LIVRO TRÊS
32
IOCOAMA
Sábado: 29 de novembro:
— Passamos pela esquadra há dois dias, Sr. Malcolm, Jamie — disse o capitão do clíper, em tom jovial, disfarçando seu choque pela mudança em Malcolm, que conhecia desde que nascera, com quem rira e bebera apenas três meses antes, em Hong Kong; ele tinha agora as feições pálidas e encovadas, uma estranha expressão nos olhos, precisava de bengalas para andar ou mesmo ficar de pé. — Estávamos com todas as velas içadas, um vento de popa de força seis, navegando bem depressa, enquanto eles seguiam mais devagar, uma providência sensata, para não perder as barcaças de carvão que rebocavam.
Seu nome era Sheeling, e acabara de desembarcar de seu navio, o Dancing Cloud, cuja chegada fora inesperada. Tinha quarenta e dois anos, era alto, barbudo, o rosto curtido, trabalhava para a Casa Nobre há vinte e oito anos.
— Nós apenas os saudamos e continuamos em frente.
— Chá, capitão? — perguntou McFay, servindo automaticamente, sabendo por longa experiência que era a sua bebida predileta.
Enquanto estava no mar, ele sempre tomava chá com açúcar e leite condensado, de dia ou de noite. Estavam na suíte de Malcolm, sentados à mesa grande. Jamie, como o tai-pan, mal prestava atenção ao relato, os olhos fixados na bolsa de correspondência lacrada, com o emblema da Casa Nobre, sob o braço esquerdo de Sheeling.
O capitão tinha um gancho no lugar da mão esquerda. Quando era aspirante da marinha, durante uma viagem pelo rio Yang-tsé, negociando ópio, piratas da frota do Lótus Branco cercaram sua lorcha e, no combate, lhe cortaram a mão esquerda. Depois, ele fora enaltecido por sua bravura. Seu amado ídolo, Dirk Struan, trouxera-o de volta do abismo e o pusera para trabalhar com o comandante de sua frota, Orlov, o Corcunda, que recebera ordens para lhe ensinar tudo o que sabia.
— Claro! — exclamou Sheeling, sorridente. Ele tomou um gole enorme. — Excelente, Jamie! Preferia um uísque, como sabe muito bem, mas isso terá de esperar até Honolulu... planejo partir imediatamente, só vim...
— Honolulu? — disseram Struan e Jamie, quase ao mesmo tempo.
Não era uma escala habitual para os clíperes da companhia, atravessando o Pacífico até San Francisco e voltando o mais depressa possível.
— Qual é sua carga? — indagou Malcolm, quase acrescentando “tio Sheeley”, o nome que usava nos bons tempos de sua infância.
— As coisas de sempre, chá e especiarias para San Francisco. Mas tenho ordens para entregar correspondência a nossos agentes no Havaí.
— Ordens da mãe?
Sheeling acenou com a cabeça, uma expressão de simpatia nos olhos cinza. Ouvira rumores, e se encontrava a par de parte do problema entre mãe e filho — o noivado de Malcolm e a oposição da mãe eram o tema de todas as conversas em Hong Kong —, mas tinha instruções rigorosas para não mencionar o assunto.
— Como estão os negócios no Havaí? — perguntou Malcolm, sentindo nova pontada de ansiedade. — Ela disse?
— Não. A Sra. Struan apenas me ordenou que passasse por lá.
Uma rajada de vento sacudiu as persianas. Eles olharam pela janela. Na baía: o clíper de três mastros estava ancorado, balançando nas ondas, as velas prontas para serem içadas de novo, disposto a se lançar ao mar outra vez, para enfrentar os ventos, bons e maus, qualquer coisa que tivesse pela frente. Os três homens se enfunaram, como velas de orgulho, e Sheeling experimentou intensa satisfação por comandar aquele rei dos mares. Tornou a concentrar sua atenção em Malcolm, coçou o pescoço com o gancho, distraído.
— Recebi a ordem de vir até aqui pelo mesmo motivo: a correspondência. — Ele entregou a bolsa. — Podem me dar um recibo de entrega, por favor?
— Claro. — Malcolm acenou com a cabeça para Jamie, que começou a escrever o recibo. — Quais são as novidades em Hong Kong?
— Eu diria que a maior parte consta da correspondência, mas também trouxe os últimos jornais, de Hong Kong e de Londres... deixei lá embaixo, no seu escritório.
Sheeling tomou o resto do chá, ansioso em partir. Aquela seria sua quarta visita havaiana, ao longo dos anos, e conhecia a beleza de suas mulheres, a natureza excepcional, irradiando alegria, um lugar em que o dinheiro quase não era uma consideração, muito diferente de Hong Kong, Xangai ou qualquer outro porto em que já estivera. Desta vez comprarei alguma terra, em segredo. Sob um nome diferente. Irei para o Havaí no ano que vem, quando me aposentar, e ninguém precisa saber disso. O pensamento de largar a esposa, uma megera consumada, e os filhos vorazes, em Londres, papai me compra isto, papai me compra aquilo — não que os visse com freqüência —, deixou-o contente.
— Eu me referia às notícias locais de Hong Kong — explicou Struan.
— Ah, sim. Primeiro, sua família está muito bem, a Sra. Struan, seu irmão, suas irmãs, embora o jovem Duncan estivesse com outra gripe forte no momento em que parti. Quanto a Hong Kong, as corridas continuam sensacionais, assim como a comida, o estabelecimento da Sra. Fortheringill continua a prosperar, apesar de uma recessão, a Casa Nobre permanece em seu curso, como você já sabe melhor do que eu, bem como os rumores habituais de que sua situação não é das melhores, provavelmente espalhados pelos Brocks, mas isso também é habitual, nunca muda. — Sheeling levantou-se. — Agradeço todas as gentilezas, mas é melhor eu partir agora, aproveitar a maré.
— Não vai pelo menos ficar para almoçar?
— Não, obrigado. É melhor eu...
— Que rumores? — indagou Malcolm, em tom ríspido.
— Nada que valha a pena repetir, Sr. Malcolm.
— Por que não me chama de tai-pan, como todos os outros? — disse Malcolm, irritado, o medo do que podia haver na correspondência a corroê-lo. — Eu sou, não é mesmo?
A expressão de Sheeling não se alterou; gostava de Malcolm, admirava-o, lamentava pelo fardo que ele tinha agora de carregar.
— É, sim, e tem toda razão, chegou a hora de eu parar de chamá-lo de “Sr. Malcolm”. Mas, pedindo perdão, seu pai me disse exatamente a mesma coisa depois que se tornou o tai-pan, quando o tufão matou o... matou o tai-pan, Sr. Dirk. Como sabe, ele era muito especial para mim, e perguntei ao meu comandante, capitão Orlov, se podia conversar com o Sr. Culum. O capitão concordou, e eu disse ao seu pai que sempre chamaria o Sr. Dirk de tai-pan. E indaguei se, como um favor especial, poderia chamá-lo apenas de senhor, ou mister Struan. Ele disse que eu podia. Foi um favor especial. Poderia...
— Pelo que sei, o capitão Orlov chamava meu pai de tai-pan e meu pai também era especial para ele, talvez ainda mais.
— É verdade — murmurou o capitão, empertigando-se. — Quando o capitão Orlov desapareceu, seu pai me pôs no comando da frota. Servi a seu pai com todo o meu empenho, como também servirei a você, e a seu filho, se viver por tanto tempo. Como um favor especial, poderia tratá-lo da mesma maneira que a seu pai?
Sheeling era mais do que valioso para a Casa Nobre. Todos os três sabiam disso. E também conheciam sua inflexibilidade. Malcolm acenou com a cabeça, mas sentia-se magoado.
— Eu lhe desejo uma viagem segura, capitão.
— Obrigado, senhor. E... e boa sorte, Sr. Struan, em tudo. E a você também, Jamie.
Enquanto ele se encaminhava para a porta, Malcolm rompeu o primeiro lacre. Antes que o capitão tocasse na maçaneta, a porta foi aberta pelo outro lado. Era Angelique. Touca, vestido azul marinho, luvas, sombrinha. Todos os três homens prenderam a respiração por sua radiância.
— Oh, desculpe, chéri. Não sabia que estava ocupado...
— Não tem problema, pode entrar. — Malcolm levantou-se com dificuldade. — Quero apresentá-la ao capitão Sheeling, do Dancing Cloud.
— Ah, monsieur, é um lindo navio! Tem muita sorte.
— Também acho, miss. Obrigado — disse Sheeling, retribuindo o sorriso. Por Deus, pensou ele, nunca a tendo visto antes, quem pode culpar Malcolm? — Bom dia, miss.
Ele bateu continência e se retirou, embora não desejasse sair agora, pelo menos por mais algum tempo.
— Desculpe interromper, Malcolm, mas disse que eu viesse buscá-lo para o almoço, que será com Sir William... e espero que não tenha esquecido que marquei uma aula de piano com André esta tarde e combinei para tirarmos nosso daguerreótipo às cinco horas. Olá, Jamie.
— Nosso retrato?
— Isso mesmo. Lembra daquele italiano engraçado que chegou com o último navio de correspondência, procedente de Hong Kong, para passar uma temporada aqui? Ele faz retratos e garante que vamos ficar muito bonitos!
A maior parte da preocupação de Malcolm se dissipou e ele sentiu toda a presença de Angelique, babando por ela, embora a tivesse visto apenas uma hora antes — café em sua suíte às onze horas, um hábito que ela instituíra, e que ele adorava. Durante as últimas duas ou três semanas, a disposição amorosa de Angelique parecia ter desabrochado ainda mais, apesar de ela consumir muito do seu tempo em passeios a cavalo, prática de arco e flecha, aulas de piano, planejando saraus, ou escrevendo seu diário ou cartas, o que era um modo de vida para todos. Mas, a cada momento que passava em sua companhia, ela era tão atenciosa e terna quanto uma mulher podia ser. O amor e a necessidade que sentia dela cresciam a cada dia, sufocando-o com seu poder.
— O almoço será a uma hora, querida, e passa um pouco de meio-dia —disse Malcolm e, por mais que não quisesse que ela se retirasse, acrescentou: — Pode nos dar alguns minutos?
— Claro.
Com extrema graça, Angelique pareceu dançar até ele, beijou-o e foi para sua suíte, ao lado. Seu perfume perdurou como uma lembrança deliciosa.
Os dedos de Malcolm tremeram ao romperem o último lacre. Havia três cartas lá dentro. Duas de sua mãe, uma para ele, outra para Jamie. A terceira carta era de Gordon Chen, o compradore da companhia e seu tio.
— Tome aqui — murmurou ele, entregando a carta para Jamie.
Seu coração batia forte, desejando que Sheeling não tivesse chegado. As outras duas cartas ardiam em seus dedos.
— Vou deixá-lo sozinho — disse Jamie.
— Não. As más notícias precisam de companhia. — Malcolm levantou os olhos. — Abra a sua.
Jamie obedeceu e leu rapidamente. Seu rosto ficou vermelho.
— É particular, Jamie?
— Diz o seguinte: “Caro Jamie”... é a primeira vez que ela usa esse tratamento em muito tempo... “você pode mostrar esta carta a meu filho, se assim o desejar. Estarei enviando Albert MacStruan, assim que puder providenciar, do nosso escritório em Xangai. Deve aceitá-lo como seu sub e lhe ensinar tudo o que puder sobre a nossa operação japonesa, para que, a menos que duas coisas aconteçam, ele possa assumir o comando, quando você deixar a companhia. A primeira coisa é o retorno de meu filho a Hong Kong até o Natal. A segunda é você acompanhá-lo.” — Jamie fitou-o, desolado. — É isso. E mais a assinatura.
— Não, não é isso! — exclamou Malcolm, sentindo que o próprio rosto se tornava quente. — Assim que Albert chegar, terá de voltar no mesmo navio.
— Não há mal nenhum em deixá-lo ficar por alguns dias, dar uma olhada nas coisas. É um bom sujeito.
— A mãe... nunca imaginei que ela pudesse ser tão cruel: se eu não obedecer e me submeter, você está despedido...
Os olhos de Malcolm desviaram-se para a cômoda. Durante as últimas semanas, fizera um imenso esforço para limitar seu consumo a uma vez por dia, mas houvera ocasiões em que fracassara.
— O láudano com moderação, Malcolm — dissera o Dr. Babcott —, é uma panacéia para a dor.
Ele pedira que Malcolm lhe mostrasse o medicamento, não para tirá-lo, apenas para verificar o conteúdo.
— É uma poção bastante forte. Lembre-se de que não é uma cura e, para algumas pessoas, se torna um vício.
— Não para mim. Preciso disso por causa da dor. Acabe com a dor e eu deixarei de tomar.
— Lamento, meu amigo, mas eu bem que gostaria de poder. Seus órgãos internos foram bastante lesionados, não demais, graças a Deus, mas mesmo assim levará algum tempo para uma cura completa.
Tempo demais, pensou Malcolm agora, ou estou pior do que Babcott quer admitir? Ele olhou para as duas cartas, relutando em abri-las. Era muita sordidez usar Jamie como arma.
— Uma indignidade.
— Sua mãe tem certos direitos — murmurou Jamie.
— Ela não é tai-pan, eu é que sou. O testamento do pai foi claro. — A voz de Malcolm era apática, os pensamentos em turbilhão. — Acho que o velho tio Sheeley tinha razão, você tem de fazer jus ao título, não é mesmo?
— Você é o tai-pan. — Jamie falou com extrema gentileza, embora soubesse que não era verdade. — É estranho que Sheeling tenha se referido a Orlov. Há anos que eu não pensava nele. Eu me pergunto o que aconteceu com ele.
— Eu também — disse Malcolm, distraído. — O pobre coitado se tornou um homem marcado depois que explodiu em pleno mar o filho número um de Wu Sung Choi. Deve ter sido seqüestrado pelos piratas do Lótus Branco. Macau é um lugar perigoso, de fácil acesso à China, e o Lótus Branco tem espiões por toda parte. Eu detestaria estar na lista deles...
A voz definhou. Ele baixou os olhos para as cartas, absorto em seus pensamentos. Jamie esperou um pouco e depois disse:
— Dê-me um grito, se eu puder ajudar. Vou examinar o resto da correspondência.
Ele saiu. Malcolm não ouviu a porta fechar. Havia o pós-escrito “eu amo você” na carta da mãe, o que indicava que não continha nenhuma mensagem secreta:
Meu querido mas pródigo filho: Eu planejava viajar no Dancing Cloud, mas decidi contra isso no último minuto, já que Duncan passava mal, com o crupe outra vez. Talvez o que eu tenha a dizer seja melhor por escrito, pois assim não haverá equívocos.
Recebi suas mal-avisadas cartas sobre o que vai fazer e o que não vai fazer, sobre seu “noivado”, Jamie McFay, miss Richaud, etc. — e sobre os cinco mil fuzis. Escrevi imediatamente e cancelei essa encomenda extravagante.
Chegou o momento para decisões às claras. Já que você não se encontra aqui, e não quer fazer o que peço, eu as tomarei. Para o seu conhecimento particular, tenho o direito de fazer isso.
Quando seu pai estava morrendo, pobre homem, não havia tempo de esperar pelo seu retorno, e por isso, quase que no último alento, ele me tornou tai-pan de fato, de acordo com todos os dispositivos no testamento e legado de Dirk —alguns deles terríveis —, todos os quais têm de ser aceitos, diante de Deus, e devem ser mantidos em segredo, de tai-pan para tai-pan. Na ocasião, era nossa expectativa que eu passaria o comando para você, assim que voltasse. Uma das leis fixadas por Dirk diz o seguinte: É dever do tai-pan jurar absoluta convicção na integridade de seu sucessor. Não posso fazer isso por você no momento. Tudo isso, mais o que se segue, repito, é apenas para seu conhecimento particular — prejudicaria a Struan, se fosse divulgado, e por isso deve destruir a carta depois de lê-la.
Pela correspondência de hoje para a Escócia, ofereci o posto de tai-pan a seu primo Lochlin Struan, filho de tio Robb, com quatro condições: primeiro, que ele venha imediatamente para Hong Kong, e passe três meses em treinamento aqui; como você sabe, ele é bem versado nas operações da companhia, mais do que você em tudo o que se refere à Grã-Bretanha, embora você seja de longe mais capacitado e melhor treinado; segundo, que ele concorde em manter tudo isso em segredo; terceiro, que ao final do período de experiência, diante de Deus, farei a escolha final entre vocês dois, e minha decisão será inapelável, é claro; quarto, que se você recuperar o juízo perfeito, ele concorda que eu devo escolhê-lo, mas ele será o seguinte, caso você não tenha filhos, com Duncan em terceiro.
Recuperar seu juízo perfeito, meu filho, significa voltar a Hong Kong de imediato, o mais tardar até o dia de Natal, sozinho, a não ser pela companhia de Jamie McFay (e do Dr. Hoag, caso queira que ele viaje junto), para conversar sobre seus planos futuros, assumir os deveres prementes e se preparar para a posição para a qual foi treinado durante toda a sua vida. Caso você demonstre ser satisfatório, eu o promoverei a tai-pan quando completar vinte e um anos, a 21 de maio.
Mostrei esta carta a Gordon Chen e pedi-lhe que comentasse o que julgasse necessário, pois nosso compradore deve, mas DEVE mesmo, pela Lei de Dirk, participar de todas as discussões sobre o poder. Sua mãe devotada. PS. Eu amo você, e um P.P.S.: Obrigada por sua informação sobre o Parlamento, mais uma manifestação da habitual estupidez deles (via o estranho canal do nosso arquiinimigo Greyforth. Tome cuidado com ele, é um homem que não nos deseja nada de bom, mas você já sabe disso melhor do que eu). Mas é verdade, ouvimos os rumores, embora o governador ainda negue qualquer conhecimento. Escrevi para os nossos parlamentares aos primeiros rumores, dizendo-lhes que acabassem com esse absurdo, se for verdade, e para Bengala, alertando todo mundo ali. Depois de sua carta, escrevi de novo. É realmente hora de você voltar para casa, assumir seu dever e enfrentar nossos crescentes problemas.
— Dever! — gritou Malcolm para a parede.
Ele amassou a carta numa bola, arremessou-a contra a parede com toda força, machucando-se com a própria violência. Levantou-se, cambaleando, claudicou até a cômoda. O vidro continha sua dose noturna. Ele tomou tudo, quebrou o vidro no tampo de carvalho, praguejando, e quase caiu, ao tatear de volta para a cadeira.
— Ela não pode fazer isso! Não pode! Aquela... aquela desgraçada não pode fazer isso... não pode! “Voltar sozinho” significa sem Angel... não farei isso e ela não vai interferir...
Malcolm continuou a meio pensar e meio falar, as imprecações se sucedendo, até que o opiato entrou na corrente sanguínea e começou a proporcionar o alívio letal.
Depois de algum tempo, ele notou a outra carta, do compradore, Gordon Chen meio-irmão de seu pai, um dos muitos filhos ilegítimos de Dirk Struan.
— Conhecemos no mínimo três — disse ele, em voz alta.
Meu querido sobrinho: Já escrevi para dizer o quanto lamento sua desventura, os ferimentos, o acidente. Lamento ainda mais saber que há uma desavença entre você e sua mãe, que pode se tornar perigosa e até desintegrar a Casa Nobre — portanto, é meu dever comentar e aconselhar. Ela me mostrou a carta que escreveu para você. Não lhe mostrei a minha, nem mostrarei. Na minha, tratarei apenas da posição de tai-pan, e darei o meu conselho muito particular sobre a moça: seja chinês.
Fatos: embora você seja formalmente o herdeiro de meu meio-irmão, sua mãe alega corretamente que não passou pela cerimônia obrigatória, confirmações, juramentos e assinaturas determinados pelo testamento e legado de meu honrado pai, que são necessários antes que se torne tai-pan. Para que tudo seja válido, deve ser testemunhado pessoalmente e confirmado por escrito pelo atual compradore, que deve ser do meu ramo da casa de Chen. Só assim o escolhido vira o tai-pan.
Antes de morrer, seu pai designou sua mãe para tai-pan. Foi feito da maneira correta, com todos os detalhes obrigatórios. Eu testemunhei. Ela é tai-pan, legalmente, e tem o poder sobre a Casa Nobre. É verdade que seu pai e sua mãe esperavam que o cargo fosse transmitido logo para você, mas ela também está certa ao dizer que uma das obrigações do tai-pan é atestar diante de Deus a integridade de seu sucessor, e também é verdade que a Casa Nobre só é dirigida por quem o tai-pan, seja homem ou mulher, decidir escolher, cabendo-lhe também determinar o momento da sucessão. Meu único conselho é o seguinte: seja sensato, engula seu orgulho, volte imediatamente, submeta-se, aceite um período de “experiência”, volte a ser um filho obediente, honrando seus ancestrais, para o bem da Casa. Obedeça à tai-pan. Seja chinês.
Malcolm Struan ficou olhando fixamente para a carta, seu futuro em ruínas, tudo mudado. Então ela é tai-pan! A mãe! Se tio Gordon assim o diz, é verdade! Ela me privou do meu direito hereditário, a mãe fez isso comigo!
Mas não é o que ela realmente queria, ao longo dos anos? Não foi ela quem sempre adulou, suplicou, conspirou, fez tudo o que era necessário, para dominar o pai, a mim, a todos nós? Suas irritantes orações familiares todos os dias, a igreja duas vezes aos domingos, nós a seguindo, quando uma única vez é mais do que suficiente. E a bebida? “A embriaguez é uma abominação”, citações da Bíblia o dia inteiro, ao ponto da insanidade, sem qualquer diversão em nossas vidas, a quaresma respeitada ao pé da letra, jejum, censuras à exuberância de Dirk Struan, que Deus o amaldiçoe, sempre dizendo como era terrível ter morrido tão jovem... nunca dizendo que ele morreu no tufão com a amante chinesa nos braços, um fato que era e ainda é o escândalo da Ásia... sempre com sermões sobre os males da carne, a fraqueza do pai, a morte de minha irmã e dos gêmeos...
Subitamente, ele se empertigou na cadeira. Insanidade? É isso mesmo! Eu poderia interná-la num hospício? Talvez ela seja insana. Será que tio Gordon me ajudaria... Pare! Eu é que estou louco. Eu que...
— Malcolm, está na hora do almoço.
Ele levantou os olhos e se descobriu a falar com Angelique, dizendo como ela estava bonita, mas será que se importaria de ir sozinha, pois ainda havia umas poucas coisas importantes a serem decididas, cartas a escrever — não, nada que a afetasse, apenas problemas de negócios —, durante todo tempo recordando o “volte sozinho” e “submeta-se, ela é tai-pan” martelando em sua mente.
— Por favor, Angelique.
— Claro, se é isso o que você quer. Mas tem certeza de que se sente bem, meu amor? Não está com febre, não é?
Malcolm permitiu que ela pusesse a mão em sua testa, puxou-a para seu colo, beijou-a, Angelique retribuiu, soltou uma risada alegre, ajeitou o corpete, disse que voltaria depois da aula de piano, que ele não precisava se preocupar, e deveria usar um traje de noite para o retrato, garanto que vai ficar impressionado com o meu novo vestido de baile.
E depois ele voltou a ficar sozinho, com seus pensamentos, as mesmas palavras remoendo no cérebro: “volte sozinho... Ela é tai-pan.” Como a mãe ousa cancelar a encomenda dos fuzis... o que ela sabe deste mercado?
Tai-pan legalmente. Portanto, ela é quem manda. Com toda certeza, até eu completar vinte e um anos, e mesmo depois. Até que ela não seja mais. Até...
Ah, essa é a solução? Foi o que tio Gordon quis dizer ao escrever “seja chinês”? Ser chinês como? Apenas ser paciente? Como um chinês enfrentaria minha situação?
E pouco antes de mergulhar em seu sono especial, Malcolm sorriu.
Era sábado, uma tarde agradável, e uma partida de futebol fora marcada. A maior parte da colônia foi assistir, com as brigas e histeria habituais, um delírio quando um lado ou outro marcava um gol, exército contra marinha, cinqüenta homens de cada lado. O placar era exército 2 marinha 1, e o primeiro tempo ainda não terminara. As substituições e brigas eram permitidas, quase tudo era permitido, e o único objetivo era forçar a bola a passar entre as estacas do adversário.
Angelique, sentada à altura do campo, entre Sir William e o general, estava cercada pelos demais convidados do almoço — Seratard e os outros ministros, André e Phillip Tyrer —, que haviam decidido assistir ao jogo. Havia ainda ali, disputando sua atenção, oficiais britânicos e franceses, inclusive Settry Pallidar e Marlowe, o único oficial da marinha britânica. Jamie sentava perto. Quando ela voltara apressada para dizer a Malcolm que cancelara a aula de piano, o que era outra desculpa para não ter de ficar sentada com ele, e perguntar se não gostaria de ir ao jogo, encontrara-o dormindo. Por isso, pedira a Jamie para acompanhá-la.
— É melhor mesmo deixá-lo dormir... escreverei um bilhete — dissera Jamie satisfeito por qualquer pretexto para distraí-lo do desastre iminente. — É uma pena que ele não possa assistir ao jogo. Malcolm era um entusiasta dos esportes, como sabe, um grande nadador, excelente no críquete e também no tênis. É triste que ele esteja... que não seja mais como antes.
Angelique percebera que Jamie estava tão sombrio quanto Malcolm, mas não tinha importância, pensara ela, os homens em geral são sérios demais, e era ótimo ter uma companhia, para frustrar os outros. Desde o grande dia, quando a coisa que crescia em seu ventre deixara de existir, e recuperara a saúde e o vigor, sentindo-se melhor do que nunca, ela concluíra que seria uma insensatez ficar a sós com qualquer um deles. Exceto André. Para sua satisfação, ele mudara, não era mais ameaçador, nem se referia à ajuda que lhe prestara, o que ela preferia esquecer. Também não a fitava mais com grosseria, com olhos em que se podia perceber facilmente a crueldade, embora a crueldade ainda espreitasse em seu íntimo.
Era importante mantê-lo como amigo, pensou Angelique, consciente de sua vulnerabilidade. Escute, mas seja cautelosa. Algumas coisas que ele diz são boas: “Esqueça o que aconteceu antes, pois nunca aconteceu.”
André tem razão. Nada aconteceu. Nada, exceto que ele está morto. Amo Malcolm, gerarei seus filhos, serei a esposa perfeita, uma grande anfitriã, e nosso salão em Paris será...
Uma gritaria atraiu sua atenção. Um bando de jogadores da marinha forçara a passagem da bola entre os postes do adversário, mas os homens do exército tiraram a bola lá de dentro, e agora começara um tumulto geral, a marinha insistindo que fora gol, o exército contestando. Dezenas de marujos entraram no campo para se juntar à confusão, seguidos pelos soldados, e logo a briga se tornou generalizada, mercadores e outros aplaudindo e rindo, apreciando o espetáculo, enquanto o árbitro, Lunkchurch, tentava desesperadamente permanecer fora da luta e ao mesmo tempo restabelecer um pouco de ordem no campo.
— Ei, olhem só... o pobre coitado está sendo chutado até a morte!
— Não precisa se preocupar, Angelique, é apenas uma brincadeira mais rude — disse o general. — É claro que não foi gol.
O homem era da marinha e por isso não o interessava. Sir William, no outro lado de Angelique, também se encontrava tão excitado quanto os outros, pois não havia nada como uma boa briga para alegrar os espíritos. Mesmo assim, consciente da presença de Angelique, inclinou-se para o general e disse:
— Não acha que devemos continuar com o jogo, Thomas?
— Tem toda razão. — O general gesticulou para Pallidar. — Acabe com essa briga, por favor... argumente com eles.
Pallidar, dos Dragões, entrou no campo, sacou seu revólver e disparou para o ar. Todos ficaram paralisados.
— Escutem bem! — gritou ele, atraindo a atenção geral. — Todos fora do campo, à exceção dos jogadores. A ordem do general: outra confusão e a partida está cancelada; os envolvidos serão disciplinados. Vamos logo!
O campo começou a se esvaziar, muitos claudicando, os feridos sendo arrastados por seus companheiros.
— E agora, senhor árbitro, foi gol ou não?
— Bom, capitão, sim e não...
— Foi gol ou não?
O silêncio era opressivo. Lunkchurch sabia que qualquer coisa que dissesse seria errada. Decidiu que a verdade era melhor:
— Um gol da marinha!
Entre aplausos e vaias, ameaças e contra-ameaças, Pallidar voltou, empertigado, muito satisfeito consigo mesmo.
— Oh, Settry, que bravura! — exclamou Angelique, com tanta admiração que Marlowe e os outros sentiram-se roídos de ciúme.
— Bom trabalho, meu caro — comentou Marlowe, relutante, enquanto o jogo, a luta, recomeçava, sob aplausos, abafados por vaias e imprecações.
— Um bom jogo, Thomas, não acha? — disse Sir William.
— É evidente que não foi gol. O árbitro...
— Conversa fiada! Cinco guinéus dizem que a marinha vai ganhar.
O pescoço do general assumiu uma tonalidade vermelha mais escura, o que deixou Sir William satisfeito e ajudou-o a superar o mau humor. Ultimamente só havia brigas e discussões na colônia e na cidade dos bêbados, cartas irritantes, protestos do Bakufu e da alfândega, e ele não esquecera a estupidez do general durante o motim.
Aumentando seus pesares, o último navio de correspondência só trouxera mais notícias ruins e prognósticos sombrios do Ministério do Exterior, alertando que a falta de apoio financeiro no Parlamento acarretaria grandes cortes no pessoal diplomático e “embora os cofres do império estejam abarrotados, não haverá aumentos de salário este ano. A guerra americana promete ser a mais brutal da história, por causa da invenção recente da granada, cartucho de bronze, fuzil de carregar pela culatra, metralhadora e canhão de carregar pela culatra; com a derrota das forças da União em Shiloh e na segunda batalha de Bull Run, prevê-se, no momento, que a guerra será vencida pelos Confederados, a maioria dos analistas na City já concluiu que o presidente Lincoln é fraco e ineficaz, mas devo ressaltar, meu caro Willie, que a política de sua majestade continua a mesma: apoiar os dois lados, manter a cabeça abaixada e permanecer fora desse conflito...”
As notícias européias também eram ruins: tropas de cossacos russos haviam massacrado milhares de poloneses em Varsóvia, que realizavam uma manifestação contra o domínio russo; o príncipe Von Bismarck fora designado ministro-presidente da Prússia e corriam rumores de que se preparava para a guerra contra a França expansionista; a Áustria-Hungria e a Rússia pareciam se encontrar à beira da guerra outra vez; era inevitável a ocorrência de mais combates nos Bálcãs...
E assim por diante, ad nauseam, pensou Sir William, franzindo o rosto. Nada muda! E não posso acreditar que o Bakufu fará tudo o que prometeu, o que significa que terei de impor nossa presença aqui. Ensinarei aos japoneses que uma promessa é uma promessa, se feita à soberania britânica, e lembrar a mesma coisa a Zergeyev, Seratard e aos outros.
Bombardear Iedo seria a solução mais simples e mais fácil, o que os tornaria submissos num instante. Mas tenho o problema de Ketterer... talvez sua incursão pelos livros de história o tenha mudado. Que esperança...
— Um rublo por seus pensamentos, Sir William — disse o conde Zergeyev, com um sorriso, oferecendo um frasco de prata com o brasão da família gravado em ouro. — Vodca é bom para pensamentos.
— Obrigado.
Sir William tomou um gole, sentiu o fogo descer pela goela, lembrando-o de todos os momentos maravilhosos na embaixada em São Petersburgo, quando ainda se encontrava na casa dos vinte anos, um centro do poder, não um posto de fronteira como Iocoama, bebendo e se divertindo, bailes, balés, dachas, vida noturna, luxo — para os poucos privilegiados —, excitamento e intriga, jantares maravilhosos e Vertinskya, nunca longe de seus pensamentos.
Por cinco de seus sete anos ali, ela fora sua amante, a filha mais nova de um ourives muito apreciado na corte, uma artista como o pai, que nunca se incomodara com a ligação, a mãe russa do próprio William gostando da moça e querendo o casamento dos dois.
— Sinto muito, mamãe, mas não há a menor possibilidade, por mais que eu deseje. O ministério nunca aprovaria. Terei de casar com Daphne, a filha de Sir William. Sinto muito...
Ele tornou a beber, a angústia pela separação ainda persistente.
— Estava pensando em Vertinskya — disse ele, em russo.
— Ah, sim! As moças da Mãe Rússia são muito especiais — comentou Zergeyev, compadecido, na mesma língua. — O amor delas, se um homem recebe essa bênção, é eterno, duas vezes eterno.
A ligação contara com a indulgência dos círculos diplomáticos e fora bem documentada pela Cheka, a polícia secreta do czar, e por isso parte do dossiê de Sir William, que Zergeyev lera, como não podia deixar de ser. Uma estupidez a moça se matar, pensou ele; nunca tivera certeza se William tomara conhecimento do suicídio, ocorrido pouco depois de seu retorno a Londres. Isso nunca fora parte do plano, nem era seu dever lhe contar. Por que ela fizera isso? Por causa de um homem tão rústico? Não era possível, com toda certeza; mas qualquer que fosse o motivo, era uma pena, pois sua utilidade, para nós dois, teria se prolongado por muitos mais anos.
— Talvez o seu Ministério do Exterior o envie de novo para lá... e há outras Vertinskyas.
— Não há muita possibilidade de que isso venha a acontecer, infelizmente.
— Vamos torcer. A outra esperança, mon ami, é que seu lorde Palmerston veja a lógica que devemos ficar com as Kurilas. Como os Dardanelos... os dois lugares têm de ser russos.
Sir William percebeu o brilho nos olhos escuros.
— Também não há muita possibilidade.
O apito do meio tempo soou, o placar ainda era de dois a dois, com recriminações, elogios e promessas de terríveis punições para os perdedores. No mesmo instante, Marlowe aproximou-se de Jamie.
— Acha que o Sr. Struan e... hum... e miss Angelique gostariam de se juntar a mim a bordo do Pearl para o almoço e um dia de passeio? — Uma pausa, e ele acrescentou, como se fosse um pensamento repentino: — Preciso fazer algumas experiências, assim que a esquadra voltar, e seria um prazer tê-los a bordo.
— Creio que gostariam. Por que não pergunta a ele?
— Quando seria o melhor momento?
— Qualquer dia por volta das onze horas... ou pouco antes do jantar.
— Muito obrigado. — Marlowe estava radiante, mas logo percebeu a palidez de Jamie. — Você está bem?
— Estou, sim, obrigado.
Jamie forçou um sorriso e afastou-se. Estivera considerando seu futuro. Poucas semanas antes, escrevera para Maureen Ross, sua noiva, na Escócia, dizendo que não esperasse mais por ele — quase três anos desde que a vira pela última vez, cinco anos de noivado —, que sentia muito, sabia que fora abominável mantê-la à espera por tanto tempo, mas finalmente se convencera, de forma absoluta, que o Oriente não era lugar para uma dama, e também que a Ásia não era seu lar, nem Iocoama, Hong Kong, Xangai, ou qualquer outro lugar, mas vivia aqui, e não tinha a menor intenção de ir embora. Sabia que fora injusto com ela, mas o noivado estava encerrado. Aquela seria a última carta.
Por dias sentira-se nauseado, antes de escrever, como também depois de escrever, e depois da partida do navio de correspondência. Esse capítulo estava concluído. E agora o capítulo Struan, que parecia tão promissor, com uma promoção inevitável no próximo ano, também vai terminar. Ah, Deus Todo-Poderoso! Não há a menor possibilidade de Malcolm voltar atrás e assim só me restam mais umas poucas semanas para decidir o que fazer... e não posso esquecer que Norbert voltará antes disso. E então? Será que vão mesmo travar um duelo? Farão o que bem quiserem, mas ainda assim você tem de proteger Malcolm, da melhor forma que puder.
E, depois, um novo emprego. Onde? Eu gostaria de ficar aqui, pois tenho Nemi, uma vida boa, com um futuro em aberto para construir. Hong Kong e Xangai já estão em grande parte construídas, com uma forte estrutura instalada — grande se você é um Struan, um Brock, um Cooper, e assim por diante, mas difícil de romper em caso contrário. A primeira opção seria aqui. Com quem? Com Dmitri, na Cooper-Tillman?
Poderiam me aproveitar? Claro, mas não como o homem principal. Na Brock? Claro, também, até pensei nisso nas profundezas da injustiça de Tess Struan, mas não serei o primeiro com Norbert aqui... mas se Malcolm o matasse, que golpe seria, que vingança! Lunkchurch? Com toda certeza, mas quem poderia querer trabalhar para aquele patife grosseiro? Que tal trabalhar por conta própria? Seria o melhor, todavia também o mais arriscado, e quem o patrocinaria? Precisaria de dinheiro. Tenho algum guardado, mas não o suficiente. Precisaria de muito para começar, muito para cumprir os prazos de espera, para cartas de crédito e seguros, tempo para arrumar agentes em Londres, San Francisco, Hong Kong, Xangai e toda a Ásia, Paris... e Londres, São Petersburgo. Não posso esquecer que os russos são grandes compradores de chá, negociarão zibelinas e outras peles, que proporcionam grandes lucros, e ainda têm contatos no Alasca russo e postos comerciais em toda a costa oeste sul-americana. Uma boa idéia, mas arriscada, um prazo prolongado entre a compra, a venda e o lucro, muitos riscos para os navios, as perdas no mar e para a pirataria...
Perto dali, Phillip Tyrer também tinha os olhos perdidos na distância. Pensava em Fujiko, e quase soltou um gemido alto. Na noite anterior, com seu amigo Nakama — Hiraga — para ajudá-lo, tentara iniciar as negociações para a sua exclusividade. Mama-san Raiko revirara os olhos, sacudira a cabeça, dizendo Sinto muito, duvido que seja possível, a moça é muito valiosa, procurada por muitos gai-jin importantes, com a insinuação de que até Sir William era cliente ocasional, embora nunca o mencionasse pelo nome, o que deixara Tyrer inquieto e ainda mais ansioso.
Raiko dissera que antes mesmo de discutir os detalhes financeiros e outros, teria primeiro de perguntar a Fujiko se consideraria a possibilidade, aumentando seu choque ao acrescentar que seria melhor se ele não tornasse a vê-la até e a menos que um contrato fosse acertado. Levara mais meia hora para se chegar a um compromisso, sugerido por Nakama: durante o período de espera, ele poderia se encontrar com Fujiko, mas nunca mencionaria a questão, nem discutiria o problema diretamente com ela, já que a responsabilidade era da mama-san.
Graças a Deus por Nakama, disse ele a si mesmo, num ímpeto de ansiedade, quase estraguei tudo. Se não fosse por Nakama...
Seus olhos focalizaram e ele viu Seratard e André Poncin absorvidos numa conversa particular; não muito longe, Erlicher, o ministro suíço, também mantinha uma conversa particular, com Johann, que se concentrava em cada palavra.
O que é tão urgente e importante para que esses homens discutam durante uma partida de futebol, especulou Tyrer, lembrando a si mesmo que era melhor não se entregar a devaneios, devia ser adulto e consciente de que nem tudo corria bem no Japão; tinha de cumprir seu dever para com a coroa e Sir William... Fujiko podia esperar até a noite, quando talvez obtivesse uma resposta.
Maldito Johann! Agora que o astuto suíço estava deixando seu posto como intérprete, seu fardo aumentava, deixando-lhe pouco tempo para dormir e se divertir. Ainda naquela manhã, Sir William tivera uma explosão, injusta, pensou Tyrer, amargurado:
— Pelo amor de Deus, Phillip, você tem de dedicar mais horas ao trabalho! Quanto mais depressa se tornar fluente, melhor para a coroa; quanto mais depressa Nakama for fluente em inglês, melhor para a coroa. Faça jus ao dinheiro que recebe, pare de relaxar, pressione Nakama, faça-o merecer o seu pão de cada dia ou ele irá embora!
Hiraga estava na legação, lendo em voz alta uma carta que Tyrer escrevera para Sir William, e que ele ajudara a traduzir, para ser entregue no dia seguinte ao Bakufu. Embora não entendesse muitas palavras, sua leitura vinha melhorando depressa.
— Você tem aptidão para o inglês, meu caro Nakama — dissera Tyrer, várias vezes.
Isso o agradara, embora normalmente os elogios ou críticas de um gai-jin não tivessem a menor importância. Ao longo das semanas, a maior parte de suas horas acordado fora consumida em absorver palavras e frases, repetindo-as muitas vezes, a tal ponto que a linguagem de seus sonhos se tornara misturada.
— Por que quebrar a cabeça, primo? — perguntara Akimoto.
— Devo aprender o inglês o mais depressa possível. Há muito pouco tempo, o líder gai-jin é grosseiro e destemperado, e não faço idéia de por quanto tempo mais poderei ficar aqui. Mas, se conseguir aprender a ler, Akimoto, quem sabe quantas informações poderei obter? Não pode acreditar no quanto eles são estúpidos em relação a seus segredos. Há centenas de livros, panfletos e documentos por toda parte. Tenho acesso a tudo, posso ler qualquer coisa e Taira sempre responde às minhas perguntas mais óbvias.
A conversa ocorrera na noite anterior, na casa segura que tinham na aldeia, e ele estava com uma toalha molhada em torno da cabeça dolorida. Não mais se encontrava confinado à legação. Podia agora ficar na aldeia, se assim desejasse, embora em muitas noites se sentisse cansado demais para sair, e dormisse numa cama extra no bangalô que Tyrer partilhava com Babcott. Por necessidade, George Babcott tivera de saber tudo a seu respeito.
— Maravilhoso! Nakama poderá me ajudar também com meu japonês e com o meu dicionário! Vou organizar as aulas, fazer um curso intensivo!
O sistema de Babcott era bastante radical. Aprender era uma diversão, e logo quase se desenvolvera num jogo, um jogo hilariante para determinar quem podia aprender mais depressa, um estilo novo para Hiraga e Tyrer, que encaravam o estudo como uma coisa séria, a ser absorvida pela decoração e repetição.
— As aulas se tornam muito rápidas, Akimoto, e fica mais fácil a cada dia... faremos a mesma coisa em nossas escolas quando sonno-joi assumir o poder.
Akimoto rira.
— Mestres gentis e bondosos? Sem surras? Nunca! Mais importante, o que me diz da fragata?
Ele dissera a Akimoto que Tyrer prometera pedir a um capitão amigo permissão para levar os dois a bordo, explicando que Akimoto era filho de um rico construtor de barcos de Choshu, viria visitá-lo por alguns dias e poderia ser um amigo valioso no futuro.
Pela janela aberta, Hiraga ouvia os gritos da multidão no campo em que se jogava a partida de futebol. Suspirou e pegou o dicionário escrito a mão de Babcott Era o primeiro dicionário que ele já vira e o primeiro inglês-japonês e japonês-inglês que já existira, Babcott o fizera com listas de palavras e frases recolhidas por ele próprio, por mercadores e sacerdotes, tanto católicos quanto protestantes, e com outras traduzidas de equivalentes holandês-japonês. No momento, o dicionário ainda era pequeno. Mas aumentava a cada dia, e o fascinava.
Pelo que se dizia, cerca de dois séculos antes um padre jesuíta chamado Tsukku-san escrevera uma espécie de dicionário português-japonês. Antes disso, jamais existira um dicionário japonês de qualquer tipo. Com o passar do tempo, haviam aparecido uns poucos dicionários holandês-japonês, guardados com o maior cuidado.
— Não precisa trancar isto, Nakama — declarara Babcott no dia anterior, deixando-o espantado. — Esse não é o estilo britânico. Temos de espalhar as informações, deixar que todos aprendam; quanto mais pessoas instruídas, melhor será para o país. — Ele sorrira, antes de acrescentar: — É claro que nem todos concordam comigo. Seja como for, na próxima semana, com a ajuda de nossos prelos...
— Prelos, por favor?
Babcott explicara:
— Muito em breve começaremos a imprimir coisas, e, se prometer escrever uma história de Choshu, prometo que darei uma cópia do meu dicionário só para você.
Uma semana antes, impressionado, Hiraga mostrara a Akimoto um exemplar do Yokohama Guardian.
— São as notícias do dia, do mundo inteiro, e eles preparam uma versão nova todos os dias, com quantas cópias quiserem... milhares, se for necessário...
— Impossível! — protestara Akimoto. — Nossos melhores blocos de impressão não podem...
— Vi eles fazerem, Akimoto. É tudo com máquinas. Arrumam as palavras no que eles chamam de tipos, em linhas, lêem da esquerda para a direita, o oposto de nós, que lemos da direita para a esquerda e para baixo nossas colunas de caracteres, coluna por coluna. É incrível. Vi o homem da máquina fazer palavras com símbolos individuais, chamados “letras romanas”... dizem que todas as palavras em qualquer língua podem ser escritas com apenas vinte e seis desses símbolos e...
— Impossível!
— Escute o resto. Cada letra ou símbolo sempre tem o mesmo som; assim, outra pessoa pode ler as letras individuais ou formar palavras com elas. Para fazer este “papel de notícias”, o impressor usa combinações de pequenas peças de ferro com o símbolo cortado na extremidade... desculpe, não é bem ferro, mas uma espécie de ferro que eles chamam de “aço”. O homem pôs as letras numa caixa, besuntada com tinta, passou o papel por cima, e apareceu uma nova página impressa, que continha uma coisa que eu escrevera um momento antes. E Taira leu exatamente! Um milagre!
— Mas como podemos fazer isso com a nossa língua? Cada palavra é um caractere especial, com até cinco ou sete maneiras diferentes de dizer, nossa escrita é diferente e...
— O doutor gigante escuta quando eu digo uma palavra japonesa, escreve em suas letras romanas, e depois Taira diz a palavra, só lendo os símbolos.
Fora preciso mais explicação de Hiraga para convencer Akimoto. Ao final, ele comentara, exausto:
— Tantas coisas novas, idéias novas, muito difícil para mim compreender, ainda mais explicar. Ori era um tolo por não querer aprender.
— Ainda bem, para nós, que ele morreu, foi enterrado e esquecido pelos gai-jin. Durante dias, pensei que estávamos perdidos.
— Eu também.
Hiraga encontrou a palavra em inglês que procurava, “reparações”. A tradução japonesa era a seguinte: “dinheiro a ser pago por um crime admitido”. Isso o deixou perplexo. O Bakufu não cometera nenhum crime. Dois Satsumas, Ori e Shorin, haviam apenas matado um gai-jin, agora ambos estavam mortos, dois por um gai-jin, nada mais justo. Por que deveriam exigir “reparações”, ele pronunciou a palavra em voz alta, o som mais próximo de que sua língua era capaz.
Levantou-se da mesa, para atenuar a pressão nos joelhos, já que era difícil sentar como um gai-jin durante o dia inteiro, e foi até a janela. Usava suas roupas ocidentais, mas tinha um tabe macio nos pés, pois ainda achava as botinas inglesas desconfortáveis demais. O dia ainda era bom, os navios ancorados, barcos pesqueiros e outras embarcações deslizando de um lado para outro. A fragata o atraía. Seu excitamento aumentou. Muito em breve conheceriam seu interior, veriam as grandes máquinas a vapor de que Taira lhe falara. Ele olhou para uma fotografia recortada de uma revista e pregada na parede, do Grande Navio, um enorme navio de ferro que estava sendo construído na capital britânica, Londres, o maior que ele já vira, vinte vezes maior do que a fragata na baía. Era enorme demais para se conceber... era-lhe impossível compreender até mesmo “fotografar”, quase uma forma de magia. Hiraga estremeceu, depois percebeu que a porta para o corredor se achava entreaberta e, no outro lado, ficava a porta de Sir William. Pelo que ele sabia, não havia ninguém na legação, todos tinham saído para assistir ao jogo de futebol, e não eram esperados até o final da tarde.
Sem fazer barulho, ele foi abrir a porta de Sir William. Havia muitos papéis em cima da escrivaninha requintada, meia centena de livros nas prateleiras desarrumadas, um retrato da rainha deles e outros quadros nas paredes. Uma coisa nova num aparador. Um retrato numa moldura de prata. Hiraga viu apenas feiúra, uma mulher gai-jin vestida de maneira esquisita, com três crianças, e concluiu que devia ser a família de Sir William, a qual Tyrer comentara que deveria chegar em breve.
Ainda bem que sou japonês, e civilizado, com um pai, mãe, irmãos e irmãs bonitos, e com Sumomo para casar, se o casamento for meu karma. Sentiu-se feliz ao pensar que ela se encontrava em sua casa, sã e salva, mas depois, parado ali diante da mesa, a boa sensação logo se dissipou. Recordou todas as ocasiões inquietantes e nauseantes em que se postara de pé diante do líder gai-jin sentado respondendo a perguntas sobre Choshu, Satsuma, Bakufu, Toranagas, as perguntas se estendendo a todos os aspectos de sua vida pessoal e da vida no Nipão, agora quase uma ocorrência diária, os olhos de peixe lhe arrancando a verdade, por mais que preferisse mentir e confundir.
Hiraga teve o cuidado de não tocar em nada, presumindo que havia uma armadilha qualquer à sua espera, como ele teria feito, se deixasse um gai-jin sozinho num lugar importante. Foi nesse instante que ouviu uma voz irada lá fora e voltou apressado à janela de Tyrer para espiar. Para seu espanto, avistou Akimoto no portão, fazendo uma reverência para o guarda, que gritava e lhe apontava seu fuzil com baioneta. Seu primo usava roupas de trabalhador gai-jin e era evidente que estava muito nervoso. Hiraga saiu apressado, com um sorriso no rosto, tirou o chapéu para o guarda.
— Bom dia, senhor sentinela, esse meu amigo.
O guarda conhecia Hiraga de vista, sabia que era uma espécie de intérprete, e tinha passe permanente para entrar e sair da legação. Respondeu em tom cáustico, com palavras incompreensíveis, acenou para que Akimoto se afastasse e ordenou a Hiraga que dissesse “a este macaco para tomar cuidado ou vai levar um tiro na cabeça”. O sorriso de Hiraga manteve-se firme.
— Eu levar ele embora, sinto muito.
Pegando Akimoto pelo braço, Hiraga levou-o apressado por uma viela, que se estendia até a aldeia.
— Você enlouqueceu? Vir aqui...
— Concordo. — Akimoto ainda não se recuperara do susto de uma baioneta a um centímetro de sua garganta. — Concordo, mas o shoya, o ancião da aldeia, pediu que eu viesse chamá-lo, com urgência.
O shoya gesticulou para que Hiraga sentasse no outro lado da mesa baixa. Aqueles aposentos particulares, por trás de sua loja deliberadamente pobre e desarrumada, eram impecáveis, o tatame e os papéis da janela de shoji da melhor qualidade. A gata se refestelava em seu colo, os olhos malignos fixados no intruso. Havia xícaras de porcelana branca e verde em torno de um pequeno bule de chá de ferro.
— Por favor, um pouco de chá, Otami-san, lamento pela inconveniência — disse ele, usando o nome indicado por Hiraga. Serviu o chá, depois afagou a gata, suas orelhas tremeram, numa reação nervosa. — Por favor, peço desculpas por interrompê-lo.
O chá era aromático, de boa qualidade. Hiraga fez um comentário polido a respeito, sentindo-se contrafeito na presença do shoya com suas roupas européias. Era difícil sentar com aquele traje, e a ausência das espadas o perturbava. Depois das cortesias costumeiras, o shoya balançou a cabeça, meio para si mesmo, e fitou seu convidado, os olhos impassíveis na máscara de amabilidade.
— Chegaram notícias de Quioto, e achei que deveria ser informado imediatamente.
A inquietação de Hiraga aumentou.
— Que notícias?
—Parece que dez shishi de Choshu, Satsuma e Tosa atacaram o xógum Nobusada, em Otsu. A tentativa de assassinato fracassou e todos foram mortos.
Hiraga fingiu desinteresse, mas sentiu um calafrio por dentro. Quem seriam os dez e por que haviam fracassado?
— Quando foi isso?
O shoya nada vira para indicar se Hiraga sabia ou não do ataque.
— Há oito dias.
— Como pôde saber em tão pouco tempo?
Para seu espanto, o shoya enfiou a mão na manga e tirou um pequeno cilindro. Lá dentro havia um rolo de papel muito fino.
— Isto chegou hoje. Nossa zaibatsu da Gyokoyama tem pombos-correios para notícias importantes. — A mensagem chegara no dia anterior, mas ele precisara de tempo para decidir como lidaria com Hiraga. — Importante ter informações rápidas e acuradas, neh?
— Foram mencionados nomes?
— Não, nenhum nome, sinto muito.
— É a única informação?
Os olhos faiscaram. Para choque de Hiraga, ele acrescentou:
— Na mesma noite, em Quioto, lorde Yoshi e lorde Ogama, com suas forças, atacaram o quartel-general shishi, surpreendendo a todos e massacrando-os. Quarenta cabeças foram espetadas em chuços diante das ruínas. — O homem mais velho manteve o sorriso fora do rosto. — Otami-sama, quarenta seriam uma porcentagem grande dos nossos bravos shishi?
Hiraga deu de ombros, disse que não sabia, torcendo para que o shoya não pudesse determinar se mentia. Sua cabeça doía ao especular quem teria morrido, quem sobrevivera, quem os traíra, e como inimigos que nem Yoshi e Ogama Podiam agir juntos.
— Por que está me contando tudo isso?
Por um momento, o shoya baixou os olhos para a gata, seus olhos se abrandaram, os dedos começaram a afagar sua cabeça, a gata fechou os olhos em prazer, as unhas se estendendo e retraindo, sem ameaça.
— Parece que nem todos os emboscados foram liquidados — murmurou ele. — Dois escaparam. O líder, às vezes chamado de Corvo, cujo nome verdadeiro é Katsumata, conselheiro de confiança de Sanjiro de Satsuma, e um líder shishi de Choshu chamado Takeda.
Hiraga ficou bastante abalado ao descobrir que se sabia tanto, seus músculos se contraíram, pronto para atacar, matar com as próprias mãos. A boca se abriu mas ele não disse nada.
— Por acaso conhece essa Takeda, Otami-sama?
Hiraga teve um ímpeto de raiva pela impertinência, sentiu que o rosto corava, mas conseguiu manter algum controle.
— Por que me pergunta isso, shoya?
— Meu superior na Gyokoyama mandou, Otami-sama.
— Por quê? O que tudo isso representa para mim?
O shoya, para acalmar os próprios nervos — embora tivesse uma pequena pistola carregada na manga — serviu mais chá para os dois, sabendo que era um jogo perigoso e que não se devia brincar com aquele shishi. Mas ordens eram ordens, e o zaibatsu de Gyokoyama determinara que qualquer coisa fora do normal, em qualquer uma das centenas de sucursais, devia ser comunicada imediatamente. Em particular na sucursal de Iocoama, mais importante agora que a de Nagasáqui, já que se tratava da principal base dos gai-jin, e portanto o melhor posto de observação dos estrangeiros... e ele fora o escolhido para esse cargo de destaque. Por obrigação, enviara através de pombos-correios a notícia da chegada daquele homem, da morte de Ori, de todos os eventos subseqüentes e das ações que ele efetuara... todas as quais haviam sido aprovadas.
— A Gyokoyama...
Ele seguia as instruções, mas com extremo cuidado, pois podia perceber que Hiraga ficara nervoso com as revelações, e fora justamente esse o propósito. Seus superiores em Osaca haviam escrito: Trate de deixar desequilibrado esse shishi, cujo nome verdadeiro é Rezan Hiraga, o mais depressa possível. Os riscos serão grandes. Esteja armado e converse quando ele não estiver...
— ...meus superiores acharam que talvez lhe possam ser úteis, assim como você poderia ser de grande valor para eles.
— Úteis para mim? — Hiraga se encontrava prestes a explodir, a mão direita procurando nervosamente o punho da espada, que não estava ali. — Não posso ordenar impostos. Não tenho nenhum koku. Que proveito tenho para parasitas, pois os emprestadores de dinheiro não passam disso, para a grande Gyokoyama?
— É verdade que os samurais acreditam nisso, sempre acreditaram. Mas temos dúvidas se o seu sensei Taira concordaria.
— Como? — Hiraga ficou aturdido de novo. — O que Taira tem a ver com tudo isso?
— Criada! Saquê! — Tornando a se virar para Hiraga, o shoya acrescentou: — Peço sua paciência, mas meus superiores... Sou um velho.
Ele falava em tom de humildade, autodepreciativo, sabendo que seu poder na Gyokoyama era grande, que seu yang ainda funcionava com perfeição, e que se necessário poderia atirar naquele homem, deixá-lo entrevado e entregá-lo aos vigilantes do Bakufu, que ainda guardavam os portões.
— Sou um velho e vivemos em tempos perigosos.
— É mesmo — murmurou Hiraga, através dos dentes semicerrados.
O saquê chegou num instante, a criada serviu depressa e se retirou logo. Hiraga bebeu, e sentiu-se satisfeito por isso, embora simulasse o contrário, aceitou mais, tomou tudo.
— O que há com Taira? E melhor explicar direito.
O shoya respirou fundo e se lançou ao que sabia que seria a maior oportunidade de sua vida, com várias implicações para o zaibatsu, e todas as suas futuras gerações.
— Desde que chegou aqui, Otami-sama, tem especulado como e por que os gai-jin ingleses dominam grande parte do mundo além de nossas praias, embora sejam de uma pequena ilha-nação, até menor do que a nossa, pelo que ouvi dizer...
Ele fez uma pausa, divertido com a súbita impassibilidade no rosto de Hiraga.
— Ah, sinto muito, mas já devia saber que ouviram as conversas com seu amigo, agora morto, e com seu primo. Mas posso lhe assegurar que suas confidências estão seguras, seus objetivos e os dos shishi são os mesmos da Gyokoyama. Pode ser importante para você... Acreditamos que conhecemos um importante segredo que você procura.
— É mesmo?
— É, sim. Estamos convencidos de que o grande segredo deles é emprestar dinheiro, os serviços de financia...
Sua voz foi abafada quando Hiraga teve um paroxismo de riso desdenhoso. A gata foi arrancada de sua tranqüilidade, suas garras passaram pelo quimono do shoya, foram se cravar na carne. Cauteloso, ele removeu as garras, começou a acalmá-la, controlando sua fúria, ao mesmo tempo em que desejava incutir um pouco de juízo naquele jovem insolente. Mas isso acabaria lhe custando a vida... pois teria depois de enfrentar Akimoto e outros shishi. Obstinado, ele esperou, sabendo que a missão de que fora incumbido por seus superiores era impregnada de perigos: “Sonde esse jovem, descubra quais são seus verdadeiros objetivos, seus verdadeiros pensamentos, desejos e fidelidades, use-o, pois ele pode ser um instrumento perfeito...”
— Você está louco. É tudo conseqüência de suas máquinas, canhões, riquezas e navios.
— Exatamente. Se tivéssemos essas coisas, Hiraga-sama, poderíamos... — No instante em que usou o nome verdadeiro, o que fora deliberado, ele viu todo o riso desaparecer e os olhos entrarem em foco, ameaçadores. — Meus superiores disseram para usar seu nome apenas uma vez, só para que soubesse que merecemos confiança.
— Como eles sabem?
— Mencionou a conta de Shinsaku Otami, o nome em código de seu honrado pai, Toyo Hiraga. Como não podia deixar de ser, isso está escrito nos livros de registros mais confidenciais.
Hiraga foi dominado por uma raiva intensa. Nunca lhe ocorrera que os emprestadores de dinheiro pudessem ter livros confidenciais; como todos, dos mais baixos aos mais altos, precisavam de seus serviços de vez em quando, eles teriam acesso aos conhecimentos mais sigilosos, sempre registrados, sempre perigosos, que podiam usar como instrumento de pressão para obterem novas informações, a que não deveriam ter acesso... como poderiam descobrir alguma coisa sobre os nossos shishi, a não ser por meios escusos... e como esse cão ousa usar isso contra mim? Com toda razão, os mercadores e emprestadores de dinheiro são desprezados, não merecem a menor confiança e devem ser exterminados. Quando sonno-joi se tornar um fato concreto, nosso primeiro pedido ao imperador será uma ordem para a destruição de todos eles.
— Cale-se!
O shoya estava preparado, consciente de que a fronteira entre um súbito ataque desvairado e a sanidade se encontrava esticada ao ponto de rompimento, que nunca se podia confiar num shishi e, por isso, mantivera a mão no bolso na manga. Falou numa voz suave, embora fosse evidente a ameaça ou promessa:
— Meus superiores mandaram lhe dizer que seus segredos e os de seu pai, honrados clientes, embora registrados, são confidenciais, absolutamente confidenciais... entre nós.
Hiraga suspirou, inclinou-se para trás, a ameaça purificando sua cabeça da raiva inútil, e analisou tudo o que o shoya lhe dissera, a ameaça — ou promessa — e todo o resto, o perigo que o próprio homem representava, a Gyokoyama e similares, avaliou sua possível decisão, a herança e o treinamento em jogo.
As opções eram simples: matar ou não matar, escutar ou não escutar. Quando ele era pequeno, a mãe lhe dissera:
— Tome cuidado, meu filho, e jamais se esqueça de uma coisa: matar é fácil, desmatar é impossível.
Por um momento, a mente se fixou na mãe, sempre sábia, sempre o acolhendo com a maior alegria, sempre com os braços estendidos... mesmo quando passara a sentir dores nas articulações, que a deixaram mais e mais entrevada a cada ano.
— Muito bem, shoya, vou escutar, só uma vez.
Foi a vez do shoya suspirar, uma profunda ravina transposta. Ele serviu mais saquê.
— A sonno-joi e aos shishi!
Os dois beberam. Ele tornou a encher os copos.
— Por favor, Otami-sama, seja paciente comigo, mas estamos convencidos de que podemos ter tudo o que os gai-jin possuem. Como sabe, no Nipão o arroz é uma moeda, os mercadores de arroz são banqueiros, emprestam dinheiro a plantadores contra futuras colheitas, para comprar sementes, e assim por diante, sem o dinheiro não haveria colheitas na maioria dos anos e, em conseqüência, também não haveria impostos a coletar; eles emprestam aos samurais e daimios para sua subsistência, contra pagamentos futuros, estipêndios futuros, tributos futuros, e sem esse dinheiro a vida seria difícil. O dinheiro torna qualquer modo de vida possível. O dinheiro, sob a forma de ouro, prata, arroz ou seda, até mesmo esterco, o dinheiro é a roda da vida, faz as engrenagens funcionarem e...
— Vamos direto à questão. O segredo.
— Ah, sinto muito. A questão é que de alguma forma, por mais incrível que possa parecer, os emprestadores de dinheiro gai-jin, os banqueiros... é uma profissão honrada no mundo deles... encontraram um meio de financiar todas as suas indústrias, máquinas, navios, canhões, prédios, exércitos, tudo e qualquer coisa, com lucro, sem usar ouro de verdade. Não poderia haver tamanha quantidade de ouro no mundo inteiro. De algum modo, eles podem efetuar vastos empréstimos usando a promessa de ouro, ou fingir que é ouro, e só isso os torna fortes, pois tudo indica que fazem isso sem aviltar sua moeda, como acontece com os daimios.
— Fingir que é ouro? Mas do que está falando? Seja mais explícito!
O shoya removeu uma gota de suor do lábio, excitado agora, o saquê ajudando sua língua, ainda mais porque, agora, começava a acreditar que era possível que aquele jovem pudesse ajudar a resolver o enigma.
— Desculpe se sou complicado, mas sabemos o que eles fazem, embora ainda não como fazem. Talvez o seu Taira, esse gai-jin que é uma fonte de informações, que você drena com tanta habilidade, talvez ele saiba, e possa explicar como fazem isso, as artimanhas, os segredos. Depois, você nos conta tudo, e poderemos tornar o Nipão tão forte quanto cinco Inglaterras. Quando vocês alcançarem sonno-joi, nós e os outros emprestadores de dinheiro poderemos nos unir para financiar todos os navios e armas de que o Nipão vai precisar...
Cauteloso, ele discorreu sobre o tema, respondendo às perguntas com eloqüência, guiando Hiraga, ajudando-o, lisonjeando-o, enchendo-o de saquê e informações, impressionado com sua inteligência, ao longo das horas, atiçando sua imaginação, até o pôr-do-sol.
— Dinheiro, hem? Eu ad... eu admito, shoya — disse Hiraga, a voz um pouco engrolada, meio tonto do álcool, a cabeça quase explodindo com tantas idéias novas e inquietantes, que conflitavam com muitas convicções profundas — admito que o dinheiro nunca me inte... nunca me interessou. E jamais entendi direito o dinheiro, apenas sua falta.
Um arroto quase o sufocou, e ele continuou:
— Mas acho que posso entender agora e creio que Taira vai me contar tudo.
Hiraga tentou se levantar, mas não conseguiu.
— Posso lhe oferecer um banho e mandar chamar uma massagista?
O shoya persuadiu-o a aceitar com a maior facilidade, chamou um servo para ajudá-lo e entregou Hiraga a mãos fortes e gentis... que logo o fizeram roncar, mergulhar no esquecimento.
— Bom trabalho, Ichi-chan — sussurrou sua esposa, quando era seguro, fitando-o com uma expressão radiante. — Você foi perfeito, neh?
O shoya também se mostrava radiante e falou baixinho:
— Ele é perigoso, sempre será, mas demos o primeiro passo, e essa é a parte mais importante.
Ela acenou com a cabeça, satisfeita porque o marido acatara seu conselho de chamar Hiraga naquela tarde, estar armado, e não ter medo de usar a ameaça. Ambos conheciam os riscos, mas também, ela lembrou a si mesma, o coração ainda batendo forte de escutar a confrontação, esta é uma oportunidade enviada pelos deuses, e os ganhos são proporcionais aos riscos. Com o êxito, refletiu ela, rindo para si mesma, ganharemos a posição de samurais, nossos descendentes serão samurais, e meu Ichi será um dos superiores da Gyokoyama.
— Foi muito sensato ao dizer que apenas dois escaparam, não três, e ao não revelar o que mais sabemos.
— É importante manter alguma coisa em reserva. Para controlá-lo ainda mais.
Ela acariciou o marido, numa atitude maternal, tornou a dizer como ele era esperto, e não o lembrou que isso também fora sugestão sua. Deixou que sua mente vagueasse por um momento, ainda perplexa pela partida dos dois shishi para Iedo, assim se arriscando à captura ou traição. E ainda mais desconcertante era o motivo pelo qual a moça, Sumomo, a possível futura esposa de Hiraga, ingressara na casa de Koiko, a mais famosa cortesã de Iedo, agora a dama de prazer de lorde Yoshi. Não dava para entender. Um pensamento errante desabrochou.
— Ichi-chan — disse ela, suavemente —, uma coisa que falou antes me deixou com vontade de perguntar: se esses gai-jin são tão espertos, banqueiros tão mágicos, não seria sensato para você iniciar um empreendimento cuidadoso com um deles, de maneira discreta, bem discreta?
Os olhos do marido fixaram-se nos seus, ela percebeu o início de um sorriso de intensa satisfação, e acrescentou:
— Toshi tem dezenove anos, o mais esperto dos nossos filhos, e poderia ser o nosso representante, neh?
33
Segunda-feira, 1o de dezembro:
Norbert Greyforth saiu para o tombadilho do navio de correspondência, contornando o promontório. Vinha de Hong Kong, com escala em Xangai, e agora chegava a Iocoama. Ele acabara de fazer a barba, usava cartola e sobrecasaca contra o frio do amanhecer, e viu o capitão e outros na ponte de comando, na frente da chaminé, com seu rolo de fumaça acre na esteira, os marujos se preparando para ancorar, as velas içadas nos três mastros. Na coberta de proa, por trás de grades trancadas, que os separavam por completo do resto do navio, viajavam os passageiros de terceira classe, a ralé da Ásia, abrigados sob toldos de lona. As grades eram praxe em todos os navios de passageiros, contra qualquer tentativa de pirataria daquela área.
O vento era firme, trazia um cheiro agradável, o ar puro, muito diferente lá de baixo, onde o fedor de óleo e fumaça de carvão impregnava tudo, as vibrações e o barulho do motor deixavam qualquer um com dor de cabeça. O Asian Queen não desenvolvia a velocidade possível há horas, batalhando contra o vento. Por mais que detestasse vapores, Norbert sentia-se satisfeito, pois de outra forma sofreriam vários dias de atraso. Mordeu a extremidade de um charuto, cuspiu no mar, ergueu as mãos em concha para acendê-lo.
A colônia parecia a mesma de sempre. As casas da guarda dos samurais e as alfândegas, ao norte e ao sul, fora da cerca, alcançadas por pequenas pontes, fumaça saindo por várias chaminés, homens andando pelo passeio, cavaleiros exercitando seus pôneis no hipódromo, a cidade dos bêbados na sujeira habitual, com poucos dos danos do incêndio e terremoto reparados, contrastando com as fileiras disciplinadas de barracas do acampamento no penhasco, onde os soldados faziam ordem-unida, o toque de corneta projetando-se pelo mar. E mais adiante, como se espiassem por cima da cerca, os telhados da Yoshiwara. Ele sentiu alguma emoção, nada como o normal, pois ainda se encontrava saciado das aventuras em Xangai, a mais rica, devassa e tumultuada cidade da Ásia, com as melhores corridas, casas de jogo, bordéis e bares, comida européia por toda parte.
Não importa, pensou ele, darei a Sako a peça de seda, isso fará sua arma palpitar... e quem sabe?
Os olhos de Norbert passaram pelos mastros de bandeira das diversas legações, contraíram-se ao ver o prédio da Struan e depois fixaram-se no seu quartel-general. Durante as três semanas de sua ausência, os reparos externos no último andar haviam sido concluídos, ele ficou satisfeito ao constatar, não restava mais qualquer sinal dos danos causados pelo incêndio. Ainda estava muito longe para reconhecer as pessoas que entravam e saíam dos prédios na High Street, mas depois vislumbrou uma touca azul, um vestido de anquinhas e uma sombrinha se encaminhando para a legação francesa. Só havia uma mulher assim, pensou ele. Peitos-de-Anjo! E foi como se pudesse farejar o perfume que a envolvia. Será que ela sabe do duelo? Morgan Brock caíra na gargalhada quando lhe contara.
— Tem o meu consentimento para estourar os miolos dele ou seus colhões. E, em vez de pistolas, use espadas, e fará jus à sua gratificação.
Os barcos já haviam zarpado ao encontro do navio de correspondência. Irritado, ele notou que a lancha a vapor da Struan esperava perto da barra, a primeira da fila, com Jamie McFay na popa. Sua lancha a remos era a segunda. Não importa, pois não vai demorar muito para que aquela lancha seja minha, assim como o prédio, com você e todos os malditos Struans em desgraça ou mortos, embora talvez eu lhe dê um emprego, Jamie, talvez, só por diversão. Ele viu McFay levar o binóculo aos olhos e compreendeu que seria avistado. Ofereceu um aceno, cuspiu para o lado e desceu para seu camarote.
— Bom dia, Sr. Greyforth — disse Edward Gornt, com seu charme sulista. Ele estava parado na porta do camarote no outro lado, um jovem alto, embora um tanto franzino, de boa aparência, da Virgínia, vinte e sete anos, com olhos castanhos, cabelos castanhos. — Estive observando do convés de popa. Nada como Xangai, não é mesmo?
— Sob mais aspectos do que pode imaginar. Já arrumou suas malas?
— Já, sim, senhor. Está tudo pronto.
O sotaque era mínimo, ele falava muito mais como um inglês do que como um sulista.
— Ótimo. Sir Morgan mandou eu lhe entregar isto quando chegássemos. Norbert tirou um envelope de sua valise e entregou-o. Quanto mais pensava a respeito de toda a viagem, mais aturdido ficava. Tyler Brock não fora a Xangai. Em vez disso, enviara um bilhete curto, cumprimentando Greyforth e dizendo-lhe que obedecesse a seu filho, Morgan, como se fosse ele a dar as ordens. Sir Morgan Brock era barrigudo e calvo, não tão rude quanto o pai, mas também barbudo, e com o mesmo temperamento mesquinho. Ao contrário do pai, era treinado em Londres, na Thradneedle Street, o centro dos mercados de valores do mundo, e de todo o comércio internacional. Assim que Greyforth chegara, Morgan expusera os planos para a destruição da Struan.
Era infalível.
Há um ano, ele, o pai e seus associados na diretoria do Victoria Bank, de Hong Kong vinham comprando as promissórias da Struan. Agora, com o apoio de toda diretoria, só precisavam esperar até o dia 30 de janeiro para a execução das dívidas. Não havia a menor possibilidade de a Struan saldar tudo nesse prazo. Na data fatal, o banco passaria a possuir a Struan, com todo o seu patrimônio. Quando Morgan açambarcara o mercado de açúcar havaiano, com uma manobra astuciosa para excluir a Struan, que contava com os lucros anuais dessas operações para pagar o serviço das dívidas, fizera com que a liquidação se tornasse inevitável. E desfechara outro golpe, ainda maior: com extrema habilidade, Morgan negociara essas colheitas com importadores da União e da confederação, em troca de mercadorias do Norte e algodão do Sul para o imenso mercado britânico, que só podia ser atendido, nos termos da lei, por navios britânicos... os navios deles.
— É um esquema genial, Sir Morgan, meus parabéns! — dissera Norbert, impressionado, pois faria com que a Brock se tornasse a mais rica companhia comercial da Ásia, a Casa Nobre, e garantiria seu estipêndio de cinco mil guinéus por ano.
— Compraremos a Struan a dez pennies por libra do banco, isso já foi acertado, Norbert, a frota, tudo — explicara Sir Morgan, a barriga enorme tremendo no riso. — Você poderá se aposentar em breve, e estamos gratos por seus serviços. Se tudo correr bem em Iocoama, pensaremos em mais cinco mil por ano como gratificação. Cuide bem do jovem Edward, mostre-lhe tudo.
— Com que propósito? — indagara Norbert, atordoado pela perspectiva daquela vasta soma todos os anos.
— Com qualquer propósito que eu quiser — respondera Sir Morgan, em tom brusco. — Mas já que pergunta, talvez eu queira que ele assuma o comando no Japão, tome o seu lugar quando você for embora, se tiver condições para isso. A Rothwell está lhe dando um mês de licença... — Era a companhia em que Gornt trabalhava há três anos, uma das mais antigas empresas em Xangai, associada da Cooper-Tillman, a maior companhia comercial americana na China, e com a qual tanto a Brock quanto a Struan mantinham amplas relações de negócios. —... e será tempo suficiente para o rapaz decidir. Talvez ele o substitua quando você se aposentar.
— Acha que ele tem experiência suficiente, Sir Morgan?
— Cuide para que ele tenha até o momento em que você se retirar... é a sua função, ensinar tudo, preparar o rapaz. Mas não pressione demais, pois não quero que ele fique apavorado.
— Quanto devo lhe contar?
Depois de pensar um pouco, Sir Morgan dissera:
— Tudo sobre os nossos negócios no Japão, o plano de vender armas e contrabandear ópio, se aqueles desgraçados no Parlamento conseguirem o que estão querendo. Relate a ele suas idéias sobre a abertura do comércio de ópio, ignorando qualquer embargo, se houver algum, mas não diga nada sobre as provocações a Struan ou sobre o nosso plano para destruí-los. O rapaz já conhece Os Struans, não existe nenhum amor por eles na Rothwell. Sabe que eles são a escória, está a par de todas as iniqüidades cometidas pelo velho Dirk, como assassinar meu meio-irmão, e todo o resto. É um bom rapaz, e por isso pode contar o que quiser... mas não fale sobre o açúcar!
— Como achar melhor, Sir Morgan. O que me diz do dinheiro em espécie e papéis que eu trouxe? Vou precisar de reposição para pagar as armas, sedas e outras mercadorias este ano.
— Mandarei de Hong Kong quando voltar. Outra coisa, Norbert: você fez um bom trabalho ao passar a perna na Struan na oferta dos japas para a exploração de ouro... se isso der resultado, terá uma participação. Quanto a Edward, depois do mês de experiência, mande-o de volta a Hong Kong, com um relatório confidencial para o Velho. Gosto do rapaz, ele é muito bem considerado em Xangai e na Rothwell... e filho de um velho amigo.
Norbert especulara sobre quem seria o “velho amigo” e sobre a dívida que Sir Morgan tinha com o homem para valer tanto empenho, já que era insólito para ele ser gentil com alguma pessoa. Mas era esperto demais para perguntar e se mantivera calado, feliz por saber que o problema de permanecer nas boas graças dos Brocks não o perturbaria por muito mais tempo.
Edward Gornt demonstrara ser bastante simpático, retraído, um bom ouvinte, mais inglês do que americano, inteligente, e um não-bebedor, o que era raro na Ásia. A avaliação imediata de Greyforth fora a de que Gornt era totalmente inadequado ao comércio na China, rude, aventureiro, com muita bebida... um peso-leve em tudo, exceto nas cartas. Gornt era um excepcional jogador de bridge, tinha muita sorte no pôquer, uma tremenda virtude na Ásia, mas mesmo nisso era acadêmico, pois nunca jogava com apostas altas.
Ele estava convencido de que Edward Gornt não agradaria aos Brocks por muito mais tempo e nada na viagem de volta o fizera mudar de idéia. De vez em quando, percebera certa estranheza no fundo de seus olhos. O garoto não passa de um fraco, está fora de sua profundidade, e sabe disso, pensou ele, observando-o ler a carta de Morgan. Mas não importa; se alguém pode fazê-lo crescer, sou eu.
Gornt dobrou a carta, guardou-a no bolso, junto com o maço de dinheiro que o envelope continha.
— Sir Morgan é muito generoso, não acha? — comentou ele, com um sorriso. — Nunca pensei que ele... mal posso esperar para começar, aprender tudo. Gosto de trabalho e ação, farei o melhor que puder para agradá-lo, mas ainda não tenho certeza se devo deixar a Rothwell, e... nunca pensei que ele sequer cogitaria de mim para chefiar a Brock no Japão, se e quando você se aposentar. Nunca.
— Sir Morgan é um patrão exigente, difícil de agradar, como o nosso tai-pan, mas generoso se você fizer o que ele mandar. Um mês será suficiente. Sabe manejar uma arma?
— Claro.
A súbita franqueza deixou Norbert surpreso.
— De que tipo?
— Revólveres, pistolas, rifles, espingardas. — Outro sorriso. — Nunca matei ninguém, nem índios, mas fui o segundo colocado no tiro ao prato em Richmond, há quatro anos. — Um momento de hesitação. — Esse foi o ano em que fui para Londres, a fim de ingressar na Brock.
— E não queria partir? Não gostou de Londres?
— Não e sim. Minha mãe morrera e meu pai achou que seria melhor que eu saísse para o mundo, Londres sendo o centro do mundo, por assim dizer. Londres é espetacular, Sir Morgan foi muito gentil, o homem mais bondoso que já conheci.
Norbert esperou, mas Gornt não ofereceu mais nenhuma informação, absorto em seus pensamentos. Sir Morgan só lhe dissera que Gornt passara um ano satisfatório com a Brock em Londres, junto com o último e mais novo filho de Tyler Brock, Tom. Depois desse ano, ele arrumara o emprego na Rothwell.
— Conhece Dmitri Syborodin, que dirige a Cooper-Tillman aqui?
— Não, senhor. Só de reputação. Meus pais conheciam Judith Tillman, a viúva de um dos sócios originais. — Os olhos de Gornt se contraíram, e Norbert tornou a notar algo estranho neles. — Ela também não gostava de Dirk Struan, odiava-o, para ser mais preciso, culpava-o pela morte de seu marido. Os pecados dos pais passam adiante, não é mesmo?
Norbert riu.
— É verdade.
— Mas falava sobre Dmitri Syborodin, não é, senhor?
— Vai gostar dele, é sulista também. — O sino de desembarque soou. Os olhos de Norbert faiscaram. — Vamos para terra. Haverá ação muito em breve.
— Homem quer ver tai-pan, hem? — disse Ah Tok.
— Fale como civilizada, mãe, não essa algaravia — respondeu Malcolm, em cantonês. Ele estava na janela do escritório, com o binóculo, estivera observando o desembarque dos passageiros do navio de correspondência. Vira Norbert Greyforth, e agora sentia-se muito bem. — Que homem?
— O demônio estrangeiro bonzo que mandou chamar, o bonzo que cheira mal — murmurou ela. — Sua velha mãe está trabalhando demais e seu filho não quer escutar! Devemos voltar para casa.
— Já lhe disse para não mencionar a volta para casa — declarou Malcolm, ríspido. — Faça isso mais uma vez e a mandarei embora na próxima lorcha imunda, onde vai vomitar até seu coração, se tiver um, e no mínimo o deus do mar vai engoli-la! Mande o demônio estrangeiro entrar.
Um sorriso surgiu em seu rosto, e um pouco da sensação agradável retornou. Ah Tok saiu resmungando. Há dias que vinha insistindo na volta a Hong Kong, por mais que ele lhe dissesse para não fazê-lo. Malcolm tinha certeza que ela recebera ordens de Gordon Chen para pressioná-lo.
— Mas não voltarei enquanto não estiver pronto! — disse ele, em voz alta.
Claudicando, foi para sua escrivaninha, contente porque em breve acertaria as contas com Norbert e poria em execução seu glorioso plano.
— Bom dia, reverendo Tweet. Foi muita gentileza sua atender de imediato ao meu chamado. Xerez?
— Obrigado, Sr.... hum... tai-pan. Abençoado seja.
O xerez foi tomado num único gole, nervoso, embora Malcolm tivesse escolhido, deliberadamente, um copo grande.
— Admirável... tai-pan. Ah, quero, sim, obrigado. Mais uma dose, pequena desta vez. — O homem desmazelado acomodou-se na cadeira alta, com um sorriso apreensivo. A barba era toda manchada de tabaco. — Em que posso ajudá-lo?
— É sobre miss Angelique e eu. Quero que nos case. Na próxima semana.
— Como? — O reverendo Michaelmas Tweet quase deixou cair o copo, a dentadura chocalhando, ele balbuciou: — Impossível!
— Não é, não. Há muitos precedentes para reduzir os proclamas que devem ser lidos na igreja em três domingos sucessivos para apenas um.
— Mas eu não posso... você é menor, e ela também, uma católica ainda por cima, não é possível... não posso fazer isso.
— Claro que pode. — Confiante, Malcolm repetiu o que Heatherly Skye mais conhecido por “Heavenly”, o celestial, o único advogado em Iocoama, além de juiz de instrução e agente de seguros, lhe dissera: — O fato de que sou menor de idade só se aplica no Reino Unido, não nas colônias, ou no exterior, e só quando pai está vivo. O fato de ela ser católica não tem importância, se não importa para mim. E ponto final. Terça-feira, dia 9, é uma ocasião auspiciosa para casa. Manteremos tudo na maior discrição até lá.
Para diversão de Malcolm, a boca de Michaelmas Tweet abriu e fechou, com a de um peixe, nenhum som saiu. Trêmulo, o clérigo levantou-se, serviu-se de mais xerez, tornou a arriar na cadeira.
— Não posso.
— Procurei orientação legal e fui informado de que posso. Também tenciono conceder a você e sua igreja um estipêndio extra... quinhentos guinéus por ano.
Ele sabia que o homem ficaria fisgado pela oferta, três ou quatro vezes o seu salário atual, e o dobro do que o advogado aconselhara: Não estrague o velho peidorrento!
— Estaremos na igreja no domingo para ouvirmos a leitura dos proclamas. Terça-feira será o grande dia, e você receberá cem guinéus adiantados por seu trabalho. Obrigado, reverendo.
Ele se levantou, mas Tweet não se mexeu. Havia lágrimas em seus olhos.
— Qual é o problema?
— Não posso fazer o que me pede — balbuciou Tweet. — Não é possível. Deve compreender... mesmo que esse conselho seja correto, o que duvido... sua mãe me escreveu, formalmente, pela última correspondência, dizendo... que seu pai a tornara a guardiã legal dos filhos, e você fora proibido de casar.
As lágrimas escorriam pelas faces, os olhos remelentos estavam injetados.
— Deus do Céu, é tanto dinheiro, mais do que já sonhei, mas não posso, não posso ir contra a lei, nem contra sua mãe. Oh, Deus, não!
— Mil guinéus
— Oh, Deus, não, não... por mais que eu queira o dinheiro... não entende... o casamento não seria legal... é contra a lei da Igreja. Deus sabe que sou um grande pecador, mas não posso fazer isso... se ela escreveu para mim, também escreveu, com toda certeza, para Sir William, que deve sancionar um casamento assim. Deus me perdoe, mas não posso...
Ele saiu da sala, cambaleando. Malcolm ficou olhando para suas costas. Incapaz de falar, a mente atordoada, a sala se transformando de repente num túmulo. O plano, formulado com a ajuda de Heatherly Skye, era perfeito. Fariam um casamento discreto, com a presença apenas de Jamie, talvez Dmitri, e em seguida ele partiria para Hong Kong, depois do duelo, chegando ali antes do Natal, como a mãe pedira, e antes que ela pudesse receber a notícia. Angelique seguiria no navio seguinte.
— Aqueles a quem Deus juntou que nenhum homem... ou mulher... separe — entoara Skye, quando ele o consultara.
— Perfeito!
— Obrigado, tai-pan. Meus honorários são cinqüenta guinéus. Poderia... hum... me dar um adiantamento... em dinheiro, por favor?
Cinqüenta guinéus eram um absurdo. Mesmo assim, Malcolm Struan lhe dera dez soberanos, com vales da Casa Nobre para o restante, e voltara para casa, sentindo-se mais satisfeito que em qualquer outro momento das últimas semanas.
— Parece muito feliz hoje, Malcolm. Boas notícias?
— Isso mesmo, minha querida Angel, mas só partilharei com você amanhã. Quando veremos nosso retrato? Seu vestido estava maravilhoso.
— Demora um pouco para revelar, o que quer que isso signifique. Talvez amanhã. Você estava muito bonito.
— Acho que devemos dar uma festa. Será maravilhoso...
Mas agora, com a festa marcada para aquela noite, não seria tão maravilhoso assim. Malcolm sentia uma profunda depressão. Haveria algum meio de forçar Tweet? Deveria procurá-lo de novo amanhã, depois de passado o choque inicial? Mais dinheiro? Sir William? Uma súbita idéia. Ele tocou a sineta.
— Pois não, tai-pan?
— Vargas, corra até a igreja católica, e procure o padre Leo. Pergunte a ele se pode me fazer uma visita.
— Claro, tai-pan. Quando ele deve vir?
— Agora, o mais depressa possível.
— Agora, tai-pan? Mas é hora do almoço...
— Agora, por Deus! — gritou Malcolm, na maior frustração por ter de pedir a outros as coisas mais simples, que poderia fazer pessoalmente antes da Tokaidô, que Deus amaldiçoe aquele porco, que Deus amaldiçoe a Tokaidô, é como a.C. e d.C para mim, só que o mal é agora, não o bem. — Agora. E trate de se apressar!
Vargas estava pálido ao sair apressado. Enquanto esperava, Malcolm tentou pensar numa maneira de pressionar Tweet, deixou a mente vaguear, enquanto os minutos passavam devagar, e foi se tomando cada vez mais enfurecido e determinado.
— Padre Leo, tai-pan.
Vargas deu um passo para o lado e fechou a porta depois que o sacerdote entrou.
O padre tentou disfarçar seu nervosismo. Por várias vezes se encaminhara para aquele prédio, a fim de discutir a conversão de Struan ao catolicismo, mas sempre parara no meio do caminho, prometendo a si mesmo que voltaria no dia seguinte, mas nunca se aproximando de seu objetivo, com medo de cometer um erro, tropeçar nas palavras. Em desespero, procurara André Poncin, a fim de arrumar um encontro. Sentira-se chocado pela maneira como Poncin e depois o próprio ministro francês — que raramente lhe falava — haviam reagido, dizendo que tal conversa era prematura, que o trabalho de Deus exigia paciência e prudência, proibindo o contato, pelo menos por enquanto.
— Bom dia — murmurou Malcolm.
Era a primeira vez que qualquer um dos mercadores protestantes o convidava para ir a seu escritório. Por todo o mundo protestante, os sentimentos contra os católicos e seus sacerdotes eram antagônicos, com acusações de pogroms sangrentos e guerras religiosas, recentes e jamais esquecidas, lembrando-os do controle implacável que exerciam sobre os convertidos e os países que dominavam... e os protestantes eram igualmente detestados pelos católicos, e ainda por cima hereges segundo as convicções católicas.
— As bênçãos de Deus para você — murmurou padre Leo, hesitante. Antes de deixar seu pequeno bangalô, ao lado da igreja, ele fizera uma prece para que o chamado fosse sobre o que tanto ansiava. — O que deseja, meu filho?
— Quero que celebre meu casamento com miss Angelique.
Malcolm sentiu-se espantado por constatar que sua voz soava muito calma, com uma repentina consternação por ter dito aquilo, até por chamar o padre, compreendendo claramente as implicações do que pedira — A mãe terá um ataque, nossos amigos e todo o nosso mundo vão pensar que enlouqueci...
— Deus seja louvado! — exclamou o padre Leo, extasiado, em português: os olhos fechados, os braços erguidos para o céu. — Como são maravilhosos os caminhos de Deus! Eu agradeço, Senhor, agradeço por ter respondido às minhas preces, e que eu seja digno do Seu favor!
— O que disse? — indagou Malcolm.
— Ah, desculpe, meu filho — disse ele, voltando a falar em inglês. — Apenas agradecia a Deus por ter lhe mostrado a luz, em sua misericórdia.
— Ahn... xerez?
Malcolm não pôde pensar em outra coisa para dizer.
— Obrigado, meu filho... mas, primeiro, não quer rezar comigo?
O padre ajoelhou-se, fechou os olhos, uniu as mãos em oração. Embaraçado pela sinceridade do homem — embora ignorando a oração como insignificante — e de qualquer forma incapaz de se ajoelhar, Malcolm permaneceu sentado, fechou os olhos, fez uma pequena prece a Deus, certo de que Deus compreenderia seu lapso momentâneo, tentando se convencer de que era certo pedir àquele homem para fazer o que era necessário.
Não importava o fato de que a cerimônia provavelmente seria inválida em seu mundo. Seria válida para Angelique. Poderia se unir a ele no leito conjugal com a consciência limpa. E depois que assentasse a tempestade inicial em Hong Kong, e sua mãe fosse conquistada — ou mesmo que não fosse —, assim que ele alcançasse a maioridade, em maio, uma cerimônia apropriada corrigiria qualquer pequeno erro.
Ele entreabriu os olhos. Padre Leo ainda continuava perdido no latim incompreensível. A oração se arrastou, interminável, seguida pela bênção. Quando acabou, padre Leo levantou-se, os olhinhos pretos faiscando, entre as bochechas morenas.
— Por favor, permita que eu sirva o xerez, para poupá-lo da dor, senhor, pois agora sou também seu servidor — disse ele, na maior jovialidade. — Como estão seus ferimentos? Sente-se melhor?
— Um pouco. Agora... — Malcolm descobriu que não era capaz de chamá-lo de “padre”. — Agora, sobre o casamento, eu...
— Será celebrado, meu filho, e celebrado de uma maneira maravilhosa, eu prometo. — Como são extraordinárias as obras de Deus, pensou padre Leo. Não violei a promessa que fiz ao ministro Seratard, e Deus trouxe esse pobre rapaz para mim. — Não se preocupe, senhor, é a vontade de Deus ter me chamado, e tudo será feito pela glória de Deus.
Padre Leo entregou um copo cheio a Malcolm, serviu-se em outro, derramando um pouco.
— À sua futura felicidade e à misericórdia de Deus!
Ele bebeu, depois sentou na cadeira, com tanta benevolência — a mesma cadeira que bem pouco tempo antes fora ocupada com tamanha rejeição —, que Malcolm sentiu-se ainda mais apreensivo.
— Agora, seu casamento será o melhor e o maior jamais realizado. — O padre pôs-se a discorrer a respeito, com um entusiasmo tão intenso que Malcolm ficou ainda mais deprimido, pois queria que aquele casamento temporário fosse o mais discreto possível. — Devemos ter um coro e um órgão, novas vestimentas, taças de prata para a comunhão. Mas antes desses detalhes, meu filho, há muitos planos maravilhosos para acertar. As crianças, por exemplo, agora serão salvas, serão católicas, salvas do purgatório e das agonias das chamas eternas do inferno!
Malcolm limpou a garganta.
— Certo. O casamento deve ser na próxima semana; terça-feira é o melhor dia.
Padre Leo piscou, aturdido.
— Mas temos de pensar na sua conversão, meu filho. Isso leva tempo, e...
— Eu... não quero me converter, ainda não, embora concorde que as crianças serão católicas. — Serão criadas muito bem, serão inteligentes, raciocinou Malcolm, sentindo-se mais angustiado a cada momento. Poderão escolher por si mesmas, quando se tomarem adultas... Mas o que estou pensando? Muito antes disso, casaremos da maneira certa, numa igreja apropriada. — Por favor, na próxima semana. Terça-feira.
Os olhos do padre não mais sorriam.
— Não vai abraçar a verdadeira fé? E a sua alma imortal?
— Não, obrigado, não no momento, mas é claro que pensarei a respeito. As almas das crianças... isso é o importante... — Malcolm tentou parecer mais coerente. — Eu gostaria que o casamento fosse discreto, uma cerimônia simples, na terça-feira...
— E sua alma imortal, meu filho? Deus lhe mostrou a luz, sua alma é ainda mais importante do que esse casamento.
— Já disse que pensarei a respeito. Agora, vamos tratar do casamento. Terça-feira é o dia perfeito.
O padre largou o copo, a mente atordoada com alegrias, esperanças, indagações, medos, sinais de perigo.
— Mas isso não será possível, meu filho, por muitas razões. A moça não é menor de idade? É preciso obter a aprovação do pai dela, com os documentos necessários. E o mesmo acontece com você, não é mesmo?
— O problema de ser menor? — Malcolm forçou uma risada. — Não se aplica ao meu caso, não quando o pai está morto. É a lei inglesa. Verifiquei com... o Sr. Skye.
Ele quase disse Heavenly e se arrependeu no mesmo instante de ter mencionado o advogado, pois recordou que Angelique lhe dissera que o padre Leo detestava o homem, detestava o apelido, considerando-o uma abominação, já que era um agnóstico declarado.
— Essa pessoa? — A voz de padre Leo se tornou dura de repente. — Sua opinião terá de ser confirmada por Sir William, pois ele não merece a menor confiança. Quanto ao pai da senhorita, ele pode vir de Bangkok, não é?
— Ele... Creio que ele voltou para a França. Mas sua presença não será necessária. Tenho certeza que monsieur Seratard poderá representá-lo. Terça-feira será o melhor dia.
— Mas por que a pressa, meu filho? Ambos são jovens, têm muita vida pela frente, e é preciso considerar sua alma. — Padre Leo tentou um sorriso. — Foi a vontade de Deus que o enviou para mim e dentro de um ou dois meses...
— Não, não pode ser dentro de um ou dois meses — insistiu Malcolm, prestes a explodir, a voz estrangulada. — Na terça ou quarta-feira, por favor.
— Reconsidere, meu filho. Sua alma imortal deve...
— Esqueça minha alma... — Malcolm fez uma pausa, para se controlar. — Pensei em oferecer uma doação à igreja, embora não seja... não seja no momento a minha igreja... uma doação generosa.
Padre Leo ouviu o “no momento”, reparou como a palavra “generosa” fora pronunciada, sempre consciente de que o trabalho de Deus neste mundo exigia servidores práticos e soluções pragmáticas. E recursos. E influência. E esses dois fatores essenciais só vinham dos bem-nascidos e ricos, não havia necessidade de lembrá-lo de que o tai-pan da Casa Nobre era as duas coisas, ou que hoje já fora dado um passo gigantesco a serviço de Deus: fora-lhe pedido um favor, e as crianças seriam salvas, mesmo que aquele pobre pecador ardesse no tormento eterno. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, em consternação por aquele jovem e todos os que sofriam desnecessariamente tamanho horror por toda a eternidade, quando a salvação era tão fácil de se alcançar.
Ele empurrou esse problema para o lado. A vontade de Deus é a vontade de Deus.
— O casamento será celebrado, meu filho, não se preocupe, eu prometo... mas não na próxima semana, nem na seguinte, pois há muitas barreiras.
Malcolm tinha a sensação de que seu coração estava prestes a explodir.
— Deus Todo-Poderoso, se não pode ser na próxima semana, ou na seguinte, então não adianta. Tem de ser agora... ou nada.
— Mas por quê? E por que um casamento particular, meu filho?
— Tem de ser agora ou nada — repetiu Malcolm, o rosto contraído. — Vai descobrir que sou um bom amigo... preciso de sua ajuda... Pelo amor de Deus, é uma coisa tão simples nos casar!
— É, sim, por Deus, mas não por nós, meu filho. — O padre suspirou, levantou-se. — Pedirei a orientação de Deus. Duvido que... mas talvez. Talvez. Precisarei ter muita certeza.
As palavras pairaram no ar.
— Detesto pôr fezes no seu buquê de rosas, tai-pan — declarou Heavenly Skye, unindo as pontas dos dedos, arriado por trás de sua escrivaninha, na sala pequena e miserável. — Mas já que pede meu conselho profissional, eu diria que seu padre Leo não merece a menor confiança, a menos que se converta. Não há a menor possibilidade de que isso possa ser feito a tempo, e eu não aconselharia, de jeito nenhum. Ele vai se esquivar como um fogo-fátuo, suas datas vitais vão passar, e se sentirá cada vez mais angustiado.
— Mas o que posso fazer, Heavenly?
Skye hesitou, assoou o nariz bulboso, limpou o pince-nez, um recurso predileto para ganhar tempo e se controlar, ou para encobrir um lapso, ou até mesmo, como naquele caso, para conter um sorriso radiante.
Era a primeira vez que alguém importante o consultava desde que abrira seu próprio escritório, H. Skye, Esq., antes Moodle, Putfield & Leech, Procuradores e Advogados, Londres, inicialmente em Calcutá, dez anos antes, depois em Hong Kong, e agora aqui. Depois de tanto tempo, tinha um cliente perfeito, em potencial: rico, dominado pela ansiedade, com um problema simples, que podia se tornar cada vez mais complicado, várias possibilidades a longo prazo, do princípio ao fim. E grandes honorários por uma solução, e eram várias, algumas boas, algumas Violentas.
— Não posso imaginar uma situação mais difícil — disse ele, solene desempenhando seu papel, gostando e admirando o jovem, não apenas como cliente, e depois ofereceu uma chave: — O nó górdio, hem?
Malcolm sentia-se angustiado. Era evidente que Heavenly tinha razão, o padre Leo não merecia confiança. Mesmo que eu me convertesse... não posso, seria demais... Ele levantou os olhos, abruptamente.
— Nó? Nó górdio? Isso foi resolvido! Ulisses cortou-o em dois. Não, foi Hércules.
— Desculpe, mas foi Alexandre, o Grande, em 333 a.C.
— Não importa quem o tenha feito, meu problema é... Heavenly, ajude-me a cortar meu nó, e terá minha eterna gratidão e quinhentos guinéus...
O sinal de aviso do mestre do porto ressoou pela colônia. Eles olharam pelas janelas sujas. O escritório de Skye ficava no prédio e armazém de Lunkchurch, cheio de livros, de frente para o mar. Para a alegria de ambos, a esquadra contornava o promontório, a nave capitânia à frente, bandeiras hasteadas. Sentiram o maior orgulho, e alívio ao mesmo tempo. Salvas de canhões trovejaram da praia e dos navios, o H.M.S. Pearl o mais exuberante, a esquadra respondendo. Os dois homens soltaram gritos de alegria e Skye comentou:
— Podemos agora lidar com os japas e dormir em paz em nossas camas. — Indiretamente, ele voltou ao assunto em questão, invejando-o por Angelique, e determinado a ajudar. — Não é difícil resolver o problema dos japas, Willie precisa apenas ser objetivo e decidido. O velho punho de ferro em luva de ferro, ou veludo, aplica-se na maioria dos casos, se não mesmo em todos. Como acontece com o seu.
Malcolm Struan fitou-o nos olhos.
— Como? Como? Se resolver meu problema, você pode... pode indicar seu preço. — Cansado, ele pegou suas bengalas. — Dentro de limites razoáveis.
— Um momento, tai-pan! — exclamou Skye, limpando os óculos.
Meu preço não será apenas dinheiro, não da Casa Nobre, cuja influência pode me ajudar a ser juiz em Hong Kong, ah, que alegria será! Meu único dilema é se devo revelar a solução agora, ou esperar, e me arriscar a perder a iniciativa. De jeito nenhum! Uma ave na cama vale duas na Yoshiwara.
Não mais solene, ele tornou a ajeitar o pince-nez na ponta do nariz, agora como portas gêmeas dominando o rosto rosado e infantil, que parecia transbordar ao redor.
— Tive uma idéia repentina, tai-pan. Poderia resolver seu problema, no prazo que precisa. Por que não faz a mesma coisa que sua mãe?
Malcolm se mostrou aturdido por um instante e, depois, o significado se tornou claro.
— Ah, fugir para casar? Pensei nisso — disse ele, irritado —, mas ir para onde, e quem iria celebrar a cerimônia, já que estamos a um milhão de quilômetros de Macau?
— O que Macau tem a ver com isso? — indagou Skye.
— Todos sabem que o pai e a mãe fugiram e casaram na igreja anglicana em Macau, a cerimônia realizada depressa, por causa da influência do avô.
Skye sorriu, sacudiu a cabeça.
— Essa é a história publicada, mas não a verdadeira. Seu capitão Orlov casou-os a bordo do clíper China Cloud, em viagem de Macau para Hong Kong... seu avô tornara seu pai mestre para essa curta viagem e, como sabe, a lei do tai-pan é de que no mar o mestre era a lei do navio.
Struan estava espantado.
— Não acredito nisso.
— O primeiro atributo de um bom advogado, e sou um bom advogado, Sr. Struan, é ser um bom ouvinte, o segundo é ter um faro para fatos e segredos, o terceiro, ser discreto. É fundamental saber tudo o que puder sobre seus clientes em potencial mais importantes... o melhor para ajudá-los na adversidade.
Ele aspirou uma pitada de rapé, espirrou.
— A Casa Nobre é a primeira na Ásia, a fonte de lendas, e por isso, quando cheguei a Hong Kong, interessei-me em separar os fatos dos mitos sobre os Struans, os Brocks, os americanos Cooper e seu sócio Wilf Tillman, até mesmo o russo Zergeyev. Eu acho...
Ele parou de falar. Os olhos do jovem haviam se tornado vidrados, perdidos na distância, deixara de escutar, a mente com certeza na solução, à medida que aflorava à superfície, e preenchia seu firmamento.
— Sr. Struan!
— Oh, desculpe... O que estava dizendo?
— Fico satisfeito por lhe oferecer a solução. Há dificuldades, sem dúvida, mas possui navios, dispõe de capitães, e o capitão de um navio britânico, em determinadas situações, pode efetuar um casamento. Como é o tai-pan, pode dar a ordem. Quod erat demonstrandum.
— Heavenly, você é fantástico! — exclamou Malcolm. — Tem certeza sobre minha mãe e meu pai?
— Tenho, sim. Um dos meus informantes foi Morley Skinner, proprietário do Oriental Times, um contemporâneo de Dirk Struan, um velho que adorava contar histórias sobre os velhos tempos. Também obtive informações da Sra. Fortheringill, antes de sua morte, e... Já notou como são poucas as pessoas que se mostram dispostas a escutar os velhos, que testemunham todos os tipos de eventos? Skinner morreu há cerca de oito anos. Chegou a conhecê-lo?
— Não. — Um pouco da esperança de Malcolm se evaporou. — Se essa história fosse verdadeira, todos em Hong Kong a conheceriam.
— Dirk Struan resolveu abafá-la, achando que um “discreto casamento na igreja” era mais conveniente. Era bastante poderoso para conseguir isso e até persuadiu os Brocks a concordarem. Mas a história é verdadeira.
— Mas se ele... — Malcolm fez uma pausa; era um prazer contemplar sua expressão. — Mas não importa se é verdadeira ou falsa, não é mesmo?
— Tem razão. A verdade é muito importante porque lhe proporciona ampla defesa contra sua mãe. Afinal, só está fazendo a mesma coisa que ela, seguindo seu exemplo.
— Por Deus, Heavenly, você tem toda razão outra vez! — E depois, mais excitado: — Dispõe de alguma prova?
Claro, meu tolo rapaz, pensou Skye, mas não vai obter tudo de uma só vez.
— Tenho, sim, em Hong Kong. Precisarei de dinheiro para as despesas, a fim de ir até lá imediatamente... a serem deduzidas dos meus honorários. Digamos cinco mil, incluindo a prova... e sempre desde que minha solução corte o seu nó górdio. Quando você voltar a Hong Kong, depois do casamento, terei todas as provas de que puder precisar.
— E eu pensava que estava perdido!
Malcolm recostou-se na cadeira. Não havia mais nada agora para detê-lo. E aquele fato desanuviava sua mente de muitos demônios, os demônios da noite, do dia e do futuro.
— Que outros “fatos” você conhece a meu respeito e de meu passado?
— Muitos, Sr. Struan — respondeu Skye, sorrindo. — Mas não são para agora, embora preciosos.
Malcolm Struan seguia para casa, mais feliz do que podia se lembrar, as bengalas e a dor não o incomodando tanto quanto de hábito.
E por que não? — ele quase cantou. Casaria na semana seguinte com a moça mais linda do mundo, a mãe envolvida de uma maneira impecável — mal posso esperar para ver sua cara —, tenho uma festa esta noite, que agora será uma autêntica comemoração, e Norbert voltou no momento oportuno para ser enviado ao encontro de seu Criador. — Viva!
Na maior jovialidade, ele cumprimentava e acenava para as pessoas por quem passava. Era popular, além de lastimado, respeitado como o tai-pan da Casa Nobre, ainda mais invejado como o futuro e adorado marido da favorita da colônia.
O sol rompeu pelas nuvens, o que combinava com seu ânimo, fez o mar faiscar, enquanto a esquadra se dispersava na baía, o barco de Sir Wi Hiam aproximando-se da nave capitânia, o navio de correspondência cercado por outras embarcações. Seu próprio navio mercante, Lady Tess, que navegava entre Iocoama, Xangai e Hong Kong, fazia escalas em todos os portos principais até Londres, e depois voltava, estava preparado para zarpar, e deveria partir naquela noite.
Seu capitão era Lavidarc Smith, enorme e ruidoso, há muitos anos na companhia, como a maioria dos nossos capitães, mas jamais gostei muito dele. Preferia que o velho tio Sheley nos casasse e abençoasse. Uma pena que eu não soubesse o que sei agora quando ele passou por aqui. Ora, não importa. De qualquer forma, não posso manter Lavidarc aqui, e amanhã seria impossível, já que preciso primeiro cuidar de Norbert.
E Vincent Strongbow, do Prancing Cloud deve chegar no domingo e partirá para Hong Kong na quarta-feira. Isso me dá bastante tempo para matar Norbert e embarcar antes que Sir William me pegue. Não devo me demorar aqui, estarei muito mais seguro em Hong Kong, onde temos um poder real, e Angel... minha esposa a essa altura... poderá me seguir duas ou três semanas depois.
Portanto, tudo está resolvido. E Heavenly tem razão mais uma vez: devo ter muito cuidado, não contar a ninguém, nem mesmo a Angel, até pouco antes do momento. Posso confiar nele; jurou segredo, e seus honorários serão pagos ao longo do ano, o que me garantirá sua devoção. Ah, cinco mil! Mas não importa, ele me ofereceu a solução, o problema não mais existe, graças a Deus!
Outra decisão: vou reduzir o medicamento, até mesmo me abster por completo. Tenho um dever com Angel, de ficar bom e forte, sem acessórios. E estar em condições de assumir a Casa Nobre. Com Angel ao meu lado, posso...
Cavalos passando a trote interromperam seu devaneio. Ele acenou para os cavaleiros e viu que se encontrava perto da igreja, o sol brilhando na torre, o cheiro do mar, cavalos, terra e vida em suas narinas. Em súbita gratidão, pensou em entrar para fazer uma oração de agradecimento, quando notou a lancha a vapor da companhia aproximando-se do cais, com Jamie na popa, a cabeça inclinada para um jornal, e isso o lembrou da correspondência. Mudou de direção e alcançou o cais antes de a lancha atracar.
— Jamie! — gritou ele, por cima do barulho do motor.
Acenou, enquanto a lancha encostava nas estacas, cheias de algas e cracas. Viu Jamie contrair os olhos contra o vento, e depois acenar em resposta. Um olhar para seu rosto foi suficiente.
— Vou subir a bordo.
Meio desajeitado, ele passou para o convés, pois era difícil andar numa superfície inclinada com duas bengalas, mas conseguiu chegar à popa e permitiu que Jamie o segurasse pelo braço e o ajudasse a descer os três degraus para a cabine. Era espaçosa e privativa, com bancos em torno de uma mesa, armários por baixo. A correspondência estava sobre a mesa, em maços impecáveis, separada em cartas, jornais, revistas e livros. Malcolm viu no mesmo instante uma carta de sua mãe no alto da pilha que lhe era destinada, sua letra inconfundível. Outra carta dela, para Jamie, já se encontrava aberta na mesa.
— Fico contente em vê-lo, tai-pan.
— O que é agora?
— Tome aqui, leia você mesmo.
Para sua informação, meu filho não pode casar até alcançar a maioridade, em quaisquer circunstâncias. Já comuniquei isso ao reverendo Michaelmas Tweet, a Sir William (por esta remessa de correspondência) e publiquei um aviso na edição de hoje do Oriental Times (anexo). Também avisei aos capitães de todos os nossos navios passando por essas águas e ordenei que espalhassem essa informação, e também notifiquei o almirante Ketterer (por esta correspondência), no caso de ele se sentir tentado por uma cerimônia de capitão. O que meu filho fizer depois de completar vinte e um anos passa a ser problema dele, é claro. Até esse momento, diante de Deus, protegerei seus interesses e os nossos da melhor forma que puder.
O ar foi expelido dos pulmões de Malcolm, o sangue se esvaiu do rosto. Abriu sua própria carta. Era quase que uma cópia da outra, só que pessoal, endereçada a Meu querido filho, e terminava assim:
Isto é realmente para o seu próprio bem, meu filho. Lamento dizer que o sangue da moça é ruim: fomos informados de que as autoridades da Indochina francesa agora perseguem o pai dela, por fraude, e você já sabe que um tio se encontra na prisão dos devedores, em Paris. Se precisa tanto dela, faça com que se torne sua amante, por mais que eu desaprove, mas só vai acarretar mais problemas para si mesmo, tenho certeza. E saiba que jamais vou querer conhecê-la.
Confio que terei o prazer de vê-lo antes do Natal, quando toda essa história lamentável talvez já pertença ao passado. Deveria escrever sobre os infames Brocks, mas esse assunto deve ser resolvido aqui, não em Iocoama.
Sua mãe afetuosa.
Havia o “PS. Eu amo você’’, o que indicava a inexistência de uma mensagem secreta.
Lentamente, Malcolm rasgou a carta em pedacinhos. Esse controle agradou-o, mas não dissipou a fúria pelo impasse em que a mãe o deixara, e ele murmurou, sem saber que falava em voz alta:
— Aquela mulher é uma megera... uma megera gerada por demônios, uma bruxa... como ela podia saber...
McFay observava-o e esperava, na maior preocupação. Quando pôde pensar direito, Malcolm perguntou:
— O que diz o jornal?
O aviso era breve:
A Sra. Tess Struan, diretora em exercício da Struan, anunciou hoje que a Casa Nobre promoverá grande comemoração por ocasião do 21o aniversário de seu filho mais velho, Malcolm, e sua posse formal no posto de tai-pan, a 21 de maio do próximo ano.
— Não há muito mais que ela possa fazer para me solapar, não é mesmo. Jamie? — comentou ele, com um sorriso amargo.
— Não — respondeu Jamie, o coração se confrangendo por ele. Malcolm contemplou os navios, o horizonte, com Hong Kong mais além, com todos os seus amigos, e inimigos também. Agora, a mãe se situava no topo da segunda lista.
— É engraçado, de certa forma. Poucos momentos antes, eu me sentia na crista da onda...
Um tanto apático, ele relatou a Jamie sua grande idéia, a recusa de Tweet, e o plano maravilhoso de Heavenly.
— Mas tudo isso é lixo agora.
Jamie sentia um choque tão grande quanto o de Malcolm. Não conseguia pensar direito.
— Talvez... talvez seja possível persuadir Tweet. Quem sabe se uma grande contribuição...
— Ele recusou isso. E o padre Leo também.
— Oh, Deus! Você pediu a ele?
Malcolm relatou o encontro, deixando Jamie ainda mais chocado.
— Se está disposto a chegar a tais limites, tai-pan... talvez... possamos encontrar outro capitão.
— Não há muitas possibilidades agora, Jamie. E, de qualquer forma, Heavenly ressaltou que tudo deveria ser discreto, até acabar, pois Sir William pode proibir, já que Angelique e eu somos menores. E se a mãe enviou um aviso formal a Sir William, ele terá de contar a Seratard. Ela venceu... que Deus a amaldiçoe!
Malcolm tornou a desviar os olhos para o horizonte. No passado, quando uma catástrofe ocorria, como na ocasião em que os gêmeos haviam se afogado — embora a mãe nunca o tivesse dito expressamente, ele sempre achara que ela o culpava, pois nada teria acontecido se estivesse presente —, Malcolm sentia as lágrimas aflorando, como agora, mas tratava de reprimi-las, o que agravava ainda mais o sofrimento. Fazia isso porque “um tai-pan nunca chora”. Ela sempre lhe incutira tal idéia. Era a primeira coisa que podia recordar a mãe dizendo:
— O tai-pan nunca chora, paira acima disso, continua a lutar, como Dirk, nunca chora, suporta o fardo.
Repetira muitas e muitas vezes, embora as lágrimas sempre escorressem dos olhos do pai com a maior facilidade.
E eu jamais compreendi como ela sentia desprezo por ele.
Ela nunca chorou, nem uma única vez, ao que eu possa me lembrar.
Não vou chorar. Suportarei o fardo. Jurei que seria digno de me tornar tai-pan e assim será. Nunca mais ela será a “mãe” para mim. Nunca. Tess. Isso mesmo, Tess, eu suportarei.
Seus olhos focalizaram Jamie. Sentia-se muito velho, muito solitário.
— Vamos desembarcar.
Jamie fez menção de dizer alguma coisa, parou. Sua expressão era estranha.
Depois, ele apontou para o banco no outro lado. Mais pacotes de correspondência ali.
— O que é?
— É... a correspondência de Wee Willie. Bertram, o novo assistente da legação, estava doente, e por isso eu propus... buscar a correspondência para eles
Os dedos de Jamie se mostravam tão trêmulos quanto a voz. Ele pegou o maço de cartas. O cordão cruzado tinha o lacre do governo no centro, mas ainda assim foi fácil folhear pelos cantos, e encontrar as duas cartas de Tess Struan. Para Sir William e o almirante Ketterer.
— Com um pouco de tempo, e sorte, nós... você... eu poderia tirar essas cartas
Os cabelos na nuca de Malcolm se arrepiaram. Roubar o correio real era um crime punido com a forca.
34
Os dois homens ficaram olhando para o maço de cartas, atordoados, dominados pelo medo. A cabine era claustrofóbica. Malcolm não disse nada, limitou-se a observar Jamie, que também se manteve calado, os dois se sentindo esgotados. Depois, tomando a decisão por ele, os dedos trêmulos de Jamie puxaram o cordão, mas isso levou Malcolm a tomar sua própria decisão. Ele se inclinou para pegar o maço de cartas.
— Não, Jamie, não deve fazer isso.
— É o único jeito, tai-pan.
— Não é, não.
Malcolm ajeitou o cordão, aliviado ao constatar que o lacre não fora rompido, alisou as cartas, e largou o maço sobre o outro, o contato odioso.
— Não é certo — murmurou ele, a voz tão fraca quanto os joelhos, desprezando sua fraqueza... mas seria fraqueza? — Nunca me perdoaria se você... se você fosse apanhado e eu não tenho a coragem... além de achar que não é certo.
O rosto de Jamie ficara molhado de suor.
— Certo ou não, ninguém vai saber. Se não fizermos isso, você não terá a menor chance. Talvez possamos encontrar um capitão... até mesmo da Brock, um navio deles é esperado na próxima semana.
Malcolm sacudiu a cabeça, a mente vazia. Uma onda jogou a lancha contra o cais, fazendo os cabos rangerem. Com um esforço, ele se concentrou. Durante toda a sua vida, sempre que se encontrava num dilema, perguntava a si mesmo o que faria Dirk Struan, o tai-pan... mas nunca obtivera uma resposta concreta. Ao final, exausto, ele indagou:
— O que ele faria, Jamie... o que Dirk Struan faria?
No mesmo instante, a memória de Jamie conjurou o gigante impetuoso, nas poucas vezes em que o vira, ou estivera em sua companhia por alguns minutos... ainda jovem, quando começara a trabalhar na companhia.
— Ele... — Depois de um momento, um sorriso começou a se insinuar. — Ele faria... Dirk... é isso mesmo. Acho que ele mandaria todo mundo desembarcar, e sairia sozinho com a lancha, para “testar alguma coisa que parece errada”, e depois... depois que estivesse longe da praia, em águas profundas, abriria calmamente as válvulas e, enquanto a água entrasse, verificaria se toda esta correspondência estava bem presa, sem o risco de se soltar e flutuar, em seguida iria para a popa, acenderia um charuto, esperaria até a lancha afundar, e nadaria para a praia Ele interferiu com a correspondência? “Mas que idéia, rapaz!” — O sorriso de Jamie era agora seráfico. — Por que não?
Antes da Tokaidô, Malcolm era um excelente nadador. Agora, sabia que afundaria como uma âncora.
— Eu nunca chegaria à praia.
— Mas eu não teria dificuldade, tai-pan.
— Acontece que o problema não é seu, Jamie; e mesmo que o fizesse, isso só me concederia cerca de uma semana, o que não seria grande coisa. Não podemos interferir com o correio real. Vamos esquecer que tudo isso aconteceu. Certo? — Malcolm estendeu a mão. — Você é um amigo de verdade, o melhor que já tive. Lamento tê-lo tratado tão mal.
Jamie sacudiu a mão dele com vigor.
— Não me tratou tão mal assim e mereci tudo o que disse. Não houve conseqüências. Tai-pan... por favor, seria muito fácil.
— Obrigado, mas não.
Pela décima milésima vez, Malcolm compreendeu que não era Dirk Struan e nunca poderia fazer tudo aquilo de que o tai-pan era capaz; naquele caso, remover as cartas sem hesitação ou afundar toda a correspondência. Antes da Tokaidô talvez eu ousasse, mas agora... agora é cinqüenta vezes pior. Tokaidô, sempre a Tokaidô, pensou ele, a palavra gravada a fogo em sua mente, tão frustrado que sentia vontade de gritar.
— Tenho de enfrentar o problema sozinho.
Ele desembarcou, foi para sua suíte, claudicando. O vidro pequeno estava cheio, mas ele não tomou nada, tornou a guardá-lo na gaveta. Sentindo bastante dor, puxou sua cadeira para mais perto da janela e desabou nela, aliviado.
Vou vencer, prometeu a si mesmo. Por favor, Deus, ajude-me. Não sei como, mas hei de ter Angelique, dominar a dor, o ópio, a Tokaidô, Tess, vou vencer de qualquer maneira...
Seu sono foi profundo e repousante. Quando acordou, deparou com Angelique, sentada perto, sorrindo-lhe.
— Boa tarde, querido. Puxa, você dormiu muito bem! Já é quase hora de trocar de roupa para a festa. — Os olhos de Angelique faiscavam. Ela se adiantou, beijou-o, ajoelhou-se ao seu lado. — Como se sente?
— Ver você me deixa muito feliz.
A voz de Malcolm estava impregnada de amor, mas não ocultava a preocupação interior.
Isso a decidiu. Era importante tirá-lo de sua seriedade habitual, a fim de que pudesse desfrutar a festa naquela noite, que prometera que seria uma comemoração.
— Tenho uma surpresa para você — anunciou Angelique, maliciosa.
— O que é?
Ela se levantou, começou a rodopiar, como se estivesse dançando, o vestido de tarde sibilando. De repente, soltou uma risada e exclamou:
— Olhe!
Angelique levantou as saias e as anáguas, revelando toda a extensão das pernas perfeitas, realçadas por meias de seda, ligas elegantes sob os joelhos, uma calcinha rendada em diversas camadas. Ele esperava pelo calção tradicional, que tudo encobria. A visão deixou-o sem fôlego.
— Oh, Deus... — balbuciou ele.
— É para o seu prazer apenas, meu querido — disse ela, inebriada por sua ousadia, rindo do rubor de Malcolm, para depois, contente, levantar as saias por cima da cabeça por um instante, deixando-as cair em seguida, se abanando, esbaforida. — É a última moda, não se usam mais aqueles calções horríveis. O colunista de Le Figaro diz que hoje em dia algumas das mais famosas damas de Paris nem mesmo usam calcinhas na Ópera... em ocasiões especiais... para o prazer secreto de seus amantes!
— Não ouse fazer isso! — exclamou Malcolm, rindo também, arrebatado pela exuberância dela. Ele pegou-a pela mão, puxou-a para seu colo. — O simples pensamento me levaria à loucura.
Angelique comprimiu a cabeça contra seu ombro, satisfeita por seu estratagema ter dado certo.
— Acho que vou sussurrar em seu ouvido durante o jantar, algumas vezes, ou quando estiver dançando, que esqueci de vesti-las... só para provocar meu príncipe encantado, mas apenas depois que casarmos, e só para diverti-lo. Não se importa, não é, chéri... a nova moda, sem aqueles calções horríveis?
— Claro que não — respondeu Malcolm, como um homem experiente, embora secretamente não o fosse. — Se é a moda, então é a moda.
— Disse que a festa desta noite seria uma celebração? A maior parte da jovialidade de Malcolm se desvaneceu.
— Deveria ser, mas... Seja paciente comigo, Angel. Dentro de poucos dias poderei lhe contar o verdadeiro motivo... apenas tive de adiar um pouco. Enquanto isso, saiba que amo você, amo você, amo você...
O tempo mudou à noite, mas isso não arrefeceu o clima da festa de Malcolm. A sala de jantar principal do prédio Struan fora construída para grandes ocasiões e ofuscava todas as outras instalações particulares da colônia, exceto o clube. Prataria faiscante, copos de cristal, a melhor porcelana de Pequim, os trinta e tantos convidados em trajes a rigor ou uniformes de gala. Hoag declinara o convite, pois estava com febre.
O jantar foi lauto, como sempre, e prolongado. Agora, sob aclamações, a mesa comprida foi encostada na parede — uma ocorrência rara, mas quase obrigatória sempre que Angelique se encontrava presente, todos os convidados querendo dançar com ela. Menos Jamie... mas apenas por aquela noite. Como combinara antes com Malcolm, Jamie retirou-se discretamente, durante a confusão do deslocamento da mesa.
— Desculpe, mas não sinto vontade de dançar e vou embora, tai-pan.
— Ambos juramos esquecer o episódio da lancha hoje.
— Não é isso. Quero apenas ordenar meus pensamentos.
Naquela noite, Angelique era a única mulher presente, já que as outras duas como Hoag, estavam lamentavelmente doentes, e ela foi escoltada ao ritmo vertiginoso de valsas e polcas tocadas por André Poncin, num piano de cauda importado sob aplausos gerais na primavera. Uma dança por convidado era a regra, ela tinha permissão para descansar depois de quatro danças, e podia parar sempre que quisesse. Seu rosto resplandecia; usava um vestido novo de seda, vermelho e verde, mas sem a armação de uma saia-balão, o que realçava a cintura fina e o busto cheio, os mamilos quase à mostra, na moda decretada por Paris, deplorada pelo clero ausente, e devorada por todos os homens na sala.
— Já chega, mes amis — anunciou ela, depois de uma hora, sob os lamentos e súplicas daqueles que ainda não haviam dançado, e voltou para Malcolm, abanando-se, exultante.
Ele sentava numa enorme cadeira de carvalho, toda lavrada, à cabeceira da mesa, embalado pelo vinho e conhaque. Gostava de apreciá-la tanto quanto qualquer outro, embora se sentisse, como sempre, profundamente frustrado por não ter reivindicado a primeira dança, nem a última, como seria seu direito. Antes, era um grande dançarino.
Angelique acomodou-se no braço da cadeira. Malcolm passou o braço por sua cintura, enquanto ela estendia o seu pelos ombros dele.
— Você dança maravilhosamente, Angel.
— Nenhum deles é tão bom quanto você — sussurrou ela. — Foi o que primeiro me atraiu em você, príncipe encantado...
Gritos de expectativa interromperam-na. Para seu constrangimento e consternação, os dedos de André iniciaram os primeiros acordes do cancã, lentos e sedutores. Angelique sacudiu a cabeça, não se mexeu.
Para sua surpresa, sob gargalhadas, Pallidar e Marlowe foram para o centro da sala, toalhas presas em torno do uniforme, como saias, o ritmo alegre da música se acelerou, e eles iniciaram uma paródia hilariante da dança que escandalizava o mundo civilizado, fora de Paris, cada vez mais depressa, erguendo as falsas saias mais e mais alto, os pés subindo mais e mais, sob gritos, zombarias e risadas, todos batendo os pés em acompanhamento, até que os dois homens, de rosto vermelho e suando, nos uniformes apertados, tentaram um split e desabaram no chão, aos brados de “bis! bis!” e aplausos ensurdecedores.
Rindo com os outros, Malcolm largou-a, e ela se adiantou para ajudá-los a levantar, dando os parabéns e elogiando seus esforços. Pallidar ofegava e simulou um gemido.
— Acho que entortei as costas para sempre.
— Champanhe para o exército e rum para a marinha! — gritou Angelique.
Ela deu os braços aos dois e levou-os até Malcolm, para mais elogios. Sorrindo para ele, comentou:
— Nada de cancã para mim, não é mesmo, querido?
— Seria demais.
— Concordo — disse Marlowe.
— Também acho — arrematou Malcolm, partilhando o sorriso secreto com a noiva, num agradável excitamento.
Ao recomeçar a tocar, André escolheu uma valsa. Era apenas o suficiente para ela mostrar os tornozelos enquanto rodopiava, mas não o bastante para revelar a ousada ausência das pantalonas. Fora ele quem lhe mostrara o artigo em Le Figaro, encorajara-a, e partilhava o segredo. Durante toda a noite, observara-a e aos homens que a adulavam — Babcott pairando acima de todos os outros, depois os esplendorosos Pallidar e Marlowe, tentando afastá-lo do círculo íntimo —, saboreando seus segredos, e também, no momento, a vida dentro de uma vida que ele levava. Angelique dançava agora com Sir William. Rindo para si mesmo, André deixou a mente vaguear, enquanto os dedos continuavam a tocar. O que fariam todos se soubessem o que sei? Sobre os brincos, o aborto, e como me livrei da prova? Todos se voltariam para ela como se fosse uma leprosa, inclusive o apaixonado Struan, ele mais ainda.
Se as coisas fossem diferentes, e eu estivesse em Paris com ela, apoiado pelo poder e dinheiro da Casa Nobre, com um marido que a adora, mas inválido, quantos segredos poderia obter! Angelique precisaria de um treinamento mais extenso nas artes femininas, não tão gentis quanto se podia imaginar, suas garras teriam de ser afiadas, mas depois se tornaria uma clássica, qualquer salão e qualquer cama a acolheriam com o maior prazer, e depois que experimentasse o Grande Jogo, aquela menina tão astuta haveria de se empenhar com a maior satisfação.
E na minha cama? Agora ou mais tarde, com toda certeza, se eu quisesse pressioná-la, mas não a desejo mais, e não a terei, exceto por vingança. Ela é muito mais divertida como um joguete, e há bem pouca coisa neste mundo para divertir...
— Uma idéia sensacional, André! — exclamou Phillip Tyrer, radiante, ao seu lado. — Settry disse que você tramou tudo com eles.
— O quê?
— O cancã!
— Ah, sim... — Os dedos de André continuaram a tocar a valsa por mais um momento, mas logo pararam. — É tempo para uma pausa. Vamos tomar um drinque.
Ele concluiu que agora, sendo quase público, seria uma ocasião perfeita para controlar Tyrer.
— Ouvi dizer que o contrato de uma certa dama vale o salário de um ministro — comentou ele, em francês.
O rosto de Tyrer se avermelhou em embaraço, ele correu os olhos ao redor André acrescentou:
— Por Deus, Phillip, parece até que eu poderia ser indiscreto a esse ponto Não se preocupe, meu amigo, pois sempre defendo seus interesses. — Ele sorriu recordando o encontro dos dois no castelo em Iedo. — Afinal, as questões do coração nada têm a ver com as questões de Estado, embora eu acredite que a França deveria partilhar os despojos do mundo com a Grã-Bretanha... não concorda?
— Eu... concordo, André. Mas... as negociações não correm muito bem, infelizmente, ainda estamos num impasse.
— Não acha que é melhor falar em francês?
— Tem razão. — Tyrer usou seu lenço como um dândi o faria, para enxugar o suor repentino. — Nunca pensei que seria tão difícil.
André fez um sinal para que ele chegasse mais perto.
— Posso lhe dizer como acertar tudo: não a veja esta noite, embora tenha um encontro marcado. — Ele quase riu quando Tyrer ficou boquiaberto. — Quantas vezes já expliquei que existem bem poucos segredos por aqui? Talvez eu possa ajudar... se você precisar de ajuda.
— Claro que preciso. Seria um grande favor.
— Neste caso...
Os dois olharam para a mesa de roleta, que fora armada na outra extremidade da sala, onde houve uma explosão de risos e aplausos quando Angelique ganhou no duplo zero... não era jogo a dinheiro naquela noite, apenas moedas chinesas de bronze, sem valor. Vargas atuava como crupiê. Tyrer suspirou.
— Sorte no jogo e sorte no amor.
— Ela trabalha para isso — murmurou André, irritado com Angelique. — E você deveria fazer a mesma coisa. Não compareça ao encontro desta noite com Fujiko. Claro que sei que Raiko arrumou tudo por sua súplica... e não foi Raiko quem me contou, diga-se de passagem, mas uma de suas criadas. Não vá, e não mande nenhum aviso, apenas procure outra casa, a estalagem dos Lírios, por exemplo, pegue qualquer moça ali, a mais bonita se chama Yuko.
— Mas eu não quero, André...
— Se não quiser levá-la para a cama, apenas faça com que ela o Sirva por outros meios, trate de se embriagar, ou finja estar bêbado, e pode ter certeza de que não vai desperdiçar seu dinheiro. Amanhã, quando Nakama mencionar Fujiko, ou qualquer coisa sobre o contrato e Raiko, demonstre indiferença, e de noite repita o desempenho.
— Mas...
— Sempre que Nakama mencionar qualquer coisa, banque o indiferente, não diga nada, apenas que a estalagem dos Lírios parece muito promissora, ordene em tom ríspido que ele não torne a falar no assunto. Entendido até aqui?
— Entendido, mas você não acha...
— Não, não acho, a menos que você prefira ser levado à loucura e não queira ter Fujiko a um preço relativamente razoável... e de qualquer maneira, Phillip você vai continuar no impasse. O que não importa. Não é justo que tenha de mendigar, é uma questão de honra. Não discuta esse plano com Nakama, e mantenha o esquema por uma semana, no mínimo.
— Por Deus, André, uma semana?
— O melhor seriam três semanas, meu velho amigo. — André se divertiu com a expressão angustiada de Tyrer. — Não apenas estou lhe poupando muito dinheiro com isso, mas também um oceano de aborrecimentos. É importante que comporte como se não desse a menor importância, que se mostre irritado com as protelações, os encontros desmarcados e o preço absurdo pedido por Raiko... ainda mais por se tratar de alguém tão importante como você! Será uma boa coisa deixar Nakama desconcertado. Mas não muito, pois ele é um sujeito esperto, não é mesmo?
— É, sim... inteligente e perceptivo.
Também acho, pensou André, e muito em breve chegará o momento de partilhar tudo comigo, tanto o que ele lhe contou, como o que consegui descobrir por mim mesmo. É curioso que Nakama fale inglês... graças a Deus que meus espiões têm ouvidos bem abertos, além dos olhos. Isso explica muita coisa, embora eu não entenda por que ele não fala em inglês comigo, nem mesmo em japonês, sempre que o encontro sozinho. Deve ser porque Willie deu essa ordem.
— Tenho certeza que Raiko vai me pedir uma dúzia de vezes para interceder, promover um encontro — continuou André. — Depois de uma semana, concordarei em atendê-la, mas com evidente relutância. Não deixe que Nakama faça isso, não permita que ele entre no jogo. Ao se encontrar com Raiko, banque o duro e aja da mesma forma com Fujiko. Terá de parecer convincente, Phillip.
— Mas...
— Diga a Raiko que ela estava correta ao considerar os interesses de seu cliente, os seus interesses, em primeiro lugar... ainda mais porque você é uma autoridade importante, repise isso... dando-lhe tempo para pensar no assunto com o maior cuidado. E concorde que é melhor ser prudente, que comprar agora o contrato da “mulher” não é uma boa idéia. Diga “mulher”, em vez de Fujiko... não se esqueça que do ponto de vista delas você apenas negocia no momento o preço de uma mercadoria, não a dama que adora. Agradeça a Raiko, declare que com a sua ajuda pôde pensar melhor, e acha agora que seria um erro comprar um contrato. Vai apenas alugar os serviços da “mulher” de vez em quando, e se a “mulher” estiver ocupada, shigata ga nai... não tem importância... a vida é curta, etc.
Tyrer escutava com toda atenção, sabia que André tinha razão, e se angustiou à perspectiva de não ver Fujiko por uma semana, já imaginando-a a sofrer sob o peso de cada gai-jin em Iocoama.
— Eu... concordo com tudo o que disse, André, mas acho que não serei capaz... de fazer a encenação.
— Tem de fazer. Por que não? Afinal, eles representam durante todo o tempo. Ainda não percebeu que essa gente vive a mentira como se fosse a verdade e a verdade como se fosse mentira? As mulheres não têm opção, ainda mais no mundo flutuante. Os homens? São ainda piores. Lembre-se do Bakufu, o Conselho do Anciãos, e também de Nakama, especialmente de Nakama. Eles são mestres consumados no jogo, não se iluda. Por que ser um otário, por que deixar Raiko, humilhá-lo, e ao mesmo tempo entregar em suas mãos um ouro que não tem condições de dispensar... nunca terá... só por que tenta aplacar uma ânsia interminável que Deus implantou em nós?
André estremeceu. Conhecia muito bem essa armadilha. Caíra nela. Raiko o pressionara muito além de seus limites financeiros. Isso não é verdade, disse ele a si mesmo, irritado. Pode distorcer a verdade e a mentira para outras pessoas, mas não faça isso com você próprio, com seu eu secreto, ou estará perdido. A verdade é que me lancei ao limite, fui além, com a maior satisfação. Há dezessete dias.
No instante em que Raiko me apresentou à moça...
No instante em que a vi, com seus cabelos negros, pele de alabastro, olhos fascinantes, compreendi que daria a Raiko até minha alma, e mergulharia no abismo eterno para possuí-la. Eu, André Eduard Poncin, servidor da França, mestre da espionagem, assassino, perito na vileza da natureza humana, eu, o grande cínico, me apaixonei à primeira vista. Uma loucura! Mas a verdade.
Assim que a moça se retirou, eu, desamparado, emocionado, balbuciei:
— Raiko, por favor, pago qualquer coisa que pedir.
— Sinto muito, Furansu-san, mas custará mais dinheiro do que me agrada mencionar, mesmo que ela concorde em ficar com você... o que ainda não ocorreu.
— Pago qualquer dinheiro. Por favor, pergunte se ela aceita.
— Está bem. Por favor, volte amanhã, ao anoitecer.
— Não. Por favor. Pergunte agora... eu espero.
E ele tivera de esperar quase duas horas. Enquanto esperava, angustiado, rezara e torcera, morrera, e tornara a morrer. Quando Raiko voltara, ele vira sua expressão determinada, começara a morrer mais uma vez, mas ressuscitara quando ela dissera:
— O nome dela é Hinodeh, que significa alvorecer. Tem vinte e dois anos, diz que sim, mas há condições. Além do dinheiro.
— Tudo o que Hinodeh quiser.
— É melhor escutar primeiro. — Raiko parecia mais sombria do que ele jamais a vira. — Hinodeh diz que será sua consorte, não cortesã, por um ano e um dia. Se nesse último dia ela decidir continuar com você, vai lhe dar seu inochi, seu espírito, e passará mais um ano em sua companhia, e outro, mais outro, ano a ano, até decidir deixá-lo ou você se cansar dela. Se ela decidir ir embora, você jura que vai liberá-la, sem problemas.
— Concordo. Quando começamos?
— Espere, Furansu-san, há muito mais. Não haverá espelhos em sua casa e você não levará nenhum. Quando ela se despir, o quarto estará sempre no escuro-exceto uma vez, a primeira. Apenas uma vez, Furansu-san, poderá vê-la. Depois, no momento em que qualquer... qualquer marca desfiguradora aparecer, ou quando ela quiser lhe pedir, você deverá sem hesitação fazer uma reverência, abençoá-la, ser sua testemunha, e entregar a taça de veneno, ou faca, assistir e esperar até que ela esteja morta, para honrar seu sacrifício.
A mente de André entrara em vertigem, fora de controle.
— Morta?
— Ela disse que prefere a faca, mas não sabia qual seria a escolha de um gai-jin.
Quando conseguira pôr o cérebro para funcionar, André murmurara:
— Eu... eu serei o juiz... se a marca desfiguradora aparecer?
Raiko dera de ombros.
— Em você ou nela, não importa. Se ela resolver pedir, você deve cumprir sua promessa. Tudo ficará por escrito no contrato. Concorda?
Depois de absorver isso, em todo o seu horror, de aceitar, ele indagara:
— Quer dizer que a doença nela ainda se encontra no início, não há marcas?
Os olhos de Raiko se mostraram implacáveis, a voz era gentil, mas inexorável:
— Hinodeh não tem doença, Furansu-san, absolutamente nenhuma. É imaculada.
A cabeça de André parecia prestes a explodir, com o “é imaculada” ressoando pelo cérebro, junto com o brado para si mesmo “mas você é impuro!”
— Por quê? Por que ela concorda? Por quê? Ela não sabe que estou doente?
Uma criada, esperando lá fora, na varanda, assustara-se com seu grito e abrira a porta de shoji. Raiko acenara com a mão e a criada, obediente, tornara a fechá-la. Com extrema delicadeza, Raiko tomara um gole de saquê.
— Claro que ela sabe, Furansu-san. Sinto muito.
Ele removera a saliva dos cantos da boca.
— Então por que... ela concorda?
Outra vez uma expressão estranha.
— Hinodeh não quis me dizer. Sinto muito. É parte do meu acordo com ela. Não devo pressioná-la para saber, o que deve constar do seu acordo com ela. Não podemos pressioná-la. Ela diz que contará tudo no momento que julgar mais conveniente. — Raiko soltara um suspiro profundo. — Sinto muito, mas você deve concordar com isso, como parte do contrato. É essa a condição final.
— Concordo. Por favor, prepare o contrato...
Depois de uma longa agonia — apenas uns poucos dias —, o contrato fora assinado e lacrado, e André se encontrara com Hinodeh, ele impuro, ela pura, em toda a sua glória, e amanhã haveria outro encontro...
André quase deu um pulo quando alguém pôs a mão em seu ombro e descobriu-se de volta à enorme sala do prédio Struan. Era Phillip, que disse:
— Você está bem, André?
— Como? Ah, claro... — O coração de André palpitava, um suor frio deixava toda a sua pele arrepiada, na lembrança do “imaculada” e “primeira vez”, de todo o horror da situação... temendo o dia seguinte. — Desculpe, eu... senti um súbito calafrio.
No mesmo instante, ele experimentou a sensação de que a sala o pressionava ameaçando sufocá-lo, precisava sair dali, respirar um pouco de ar fresco. Levantou-se, meio trôpego, balbuciando:
— Peça... peça a Henri para tocar... eu... não me sinto bem... tenho de ir embora...
Aturdido, Tyrer observou-o se afastar. Babcott veio da mesa de roleta.
— O que houve com ele? O pobre coitado dá a impressão de que acaba de ver um fantasma.
— Não sei, George. Num momento ele estava bem, no seguinte ficou branco que nem um lençol, o suor escorrendo.
— Foi alguma coisa na conversa?
— Acho que não. Ele apenas me aconselhava sobre o que fazer com Fujiko e Raiko, nada que o envolvesse pessoalmente.
Os dois olharam André se retirar, como se a sala estivesse vazia. Babcott franziu o rosto.
— Uma atitude insólita, pois ele é geralmente afável. — Pobre coitado, deve ser sua aflição... eu bem que gostaria de poder lhe proporcionar uma cura, bem que gostaria que Deus nos oferecesse uma cura.
— Por falar nisso — disse Tyrer —, eu não sabia que você era um dançarino tão hábil.
— Nem eu — respondeu o gigante, com uma risada trovejante. — Fui inspirado... ela inspira qualquer um. Normalmente, danço como um rinoceronte.
Os dois contemplaram Angelique, através da sala.
— Uma constituição extraordinária a dessa moça... e que riso maravilhoso, contagiante!
— Tem razão. Malcolm é mesmo um sujeito de sorte. Com licença. Tenho de pedir a Henri para substituir André...
Tyrer afastou-se. Babcott tornou a observar Angelique. É curioso que um médico possa examinar uma paciente sem se sentir excitado, pensou ele, mesmo sendo uma mulher assim. E não fiquei, nas ocasiões em que ela me consultou em Kanagawa, ou aqui, embora nunca houvesse um exame intimo, pois não havia necessidade, exceto por sua menstruação intensa demais, há poucas semanas, quando um exame mais meticuloso era indicado, só que ela nunca permitiu. Nunca a vi tão pálida, com os lábios tão exangues. Pensando nisso, ela se comportou de maneira estranha, nem me deixou chegar perto, apenas me permitiu entrar no quarto, por um breve instante, quase como um estranho, quando na noite anterior — na ocasião em que lhe devolvi sua cruz — escutei o que havia em seu coração, auscultei seu peito e costas, verifiquei o estômago, e ela reagiu como uma paciente normal. Lembro que tinha a pulsação um pouco acelerada, sem qualquer motivo aparente. Um comportamento curioso.
Será que deixei de perceber alguma coisa? — ele perguntou a si mesmo, observando-a à mesa da roleta, transbordando de vida, batendo palmas com infantil júbilo ao ganhar, no vermelho ou no preto, Zergeyev e os outros lhe ensinando a arte do jogo. E é estranho que ela não use sua cruz, como a maioria dos católicos, ainda mais quando foi um presente da mãe adorada.
— Grande festa, Malcolm — disse Sir William, aproximando-se, a reprimir um bocejo. — Mas é tempo de me recolher.
— Outro conhaque?
Malcolm estava sentado perto do canto da lareira, o fogo agora reduzido a brasas.
— Não, obrigado. Já bebi o suficiente. Grande dama, Malcolm, grande diversão.
— É verdade — concordou Malcolm, orgulhoso.
Ele sentia-se melhor, com o vinho e o conhaque, que amorteciam a dor e acalmavam seu pânico persistente pelo futuro. Não tão forte quanto o medicamento, pensou ele. Mas não tem importância, é um começo.
— Bom... boa noite. — Sir William esticou-se. — Ah, antes que eu me esqueça, você poderia me procurar amanhã, a qualquer hora que quiser.
Malcolm levantou os olhos abruptamente, a lembrança da carta da mãe deixando seu estômago gelado outra vez.
— Por volta de onze horas está bem?
— Perfeito. Se quiser mudar, não tem problema.
— Não. Irei às onze horas. Sobre o que deseja me falar, Sir William?
— Pode esperar. Não há nada que não possa esperar.
— Sobre o que, Sir William?
Ele percebeu a compaixão nos olhos que o estudavam. Seu desconforto aumentou.
— É sobre a carta de minha mãe, não é mesmo... ela disse que lhe escreveria pela correspondência que chegou hoje.
— É isso mesmo, mas apenas em parte. Fui informado que deveria esperar uma carta. O primeiro assunto é Norbert, agora que ele voltou. Espero que já tenham esquecido essa bobagem de duelo.
— Claro.
Sir William soltou um grunhido, sem estar convencido, mas deixou o caso por aí. Não podia fazer mais do que advertir as duas partes e, depois, se insistissem, imporia a lei.
— Vocês dois estão avisados.
— Obrigado. E qual é o segundo assunto?
— Recebi a comunicação oficial do plano do governo de proibir todo o comércio de ópio por cidadãos britânicos, todo o transporte em navios britânicos, destruir as plantações de ópio em Bengala, substituindo-as por chá. Como liderava a delegação para pedir e se queixar dos rumores, eu queria que fosse o primeiro a saber.
— Isso vai arruinar nosso comércio asiático, todo o comércio na China, e transtornar por completo a economia britânica.
— A curto prazo, vai sem dúvida causar um grande problema para o Tesouro mas é o único curso moral possível. Essa providência já deveria ter sido adotada há alguns anos. É claro que compreendo o insolúvel triângulo prata-ópio-chá e o caos que a receita perdida acarretará para o Tesouro.
Sir William assoou o nariz, já cansado do problema que há anos afligia o Ministério do Exterior.
— Acho que peguei um resfriado. Sugiro que convoque uma reunião para a próxima semana, a fim de discutir como podemos reduzir a confusão.
— Está certo.
— Cultivar nosso próprio chá é uma boa idéia, Malcolm — comentou Sir William. — Mais do que isso, uma idéia maravilhosa! Pode interessá-lo saber que as primeiras plantações experimentais em Bengala estão produzindo colheitas de sementes contrabandeadas da China, levadas para Kew Gardens por Sir William Longstaff, o governador de Hong Kong no tempo de seu avô, quando voltou para casa.
— Sei disso, e até provei o chá, que é amargo e preto, sem nada da delicadeza do chá chinês, ou até mesmo do japonês — respondeu Malcolm, impaciente. O chá podia esperar até o dia seguinte. — O que mais?
— Por último, a carta de sua mãe — acrescentou Sir William, mais formal. — Não é política do governo de sua majestade, nem de seus representantes, interferir com a vida particular de seus cidadãos. Mas sua mãe ressalta que você é menor de idade e ela é sua tutora legal. Sou obrigado a não aprovar qualquer casamento sem o consentimento da tutora legal, neste caso das duas partes. Lamento muito, mas é a lei.
— As leis são feitas para serem violadas.
— Algumas leis, Malcolm — disse Sir William, gentilmente. — Não sei qual é o problema entre você e sua mãe, nem desejo saber... ela chamou minha atenção para o aviso no Times, que pode ser interpretado de várias maneiras, nem todas boas. Quando você voltar a Hong Kong, tenho certeza que poderá trazê-la para o seu lado. Além disso, de qualquer forma, você alcançará a maioridade em maio. e não falta muito.
— Errado, Sir William — disse Malcolm, recordando o mesmo conselho de Gordon Chen... um conselho de homens que não sabem o que é o amor, pensou ele, sem rancor, apenas sentindo pena. — Falta um milhão de anos.
— Seja como for. Tenho certeza que tudo acabará dando certo para os dois. Henri também pensa assim.
— Conversou a respeito com ele?
— Em particular, é claro. O cônsul francês em Hong Kong está... hum... a par de Angelique e sua afeição por você, a afeição mútua. Ela é uma pessoa maravilhosa, dará uma esposa maravilhosa, independentemente do problema com seu pai.
Malcolm ficou vermelho.
— Também sabe de tudo a respeito dele?
Os sulcos no rosto de Sir William se tomaram ainda mais profundos.
— As autoridades francesas no Sião estão bastante preocupadas. Como não podia deixar de ser, informaram Henri, que me passou as informações, pedindo ajuda. Lamento, mas é uma questão de interesse oficial. Já deve saber disso. Afinal, qualquer coisa relacionada com a Casa Nobre é uma questão de interesse. — Uma pausa, e ele acrescentou, com alguma tristeza, pois gostava de Malcolm e lamentava o barbarismo na Tokaidô: — O preço da fama, hem?
— Se... se souber de alguma coisa, eu agradeceria se pudesse ouvir primeiro, em particular, o mais depressa possível.
— Está certo, posso mantê-lo informado. Em particular.
Malcolm estendeu a mão para a garrafa de conhaque.
— Tem certeza que não quer?
— Não, não quero. Obrigado.
— Há alguma solução para o meu problema?
— Eu lhe diria se houvesse. — Sir William manteve a voz formal, para encobrir uma súbita irritação. Como se uns poucos meses pudessem fazer alguma diferença, já que a moça não está morta, ao contrário de Vertinskya, e continua a ser maravilhosa. — Seu aniversário é iminente, e Hong Kong fica a apenas oito ou nove dias de viagem. Claro que terei o maior prazer em recebê-lo às onze horas de amanhã, ou em qualquer outra ocasião, mas isso era tudo que eu tinha para falar. Boa noite, Malcolm, e mais uma vez, obrigado pela festa.
Já passava de meia-noite. Malcolm e Angelique beijavam-se ardentemente no corredor, fora de suas suítes adjacentes. O corredor estava escuro, havia apenas umas poucas luzes noturnas. Ela tentava contê-lo, mas também gostava, mais e mais a cada dia, o calor de Malcolm esquentando-a mais do que no dia anterior... e naquela noite a necessidade de ambos era quase irresistível.
— Je taime — murmurou Angelique, sincera.
— Je t’aime aussi, Angel.
Ela tornou a beijá-lo, depois cambaleou para trás, mais uma vez, quando já se encontrava na beira do abismo, e manteve-o a distância, enquanto recuperava o fôlego.
— Je t’aime... foi uma festa adorável.
— Você foi como champanhe.
Ela beijou-o na orelha, seus braços o enlaçaram. Antes da Tokaidô, teria ficado na ponta dos pés. Não notava isso, mas Malcolm sabia.
— Lamento ter de dormirmos separados.
— Eu também, mas não falta muito agora. — Abruptamente, a dor se manifestou, mas ele a suportou por mais um momento. Fitou-a nos olhos. — Só mais um pouco. Durma bem, minha querida.
Os lábios se encontraram, eles murmuraram boa-noite, várias vezes, e depois Angelique se foi. Trancou sua porta. Malcolm pegou as bengalas, claudicou até seus aposentos, feliz e triste, preocupado e sem qualquer preocupação. A noite fora um sucesso. Angelique ficara contente, os convidados haviam se divertido, ele reprimira o desapontamento pelo fracasso de seu plano e confrontara o problema da correspondência, não permitindo que Jamie tomasse a decisão em seu lugar.
E fora a decisão certa, pensou ele, embora Dirk pudesse ter feito melhor. Não importa, nunca poderei ser como ele, Dirk morreu, eu estou vivo, e Heavenly prometeu encontrar uma solução para as cartas dele, dar um novo rumo ao meu destino:
— Deve haver uma solução, tai-pan. Descobrirei alguma coisa antes de partir para Hong Kong, pois precisará daquela prova, independentemente do que venha a acontecer.
Os olhos de Malcolm desviaram-se para a porta de comunicação, ainda trancada à noite, em caráter permanente, por consenso mútuo. Não vou pensar em Angelique, na tranca, ou que ela está sozinha. Nem sobre o meu fracasso ou nosso casamento. Fiz essa promessa antes e a cumprirei. Amanhã cuidarei do amanhã.
A meia garrafa de vinho habitual esperava na mesinha-de-cabeceira, com algumas frutas — entre as quais mangas de Nagasáqui —, queijo inglês, chá frio, que ele sempre tomava em vez de água, um copo e o vidro pequeno. A cama estava preparada, seu camisolão estendido em cima. A porta foi aberta.
— Olá, tai-pan.
Era Chen, seu criado número um, com o sorriso largo, de muitos dentes, que sempre o agradava. Chen cuidava dele desde que podia se lembrar, assim como Ah Tok sempre fora sua ama, ambos de uma lealdade total, possessivos, sempre em desavença. Era um homem atarracado, muito forte, o rabicho exuberante, o rosto redondo, com um sorriso permanente, que nem sempre se transmitia aos olhos.
— Seu banquete foi digno do imperador Kung.
— Ah! — exclamou Malcolm, azedo no mesmo instante, sabendo o que o velho insinuava. — Que a grande vaca possa urinar em suas gerações imediatas. Faça logo o seu trabalho, guarde suas opiniões para si mesmo, e não se comporte como se tivesse nascido sob o signo do macaco.
Era o signo zodiacal para as pessoas espertas. O aparente gracejo de Chen, como a maioria em chinês, possuía muitos significados: o imperador Kung, que reinara na China quase quatro milênios antes, era famoso por três coisas, seus gostos epicuristas, os lautos banquetes que promovia, e seu “livro”.
Naquela época, não havia livros como se conhecia hoje, apenas pergaminhos. Ele preenchera um pergaminho com um tratado detalhado, o primeiro “livro de travesseiro”, a fonte de todos os outros que, por definição, versavam sobre as conjunções de homem e mulher, em todas as suas possibilidades e riscos, como melhorar o momento do orgasmo, os nomes para as diversas posições e suas minúcias, descrições de artefatos, poções, técnicas — arremetidas profundas e superficiais —, como escolher a parceira física certa, e dizendo, entre outras sabedorias:
...obviamente, um homem cujo Monge Caolho tenha o infortúnio de ser pequeno não deve se lançar a um embate com um Portão de Jade como o de uma égua.
Que seja conhecido por todos os tempos, os deuses determinaram que essas partes podem parecer iguais, mas apesar disso variam bastante. Deve-se usar de extremo cuidado para evitar a armadilha dos deuses, que enquanto concediam ao homem os meios, assim como uma necessidade tão forte e tão permanente quanto a agulha que procura a Estrela do Norte, para saborear o Céu na Terra — o momento das Nuvens e da Chuva é assim —, ao mesmo tempo, para sua diversão, criaram múltiplos obstáculos no caminho da busca do yang pela yin, alguns fáceis de evitar, a maioria impossível, todos complexos. Como o homem deve saborear tanto quanto puder do Céu enquanto estiver na Terra — quem sabe se os deuses são realmente deuses —, o Too, o Caminho para a Ravina Deslumbrante, deve ser visto, examinado, perseguido e estudado com uma intensidade maior do que a transmutação de chumbo em ouro...
Chen circulou pelo quarto, magoado, mas ao mesmo tempo satisfeito pelo conhecimento de seu amo. Apenas cumpria seu dever, chamando a atenção para a força da yin, em particular naquela noite, com tanta ostentação, a dança e os beijos, provocando o yang do amo, e sobre isso o imperador fora bastante específico: Um yang nervoso e não satisfeito em qualquer casa, se for o do amo, vai transtornar toda a casa, e por isso todos devem envidar esforços para aliviar o desamparado.
E nossa casa se encontra em turbilhão, pensou Chen, contrariado. Ah Tok se mostra mais difícil do que nunca. Ah Soh resmunga pelo trabalho extra e a preocupação, os cozinheiros se queixam da perda de apetite do amo, os criados lamentam que nada o agrada, e tudo porque essa prostituta bárbara, que mais parece uma vaca, não quer cumprir o seu dever. A opinião geral entre os criados era a de que ela devia possuir uma dessas ravinas vorazes contra as quais o imperador Kung alertara:
Há algumas que os deuses aliaram aos demônios, com uma força magnética tão grande que levam os homens à loucura, e os fazem esquecer uma verdade imortal, a de que uma Yin é como qualquer outra quando a necessidade é intensa, e pior, quando tal Ravina finalmente se abre para receber o Yang, esse Céu se torna o Inferno, pois nunca há suficiente.
— Ah, tai-pan — disse Chen, ajudando-o a se despir —, esta pessoa apenas dizia que seu banquete agradou a todos.
— Seu amo e senhor sabe exatamente o que você quis dizer.
Malcolm tirou a camisa, com alguma dificuldade. Seu tio, Gordon Chen quem muito prezava, instruíra-o sobre a obra do imperador Kung, ressaltando que aquelas informações, assim como outros importantes conhecimentos sobre yang e yin, deveriam ficar entre os dois, sendo mantidos em segredo de sua mãe.
— Você não passa de um patife impertinente — acrescentou Malcolm, em inglês, sua principal defesa contra Chen e Ah Tok. Ele jamais conseguia levar a melhor sobre eles em cantonês, mas enfurecia-os quando falava em inglês — E sei que estava tentando depreciar a ama. Mas, por Deus, é melhor parar com isso.
O rosto redondo se contraiu.
— Tai-pan — disse Chen, em seu melhor cantonês, enquanto o ajudava a deitar —, esta pessoa só tem os interesses do amo acima de qualquer outra coisa.
— Essa não! — escarneceu Malcolm. — Palavras de uma língua viperina são tão preciosas quanto espinhas de peixe mofadas para um homem faminto.
Ele percebeu um envelope na cômoda e perguntou:
— O que é aquilo?
Chen foi buscar, apressado, feliz porque a conversa se desviara de sua pessoa.
— Um demônio estrangeiro chegou esta noite à sua procura. Nosso cambista Vargas o recebeu. O demônio estrangeiro disse que a carta era urgente, por isso Vargas pediu que ele a deixasse aqui, para o caso de nosso ilustre amo querer lê-la de noite.
A letra não era familiar.
— Que demônio estrangeiro?
— Não sei, tai-pan. Deseja mais alguma coisa?
Malcolm sacudiu a cabeça, bocejou, pôs o envelope na mesinha-de-cabeceira e dispensou-o. O vidro de medicamento parecia chamá-lo.
— Não vou tomar — murmurou ele, a voz firme.
Estendeu a mão para diminuir a chama do lampião a óleo, mudou de idéia e abriu a carta, com súbita expectativa, pensando que podia ser de Heavenly, ou mesmo do padre Leo.
Prezado Sr. Struan: Talvez eu possa me apresentar, Edward Gorra, da Rothwell, de Xangai, antes da Virgínia, no momento aqui em Iocoama, para treinamento com o Sr. Norbert Greyforth, a pedido de Sir Morgan Brock.
O Sr. Greyforth pediu-me para representá-lo, como seu padrinho, na questão particular, embora premente, do duelo para o qual o desafiou. Talvez seja melhor eu procurá-lo amanhã? A parte da manhã seria mais conveniente, por volta de meio-dia, digamos? Tenho a honra de ser seu servidor obediente, Edward Gornt.
A assinatura era tão impecável quanto a letra no resto da carta.
35
Terça-feira, 2 de dezembro:
— Bom dia, Sr. Gornt. Permita que lhe apresente o Sr. McFay, chefe da Struan no Japão. Por favor, fique à vontade... você também, Jamie. Café, chá, xerez, champanhe?
— Nada, obrigado, Sr. Struan.
— O Sr. McFay é um dos meus padrinhos. Os detalhes, pelo que creio, devem ser acertados entre os padrinhos, não é mesmo?
— É, sim, senhor. Já me encontrei com o Sr. Syborodin, mas não conversei nada com ele, de acordo com os desejos do Sr. Greyforth.
Os dois jovens se estudaram. Desde o primeiro instante, ambos haviam experimentado a mesma sensação estranha: uma intensa atração pelo outro. E cada um pensou: É estranho que se possa simpatizar de imediato com algumas pessoas, sem qualquer razão aparente, enquanto se detesta outras, até com uma profunda repulsa, e se ignora muitas. Mesmo assim, ambos tinham certeza que a afinidade inicial, por maior que fosse, não faria a menor diferença. Muito em breve — hoje, amanhã, talvez nos minutos seguintes — alguma coisa faria com que revertessem a normalidade, à confortável hostilidade histórica que unia suas firmas, e se prolongaria pelos tempos afora, descartando aquela primeira afinidade como uma aberração peculiar.
— Em que eu... em que nós podemos servi-lo? — indagou Malcolm.
O sorriso de Gornt era genuíno, os dentes brancos, como os de Malcolm. Ele era da mesma altura, um pouco mais franzino, as roupas menos elegantes, cabelos escuros em contraste com os castanhos-avermelhados de Malcolm, olhos castanhos, não azuis.
— O Sr. Greyforth queria confirmar datas, armas, etc.
Jamie interveio:
— Sabe que tudo isso é contra a lei, Sr. Gornt, e que o duelo foi formalmente proibido por Sir William?
— Sei, sim, Sr. McFay.
Jamie mudou de posição na cadeira, contrafeito, detestando seu envolvimento mais do que nunca, e ainda mais inquieto pelo insólito clima na sala. Não podia entender. Onde deviam prevalecer frieza e hostilidade, parecia mais um momento de expectativa, bastante agradável e predeterminado.
— Isso dito, o que Norbert tem em mente?
— Hoje é terça-feira. Pode ser daqui a uma semana?
— Prefiro na quarta-feira, dia 10 — declarou Malcolm, no mesmo instante
Ele formulara um plano durante a madrugada. Perdera o sono. Lutara contra o dragão que havia no pequeno vidro, e vencera, embora a batalha cobrasse um tributo, e a medida daquela manhã fora um alívio patético.
O Prancing Cloud chegaria no domingo, e deveria partir ao anoitecer da quarta-feira. Combinaria em segredo com o capitão para zarpar assim que ele embarcasse, depois do duelo. Ou já teria enviado Angelique para o navio, ou providenciaria para que Jamie a escoltasse até Hong Kong no próximo navio, o que só seria decidido no último momento, ao final da terça-feira. Talvez fosse melhor levar Jamie junto com Angelique, assim anulando parte da fúria de sua mãe contra Jamie, pela obediência a um dos seus desejos, o que talvez a levasse a revogar sua ordem de demissão... devia isso a Jamie, por tentar ajudá-lo, por todos os meios. Se Angelique estivesse a bordo, talvez encontrasse uma maneira de persuadir o capitão Strongbow a esquecer a ordem de sua mãe.
É uma chance difícil, refletiu ele, mas um coração fraco jamais conquistou uma bela dama, e é o melhor que posso fazer.
— Prefiro a quarta-feira.
— Imagino que não haverá qualquer problema, senhor. Quanto ao lugar, sugerimos que seja ao amanhecer, na terra de ninguém, entre a aldeia e a cidade dos bêbados, não no hipódromo, pois se trata de um lugar público demais, com cavaleiros por ali desde o início da manhã.
Malcolm riu, sem saber por quê.
— Uma boa escolha — disse ele, antes que Jamie pudesse responder. Muito melhor para mim, mais isolado, mais perto do mar, será bem mais fácil seguir para o clíper do cais na cidade dos bêbados. — É evidente que já conhece muito de Iocoama, embora esteja aqui há apenas um dia.
— A sugestão foi do Sr. Greyforth, mas verifiquei os dois locais esta manhã. A terra de ninguém é melhor, mais segura.
— Então isso está combinado. Será difícil para mim caminhar dez passos. Sugiro que devemos assumir nossas posições e, à ordem de alguém, a sua, se assim desejar, podemos apontar e atirar.
— Consultarei o Sr. Greyforth.
— Mais alguma coisa?
Gornt hesitou, depois olhou para Jamie.
— Podemos acertar os outros detalhes mais tarde, como devemos chegar, por que caminhos, em que médico podemos confiar, etc. Por último...
— Parece muito bem informado sobre duelos, Sr. Gornt. — murmurou Jamie. Já esteve envolvido em algum?
— Alguns, Sr. McFay. Como participante uma vez; duas como padrinho, quando estudava na Universidade de Richmond. — Outra vez o sorriso, efusivo, entretanto, sincero. — Levamos muito a sério as questões de honra no Sul, senhor.
Com a agradável irrealidade da conversa e sua convicção de que o tai-pan caíra na armadilha preparada por Greyforth — apesar da obstinação de Malcolm — fizeram com que Jamie perdesse o controle.
— Então deve saber que Norbert estava errado! — exclamou ele, furioso. — Norbert fez tudo o que podia para provocar o tai-pan, agiu assim várias vezes, e não resta a menor dúvida de que deveria pedir desculpas, para podermos pôr um ponto final nessa estupidez!
— Jamie! — protestou Malcolm.
Se não fosse pelo que acontecera no dia anterior, ele teria pedido a Jamie que se retirasse. Mas a dívida de ontem era vasta e eterna, por isso Malcolm limitou-se a dizer ao amigo de verdade que era Jamie:
— Não é problema seu, e sei muito bem como se sente. — Ele tornou a olhar para Gornt. — Jamie está certo. Norbert tem se comportado de uma maneira deplorável.
Gornt não respondeu. Malcolm deu de ombros, sorriu.
— Destino. Também não é problema seu, Sr. Gornt. Portanto, já foi participante uma vez e padrinho duas vezes. É evidente que venceu. E o outro homem?
— Não o matei, senhor, nem tentei matá-lo. Apenas o feri.
Os dois se observaram, avaliando um ao outro. Jamie disse, nervoso:
— Então está tudo acertado.
— Isso mesmo, exceto as armas. O Sr. Greyforth escolhe espadas. Malcolm ficou boquiaberto, Jamie empalideceu.
— Pistolas de duelo foi o combinado — disse Jamie. — Acertamos isso.
— Sinto muito, senhor, mas não foi nada acertado. O Sr. Greyforth, como a parte desafiada, tem o direito de escolher as armas.
— Mas foi acer...
— Jamie, deixe-me cuidar disso — interveio Malcolm, atônito com seu desapego, já esperando alguma sujeira de Norbert. — Sempre foi presumido que éramos cavalheiros e usaríamos pistolas.
Lamento, mas não são essas as minhas instruções, senhor. Quanto a cavalheiros, meu principal assim se considera e escolhe defender sua honra com Uma espada, o que é bastante costumeiro.
— Obviamente, isso não é possível.
— O Sr. Greyforth também disse... devo ressalvar que não aprovo, e foi o que declarei a ele... também disse que se o senhor quiser poderia concordar com facas, espadas ou lanças.
Jamie começou a se levantar, mas Malcolm o deteve.
— No meu atual estado, isso é impossível — disse ele, para depois se controlar e acrescentar, com firmeza: — Se é uma manobra para Norbert resguardar sua honra, me humilhar e cancelar o duelo, então eu o desprezo, e sempre o considerarei indigno.
Jamie admirou e detestou essa explosão, ao mesmo tempo, mas de repente compreendeu que poderia ser um meio de salvar as aparências para ambos.
— Tai-pan, não acha que...
— Não. Sr. Gornt, é evidente que não posso, neste momento, sequer usar uma espada. Por favor, peça a Norbert para aceitar pistolas.
— Pois não, senhor, claro que pedirei. O primeiro dever de um padrinho é tentar promover uma reconciliação e parece-me que há espaço suficiente para os dois cavalheiros na Ásia. Falarei com o Sr. Greyforth.
— Poderá me encontrar aqui a qualquer momento, Sr. Gornt — disse Jamie. — Tudo o que eu puder fazer para ajudar a acabar com essa insanidade, basta me avisar.
Gornt acenou com a cabeça, começou a se levantar, mas parou quando Malcolm indagou:
— Poderíamos ter uma conversa em particular, Sr. Gornt? Não se importa, não é, Jamie?
— Claro que não. — Jamie apertou a mão de Gornt, e acrescentou para Malcolm: — Há uma reunião de todos os mercadores para discutir a bomba de Sir William, ao meio-dia, no clube.
— Eu irei, Jamie, embora tenha certeza de que não haverá qualquer discussão objetiva, apenas muitos gritos e explosões.
— Também acho. Até mais tarde, tai-pan.
Jamie se retirou. A sós na sala, os dois homens se estudaram, mais uma vez.
— Está a par da estupidez do Parlamento?
— Estou, sim, senhor. Todos os governos são estúpidos.
— Gostaria de me acompanhar num copo de champanhe?
— Uma celebração?
— Isso mesmo. Não sei por que, mas me sinto satisfeito por conhecê-lo.
— Ah, então sente a mesma coisa? Não é certo, não acha?
Malcolm sacudiu a cabeça, tocou a sineta. Chen apareceu. Depois que o champanhe foi aberto e servido, ele saiu, os olhinhos escuros saltando de um homem silencioso para outro homem silencioso.
— Saúde!
— Saúde! — respondeu Gornt e saboreou o champanhe.
— Tive a impressão de que você queria me falar em particular.
Gornt riu.
— Queria mesmo. É perigoso um inimigo ser capaz de ler seus pensamentos, hem?
— E muito, só que não precisamos ser inimigos. A Rothwell é uma boa cliente, o ódio e rivalidade entre os Struans e os Brocks não devem afetá-lo, independente do que Tyler ou Morgan possam dizer.
Baixou os olhos para o copo de cristal lapidado e as borbulhas do champanhe indagando-lhes se estava correto ao pensar que o momento oportuno era agora ou se deveria esperar. Os olhos castanhos-amarelados tornaram a avaliar Struan. Decidiu correr o perigo.
— Tem a reputação de gostar de segredos e ser digno de confiança.
— Você também é assim?
— Em questões de honra, sou. Sua reputação... gosta de histórias, legendas?
Malcolm fez um esforço para se concentrar, desconcertado com a irrealidade da reunião e com o homem à sua frente.
— Algumas mais do que outras.
— Estou aqui sob um falso pretexto. — O sorriso repentino de Gornt iluminou a sala. — Por Deus, não posso acreditar que estou de fato aqui, com o futuro tai-pan da Casa Nobre! Esperei e planejei por tanto tempo para esta reunião e agora chegou o momento. Antes de vir para cá, eu não tinha a menor intenção de dizer qualquer coisa agora, exceto o que o Sr. Greyforth me pediu para falar. Mas agora?
Ele ergueu o copo.
— À vingança.
Malcolm pensou a respeito por um instante, sem medo, fascinado, depois bebeu, serviu-se de mais champanhe.
— É um bom brinde na Ásia.
— Em qualquer lugar. Primeiro: preciso de sua palavra de honra, a honra do tai-pan da Casa Nobre, diante de Deus, de que tudo o que eu disser permanecerá em segredo entre nós, até que eu o libere.
Malcolm hesitou.
— Desde que seja uma história. E ele fez o juramento.
— Obrigado. Vamos à história. Estamos seguros aqui? Alguém pode nos ouvir?
— Na Ásia, quase sempre. Sabemos que as portas têm ouvidos, assim como paredes, mas posso dar um jeito. Chen!
Aporta foi aberta no mesmo instante. Em cantonês, Malcolm ordenou:
— Fique longe da porta, mantenha todos afastados, até mesmo Ah Tok!
— Pois não, tai-pan. A porta foi fechada.
— Agora está seguro, Sr. Gornt. Conheço Chen durante toda a minha vida, e não fala inglês... eu acho. Fala xangainês?
— Um pouco, assim como o dialeto Ning poh.
— Estava dizendo?
— É a primeira vez que conto a história a alguém — afirmou Gornt e Malcolm acreditou. — Era uma vez uma família que foi para a Inglaterra, saindo de Montgomery, Alabama... seu lar por gerações... pai, mãe, dois filhos, um garoto e uma menina. Ela tinha quinze anos, seu nome era Alexandra, e o pai era o mais jovem de cinco irmãos, Wilf Tillman o mais velho.
— O co-fundador da Cooper-Tillman? — indagou Malcolm, surpreso.
— Isso mesmo. O pai de Alexandra era um pequeno corretor de chá e algodão, um investidor com o irmão Wilf na Cooper-Tillman. Foi para Londres trabalhar com a Rothwell, num contrato de três anos, como assessor no algodão... a Cooper-Tillman era a maior fornecedora. Permaneceram em Londres pouco menos de um ano. Infelizmente, os pais adoeceram, o que não é de admirar, com o fog, aquele clima horrível. Eu mesmo quase morri quando estive lá... passei dois anos em Londres em treinamento na Brock, e mais um na Rothwell. Mas voltemos à história. Os Tillmans decidiram voltar para casa. No meio do Atlântico, Alexandra descobriu que estava grávida.
— Que coisa terrível! — murmurou Malcolm.
— É verdade. O choque matou seu adorado pai, somando-se à doença. Ele tinha trinta e sete anos. Foi sepultado no mar. O atestado de óbito assinado pelo capitão dizia apenas “convulsão cerebral”, mas tanto ela quanto a mãe sabiam que a verdadeira causa fora a má notícia. Alexandra tinha só dezesseis anos, tão bonita quanto um retrato. Isso foi em 1835, há vinte e sete anos. Alexandra teve um filho, eu. Para uma moça solteira ter um filho ilegítimo, ser uma decaída... ora, Sr. Struan, não preciso lhe dizer que estigma e desastre isso é, ainda mais na região da Bíblia do Alabama, onde vivia a nossa família, e entre os aristocráticos Tillmans. Falamos antes sobre honra. É verdade o que eu disse, que levamos a honra muito a sério, assim como a desonra. Posso?
Gornt gesticulou para a garrafa de champanhe.
— Por favor.
Malcolm não sabia o que dizer. A voz era cadenciada, agradável, imparcial, apenas alguém relatando uma história. Por enquanto, pensou ele, sombrio.
Gornt serviu Struan, depois a si mesmo.
— Minha mãe e a mãe dela foram relegadas ao ostracismo pela sociedade, e também pela família Tillman, até mesmo seu irmão virou-se contra ela. Quando eu tinha três anos, minha mãe conheceu um virginiano, um inglês transplantado... Robert Gornt, um cavalheiro, exportador de tabaco e algodão, um entusiasmado jogador de cartas de Richmond... e os dois se apaixonaram. Deixaram Montgomery, foram casar em Richmond. A história que inventaram foi de que ela era viúva, casada aos dezesseis anos com um oficial de cavalaria ianque, que morrera nas guerras contra os índios sioux. Ela tinha dezenove anos na ocasião. Tudo correu mais ou menos bem por vários anos. Até 1842... um ano depois que Dirk Struan fundou Hong Kong praticamente sozinho, o ano antes de você nascer. 1842 foi um péssimo ano para Hong Kong, com a praga da febre do Happy Valley, a malária, a guerra do ópio com a China, o grande tufão que destruiu a cidade, e ainda pior para a Casa Nobre, porque o mesmo tufão matou o grande Dirk Struan.
Um gole de champanhe.
— Ele foi responsável pela morte de Wilf Tillman e pela ruína da família Tillman.
— Não sei de nada a respeito. Tem certeza?
Gornt exibiu seu sorriso, sem qualquer hostilidade por trás.
— Tenho, sim. Wilf Tillman caiu doente, com a febre do Happy Valley. Dirk Struan tinha quinino, que poderia curá-lo, mas não quis lhe dar, nem vender, pois queria-o morto; assim Como Jeff Cooper. — Um certo nervosismo insinuou-se na voz— o ianque de Boston queria-o morto.
— Por quê? E por que o tai-pan haveria de querer a morte de Tillman?
— Ele o odiava... tinha opiniões diferentes de Wilf. Entre outras razões, Wilf tinha escravos, que não eram ilegais na ocasião, e também não são agora, no Alabama. E para ajudar Cooper a assumir o controle da firma. Depois que Wilf morreu, Jeff Cooper comprou sua parte por uma ninharia e cortou minha família do dinheiro restante. Dirk foi o responsável.
— Temos um empreendimento comum com a Cooper-Tillman na exploração de quinino, Sr. Gornt, e somos amigos antigos. Quanto ao resto, nada sei a respeito, nem acredito. Verificarei essa história assim que voltar a Hong Kong.
Gornt deu de ombros.
— Anos mais tarde, Cooper admitiu que nunca aprovara Wilf Tillman. Suas palavras exatas foram: “Escute, meu jovem, Wilf mereceu tudo o que recebeu, era um escravocrata e um inútil, nunca se empenhou num único dia de trabalho em toda a sua vida, seu cavalheiro sulista era infame. Dirk teve razão ao dar o pouco quinino de que dispunha a outros, que julgava mais merecedores. Foi meu trabalho, só meu, que fez a companhia que pagou sua mãe, seu padrasto e você por todos aqueles anos...”
O rosto de Gornt se contraiu, mas ele logo recuperou a calma. Exteriormente.
— Ele disse mais algumas coisas... que não são importantes agora. Mas cortar os recursos, nosso dinheiro legítimo, foi muito importante. Foi nessa ocasião que começaram as brigas entre o padrasto e a mãe, e nossa vida se deteriorou. Só muitos anos mais tarde é que descobri que ele casou com a mãe por dinheiro, que seus negócios de algodão e tabaco eram imposturas, não passava de um jogador, não dos mais bem-sucedidos, e que ela sempre o encobriu. A mãe me contou tudo isso quando estava morrendo. Mas ele não era mau comigo, apenas me ignorava, fui ignorado durante toda a minha vida. Agora, chegou o momento da vingança.
— Não vejo por que deve me culpar.
— E não o culpo.
Malcolm não entendeu.
— Pensei que “espadas ou punhais” eram apenas o começo.
— Não foi idéia minha, já falei. E disse ao Sr. Greyforth que não daria certo. Todos rirão dele, se tentar insistir.
Depois de uma pausa, Malcolm comentou:
— Fala como se não gostasse dele.
— Não gosto nem desgosto. Estou aqui para aprender, por um mês, e depois assumir o comando, quando ele se aposentar, no próximo ano. Esse é o plano... Se eu decidir ingressar na Brock.
— Pode assumir o comando mais cedo do que imagina. — A voz de Malcolm endurecera. — Na próxima quinta-feira... eu espero.
— Está mesmo decidido em realizar o duelo?
— Estou.
— Posso perguntar o verdadeiro motivo?
— Ele fez de tudo para me provocar, por orientação dos Brocks, com toda certeza. Será melhor para a Struan se ele for removido.
— Tentará me remover quando eu for contra a Struan?
— Vou me opor a você, competir com você, detê-lo se puder... mas não quereria duelar com você. — Malcolm sorriu, um bom sorriso. — É uma conversa maluca, Sr. Gornt. É um absurdo sermos tão francos e sinceros, mas é o que ocorre. Falou em “vingança”. Está mesmo determinado a se vingar de nós, pelo que meu avô teria feito com Wilf Tillman?
— Estou — respondeu Gornt, sorrindo. — No momento oportuno.
— E Jeff Cooper?
O sorriso desapareceu.
— Também cuidarei dele. No momento oportuno. — E depois, por um momento, a voz de Gornt se tornou impregnada de veneno. — Mas isso não é toda a vingança que procuro. Quero destruir Morgan Brock e, para isso, preciso de sua ajuda...
Ele desatou a rir.
— Desculpe, Sr. Struan, mas se pudesse ver a sua cara...
— Morgan? — balbuciou Malcolm.
— Isso mesmo. Não posso fazê-lo sozinho. Preciso de sua ajuda, o que é irônico, não acha?
Malcolm levantou-se, sacudiu-se todo, como um cachorro, esticou-se, tornou a sentar, o coração disparado. Serviu-se de mais champanhe, derramando um pouco na mesa, tomou um gole enorme. Durante todo o tempo, Gornt o observava e esperava, satisfeito com o efeito de suas palavras. Malcolm levou algum tempo para conseguir falar de novo.
— Morgan? Mas por quê?
— Porque ele seduziu minha mãe quando ela tinha quinze anos, arruinou sua vida e a abandonou. A Bíblia diz que matar seu pai, patricídio, é um ato infame. Minha mãe me fez jurar que eu não faria isso, quando me contou toda a verdade, pouco antes de morrer. Por esse motivo, não vou matá-lo, apenas arruiná-lo. — As palavras soavam incisivas, sem emoção. — E para fazer o que tenho de fazer, preciso da Struan.
Malcolm respirou fundo, tornou a sacudir a cabeça. Nada fazia sentido para ele, embora acreditasse em tudo... até mesmo no comportamento de Dirk Struan. Tenho muito que aprender, pensou ele, enquanto Gornt continuava a falar, explicando que Morgan tinha vinte anos na ocasião, era aprendiz na Rothwell, residia na casa da companhia, por isso era fácil para ele se esgueirar até o quarto de Alexandra.
— O que uma garota de quinze anos podia saber, ainda mais uma clássica Idade sulista, resguardada como uma planta rara? Rothwell despediu-o ao descobrir, mas o velho Tyler Brock riu, comprou em segredo o controle da companhia, e...
Malcolm ficou chocado.
— Brock controla a Rothwell?
— Controlou, por algum tempo, apenas o suficiente para demitir Rothwell e todos os seus diretores e nomear novos. Quando Jeff Cooper descobriu, tinha bastante influência para forçar o velho Brock a fazer um acordo particular, meio a meio. Em troca, Jeff dirigiria a companhia e manteria o acordo em segredo, em particular da Struan. O acordo continua em vigor.
— Dmitri sabe?
— Não. Nem o Sr. Greyforth. Descobri os detalhes por acaso, quando estava em Londres.
A mente de Malcolm funcionava a todo vapor. A Struan mantivera seu relacionamento com a Rothwell ao longo dos anos, mas ninguém jamais dissera que haviam sido tratados de uma maneira indevida ou ludibriados. Depois, uma coisa que Gornt dissera aflorou em sua mente.
— Morgan sabe que você descobriu tudo?
— Escrevi para ele em Londres, quando mamãe morreu. Ele respondeu que era tudo novidade, e negou, mas me convidou a visitá-lo, se algum dia fosse a Londres. E eu fui. Mais uma vez, ele negou. Nada tinha a ver com isso, garantiu, fora culpado pelos atos de outro aprendiz, não fizera coisa alguma. Eu passava necessidade na ocasião, por isso ele me arrumou um emprego e depois me ajudou a ingressar na Rothwell.
Gornt suspirou.
— Mamãe me contou que Morgan, ao ser confrontado por Rothwell, disse que “casaria com a vagabunda se seu dote fosse de dez mil libras por ano”. — Um tremor percorreu seu corpo, embora o rosto não se alterasse, nem a voz suave. — Eu poderia perdoar tudo a Morgan, mas nunca isso, nunca “a vagabunda”. Foi Rothwell quem escreveu isso. Ele já morreu, mas sua carta continua intacta. Obrigado por escutar.
Gornt levantou-se, esticou-se todo, encaminhou-se para a porta.
— Espere! — disse Malcolm, surpreso. — Não pode parar nesse ponto!
— Nem tenciono, Sr. Struan, mas esse tipo de conversa, confissão talvez seja uma palavra melhor, é extenuante. E também não devo passar tempo demais aqui ou o Sr. Greyforth pode ficar desconfiado. Acertarei as pistolas, o disparo a vinte passos e voltarei em seguida.
— Espere um pouco, pelo amor de Deus! De que ajuda precisa? E por que eu deveria ajudá-lo? O que quer de mim?
— Não muito, na verdade... você pode matar Norbert Greyforth, mas isso não é essencial. — Gornt riu, mas logo voltou a se mostrar sério. — Mais importante é o que eu posso fazer por você. Antes do final de janeiro, os Brocks destruirão a Struan, mas isso você já sabe ou deveria saber. Posso detê-los, por um preço. Como Deus é testemunha, posso fornecer a informação capaz de virar o ímpeto dos Brocks contra eles próprios e destruir sua companhia para sempre.
Malcolm sentiu-se tonto. Se conseguisse livrar a Struan da situação crítica em que se encontrava, sua mãe concederia tudo o que quisesse. Conhecia-a muito bem. Ela me dará tudo o que eu pedir, qualquer coisa, pensou ele; se eu quisesse que ela se tornasse católica, faria até isso!
Qualquer que fosse o custo, ele sabia que pagaria, e pagaria com a maior satisfação.
— O preço... além da vingança?
— Quando eu voltar.
Malcolm esperou o dia inteiro, mas o estranho não voltou. O que não o preocupou. Jantou sozinho naquela noite. Angelique dissera estar cansada, eram festas demais, muitas noites acordada; dormir cedo lhe faria bem.
— Assim, meu querido Malcolm, vou comer uma refeição leve no quarto, escovar os cabelos e mergulhar nos sonhos. Esta noite eu o amo e o deixo... ficará abandonado.
Ele não se importou. Seu cérebro transbordava com tanta esperança que tinha receio de lhe confidenciar tudo, se ela ficasse... e quando Jamie apareceu, no início da noite, teve de fazer um grande esforço para se controlar e não revelar a fantástica notícia.
— Heavenly encontrou uma solução? — perguntou Jamie.
— Ainda não. Por quê?
— Você parece tão... tão... como se todo o peso do mundo tivesse sido removido de seus ombros. Não o vejo com uma cara tão boa há semanas. Recebeu boas notícias, não é?
Malcolm sorriu.
— Talvez eu tenha superado uma etapa e agora começo a melhorar de fato.
— Espero que sim. Seu acidente por cima de todo o resto... Juro que não sei como você consegue. Com tudo o que aconteceu nas últimas semanas, eu me sinto muito cansado, e o tal de Gornt foi a última gota. Há alguma coisa nele que me assusta.
— Como assim?
— Não sei, apenas um pressentimento. Talvez ele não seja tão inofensivo quanto aparenta. — Jamie hesitou. — Tem um minuto para conversar?
— Claro. Sente-se. Quer um conhaque? Pode se servir.
— Obrigado.
Jamie serviu-se uma dose da garrafa no aparador, depois puxou a outra cadeira de encosto alto para o lado do fogo, sentou diante de Malcolm. As cortinas haviam sido fechadas para a noite, o aposento era aconchegante. A fumaça de lenha exalava um cheiro agradável, e o som dos sinos dos navios da esquadra na baía também soava confortador.
— Duas coisas: de um jeito ou de outro, quero voltar a Hong Kong por alguns dias, antes do Natal.
— Para ver a mãe?
Jamie acenou com a cabeça, tomou um gole do conhaque.
— Gostaria de viajar no Prancing Cloud. Vai atracar... Por que o sorriso?
— Você se pôs um passo à minha frente. Eu já planejava embarcar nele.
Jamie piscou, aturdido, depois sorriu, satisfeito.
— Mudou de idéia e vai fazer o que ela diz?
— Não exatamente.
Malcolm relatou seu plano sobre o Prancing Cloud e viu a euforia de Jamie se dissipar.
— Não se preocupe. Sou muito melhor atirador do que Norbert e, se ele concordar em atirar de vinte passos de distância, sem a caminhada, pode se considerar tão morto quanto o Dodô... se eu decidir matá-lo. Esqueça Norbert. Angelique: se nós não pudermos contrabandeá-la para bordo sem ninguém saber, e digo “nós” porque você sempre participou do plano, terá de levá-la no próximo navio. Portanto, de um jeito ou de outro, estará em Hong Kong antes do Natal.
Jamie hesitou.
— A Sra. Struan ficará na maior irritação ao descobrir que Angelique nos acompanha.
— Deixe que eu me preocupe com isso.
— Vou me preocupar de qualquer maneira. O que me leva à questão essencial: quando eu deixar a Struan, pensei em tentar iniciar minha própria firma, e gostaria de conversar sobre isso. Saber se você tem objeções.
— Ao contrário, eu faria tudo o que pudesse, a companhia também, para ajudá-lo, por todos os meios possíveis. Mas isso não vai acontecer por mais alguns anos.
— Creio que ela já decidiu que eu tenho de sair.
— Eu protestaria contra isso com todo o meu empenho! — exclamou Malcolm, surpreso. — Você merece uma promoção, um aumento, a companhia não vai querer perdê-lo. Ela sabe disso. É uma idéia absurda.
— Pode ser, mas se for necessário... seja paciente comigo, tai-pan, se for necessário, você teria objeções?