qualidade, o vinho superior, o serviço de mesa mais rico. Criados chineses de libré. Marlowe, Pallidar e Dmitri postavam-se à frente do fogo a crepitar, esperando para cumprimentá-la. Beijaram sua mão, admiraram seu chapéu, que ela manteve na cabeça, como era o costume, Marlowe e Pallidar em seus uniformes informais. E enquanto Angelique os cumprimentava e escutava, com discreto charme, seu motor interior avaliava Gornt, o que ele dissera e o que faltava.



— Vamos sentar, agora que nossa convidada nos honra com sua presença?



Gornt instalou-a numa extremidade da mesa. Foi ocupar a outra. A mesa era bastante pequena para que o jantar fosse íntimo, bastante grande para ser impressiva.



— Senhores, um brinde! — disse ele, erguendo seu copo de champanhe. — À dama!



Eles beberam e os olhos de Gornt não se desviaram dos olhos de Angelique por um segundo sequer. Um discreto convite. Ela sorriu em resposta, nem sim nem não.



Há tempo suficiente, pensou ele, satisfeito por ser o anfitrião e ainda mais satisfeito consigo mesmo. Restava muita coisa a contar. Talvez a melhor parte. Mas não para ela.



No último dia em Hong Kong, Tess Struan mandara chamá-lo mais uma vez, secretamente.



— Examinei todos os documentos, Sr. Gornt. Não há uma certeza absoluta de que poderão sustentar seu plano para a destruição dos Brocks.



— Acho que vão, madame — respondera ele, impressionado pelo quanto ela sabia sobre os negócios. — Com toda sinceridade, acredito que possui tudo o que é necessário para abrir a caixa de Pandora. — Era o nome em código que haviam combinado. — Só falta uma última peça do quebra-cabeça para completar a imagem e garantir o sucesso.



— E qual é?



— O sinete oficial de Norbert. Está no seu cofre em Iocoama.



Tess suspirara, recostara-se em sua cadeira toda lavrada. Não havia necessidade que qualquer dos dois articulasse que aquele sinete, quase que em qualquer documento em papel timbrado, aposto da maneira correta, validava o que estava escrito, comprometendo por completo a Brock de Iocoama.



Também não havia necessidade de dizer em voz alta que todos os tipos de informações incriminadoras podiam ser escritas agora, com data anterior, e encontradas ou introduzidas de forma sub-reptícia numa pilha. Quem poderia contestar a carta, com Greyforth morto?



Ambos sabiam do valor.



Morgan e Tyler Brock haviam especulado a fundo no esquema complicado, mas incrivelmente engenhoso, para açambarcar o mercado do açúcar havaiano — uma operação já consumada, em princípio — negociando a colheita em troca do algodão sulista, que tinham vendido antes, num negócio legal, a grupos franceses de confiança. Como os franceses eram aliados históricos dos Estados Unidos, não se encontravam sujeitos ao bloqueio nortista, e naquele caso contavam com certa ajuda no Congresso e outras salvaguardas oficiais. O algodão seguiria da França para Genebra, ainda numa operação legal, e de lá para os teares do Lancashire, em outra operação legal, para alimentar as fábricas quase paralisadas, ansiosas por matéria-prima.



Um risco mínimo: se o governo da União descobrisse com certeza o destino final — em termos formais, a Grã-Bretanha era neutra, mas a maioria dos britânicos se mostrava ativa no apoio à Confederação — e isso chegasse ao conhecimento público, a exportação poderia ser suspensa por um confisco. Era de fato um risco mínimo, por causa do acordo de alto nível dos intermediários franceses, que na verdade, como provavam pela primeira vez os documentos obtidos por Gornt, formavam uma companhia que pertencia à Brock. Além disso, a não-interferência governamental era mais do que certa, porque grande parte do açúcar, também desesperadamente necessário, seria negociada em troca de armamentos desviados da União, que os Brocks logo despachariam para a Ásia. Os lucros projetados eram imensos. A posição da Brock na entente Ásia-América se tornaria preeminente, quem quer que vencesse a guerra civil. Na Ásia, a companhia se tornaria suprema. E não havia a menor possibilidade de o plano fracassar, porque o Victoria Bank, de Hong Kong, era o subscritor.



O banco, o maior de Hong Kong, sustentava todo o esquema, com a aprovação do conselho diretor de doze homens, entre os quais figurava Tyler Brock. As ações e a liquidez da Brock and Sons eram a garantia nominal. Para todos os efeitos e propósitos, o Victoria era dominado pela Brock. O velho Brock fora um dos fundadores, em 1843, escolhera os outros membros da diretoria — excluindo para sempre qualquer diretor da Struan — conservara uma participação acionária de Quarenta por cento e mantinha o controle dos votos em caráter permanente, numa proporção no mínimo de nove para três. Ao mesmo tempo em que apoiava a Brock nas operações internacionais, o conselho diretor concordara em destruir a Struan pela posse de todas as suas dívidas, que venceriam a 30 de janeiro — esse prazo e os métodos questionáveis da aquisição clandestina e a longo prazo também eram evidentes nos documentos de Gornt.



Excitado, Gornt ressaltara que a Brock and Sons, pela primeira vez, se tornara vulnerável — nunca antes haviam oferecido o controle da companhia como garantia. O Victoria era a chave para a Caixa de Pandora. E a chave para o banco era o conselho diretor. Era preciso subvertê-lo, inverter sua posição, retirar o apoio financeiro a Tyler e Morgan no dia correto, deixando-os desprovidos, sem os recursos necessários para acionar sua máquina. Enquanto isso, evidências do plano, tiradas dos documentos de Gornt, e o aviso de que o Victoria não mais apoiaria a operação seriam despachados num clíper para Washington, indo parar nas mãos certas, que deveriam promover o confisco, já que sem o apoio do banco não haveria açúcar para negociar por algodão ou armamentos. Mas isso tinha de ser feito agora, antes que fosse reestruturado o controle acionário do banco.



Como inverter a posição do conselho diretor era a essência do plano de Gornt.



Os documentos revelavam fatos bastante embaraçosos sobre os antecedentes de dois membros pró-Tyler Brock, tão graves que seus votos penderiam para quem possuísse aquelas provas. Sete a cinco. Havia mais fatos sobre um outro homem, embora menos perniciosos, e mais questionáveis. Um possível seis a seis.



A idéia de Gornt era de que Tess procurasse o presidente do conselho, numa reunião particular, apresentasse os fatos, informasse que os detalhes do esquema já estavam a caminho de Washington e apresentasse uma proposta.



— Eles puxam o tapete da Brock e se inclinam para você e a Struan, concedendo uma prorrogação de seis meses ao vencimento das dívidas, duas vagas no conselho, o imediato controle da Brock, com a venda do patrimônio a um preço de barganha, o suficiente para cobrir o débito, deixando Tyler e Morgan Brock se afogarem no açúcar que não poderão pagar. E, por último, o banco concorda em dividir os quarenta por cento de ações confiscados, que pertenciam à Brock, em quatro partes, uma para o presidente do conselho, outra para dois membros à sua escolha, uma para a Casa Nobre.



— Em troca do quê? Por que o banco haveria de trair Tyler? — perguntara Tess. Jogo duplo, não é esta a expressão que os americanos usam?



— É, sim, madame, mas neste caso seria triplo. Porque o conselho aceitaria a proposta? Porque sairão como grandes vencedores, o presidente e os outros, porque odeiam Tyler Brock, em particular, ao mesmo tempo em que o temem, como todas as pessoas. Não a odeiam, porque representa a Casa Nobre, não constitui uma ameaça para eles. O ódio, não apenas o dinheiro, é a graxa que faz as engrenagens do mundo funcionarem.



— Não concordo, mas vamos deixar isso de lado. De volta a seu sinete mítico. O que faria com ele? — O sorriso de Tess fora cético. — Se conseguisse obtê-lo.



— Qualquer coisa que quiser, madame.



— Talvez devesse trazê-lo para cá, no Prancing Cloud.



— Sinto muito, mas seria cedo demais, a menos que deixe o navio esperando por uma ou duas semanas. Eu o trarei no momento oportuno.



— Por que a espera? Mande por Strongbow, que é de confiança.



— Eu o tratei no momento oportuno.



Os olhos de Tess, tão claros e parecendo inocentes na maior parte do tempo, penetraram-no como ferro derretido e ele acrescentara:



— Prometo.



— Vamos deixar isso de lado, por enquanto. O preço, Sr. Gornt?



— Prefiro lhe dizer quando voltar, madame. Ela rira, sem qualquer humor.



— Tenho certeza que sim. Pensei que me conhecesse bastante bem, a esta altura, para não tentar me pressionar, nem à Struan. Pode protelar até o último momento, quando terei de desfechar o ataque de qualquer maneira, contra Tyler e contra o banco, deixando a Struan exposta demais. Assim, eu teria de concordar com suas exigências, quaisquer que fossem.



— Deve haver confiança dos dois lados. Eu lhe dei as evidências de que precisa para destruir Tyler Brock e Morgan, por um acordo que me promete no futuro. Estou confiando que cumprirá a sua parte, madame. Não é pedir demais um pequeno adiamento. Juro que voltarei a tempo. Trarei de Iocoama a glacê do bolo e o preço será justo.



— Jamais gostei de bolo, Sr. Gornt, nem de glacê... qualquer possibilidade de gostar dessas coisas me foi arrancada por meu pai, que desaprovava essas coisas, quando eu era pequena. O preço?



— Posso lhe garantir, madame, que será um preço que terá o maior prazer em pagar, por minha honra e minha palavra como cavalheiro.



Ela o fitara nos olhos.



— Posso também lhe assegurar, Sr. Gornt, que se me trair cuidarei para que se torne um homem extremamente infeliz, além de persona non grata na Ásia e por todo o Império... por minha honra e minha palavra como tai-pan da Casa Nobre...







Gornt sentiu um calafrio, recordando a maneira como as palavras de Tess o envolveram, o orgulho com que ela dissera tai-pan da Casa Nobre, mesmo quando acrescentara “embora em caráter temporário”. Compreendera, de repente, que aquela mulher era de fato tai-pan agora, compreendera que quem tinha o título não exerceria o poder. Compreendera, com uma pontada de medo, que teria de lidar com ela por muito tempo, que ao destruir a Brock talvez criasse um monstro que acabaria por destruí-lo também.



Deus do céu, ela pode me retalhar em pedacinhos, a seu capricho! Como posso convertê-la numa aliada e mantê-la como aliada? Ela tem de ser minha aliada. Qualquer que seja o custo.



E depois as risadas de Dmitri e Marlowe o trouxeram de volta. Seu mundo tornou a entrar em foco. Luz de velas, a mesa de jantar, a melhor prataria, bons amigos. Seguro em Iocoama, o sinete já retirado do cofre e escondido, uma carta já escrita, com data anterior e a marca do sinete, corroborando a prova insuficiente contra o membro fundamental do conselho, outra carta insinuando um conluio do presidente. Sem eles, o conselho vai desabar em nosso colo como um castelo de cartas soprado, não terão outro jeito, não conseguirão resistir à sua única chance de vingança contra Tyler e Morgan Brock. E não há necessidade de temer Tess Struan. Ela está em meu poder, assim como meu futuro se encontra em suas mãos.



Tenho muitos motivos para me sentir satisfeito. Aqui estou, aos vinte e sete anos, a cabeça de Morgan quase na bandeja, sou o futuro tai-pan da Rothwell-Gornt, no comando de uma mesa esplêndida, criados à espera de minhas ordens E ela também está aqui, linda, potencialmente rica e me amando, por mais que tente ocultar, minha futura noiva, qualquer que seja o resultado... uma criança de Malcolm só torna o preço mais alto para Tess, um preço espetacular, mas também uma barganha, que ela pagará com a maior satisfação!



“Saúde e uma vida longa”, brindou ele, silenciosamente, erguendo o copo, para Angelique e para si mesmo, e para os dois juntos, convencido de que seu futuro era ilimitado.



Os convidados não notaram o brinde particular, absorvidos demais na conversa, disputando a atenção de Angelique. Tranquilo, ele os observou. Mais do que tudo, observou-a. Até que bateu na mesa.



— Angelique, cavalheiros, a atenção de todos, por favor. Temos uma sopa hindu de caril com xerez, peixe assado com cebolas e azeitonas, acompanhado por um Pouilly Fuissé gelado, sorvete e champanhe, depois o rosbife com batatas e St-Emilion... o cozinheiro “encontrou” uma excelente peça de carne Struan... não se preocupe, madame — disse ele, rindo —, foi comprada, não roubada. Depois, um pastelão de galinha e, no final, uma surpresa para acabar com todas as surpresas.



— Qual é? — indagou Marlowe.



— Espere para ver.



Gornt olhou para Angelique. Ela sorriu, seu sorriso enigmático, o sorriso que tanto o excitava, como a Mona Lisa que admirara no Louvre, numa viagem a Paris... e que nunca mais seria esquecida.



— Acho que devemos confiar em nosso anfitrião, capitão — disse ela, suavemente. — Não concorda?


55





Domingo, 11 de janeiro:





Angelique despertou de madrugada com um suor frio, de volta no tempo, de volta à legação francesa, os vidros da mama-san na mesinha de cabeceira, um já vazio, o outro pronto para desarrolhar e tomar, assim que as cólicas começassem.



Descobrindo-se coberta na cama, em sua própria suíte, os carvões em brasa ainda luzindo, a luz noturna projetando sombras firmes, o terror se dissipou, a pulsação voltou ao normal e ela esperou pelas indicações. Nada. Nem cólicas, nem dor na barriga. Um tempo de espera. Ainda nada. Graças a Deus, pensou ela, devo ter sonhado que haviam começado. Relaxou, observando as brasas, ainda não de todo desperta, boas imagens nas brasas, retratos felizes dos telhados de Paris ao pôr-do-sol, fundindo-se com a paisagem de verão da casa dos seus sonhos na Provence, o bebê dormindo contente em seu colo.



Jésus, Marie, por favor, não deixe que comecem. Por favor.



Babcott a visitara na tarde anterior.



— Passei por aqui e resolvi entrar para saber como você está.



— Não precisa inventar mentiras — protestara ela, em tom ríspido. — O Dr. Hoag disse a mesma coisa esta manhã. As mesmas palavras.



— Calma, Angelique. Acontece que eu estava realmente passando por aqui e pensei em vê-la. Para tranquilizá-la.



— É mesmo?



— É, sim. O velho Hoag disse que você anda um pouco sensível. E com toda razão. — Ele balançara a cabeça, sorrindo. — E para dizer o que você não lhe deu a oportunidade de falar, que é bem possível que sua regra atrase, ou que tenha algumas cólicas ligeiras, que vão desaparecer logo, para voltar da maneira apropriada um ou dois dias depois. Ou não voltar.



— Por que vocês, médicos, são tão sábios, mas não sabem nada, realmente nada, nem mesmo sobre uma coisa tão simples como ter ou não ter um bebê? — gritara ela, exasperada e cansada dos olhares de esguelha nos últimos dias, os súbitos silêncios quando passava. — Deixem-me em paz, vocês dois. Avisarei quando precisar de você, se é que vou precisar. Deixem-me em paz!



Ele se retirara, acabrunhado, mas Angelique não se importara. Desde a discussão acalorada com o padre Leo no último domingo que ela se mantinha tão retraída quanto era possível.



— Odeio aquele homem — murmurou ela agora. — Odeio-o por me deixar tão transtornada. Ele é infame, não é um homem de Deus.



Durante a confissão, o padre Leo dissera:



— Talvez você deva pedir perdão por esse falso casamento de que participou minha criança. Sei que foi induzida a isso, enganada, mas mesmo assim é pecado.



— Não fui enganada, padre, e não é pecado, nem uma coisa falsa. É absolutamente legal, nos termos da lei.



— A lei herética? É um falso casamento. Está querendo ser cega. Claro que não é legítimo, não é válido, aos olhos de Deus.



— Mas é legítimo perante a lei inglesa! — protestara ela, fervendo de raiva. — E é também aos olhos de Deus!



— Não é, não, minha pobre criança, e você sabe que não é. A Igreja não reconhece um casamento herético, muito menos um casamento celebrado por um mero capitão de navio. Aos olhos de Deus, você não está casada.



— Estou, sim. A Igreja de Malcolm reconhece meu casamento, a lei de meu marido reconhece. Estou legalmente casada.



— Não diga bobagem. E não tente enganar a si mesma. Você é católica e a verdadeira Igreja não reconhece um casamento assim. Arrependa-se, minha criança.



— Sou casada e ponto final!



Ela se levantara.



— Espere! Ainda não acabou, minha criança. Para lhe conceder a absolvição, você deve admitir seus pecados, a fim de se apresentar perante Ele sem culpa! Como posso lhe conceder a absolvição?



— O Deus deles é o mesmo que nosso Deus! — exclamara ela, cega por lágrimas de raiva e frustração. — Posso cultuá-lo na igreja deles, tanto quanto aqui!



— Arrisca-se à danação e ao tormento eterno. À excomunhão, à retirada dos sacramentos. Tome cuidado, pois sua mente foi dominada pelos hereges. Reze por perdão...



Ela saíra correndo.



André e Seratard ali se encontravam na ocasião. Mais tarde, André perguntara qual fora o problema, e ela contara. André comentara:



— Milhares de católicos estão casados e felizes sob o dogma protestante, e vice-versa, independentemente do que alegam as hierarquias de qualquer das Igrejas.



— Estou casada ou não, André?



— Está, sim, de acordo com a lei britânica, de acordo com a lei naval britânica, até que um tribunal britânico diga que não está.



— Mas não de acordo com a Igreja?



— Para a Igreja deles, sim, dependendo do que falei, para a nossa, não. Já conhece a resposta a isso, não?



— Odeio aquele homem.



— Ele é um padre. Nem todos são bons, ambos sabemos disso também. Escute, Angelique, sobre o seu... o seu momento... assim que souber, de um jeito ou de outro, avise-me, por favor, em particular, para que possamos começar a planejar. Henri espera a qualquer dia a aprovação do embaixador francês à sua condição de tutelada do Estado. Não se preocupe. Prometi que a defenderíamos e a seus interesses, e é o que vamos fazer.



André se retirara, deixando-a a remoer.



Não era casada segundo a Igreja? Pois então que se danasse a Igreja de Roma, pensara ela, doente de apreensão. Cuidado! Nunca admita isso abertamente, mas nunca mesmo. Você é francesa, o povo francês compreende a Roma católica, sua corrupção e heresia, seus papas mal orientados. Todas as noites, em suas orações, ela pedia, mais do que isso, implorava por orientação e socorro à Santa Mãe.



A segunda-feira e todos os outros dias se arrastaram, sempre olhares, indagações tácitas, por isso ela passara a sair cada vez menos. Para passar o tempo, lia e dormia, lia e escrevia cartas e iniciara uma história sobre uma jovem francesa que naufragava em Iocoama. Interrompera-a abruptamente, queimara as páginas escritas, ao reviver Kanagawa e ele, as noites e os dias com Malcolm, a noite de núpcias no Prancing Cloud.



O Prancing Cloud já zarpara. Sentira-se contente ao ver aquele presságio de más notícias sumir na distância.



Desde o seu passeio, quando tornara a conversar com Gornt — sem tomar conhecimento de mais nenhuma novidade —, haviam decidido, por consenso mútuo, que não se encontrariam por alguns dias. Por duas vezes ela convidara Maureen Ross para o chá, a segunda recebendo-a deliberadamente na cama, para encorajar os rumores de que tinha uma febre. As conversas foram corriqueiras, sobre moda, os problemas na colônia, a vida aqui, nada sério. Mais tarde, tais visitas seriam divertidas, quando pudessem conversar mais sobre assuntos e pensamentos íntimos. Não agora. Mas ela gostava de Maureen, que trouxera livros e revistas, falara sobre o novo escritório de Jamie, como ele vinha trabalhando por longas horas, e manifestara, com certa inibição, sua esperança de que casassem em breve.



A única pessoa que ela gostara realmente de receber era Phillip Tyrer. Ele fora enviado por Sir William com os melhores votos de rápida recuperação, levara os últimos jornais de Londres, presenteara-a com flores, que comprara na aldeia.



— Por ordem do governo de sua majestade — dissera ele, em francês, com um floreio, seu sorriso infantil e joie de vivre contagiantes.



Phillip conversara por uma hora ou mais, a maior parte do tempo em francês, relatando os últimos rumores. Sobre sua viagem a Iedo, sobre Nakama-Hiraga, Que desaparecera sem deixar o menor vestígio, criando um problema diplomático para Sir William, e sobre o capitão Abeh, que “ainda está esperando, fervendo de raiva, no portão norte”.



— O que vai acontecer, Phillip?



— Não sei. Esperamos que o problema desapareça em breve. Uma pena que tivéssemos de descrever Nakama, qual é a sua aparência agora, e com isso ele não terá muita chance de escapar. O que é lamentável, porque ele era um bom sujeito, me ajudou muito. Não acredito numa só palavra dessa alegação de que ele é assassino. Não arrancamos muitas informações do outro sujeito, o amigo de Nakama, de uma família de construtores de barcos de Choshu. Até levei-o a dar uma olhada em uma de nossas fragatas. Um sujeito muito simpático, mas bastante estúpido não sabia sobre Nakama ou não quis dizer nada. Sir William não queria entregá-lo ao Bakufu, por isso deixou-o ir embora. Uma coisa terrível, Angelique, pois Nakama me ajudou tremendamente... e não apenas com o japonês... se não fosse por ele...



Mais tarde, tomaram uma sopa juntos, e Phillip acabara admitindo, por insistência dela, depois de fazê-la jurar que guardaria segredo, que tinha uma garota, uma garota especial, na Yoshiwara.



— Ela é linda e simpática, Angelique, acho que posso arrumar o dinheiro para o contrato sem sacrificar o Tesouro, a ligação é maravilhosa...



Angelique se divertira por ele parecer tão jovem, invejara-o por seu amor simples e se sentira, comparada com Phillip, muito adulta e sofisticada.



— Eu gostaria de conhecê-la um dia — sugerira ela. — Posso facilmente me esgueirar até sua Yoshiwara, vestida como homem.



— Oh, Deus, não, Angelique! Não poderia fazer isso! Não deve!



Poderia ser bastante divertido fazer isso, pensou ela, rindo, e virou-se na cama, quase adormecida. André me levará. Gostaria de conhecer essa Hinodeh em quem tanto investi. Como será que ela parece?



No limiar do sono, ela teve um espasmo.



Outra cólica, diferente. E mais outra. Totalmente desperta agora. Apreensiva, ela esfregou a barriga e o ventre, a fim de atenuar a dor. Mas não desapareceu e ela compreendeu, com toda certeza, que era a dor antiga e familiar, com a sensação de estar um pouco inchada.



Começara. E seguiu-se o fluxo de sangue. Com o fluxo, todo o seu anseio, preocupação e esperança irromperam. Num desespero total, Angelique começou a chorar, comprimiu a cabeça contra os travesseiros.



— Oh, Malcolm, eu esperava tanto, mas tanto, agora nada me resta para dar, nada restou de você, oh, Malcolm, Malcolm, sinto muito, lamento tanto. Oh, Deus, perdoe... seja feita a sua vontade...



Chorando e chorando, depois de uma eternidade, chorando até dormir, ela tinha mais lágrimas para derramar.







Miss, acorde! Miss tai-tai, café, hem!



Enquanto ela ainda continuava nas brumas do sono, Ah Soh bateu com a bandeja na mesa ao lado da cama e Angelique sentiu o aroma quente e divino de café fresco — presente de Seratard e um dos poucos serviços que Ah Soh podia ou queria fazer direito — envolvendo-a, trazendo-a para o dia sem sofrimento.



Ela sentou na cama, espreguiçou-se, atônita e feliz por se sentir tão alerta, tão bem. As cólicas haviam desaparecido, a dor se desvanecera para o padrão normal, melhor do que o habitual, a sensação de inchaço menor do que o habitual.



E o melhor de tudo, o desespero a deixara. É o milagre DELA, pensou Angelique, reverente. Durante o último mês, em suas orações noturnas à Virgem Maria falando, pedindo, suplicando, uma noite, extenuada pela ansiedade, ela ouvira: “Deixe tudo comigo, minha criança, a decisão é MINHA, não sua.” Ouvira sem ouvir com os ouvidos, mas com seu eu interior. “MINHA decisão, tudo, descanse em paz.” A ansiedade se dissipara.



Era a decisão dela e isso era maravilhoso! Angelique aceitaria o veredito DELA. A vontade de Deus. E fora o que fizera.



Impulsiva, Angelique ajoelhou-se ao lado da cama, fechou os olhos, pediu a sua bênção, expressou seus fervorosos agradecimentos, e outra vez disse que sentia muito, mas agradecia pela remoção do fardo, Sua vontade será feita. Depois, tornou a se meter sob as cobertas, pronta para o café e o mundo. O café naquele momento, nove horas, era um costume aos domingos, mal tinha tempo suficiente para tomar um banho, se vestir e ir à igreja.



Igreja! Por que não?, pensou ela, devo apresentar meus agradecimentos, mas sem confissão.



— Ah Soh, traga meu banho e...



Ah Soh a fitava aturdida, os olhos vidrados. Abruptamente, ela compreendeu que a criada devia ter visto manchas de sangue na parte de trás da camisola. Ah Soh apressou-se em dizer:



— Buscar banho.



Ela se encaminhou para a porta, mas Angelique chegou lá na sua frente e empurrou-a de volta.



— Se contar a alguém, arrancarei seus olhos!



— Não compreender, miss tai-tai — balbuciou Ah Soh, apavorada com o veneno no rosto e na voz de Angelique. — Não compreender!



— Ah, sim, claro que compreende! Dew neh loh moh-ah.



Angelique disse a imprecação em cantonês como ouvira Malcolm pronunciá-la uma ocasião, quando ficara furioso com Chen, que empalidecera ao ouvir. Ele nunca lhe dissera o que as palavras significavam, mas causaram o mesmo efeito em Ah Soh, cujas pernas quase cederam.



— Aiiiii!



— Se você falar, Ah Soh, tai-tai vai... — Furiosa, Angelique esticou as unhas compridas a um milímetro dos olhos da criada chinesa e manteve-as ali. — Tai-tai fazer isto! Compreender?



— Compreender! Segredo, tai-tai! — A assustada criada balbuciou alguma coisa em cantonês, levou os dedos aos lábios, imitando um grampo. — Ah Soh não falar! Ah Soh compreender!



Controlando sua fúria, embora o coração ainda estivesse disparado, Angelique empurrou a mulher em direção à cama e tornou a se deitar. Autoritária, apontou para a xícara de café.



Dew neh loh moh! Sirva meu café!



Cheia de humildade e medo genuíno, Ah Soh serviu o café, entregou a xícara e ali ficou parada, submissa.



— Não fale nada, arrume a cama, limpe as roupas! Segredo!



— Compreender, tai-tai, não falar, segredo, compreender.



— Não fale nada! Ou... — As unhas de Angelique cortaram o ar. —O banho! Ah Soh retirou-se apressada para buscar a água quente, mas antes, ofegante foi sussurrar a notícia para Chen, que revirou os olhos para o céu, e disse:



— Ah, o que tai-tai Tess vai fazer agora?



Depois, Chen saiu correndo, a fim de enviar a notícia pelo navio mais veloz para o ilustre compradore Chen, que lhes ordenara que o informassem de imediato, qualquer que fosse o custo.



O café estava delicioso. Acalmou o estômago e o espírito de Angelique, desfez a ligeira intumescência. Uma das autênticas alegrias de Angelique no mundo era o café da manhã, ainda mais com croissants e Colette, nos Champs-Elysées, num dos elegantes cafés com mesinhas na calçada, lendo a última circular da corte e vendo o mundo passar.



Primeiro, a igreja. Fingirei que nada aconteceu, por enquanto... Ah Soh não ousará contar qualquer coisa. A quem dizer primeiro? Hoag? André? Edward? O Sr. Skye?



Já conversara a respeito com Heavenly Skye. Seu conselho fora o de que não tinham opção senão esperar, descobrir o que Hoag faria, e depois o que Tess faria. A carta de Tess para ele fora sucinta: Prezado Sr. Skye: Sei que meu filho tinha negócios com você. Suspenda e desista de todas as ações, de meu filho e minhas. Nada de bom resultará disso.



— Uma escolha interessante das palavras — comentara Skye.



— Você parece assustado, como se já tivéssemos perdido.



— Absolutamente, Angelique. Nossa única posição é a de esperar. A iniciativa cabe a ela.



— Pela próxima correspondência, quero que você escreva para os advogados da Struan, pedindo um relatório sobre o espólio do meu marido.



Era uma idéia sugerida por André, favorável à abertura de uma ofensiva imediata.



— Com prazer, se você quiser cair na armadilha dela.



— Como assim?



— Sua única postura é a de criança-viúva magoada e injuriada, atraída a um casamento prematuro por um homem de vontade forte... não a viúva pobre e gananciosa de um marido rico e pródigo, que se pôs contra os desejos da mãe ao casar com uma mulher pobre, de antecedentes questionáveis... por favor, não se zangue, só estou lhe dizendo o que pode e provavelmente será dito. Deve esperar, minha cara, torcendo para que Tess se comporte como um ser humano deveria. Se a criança de Malcolm... hum... está a caminho, isso seria uma grande ajuda.



— E se não estiver?



— Vamos considerar essa possibilidade quando acontecer... isto é, quando não acontecer. Haverá muito tempo para...



— Não tenho muito tempo. Meu dinheiro vai acabar.



— Seja paciente...



Mon Dieu, paciência! Ah, os homens e sua paciência!



Agora que Angelique sabia, sem a menor sombra de dúvida, que não esperava uma criança de Malcolm, tratou de pôr de lado todas as idéias que formulara para o caso de um bebê e concentrou-se no outro caminho.



Uma investida violenta e imediata contra aquela mulher? Não, isso fica para mais tarde, o Sr. Skye tem razão nesse ponto. Preciso primeiro descobrir o que ela vai fazer. Para isso, tenho de contar a Hoag ou Babcott. Hoag lhe entregara a mensagem, por isso deveria ser o escolhido. Não há necessidade que ele me apalpe. Nenhum dos dois. Posso contar a ele. Imediatamente ou mais tarde? Vale a pena consultar André, ou Edward? Acho que não.



Não ter um bebe para sustentar, para considerar, torna minha vida mais simples, melhora as minhas possibilidades de outro casamento. O que quer que aconteça, como toda moça no mundo, preciso ter um protetor, o marido certo... ou, em última análise, qualquer marido.



Sobre as minhas perspectivas: Não tenho dinheiro suficiente para voltar a Paris e lá me instalar. Não tenho perspectivas exceto por um acordo com a Struan... não, não com a companhia, mas com aquela mulher. Até mesmo Edward está preso a isso. Especialmente ele. Sem um bom acordo para mim, e a benevolência daquela mulher para seus negócios, o interesse dele por um casamento vai se dissipar. O que é justo, porque o meu vai se dissipar ainda mais depressa. Ele está apaixonado por mim, eu não estou apaixonada por ele, embora goste muito dele, mas a ligação não tem lógica sem a segurança financeira mútua.



Tudo sempre volta àquela mulher, qualquer que seja a idéia que surja, refletiu Angelique, satisfeita com a maneira como sua mente funcionava, fria e lógica, sem se angustiar, apenas avaliando todos os aspectos como uma mulher prudente devia fazer.



Posso me agüentar por um ou dois meses, não mais do que isso... se não der mais dinheiro a André. Daqui apouco meus vales acabarão e, a qualquer dia, Albert pode dar ordens para suspender meu crédito e me expulsar. Quase que posso ler sua mente rancorosa. Mas não importa, sempre posso me mudar para a legação francesa. Mas eles não me apoiariam por muito tempo.



Sir William? Não há razão para que ele faça mais do que já fez. André é o único fora do alcance daquela mulher que pode me ajudar. Pense com objetividade, Angelique, isso é um erro! Quando André perceber que a fonte do dinheiro está secando, ou já secou, não há como prever o que ele é capaz de fazer, em desespero. Pode vender a Tess aquele papel horrível, pode oferecer a ela a prova sobre... sobre o passado. Ele é um cínico, bastante insensível e bastante esperto para guardar a prova de que paguei o medicamento com os brincos que perdi. E se contentar com muito menos dinheiro do que eu. Mesmo assim, ele é o único homem por aqui bastante insidioso para combatê-la. Edward também pode enfrentá-la, mas apenas até certo ponto. Ele não se arriscaria a perder a Rothwell-Gornt.



Devo persuadir Edward a retornar a Hong Kong imediatamente? Ou Hoag, que é um amigo, ou uma espécie de amigo, e foi o homem que ela enviou a mim? Ou André? Não, ele não, pois neste caso eu não dormiria um instante sequer, sabendo de sua presença em Hong Kong com aquela mulher, sem que eu possa vigiá-lo.







Para ela, a igreja foi um imenso sucesso, mesmo com a sua melancolia. Vestira-se de preto, como sempre, um véu cobrindo o chapéu e o rosto. Com o livro de orações na mão, ela partiu pelo dia tempestuoso. Passou direto pela igreja católica no passeio, misturando-se com a multidão que seguia para a Santíssima Trindade. Entrou na igreja, sentou no último banco, vazio, no instante seguinte se ajoelhou e começou a rezar. Uma onda percorreu a nave, já cheia pela metade, ressoou pelos retardatários, adquiriu força, espalhou-se por toda a colônia, estendeu-se até a cidade dos bêbados.



— Deus Todo-Poderoso, Angel foi à igreja, à nossa igreja...



— À Santíssima Trindade? Não diga besteira. Ela é católica...



— Besteira ou não, ela está lá, na Santíssima Trindade, brilhante como um morango, toda vestida de vermelho e sem o calção por baixo...



— Ora, pelo amor de Deus, não espalhe rumores...



— Não é nenhum rumor, ela nunca usa um calção por baixo...



— Na Santíssima Trindade? Oh, Deus! Ela se tornou uma de nós?



— O velho Tweety vai se mijar de alegria...



Maureen e Jamie chegaram logo em seguida. Hesitaram por um momento, ao lado do último banco, prestes a dizer “podemos sentar com você?”, mas Angelique continuou ajoelhada, como se estivesse imersa em oração, e não olhou para eles, embora consciente da presença dos dois, nem um pouco invejosa do vestido de Maureen, de um verde alegre, casaco e chapéu combinando, com uma pluma de chiffon amarela pendendo por trás. Mais um instante e os dois seguiram adiante, sob a pressão dos outros, não querendo incomodá-la... justamente o que ela queria. Depois da fervorosa oração inicial, de agradecimento pela força para dominar seu vasto desapontamento, Angelique continuou ajoelhada, a almofada para os joelhos confortável. Protegida pelo véu, os olhos arregalados se mantinham atentos, querendo observar tudo o que aconteceria. Era o primeiro serviço protestante que ela testemunhava.



Não havia tanta reverência quanto em sua própria igreja, mas estava lotada, com braseiros aqui e ali contra a umidade, e a presença de todos os que podiam andar. Os vitrais eram ricos, o altar e ornamentos mais austeros do que imaginara.



Outros pensaram em parar ali, para cumprimentá-la, ou apenas acenar com a cabeça, com graus variados de satisfação ou espanto, ansiosos em sentar ao seu lado. Mas não o fizeram, também por não desejarem interrompê-la. Gornt escolheu um banco no outro lado.



Assim, Angelique ficou sozinha, e dali a pouco o serviço começou. O primeiro hino, e ela imitou os outros, levantando-se ao mesmo tempo, sentando-se quando todos sentavam, rezando quando rezavam, mas sempre para a Virgem Maria, escutou o sermão que o reverendo Tweet gaguejou, atordoado com sua presença. Mais hinos e canto, a bandeja, um momento embaraçoso, quando ela procurou por algumas moedas, outro hino e a bênção, e depois terminou, com um suspiro audível e bem merecido.



A congregação levantou-se, enquanto o vigário se retirava para a sacristia, acompanhado pelo velho sacristão. A maioria começou a se arrastar para a saída, os paladares já prontos para o tradicional almoço de domingo, a melhor refeição da semana: rosbife, pastelão de Yorkshire, batatas assadas, para os afortunados que haviam conseguido obter uma parte do último carregamento de carne australiana conservada no gelo.



Uns poucos permaneceram para uma oração final. A de Angelique foi um pedido de perdão por ter vindo àquela igreja, mas sentia-se confiante de que Deus compreenderia que era apenas um protesto momentâneo e necessário contra o padre Leo. Todos, ao sair, observaram-na. Depois, ela juntou-se aos últimos, acenando com a cabeça e dizendo “bom dia” aos cumprimentos sussurrados.



O vigário se postara do lado de fora da porta, cumprimentando algumas pessoas, olhando furioso para outras. Quando ela apareceu, Tweet se tornou ao mesmo tempo extasiado e gago:



— Oh, miss Ange... oh, madame, como é maravilhoso vê-la aqui, seja bem-vinda à Santíssima Trindade e que possamos vê-la mais vezes... se há alguma coisa que eu possa explicar... Oh! Não? Espero que tenha gostado, volte de novo, por favor, foi maravilhoso vê-la aqui... será sempre bem-vinda...



— Obrigada, reverendo.



Angelique fez uma rápida mesura, subiu apressada pelo caminho, foi andando pelo passeio. Sir William a esperava, junto com Babcott, agasalhados como todos contra as rajadas de vento.



— É um prazer vê-la, ainda mais aqui — disse Sir William, com sinceridade. — Temos bastante orgulho da Santíssima Trindade e é bem-vinda, muito, todos nos sentimos felizes com a sua presença. O vigário se mostrou um pouco desligado hoje, sinto muito, em geral ele é muito bom, sem trovejar com o fogo eterno. Gostou do serviço?



— Foi bastante diferente, Sir William. A missa em inglês, e não em latim, foi exótica.



— Imagino que sim. Podemos acompanhá-la?



— Será um prazer.



Partiram em passos rápidos, trocando cortesias e perguntas amenas, evitando o assunto central na mente de todos. O tempo está horrível, não acha? A partida de futebol ontem à tarde foi sensacional... poderemos escoltá-la na próxima semana. Já leu os últimos jornais? Já soube que os Artistas de Iocoama farão uma apresentação de Romeu e Julieta e que a Sra. Lunkchurch consentiu gentilmente em fazer a Julieta, contracenando com o Romeu da Sra. Grimm?



— Alguma vez já foi ao teatro ou representou, madame?



— Apenas peças infantis sobre a natividade, no convento, e não muito bem... Oh!



Uma rajada de vento arrancou a cartola de Sir William, e arremessou-a girando pelo ar. Babcott mal teve tempo de segurar a sua. Angelique não foi bastante rápida e seu chapéu saiu voando, assim com vários outros ao longo do passeio, sob um coro de imprecações, lamentos, aclamações e risos. Ela juntou-se à confusão e partiu atrás do seu, mas Babcott recuperou-o, pouco antes que rolasse para a praia. A cartola de Sir William foi recolhida por Phillip Tyrer, que se aproximou apressado para entregá-la, e depois correu atrás da sua.



— Minha melhor cartola — murmurou Sir William, irritado, limpando a lama, com uma aparência suspeita de estrume.



O chapéu de Angelique estava intacto. Ela o pôs na cabeça, ajustou o alfinete para prendê-lo melhor.



— Obrigada, George. Cheguei a pensar que meu chapéu daria um mergulho.



— E eu também. Podemos ter a honra de sua companhia no almoço?



— Obrigada, mas não será possível. Ficarei em casa hoje.



Logo chegaram ao portão do prédio da Struan. Os dois homens beijaram sua mão e ela entrou.



— Uma dama adorável, uma companhia agradável — comentou Sir William.



— Concordo.



Babcott franziu o rosto, olhando para o mar. Sir William acompanhou seu olhar atento. Não havia nada de errado na baía, ao que ele pudesse perceber.



— Qual é o problema?



— A regra dela começou.



— Deus Todo-Poderoso! Já a examinou? Ou Hoag? Por que não me contou antes?



— Não a examinamos ainda. Apenas sei, isso é tudo.



— Mas como...



Ele interrompeu a frase quando MacStruan e Dmitri passaram. Murmurou “bom dia, bom dia”, impaciente, depois pegou Babcott pelo braço, e conduziu-o rua abaixo, na direção da legação.



— Como pode saber?



— Ora, sou médico. Estive com ela ontem. Ao vê-la hoje, sem o véu, tornou-se evidente. O rosto estava um pouco inchado e notei que se mostrava um pouco desajeitada quando correu atrás do chapéu.



— Não percebi nada. Tem certeza?



— Não, mas cem guinéus contra um quarto de penny dizem isso.



Sir William franziu o rosto.



— Hoag também saberá só de olhar para ela?



— Não posso garantir.



— Neste caso, não diga a ele.



— E por que não?



— Vamos deixar como uma coisa particular entre nós. É melhor assim. — Uma pausa e Sir William acrescentou, gentilmente: — Vamos deixar que Angelique jogue suas cartas como quiser. É o jogo dela, com Tess Struan, não o nosso. Deixou de ser nosso.







Quatro vigilantes do Bakufu, incluindo um sargento, passaram pelo portão da Yoshiwara. Eram como qualquer outra patrulha de samurais, exceto que os homens eram mais duros, mais brutais e mais alertas. A tarde começava. Apesar do tempo, havia o tradicional desfile de cortesãs, sem pressa, com criadas em sua esteira, de um lado para outro, exibindo seus ornamentos umas para as outras, e para os grupos de gai-jin, olhando boquiabertos, enquanto bebiam nos cafés, rindo quando o vento lançava pelo ar uma ou outra sombrinha decorativa.



De vez em quando, um vigilante abordava o porteiro de uma estalagem, o dono de uma casa de chá ou a criada de um restaurante. No mesmo instante, a pessoa fazia uma reverência, submissa, e balbuciava:



— Não, Sire, o traidor Hiraga não foi visto por aqui, oh, não, Sire, obrigado, Sire, imediatamente, Sire, não, Sire, não o conheço.



Quase todos sabiam onde Hiraga se encontrava, mas preferiam manter sua paz, odiando os vigilantes, e também sabendo que nenhuma recompensa seria bastante grande para impedir a vingança dos shishi ou a repulsa do mundo flutuante por tal traição. Naquele mundo, os segredos eram o condimento e a essência da vida, aumentando o excitamento do dia.



O progresso da patrulha parecia ao acaso. Mas, de repente, o sargento mudou de rumo, entrou na viela da casa das Três Carpas e foi bater com toda força no portão na cerca.



Hiraga ficou acuado. Sempre que havia patrulhas nas proximidades, os vigias alertavam-no a tempo de fugir para o esconderijo subterrâneo, no túnel, onde tinha agora uma cama, velas, fósforos, comida, suas espadas e a pistola, além dos explosivos de Katsumata. Hoje, quando o alarme o alcançou, Hiraga descobriu que outros samurais vasculhavam os jardins, e assim não havia nenhuma possibilidade de chegar ao poço.



Em pânico, ele correu para a área da cozinha e mal teve tempo de assumir um disfarce, ali guardado, um presente de Katsumata, enquanto o sargento, a poucos metros de distância, a vista obstruída por uma sebe, dava um empurrão no porteiro subserviente, tirava suas sandálias e subia para a varanda da casa principal.



Sem saber que Hiraga se encontrava ali perto, Raiko saiu para cumprimentar o sargento, ajoelhou-se, fez uma reverência, seu rosto um charme só, as entranhas palpitando, pois aquele era o terceiro dia de buscas... um exagero que não permitia qualquer sossego.



— Boa tarde, Sire. Sinto muito, mas as damas estão descansando, ainda não se prepararam para receber os clientes.



— Desejo revistar a casa.



— Com todo prazer. Por favor, acompanhe-me.



— Vamos para a cozinha.



— Cozinha? Por favor, acompanhe-me.



Raiko seguiu na frente, afável. Ao deparar com Hiraga na cozinha, de cabeça baixa, entre a dúzia de pessoal da cozinha, seus joelhos quase vergaram.



Hiraga estava imundo, a cabeça coberta pela peruca emaranhada que Katsumata usara em Hodogaya, trajando apenas uma sunga suja e uma camiseta rasgada.



— Prenda um seixo sob o pé, Hiraga — aconselhara Katsumata. — Seu andar, tanto quanto o rosto, pode denunciá-lo. Passe sujeira no rosto e nas axilas, estrume é o melhor, finja ser um ajudante de cozinha, e não represente, seja de fato. Enquanto espera, prepare os artefatos incendiários, instrua Takeda a respeito, e esteja pronto para o momento em que eu voltar...



O sargento de rosto curtido parou, as mãos nos quadris, em meio ao silêncio, e olhou ao redor. De forma meticulosa. Cada canto, armário ou despensa foi inspecionado. Fileiras de condimentos, chás, barris de saquê e garrafas das bebidas dos gai-jin, sacos com o melhor arroz. Ele soltou um grunhido para ocultar sua inveja.



— Você! Cozinheiro-chefe!



O homem corpulento, aterrorizado, levantou a cabeça e o sargento acrescentou:



— Fique parado ali! E todos vocês, entrem em fila!



Em sua pressa para obedecer, todos esbarraram uns nos outros. Hiraga, claudicando bastante, imundo, nu, exceto pela tanga suja e a camiseta rasgada, encaminhou-se para a fila. Murmurando imprecações, o samurai observou atentamente cada homem, enquanto percorria a fila. Ao se aproximar de Hiraga, suas narinas tremeram em repulsa pelo mau cheiro e depois passou para o homem seguinte, e o outro, e o outro, descarregando sua raiva acumulada aos gritos no último homem, que arriou no chão, apavorado. O sargento voltou pela fila, parou diante de Hiraga, os pés bem plantados no chão.



— Você! — berrou ele. — Você!



Raiko gritou, quase desfaleceu, todos pararam de respirar. Hiraga se prostrou de cara no chão, rastejando, gemendo, apoiando os pés na parede, a fim de se lançar para a frente, contra as pernas do sargento. Mas o samurai pôs-se a arengar:



— Você é uma desgraça para uma cozinha, e você... — Ele virou-se para Raiko, que recuou contra a parede, assustada, enquanto Hiraga mal conseguia conter a investida. — Você deveria se envergonhar de ter um vagabundo coberto de estrume como este numa cozinha para os ricos!



O dedão duro como ferro acertou o homem imundo no pescoço e articulação do ombro. Hiraga soltou um grito de dor autêntico, a peruca quase caiu, ele segurou-a em pânico, pondo as mãos na cabeça.



— Livre-se dele! Se este saco de piolhos estiver aqui ou em qualquer outro lugar da Yoshiwara ao pôr-do-sol, fecharei esta casa por sujeira! Raspe a cabeça dele!



Outro pontapé e o sargento saiu. Ninguém se mexeu, até que veio o aviso de tudo limpo. Mesmo assim, todos começaram a se movimentar com a maior cautela, criadas foram buscar sais de cheiro para Raiko, que se retirou a passos trôpegos, apoiando-se nelas, enquanto o pessoal da cozinha ajudava Hiraga a se levantar. Ele sentia dor, mas não deixou transparecer. No mesmo instante, despiu-se e foi para a área dos criados, onde se lavou, esfregando e esfregando, cheio de repulsa... tivera tempo apenas de enfiar as mãos no balde de dejetos noturnos mais próximo, sujar-se e correr para um lugar perto dos fogos.



Depois de parcialmente satisfeito com a limpeza, ele se encaminhou para sua casa, nu, a fim de tomar outro banho, desta vez com água quente, convencido de que nunca mais tornaria a ficar limpo de fato. Raiko interceptou-o na varanda, não de todo recuperada de seu alarme.



— Sinto muito, Hiraga-sama, o vigia deixou de nos avisar a tempo, mas os samurais nos jardins... Água quente e uma criada de banho lhe esperam lá dentro. Mas agora, sinto muito, talvez deva ir embora, é perigo...



— Estou aguardando Katsumata, só depois partirei. Ele lhe pagou muito bem.



— É verdade, mas os vigi...



Baka! Você é responsável pelo sistema de alerta. Se houver outro, engano, sua cabeça rolará para o balde!



Com uma expressão sombria, Hiraga entrou na casa de banho, onde a criada ajoelhou-se, faz uma reverência tão apressada que bateu com a cabeça no chão.



Baka! — rosnou ele, ainda não superado o seu pavor intenso, o gosto amargo do medo ainda em sua boca. Acocorou-se no pequeno banco, pronto para que a criada começasse a esfregar. — Depressa!



Baka, pensou ele, enfurecido. Todos são baka, Raiko é baka, mas não Katsumata... ele não é baka, estava certo de novo: sem a bosta, eu teria morrido ou, pior, seria capturado vivo.









IEDO







O crepúsculo era uma ocasião de intenso movimento para os habitantes da Yoshiwara de Iedo, a maior e a melhor em todo o Nipão, um labirinto de pequenas ruas e lugares agradáveis, à beira da cidade, cobrindo quase oitenta hectares, onde Katsumata e outros shishi, ou ronin, podiam se esconderem segurança... se fossem aceitáveis.



Katsumata era muito aceitável. Dinheiro não era problema para ele. Pagou à garçonete por sua sopa e talharim, e se encaminhou sem pressa para a casa da Glicínia, ainda disfarçado como um bonzo, embora agora usasse um bigode falso, e se vestisse de maneira diferente, os ombros alargados por enchimentos, a túnica mais suntuosa.



Lanternas coloridas estavam sendo acesas por toda parte, jardins e caminhos recebiam os últimos retoques, arranjos de flores frescas eram concluídos. Dentro das casas de chá e estalagens, de maior ou menor importância, gueixas, cortesãs e mama-sans tomavam banho e se vestiam, conversando e se preparando para o entretenimento daquela noite. As cozinhas fervilhavam, homens cortando e picando, ajeitando salames e doces, fazendo as decorações, cuidando de caldeirões com o melhor arroz, limpando peixe, ajeitando as postas em molhos.



Muitos risos cordiais. Sofrimento aqui e ali, algumas mulheres em lágrimas pensando nos clientes que lhes haviam sido designados ou nos estranhos que deveriam receber com sorrisos, simulando satisfação... e não os jovens amantes pelos quais muitos corações ansiavam, mas o anseio tinha de ser posto de lado, adormecido. Como sempre, as mama-sans e as cortesãs mais velhas e experientes as acalmavam, repetindo o mesmo dogma que Meikin estava dizendo a Teko, a maiko de Koiko, agora em lágrimas, e que deveria fazer a sua estreia como cortesã naquela noite:



— Enxugue as lágrimas, Raio de Luar, aceite sem pensar a triste impermanência da vida, aceite o que há pela frente, ria com suas irmãs, desfrute o vinho, as canções e suas roupas bonitas, contemple a lua ou uma flor, e se deixe levar pela correnteza da vida, como uma cabaça flutuando à deriva rio abaixo. E agora trate de se apressar.



Não aceitarei que Katsumata traiu minha Koiko por uma causa justa, pensou Meikin, o coração confrangido. Ele não tinha necessidade ou justificativa para comprometer minha preciosa com aquela mulher shishi, por mais brava que ela fosse. Pior, ele foi baka ao encerrar uma fonte tão maravilhosa de influência e informações confidenciais sobre a sombra de Yoshi, uma estupidez inominável! Mas está feito. Terminado. Aceite seu próprio conselho, Meikin: Deixe-se ir à deriva, que importância tem, realmente?



Aceito que importava, Koiko era importante para todos nós, inclusive para Yoshi, que agora se lança implacável contra todos os shishi.



A mama-san tornou a sentar diante do espelho. O reflexo a fitou. A maquilagem, mais intensa que o habitual, não escondia as olheiras e rugas de preocupação.



Aceito também que envelheci horrivelmente desde que o shoya nos interrompeu, a Raiko e a mim — o décimo primeiro dia do décimo segundo mês, o último mês, o último dia da minha vida. Há apenas trinta e três dias. Apenas trinta e três dias, e pareço uma velha enrugada, muito além do tempo normal de cinqüenta anos. Trinta e três dias de lágrimas, um lago de lágrimas, quando pensava que me encontrava sã e salva além das lágrimas, convencida de que esgotara todas as minhas lágrimas há muito tempo, por amantes que mal posso lembrar, por alguém que ainda posso sentir, cheirar, saborear e ansiar, meu jovem e indigente samurai que partiu sem avisar, sem dizer uma só palavra, sem deixar uma carta, por outra casa de chá e outra mulher, levando o pouco dinheiro que eu guardara e os fragmentos do meu espírito, que ele jogou na sarjeta. E depois mais lágrimas por meu filho, morto no incêndio da casa de seus pais de adoção, o pai dele, o velho e rico mercador, indo embora como o outro, meu suicídio malogrado.



Anos demais a flutuar. Trinta e três anos à deriva, um ano para cada um dos meus dias de angústia. Tenho agora quarenta e três anos, hoje faz quarenta e três anos que nasci. O que devo fazer agora? Muito em breve lorde Yoshi vai exigir o pagamento. Karma.



Aceito que treinei Koiko, ofereci-a, garanti-a. O que mais posso oferecer em súplica? O que posso fazer?



Seu reflexo não respondeu.



Uma batida na porta.



— Ama, Katsumata-sama está aqui. Chegou cedo. Ela sentiu um vazio no estômago.



— Já vou falar com ele.



Para se acalmar, Meikin tomou um pouco do conhaque dos gai-jin que Raiko lhe dera. Assim que se sentiu mais descontraída, saiu, atravessou o corredor comprido para uma sala de recepção, toda de madeira, tatame e shoji mais dispendiosos. Em maravilhoso bom gosto. Tudo comprado e pago com muito esforço, aflição e adulação; por causa de Koiko, a Flor, sua casa era muito lucrativa, uma fonte de satisfação para seus banqueiros. Com os quais tivera uma reunião naquele dia.



— Sinto muito, mas notamos que seus recibos se tornaram consideravelmente mais baixos, em comparação com o mês passado.



— É a época do ano, muito desfavorável para todas as casas de chá, com um frio anormal. Os negócios vão melhorar com a primavera. Ainda temos um lucro alto para o último ano, não há necessidade de preocupação.



Mas Meikin sabia — e sabia que a Gyokoyama sabia — que a maior parte de seu lucro era por causa de Koiko, e que agora uma tênue cortina de gaze pairava entre ela e sua ruína. Se Yoshi assim decidisse.



Então por que aumentar seu risco, permitindo os shishi aqui?, perguntou-se ela. Em particular Katsumata, que é agora o primeiro dos inimigos de Yoshi. O que isso importa? Deve haver o mau com o bom, o mau deve ser enfrentado e o bom desfrutado. Fora emocionante ser parte dos shishi, com sua bravura e sonno-joi, a luta pela libertação do jugo de séculos, sacrificando suas vidas pelo imperador, na busca tão trágica e desesperançada, todos jovens e valentes, nascidos para fracassar, o que é muito triste. E se eles vencessem, aqueles que reinassem em seguida nos libertariam do jugo de séculos?



Não. Nunca. Não a nós, as mulheres. Continuaremos onde estamos agora, sob o domínio do yang.



Seus olhos vislumbraram uma nesga da lua surgindo de uma nuvem avermelhada pelo pôr-do-sol, por um instante incomparável, para ser tragada de novo, o vermelho se tornando marrom, depois ouro, as flamas escurecendo... um momento viva, no seguinte morta.



— Lindo, neh?



— É, sim, Katsumata-san, tão triste, tão bonito... Ah, já trouxeram o chá! Lamento que esteja nos deixando.



— Voltarei em poucos dias. Tem mais alguma notícia de Raiko? Qualque informação adicional sobre os gai-jin e seus planos?



Meikin serviu-lhe o chá, fazendo uma pausa para admirar as xícaras magníficas.



— Parece que lorde Yoshi teve um encontro com o líder gai-jin, para fazer um pacto de amizade.



Ela relatou as informações de Furansu-san, sussurradas pelo enviado de Raiko poucas noites antes, e que não revelara a Katsumata até aquele momento.



— Além disso, o doutor gai-jin de Kanagawa examinou secretamente o tairo aqui em Iedo, no mesmo dia, dando-lhe medicamentos gai-jin... e soube que ele melhorou.



Baka — resmungou Katsumata, repugnado.



— Tem razão. Esse doutor deve ser detido. A fonte de Raiko diz que ele volta amanhã, ou no dia seguinte, para ver o tairo de novo.



So ka? — O interesse de Katsumata dobrou. — Onde? No castelo? Ela sacudiu a cabeça.



— Não. Esta é a melhor parte. Fora das muralhas, no palácio de Zukumura, o idiota, como na última vez.



Katsumata franziu o rosto.



— Muitas opções, Meikin, opções excepcionais. Igual a Utani, neh? Tentação demais. A morte de Utani ainda ressoa por todo o Nipão! Hiraga? Ele já foi apanhado?



— Não. O chefe gai-jin deixou Akimoto partir e Takeda também continua seguro. — Raiko observou-o por um momento, especulando sobre o que ele estaria pensando e depois acrescentou, suavemente: — Há mais dois fatos que deve saber. Lorde Yoshi esteve no encontro do doutor com o tairo, também com apenas uns poucos guardas. Ouvi dizer que ele estará presente de novo.



Ela viu os olhos de Katsumata faiscarem e experimentou um repentino medo, sentindo sua violência contida.



— Yoshi e Anjo juntos, aqueles cães fora das muralhas juntos? Puxa, Meikin, mas isso é incrível! — Katsumata tremia de excitamento. — Pode descobrir quando exatamente o doutor chega?



Meikin inclinou-se para a frente, quase tonta de esperança, e murmurou:



— Outro mensageiro é esperado esta noite. Saberei então. Raiko deve compreender como poderia ser uma oportunidade vital para nós, para todos nós, para todos os que têm contas a acertar.



E era mesmo uma oportunidade como nunca surgira antes, se viesse a se concretizar. Katsumata contraiu os olhos.



— Não posso esperar aqui, nem voltar esta noite. Quando foi o outro encontro, em que momento do dia?



— Cedo.



A carranca se aprofundou, depois se dissolveu.



— Meikin, todos os shishi lhe agradecerão. Se o encontro for amanhã, mande-me o aviso da hora imediatamente, para a estalagem dos Céus Azuis, perto da ponte em Nihonbashi.



Ele fez uma reverência, Meikin retribuiu, ambos satisfeitos, por enquanto.







A ponte em Nihonbashi era considerada a primeira etapa da Tokaidô, nos arredores de Iedo, e a estalagem dos Céus Azuis uma entre dezenas, ricas e pobres, espalhadas por todo o distrito. Aquela noite era escura e fria, o céu coberto por sólida camada de nuvens, ainda faltavam horas para a meia-noite. A estalagem ficava numa viela pequena e suja, um dos estabelecimentos mais pobres, um prédio indefinido, de dois andares, quase em ruínas, com as latrinas, cozinhas e uns poucos bangalôs separados de um só cômodo nos jardins, por trás dos muros. Katsumata sentava na varanda de um desses bangalôs, meditando, com uma túnica acolchoada contra o frio, desfrutando o jardim, a única coisa por ali a que se dispensavam cuidados mais meticulosos.



Lanternas coloridas em meio a plantas viçosas, ao longo de um regato, uma ponte, o som suave e tranquilizador da água correndo, o ruído ressonante da caçamba de bambu caindo contra a pedra, ao se encher de água, para se esvaziar, subir, cair de novo, enquanto a água escorresse pela cachoeira em miniatura. Seu silencioso guarda shishi parou por um instante, gesticulou que estava tudo bem e prosseguiu em sua ronda pelo terreno da estalagem.



Katsumata sentia-se contente, seus planos aperfeiçoados: dois shishi o acompanhariam no retorno a Iocoama pela manhã, aquele guarda e mais outro. O sacrifício dos dois, mais Hiraga, Takeda e Akimoto, garantiria o incêndio da colônia e o afundamento do navio de guerra, o que acarretaria o bombardeio e destruição de Iedo, com todos os resultados conseqüentes. No último minuto, ele assumiria o encargo de incendiar a igreja, como antecipara desde o início, deixando que Hiraga comandasse o ataque contra o navio de guerra. Com isso, teria amplas oportunidades para escapar, enquanto os outros não teriam nenhuma.



Os dedos acariciaram o punho de uma espada longa em seu colo, apreciaram o contato do couro de primeira qualidade, enquanto ele se imaginava a participar daqueles atos de terrorismo que tirariam sonno-joi de sua atual apatia e garantiriam sua liderança sobre os novos quadros de shishi, recém-formados, e que dali por diante seriam dominados por ele e Satsuma.



Yoshi e Anjo, por mais tentadores que fossem, não eram tão importantes quanto Iocoama, e por isso os deixaria aos cuidados de outros shishi. Não havia homens suficientes para desfechar um ataque frontal, o que o levara a planejar uma emboscada. Talvez uma emboscada tivesse êxito, provavelmente não, mas a própria ousadia seria inspiradora. Mas ele precisava saber a hora exata da volta do doutor. Se Meikin transmitisse a informação amanhã, ele avisaria os homens já mobilizados, esperando numa estalagem próxima, para a missão suicida, e depois partiria com seus dois companheiros para Iocoama.



Já será suficiente se a emboscada for realizada tão perto do castelo, disse ele a si mesmo, inebriado pela expectativa. Isso e mais Iocoama garantirão Sonno-joi e tornarão meu futuro sublime. Se ao menos houvesse mais tempo para nos prepararmos... Ah, tempo! “Tempo é um pensamento”, era o que sempre diziam aos discípulos em suas aulas de Zen, cerrando e abrindo o punho para dar ênfase “O tempo existe, mas não existe, é permanente e impermanente, fixo e flexível necessário e desnecessário, devemos tomá-lo na mão e indagar: por quê?”



Solene, Katsumata abriu a mão, contemplou a palma. E soltou uma risada. Que absurdo! Mas quantos daqueles jovens costumavam rebuscar seus cérebros em busca de um significado, quando não havia nenhum, Ori em particular, Hiraga também, meus melhores discípulos, futuros líderes, a minha esperança. Mas Ori morreu, e agora Hiraga se tornou maculado, traiçoeiro.



O barulho da caçamba de bambu era confortador. E também o som da água correndo. Seu ser transbordava de vitalidade, planos e idéias, o futuro mais uma vez promissor, sem o menor vestígio de cansaço naquela noite, haveria tempo suficiente para Meikin enviar...



Uma sombra passou pelos arbustos, depois outra, um som tênue por trás, e ele se levantou, a espada na mão, correu para a porta secreta escondida entre as folhagens, mas três homens vestidos de ninja emergiram das sombras, e bloquearam o caminho, as espadas erguidas. No mesmo instante, Katsumata virou-se, correu em outra direção, mas havia outros ninjas ali, povoando todo o jardim, alguns em movimento, outros parados como rocha, esperando que ele se aproximasse. Katsumata desfechou um ataque impetuoso contra um alvo fácil, os quatro homens que se adiantavam pela esquerda, matando um, os outros se evaporando tão depressa quanto haviam surgido. Uma súbita dor ofuscante em seus olhos, de um pó ácido lançado contra o rosto. Em agonia, ele uivou de raiva e arremeteu sem ver contra o inimigo, o frenesi por ser emboscado e enganado proporcionando força maníaca a seus braços e asas aos pés.



A espada encontrou carne, o homem gritou, sem braço, e Katsumata se encolheu, golpeou às cegas de novo, desviou-se para a esquerda e direita, correu para a direita, com fintas sucessivas, enquanto tentava limpar os olhos. Virando-se, golpeando, correndo para um lado e outro, em pânico, esfregando os olhos.



A vista clareou por um instante. Um caminho aberto estendia-se à sua frente, para a cerca e a segurança. Enfurecido, ele saltou para a frente e foi nesse instante que um tremendo golpe atrás da cabeça o atingiu, fazendo-o cambalear. Em desespero, ele virou a espada, a fim de tombar por cima dela, mas outro golpe arremessou-a para longe, quebrando seu braço. Katsumata soltou um grito estridente. E desfaleceu.



O poço negro turbilhonante foi uma eternidade de tormento, com relâmpagos vermelhos e verdes por trás dos olhos, nenhuma visão ali, nem audição, a não ser por um martelar gigantesco, o peito em fogo, o coração palpitando, todas as aberturas fora de controle. Água gelada o encharcou, ele engasgou. Outro dilúvio em seu rosto, mais outro. Tossindo e arquejando, ele emergiu da escuridão. A agonia do braço quebrado, o osso lascado, exposto, subiu para a cabeça, trouxe de volta a visão. Ele se descobriu no chão, braços e pernas estendidos, impotente, um ninja de pé em cada pulso e cada tornozelo. Só que não eram ninjas. Estavam agora sem as máscaras. Ele reconheceu Abeh, de pé à sua frente. E depois viu Yoshi, perto, também vestido de preto, mas não como seus guerreiros. Vinte ou trinta outros ao redor. Silenciosos como a noite e a área.



— Ah, Katsumata! Katsumata, o Corvo, Katsumata, o shishi e líder de shishi, benfeitor de mulheres — disse Yoshi, a voz suave. — Uma pena que esteja vivo. Por favor, a verdade. Koiko era parte de sua conspiração, neh?



Frenético, Katsumata tentava recuperar o controle; quando conseguiu, não respondeu de imediato. O samurai de pé sobre seu braço fraturado torceu o osso de fora, violentamente, e ele gritou, a vontade de ferro que sempre presumira possuir se perdendo com sua liberdade.



— Por favor, oh, por favor...



— Koiko era parte de sua conspiração?



— Não minha conspiração, Sire, conspiração dela e de sua mama-san — balbuciou Katsumata, a cabeça em fogo como o braço, a dor insuportável. — Não... ela era... foi ela, junto com sua mama-san, Lorde, não eu... nada tive a ver... a idéia foi dela e de Meikin, sua mama-san, não minha...



So ka? E Sumomo, a shishi que escapou com você pelo túnel... o túnel em Quioto, lembra? Isso mesmo, lembra de Sumomo? Você fez chantagem com Koiko e ordenou secretamente, sem o conhecimento dela, que Sumomo me assassinasse, neh?



— Su... momo, Sire? Não sei quem é... ela... nada tinha a ver comigo, na...



As palavras se extinguiram em outro grito, quando o homem de pé em seu braço mudou de posição.



Yoshi suspirou, seu rosto uma máscara. Gesticulou para Meikin, que se encontrava parado ao lado, fora do campo de visão de Katsumata, com Inejin ao seu lado.



— Ouviu seu acusador, Meikin?



— Ouvi, Sire. — Ela se adiantou, as pernas fracas, estremecendo, falando com um fio de voz. — Sinto muito, mas ele é um mentiroso. Nunca participamos de qualquer conspiração contra o lorde, mas nunca mesmo. Ele é um mentiroso. Somos inocentes.



Meikin olhou para Katsumata, odiando-o, contente por tê-lo traído, por ter se vingado... a covardia dele e o fato de ter sido capturado vivo eram melhores do que qualquer coisa que ousara esperar.



— Mentiroso! — sibilou ela.



E tratou de recuar, quando Katsumata se pôs a vociferar, tentando em vão alcançá-la, até que outro homem o golpeou, deixando-o atordoado. Ele ficou inerte, gemendo. A cabeça de Meikin latejava como nunca antes, havia um gosto horrível na boca.



— Sinto muito, Sire, mas também é verdade que eu o conhecia, da mesma forma que meu tesouro, apenas como um cliente antigo, não mais do que isso. Ele era um cliente antigo, e eu não sabia na ocasião quem era ou que... — Ela hesitou tentando encontrar uma palavra que exprimisse sua aversão. — ...ou que fazia uma coisa assim.



— Acredito em você, Meikin. A verdade, finalmente. Ótimo. E porque é ele o mentiroso, pode tê-lo à sua mercê, como combinamos.



— Obrigada, lorde.



— Obedeça a ela — disse Yoshi a Abeh. — E depois a leve para mim.



Ele se afastou. Todos os homens o acompanharam, cercando-o, como um escudo, exceto Abeh e os samurais que imobilizavam o cativo, braços e pernas estendidos, agora gemendo, de volta à consciência. Meikin esperou, saboreando o momento, por si mesma, por Koiko, por todo o mundo flutuante, pois era muito rara a oportunidade de vingança.



— Por favor, tirem as roupas dele — pediu ela, muito calma.



Os samurais obedeceram. Meikin ajoelhou-se, mostrou a faca a Katsumata. Era pequena, mas suficiente para seus propósitos.



— Traidor, não vai fornicar no inferno, se existe um inferno.



Quando os gritos se desvaneceram na inconsciência, depois de um longo momento, ela o estripou como se fosse um porco.



— É isso o que você é — murmurou ela, limpando a faca e guardando-a na obi, com sangue nas mãos e mangas.



— Ficarei com a faca, por favor — disse Abeh, nauseado com a vingança. Sem dizer nada, Meikin entregou a faca e seguiu para o pátio, cercada pelos homens. Yoshi esperava. Ela ajoelhou-se na terra.



— Obrigada, Lorde. Creio que ele se arrependeu de tê-lo traído, de haver traído a todos nós, antes de partir. Obrigada.



— E você, Meikin?



— Nunca o traí. Falei a verdade, contei tudo o que sabia e lhe entreguei o traidor esta noite.



— E agora?



Sem medo, ela fitou-o nos olhos; não conhecera muitos olhos tão implacáveis assim, mas preferiu descartar isso, optando por considerá-lo apenas como um homem, um de mil clientes e autoridades que tivera de suportar ao longo de sua vida, por dinheiro ou favores, para si mesma ou sua casa.



— É tempo de seguir adiante, Sire. — Meikin enfiou a mão em sua manga, tirou um pequeno frasco. — Posso fazê-lo aqui, se assim desejar, meu poema de morte já foi escrito, a Gyokoyama possui a casa da Glicínia. Mas pertenço ao mundo flutuante — acrescentou ela, orgulhosa. — Não é correto partir maculada, com um sangue impuro nas roupas e nas mãos. Gostaria de partir limpa. Gostaria de voltar para a minha casa. Um desejo de morte, Sire: um banho e roupas limpas. Por favor?


56





IOCOAMA





Terça-feira, 13 de janeiro:





Angellque se encontrava entre os cavaleiros que exercitavam seus pôneis à primeira claridade da manhã, na pista de corrida em Iocoama, galopando sozinha, por opção, mal notando os outros. Havia bastante gente no circuito e todos a observavam. Havia muito dinheiro acompanhando-a naquela manhã. Ela estava atrasada. Pelo menos um dia.



— Edward, ela está, não é? — perguntou Pallidar, cavalgando ao lado de Gornt, no outro lado da pista. — Ahn... atrasada?



— Sim, senhor, é o que indicam todos os cálculos.



Gornt contemplou-a, ponderando sobre o que faria agora. Ela montava o pônei preto que Malcolm lhe dera, usava um traje de montaria preto, elegante, botas pretas, um chapéu com meio véu.



— Seu alfaiate é muito bom, as roupas assentam com perfeição — comentou ele. — Nunca tinha visto esse traje antes.



— E não se pode deixar de reconhecer que ela também tem um assento muito bom — disse Pallidar, secamente.



Os dois riram.



— Mas ela cavalga como um sonho, não resta a menor dúvida quanto a isso, deslumbrante como qualquer beldade sulista.



— Falando sério, o que você acha? Há todos os tipos de rumores circulando sobre datas, não muitos de nós jamais tiveram... não muitos de nós sabem sobre o incômodo, os intervalos, essas coisas. Tem algum dinheiro apostado?



Tanto que você nem acreditaria, pensou Gornt.



— Perguntei ontem a Hoag, à queima-roupa.



— Por Deus, assim de repente? Eu nunca teria coragem, meu velho — Pallidar inclinou-se para mais perto, montado num castrado castanho dos dragões muito maior que o pônei de Gornt. — O que ele disse?



— Respondeu que não sabe mais do que nós. E, conhecendo-o, acredito



Gornt disfarçava sua impaciência por perder a companhia de Angelique. Haviam combinado que simulariam evitar um ao outro, até que ela tivesse certeza se estava ou não grávida. Nada poderia ser feito antes disso... ou até o segundo mês.



— O dia certo seria 11 ou 12, mas Hoag explicou que poderia atrasar, mas não muito, demorar um pouco para... começar. Se não vier, é que ela está esperando.



— Faz a gente pensar, hem? Difícil para ela se estiver, a pobre coitada, mais do que difícil, quando a gente se lembra de Hong Kong, Tess e todos os problemas. Pior ainda se não estiver, a se acreditar nos rumores... não sei qual seria o mais terrível.



Cornetas começaram a soar no penhasco por cima da pista, onde ficava o acampamento dos soldados; havia mil soldados ali.



— Droga! — murmurou Pallidar.



— O que é?



— Um toque de “retorno à base”. O general deve estar de ressaca e quer rosnar para todo mundo.



— Vai com Sir William amanhã?



— À conferência com Yoshi em Kanagawa? Acho que sim. Sempre me mandam para essas coisas. É melhor eu ir logo. Vamos jantar juntos?



— Seria um prazer.



Gornt observou Pallidar fazer uma volta impecável com o cavalo e partir a galope, misturando-se aos outros oficiais, que seguiam na mesma direção. Notou que Hoag vinha da colônia para o circuito. O médico montava bem, confortável na sela para um homem tão volumoso. Decidindo interceptá-lo, Gornt esporeou seu pônei — um garanhão castanho, o melhor no estábulo da Brock — para meio trote, mas depois mudou de idéia. Já cavalgara o suficiente hoje. E muito em breve teriam notícias, pois Hoag nunca seria capaz de guardar um segredo para si mesmo. Antes de deixar a pista, ele acenou para Angelique e gritou:



— Bom dia, madame! É uma alegria para os olhos num dia tão frio! Ela levantou os olhos, arrancada de seu mundo pessoal.



— Ahn... Obrigada, Sr. Gornt.



Ele percebeu sua melancolia, mas Angelique sorriu-lhe. Tranquilizado, Gornt se afastou a trote. Não havia necessidade de pressioná-la. Primeiro, ela está ou não? Qualquer que seja o caso, não é problema para mim.



Angelique ficara satisfeita ao vê-lo, apreciando sua admiração ostensiva, elegância e virilidade. A tensão da espera, permanecendo sozinha, atendo-se ao regime de luto, reprimindo segredos, começava a transparecer. As únicas distrações que se permitia agora eram os passeios matutinos a cavalo, as caminhadas ocasionais pelo passeio, a leitura de tantos livros quanto podia encontrar, as conversas com Vargas sobre seda e bicho-da-seda, na tentativa de ressuscitar o entusiasmo anterior. E, de repente, ela avistou Hoag.



Hoag! Se continuasse no mesmo ritmo, acabaria por alcançá-la. Poderia evitá-lo se trotasse o cavalo; seria ainda mais fácil voltar para casa.



— Bom dia, monsieur le docteur. Como tem passado?



— Olá, Angelique. Você está com uma ótima aparência.



— Não estou, não. Sinto o maior mal-estar. De qualquer forma, obrigada. — Uma ligeira hesitação e ela acrescentou, casual: — Uma mulher nunca se sente bem durante esse período do mês.



Surpreso, Hoag puxou as rédeas. Sua égua levantou a cabeça, relinchou, assustando a montaria de Angelique. Os dois logo recuperaram o controle dos animais.



— Desculpe — disse ele, a voz rouca. — Eu... esperava o oposto.



A manifestação súbita e indiferente deixaram-no tão aturdido que ele quase disse: Tem certeza? Devo estar ficando velho, pensou Hoag, irritado consigo por não ter percebido o óbvio... o óbvio agora que sabia.



— Bom, pelo menos você já sabe.



— Sinto um terrível desapontamento, por Malcolm, mas de certa forma parece que não... me atormenta mais. Chorei muito, é claro, mas agora...



O ar inocente de Angelique fez com que ele tivesse vontade de abraçá-la, confortá-la.



— Com todo o resto, Angelique, isso é compreensível. Talvez seja melhor assim. Eu lhe disse antes: enquanto for capaz de chorar, nada poderá afetá-la para sempre. Posso perguntar quando começou?



Mais toques de corneta vieram do penhasco.



— O que está acontecendo? Vi Settry e outros oficiais partirem a galope.



— As cornetas estão apenas chamando os oficiais de volta ao acampamento, rotina, não há com que se preocupar. — Hoag olhou ao redor, para se certificar de que não havia ninguém por perto, depois soltou uma risada nervosa. — Obrigado por me avisar, embora de uma forma um tanto abrupta. Podemos conversar enquanto cavalgamos?



— Claro.— Angelique sabia muito bem por que lhe contara. Por ter visto Gornt hoje e pela chegada conveniente de Hoag. E também porque queria que a luta fosse logo iniciada. — Começou no domingo.



— Não sei o que dizer, se deve se considerar afortunada ou desafortunada. — Nenhuma das duas coisas. Foi a vontade de Deus e aceito-a. Lamento por Malcolm, não por mim. Para mim, é a vontade de Deus. O que vai fazer agora? Informá-la?



— Isso mesmo, mas primeiro tenho de lhe entregar uma carta. Foi a vez de Angelique ficar surpresa.



— Tinha uma carta durante todo esse tempo e não a entregou?



— Ela me pediu para só entregar se você não estivesse esperando uma criança de Malcolm.



— Hum... — Angelique pensou a respeito por um momento, sentindo-se um pouco nauseada. — E se eu estivesse grávida?



— Trata-se de uma pergunta hipotética agora, não é mesmo?



Hoag falou gentilmente, preocupado com a súbita palidez de Angelique. Essa moça ainda não se livrou da depressão, nem de longe.



— Quero saber.



— Ela me pediu para lhe entregar a carta, Angelique, se sua menstruação começasse. Gostaria de voltar agora? Levarei a carta à sua suíte.



— Obrigada, mas... esperarei enquanto você a pega, diante do prédio da Struan.



Ela esporeou a montaria, completou o circuito, indiferente aos outros... todos a observando. Num súbito impulso, virou para pegar o caminho num galope curto, a fim de desanuviar a cabeça do medo. Esporas, joelhos e mãos espicaçando e controlando o pônei.



À frente, podia divisar as torres das duas igrejas, a cerca do perímetro, a Yoshiwara, a ponte e a casa da guarda. Por um momento, sua mente voltou no tempo e foi como se estivesse na direção de tudo aquilo, dominada pelo pânico, a sangrenta Tokaidô para trás, sem o chapéu, as roupas rasgadas, quase morta de medo. A visão se dissipou quando puxou as rédeas... os acontecimentos pareciam muito distantes. Um tipo diferente de medo persistia. A sorte estava lançada.



A carta de Tess dizia:





Tenho certeza de que você vai concordar que não há necessidade de cortesias, que não têm o menor sentido entre nós.



Estou contente por saber que você não espera uma criança de meu filho. Isso torna o futuro mais simples, menos complicado. Não aceito ou reconheço o “casamento” ou que você tenha quaisquer pretensões legais em relação a ele... muito ao contrário.



No momento em que estiver lendo esta carta, a Casa Nobre já terá iniciado uma nova era ou se encontrará à beira da bancarrota. Se for a primeira coisa, será em grande parte uma decorrência de você ter me encaminhado aquela pessoa.



Por causa disso, como uma comissão, depositarei capital num fundo de investimentos, no Banco da Inglaterra, o necessário para lhe proporcionar uma renda de dois mil guinéus por ano — se, em troca, você me apresentar, no prazo de trinta dias, a contar da data de hoje (quando sua regra for confirmada), uma declaração escrita e juramentada, nos seguintes termos:



Primeiro, que repudia e renuncia para sempre a toda e qualquer reivindicação que você ou um representante seu possam fazer contra o espólio inexistente de meu filho — deve compreender que ele, como menor, nunca tendo sido legalmente credenciado como tai-pan, não tinha herança para deixar.



Segundo, que concorda em renunciar a todas as reivindicações e concorda em não mais usar o título de “Sra. Malcolm Struan” ou qualquer versão similar. (A fim de resguardar as aparências, para você, sugiro que anuncie, pesarosa, que decidiu fazer isso porque, sendo católica, aceita que o casamento não foi legal, segundo sua fé e sua Igreja, não que eu admita que a cerimônia foi válida, sob qualquer aspecto.)



Terceiro, que nunca mais porá os pés em Hong Kong, a não ser para baldeação, não tentará se encontrar comigo, não me escreverá, não fará qualquer contato comigo ou minha família, no futuro.



Quarto, que sua declaração, com o testemunho formal de Sir William Aylesbury, ministro de sua majestade no Japão, me seja entregue aqui, em Hong Kong, através do Dr. Hoag, para maior segurança, até 14 de fevereiro, pouco mais de trinta dias depois de hoje (a data em que sua regra foi confirmada).



Por último, que se você casar dentro de um ano, o capital será aumentado para que o estipêndio anual chegue a três mil guinéus, durante os dez primeiros anos. Por sua morte, o capital reverterá para mim ou meus herdeiros.



Três semanas depois de ler esta carta, deve se retirar, por favor, de qualquer propriedade da Struan. Dei instruções neste sentido ao Sr. Albert MacStruan, em carta enviada hoje, e também determinei que, a partir deste dia, seu crédito com a Struan está suspenso, e que qualquer vale dado ou supostamente dado por meu filho e apenas autenticado por seu sinete não devem ser honrados — excetuando os que ele assinou e datou pessoalmente, por isso mesmo de autenticidade incontestável.

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