LIVRO DOIS



18







Segunda-feira, 13 de outubro:









Ao sol brilhante do meio-dia, dez dias depois, Phillip Tyrer sentava a uma escrivaninha na varanda da legação em Iedo, praticando satisfeito a caligrafia japonesa, com pincel, tinta e água, cercado por dezenas de folhas preenchidas e descartadas de papel-de-arroz, espantosamente baratas aqui, em comparação ao seu preço na Inglaterra. Sir William o enviara a Iedo para preparar a primeira reunião com os anciãos.





O pincel parou de repente. O capitão Settry Pallidar e dez dragões, igualmente imaculados, subiam a colina a cavalo. Ao entrarem na praça, os samurais ali, em quantidade muito maior do que antes, se afastaram para dar passagem. Reverências ligeiras e rígidas, respondidas com uma continência rápida, sem dúvida um protocolo recém-instituído. Sentinelas de casaco vermelho, em quantidade muito maior do que antes, abriram os portões de ferro e tornaram a fechá-los assim que os dragões entraram no pátio murado.



— Olá, Settry! — chamou Tyrer, descendo os degraus da varanda para recebê-lo. — Por Deus, é uma visão e tanto para olhos doloridos. De onde você veio?



— De Iocoama, meu caro. De onde mais poderia ser? Viemos de barco.



Quando Pallidar desmontou, um dos jardineiros, de enxada na mão, adiantou-se apressado, meio encurvado, para segurar as rédeas. Ao vê-lo, Pallidar levou a mão ao coldre.



— Afaste-se!





— Não se preocupe, Settry. É Ukiya, um dos nossos jardineiros regulares, sempre muito prestativo. Domo, Ukiya.





Hai, Taira-sama, domo.



Hiraga exibiu um sorriso vazio, o rosto meio oculto pelo chapéu de cule que usava, inclinou-se e não mais se mexeu.



— Afaste-se! — repetiu Pallidar. — Desculpe, Phillip, mas não gosto de ver nenhum desses patifes perto de mim, ainda mais com uma enxada na mão. Grimes!



No mesmo instante, o dragão chamado se aproximou, empurrou Hiraga rudemente e pegou as rédeas.



— Caia fora, japa! Suma daqui!



Obediente, Hiraga balançou a cabeça, manteve o sorriso vazio e se afastou. Mas permaneceu a distância de escutar, reprimindo o desejo de vingar o insulto com a enxada afiada, o estilete escondido no chapéu, ou com as próprias mãos duras como ferro.



— Mas por que vieram de barco? — indagou Tyrer.





— Para ganhar tempo. As patrulhas informam que há barricadas japonesas por toda a Tokaidô, com o tráfego retido em vários pontos, de Hodogaya a Iedo pior do que em Piccadilly Circus no aniversário da rainha, deixando a todos mais nervosos do que o habitual. Trouxe um despacho de Sir William. Ele ordena que a legação seja fechada e que você e o resto do pessoal voltem... Serei a escolta para salvar as aparências.



Tyrer ficou aturdido.



— Mas o que vai ser da reunião? Venho trabalhando um bocado para aprontar tudo!



— Não sei, meu caro. Aqui está.



Tyrer rompeu o lacre da mensagem oficial.





P. Tyrer, esq., legação britânica, Iedo. Esta é para informá-lo que concordei com o pedido do Bakufu para adiar a reunião de 2 de outubro para 3 de novembro, uma segunda-feira. Para poupar despesas desnecessárias com as tropas, você e seu pessoal devem voltar imediatamente, em companhia do capitão Pallidar.



— Três vivas! Iocoama, aqui vou eu!



— Quando quer partir?



— Imediatamente, diz o grande pai branco, e será imediatamente. Não pode esperar. Que tal depois do almoço? Vamos sentar. Quais são as novidades em Yokopoko?



— Não há muito o que contar.



Enquanto eles se encaminhavam para as cadeiras na varanda, Hiraga se aproximou do prédio e continuou a trabalhar com a enxada. Pallidar acendeu um charuto.





— Sir William, o general e o almirante tiveram outra confrontação com o governador local e o pessoal do Bakufu, jurando que os estripariam se não apresentassem logo os assassinos de Canterbury... e agora também o de Lun, uma coisa horrível, não é mesmo? Mas só conseguiram as bajulações habituais, “sinto muito, estamos vigiando todas as estradas, todos os caminhos, para captura-los, lamentamos pelos atrasos e inconveniências.”



— Quer dizer que já sabem que são?, — perguntou Sir William.



— Oh, não, disseram os japas, mas se investigar-mos todos os documentos e vigiarmos todo mundo, talvez possamos descobri-los; Estamos fazendo tudo o que é possível, por favor, ajudem-nos, tomando mais esses dados com os revolucionários. Tudo conversa fiada! Poderiam pegá-los, se quisessem. Não passam de mentirosos.



— É terrível o que aconteceu com Lun. Macabro! Fiquei chocado. Sir William quase teve um ataque. Ainda não há a menor pista sobre como os assinos entraram em nosso prédio em Kanagawa?



— Nada, assim como também não houve na vez anterior. — Pallidar notara muitas páginas com caracteres, mas não fez qualquer comentário. — O cabo no comando foi rebaixado e ele e os outros dois receberam cinqüenta chibatadas por negligência no cumprimento do dever. Uma estupidez não se manterem em alerta total depois do outro ataque. Mas por que a cabeça de macaco?



Tyrer estremeceu.



— Sir William acha que foi porque Lun escarneceu da delegação deles, chamando-os de “macacos”, e essa foi a forma de se vingarem.



Pallidar assoviou.



— Isso significa que pelo menos um deles, sem que o nosso pessoal saiba, compreende secretamente o inglês... ou pelo menos o pidgin.



— Chegamos à mesma conclusão. — Com grande esforço, Tyrer reprimiu seu medo. — Ora, que se dane isso! Não imagina como estou satisfeito em vê-lo. Mais alguma novidade?



Pallidar observava Hiraga, mas sem muita atenção.



— O general acha que há mais do que a vista pode perceber no aumento das barricadas e movimentação das tropas nativas. Os mercadores dizem que seus contatos japoneses sussurram que todas as estradas que saem de Iedo são vigiadas, e que o verdadeiro motivo é a guerra civil. É terrível não sabermos de nada. Deveríamos estar circulando, como o tratado permite, deveríamos descobrir por nós mesmos... O general e o almirante concordam, para variar, que deveríamos operar aqui como na índia, ou em qualquer outro lugar, enviar patrulhas, talvez um ou dois regimentos, para mostrar a bandeira, procurar alguns dos reis descontentes e lançá-los contra os outros. Tem uma cerveja?



— Claro. Chen!



— Pois não, amo?



Traga uma cerveja.



Tyrer não tinha certeza se a posição militarista do amigo seria o esquema certo, nesse momento, o chefe dos jardineiros aproximou-se, parou no jardim lá embaixo e fez uma reverência profunda. Para surpresa de Pallidar, Tyrer respondeu com uma mesura, embora ligeira.





Hai, Shikisha? Nan desu ka? Sim, Shikisha? O que você quer?



Com um espanto ainda maior, Pallidar ouviu o homem perguntar alguma coisa, ouviu Tyrer responder com fluência, a conversa prolongando-se por um momento. O primeiro homem fez outra reverência e se afastou.





Taira-sama, domo.



— Por Deus, Phillip, que história é essa?



— Como? O velho Shikisha? Ele apenas queria saber se pode levar seu pessoal para preparar o terreno nos fundos. Sir William quer legumes frescos, couve-flor, cebola, couve-de-bruxelas, batatas cozidas e... Qual é o problema?



— Quer dizer que você fala mesmo japonês?



Tyrer riu.



— Claro que não, mas passei dez dias retido aqui, sem nada para fazer, e me empenhei em aprender algumas palavras e frases. E, para ser franco, embora Sir William possa me aplicar a lei da insubordinação por ser tão intrometido, estou gostando imensamente. Sinto o maior prazer em ser capaz de me comunicar.



O rosto de Fujiko aflorou em sua mente, todos os contatos com ela, as horas que passara em sua companhia... a última vez há dez dias, quando voltara a Iocoama por um dia e uma noite. Um hurra para Sir William, porque ainda esta noite ou amanhã, tornarei a vê-la, e isso é maravilhoso.



— Maravilhoso! — exclamou ele, sem pensar, radiante. Uma pausa, e se apressou em acrescentar: — Ah... gostaria de tentar aprender a falar, ler e escrever a língua. O velho Shikisha me ensinou várias palavras, a maioria de seu trabalho. Já Ukiya...



Ele apontou para Hiraga, que trabalhava com a maior diligência, sempre por perto, sem saber que “Ukiya” era um pseudônimo e significava apenas “jardineiro”.



— ...ele está me ajudando com a escrita. Até que é bastante inteligente para um japonês.



Durante uma aula de escrita no dia anterior, ele conferira os rumores que ouvira, pedindo-lhe, com os sinais e palavras que Poncin lhe ensinara, que Ukiya escrevesse os caracteres para “guerra”, senso, e “logo”, jiki-ni. Depois, combinara suas toscas tentativas de escrita com “guerra, no Nipão, logo. Por favor?”



Percebera uma súbita mudança e surpresa.



— Gai-jin toh nihon-go ka? Estrangeiros e japoneses?



— Iyé, Ukiya. Nihonjin to nihonjin. Não, Ukiya, japoneses e japoneses.



O homem soltara uma risada repentina. Tyrer constatara como ele era bem-apessoado, diferente dos outros jardineiros, e especulara por que parecia muito mais inteligente do que os companheiros, embora a maioria dos trabalhadores japoneses, ao contrário dos equivalentes britânicos, soubesse ler e escrever.





Nihonjin tsuneni senso nihonjin! Japoneses estão sempre lutando com japoneses.



Ukiya arrematara a resposta com outra risada, e Tyrer rira também, simpatizando cada vez mais com o homem. Agora, ele sorriu para Pallidar.



— Mas quais são as outras novidades? Nada de negócios, por favor. Como está Angelique?



Pallidar soltou um grunhido.



— Interessado nela, hem? — indagou ele, em tom incisivo, saboreando interiormente a ironia.



— Nem tanto. — respondeu Tyrer, no mesmo tom, também zombeteiro, o que fez os dois rirem.



— Amanhã é a festa de noivado.



— Malcolm é que é um homem de sorte! Graças aDeus fui liberado de minha missão aqui. Detestaria perder essa festa. Como ela está?



— Linda, como sempre. Nós a recebemos como convidada de honra no rancho. Ela chegou como uma deusa, escoltada pelo ministro francês, um idiota pomposo e o tal de André Poncin... não gosto de nenhum dos dois. Foi...



— André até que é simpático... está me ajudando muito com o meu japonês.





— Pode ser, mas não confio nele. Há um longo artigo no Times sobre o iminente conflito europeu: França e provavelmente a Rússia contra a Alemanha. Seremos arrastados à guerra outra vez.



— Eis aí uma guerra que podemos dispensar. Mas o que aconteceu?



Um enorme sorriso.



— Foi uma noite espetacular. Dancei uma vez com ela. Maravilhoso! Uma polca... dancei com o coração na boca. Bem perto dela... mas sem ser desrespeitoso. Posso dizer que seus seios são como leite e mel, e seu perfume...



Por um instante, Pallidar reviveu aquele momento inebriante, o centro das atenções na pista de dança construída as pressas, Angelique a única mulher presente, a iluminação de velas e lampiões a óleo, a banda da guarda tocando com a maior animação, a dança se prolongando, o casal perfeito, todos consumidos pelo ciúme.



— Não me importo de admitir que sinto inveja de Struan.



— Como ele está?



— Ahn... Struan? Um pouco melhor, pelo que dizem. Não o tenho visto ultimamente, mas fui informado que já se levanta. Perguntei a Angelique, mas ela se limitou a dizer que ele está muito melhor.



Uma pausa, com outro sorriso radiante.



— O novo médico, Dr. Hoag, médico da família, assumiu os cuidados. Soube que ele é excelente.



Pallidar terminou sua cerveja. Outra foi estendida pelo sempre atento Chen, Risonho e rotundo, um padrão de Lim, e também um primo distante do compradore da Struan.



— Obrigado. — Pallidar tomou um gole, satisfeito. — Uma excelente cerveja.



— É local. Ukiya diz que os japoneses a produzem há anos, a melhor de Nagasáqui. Imagino que a copiaram de alguma cerveja portuguesa, há muitos anos.



Pallidar olhou para Tyrer, pensativo.



— O que acha da história do assassino de Hoag? Da operação, a moça misteriosa?



— Não sei o que pensar. Pensei ter reconhecido um deles, lembra? O sugeito foi ferido no mesmo lugar. Tudo combina. É uma pena que você e Marlowe não conseguiram pegá-lo. Irônico se um dos nossos o curou, para que ele possa assassinar mais alguns de nós.



Tyrer baixou a voz, pois sempre havia criados por perto, sem falar nos soldados.



— Aqui entre nós, meu caro, Sir William está mandando vir mais soldados nos navios de Hong Kong.



— Também já soube. Haverá guerra em breve ou teremos de interferir se eles começarem a lutar entre si...



Hiraga escutava com a maior atenção, enquanto se agachava e capinava; embora perdesse muitas palavras, captou o essencial; a notícia confirmou suas crescentes preocupações.



Após atearem fogo à mansão de Utani, ele e seus amigos haviam alcançado a segurança da casa próxima sem incidentes. Todo e os outros queriam voltar a Kanagawa assim que as barreiras fossem abertas, ao amanhecer, e logo partiram. Hiraga, Joun e Akimoto decidiram permanecer escondidos, em habitações separadas, aguardando uma oportunidade de atacarem a legação.





Naquela mesma manhã, com rapidez incrível, sem precedentes, o Bakufu dobrara as barreiras na Tokaidô, estendera seu controle a todas as outras quatro estradas principais, a todos os caminhos e até trilhas que saíam de Iedo. Com o aumento da vigilância, eles se encontravam confinados ali, junto com todos os outros shishi e antagonistas na capital.





Quatro dias atrás, a mama-san Noriko enviara uma carta de Kanagawa, dizendo que, por causa do incremento da atividade hostil, aquela era sua primeira oportunidade, falando sobre Ori, Sumomo e o médico gai-jin, arrematando:



Ainda não há sinal de Todo e dos dois outros shishi — desapareceram sem deixar vestígios. Sabemos que passaram pela primeira barreira, entretanto nada mais. Receamos que tenham sido traídos e que vocês também foram denunciados. Fujam enquanto podem. Ori se torna mais e mais forte a cada dia, seu ferimento continua limpo. Mandei-o para a segurança perto de Iocoama, o último lugar em que o Bakufu deve esperar encontrá-lo. Sua dama se recusa a partir sem uma ordem sua... mande-a imediatamente, pois receio que minha casa esteja sendo vigiada. Se formos atacados, procure notícias de Raiko, da Casa das Três Carpas, em Iocoama. A notícia do assassinato de Utani espalhou-se depressa por todo o Nipão, semeando o terror. Sonno-joi!



Ele começara a escrever uma resposta, mas o mensageiro de Noriko ficara com medo.



— Chegar aqui foi terrível, Hiraga-san. Os guardas nas barreiras ordenam que todos tirem as roupas, homens e mulheres, até mesmo crianças, à procura de mensagens escondidas nas tangas. Aconteceu comigo.



— E como escapou?



O mensageiro apontara para seu traseiro.



— Guardei a mensagem num pequeno tubo de metal, Hiraga-san. Não quero correr esse risco de novo, já que alguns guardas conhecem os segredos dos contrabandistas. Por favor, confie em mim com uma mensagem falada.



— Pois então transmita à sua ama meus agradecimentos e esperança de que tudo corra bem e que mande Sumomo-san se apresentar imediatamente a Shinsaku.



Hiraga usara o nome particular de seu pai, que apenas ela conheceria, e assim teria certeza de que a ordem de voltar para casa partira dele. Pagara o homem e concluíra:



— Tome cuidado.



— Karma.





Isso mesmo, karma, pensou Hiraga, voltando a se concentrar nas palavras estrangeiras, contente por Ori estar vivo, apreciando a ironia de que um gai-jin o salvara para que pudesse matar mais gai-jin, como ele próprio mataria aqueles dois. Quando eles se retirarem, durante a confusão da partida, posso fazer isso, se não os dois, pelo menos um deles, quem quer que seja o primeiro alvo. Que todos os deuses, se é que existem, velem e guardem Sumomo. Ainda bem que ela resistiu a seus pais, foi para a casa dos meus pais em Choshu, depois para Kanagawa, e teve a coragem de me acompanhar na batalha... será uma mãe digna para as minhas gerações, se for esse o meu karma. Portanto, é melhor que volte agora para a segurança de casa. Melhor que esteja em Choshu, longe do perigo...





Seus ouvidos captaram a palavra “Shimonoseki”. O oficial gai-jin falava com a maior loquacidade, parecia bastante excitado. Embora perdesse a maioria das palavras, Hiraga deduziu que canhões haviam sido disparados contra alguns navios, nos estreitos, matando uns poucos marujos, e todos os gai-jin estavam furiosos, porque os estreitos eram essenciais para sua navegação.



É isso mesmo, pensou Hiraga, com um sombrio divertimento, é exatamente por isso que nunca terão os nossos estreitos. Com os canhões de que já dispomos agora, podemos fechá-los e mantê-los fechados, contra qualquer esquadra estrangeira... e muito em breve nossa fábrica de armamentos, construída e projetada pelos holandeses, estará moldando canhões de sessenta libras, numa média de três por mês, junto com todos os acessórios!





A maré virou a nosso favor, depois de tanto tempo. Lorde Ogama, de Choshu, o único entre todos os daimios, obedece ao desejo do imperador, de atacar e expulsar os gai-jin; corretamente, ele e suas tropas controlam os portões do Palácio; Katsumata empenha-se em mobilizar todos os shishi para emboscar e destruir o xógum, que resolveu sair de seu covil, por mais incrível que isso possa parecer, e viajar para Quioto; e agora aumentamos a pressão sobre a cidadela dos gai-jin de Iocoama...





Abruptamente, todas as atenções das pessoas no pátio desviaram-se para portões vigiados, onde irromperam gritos. Hiraga sentiu o estômago revirar. Um oficial samurai, à frente de uma patrulha, com os estandartes do Bakufu e a insígnia pessoal de Toranaga Yoshi, exigia aos berros que o deixassem entrar, enquanto soldados de casaco vermelho respondiam, no mesmo tom, que ele deveria ir embora. Logo atrás do oficial, amarrado, todo machucado e encolhido, estava Joun... seu camarada shishi.



Um corneteiro soou o alarme. Todos os soldados dentro dos muros correram para os seus postos de combate, alguns com o uniforme meio desabotoado, sem chapéu, mas todos com rifles, cartucheiras e baionetas. Os jardineiros caíram de joelhos, baixando acabeça para a terra. Hiraga, apanhado de surpresa, permaneceu de pé por mais um momento, depois apressou-se em seguir o exemplo, sentindo-se totalmente desprotegido. Os guerreiros começaram a se concentrar na praça, numa quantidade assustadora. Trêmulo, Tyrer levantou-se.



— O que está acontecendo?



Com uma lentidão deliberada, Pallidar disse:



— Acho que é melhor descobrirmos. — Ele levantou-se sem pressa, avistou o capitão no comando da guarda da legação saindo pela porta, abrindo seu coldre. — Bom dia. Sou o capitão Pallidar.



— Capitão McGregor. Fico contente que esteja aqui. Muito contente.



— Vamos verificar qual é o problema?



— Claro.



— Quantos homens têm aqui?



— Cinqüenta.



— Ótimo. É mais do que suficiente. Phillip, não precisa se preocupar. — Ele parecia calmo por fora, mas a adrenalina já circulava no sangue. — É a maior autoridade aqui. Talvez deva perguntar ao samurai o que ele quer. Vamos escoltá-lo.



— Claro.



Fazendo um esforço para aparentar tranquilidade, Tyrer pôs a cartola na cabeça, ajeitou a sobrecasaca e desceu os degraus. Todos o observavam. Os dragões olhavam apenas para Pallidar, aguardando suas ordens. Tyrer parou a cinco metros do portão, os dois oficiais logo atrás. Por um instante, só foi capaz de pensar numa coisa, que tinha vontade de urinar. Depois, em meio ao silêncio, ele disse, hesitante:





Ohayo, watashi wa Taira-san. Nan desuka? Bom dia. Sou o Sr. Tyrer. o que deseja, por favor?





O oficial, Uraga, o homem enorme, que parecia um urso, o mesmo que estivera na emboscada dos shishi contra Anjo, nos arredores do castelo, lançou-lhe um olhar furioso, depois fez uma reverência e se manteve inclinado. Tyrer retribuiu com uma reverência, mas não tão baixa — como André Poncin lhe ensinara — e tornou a perguntar:



— Bom dia. O que deseja, por favor?





O oficial notara a reverência menos do que respeitosa e explodiu numa corrente de japonês, o que deixou Tyrer atordoado, sem compreender nada. Hiraga também ficou atordoado, porque o oficial dos samurais pedia permissão imediata para revistar a legação e o terreno em torno do prédio e interrogar todos os japoneses ali, porque era provável que houvesse assassinos e revolucionários shishi entre eles... “como este aqui”, concluiu Uraga, furioso, apontando para Joun.



Tyrer procurou as palavras corretas com o maior cuidado:





Wakamarisen. Dozo, hanashi wo suru noroku. Não compreendo. Por favor, fale devagar.





Tyakamarisen ka? Não compreende?



O oficial falou com profunda exasperação e depois alteou a voz, acreditando, como a maioria das pessoas ao falar com um estrangeiro, que isso torna as palavras mais claras e compreensíveis. Repetiu o que dissera, na língua gutural que parecia cada vez mais ameaçadora, e concluiu:



— Não vai levar muito tempo, e quero que compreenda, por favor, que é para a sua própria proteção!



— Sinto muito, mas não compreendo. Fala inglês ou holandês, por favor?



— Não, claro que não. Deve ter sido claro para você. Só quero entrar por pouco tempo. Por favor, abra os portões. É para a sua proteção. Veja, os portões! Vou mostrar!



Ele deu um passo à frente, pegou uma das barras e sacudiu os portões. Todos lá dentro se remexeram, nervosos, muitos puxaram a trava de segurança de seus rifles. Pallidar berrou uma ordem:



— Tornem a empurrar a trava de segurança! Ninguém vai atirar sem uma ordem minha!



— Não entendo o que ele está dizendo — murmurou Tyrer, sentindo um suor frio escorrer pelas costas. — Só que é óbvio que ele quer que os portões sejam abertos.



— O que não vamos fazer, de jeito nenhum, com essa turba armada lá fora! Diga a ele para ir embora, que isto é território britânico.



— Isto... — Tyrer pensou um pouco, depois apontou para o mastro e a bandeira inglesa. — Este lugar inglês... não podem entrar. Por favor, vá embora!



— Ir embora? Só pode estar louco. Acabei de explicar que é para a sua própria proteção. Capturamos este cão e tenho certeza de que há outro aqui, ou escondido nas proximidades. ABRA OS PORTÕES!



— Sinto muito, mas não compreendo...



Desolado, Tyrer olhou ao redor, enquanto mais palavras em japonês o envolviam. Foi então que seus olhos fixaram-se em Hiraga, não muito longe.



— Ukiya, venha até aqui! — chamou ele, em japonês. — Ukiya!



O coração de Hiraga quase parou.



Tyrer tornou a chamá-lo. Com um terror enormedo, rastejando, Hiraga se adiantou, encostou a cabeça na terra, aos pés de Tyrer, o traseiro virado para os portões, o chapéu de cule cobrindo quase todo o rosto.



— O que o homem disse? — perguntou Tyrer.



Com um falso tremor, todos os sentidos alerta, Hiraga respondeu em voz baixa:



— E um homem mau... quer entrar para... roubar suas armas.



— Ah, sim, entrar. Por quê?



— Ele... ele quer dar uma busca...



— Não compreendo. Uma busca como?



— Quer olhar dentro de sua casa, tudo.



— Compreendo entrar. Por quê?



— Já disse, uma busca...





— Ei, você, jardineiro! — gritou o oficial dos samurais.





Hiraga teve um sobressalto, uma onda de raiva percorreu seu corpo. Pela primeira vez na vida, ali, o centro das atenções, de joelhos na frente de um gai-jin sabendo que sob o chapéu usava um turbante tosco, que se fosse tirado revelaria a cabeça raspada e o penacho de samurai, ele sentiu um súbito e doentio medo.





— Ei, você, jardineiro! — gritou Uraga de novo, tornando a sacudir os portões. — Diga a esse tolo que só quero procurar por assassinos... assassinos shishi!



Desesperado, Hiraga murmurou:





— Taira-sama, os samurais querem entrar, olhar para todos. Diga a eles que estão indo embora, e depois poderão entrar.



— Não compreendo. Ukiya, vá até lá! — Tyrer apontou para os portões. — Diga a eles para irem embora!



— Não posso! Não posso! — sussurrou Hiraga, tentando pôr a mente para funcionar, superar a náusea.



— Phillip — interveio Pallidar, o suor manchando as costas do uniforme — o que ele está tentando lhe dizer?



— Não sei.





A tensão aumentou, enquanto o oficial dos samurais sacudia mais uma vez os portões, exigindo que lhe permitissem a entrada. Seus homens se adiantaram e seguraram as barras para ajudá-lo. Estimulado à ação, Pallidar chegou mais perto. Friamente, bateu continência. O homem fez uma reverência com a mesma frieza. Depois, em voz pausada, Pallidar declarou:



— Isto é território britânico. Eu lhes ordeno que se retirem em paz ou aceitem as conseqüências.



O oficial fitou-o em silêncio, aturdido por um instante, depois reiterou, com palavras e atos, que deviam abrir os portões... e depressa.



— Retirem-se daqui! — Sem se virar, Pallidar gritou: — Dragões apenas preparar para uma rajada!



No mesmo instante, os dez dragões se adiantaram, em formação, postaram-se em duas fileiras diante dos portões, a da frente ficou de joelhos, as dez travas de segurança foram puxadas ao mesmo tempo, os cartuchos colocados, os rifles apontados. No repentino silêncio, Pallidar desafivelou seu coldre.



— Retirem-se!





Abruptamente, o oficial dos samurais desatou a rir, e o riso espalhou-se pela multidão.





Havia centenas de samurais, outros milhares nas proximidades, e mais outros milhares ao fácil alcance. Mas nenhum deles jamais testemunhara a carnificina que uns poucos soldados ingleses, resolutos e disciplinados, podiam afligir com seus rifles de carregar pela culatra, rápidos e fáceis de usar.





Tão depressa quanto se espalhou, o riso cessou. Os dois lados esperavam pelo inevitável primeiro movimento. Uma expectativa frenética dominou a todos: Será a morte, shi kiraru beki, Deus Todo-Poderoso, Namu Amida Butsu...



Hiraga lançou um olhar rápido para Tyrer, percebeu seu desamparo atordoado e praguejou interiormente, sabendo que a qualquer momento o oficial deveria ordenar o ataque, para resguardar as aparências, em meio à hostilidade crescente lá fora. Antes que Hiraga pudesse se conter, seu mecanismo de auto-sobrevivência decidiu assumir um risco e ele se ouviu sussurrar, em inglês... embora nem uma única vez antes tivesse dado a Tyrer qualquer indicação de que conhecia a língua:



— Por favor, confie... por favor, diga palavras... Sencho... doz...



Tyrer ficou espantado.



— Como? Você disse “confie”?



Comprometido agora, o coração disparado, torcendo para que os dois oficiais britânicos ali perto estivessem tão concentrados no exterior não o ouviriam, Hiraga sussurrou, hesitante, a pronúncia por pouco incompreensível, o impossível para ele:





— Por favor, quieto. Perigo. Finja palavras suas. Diga Sencho, dozo shizuka ni... diga palavras!





Doente de medo, ele esperou por um instante, sentindo que a tensão dos samurais lá fora estava prestes a explodir, e logo insistiu, em inglês, como uma ordem:



— Diga palavras agora! Agora! Sencho... dozo shizuka ni... Depressa! Quase fora de si, Tyrer obedeceu:



— Sencho, dozo shizuka ni...





Repetiu as palavras com precisão, estas e as subsequentes, sem saber o que dizia, e esforçando-se para pôr em perspectiva o fato de que aquele jardineiro sabia falar inglês, e que isso não era um sonho. Em poucos segundos, ele constatou que as palavras surtiam algum efeito. O oficial dos samurais gritou por silêncio. A tensão diminuía na praça. De vez em quando, o oficial, escutando-o com o máximo de atenção, murmurava “Hai, wakatta”. Sim, eu compreendo. A coragem de Tyrer voltou e ele se concentrou em Hiraga e no oficial japonês. As palavras logo terminaram, com um “Domo”.





No mesmo instante, o oficial dos samurais iniciou uma resposta. Hiraga esperou até que terminasse e sussurrou:





— Balance cabeça. Diga Iyé, domo, faça uma reverência rápida e volte para Casa. Ordene eu ir também.





Mais controlado agora, Tyrer sacudiu a cabeça com firmeza. “Iyé, domo!”



Sentindo-se muito importante, num silêncio respeitoso, o centro do mundo, ele encaminhou-se para a casa, parou em súbita confusão, virou-se e gritou em inglês:



— Ukiya, venha comigo... oh, Deus!



Frenético, Tyrer procurou pela palavra japonesa, encontrou-a e acrescentou:





Ukiya, isogi!



Ainda quase rastejando, Hiraga seguiu-o. No alto dos degraus, a fim de que só Tyrer pudesse ouvi-lo, abaixado numa posição subserviente, de costas par todos os olhos, ele disse:



— Por favor, ordem outros homens, agora seguro. Dentro casa, depressa, por favor.



Obediente, Tyrer gritou:



— Capitão Pallidar, mande seus homens recuarem. A situação já é segura agora!



Dentro da legação, fora das vistas dos outros, o alívio pálido de Tyrer transformou-se em raiva.



— Quem é você? O que me mandou dizer ao samurai?



— Explicar depois, Taira-san. Samurai queria busca, você, outros homens, queria levar armas.



Hiraga truncava as palavras, ainda não recuperado do próprio medo. Empertigou-se agora, fitou Tyrer nos olhos, não tão alto, mas igualmente suado, sabendo que ainda não escapara da armadilha.





— Capitão muito zangado, quer armas, levar armas, quer procurar... inimigo do Bakufu. Você dizer ele: “Não, capitão, kinjiru, proibido procurar. Hoje eu e homens sair daqui, depois procura. Agora não, kinjiru. Guardamos armas quando ir embora. Kinjiru proibido deter nós. Obrigado. Agora preparar ir para Iocoama.



— Foi isso que eu disse?





— Sim. Por favor, agora lá fora, ordenar jardineiros voltar trabalho, muito zangado. Palavra hataraki-mashoi. Falar depois, em segredo, você e eu, sim?



— Sim, mas não a sós, com um oficial presente.



— Então não falar, sentir muito.



Hiraga tornou a assumir sua posição subserviente e saiu da sala, de costas, o diálogo tendo durado apenas uns poucos segundos. Mais uma vez caiu de joelhos diante de Tyrer, o traseiro virado para o pátio. Apreensivo, Tyrer saiu para a luz-Viu que todos ainda aguardavam.





— Capitão Pallidar... e capitão McGregor, digam a seus homens que podem recuar e, depois, juntem-se a mim para uma conferência. Hataraki-mashoi-Ikimasho! Voltem ao trabalho! Depressa!



As ordens finais foram endereçadas aos jardineiros, que trataram de obedecer.Agradecido, Hiraga fugiu para a segurança do jardim e murmurou para que os jardineiros lhe dessem cobertura. Oficiais e sargentos começaram a berrar ordens e o tumulto recomeçou.



Indiferente a tudo, Tyrer ficou na varanda, observando Hiraga, indeciso.



Consternado por saber que se tratava de um espião, mas ao mesmo tempo abençoando-o por salvar a todos.



— Queria falar conosco? — indagou Pallidar, interrompendo seu devaneio.



— Quero, sim... por favor, acompanhem-me.





Ele levou-os para sua sala, fechou a porta e explicou o que dissera ao chefe dos samurais. Ambos lhe deram os parabéns.



— Foi impressionante, Phillip — comentou Pallidar. — Por um momento pensei que teríamos uma confrontação; só Deus sabe o que poderia acontecer. Havia patifes demais... e acabariam nos dominando. Mais cedo ou mais tarde. Claro que a esquadra nos vingaria, mas estaríamos sob as margaridas, um pensamento nada agradável.



— Mais do que desagradável — murmurou o capitão McGregor, olhando em seguida para Tyrer. — O que quer que façamos agora, senhor?



Tyrer hesitou, espantado por nenhum dos dois ter ouvido o inglês de Hiraga, mas satisfeito com sua nova estatura... pois era a primeira vez que McGregor o tratava por “senhor”.



— É melhor obedecermos a Sir William. Ordenem que todos arrumem suas coisas... mas sem dar a impressão de que é uma retirada ignominiosa. Não podemos deixar que fiquem com nossas armas... que desfaçatez!... ou fazê-los pensar que estamos fugindo. Vamos sair marchando, com toda pompa, a banda tocando.



— Perfeito! Depois de baixarmos a bandeira, com a devida cerimônia.



— Combinado. Agora, é melhor eu... eu verificar se todos os documentos já foram encaixotados.



O capitão McGregor disse:



— Posso sugerir, senhor... Acho que merece uma taça de champanhe... e creio que ainda nos restam algumas garrafas.



— Obrigado — respondeu Tyrer, radiante. — Talvez possamos... ora, vamos servir também uma ração de rum a todos os homens. E também faremos uma refeição leve antes da partida... vamos mostrar a eles que ninguém pode nos obrigar a uma partida precipitada.



— Organizarei tudo imediatamente — disse McGregor. — Foi muito hábil de sua parte chamar aquele jardineiro para ajudá-lo com as palavras. Algumas até pareciam inglesas. Mas por que queriam revistar a legação?





— Para descobrir... para procurar inimigos do Bakufu. Os dois ficaram aturdidos.



Mas não há japas aqui, à exceção dos jardineiros, se é mesmo que eles queriam.



Tyrer sentiu o coração bater mais forte, pois isso incriminava Ukiya, mas Pallidar logo acrescentou:



Não vai permitir que eles revistem a nossa legação, não é? Isso criaria um precedente perigoso. A fleuma desapareceu; Pallidar tinha toda razão.



Precedente perigoso.



— Droga! Não pensei nisso na ocasião! McGregor rompeu o silêncio:





— Antes de partirmos, senhor, talvez pudesse convidar o oficial dos samurais a dar uma volta conosco, inspecionando a legação. Não haveria nada de errado em convidá-lo. Ele pode interrogar os jardineiros nesse momento ou podemos dispensá-los, antes de irmos embora, e trancarmos os portões.



— Uma solução perfeita — concordou Pallidar, satisfeito.





Hiraga tirava as ervas daninhas de um canteiro, perto de uma porta lateral da legação, junto a uma janela aberta, suado e sujo, o sol do fim de tarde ainda quente A bagagem estava sendo empilhada em carroças no pátio, cavalos arreados, alguns soldados já haviam assumido suas posições de marcha. Sentinelas patrulhavam os muros. Lá fora, os samurais se agachavam sob sombrinhas, olhavam ao redor soturnos.



— Agora!



A voz de Tyrer veio da sala. Hiraga certifícou-se de que não era observado, abaixou-se entre as moitas e abriu a porta. Apressado, Tyrer seguiu na frente até uma sala que dava para o pátio e trancou a porta depois que entraram. As cortinas nas janelas fechadas filtravam a luz do sol. Uma escrivaninha e umas poucas cadeiras, rolos de documentos, arquivos, e um revólver na mesa. Tyrer sentou por trás da mesa e indicou uma cadeira.



— Por favor, sente-se. E agora me diga quem é você.



— Primeiro, segredo eu falar inglês, hem?



Hiraga permaneceu de pé, empertigado em toda a sua altura, de certa forma ameaçador.



— Primeiro me diga quem é você, depois decidiremos.



— Não, sentir muito, Taira-san, ser útil você, salvar homens. Muito útil. Verdade, neh ?



— Sim, é verdade. Por que devo manter em segredo?



— Seguro eu... também você.



— Por que eu?





— Talvez não sábio ter... como vocês dizer... ah, sim... segredo outros gai-jin não saber. Eu muito útil. Ajudar aprender língua, aprender sobre Nipão. Eu dizer verdade, você dizer verdade também, você me ajudar, eu ajudar você. Qual idade. por favor?



— Tenho vinte e um anos.





Hiraga disfarçou sua surpresa e sorriu por baixo da aba do chapéu. Era muito difícil calcular a idade dos gai-jin, já que todos pareciam iguais. Quanto à arma que seu inimigo pusera em cima da mesa, era cômica. Poderia matar aquele tolo com as mãos antes que ele pudesse alcançá-la. Seria muito simples, e era bastante tentador, o lugar perfeito, fácil de escapar... mas depois que saísse, não seria tão fácil escapar dos samurais.



— Guardar segredo?



— Quem é você? Seu nome não é Ukiya, não é mesmo?



— Prometer segredo?



Tyrer respirou fundo, avaliou as conseqüências e deparou com o desastre por todos os lados.



— Concordo.



Seu coração disparou quando Hiraga tirou a lâmina da aba do chapéu, e se censurou por ter sido tão descuidado para assumir aquele risco.



— Perdido por um, perdido por mil — murmurou ele.



— Quê?



— Nada.



Ele observou Hiraga espetar o dedo e depois lhe estender a faca.



— Agora você, por favor.



Tyrer hesitou, sabendo o que estava para acontecer, mas, tendo tomado sua decisão, deu de ombros e obedeceu. Solene, Hiraga encostou seu dedo no de Tyrer, misturando o sangue de ambos.



— Jurar por deuses manter segredo sobre você. Dizer mesma coisa pelo deus cristão, por favor, Taira-san.



— Juro por Deus que manterei segredo por tanto tempo quanto eu puder — declarou Tyrer, solene, perguntando-se para onde o julgamento o levaria. — Onde aprendeu inglês? Numa escola missionária?





Hai, mas eu não cristão.





Não era seguro falar sobre as escolas de Choshu, pensou Hiraga, nem sobre o Sr. Grande Cheiro, o holandês, nosso professor de inglês, que dizia ter sido um padre antes de se tornar pirata. A verdade ou mentira para Taira não tinha a menor importância, já que ele é gai-jin, um líder menor do nosso mais poderoso inimigo externo, e por isso alguém a ser usado, desconfiado, odiado e morto, no momento mais conveniente.



— Ajudar eu escapar?



— Quem é você? De onde veio? Seu nome não é Ukiya. Hiraga sorriu, acomodou-se numa das cadeiras.



— Ukiya significar jardineiro, Taira-san. Nome família Ikeda. — Ele disse a mentira com a maior facilidade. — Nakama Ikeda, eu quem oficial procurar. Eu vinte dois anos.



— Por quê?





— Porque eu e família, de Choshu, lutar contra Bakufu. Bakufu tomar poder do imperador e...



— Está se referindo ao xógum?



Hiraga sacudiu a cabeça.





— Xógum ser Bakufu, chefe do Bakufu. Ele... — Depois de pensar por um momento, Hiraga imitou um títere suspenso de cordões. — Entender?



— Títere?



Sim, títere, tyrer se surpreendeu.



— O xógum é um títere?



Hiraga acenou com a cabeça, mais confiante agora que se comunicava precisando se esforçar para recordar as palavras.





— Xógum Nobusada, menino, dezesseis anos, títere Bakufu. Ele viver Iedo imperador viver Quioto. Agora imperador sem poder. Mais de duzentos anos xógum Toranaga tomar poder. Lutamos tirar poder do xógum e Bakufu, devolver imperador.



A mente de Tyrer, latejando de tanta concentração — era difícil entender a fala do homem —, compreendeu no mesmo instante as profundas implicações.



— Esse menino xógum, que idade ele tem, por favor?





— Xógum Nobusada dezesseis anos. Bakufu dizer o que ele fazer. — Hiraga fez um esforço para conter sua irritação, sabendo que devia ser paciente. — Imperador muito poder mas não...



Ele procurou pela palavra certa, não conseguiu encontrá-la e tratou de explicar de outra maneira:





— Imperador não como daimio. Daimio ter samurai, ter arma, muito. Não poder fazer Bakufu obedecer. Bakufu ter exércitos, imperador não, wakatta?



— Hai, Nakama, wakatta.



Mil perguntas esperavam para ser formuladas. Tyrer sabia que aquele homem podia ser um poço de informações a ser esvaziado, mas devia agir com cautela, não naquele lugar. Percebeu a intensa concentração no rosto do homem e especulou o quanto do que dissesse Nakama poderia compreender. Lembrou a si mesmo para falar devagar, da maneira mais simples possível.





— Quantos de vocês lutam contra o Bakufu!



— Muitos.



Hiraga bateu com a mão num mosquito errante.



— Centenas, milhares? Que tipo de pessoas... pessoas comuns, jardineiros, trabalhadores, mercadores?



Hiraga se espantou com a pergunta.





— Eles nada. Só samurais servir. Só samurais lutar. Só samurais ter armas. Kinjiru outro ter armas.



Tyrer tornou a piscar, aturdido.



— Você é samurai?



Mais espanto de Hiraga.





— Samurai lutar. Eu dizer lutar Bakufu, sim? Nakama samurai!



Hiraga tirou o chapéu, removeu o pano sujo, manchado de suor, que servia como turbante, para revelar a cabeça raspada, com o penacho. Agora que podia ver seu rosto com clareza, pela primeira vez sem o chapéu de cule, e também a primeira vez em que o observava com mais atenção, Tyrer constatou que ele possuía os mesmos olhos frios do guerreiro de duas espadas, e que tinha uma vasta diferença dos aldeões na estrutura óssea.



— Quando Shenso, capitão samurai ver eu assim, eu morrer.



Tyrer balançou a cabeça, em confusão.



— Ajudar eu escapar. Por favor, dar eu roupa soldado.



Tyrer encontrava a maior dificuldade para impedir que seu excitamento e horror transparecessem no rosto. Parte dele queria desesperadamente fugir daquela situação mas a outra estava ansiosa em obter todas as informações que pudesse daquele samurai, um conhecimento que poderia ser — não, que seria — uma chave fundamental para abrir o mundo do Nipão, assim como seu próprio futuro, se manipulasse tudo da maneira correta. No momento em que já ia anunciar sua concordância, lembrou-se da advertência anterior de Sir William; e, agradecido, demorou um pouco para recuperar o controle.



— Fácil eu escapar, sim? — insistiu Hiraga, impaciente.



— Não fácil, mas possível. E arriscado. Primeiro, tenho de me convencer de que vale a pena salvá-lo.



Tyrer percebeu o súbito ímpeto de raiva... talvez fosse raiva junto com medo, não pôde determinar. Por Deus, um samurai! Gostaria que Sir William estivesse aqui, pois estou acima do meu nível.



— Não pense que eu não posso...



— Por favor — murmurou Hiraga, suplicante, sabendo que aquela era a sua única chance real de escapar da armadilha, mas pensando: Depressa, concorde logo, ou vou matá-lo e tentar escapar pulando o muro. — Nakama jurar por deuses ajudar Taira-san.



— Jura solenemente pelos seus deuses que responderá a todas as minhas perguntas com a verdade?



— Hai — respondeu Hiraga no mesmo instante, atônito por Tyrer ser tão ingênuo a ponto de fazer uma pergunta a um inimigo ou acreditar em sua resposta afirmativa. Ele não pode ser tão estúpido assim, não é? Que deus ou deuses? Não existe nenhum. — Por deuses, eu jurar.



— Espere aqui. Tranque a porta e só a abra para mim.



Tyrer pôs o revólver no bolso, saiu à procura de Pallidar e McGregor, levando-os para um canto.





— Preciso de ajuda. Descobri que Ukiya é um dos homens procurados pelos samurais, uma espécie de dissidente. Quero disfarçá-lo como um soldado e tirá-lo daqui quando partirmos.



Os dois oficiais se mostraram surpresos. McGregor foi o primeiro a se manifestar:





— Desculpe, senhor, mas acha que isso é sensato? Afinal, o Bakufu é o governo legal e se formos descobertos...



— Isso não vai acontecer. Apenas vamos vesti-lo de soldado e colocá-lo no meio dos outros. O que acha, Settry?



— Podemos fazer isso, Phillip, mas se ele for reconhecido, e se nos detiverem será como navegar contra a correnteza sem remo.



— Tem alguma sugestão alternativa? — indagou Tyrer, o nervosismo patente na voz, à medida que aumentava o excitamento e o medo. — Quero tirá-lo daqui. Sem a ajuda dele, provavelmente estaríamos todos mortos. Além disso, ele pode se muito útil para nós.



Apreensivos, os dois oficiais trocaram um olhar e tornaram a fitar Tyrer.



— Lamento, mas é perigoso demais — disse Pallidar.



— Não acho! — protestou Tyrer, a voz ríspida, a cabeça latejando. — Quero que seja feito! É uma questão de extrema importância para o governo de sua majestade e ponto final!



McGregor suspirou.



— Certo, senhor. Capitão, o que acha de levá-lo num cavalo?



— Como um dragão? Uma idéia absurda. Um jardineiro não sabe montar. É muito melhor que ele marche, no meio dos sol...



— Cinqüenta libras contra um quarto de penny como o patife não será capaz de manter o passo. Será tão óbvio quanto uma prostituta com a ceroula de um bispo!



Tyrer interveio:



— Podemos metê-lo num uniforme, cobrir seu rosto e mãos com ataduras, carregá-lo numa maca... fingindo que ele está doente.



Os oficiais ficaram radiantes.



— Boa idéia!



— Ainda melhor — acrescentou Pallidar, jovial. — Podemos fingir que ele tem alguma doença horrível... varíola... sarampo... a peste!



Todos riram, em uníssono.











O oficial samurai e os guardas que receberam permissão para entrar na legação, agora vazia, seguiram Tyrer, McGregor e quatro dragões pela casa. A busca foi meticulosa, cada cômodo, cada armário, até mesmo o sótão. Ao final, ele ficou satisfeito. No vestíbulo, havia duas macas, um soldado em cada uma, ambos febris, ambos enfaixados, um parcialmente, outro por completo, Hiraga, cabeça, pés e mãos, nada aparecendo fora do uniforme encharcado de suor.



— Dois muito doentes — disse Tyrer, em japonês, as palavras informadas por Hiraga. — Este soldado tem doença de pústulas.



A simples menção fez com que o samurai empalidecesse e recuasse um passo. As erupções de varíola eram endêmicas na cidade, mas nunca tão terríveis quanto na China, onde centenas de milhares de pessoas morriam.



— Isto... isto deve ser comunicado — murmurou o oficial samurai.



Ele e seus homens cobriram a boca, pois todos acreditavam que a infecção e a disseminação da doença eram causadas por respirar o ar contaminado perto de um sofredor. Tyrer não compreendeu e limitou-se a dar de ombros.



— Homem muito doente. Não chegar perto.



— Claro que não chegarei perto dele. Pensa que sou louco?



O homem saiu para a varanda e disse em voz baixa aos homens que acompanhavam:



— Não digam uma só palavra a respeito para os outros na praça, pois pode haver pânico. Cães estrangeiros repulsivos. Mas fiquem de olhos abertos. O tal de Hiraga se encontra em algum lugar por aqui.





Eles revistaram o terreno e as privadas externas, enquanto os funcionários da legação e os soldados, parados na sombra, aguardavam impacientes o momento de iniciar a marcha até o cais, onde embarcariam nos barcos à espera. Finalmente satisfeito, o oficial samurai fez umareverência e recuou pelos portões. Os samurais ainda se concentravam lá fora, Joun amarrado na frente, os apavorados jardineiros ajoelhados em fila, todos sem chapéu, nus. Quando o oficial se aproximou, eles se inclinaram ainda mais para o chão.



— Levantem-se! — gritou o homem, furioso.



Irritara-se ao constatar, quando ordenou que tirassem as roupas, que nenhum deles tinha a cabeça raspada com o penacho de um samurai, nem cortes de espada, ferimentos ou outros sinais que indicavam a condição de samurai. Por isso, fora forçado a concluir que sua presa ainda se encontrava lá dentro ou escapara. Agora, sua raiva era ainda maior e foi bater com os pés na frente de Joun.





— Para se disfarçar, o ronin Hiraga raspou a cabeça ou deixou que seus cabelos crescessem, como um desses jardineiros ordinários. Identifique-o!



Joun estava de joelhos, espancado, quase à morte. Fora torturado até desmaiar, fizeram-no recuperar os sentidos e o torturaram de novo, por ordem de Anjo.



— Identifique esse Hiraga!



— Ele... ele não está aqui.



O jovem soltou um grito quando o pé do oficial, duro como ferro, atingiu suas partes mais sensíveis, duas vezes. Os jardineiros tremiam, apavorados.



— Ele não... está aqui...



Outra vez o golpe impiedoso. Numa agonia desesperada, impotente, fora de si, Joun apontou para um rapaz, que se prostrou no chão, clamando sua inocência.



— Façam-no calar! — berrou o oficial. — Levem-no à presença do juiz e, de lá, para a prisão! Crucifiquem o canalha! Levem todos, pois são culpados de esconder Hiraga!



Os jardineiros foram arrastados dali, aos gritos, o rapaz berrando que vira Hiraga antes, perto da casa, e que mostraria o lugar, se o deixassem, mas ninguém lhe prestou atenção. Não demorou muito para que todos os gritos fossem reprimidos, brutalmente.



O oficial limpou o suor do rosto, convencido de que cumprira suas ordens. Tomou um gole de água de uma garrafa, bochechou e cuspiu, para limpar a boca, depois bebeu, satisfeito.





Ele estremeceu. A doença das pústulas! Uma doença gai-jin, trazida de fora! Tudo que é pútrido vem de fora, os gai-jin devem ser expulsos e mantidos a distância para sempre. Furioso, ele observou a banda que começava a tocar, os soldados se preparando para a marcha, sua mente ainda concentrada no shishi que procurava.





Não era possível que aquele jardineiro fosse um famoso shishi, o Hiraga. Karma que meus homens e eu chegássemos tarde demais naquele dia, para vê-lo e aos outros que escaparam. Não karma, apenas Deus velava por mim. Se eu os tivesse visto, não poderia fingir aceitar o que Joun indicou. Onde se encontra esse Hiraga? Está escondido em algum lugar. Por favor, Deus, ajude-me.





A vida é curiosa. Odeio os gai-jin, mas acredito em seu deus, Jesus, embora secretamente, como meu pai e o pai dele antes. Isso mesmo, acredito no deus Jesus a única coisa de valor que veio de fora. Os príncipes mestres jesuítas não diziam que a fé nos dá um poder adicional e que quando tivéssemos um problema deveríamos nos preocupar como um cachorro se preocupa com um osso?



Hiraga escondeu-se em algum lugar. Revistei tudo com o maior cuidado Portanto, ele se disfarçou. De que maneira? Como uma árvore? O quê?





Dentro dos muros, os preparativos para a partida continuavam. A bandeira foi arriada. Os cavaleiros montaram. As macas foram levadas para uma carroça. Os portões se abriram, os soldados montados entraram em formação, liderados pelo gai-jin com o nome japonês, passaram por ele, começaram a descer a ladeira...





As bandagens! A revelação aflorou de repente na mente do oficial dos samurais. Não há nenhuma doença! Muito esperto, pensou ele, excitado, mas não esperto o suficiente! E se eu os confrontasse agora, encurralando-os numa das ruas estreitas? Ou se destacasse espiões para segui-lo e o vigiasse para que me leve aos outros?



Vou mandar segui-lo.




19







Terça-feira, 14 de outubro:









A festa de noivado estava no auge, sob os lampiões a óleo que iluminavam a sala principal apinhada do clube... todo o prédio requisitado por Malcolm Struan e ornamentado para sua comemoração. Todos os membros respeitáveis da colônia haviam sido convidados e se encontravam presentes, assim como todos os oficiais que podiam ser dispensados da esquadra e do exército... e lá fora, na High Street, patrulhas das duas armas se achavam preparadas para controlar os bêbados e indesejáveis.



Angelique nunca parecera mais deslumbrante — crinolina, chapéu com plumas de ave-do-paraíso e um ofuscante anel de noivado. A dança era uma valsa vibrante, de Johann Strauss, o Jovem. Acabara de chegar de Viena, pela mala diplomática, e André Poncin a tocava ao piano com a maior animação, acompanhado por alguns músicos da banda da marinha, em uniforme de gala para a ocasião. O parceiro de Angelique era Settry Pallidar; seu anúncio de que representaria o exército fora recebido com gritos de aprovação e tremenda inveja.



Victoria Lunkchurch e Mabel Swann também dançavam, desta vez com Sir William e Norbert Greyforth, seus cartões de dança lotados desde o momento em que a festa fora anunciada. Apesar de todo o volume, as duas eram excelentes dançarinas. Também usavam vestidos de crinolina, só que não podiam se comparar com o de Angelique, nem na riqueza, nem no decote.



— Você é um miserável sovina, Barnaby — sibilou Victoria ao marido. — tambén queremos roupas novas, nem que isso custe todo o seu dinheiro! E também queremos penantes como o dela!



— Querem o quê?



— Você sabe muito bem o quê! Penantes... chapéus!



O chapéu emplumado de Angelique fora o golpe de misericórdia para as duas.



É a guerra, ela contra nós!



Apesar de tudo, a popularidade das duas no baile superou a inveja e dançavam com a maior alegria.



— Miserável sortudo! — murmurou Marlowe, olhando para seu rival.



A túnica azul do uniforme naval reluzia com os alamares dourados adicionais de um ajudante-de-ordens, calça branca de seda e sapatos pretos com fivelas prateadas.



— Quem? — indagou Tyrer, passando com outro copo de champanhe afogueado e excitado com a noite, e também com seu êxito ao tirar Nakama, o samurai, de Iedo, instalando-o em sua casa, com a aprovação de Sir William, como professor de japonês. — Quem é o miserável, Marlowe?



— Vá se... como se não soubesse! — Marlowe sorriu. — Escute, sou o representante da marinha, tenho direito à próxima dança, e darei uma lição no miserável ou morrerei na tentativa!



— Que demônio afortunado! O que estão tocando?



— Uma polca.



— Essa não! Foi você quem pediu?



— Claro que não.



A polca, baseada numa dança folclórica da Boêmia, era outro acréscimo recente aos salões de baile da Europa, causando o maior furor, embora ainda fosse considerada um tanto indecente.



— Está no programa — acrescentou Marlowe. — Não tinha notado?



— Não. Tenho muitas outras coisas em que pensar.



O tom de Tyrer era de felicidade. Ansiava em contar a alguém como fora esperto. Sua satisfação era ainda maior naquela noite, pois assim que pudesse atravessaria a ponte do paraíso e iria para os braços de sua amada... lamentando apenas ter jurado segredo.



— Ela dança como um sonho, não acha?



— Ei, jovem Tyrer... — Era Dmitri Syborodin, os cabelos oleosos, suando, com uma caneca de rum na mão. — Pedi ao mestre da banda para tocar um cancã. Ele disse que fui o quinto a pedir.



— E ele vai mesmo tocar? — perguntou Tyrer, consternado. — Assisti uma vez em Paris... não vai acreditar, mas as mulheres não usam nenhuma calça por baixo.



— Mas claro que acredito! — Dmitri soltou uma risada. — Só que Peito-de-Anjo tem uma calça por baixo esta noite e não sente o menor medo de mostrá-la!



— Ei, escute aqui... — protestou Marlowe, veemente.



— Ora, John, ele só está brincando. Dmitri, você é insuportável! O mestre da banda não ousaria, não é?



— Não, a menos que Malc concorde.



Os três olharam através da sala. Malcolm Struan estava sentado com o Dr. Hoag, Babcott, Seratard e outros ministros, observando a pista de dança, os olhos fixados apenas em Angelique, enquanto ela se inclinava e girava, ao compasso da música moderna, encantadora e ousada, deixando a todos inebriados. A mão de Struan apoiava-se numa bengala grossa, o anel de sinete de ouro faiscando, enquanto os dedos se moviam ao ritmo, vestindo um traje a rigor de seda, colarinho levantado, gravata creme, alfinete de diamante, botas de couro vindas de Paris.



— É uma pena que ele ainda esteja tão estropiado — murmurou Tyrer, com uma compaixão sincera, mas abençoando sua própria sorte.



Struan e Angelique haviam chegado tarde. Ele andava com extrema dificuldade, encurvado, apesar de todo o esforço para se manter empertigado, o peso apoiado em duas bengalas, com Angelique, radiante, em seu braço. O Dr. Hoag os acompanhava, atencioso, sempre vigilante. Houvera aplausos para Struan, mais ainda para Angelique. Depois, agradecido, ele sentara, recebera os cumprimentos de todos, convidara-os a partilharem o banquete disposto nas mesas.





— Mas primeiro, meus amigos — dissera Struan —, levantem seus copos, por favor, num brinde à moça mais linda do mundo, mademoiselle Angelique Richaud, minha noiva.





Mais aplausos, aclamações. Criados chineses de libré trouxeram champanhe no gelo, Jamie McFay acrescentara algumas palavras de alegria, e a festa começara. Vinhos de Bordéus e Borgonha, um chablis especial, muito apreciado na Ásia, conhaques, uísques. — importações exclusivas da Struan —, gim, cerveja de Hong Kong. Peças de carne de vaca australiana, uns poucos cordeiros inteiros, tortas de galinha, carne de porco defumada, presunto, batatas de Xangai cozidas e recheadas com fatias de carne de porco e manteiga, além de pudins e chocolates, uma recente importação da Suíça. Depois que o jantar foi tirado e sete bêbados removidos, André Poncin sentara ao piano e a banda começara a tocar.



Com grande formalidade diante de Malcolm, Sir William solicitara a primeira dança. Em seguida fora a vez de Seratard, os outros ministros — à exceção de von Heimrich, que estava de cama, com disenteria —, o almirante e o general, todos eles e mais outros dançando também com as outras duas mulheres presentes. Depois de cada dança, Angelique era cercada por rostos afogueados e radiantes, conversava por um instante, se abanando, e seguia para o lado de Malcolm, fascinante para todos, mas concentrando sua atenção nele, a cada vez recusando a dança, mas no final deixando que ele a persuadisse:



— Adoro ver você dançar, Angelique. Dança da forma mais graciosa possível, minha querida.



Agora, ele a observava dilacerado entre a felicidade e a frustração, frenético por não poder dançar também.



— Não se atormente, Malcolm — dissera Hoag, no início da noite, querendo acalmá-lo, o simples ato de se vestir sendo um pesadelo de dor e dificuldade. — É a primeira vez que se levanta. Transcorreu apenas um mês desde o acidente. Não Sempre...



— Fale isso mais uma vez e vou cuspir sangue.



— Não é só a dor que o deixa assim. É também o medicamento, ou sua falta e a correspondência de hoje. Recebeu uma carta de sua mãe, não é?



— Recebi — respondera Malcolm, em total angústia, enquanto sentava na beira da cama, meio vestido. — Ela... ora, ela está furiosa. Nunca a vi tão irritada Opõe-se totalmente ao meu noivado, ao casamento... se eu lhe desse ouvidos acreditaria que Angelique é o demônio encarnado. Ela...



As palavras saíram aos borbotões.





— Ela ignorou minha carta, e disse... Escute só isso: Você perdeu o juízo? Seu pai não tem seis semanas de morto, você ainda não completou vinte e um anos, essa mulher está atrás do seu dinheiro e de nossa companhia, é a filha de um fugitivo que foi à bancarrota, sobrinha de outro criminoso e ainda por cima, que Deus nos ajude, católica e francesa! Você enlouqueceu? Diz que a ama? Bobagem! Está enfeitiçado! Vai parar com esse absurdo. Vai-parar-com-esse-ab-surdo! Ela o enfeitiçou. É evidente que você não tem condições mentais de dirigir a Struan! Deve voltar sem essa pessoa assim que o Dr. Hoag permitir.



— Quando eu permitir, Malcolm, você fará o que ela quer?



— Em relação a Angelique, não. Nada do que ela diz tem importância, absolutamente nada. É óbvio que não leu a minha carta, não me dá a menor atenção. O que posso fazer?



Hoag dera de ombros.



— O que já decidiu: vai ficar noivo e depois casará, quando chegar o momento oportuno. E vai melhorar a cada dia. Precisará de bastante repouso, sopas suculentas, muito mingau, e deve se abster dos medicamentos para dormir e contra a dor. Pelas próximas duas semanas, continuará aqui, depois voltará e enfrentará... — Hoag fizera uma pausa, oferecendo um sorriso gentil. — ...o futuro com toda confiança.



— Tenho muita sorte em tê-lo como meu médico.



— E eu tenho muita sorte em tê-lo como meu amigo.



— Recebeu uma carta dela também?



— Recebi. — Uma risada seca. — Agora estou me lembrando.



— E o que dizia? Hoag revirara os olhos.



— Já não é suficiente?



— É, sim. Obrigado.



Agora, observando Angelique dançar, o centro de uma admiração universa, e também de desejo, os seios em grande parte revelados, como era a moda, os tornozelos esguios atraindo os olhos, à procura de mais alguma coisa sob as saias de seda, Malcolm Struan sentiu uma ereção. Graças a Deus por isso, pensou e muito de sua raiva se dissipando, pelo menos essa parte ainda funciona... mas só que não conseguirei esperar até o Natal. Não há a menor possibilidade.



Era quase meia-noite agora e ela tomou um gole de champanhe, escondeu o rosto por trás do leque, sacudindo-o com a habilidade da experiência. Depois, entregou o copo a alguém, como se desse um presente, pediu licença e voltou para sua cadeira, ao lado de Struan. Ali perto, havia um grupo animado, formado por Seratard, Sir William, Hoag, outros ministros, Poncin.





— Ah, monsieur André, toca muito bem. Não concorda, Malcolm querido?



— Claro que sim.



Ele não se sentia bem, mas tentava disfarçar. Hoag observou-o. Em francês, Angelique acrescentou:



— André, onde você se escondeu durante os últimos dias? — Ela fitou-o por cima do leque. — Se estivéssemos em Paris, eu seria capaz de jurar que entregou seu coração a uma nova namorada.



Poncin respondeu em tom jovial:





— Apenas trabalho, mademoiselle. Depois, em inglês, ela comentou:



— Ah, é muito triste! Paris no outono é maravilhosa, quase tão deslumbrante quanto na primavera. Vou lhe mostrar toda a cidade, Malcolm. Vamos passar uma temporada lá, não é?



Angelique estava de pé, a seu lado, e sentiu Malcolm passar o braço por sua cintura. Pousou o braço de leve em seu ombro, enfiou os dedos por seus cabelos compridos. O contato a agradava, assim como o rosto bonito de Malcolm, suas roupas, e o anel que ele lhe dera naquela manhã, um diamante enorme, cercado por outros. Olhou para o anel, virando-o para um lado e outro, admirando-o, especulando quanto valia.



— Ah, Malcolm, tenho certeza de que você vai adorar Paris. É realmente maravilhosa na temporada. Podemos ir?



— Por que não, se você quiser?



Ela suspirou, os dedos discretamente acariciando o pescoço de Malcolm, e disse de repente, como se um pensamento súbito lhe ocorresse:





— Talvez, chéri, pudéssemos passar a lua-de-mel em Paris... dançaríamos pela noite afora.





— Dança muito bem, mademoiselle, em qualquer cidade — comentou Hoag, suado, desconfortável nas roupas apertadas. — Eu gostaria de poder dizer a mesma coisa a meu respeito. Posso suge...



— Não dança nunca, doutor?



— Anos atrás, quando estive na índia, até que dançava, mas parei quando minha esposa morreu. Ela gostava tanto de dançar que agora não sinto o menor prazer. Uma festa maravilhosa, Malcolm. Posso sugerir que encerremos a noite?



Angelique fitou-o, seu sorriso se desvanecendo, notou a cautela no rosto de Hoag. Olhou para Malcolm e percebeu a exaustão. É horrível que ele esteja tão doente, pensou ela.



— Mas que droga! Ainda é cedo — protestou Malcolm, embora ansiasse em deitar. — Não concorda comigo, Angelique?



— Devo confessar que me também me sinto bastante cansada — disse ela, no mesmo instante.



Angelique fechou o leque, baixou-o, sorriu para ele, Poncin e os outros preparando-se para ir embora.



— Talvez possamos escapulir e deixar a festa continuar... Apresentaram suas desculpas às pessoas ao redor. Todos os outros fingiram não notar que eles haviam se retirado, mas ficou um vazio na esteira de Angelique. Na porta, ela parou.



— Ah, esqueci o leque. Vou buscá-lo num instante, querido. Ela voltou apressada. Poncin interceptou-a.





Mademoiselle, creio que isto lhe pertence — disse ele, em francês.



— É muito gentil...



Angelique pegou o leque, satisfeita porque seu estratagema dera certo, e por André ser tão observador quanto esperara. Quando ele se inclinou para beijar sua mão, ela sussurrou, em francês:



— Preciso vê-lo amanhã.



— Na legação, ao meio-dia. Peça para falar com Seratard, que não estará presente.



Ela escovava os cabelos diante do espelho, ainda cantarolando a última valsa que dançara. Qual foi melhor? — perguntou a si mesma. A melhor dança? É fácil, Marlowe e a polca, melhor do que Pallidar e as valsas... só se deve valsar com o amor de sua vida, permitindo que a música penetre em sua cabeça, com adoração e anseio, levando-a às nuvens, cintilando, como me sinto esta noite, o melhor dia de minha vida, noiva de um homem extraordinário e amada por ele até a loucura.



Deveria ser o melhor dia, mas não é.



Estranho que eu tenha apreciado a noite, e tendo sido capaz de agir e pensar com calma, quando já passou o dia, estou atrasada, e assim tudo indica que tenho uma criança de um estuprador, que deve ser retirada.



Ela observava seu reflexo como se fosse outra pessoa, as escovadelas firmes, massageando o couro cabeludo, atônita por ainda estar viva e exteriormente a mesma, depois de tanta agonia.



Curioso. Cada dia, depois do primeiro, parece mais fácil.



Por que será?



Não sei. E não importa. Amanhã estará resolvido o problema do atraso, talvez a esta hora, pois começarei de noite, e não haverá mais necessidade de tanto medo e choro, mais medo, mais choro. Dezenas de milhares de mulheres já fofam acuadas na situação em que me encontro agora e escaparam, sem muito sofrimento. Apenas uma pequena poção, e tudo voltará a ser como antes, sem que ninguem saiba. Exceto você e Deus! Exceto você e o médico, ou você e a parteira, ou feiticeira.



Já chega por esta noite, Angelique. Confie em Deus e na Santa Mãe que ela ajudará, pois é inocente. Ficou noiva de um homem maravilhoso, vai casar, viver feliz para sempre. Amanhã... amanhã começarão o onde e o como.



Por trás dela, Ah Soh arrumava a cama de baldaquino, pegando suas meias e roupas de baixo. A saia de crinolina já fora pendurada num cabideiro, junto com as outras, e meia dúzia de vestidos novos para o dia ainda se encontravam envoltos em papel-de-arroz. Pela janela aberta, vinha o som dos risos e cantorias, bêbados e da música no clube, que não dava o menor sinal de que acabaria logo.



Angelique suspirou, com vontade de estar no baile. Os movimentos com a escova se tornaram mais vigorosos.



— Deseja mais alguma coisa?



— Não. Pode ir se deitar.



— Boa noite.



Angelique trancou a porta depois da saída de Ah Soh. A porta de ligação com a suíte de Struan se encontrava fechada, mas não trancada. Pelo costume, ela deveria ir até lá, assim que terminasse de se arrumar, bater, entrar para lhe dar um beijo de boa noite, talvez conversar um pouco, depois retornar a seu quarto, deixando a porta entreaberta, para o caso de Malcolm ter um ataque durante a noite. Eram cada vez mais raros agora, embora ele se mostrasse irrequieto, desde que parara de tomar o medicamento da noite, há uma semana, mal conseguisse dormir, apesar de jamais exigir qualquer coisa.





Ela voltou a sentar diante do espelho, satisfeita com o que via. Seu penhoar era de seda e renda parisiense, uma cópia local de outro que trouxera... e não vai acreditar na qualidade do trabalho, Colette, ou na rapidez do alfaiate chinês, escrevera ela naquela tarde, uma carta que partiria no navio de correspondência, no dia seguinte.



Agora, posso mandar copiar qualquer coisa. Por favor, envie-me alguns moldes ou recortes de La Parisienne ou L’Haute Couture, mostrando os últimos figurinos, ou qualquer outra coisa maravilhosa... meu Malcolm é muito generoso e muito rico! Ele diz que posso pedir o que eu quiser!



E meu anel! Um diamante enorme, com quatorze menores ao redor. Perguntei como o adquirira, em que lugar de locoama, e ele se limitou a sorrir. Preciso ser mais cuidadosa, e não fazer perguntas tolas. Colette, tudo é maravilhoso, só que estou preocupada com a saúde de Malcolm. A melhoria é muito lenta e ele anda com a maior dificuldade. Mas seu ardor aumenta, o pobre coitado, e tenho de me precaver... Devo me vestir para a festa agora, mas voltarei a escrever mais antes de despachar. Meu amor eterno por enquanto.



Colette é afortunada, pois sua gravidez é uma dádiva de Deus. Pare com isso! Não fique assim ou as lágrimas e o terror voltarão. Ponha o dilema de lado. Decidiu o que fazer, se estivesse, ou se não estivesse. Como executar o outro plano... o que mais pode fazer?



Um pouco de perfume por trás das orelhas, nos seios, um ligeiro ajuste das rodas. Uma batida gentil na porta.



— Malcolm?



— Entre... estou sozinho.



Inesperadamente, ele não se encontrava na cama, mas sentado na poltrona. Um chambre vermelho de seda, uma estranha expressão nos olhos. No mesmo instante, algum instinto a fez erguer a guarda. Trancou a porta, como sempre e adiantou-se.



— Não se sente cansado, meu amor?



— Não e sim. Você me deixa tonto.



Ele estendeu as mãos e Angelique se aproximou ainda mais, o coração acelerando. As mãos de Malcolm tremiam. Ele a atraiu para mais perto, beijou suas mãos, braços, seios. Por um momento, ela não resistiu, apreciando aquela adoração, desejando-o. Inclinou-se, beijou-o, deixou que a acariciasse. Depois, o calor aumentando depressa, arriou de joelhos ao lado da poltrona, o coração batendo forte, rompeu em parte o abraço.



— Não devemos — sussurrou Angelique, ofegante.



— Sei disso... mas quero tanto...



Os lábios de Malcolm eram quentes, insistentes, e os de Angelique reagiram. Agora, a mão dele acariciava sua coxa, ateando mais fogo na virilha, e foi subindo e subindo, algoz irresistível, e ela queria mais, só que se conteve a beira do abismo, e tornou a se desvencilhar, sussurrando:





— Não, chéri.



Mas desta vez ele se mostrou surpreendentemente mais forte, o outro braço a deteve, num torno amoroso, a voz e os lábios cada vez mais persuasivos, mais prementes, até que, sem pensar, ele se virou de forma brusca e a dor invadiu seu corpo.



— Oh, Deus!



— O que foi? — balbuciou Angelique, assustada. — Você está bem?



— Acho que sim... Oh, Deus Todo-Poderoso!



Malcolm levou um momento para se recuperar, a dor intensa esvaziando o ardor, mas a ânsia persistindo, o sofrimento tornando-a ainda maior. Suas mãos ainda a seguravam, ainda tremiam, mas sem força.



— Desculpe...



— Não precisa se desculpar, meu querido.



Depois de recuperar o próprio fôlego, agradecida, Angelique levantou-se, serviu um pouco do chá frio que ele mantinha na mesinha-de-cabeceira. Sentia um calor na virilha, estava nervosa, o coração agitado, não querendo parar, mas sabendo que devia, uns poucos minutos a mais e não teria conseguido, preciso encontrar um meio de alcançar a segurança, para ele, para mim, para nós... e uma voz apregoava a litania em sua mente, “um homem jamais casa com sua amante, nada antes do casamento, tudo é permitido depois”, insistindo, até que pudesse compreender.



— Tome aqui — murmurou ela, estendendo a xícara.



Angelique ajoelhou-se, observou-o fechar os olhos, o suor aflorando no rosto, manchando o chambre. Mais um instante, e a maior parte da angústia dela se dissolveu. Pôs a mão no joelho de Malcolm, que a cobriu com a sua.





— Ficar tão perto é ruim para nós, Malcolm — murmurou ela, gostando muito dele, amando-o, mas não muito certa sobre o amor. — É difícil para nós dois chéri, pois também o desejo, também o amo.



Ele só falou depois de um longo momento, com alguma dificuldade, a voz baixa, angustiada:



— Sei disso, mas... mas você pode ajudar.



— Não podemos, querido, não antes de casarmos... não agora.



Abruptamente, a dor e a frustração de Malcolm alcançaram o auge, ao ter passado a noite inteira vendo-a dançar com outros homens, desejando-a, quando mal podia andar, ao mesmo tempo em que sabia que um mês atrás era melhor dançarino do que qualquer outro.



Por que não agora?, ele teve vontade de gritar. Que diferença um ou dois meses podem fazer? Pelo amor de Deus... mas tudo bem, aceitarei isso, que no casamento uma moça decente deve ser virgem, ou é uma mulher fácil, aceitarei que um cavalheiro não lhe faz mal antes do casamento. Aceito tudo! Mas há outros meios.



— Sei... sei que não podemos agora — balbuciou ele, a voz rouca. — Mas. -por favor, Angelique, ajude-me.



— Como?



Mais uma vez, ele foi sufocado pelas palavras. Pelo amor de Deus, faça como as mulheres das casas, que beijam, acariciam, fazem um homem se aliviar... Pensa que o ato de amor é apenas abrir as pernas e ficar imóvel como uma posta de carne? Essas mulheres fazem coisas bem simples, sem qualquer alarde, e sentem-se felizes pelo homem depois, perguntam se foi bom.



Mas Malcolm sabia que nunca poderia dizer isso a Angelique. Era contra toda a sua criação. Como explicar à moça que você ama, quando ela é tão jovem e ingênua, ou tão egoísta, ou apenas ignorante? Subitamente, a verdade tornou-se amarga. Alguma coisa nele mudou e foi com uma voz diferente que disse:



— Tem toda razão, Angelique, é difícil para nós dois. Desculpe. Talvez seja melhor você voltar para a legação francesa, até partirmos para Hong Kong. Agora Que estou melhorando, devemos zelar por sua reputação.



Ela ficou aturdida, desconcertada com a mudança.



— Mas estou bem aqui, Malcolm, e bem perto, caso precise de mim.



— Ora, claro que preciso de você. — Ele contraiu os lábios, na insinuação de um sorriso irônico. — Pedirei a Jamie para providenciar tudo.



Angelique hesitou, surpresa, sem saber como continuar.





— Se é assim que você quer, chéri...



— É melhor. Como você disse, essa proximidade é difícil para nós dois. Boa noite, meu amor. Fico contente que tenha gostado de sua festa.



Ela sentiu um calafrio percorrer seu corpo, mas não sabia se vinha de fora ou de dentro. Beijou-o, esperando por uma paixão retribuída, mas não encontrou nenhuma. O que o mudara?



— Duma bem, Malcolm. Eu amo você.



Ainda nada. Não importa, pensou Angelique, os homens são melancólicos e difíceis. Sorrindo como se nada houvesse de errado, ela foi tirar a tranca da porta e soprou-lhe um beijo terno e passou para seu quarto.



Malcolm olhou para a porta de comunicação. Estava entreaberta. Como sempre. Mas tudo no mundo dos dois não era mais como sempre. A porta e a proximidade de Angelique não mais o tentavam. Sentia-se diferente, de alguma forma remodelado. Não sabia por que, mas estava muito triste, muito velho, algum instinto lhe dizia que, por mais que a amasse, por mais que tentasse fisicamente Angelique nunca poderia, em toda a vida comum, satisfazê-lo por completo.



Usando a bengala, Malcolm levantou-se, claudicou tão silenciosamente quanto podia até a cômoda. Pegou na gaveta de cima o vidro do medicamento, que escondera para as noites em que a mera idéia de dormir se tornasse insuportável. Tomou tudo. Arrastou-se para a cama. Rangendo os dentes, deitou-se, deixou escapar um suspiro, enquanto a maior parte da dor desaparecia. O fato de ter consumido até a última gota a poção que lhe proporcionava um pouco de paz não o incomodava. Chen, Ah Tok ou qualquer dos outros criados poderia providenciar mais, no momento em que assim desejasse. Afinal, a Struan não era a grande fornecedora da China?











No outro lado da porta, Angelique ainda se encostava na parede, na maior agitação, sem saber se devia voltar ou deixá-lo sozinho. Ouvira-o ir até a cômoda, abrir a gaveta, mas não sabia o motivo, ouvira as molas da cama rangerem e o profundo suspiro de alívio de Malcolm.



Era apenas a dor e porque não podemos, não agora, pensou ela, tranqüilizando-se outra vez, reprimindo um bocejo nervoso. E também porque ele teve de permanecer sentado durante todo o baile, quando é um excelente dançarino, o melhor que já conheci... não foi isso o que primeiro me atraiu, em Hong Kong, entre todos os outros?



Não há nada de errado que ele queira fazer amor... e não foi por culpa minha que ficou ferido. Pobre Malcolm, ele está apenas esgotado. Amanhã terá esquecido e tudo estará bem... e é melhor eu agir agora, tenho de cuidar do outro problema. Mas tudo vai dar certo.



Ela meteu-se na cama e mergulhou num sono fácil, mas os sonhos logo foram povoados por monstros estranhos, com rostos retorcidos de bebê, soltando risadas estridentes, puxando-a, “mamãe... mamãe”, escrevendo nos lençóis com seu próprio sangue, a vazar do dedo, usado como caneta, traçando e retraçando aqueles caracteres... os que encontrara na colcha, gravados para sempre em sua mente. Ainda não tivera coragem de perguntar a André ou Tyrer o que significavam.



Alguma coisa a arrancou do sono. As paisagens noturnas se desvaneceram Apreensiva, olhou para a porta, meio esperando vê-lo ali. Mas não o encontrou, ouviu sua respiração, pesada, regular. Recostou-se nos travesseiros e pensou: foi o vento, uma janela batendo.





Mon Dieu, estou cansada, mas como me diverti no baile! E que anel lindo ele me deu!













Cantarolando a polca, com alguma inveja do sucesso de John Marlowe, e convencido de que também poderia se sair tão bem, Phillip Tyrer seguiu quase que dançando até a porta da casa das Três Carpas, na viela pequena e deserta, e bateu com um floreio. Ali, a Yoshiwara parecia adormecida, mas não muito longe, na Main Street, as casas e bares fervilhavam, a noite era jovem, com o barulho de homens rindo, cantos roucos, os acordes ocasionais de uma samisen, misturados com risadas e palavras de pidgin.



A grade da porta foi aberta.



— O que é?





Por favor, fale japonês. Sou Taira-san, e tenho um encontro marcado.





Ah, é isso? — murmurou a corpulenta criada. — Taira-san, hem? Falarei com a mama-san.





A grade foi fechada. Enquanto esperava, Tyrer tamborilou com os dedos na madeira antiga. Passara todo o tempo no dia de ontem e na noite anterior com Sir William, explicando sobre Nakama e a legação, providenciando um modus vivendi para seu novo professor... e sentindo-se culpado por não ter revelado a verdade vital de que o homem sabia falar alguma coisa de inglês. Mas fizera um juramento, e a palavra de um inglês é o seu grilhão.





Sir William acabara concordando que “Nakama” podia ser um samurai — filhos de famílias samurais haviam sido instalados nas legações britânica e francesa, por curtos períodos, no passado, assim como Babcott tinha ajudantes japoneses. Mas Sir William determinara que ele não deveria usar ou guardar espadas dentro da cerca da colônia. Essa regra aplicava-se a todos os samurais, à exceção dos guardas da colônia, sob o comando de um oficial, em suas raras patrulhas, aprovadas com antecedência. Além disso, Nakama não poderia se vestir de forma ostentosa, nem se aproximar da casa da guarda ou da alfândega, e teria de se manter fora de vista tanto quanto possível, pois se fosse descoberto e reclamado pelo Bakufu, a culpa seria sua e não relutariam em entregá-lo.



Tyrer chamara Nakama e explicou-lhe o que Sir William determinara. Àquela altura, sentia-se cansado demais para Fujiko.



Agora, Nakama, preciso mandar uma mensagem, e quero que você a entregue. Por favor, escreva os caracteres para: “Por favor, arrume...”



— Arrume, por favor?



— Significa marcar. “Por favor, marque um encontro para mim, amanhã à noite, com...” Deixe o espaço em branco para o nome.



Hiraga não demorara muito a entender o que Tyrer queria dele e por quê. Em desespero, Tyrer acabara dando o nome de Fujiko e da Casa das Três Carpas.





— Ah. Três Carpas? — dissera Hiraga. — So ka! Entregar mensagem mama-san, sem errar, marcar você ver musume amanhã, sim?



— Isso mesmo, por favor.



Nakama lhe mostrara como escrever os caracteres e Tyrer os copiara; muito satisfeito consigo, assinara a mensagem e agora se encontrava à porta.



— Vamos logo, depressa — murmurou ele, sentindo-se ansioso, muito capaz.



A grade na porta foi logo aberta de novo por Raiko.





Ah, boa noite, Taira-san, quer que a gente fale japonês, certo — disse ela com um sorriso e uma pequena reverência.



Seguiu-se um fluxo de japonês que ele não entendeu, à exceção do nome Fujiko, repetido várias vezes, e o final:





Sinto muito.





— Como? Ahn... Sente muito? Por que, Raiko-san? Boa noite. Tenho um encontro Fujiko... com Fujiko.





Sinto muito — repetiu ela —, mas Fujiko não está disponível esta noite, e não ficará livre por algum tempo. Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer. Ela pede desculpas e sente muito. Todas as minhas outras damas também estão ocupadas. Sinto muito.



Mais uma vez, Tyrer não entendeu tudo. Absorveu a essência. Desolado, compreendeu que Fujiko não se encontrava, mas não o motivo de sua ausência.





Mas carta ontem... minha mensagem, Nakama lhe trazer, hem?





Oh, sim! Nakama-san trouxe a mensagem e eu disse a ele que estava tudo certo, mas sinto muito, agora não é possível atendê-lo. Sinto muito, Taira-san. Obrigado por se lembrar de nós. Boa noite.





— Espere! — gritou Tyrer, em inglês,quando a grade era fechada, para depois acrescentar, suplicante: — Disse que ela não está aqui, não é? Esperar, por favor, Raiko-san. Amanhã... amanhã, Fujiko, sim?



Raiko sacudiu a cabeça, com uma cara de tristeza.





Ah, sinto muito, amanhã também não será possível e muito me aflige ter de dizer isso. Espero que compreenda. Sinto muito.



Tyrer estava consternado.





Não amanhã? Dia seguinte, sim?



Ela hesitou, sorriu, fez outra reverência.





Talvez, Taira-san, talvez, mas sinto muito, não posso prometer nada. Por favor, peça a Nakama para vir aqui durante o dia e direi a ele. Compreendeu? Mande Nakama-san. Boa noite.



Aturdido, Tyrer ficou olhando para a porta, praguejou amargurado, cerrou os punhos, querendo bater em alguma coisa. Levou um momento para se recuperar do intenso desapontamento e depois, abatido, afastou-se.











Hiraga estivera observando através de um pequeno buraco na cerca. Quando Tyrer desapareceu, além da esquina, ele voltou pelo cadinho de pedra sinuoso, através do jardim, imerso em seus pensamentos. O jardim era enganadoramente espaçoso, com pequenos bangalôs, sempre com varandas, cercados por arbustos.





Mas Hiraga evitou a todos, embrenhou-se pelos arbustos, foi bater num painel da cerca, que foi aberto, sem qualquer ruído. O criado fez uma reverência, ele acenou com a cabeça e seguiu por um caminho na direção de uma habitação similar. A maioria das estalagens ou casas possuíam saídas secretas e esconderijos ou ligações com a propriedade vizinha. As que ousavam abrigar os shishi dispensavam atenção especial à segurança... para seu próprio bem. Aquela parte da Casa das Três Carpas era para visitantes muito especiais, com suas próprias instalações para cozinhar e criadas diferentes, mas com as mesmas cortesãs. Na varanda, Hiraga tirou seus geta — sapatos — e puxou a porta de shoji.



— O que ele fez? — perguntou Ori.



— Afastou-se, mansamente. Estranho.



Hiraga balançou a cabeça, espantado, foi sentar à frente de Ori e retribuiu com um cumprimento rápido a reverência profunda de Fujiko. No dia anterior, depois de entregar a carta de Tyrer, ele reservara Fujiko para esta noite, com a divertida aquiescência de Raiko.



— Posso saber por que, Hiraga-san? — perguntara Raiko.



— Só para irritar Taira.



— Acho que ele deixou sua virgindade aqui, com Ako. Depois experimentou Meiko e Fujiko em seguida. Fujiko deixou-o de olhos vesgos.



Ele rira junto com Raiko, simpatizando com ela. Ao ver Fujiko, ficara surpreso, sem entender como seu inimigo podia achar aquela moça atraente. Era vulgar, com cabelos vulgares, tudo nela era vulgar, à exceção dos olhos, grandes demais. Mesmo assim, ele escondera sua opinião, e cumprimentara Raiko por ter adquirido uma flor tão extraordinária, que parecia ter dezesseis anos, embora estivesse com trinta e um, e há quinze fosse cortesã.





— Obrigada, Hiraga-san.— Raiko sorrira.— Tem razão, ela é um patrimônio e tanto. Por alguma razão, o gai-jin gosta de Fujiko. Mas, por favor, não esqueça que o Taira é nosso cliente e que os gai-jin não são como nós. Tendem a se ligarem a uma dama apenas. Por favor, encoraje-o, pois os gai-jin são ricos. Soube que ele é importante e pode ficar aqui por alguns anos.





Sonno-joi.



— Isso cabe a você. Pode cortar suas cabeças, desde que prometa que não o fará aqui, enquanto eu lhes arranco o dinheiro.



— Vai permitir que Ori continue aqui?



— Ori-san é um jovem curioso — comentara Raiko, hesitante. — Muito forte, muito irado, muito irrequieto... prestes a explodir. Tenho medo dele. Posso escondê-lo por mais um ou dois dias, mas... por favor, pode controlá-lo enquanto ele for meu hóspede? Já há problemas suficientes no mundo dos salgueiros, e não precisamos procurar por mais.



— Combinado. Tem alguma notícia de meu primo, Akimoto?



— Ele está são e salvo em Hodogaya, na Casa de Chá da Primeira Lua.





— Mande chamá-lo. — Hiraga tirara um oban de ouro de seu bolso secreto. Notara o brilho nos olhos de Raiko. — Isto pagará por qualquer mensageiro e pelas despesas de Ori e Akimoto aqui... e também pelos serviços de Fujiko amanhã.



— Certo. — A moeda, um pagamento bastante generoso, desaparecera na manga de Raiko. — Ori-san pode ficar até eu achar que é tempo de partir. Quando chegar esse momento, sinto muito, mas ele terá de ir embora. Concorda?



— Claro.





— E agora, shishi, sinto muito, mas devo dizer que sua presença aqui é muito perigosa. Isto está sendo enviado para todas as barreiras.





Raiko desdobrara uma xilogravura, um retrato. Dele. A legenda dizia: O Bakufu oferece uma recompensa de dois koku pela cabeça deste ronin de Choshu assassino, que usa muitos nomes, um dos quais é Hiraga.





Baka! — exclamara Hiraga, através dos dentes semicerrados. — Parece comigo? Como é possível? Nunca deixei pintarem um retrato meu.





— Sim e não. Os artistas têm memória longa, Hiraga-san. Quem sabe um dos samurais na luta? A menos que alguém mais próximo de você seja um traidor. Também é ruim que pessoas importantes estejam à sua procura. Anjo, é claro, mas agora Toranaga Yoshi também.



Hiraga sentira um calafrio, especulando se a cortesã Koiko fora traída ou era a traidora.



— Por que ele?



Raiko dera de ombros.





— Ele é o chefe da serpente, quer goste ou não. Sonno-joi, Hiraga-san, mas não atraia o inimigo Bakufu para cá. Quero esta cabeça nos meus ombros.



Durante toda a noite, Hiraga preocupara-se com o cartaz e o que fazer a respeito. Agora, deixou que Fujiko lhe servisse mais saquê e comentou:



— Esse Taira me espanta, Ori.



— Por que perder tempo com ele? Mate-o.



— Mais tarde, não agora. Observar a ele e aos outros, testá-los, tentar adivinhar suas reações, é como um jogo de xadrez em que as regras mudam constantemente. É fascinante... depois que a gente se acostuma ao fedor.



— Devemos fazer esta noite o que eu queria fazer antes: matá-lo, jogar o corpo perto da casa da guarda e deixar que eles levem a culpa.



Irritado, Ori passou a mão direita pelos fios curtos que já cobriam sua cabeça raspada e o rosto, o ombro esquerdo enfaixado, o braço ainda numa tipóia.



— Amanhã estarei raspado de novo, e voltarei a me sentir como um samurai... Raiko tem um barbeiro em quem pode confiar. Mas raspado ou não, Hiraga, esta indolência forçada está me enlouquecendo.



— E seu ombro?





— O ferimento está limpo. Coça, mas é uma boa coceira. — Ori levantou o braço até a metade. — Não consigo ir além, mas forço um pouco mais a cada dia. Seria difícil usar numa luta. Karma. Mas se matássemos o gai-jin Taira não haveria risco nenhum para nós nem para a casa. Você disse que ele é tão retraído que não contou a ninguém que vinha até aqui.





— É verdade, mas ele pode ter comentado com alguém e é isso o que não compreendo. Os gai-jin são imprevisíveis. Vivem mudando de idéia, dizem uma coisa e, depois, fazem o oposto exato, mas não por cálculo, não como fazemos, não como nós.





Sonno-joi! Matá-lo deixaria os gai-jin furiosos. Devemos fazer isso na próxima vez em que ele vier aqui.





— Faremos, só que mais tarde... ele é muito valioso por enquanto. Vai revelar os segredos deles, como humilhá-los, como matá-los às centenas e milhares... depois que os tivermos usado para humilhar e destruir o Bakufu.



Hiraga tornou a levantar o copo. No mesmo instante, Fujiko encheu-o, sorrindo para ele.





— Estive até no escritório do líder de todos os ingleses, a cinco passos dele. Estou no centro da autoridade dos gai-jin. Se ao menos eu compreendesse melhor a língua deles...



Hiraga era cauteloso demais para revelar a Ori a verdadeira extensão de seu conhecimento ou como persuadira Tyrer a tirá-lo do prédio da legação... ainda mais na presença daquela mulher.



Enquanto reabastecia os copos, ao longo da noite, sorrindo, sempre atenciosa, jamais interrompendo, Fujiko escutava avidamente, embora desse a impressão de que não prestava a menor atenção, querendo fazer uma centena de perguntas, mas muito bem treinada para interferir.





— Limitem-se a escutar, sorriam e finjam que são estúpidas, apenas um brinquedo — diziam todas as mama-sans para suas pupilas. — Muito em breve eles lhe contarão tudo o que quiserem saber, sem precisar de qualquer estímulo. Escutem e sorriam, observem e lisonjeiem, façam com que se sintam felizes, pois só assim eles se tornam generosos. Jamais esqueçam que um homem feliz é igual a ouro, e o ouro é o único propósito de vocês, a única segurança.



— Em Iedo — acrescentou Hiraga — esse Taira foi muito corajoso, esta noite um covarde. Fujiko, como ele é na cama?



Sorrindo, ela ocultou sua surpresa por alguém poder ser tão indelicado.



— Como qualquer jovem, Hiraga-san.



— Certo, mas como ele é? Está na proporção... homem alto, espada comprida?



— Sinto muito. — Fujiko baixou os olhos, assumiu uma voz humilde. — As damas do mundo dos salgueiros são orientadas para nunca falarem de um cliente com outro, não importa quem seja.





— E nossas regras aplicam-se aos gai-jin? — indagou Hiraga.



Ori riu.





— Não vai conseguir arrancar nada dela, ou de qualquer das outras. Já tentei, Raiko-san veio me censurar por interrogá-las. “Gai-jin ou não, a regra antiga da Yoshiwara sempre prevalece”, disse ela. “Podemos conversar sobre generalizações, mas não sobre qualquer cliente em particular... Baka-neh?” Ela ficou realmente zangada.



Os dois homens riram, mas Fujiko percebeu que não havia nenhum sorriso nos olhos de Hiraga. Fingindo não notar, ansiosa em apaziguá-lo, ao mesmo tempo em que especulava como teria de servi-lo naquela noite, ela disse:



— Sinto muito, Hiraga-san, mas minha experiência é pouca, com jovens velhos ou intermediários. Mas a maioria, damas experientes, diz que o tamanho não garante satisfação, nem para ele, nem para ela, mas que os jovens são sempre os clientes melhores e mais satisfatórios.



Fujiko riu para si mesma, pela mentira tão usada. Gostaria de lhe dizer a verdade, por uma vez: que vocês, jovens, são os piores clientes, os mais exigentes os menos satisfatórios. São todos irremediavelmente impacientes, com uma abundância de vigor, clamam por muitas entradas, esguicham poças de essência mas há pouco contentamento depois... e quase nunca se mostram generosos. O pior de tudo é que uma de nós, por mais que tente evitar, pode se apaixonar por um jovem em particular e isso acarreta ainda mais sofrimento, desastre e até o suicídio, na maioria das vezes. O velho é vinte vezes melhor.



— Alguns jovens são muito tímidos, embora bem-dotados — disse ela, respondendo sem responder.



— Interessante. Ori, ainda não posso acreditar que esse Taira tenha ido embora mansamente, sem protestar.



Ori deu de ombros.



— Manso ou não, ele deveria estar morto esta noite e eu dormiria melhor. O que mais ele podia fazer?



— Tudo. Deveria ter derrubado a porta a pontapés... um encontro marcado é um encontro marcado, e o fato de Raiko não ter uma substituta à espera foi um insulto adicional.



— A porta e a cerca são muito resistentes, até mesmo para nós.



— Neste caso, ele deveria ter ido até a rua principal, recrutado cinco, dez ou vinte dos seus companheiros, e voltado para derrubar a cerca. Afinal, é um homem importante, e todos os oficiais e soldados obedeciam às suas ordens na legação. Tal atitude, com toda certeza, faria com que Raiko se ajoelhasse diante dele por um ano ou mais, e lhe garantiria os serviços que quisesse no momento em que desejasse... e nós talvez tivéssemos de fugir. Isso é o que eu faria, se fosse uma autoridade tão importante quanto ele.



Hiraga sorriu e Fujiko reprimiu um calafrio de medo.



— É uma questão de honra. Contudo, eles compreendem essas coisas muito bem. Teriam defendido sua estúpida legação até o último homem, e depois a esquadra arrasaria Iedo.



— Não é isso o que queremos?



— É, sim. — Hiraga soltou uma risada.— Mas não quando se está sem armas, rastejando como um jardineiro... eu me sinto completamente nu!





Outra dose de saquê. Hiraga olhou para Fujiko. Em circunstâncias normais, muito embora a mulher daquela noite não fosse muito atraente, sua virilidade habitual e o saquê o excitariam. Mas esta noite era diferente. Afinal, encontrava-se na Yoshiwara dos gai-jin, a mulher já fora para a cama com eles, por isso está contaminada. Talvez Ori a quisesse, pensou ele, sorrindo para Fujiko, a fim de salvar as aparências.



— Peça alguma comida, está bem, Fujiko? A melhor que a casa possa oferecer.



— Agora mesmo, Hiraga-san.



Ela se retirou, apressada.



— Escute, Ori — sussurrou Hiraga, tão baixo que mais ninguém poderia ouvir —, há grande perigo por aqui.



Ele tirou do bolso o cartaz dobrado. Ori ficou chocado.



— Dois koku! É uma tentação para qualquer um. Não está muito parecido com você, mas um guarda de barreira poderia detê-lo.



— Raiko disse a mesma coisa.



Ori fitou-o.



— Joun era um artista e dos bons.





— Pensei nisso e tenho me perguntado como o prenderam, até que ponto o obrigaram a falar. Ele conhece muitos segredos dos shishi, está a par do planejamento de Katsumata para interceptar o xógum.





— É lamentável permitir que seja capturado vivo. É óbvio que o inimigo se infiltrou em nossa organização. — Ori devolveu o cartaz. — Dois koku tentariam qualquer pessoa, até mesmo a mama-san mais leal.



— Pensei nisso também.



— Deixe crescer a barba, Hiraga, ou o bigode. Isso ajudaria.



— Tem razão, ajudaria bastante. — Hiraga sentiu-se contente por Ori ter se recuperado, pois seus conselhos eram sempre valiosos. — É uma estranha sensação, saber que este cartaz circula por aí.



Um longo momento de silêncio, rompido por Ori:



— Dentro de um ou dois dias, assim que eu puder, e me sinto mais forte a cada dia, partirei para Quioto, a fim de avisar Katsumata sobre Joun. Ele deve ser alertado.



— É uma ótima idéia.



— E você, o que vai fazer?





— Estou seguro entre os gai-jin, mais seguro do que em qualquer outro lugar... enquanto ninguém me trair. Akimoto está em Hodogaya. Mandei chamá-lo e depois poderemos decidir.





— Fez bem. Seria mais seguro se tentasse ir para Quioto agora, antes que esses retratos sejam enviados por toda a Tokaidô.



— Não. Taira é uma oportunidade boa demais para se perder. Esconderei as espadas lá, para qualquer emergência.



— Arrume um revólver. É menos óbvio.





Ori estendeu a mão direita por dentro do yukata, afastou-a do ombro, para coçar as bandagens. Hiraga ficou chocado ao ver a pequena cruz de ouro, pendurada em uma corrente de ouro fina em seu pescoço.



— Por que usa isso?



Ori deu de ombros.



— Acho divertido.





— Livre-se disso, Ori... liga-o ao ataque na Tokaidô, a Shorin e à mulher. Essa cruz é um perigo desnecessário.





— Muitos samurais são cristãos.



— É verdade, mas ela pode identificar essa cruz. É uma insanidade correr tamanho risco. Se quer usar uma, arrume outra.



Depois de uma pausa, Ori declarou:



— É esta que eu acho divertido.





Hiraga percebeu a inflexibilidade, amaldiçoou-o em silêncio, mas decidiu que era seu dever proteger o movimento shishi, proteger Sonno-joi, e aquele era um momento que exigia uma decisão.



— Tire-a!



O sangue afluiu ao rosto de Ori. O meio sorriso não mudou, mas ele sabia o que havia em jogo. Suas opções eram simples: recusar e morrer ou obedecer.



Um mosquito zumbiu em torno de seu rosto. Ele ignorou-o, não querendo fazer um movimento súbito. Lentamente, a mão direita puxou a corrente do pescoço, partindo-a. A cruz e a corrente desapareceram no bolso na manga. Depois, ele pôs as mãos no tatame, e fez uma reverência profunda.



— Tem toda razão, Hiraga-san, era um risco desnecessário. Por favor, aceite minhas desculpas.



Em silêncio, Hiraga se inclinou. Só então relaxou e Ori se empertigou. Os dois sabiam que seu relacionamento mudara. Para sempre. Não haviam se tornado inimigos, apenas não eram mais amigos; aliados sempre, mas nunca amigos de novo. Nunca mais. Ao pegar seu copo e levantá-lo, num brinde, Ori sentiu-se satisfeito por constatar que sua raiva interior estava tão controlada que os dedos não tremiam.



— Obrigado.





Hiraga bebeu com ele, inclinou-se, tornou a servir saquê para os dois.



— Agora, Sumomo. Por favor, fale-me sobre ela.





— Não lembro quase nada. — Ori abriu o leque, afugentou o mosquito. — A mama-san Noriko me contou que aqui chegou como um espírito, trazendo-me numa maca, não lhe disse quase nada, exceto que um doutor gai-jin abrira meu ferimento e tornara a costurá-lo. Pagou a metade das dívidas de Shorin e persuadiu-a a me esconder. Durante a espera, Sumomo pouco falou, depois de perguntar o que acontecera com Shorin. Quando o mensageiro voltou de Iedo, com a sua mensagem, ela partiu no mesmo instante para Shimonoseki. A única notícia que deu foi de que Satsuma está se mobilizando para a guerra, e que as baterias de Choshu tornaram a disparar contra navios gai-jin, estreitos, obrigando-os a voltarem.



— Ótimo. Você contou a ela tudo sobre Shorin?



— Contei. Ela me interrogou a sério e declarou, após o relato, que seria vingada.





— Ela deixou algum recado ou carta com a mama-san?



Ori deu de ombros.



— Não deixou nada comigo.



Talvez Noriko tenha alguma coisa, pensou Hiraga. Mas não importa, isso pode esperar.



— Ela parecia bem?



— Parecia. Devo minha vida a Sumomo.



— É verdade. Um dia ela vai querer cobrar essa dívida.





— Pago a ela, pago a você, e honro Sonno-joi.



Os dois ficaram calados, cada um especulando sobre o que o outro pensava, pensava realmente. Hiraga exibiu um súbito sorriso.





— Esta noite, na colônia, houve uma celebração, com música infame, muita bebida, como é o costume deles quando um homem concorda em casar. — Ele emborcou o copo. — Este saquê é excelente. Um dos mercadores... o gai-jin que você cortou na Tokaidô... vai casar com aquela mulher.



Ori sentiu-se atordoado.



— A mulher da cruz? Ela está aqui?



— Eu a vi esta noite.





— Mas que coisa! — murmurou Ori, como se falasse para si mesmo, depois terminou seu saquê, despejou mais, para os dois. Algumas gotas caíram na bandeja, despercebidas. — Ela vai casar? Quando?



Hiraga deu de ombros.



— Não sei. Vi os dois juntos esta noite. Ele anda com duas bengalas, como um entrevado... seu golpe o feriu gravemente, Ori.



— Ótimo. E como está a mulher?



Hiraga soltou uma risada.



— Cômica, Ori, uma verdadeira palhaçada.



Ele descreveu os trajes de Angelique. E o penteado. Levantou-se, imitou seu andar. Não demorou muito para que os dois quase estivessem rolando pelos tatames de tanto rir.



—... os seios à mostra, a depravada! Pouco antes de vir para cá, dei uma espiada por uma janela. Homens agarravam-na abertamente. Ela e um homem se abraçaram e saíram girando numa espécie de dança, na frente de todos, ao som horrível daqueles instrumentos, uma coisa que não se pode chamar de música. As saias levantavam de tal forma que se podia ver até a metade das pernas, cobertas por uma calça rendada, que descia aos tornozelos. Eu nunca seria capaz de acreditar numa coisa assim se não tivesse visto pessoalmente, mas ela passou de um homem para outro como uma prostituta de um yen, e todos a aplaudiram. O tolo que vai casar com ela passou o tempo todo sentado numa cadeira... e radiante, imagine só!



Ele estendeu a mão para servir aos dois mais uma vez, só que encontrou a garrafa vazia.





Saquê!





A porta foi aberta no mesmo instante, uma criada entrou, de joelhos, trouxe novas garrafas, serviu-os e se retirou. Hiraga arrotou, o saquê o afetando.



— Eles agiam como animais. Sem seus canhões e navios, estão abaixo do desprezo.



Ori olhou pela janela, na direção do mar.



— O que é? — indagou Hiraga, subitamente em guarda. — Perigo?



— Não, não foi nada.



Hiraga franziu o rosto, apreensivo, recordando como Ori era sensível a emanações externas.



— Tem as espadas aqui?



— Tenho. Raiko as guarda para mim.



— Detesto não ter espadas no cinto.



— Eu também.



Por uma vez, eles beberam em silêncio, e depois a comida chegou, pequenos pratos com peixe grelhado, arroz, sushi e sashimi, assim como uma iguaria portuguesa chamada tempura — peixe e legumes passados na farinha de arroz e fritos. Antes de os portugueses chegarem, por volta de 1.550, os primeiros europeus a aparecerem em suas praias, os japoneses não conheciam a técnica de fritura.



Depois de se sentirem satisfeitos, eles mandaram chamar Raiko, apresentaram seus cumprimentos pela refeição e recusaram os serviços de entretenimento de uma gueixa. Por isso, ela fez uma reverência e se retirou.



— Pode ir também, Fujiko — disse Hiraga. — Voltarei amanhã, depois do pôr-do-sol.



— Pois não, Hiraga-san.



Fujiko fez uma reverência baixa, contente por ser dispensada sem trabalho adicional, pois Raiko já lhe dissera que seu pagamento era generoso.



— Obrigada por me honrar.





— Claro que nada do que ouviu ou viu esta noite jamais será mencionado para o Taira, outro gai-jin, ou qualquer pessoa.



Ela levantou a cabeça de repente.



— Claro que não, Hiraga-sama. — Sentiu um frio no coração ao ver os olhos dele e repetiu, a voz quase inaudível: — Claro que não.



Fujiko encostou a testa no tatame e depois, apavorada, saiu apressada.



— Ori, assumimos um risco com essa mulher escutando.





— Com qualquer delas. Mas ela não ousaria falar, nem as outras. — Ori tornou a usar o leque, contra os insetos noturnos. — Antes de partirmos, acertaremos um preço com Raiko para que Fujiko seja despachada para uma casa de baixa qualidade, onde estará ocupada demais para cometer algum erro, bem longe do gai-jin e do Bakufu.





— É um bom conselho. Pode ser caro, pois Raiko disse que Fujiko é bastante popular com os gai-jin, por algum motivo.



— Fujiko?



— Isso mesmo. Estranho, neh? Raiko disse que os costumes deles são diferentes dos nossos. — Hiraga percebeu o sorriso de Ori. — O que é?



— Nada. Podemos conversar mais amanhã.





Hiraga acenou com a cabeça, bebeu o resto do saquê no copo, levantou-se, tirou o yukata engomado que todas as casas e estalagens costumavam fornecer a seus cientes e tornou a vestir o quimono grosseiro de aldeão, o turbante ordinário e o chapéu de palha de cule. Pôs nos ombros o cesto de compras vazio.



— Está seguro assim?



— Estou, desde que não tenha de descobrir a cabeça e possa apresentar isto. — Hiraga mostrou os dois passes que Tyrer lhe dera, um para os japoneses, um para os ingleses. — Os guardas no portão e na ponte estão sempre alerta e soldados patrulham a colônia à noite. Não há toque de recolher, mas Taira me advertiu para ser cuidadoso.



Pensativo, Ori devolveu os passes. Hiraga guardou-os na manga.



— Boa noite, Ori.



— Boa noite, Hiraga-san. — Ori fitou-o com uma expressão estranha. — Eu gostaria de saber onde a mulher vive. Os olhos de Hiraga se contraíram.



— É mesmo?



— É, sim. Gostaria de saber onde. Exatamente.



— Talvez eu possa descobrir. E depois?



O silêncio tornou-se opressivo. Ori pensou: Não tenho certeza esta noite, bem que gostaria de ter, mas cada vez que deixo a mente vaguear lembro daquela noite e do ardor interminável que tive com a mulher. Se eu a matasse na ocasião, isso teria acabado, mas sabendo que ela continua viva, sinto-me obcecado. É uma estupidez, mas estou enfeitiçado. Ela é maligna, repulsiva, sei disso, mas ainda assim me sinto enfeitiçado e tenho certeza de que a mulher sempre haverá de me atormentar, enquanto estiver viva.



— E depois? — repetiu Hiraga.



Ori evitara que seus pensamentos transparecessem no rosto. Fitou Hiraga calmamente, e deu de ombros.




20







Quarta-feira, 15 de outubro:









André Poncin piscou os olhos, aturdido.



— Você está grávida?



— Isso mesmo — murmurou Angelique. — Deve compreender...



— Mas isso é maravilhoso, torna tudo perfeito! — exclamou ele, o choque se transformando numa intensa satisfação, porque Struan, o cavalheiro britânico, fizera mal a uma moça inocente, e agora não podia evitar um casamento prematuro, se quisesse permanecer um cavalheiro. — Madame, posso lhe dar os parabéns...





— Cale-se, André. Não, não pode, e não deve falar tão alto, porque as paredes têm ouvidos, ainda mais nas legações, não é mesmo? — Ela falou num sussurro, espantada por sua voz soar tão calma, e por se sentir tão calma que podia lhe contar com a maior facilidade. — Deve compreender que, infelizmente, o pai não é monsieur Struan.



O sorriso de Poncin desapareceu, mas logo retornou.



— Está gracejando, é claro, mas por que...



— Apenas escute, por favor. — Angelique deslocou sua cadeira para mais perto. — Fui estuprada em Kanagawa...



Ele a fitou, fixamente, atordoado, enquanto Angelique relatava o que pensava ter lhe acontecido, o que decidira fazer, como ocultara o horror desde então.



— Por Deus, minha pobre Angelique, deve ter sido terrível para você! — foi tudo o que André conseguiu murmurar, num choque profundo.



Ao mesmo tempo, outra peça do quebra-cabeça ajustou-se no lugar. Sir William, Seratard e Struan haviam decidido limitar a notícia sobre a operação do Dr. Hoag em Kanagawa ao mínimo de pessoas possível, ocultando-a em particular de Angelique, os dois médicos aconselhando que era o mais sensato.





— Por que agitá-la desnecessariamente? Ela já se sente bastante transtornada com o atentado na Tokaidô.



Não havia ainda razão para contar a ela, pensou André, inquieto, abalado pela ironia.





Ele pegou a mão de Angelique, acariciou-a, forçando-se a reprimir suas próprias preocupações e concentrando-se nela. Vendo-a ali, sentada à sua frente, na sala que ocupava na legação, tão serena e recatada, a imagem da inocência, apenas umas poucas horas depois de ter sido a belle no melhor baile que Iocoama já testemunhara, proporcionava à sua história um ar total de irrealidade.



— Isso realmente aconteceu, Angelique?



Ela ergueu a mão, como se estivesse fazendo um juramento.



— Juro por Deus.



Angelique cruzou as mãos sobre o colo. Usava um vestido amarelo claro, uma pequena touca laranja e um guarda-chuva. Desconcertado, ele sacudiu a cabeça.



— Parece impossível.



Ao longo de seus anos como adulto, André Poncin tivera alguma participação em muitas dessas tragédias de homem-mulher: fora incluído em algumas por seus superiores, deparara por acaso com umas poucas, precipitara muitas e usara a maioria, se não todas, para a melhoria de sua causa... pela França, a revolução, liberdade, fraternidade, igualdade ou pelo imperador Luís Napoleão ou por qualquer pessoa ou coisa que estivesse em voga no momento... e também em proveito pessoal, acima de tudo.



Por que não? — pensava ele. O que a França tem feito por mim, o que algum dia fará por mim? Nada. Mas esta Angelique, com toda certeza, ou vai desmoronar a qualquer momento — sua serenidade é irreal — ou é como algumas mulheres que já conheci, que nasceram más e distorcem a verdade de maneira brilhante, para seus próprios propósitos, ou como alguém que foi levada à beira do abismo pelo terror, e se tornou uma mulher calculista, de sangue-frio, além dos seus anos.



— Como?



— Preciso remover o problema, André.



— Fazer um aborto? Mas você é católica!



— E você também. É uma questão entre Deus e eu.



— O que me diz da confissão? Tem de se confessar. Neste domingo, quando for à missa...



— É uma questão minha com o padre e depois com Deus. Mas o problema deve ser removido primeiro.



— É contra a lei de Deus e a lei do homem.



— E tem sido feito ao longo dos séculos, desde antes do dilúvio. — Um pouco nervosismo se insinuou na voz de Angelique. — Você confessa tudo? Adultério ambém é contra a “lei de Deus”, não é mesmo? E matar é contra todas as leis, não é?



— Quem disse quejá matei alguém?



— Ninguém, todavia é mais do que provável que já o tenha feito ou, pelo menos, causou mortes. Estes são tempos violentos. Preciso de sua ajuda, André.



— Está se arriscando à danação eterna.



— É verdade, angustiei-me por isso, com lagos de lágrimas.



Pensou Angelique, sombria, mas mantendo os olhos inocentes, odiando-o, detestando ter de confia nele.



Acordara cedo naquela manhã, continuara deitada, pensando, avaliando seu plano, de repente chegando à conclusão de que deveria odiar todos os homens Os homens causam todos os nossos problemas, pais, maridos, irmãos, filhos e padres... os padres são os piores de todos os homens, muitos são notórios fornicadores, insidiosos, mentirosos, que usam a Igreja para seus sórdidos propósitos pessoais, embora seja verdade que uns poucos são santos. Os padres e os outros homens que controlam nosso mundo e o arruinam para as mulheres. Odeio a todos... à exceção de Malcolm. Não o odeio, ainda não. Não sei se o amo de verdade. Não sei o que é o amor, mas gosto dele mais do que de qualquer outro homem que já conheci, e o compreendo.



Quanto ao resto, graças a Deus que meus olhos estão finalmente abertos! Ela fitava André com uma expressão confiante e suplicante. É uma desgraça que eu tenha de pôr minha vida em suas mãos, mas graças a Deus posso agora vê-lo como de fato é. Malcolm e Jamie têm razão, tudo o que você quer é dominar a Struan ou causar sua queda. É uma desgraça que eu tenha de confiar em qualquer homem. Se ao menos estivesse em Paris ou mesmo em Hong Kong, contaria com dezenas de mulheres a quem poderia discretamente pedir a ajuda necessária, mas aqui não há nenhuma. Aquelas duas megeras? Impossível! É evidente que me odeiam, são inimigas.



Angelique permitiu que umas poucas lágrimas aparecessem.



— Por favor, ajude-me. Ele suspirou.



— Falarei com Babcott esta ma...



— Enlouqueceu? Não podemos envolvê-lo de jeito nenhum. Nem Hoag. Não é possível, André. Pensei em tudo com o maior cuidado. Nenhum dos dois serve. Temos de encontrar outra pessoa. Uma madame.



André ficou espantado com sua voz calma e lógica implacável e balbuciou:





— Está se referindo a uma mama-san?



— O que é isso?



— Ahn... é a mulher, a mulher japonesa, que dirige os bordéis locais, contrata os serviços das moças, acerta preços, cuida da distribuição pelos clientes. E assim por diante.



Angelique franziu a testa.



— Eu não tinha pensado numa delas. Ouvi dizer que há uma casa no final da estrada.



— Essa não! Fala da casa de Naughty Nellie... na cidade dos bêbados? Tu não iria lá nem por mil luíses.



— Mas a casa não é dirigida pela irmã da Sra. Fortheringill? A famosa Sra. Fortheringill de Hong Kong?



— Como sabe dela?





— Por Deus, André, pensa que sou uma inglesa tola e intolerante? — disse inrritada. — Todas as europeias em Hong Kong sabem da Instituição para moças da Sra. Fortheringill, embora finjam que a ignoram e nunca falem abertamente a respeito; todas também sabem, à exceção talvez das mais estúpidas, que os homens visitam as casas chinesas ou têm amantes orientais. É hipocrisia, nada mais. Até mesmo você ficaria espantado se soubesse sobre o que as mulheres conversam na privacidade de seus boudoirs ou quando não há homens presentes.



Fui informada em Hong Kong que a irmã dela abriu uma casa aqui.



— Não é a mesma coisa, Angelique. Atende a marujos, bêbados, imigrantes que vivem do dinheiro que recebem de casa... a escória. E Naughty Nellie não é irmã, apenas alega ser, talvez até pague alguma coisa pelo uso do nome.



— É mesmo? Então para onde você vai, quando quer se “divertir”?



— Para a Yoshiwara.



André explicou o que era, desconcertado com a conversa e por se mostrar tão franco.





— Costuma frequentar algum lugar especial... uma casa especial? Mantém boas relações com alguma mama-san?



— Claro.





— Ótimo. Procure sua mama-san esta noite e obtenha a poção que elas usam, qualquer que seja.



— O quê?





— Por Deus, André, seja sensato... e sério. É um problema sério e, se não pudermos resolvê-lo, nunca serei a châtelaine da Casa Nobre; com isso você nunca poderá ajudar... a certos interesses.



Angelique percebeu que esse comentário atingira o alvo e sentiu-se ainda mais satisfeita consigo.





— Vá até lá esta noite e peça a poção a ela. Não pergunte à sua garota, ou a qualquer outra, porque elas não devem saber. Pergunte à patronne, à mama-san. Pode dizer que “a garota” está atrasada.



— Não sei se elas têm um medicamento assim. Ela sorriu, afável.





— Não seja tolo, André. Claro que têm. Não podem deixar de ter. — Com a mão direita, Angelique começou a esticar os dedos da luva na mão esquerda. — depois que esse problema estiver solucionado, tudo será maravilhoso e casaremos no Natal. Por falar nisso, decidi que será melhor deixar a casa de Struan até casarrnos... agora que monsieur Struan recupera mais e mais as forças, a cada dia. Voltarei para a nossa legação esta tarde.



— Acha que é uma providência sensata? Melhor ficar perto dele.



— Em circunstâncias normais, seria mesmo. Mas devemos pensar no decoro também, ainda mais importante, tenho certeza de que o medicamento fará com que me sinta mais segura. Descansarei por um ou dois dias. Assim que isso estiver resolvido, decidirei que vou voltar. Sei que posso contar com você, meu amigo. — Angelique levantou-se. — Amanhã, à mesma hora?



Se eu nada conseguir, darei um jeito de avisá-la.



— Não. É melhor nos encontrarmos aqui ao meio-dia. Sei que posso com contar com você.



Ela ofereceu o seu sorriso mais insinuante. André experimentou algum excitamento, não apenas por causa do sorriso, mas também porque agora, independente do que viesse a acontecer, ela ficaria acorrentada a ele para sempre.



— Aqueles caracteres, Angelique, os que estavam escritos no lençol... lembra-se como eram?



— Claro — respondeu ela, surpresa com a mudança de assunto. — Por quê?



— Pode desenhá-los para mim? Talvez eu os reconheça e descubra um significado.



— Foram desenhados na colcha, não no lençol. Com o sangue dele. — Angelique respirou fundo, estendeu a mão, pegou a caneta, mergulhou no tinteiro — Esqueci de lhe contar uma coisa. Quando acordei, constatei que desaparecera a pequena cruz que usava desde criança. Procurei por toda parte, mas não a encontrei.



— Ele roubou?



— Presumo que sim. Mas nada mais. Havia algumas jóias, que não foram tocadas. Não eram muito valiosas, porém valiam mais do que a cruz.



O pensamento de Angelique estendida naquela cama, inerte, a camisola cortada do pescoço à bainha, a mão do estuprador arrancando a corrente, o luar faiscando na cruz, antes ou depois, rapidamente se tornou real e erótico, vibrando em André. Seus olhos percorreram o corpo de Angelique, debruçada sobre a mesa, alheia a seu desejo.



— Aqui está — disse ela, estendendo o papel.



André olhou, os raios do sol se refletindo no anel de sinete de ouro que sempre usava. Os caracteres não se relacionavam com qualquer coisa que ele conhecia.



— Desculpe, mas nada significam para mim, nem mesmo parecem chineses... chineses ou japoneses, a escrita é a mesma.



Ele teve uma idéia súbita, virou o papel e ficou boquiaberto.





Tokaidô... é esse o significado! — A cor se esvaiu do rosto de Angelique enquanto André acrescentava: — Copiou ao contrário. Tokaidô junta tudo. Ele queria que você soubesse, que toda a colônia soubesse, o que teria acontecido se contasse a alguém o que ocorreu. Mas por quê?



Tremendo toda, ela levou os dedos às têmporas.



— Não sei. Talvez... não sei. Ele deve estar morto a esta altura. Monsieur Struan acertou-lhe um tiro. Ele já deve ter morrido.



André hesitou, apreensivo, avaliando as razões contra e a favor.



— Já que partilhamos tantos segredos, e é evidente que você sabe como guardá-los, creio que outro se torna necessário agora.



Ele falou sobre Hoag e a operação, arrematando:



— Não foi culpa de Hoag, que não tinha como saber. É irônico, os nossos médicos aconselharem a não se contar nada a você, para poupá-la de mais angústias.



— É por causa de Babcott e seu opiato que me encontro nesta situação — murmurou Angelique, a voz assustando-o. — Quer dizer que o homem está vivo?



— Não sabemos. Hoag disse que ele não tinha muita chance. Mas por que aquele demônio queria que seu crime fosse conhecido, Angelique?



— Há outros segredos sobre esse horror que você conheça e eu ainda ignore?



— Não. Por que ele queria que todos soubessem? Bravata?



Angelique contemplou por um longo momento os caracteres que desenhara. Imóvel, a não ser pelos seios, que subiam e desciam com a regularidade da respiração. Depois, sem dizer mais nada, ela saiu. Fechou a porta sem fazer barulho.



André balançou a cabeça, espantado, olhando para o papel.











Tyrer estava no pequeno bangalô ao lado da legação britânica, que partilhava com Babcott, praticando caligrafia com Nakama, o nome pelo qual conhecia Hiraga.



— Por favor, dê-me o japonês para: hoje, amanhã, o dia seguinte, a próxima semana, o próximo ano, os dias da semana e os meses do ano.



— Sim, Taira-san.



Com todo cuidado, Hiraga disse uma palavra japonesa, observou Tyrer escrevê-la, foneticamente, em letras romanas. Depois, Hiraga escreveu os caracteres no espaço ao lado, e tornou a observar, enquanto Tyrer os copiava.



— Você bom aluno. Sempre usa mesma ordem para traços, fácil, assim não esquecer.



— Estou começando a compreender. Obrigado. Você tem sido de grande ajuda.



Tyrer sentia-se satisfeito, gostava de escrever, ler e aprender... e ensinava em troca, notando que Nakama era muito inteligente, absorvia tudo bem depressa. Trabalhou toda a lista com ele e disse, ao final:



— Ótimo. Obrigado. Agora, por favor, procure Raiko-san e confirme meu encontro para amanhã.



— Confirme, por favor?



— Pergunte se meu encontro é certo.



— Ah, entender. — Hiraga coçou o queixo, já escuro da barba da noite para o dia. — Eu ir agora, confirmar.



— Voltarei depois do almoço. Por favor, esteja aqui, para podermos praticar mais conversação. Quero que me fale mais coisas sobre o Japão. Como se diz isso em japonês?



Hiraga pronunciou as palavras. Tyrer anotou-as foneticamente num caderno, agora repleto de palavras e frases, repetiu-as várias vezes, até se sentir satisfeito. Já ia dispensar Nakama quando se lembrou de uma coisa:





— O que é um roninl





Hiraga pensou por um momento, depois explicou da maneira mais simples que podia. Mas não disse nada sobre os shishi





— Quer dizer que você é um ronin, um proscrito?





Hai.



Pensativo, Tyrer agradeceu e deixou-o ir embora. Reprimiu um bocejo. Dormira mal à noite passada, seu mundo ao avesso com a inesperada rejeita de Raiko.



Que se dane Raiko, que se dane Fujiko, pensou ele, pondo a cartola, a fim de descer a High Street para um almoço leve no clube. Que se dane o aprendizado de japonês, que se dane tudo, minha cabeça dói, e nunca, mas nunca mesmo aprenderei essa língua horrivelmente complicada.



— Não seja ridículo! — disse ele, em voz alta.



Claro que vai aprender, conta com Nakama e André, dois bons mestres, e esta noite terá um excelente jantar, uma garrafa de champanhe, com alguém alegre e depois para a cama. E não censure Fujiko, pois em breve dormirei com ela de novo Oh, Deus, espero que sim!



O dia era agradável e a baía se encontrava apinhada de navios. Os mercadores convergiam para o clube.



— Olá, André. É um prazer vê-lo. Quer almoçar comigo?



— Não, obrigado.



Poncin nem parou.



— Qual é o problema? Você está bem?



— Não há problema nenhum. Vamos deixar para outra ocasião?



— Que tal amanhã?



André não costumava ser tão brusco.



— E eu queria lhe perguntar o que devo...



— Almoçarei com você, Phillip, se me permitir — disse McFay.



— Claro, Jamie. Parece de ressaca, meu caro.



— E estou mesmo. Você também parece. Foi uma festa e tanto.



— É verdade. Como está Malcolm?



— Não muito bem. É uma das coisas que eu queria conversar com você. Encontraram uma mesa vaga, na sala enfumaçada, abafada e apinhada, todos de sobrecasaca, como sempre.



A mesa era de canto. Criados chineses carregavam bandejas com rosbife, empadão de galinha, empadão de peixe, sopas diversas, pastéis da Cornualha, chouriço de Yorkshire, porco salmourado, pratos com caril e tigelas de arroz a moda chinesa, assim como uísque, rum, gim, champanhe, vinhos branco e tintos e canecas de cerveja. Havia mata-moscas ao lado de cada prato. McFay usou um assim que sentou.



— Eu queria lhe pedir que conversasse com Malcolm, não como se fosse uma sugestão minha, dizendo-lhe que seria uma boa idéia voltar a Hong Kong assim que for possível.



— Ora, Jamie, tenho certeza de que ele vai querer voltar logo, sem que diga qualquer coisa. Além do mais, ele não me escutaria; e por que deveria? Qual é o problema?



— A mãe dele. Receio que já não seja mais segredo, mesmo assim, não passe adiante. Ela manda uma carta por todos os navios de correspondência ordenando que eu o despache de volta... e não há nada que eu possa fazer, já que Malcolm não me dá a menor atenção. Quando a notícia da festa e de seu noivado f nnal chegar a Hong Kong... — McFay revirou os olhos. — A merda vai se espalhar daqui a Iedo.



Apesar da seriedade de McFay, Tyrer não pôde deixar de rir.



— Já se espalhou e está fedendo como nunca antes. O jardim da legação se encontra coberto por uma camada de esterco.



— É mesmo? — O escocês franziu o rosto, farejou o ar. — Não havia notado. Como está o caril? — perguntou a alguém ao lado.



— Ótimo, Jamie. — O homem, Lunkchurch, cuspiu um pedaço de osso de galinha no chão coberto por serragem. — Já estou no segundo.



Tyrer fez sinal para um dos garçons que passava, mas o jovem dentuço evitou deliberadamente olhar para ele.





— Ei, Dew neh loh moh, garçom! — berrou McFay, irritado. — Bastante caril, depressa!



Houve risos, gritos e vaias pelas imprecações em chinês, por parte dos mercadores, e olhares contrariados do padre do batalhão Highland, que almoçava com seu equivalente anglicano dos dragões. Um prato de rosbife malpassado foi posto na frente de McFay.



— Pronto, muito, e bem depressa, hem? — disse o jovem criado, radiante. Exasperado, McFay empurrou o prato de volta.



— Isto é rosbife, pelo amor de Deus! Eu quero caril! Vá buscar CARIL!



— Quero empadão de galinha — disse Tyrer.



Resmungando, o criado voltou à cozinha. Assim que passou pela porta, caiu na gargalhada, em meio ao pandemônio que reinava ali.





Fay da Casa Nobre explodiu como um barril de fogos de artifício quando empurrei o rosbife por baixo do nariz bulboso, fingindo que pensava que era caril. — Ele segurava a barriga no riso. — Ah, quase me caguei todo! Provocar os demônios estrangeiros é mais divertido do que fornicar!



Outros riram com ele, até que o chefe da cozinha esbofeteou-o.





— Escute aqui, seu pequeno fornicador fedorento... e todos vocês também... não provoquem os demônios estrangeiros da Casa Nobre até que Chen da Casa Nobre diga que podem. E agora leve depressa o caril de Fay da Casa Nobre, e não cuspa no prato ou vou servir a ele os seus testículos grelhados.



— Cuspir na comida dos demônios estrangeiros não tem nada demais, honorável chefe da cozinha — murmurou o jovem, a cabeça quase arrancada dos ombros. Ele pegou, também, um prato de pastelão de galinha e saiu correndo, obediente, o prato de caril e uma tigela de arroz foram jogados na frente de McFay. — Caril, amo, como pediu.



O jovem afastou-se apressado, a cabeça dolorida, mas ainda assim contente; não ousara desobedecer ao chefe da cozinha, mas mantivera o polegar imundo no caril durante todo o percurso.



— Um desgraçado grosseiro — disse Jamie. — Dez dólares contra um centavo como o patife cuspiu na comida ao trazê-la.



— Se tem tanta certeza, por que gritou com ele? — indagou Tyrer, enquanto começava a cortar o pastelão do tipo Melton-Mowbray, com sua crosta grossa



— Ele precisa disso, todos precisam, e um bom chute no rabo de vez em quando. — Com prazer, McFay pôs-se a revolver o caril com carneiro e batata amarelada e espesso como sopa de aveia, glóbulos de gordura boiando na superfície. — Outra coisa. Ouvi dizer que contrabandeou um samurai de Iedo que fala um pouco de inglês.



Tyrer quase engasgou com um pedaço de galinha.



— Mas que absurdo!



— Então por que ficou quase roxo? Lembre-se de que está falando comigo McFay, da Casa Nobre. Como espera manter esse segredo por aqui, Phillip? Vocês foram ouvidos. — O suor pontilhava sua testa, do calor do caril, a mão se erguia de vez em quando para afugentar as moscas. — Isto está quente o suficiente para fritar os colhões... e muito gostoso. Quer experimentar um pouco?



— Não, obrigado.



Feliz, McFay continuou a comer. Depois, entre bocados, a voz se tornou dura, embora o tom ainda fosse confidencial:



— A menos que me fale francamente sobre ele, meu caro, e será uma conversa sigilosa... tem a minha palavra... partilhe tudo, transmita todas as informações, darei a notícia aqui e agora... para ele.



A colher apontava para Nettlesmith, o editor do Yokohama Guardian, que já os observava, interessado. Um respingo de caril caiu na toalha.



— Se Wee Willie ler sobre o seu segredo no jornal, vai ter uma explosão como você nunca viu.



Toda a fome de Tyrer desaparecera. Nauseado, ele murmurou:



— Hum... é verdade, ajudamos um dissidente a escapar de Iedo. Isso é tudo o que posso dizer. No momento, ele se encontra sob a proteção de sua majestade britânica. Lamento, mas não posso dizer mais nada, pela lei dos segredos oficiais.



McFay fitou-o com uma expressão astuta.



— Proteção de sua majestade britânica, hem?



— Isso mesmo. Em boca fechada não entra mosca. Não posso falar mais nada. Segredos de Estado.



— Interessante... — McFay terminou o prato e pediu uma segunda porção — Mas, em troca, não direi a ninguém.



— Desculpe, mas jurei que guardaria segredo. — Tyrer também suava, uma constante na Ásia, exceto durante os meses de inverno e primavera, e também porque seu segredo era conhecido. Mesmo assim, sentia-se satisfeito com a maneira como lidava com Jamie, sem dúvida o mais importante dos mercadores de Iocoama. — Tenho certeza que compreende.



McFay balançou a cabeça, cortês, concentrado no caril.



— Compreendo muito bem, meu caro. Assim que eu acabar aqui, Nettlesmith terá a notícia exclusiva.



— Não se atreveria! — Tyrer estava chocado. — Os segredos de...



— Estou pouco ligando para os segredos de Estado. Primeiro, não acredito em você, segundo, mesmo que assim fosse, temos o direito de saber, porque nós somos o Estado, e não um bando de diplomatas imprestáveis, que nem sabem perceber a direção de um peido!



— Ei, escute aqui...



— Estou escutando. Partilhe tudo, Phillip, ou leia a notícia na edição da tarde.



O sorriso radiante de McFay era seráfico, enquanto absorvia o resto do molho com um pão e o consumia. Ele arrotou, empurrou a cadeira para trás e fez menção de se levantar.



— Se é assim que você quer...



— Espere!



— Tudo? Concorda em me contar tudo?



Atordoado, Tyrer acenou com a cabeça.



— Se jurar que vai manter em segredo.



— Ótimo. Mas não aqui. Meu escritório é mais seguro. Vamos embora. Ao passar por Nettlesmith, ele perguntou:



— Quais são as novidades, Gabriel?



— Leia a edição da tarde, Jamie. Guerra em breve na Europa, terrível na América, guerra fermentando aqui.



— As mesmas coisas de sempre. Bom, até...



— Boa tarde, Sr. Tyrer.— Os olhos astutos de Nettlesmith desviaram-se para ele, enquanto coçava a cabeça, pensativo, para depois voltar sua atenção para McFay. — Recebi uma cópia adiantada do último capítulo de Grandes Esperanças.



Jamie parou no mesmo instante. Phillip também.



— Oh, Deus, não acredito!



— Dez dólares e a promessa de uma exclusiva.



— Que exclusiva?



— Quando tiver alguma. Confiarei em você.



Outra vez os olhos astutos se deslocaram para Tyrer, que tentou permanecer impassível.



— Esta tarde, Gabriel? Sem falta?



— Combinado. Por uma hora, para que não possa copiar... é exclusividade minha. Custou-me quase todos os favores que tenho a receber na Fleet Street para para roubar.



— Dois dólares?



— Oito, mas sua hora depois de Norbert.



— Minha última oferta, oito... e leio primeiro?



— Mais a exclusiva? Negócio fechado. É um cavalheiro e um sábio, Jamie. Estará em seu escritório às três horas.











Através de sua janela aberta, Tyrer ouviu o sino de navio no escritório do mestre do porto badalar oito vezes. Tinha os pés em cima da mesa e tirava um cochilo, os exercícios de caligrafia da tarde esquecidos. Não havia necessidade de olhar para o relógio na cornija da lareira. O cérebro lhe disse que eram quatro horas da tarde. Agora, a bordo dos navios, começaria o quarto de vigia, um período de duas horas com o primeiro de quatro às seis horas da tarde, o segundo de seis às oito da noite, depois viriam os turnos normais de quatro horas, até as quatro da tarde segundo Marlowe explicara que os quartos de vigia haviam sido instituídos para permitir uma rotação dos tripulantes.



Tyrer bocejou e abriu os olhos, pensando. Não muito mais que meio ano atrás eu nunca ouvira falar de quartos de vigia, jamais estivera num navio de guerra e agora posso saber as horas pelos sinos de navio com a mesma facilidade que teria se olhasse para um relógio.



O relógio na cornija da lareira bateu quatro horas. Absolutamente pontual Dentro de meia hora, vou me encontrar com Sir William. Os suíços, sem dúvida podem fazer cronômetros melhores do que os nossos. Onde Nakama se meteu? Será que ele fugiu? Já deveria ter voltado há horas. O que Sir William quer? Espero que não tenha ouvido falar de meu segredo. Torço para que deseje apenas que mais despachos sejam copiados. É terrível que minha caligrafia seja a melhor da legação; afinal, sou um tradutor, não um mero amanuense! Droga, droga, droga!



Ele se levantou, cansado, arrumou suas coisas, começou a lavar as mãos na bacia, tirando a tinta dos dedos. Uma batida na porta.



— Entre.



Por trás de Hiraga, havia um sargento e um soldado britânicos, ambos com baionetas coladas, ambos furiosos. Hiraga estava todo machucado, desgrenhado, pálido de raiva, quase nu, sem chapéu, sem turbante, o quimono de aldeão em farrapos. O sargento empurrou-o para a frente, com a baioneta apontada.



— Nós o pegamos pulando a cerca, senhor. Tivemos a maior dificuldade para dominá-lo. Ele tem um passe, assinado pelo senhor. É autêntico?



— É, sim. — Consternado, Tyrer adiantou-se. — Ele é um hóspede aqui, sargento, um hóspede de Sir William e meu. É professor de japonês.





— Professor, hem? — murmurou o sargento, sombrio. — Pois diga ao patife que professores não pulam cercas, não tentam fugir, não usam os cabelos cortados como samurais, não assustam as pessoas, nem lutam como um saco cheio de gaws selvagens... tenho um homem com o braço quebrado e outro com o nariz arrebentado. Na próxima vez em que o surpreendermos, não seremos tão cuidadosos.



Os dois soldados se retiraram. Tyrer fechou a porta, foi até o aparador, pegou um copo com água.



— Tome aqui.



Hiraga recusou-o, sufocado de raiva.





— Por favor. Prefere saquê ou cerveja?





Iyé.



— Por favor... mas sente e me conte o que aconteceu.



Hiraga começou a dar uma explicação em japonês.





Gomen nasai, Ingerish dozo. Desculpe, inglês, por favor.



Com algum esforço, Hiraga passou a falar em inglês e disse, com longas e iradas pausas entre as palavras:



— Muitos guardas, portão e ponte. Passar pântano, pela água, pular cerca. Idados me ver. Eu parar, inclinar, estender mão pegar passe, eles me jogar no chão. Lutar, mas ser muitos.



Ele seguiu com outro fluxo de palavras venenosas, em japonês, promessas de vingança. Esgotado o paroxismo, Tyrer disse:



— Desculpe, mas a culpa é sua...



Tyrer recuou, numa reação involuntária, quando Hiraga virou-se para ele.





— Pare com isso! — exclamou Tyrer, irritado. — O soldado tinha razão. Os samurais assustam as pessoas. Sir William lhe disse para tomar cuidado e eu também.



— Eu estava sendo polido, apenas fazendo o que era correto! — exclamou Hiraga, em japonês, furioso. — Aqueles macacos grosseiros me atacaram quando eu ia mostrar o passe, tinha dificuldade para encontrar. Macacos, vou matar todos eles!



O coração de Tyrer batia forte, podia sentir o gosto enjoativo do medo em sua boca.



— Escute, precisamos resolver esse problema o mais depressa possível. Quando Sir William souber do incidente, pode expulsá-lo da colônia. Nós dois temos que solucionar isso, entende?





Iyé! O que ser solucionar, por favor?



Tyrer ficou agradecido por ouvir o “por favor” e conteve seu pavor. Era evidente que aquele sujeito era tão violento, perigoso e impetuoso quanto qualquer outro samurai do Japão. Graças a Deus que ele não está armado.



— “Solucionar” significa resolver, chegar a um acordo. Temos de solucionar este problema, você e eu, como você pode viver aqui em segurança. Entendeu?





Hai. So desu ka! Wakarimasu. Taira-san e eu solucionar problema. — Hiraga controlou sua fúria. — Por favor, o que sugerir? Passe não bom para soldados. Homens que me ver, me odiar. Como solucionar problema?



— Primeiro... primeiro há um excelente e antigo costume inglês. Sempre que temos de solucionar um problema sério, tomamos chá.



Hiraga manteve-se impassível. Tyrer tocou uma sineta e pediu chá a Chen, o garoto número um, que fitou Hiraga desconfiado, com um enorme cutelo escondido nas costas.



Enquanto esperavam, Tyrer recostou-se na cadeira, ficou olhando pela janela, com uma expressão solene, desesperadamente querendo que o outro homem lhe falasse sobre Fujiko, mas também bem-educado demais para um interrogatório sobre assunto tão importante- Mas que desgraçado, pensou ele, devia me dar a informação sem que eu peça, sabendo que me sinto ansioso, em vez de me deixar esperando. Preciso lhe ensinar os costumes ingleses, a não perder o controle e os soldados tinham toda razão. Preciso convertê-lo num cavalheiro inglês. Mas como? E devo me preocupar também com o miserável do Jamie que é esperto demais.



Depois do almoço, haviam ido ao escritório de McFay, que o exortara a tomar um conhaque. Em poucos minutos, Tyrer descobrira que já lhe contara tudo.



— Puxa, Phillip, você é brilhante! — dissera-lhe McFay, com um entusiasmo sincero. — Esse homem será uma verdadeira mina de ouro, se lhe fizerem perguntas certas. Ele disse de onde era?





— De Choshu. Acho que foi isso que ele disse.



— Eu gostaria de conversar com ele... em particular.



— Se ele falar com você, outros acabarão descobrindo, e a notícia... a notícia vai se espalhar por toda parte.





— Se eu sei, Norbert sabe, e aposto que o Bakufu também sabe... não são tolos. Lamento, mas não há segredos aqui. Quantas vezes devo lembrá-lo?



— Está bem, falarei com Nakama. Mas só se eu estiver presente quando conversarem.



— Ora, Phillip, isso não é necessário e você tem muito o que fazer. Não me agradaria desperdiçar seu tempo.



— Sim ou não?



McFay suspirara.



— Você é um homem difícil, Phillip. Está bem.



— E também se eu puder ler o último capítulo, de graça... amanhã, por exemplo. Acerte tudo com Nettlesmith.



McFay protestara:



— Se eu tenho de pagar a quantia espantosa de oito dólares, você também tem de contribuir!



— Neste caso, nada de entrevista e comunicarei tudo a Sir William.



Ele sorriu para si mesmo, recordando a expressão azeda de McFay, quando seus pensamentos foram interrompidos por Chen:



— Chá, amo, muito, depressa, depressa.



Tyrer voltou a se concentrar em Nakama. Chen pôs a bandeja na mesa, não mais carregando o cutelo, embora o deixasse ao seu alcance fácil, no outro lado da porta. Tyrer serviu o chá para os dois, acrescentou leite e açúcar e tomou um gole da mistura escura e escaldante, com intensa satisfação.



— Assim é melhor. — Hiraga imitou-o. Teve de recorrer a toda a sua força de vontade para não cuspir a beberagem quente, e engolir o líquido de gosto mais horrível que já experimentara na vida.



— Bom, não é? — disse Tyrer, com um sorriso radiante, enquanto terminava sua xícara. — Quer mais?



— Não, obrigado. Costume inglês, sim?



— Inglês e americano, sim, não francês. Os franceses... — Tyrer deu de ombros- — Eles não têm o menor gosto.





Ah, so ka? — Hiraga percebera o ligeiro desdém. — Francês não igual a inglês?



Ele fez a pergunta com fingida inocência, sua fúria contida para mais tarde.



— Claro que não, nem um pouco. Eles vivem no continente, nós temos uma Iha-nação, como vocês. Costumes diferentes, comidas diferentes, governo diferente, tudo diferente, e ainda por cima a França é uma pequena potência, em comparação à Inglaterra.



Tyrer pôs mais açúcar, mexeu, satisfeito consigo mesmo porque a raiva de Nakama parecia ter se dissipado.



— Somos muito diferentes.



— Ser mesmo? Inglês e francês fazer guerra?



Tyrer riu.



— Dezenas de vezes, ao longo dos séculos, mas também aliados em outras guerras... fomos aliados no último conflito.



Ele falou brevemente sobre a Criméia, depois sobre Napoleão Bonaparte, a Revolução Francesa e o atual imperador, Luís Napoleão.



— Ele é sobrinho de Bonaparte, um absoluto bufão. Bonaparte não era um bufão, mas sim um dos homens mais diabólicos que já nasceram, responsável por centenas de milhares de mortes. Se não fosse por Wellington, Nelson e nossos soldados, ele teria dominado o mundo. Está compreendendo tudo isso?



Hiraga acenou com a cabeça.



— Não todas palavras, mas compreender. — Ele absorvera a essência e sentia-se espantado, não podia entender por que um grande general deveria ser considerado diabólico. — Por favor, continuar, Taira-san.



Tyrer continuou a falar por algum tempo, mas logo encerrou a aula de história e declarou:



— Agora, vamos ao seu problema. Quando deixou a Yoshiwara, os guardas de lá não criaram problemas?



— Não. Fingir levar legumes.



— Boa idéia. Ah, por falar nisso, falou com Raiko-san?



— Sim. Fujiko não possível amanhã.



— Ahn... Não importa.





Tyrer deu de ombros, morrendo por dentro. Mas Hiraga notou o profundo depontamento e saboreou-o. Sonno-joi, pensou ele, sombrio. Tivera de comprar pessoalmente os serviços de Fujiko, mas não se importava. Raiko dissera: “Já que você paga bem, embora não os preços dos gai-jin, eu concordo e ele deve deitar com ela no dia seguinte. Não quero que encontre outra...”



Tyrer estava dizendo:



— Nakama-san, a única maneira de você poder ficar seguro aqui é não sair. Não vou mais enviá-lo à Yoshiwara. Deve permanecer aqui, dentro da legação.



— Melhor, Taira-san, eu ficar aldeia, encontrar casa segura. Dentro cerca mais seguro. Cada dia vir amanhecer ou quando quiser, ensinar e aprender Taira-san ser muito bom sensei. Isso solucionar problema, sim?



Tyrer hesitou, não querendo afrouxar o controle, mas também não desejando mais tê-lo tão perto.



— Está bem, mas se primeiro você me mostrar o local exato e não se mudar sem me avisar.



Uma pausa, Hiraga acenou com a cabeça em concordância e disse:



— Eu concordar. Por favor, dizer soldados bom eu ficar aqui e aldeia?



— Claro, farei isso. Tenho certeza que Sir William vai concordar.



— Obrigado, Taira-san. Dizer soldados também se atacar de novo eu virar katana.



— Não fará nada disso! Eu proíbo, Sir William já proibiu! Nada de armas nada de espadas!



— Por favor, dizer soldado não atacar, por favor.



— Está bem, farei isso, mas se usar espadas aqui será morto, eles atirarão em você!



Hiraga deu de ombros.





— Por favor, não atacar. Wakatta?





Tyrer não respondeu. Wakatta era a forma mais imperiosa de wakarimasu ka: Você compreende?





Domo.



Com uma violência contida, que Tyrer quase pôde farejar, Nakama tornou a agradecer e disse que voltaria ao amanhecer para levá-lo à casa segura, depois estaria pronto para responder a quaisquer perguntas que ele quisesse fazer. Fez uma reverência rígida, que Tyrer retribuiu da mesma forma. E virou as costas para sair. Foi só então que Tyrer percebeu a extensão das equimoses por todas as suas costas e pernas.











O vento tornou-se instável naquela noite, o mar ficou encapelado.



A esquadra se encontrava ancorada na baía, pronta para dormir, o primeiro turno da noite, que começava às oito horas, já se encontrava a postos. Mais de cinqüenta homens ocupavam várias celas, por diversas violações, e seis, com graus variados de medo, preparavam diligentes as chibatas de nove tiras para as cinqüenta chibatadas que deveriam receber ao amanhecer, por conduta prejudicial à boa ordem e disciplina militar: um por ameaçar torcer o pescoço de um contramestre sodomita, três por briga, um por roubar uma ração de rum, outro por insultar um oficial.



Nove sepultamentos no mar haviam sido marcados para o amanhecer.



As enfermarias de todos os navios se achavam superlotadas com Biaru-’ sofrendo de disenteria, diarreia, crupe, coqueluche, escarlatina, sarampo, doenças venéreas, fraturas diversas, hérnias, e assim por diante, tudo rotina, à exceção de quatorze perigosos, com varíola, a bordo da nave capitânia. Sangrias e Punções violentas eram as curas recomendadas para a maioria das doenças — Médicos sendo também barbeiros —, exceto pelos poucos pacientes afortunados que recebiam a tintura do Dr. Collis, que ele inventara durante a guerra da Criméia, que reduzia as mortes por disenteria em três quartos: seis gotas do líquido escuro, misturado em ópio, e os intestinos começavam a se acalmar.



Por toda a colônia, as pessoas se preparavam para o jantar e a parte do dia guardada com mais ansiedade: a conversa depois, sobre os rumores ou notícias do dia — graças a Deus que o navio de correspondência deve chegar amanhã — desfrutando a camaradagem, rindo dos escândalos mais suculentos, falando do baile, a tensão dos negócios, se haveria mesmo guerra ou o último livro que alguém lera, uma nova história engraçada ou um poema que alguém criara, aventuras em tempestades, nas terras geladas ou em desertos, viagens por estranhos lugares do império — Nova Zelândia, África e Austrália eram quase inexploradas, a não ser pelas áreas costeiras — ou o oeste selvagem da América e Canadá, histórias da corrida do ouro na Califórnia em 1.848, de visitas à América espanhola, francesa ou russa —, Dmitri numa ocasião navegara pela costa oeste americana, em grande parte desconhecida, de San Francisco para o norte, até o Alasca, que pertencia aos russos — cada homem relatando as coisas estranhas que vira, as mulheres que possuíra, ou as guerras que testemunhara. Bons vinhos, outras bebidas, cachimbos e tabaco da Virgínia, os últimos drinques no clube, depois as orações e a cama.



Uma noite normal no império.



Alguns anfitriões especializavam-se em corais ou na leitura de poemas e trechos de algum romance cobiçado. Nesta noite, na festa muito exclusiva de Norbert Greyforth, com todos os convidados jurando segredo, houve uma leitura especial do último capítulo de Grandes Esperanças, pela cópia proibida que ele conseguira fazer em sua hora permitida, usando todos os cinqüenta amanuenses da firma.



— Se isso vazar, todos vocês serão demitidos — ameaçara ele.



No clube, ainda se falava sobre o baile da noite anterior, e se aventava a possibilidade de promover outro.



— Por que não uma festa semanal? Peitos-de-Anjo pode girar a saia e me mostrar o calção por baixo todos os dias da semana, junto com Naughty Nellie Portheringill...



— Pare de chamá-la de Peitos-de-Anjo, pelo amor de Deus!



— Ora, ela tem peitos de anjo e por isso é Peitos-de-Anjo!



Aos gritos e apupos, a briga começou, fizeram-se apostas, e os dois oponentes, Lunkchurch e Grimm, outro mercador, se atracaram e tentaram deixar um ao outro desacordado.



Quase em frente, no lado do mar, ficava o prédio de alvenaria da legação Britânica, com um mastro no pátio, jardins, todo cercado, como a maioria das construções importantes, por uma cerca defensável. Sir William já se encontrava vestido para o jantar, assim como seu convidado principal, o almirante, e ambos estavam furiosos.



— Os desgraçados! — bradou o almirante, o rosto vermelho ainda vermelho do que o habitual, indo até o aparador para se servir de outra grande dose de uísque. — Estão além da compreensão!



— Totalmente.





Sir William largou o pergaminho e lançou um olhar furioso para Johan Tyrer, parados à sua frente. O pergaminho fora trazido uma hora antes por nosso mensageiro, enviado pelo governador japonês, em nome do Bakufu.



— Muito urgente, sinto muito.



Em vez de escrito em holandês, como era habitual, estava em caracteres com a concordância de Seratard, Johann convocara um dos missionários jesuíta franceses visitantes e produzira uma tradução aproximada, que Tyrer converteria para o inglês. A mensagem era do Conselho de Anciãos, assinada por Anjo:



Comunico por despacho. Por ordem do xógum, recebida de Quioto, a data provisória da reunião, dentro de dezenove dias, com os roju, e a reunião no mesmo dia com o xógum, serão adiadas por três meses, já que sua majestade não voltará até então. Assim, envio este aviso primeiro, antes de realizar uma conferência para acertar os detalhes. A segunda parcela do presente fica adiada por trinta dias. Respeitosa e humilde comunicação.



— Johann — disse Sir William, a voz gelada—, não acha que é um tratamento grosseiro, infame e absolutamente vil?



Cauteloso, o suíço respondeu:



— Nem tanto assim, senhor.



— Pelo amor de Deus, passei dias negociando, ameaçando, perdendo o sono, renegociando, até eles jurarem pela cabeça do xógum que se reuniriam em Iedo, no dia 5 de novembro, o encontro com o xógum no dia seguinte, e agora isto!



Sir William tomou um gole do seu drinque, engasgou e praguejou por quase cinco minutos, em inglês, francês e russo, os outros fitando-o com admiração, pelas vulgaridades esplendidamente descritivas.



— Tem toda razão — declarou o almirante. — Tyrer, Sirva outro gim para Sir William.



Tyrer obedeceu no mesmo instante. Sir William pegou seu lenço, assoou o nariz, aspirou um pouco de rapé, espirrou, tornou a assoar o nariz.



— A sífilis para todos eles!



— O que propõe, Sir William? — indagou o almirante, evitando que transparecesse em seu rosto a satisfação por mais essa humilhação de seu adversário.



— É claro que responderei imediatamente. Por favor, mande a esquadra para Iedo amanhã, a fim de bombardear as instalações portuárias que eu indicar.



Os olhos azuis do almirante se contraíram.



— Creio que devemos discutir esse assunto em particular. Cavalheiros. Tyrer e Johann encaminharam-se para a porta.



— Não! — protestou Sir William, muito tenso. — Johann, você pode sair. Espere lá fora, por favor. Tyrer é meu assistente pessoal e vai ficar. O pescoço do almirante ficou vermelho, mas ele não disse nada, até Johann fechar a porta.



— Conhece muito bem a minha posição sobre o bombardeio. Até chegar uma ordem expressa da Inglaterra, não determinarei nenhum bombardeio, a menos que seja atacado.



— Sua posição torna impossíveis as negociações. O poder vem do cano de nossos canhões e de mais nada!



— Concordo. Só discordamos sobre o momento oportuno.



— A decisão sobre o melhor momento cabe a mim. Portanto, faça a gentileza de ordenar apenas um pequeno canhoneio, vinte balas, nos alvos que eu indicar.



— Já disse que não! Será que não fui bastante claro? Quando a ordem chegar, incendiarei todo o Japão, se necessário, mas não antes.



Foi a vez de Sir William ficar vermelho.



— Sua relutância em apoiar a política de sua majestade da melhor maneira possível é inacreditável.



— Parece-me que o verdadeiro problema é o engrandecimento pessoal. Que importância podem ter uns poucos meses? Nenhuma... exceto pela prudência.



— A prudência que se dane! — berrou Sir William, furioso. — Claro que receberemos instruções para agir como eu, repito, como eu determinar! É imprudente protelar. Pela correspondência de amanhã, enviarei um pedido para que seja substituído por um oficial mais afinado com os interesses de sua majestade... e treinado em batalha!



O almirante ficou roxo. Só umas poucas pessoas sabiam que nunca participara, em toda a sua carreira, de qualquer combate, em terra ou no mar. Assim que recuperou o controle, ele disse:



— É um privilégio que lhe cabe, senhor. Enquanto isso, até meu substituto chegar, ou o seu, eu comando as forças de sua majestade no Japão. Boa noite, senhor.



Ele saiu, batendo a porta.



— Um patife grosseiro — murmurou Sir William, depois constatando, surpreso, a presença de Tyrer, paralisado pelas circunstâncias. — É melhor ficar de boca fechada, Tyrer. Eles lhe ensinaram isso?



— Sim, senhor.





— Ainda bem. — Sir William tratou de desviar sua mente do nó górdio do Bakufu, roju e a intransigência do almirante, relegando tais problemas para mais tarde. — Sirva-se de um xerez, Tyrer, pois parece que está precisando. Jante conosco, já que o almirante recusou o convite. Joga gamão?



— Sim, senhor.



— Antes que eu me esqueça, que história é essa de uma escaramuça entre um samurai de estimação e o exército britânico?





Tyrer relatou os detalhes e sua solução, mas não falou sobre a ameaça do sensei de pegar suas espadas, sentindo-se mais culpado do que nunca por esconder fatos do ministro.



— Eu gostaria de mantê-lo aqui, senhor... com sua aprovação, é claro. É um mestre excelente e creio que nos será muito útil.



— Duvido muito e é ainda mais importante que não haja novos problemas aqui. Não há como prever o que esse homem fará. Pode se tornar uma víbora no nosso ninho. Terá de ir embora amanhã.





— Mas ele já me forneceu algumas informações muito valiosas, senhor! —protestou Tyrer, reprimindo sua súbita aflição. — Por exemplo, contou-me que o xógum é apenas um menino, mal completou dezesseis anos, e não passa de um títere do Bakufu, o verdadeiro poder pertence ao imperador... ele usou o títere do micado várias vezes... que vive em Quioto.



— Deus Todo-Poderoso! — explodiu Sir William. — Isso é mesmo verdade? Tyrer já ia revelar que Hiraga falava inglês, mas conteve-se a tempo.



— Ainda não tenho certeza, senhor. Não tive tempo de interrogá-lo direito pois é um homem difícil, mas creio que é verdade.



Sir William sentia-se ansioso com as implicações da informação.



— O que mais ele disse?





— Apenas comecei, e essas coisas demoram, senhor, como deve compreender. — O excitamento de Tyrer era cada vez maior. — Mas já me falou sobre os ronin. A palavra significa “onda”, senhor. São chamados de ronin porque são livres como as ondas. São todos samurais, mas proscritos por diversas razões. A maioria é adversária do Bakufu, como Nakama. Acham que usurparam o poder do midaco... oh, desculpe, micado, como falei.





— Espere um pouco, Tyrer. Fale mais devagar. Temos bastante tempo. O que é exatamente um ronin?



Tyrer contou.





— Por Deus! — Sir William pensou por um momento. — Portanto, os ronin são samurais que foram proscritos porque seu rei caiu em desgraça, ou proscritos por seus reis, porque cometeram crimes reais ou imaginários, ou proscritos voluntários, que estão se agrupando para derrubar o governo central do xógum títere?



— Sim, senhor. Ele diz que o governo é ilegal.



Sir William tomou o último gole de seu gim, acenando com a cabeça para si mesmo, atônito e exultante, enquanto repassava tudo em sua mente.





— Então Nakama é um ronin, o que você chama de um dissidente e chamaria de um revolucionário?



— Sim, senhor. Com licença, senhor, mas posso sentar? — perguntou Tyrer com a voz trêmula, ansioso em contar a verdade sobre o homem, mas com medo fazê-lo.



— Claro, claro, Tyrer, desculpe. Mas, primeiro, sirva-se de outro xerez e traga uma dose de gim.



Sir William observou-o, satisfeito com ele, mas também um pouco com pena. Com anos de lida com diplomatas, espiões, meias verdades, mentiras e clamorosas desinformações faziam soar os sinais de alarme de que alguma coisa lhe era ocultada. Ele aceitou o drinque.



— Obrigado. Sente naquela cadeira, é a mais confortável. A nós. Você deve estar falando um excelente japonês para obter tudo isso em tão pouco tempo.



— Não, senhor, ainda não, mas passo bastante tempo estudando. Com Nakama, uso a paciência, gestos, umas poucas palavras de inglês, palavras e frases japonesas que André Poncin me ensinou. Ele tem me ajudado muito, senhor.



— André sabe o que esse homem lhe contou?



— Não, senhor.



— Não lhe diga nada. Absolutamente nada. Mais alguém sabe?



— Não, senhor, exceto Jamie McFay. — Tyrer tomou um gole do xerez. — Ele já sabia alguma coisa, e... hum... foi muito persuasivo, arrancou-me a informação sobre o xógum.



Sir William suspirou.



— É verdade, Jamie pode ser muito persuasivo, para dizer o mínimo, e sempre sabe muito mais do que diz.



Ele recostou-se na confortável cadeira giratória de couro antigo, tomou outro gole do drinque, a mente avaliando todos aqueles novos conhecimentos, de valor inestimável, já reformulando sua resposta para a rude missiva daquela noite, especulando até que ponto ousaria jogar, o quanto podia confiar na informação de Tyrer. Como sempre, nessas circunstâncias, ele recordou, contrafeito, os comentários de despedida do subsecretário permanente sobre o fracasso.



— A respeito de Nakama, concordarei com seu plano, Phillip... posso chamá-lo de Phillip?



Tyrer corou de satisfação pelo súbito e inesperado cumprimento.



— Claro, senhor. Obrigado.





— Eu é que agradeço. No momento, concordarei com seu plano, mas, pelo amor de Deus, tome cuidado com ele, não esqueça que os ronin têm cometido todos os tipos de assassinatos, à exceção do pobre Canterbury.



— Tomarei cuidado, Sir William. Não se preocupe.



— Arranque tudo o que puder dele, mas não conte a mais ninguém, e me transmita imediatamente. Pelo amor de Deus, tome cuidado, sempre tenha um revólver na mão, e se ele apresentar a menor indicação de violência, trate de atirar ou ponha-o a ferros.











Ao lado da legação britânica ficava a americana, depois a holandesa, russa, alemã e por último, a francesa. Ali, naquela noite, em sua suíte, Angelique vestia-se para Jantar, ajudada por Ah Sok. Dentro de uma hora deveria começar o jantar dedicado a ela e a Malcolm por Seratard, para comemorar o noivado. Mais tarde teria música.



— Mas não toque por tempo demais, André — pedira ela, pouco antes. — Alegue que está cansado. Deixe bastante tempo para sua missão. Os homens são mesmo afortunados.



Ela sentia-se contente e triste por ter se mudado. É mais sensato, ela refletiu agora. Poderei voltar em três dias. Uma nova vida, uma nova...



— O que errado, senhora?



— Nada, Ah Sok.



Angelique fez um esforço para afastar a mente do que teria de suportar breve, sepultou o medo ainda mais fundo.





Um pouco além, na melhor localização à beira do cais, o prédio Struan aind se encontrava todo iluminado, assim como a Brock & Sons, ao lado, com muitos escriturários e cambistas continuando a trabalhar nas duas companhias. Malcolm Struan transferira-se naquele dia para a suíte do tai-pan, muito maior e mais confortável do que a suíte que ocupava antes, e agora se empenhava em vestir o traje para o jantar.



— Qual é o seu conselho, Jamie? Não sei o que fazer com a mãe e suas cartas mas isso é um problema meu, não seu... ela também o está pressionando, não é?



Jamie McFay deu de ombros.





— É muito difícil para ela. Do seu ponto de vista, até que tem razão, ela quer apenas o melhor para você. Creio que se preocupa demais com a sua saúde, por você estar tão longe e ela não poder vir para cá. E nada dos Struans pode ser resolvido de Iocoama, é tudo em Hong Kong. O China Cloud chegará dentro de poucos dias, procedente de Xangai, e seguirá direto para Hong Kong. Vai voltar com ela?





— Não, e por favor não torne a levantar o assunto — respondeu Struan, o tom um tanto ríspido. — Avisarei quando nós, Angelique e eu, decidirmos partir. Só espero que a mãe não esteja no China Cloud... seria a última gota.



Struan inclinou-se para calçar as botas, não conseguiu, a dor foi intensa demais.



— Desculpe, mas pode me ajudar? Obrigado.



Depois, ele explodiu:



— Ser como um aleijado fodido está me levando à loucura!



— Posso imaginar.



McFay disfarçou sua surpresa. Era a primeira vez que ouvia Malcolm Struan dizer um palavrão. Tratou de acrescentar, gentilmente, gostando dele, admirando sua coragem:



— Eu também ficaria assim... não, não igual, muito pior.



— Ficarei bem depois que casarmos, toda a espera encerrada, tudo em ordem.



Com alguma dificuldade, Struan usou o urinol, o que era sempre doloroso, viu algumas partículas de sangue no fluxo. Falara a respeito com Hoag no dia anterior, quando recomeçara, e o médico lhe dissera para não se preocupar.



— Então por que você está preocupado?



— Não estou preocupado, Malcolm, mas apenas interessado. Com os ferimentos internos que você sofreu, qualquer indicação durante o processo de cura deve ser registrada...



Struan terminou, claudicou até a cadeira ao lado da janela, arriou nela, agradecido.



— Preciso de um favor, Jamie.



— Claro. Qualquer coisa. O que posso fazer?



— Pode... ahn... preciso ter uma mulher. Pode trazer alguém da Yoshiwara?



Jamie ficou surpreso.



— Ahn... acho que sim. — Uma pausa. — Seria sensato?



Uma rajada de vento sacudiu as janelas, os galhos das árvores e os arbustos no jardim, derrubou algumas telhas soltas ao chão, fez com que os ratos saíssem correndo das pilhas de lixo jogadas na High Street e do canal cheio e fétido ao redor, que também servia como esgoto.



— Não — respondeu Malcolm.













A menos de um quilômetro do prédio Struan, perto da cidade dos bêbados, numa habitação indistinta da aldeia japonesa, Hiraga estava deitado de barriga para baixo, sendo massageado. A casa era ordinária, a fachada dando para a rua decrépita igual às outras nos dois lados do estreito caminho de terra, cada uma servindo também como depósito e loja durante o dia. Lá dentro, como muitas outras que pertenciam aos mercadores mais prósperos, tudo exibia uma limpeza impecável, era polido, apreciado e confortável. Era a casa do shoya, o ancião da aldeia.



A massagista era cega. Tinha vinte e poucos anos, o corpo firme, o rosto gentil, um sorriso meigo. Pelos costumes antigos, na maior parte da Ásia, os cegos tinham o monopólio da arte da massagem, embora fosse praticada também por algumas pessoas de visão normal. Também pelo costume antigo, os cegos sempre tinham toda segurança, nunca eram atacados.



— É muito forte, samurai-sama — disse a jovem, rompendo o silêncio. — Os homens com quem lutou devem estar mortos ou sofrendo.



Por um momento, Hiraga não respondeu, apreciando os dedos hábeis e firmes, que procuravam seus músculos contraídos e os relaxavam.



— Talvez.



— Por favor, posso fazer uma sugestão? Tenho um óleo especial da China que ajudará a curar seus cortes e equimoses num instante.



Ele sorriu. Era um estratagema usado com freqüência, para ganhar um dinheiro extra.



— Está bem. Pode usar.



— Ah, mas você sorri, honrado samurai! Não é um truque para ganhar mais dinheiro — disse ela no mesmo instante, os dedos nas costas de Hiraga. — Minha avó, que também era cega, transmitiu-me o segredo.



— Como soube que eu sorri?



A jovem riu, o que lembrou a Hiraga o som de uma cotovia flutuando nas correntes de ar do amanhecer.



— Um sorriso começa em muitas partes do corpo. Meus dedos o escutam em seus músculos, e às vezes até os pensamentos.



— E em que estou pensando agora?





— Em Sonno-joi. Ah, eu acertei! — Outra vez a risada que o desconcertava — Mas não tenha qualquer receio, não disse nada, os fregueses aqui nunca dizem nada, e eu nada direi. Mas meus dedos me dizem que é um espadachim especial. O melhor a que já servi. É evidente que não é do Bakufu. Portanto, deve ser ronin e ronin por opção, já que é hóspede nesta casa. Ou seja, deve ser um shishi o primeiro que já tivemos aqui.



Ela fez uma reverência, antes de acrescentar:





— Todos nos sentimos honrados. Se eu fosse homem, apoiaria Sonno-joi.



Deliberadamente, a ponta de seu dedo, dura como aço, pressionou um centro nervoso e ela sentiu o tremor de dor percorrer o corpo de Hiraga. Ficou satisfeita por ser capaz de ajudá-lo muito mais do que ele imaginava.



— Sinto muito, mas este é um ponto muito importante para rejuvenescê-lo e manter o fluxo de seus humores.



Hiraga soltou um grunhido, a dor comprimindo-o contra os futons, mas ao mesmo tempo experimentando uma estranha satisfação.



— Sua avó também era massagista?



— Era, sim. Em minha família, pelo menos uma menina em cada segunda geração nasce cega. Foi a minha vez nesta vida.



— Karma.



— É verdaae. Dizem que na China de hoje os pais ou mães cegam uma de suas filhas, a fim de que ela possa obter, quando crescer, um emprego para a vida toda.



Hiraga nunca ouvira falar a respeito, mas acreditou, e sentiu-se furioso.



— Aqui não é a China, e nunca será. Um dia ainda vamos conquistar a China e civilizá-la.



— Oh, lamento perturbar sua harmonia, lorde. Por favor, perdoe-me. Ah, assim é melhor. Mais uma vez, peço que me desculpe, por favor. Estava dizendo, lorde... civilizar a China? Como o ditador Nakamura queria fazer? É possível?



— É, sim, um dia. É o nosso destino assumir o trono do dragão, como é o seu destino massagear e não falar.



Outra vez a risada gentil.



— Sim, lorde.





Hiraga suspirou, enquanto o dedo da jovem soltava o ponto de pressão, a dor dando lugar a uma satisfação agradável. Portanto, todos sabem que sou shishi, pensou ele. Quanto tempo se passará antes de ser traído por alguém? Por que não? Dois koku é uma fortuna.



Não fora fácil encontrar este refúgio. Ao entrar na aldeia, deparara com um silêncio consternado, pois todos viram que se tratava de um samurai, um samurai sem espadas, parecendo descontrolado. A rua esvaziara-se, exceto pelos mais próximos, que se ajoelharam e aguardaram seu destino.





— Você, velho, onde fica a ryokan mais próxima... a estalagem?





— Não temos nenhuma, lorde, não há necessidade, honrado lorde. — balbucira o idoso consciente, o medo fazendo-o falar apressadamente. — Não precisamos, já que nossa Yoshiwara fica aqui perto, maior que na maioria das cidades, com dezenas de lugares em que um homem pode se alojar, com mais de uma centena de mulheres, sem contar as criadas, três gueixas de verdade e sete aprendizes, e é por isso...





— Já chega! Onde é a casa do shoya?



— Aquela ali, senhor.



— Onde, seu tolo? Levante-se e me leve até lá! Ainda enfurecido. Hiraga seguira o velho pela rua,querendo esmurrar os olhos que o observavam de todas as aberturas, sufocar os sussurros em sua esteira.



— É esta, lorde.





Hiraga acenara para que o velho fosse embora. A placa na frente da loja aberta, repleta de mercadorias de todos os tipos, mas vazia de pessoas, anunciava que ali era a residência e local de negócios de Ichi Ryoshi, shoya, mercador de arroz e banqueiro, o agente em Iocoama da Gyokoyama. A Gyokoyama era uma zaibatsu — significando um complexo de negócios de família — muito poderosa em Iedo e Osaca, mercadores de arroz e saquê, assim como destiladores de cerveja e também, o mais importante, banqueiros.





Hiraga fizera um esforço para se controlar. Com extremo cuidado e polidez, batera na porta, ficara de cócoras e começara a esperar, tentando dominar a dor pela surra que levara da patrulha de dez homens. Depois de um longo momento, um homem de meia-idade, rosto forte, aparecera na loja aberta, ajoelhara, fizera uma reverência. Hiraga também fizera uma reverência, apresentara-se como Nakama Otami e mencionara que seu avô também era shoya, sem indicar onde, mas fornecendo informações suficientes para que o homem soubesse que era verdade. Indagara se, talvez, já que não havia nenhuma ryokan ali, o shoya não teria um quarto vago para hóspedes pagantes.



— Meu avô também tem a honra de fazer negócios com a zaibatsu Gyokoyama... por intermédio da qual suas aldeias vendem todas as suas colheitas — acrescentara ele, sempre polido.— Eu agradeceria se fizesse o favor de lhes enviar uma nota de crédito minha para Osaca e me adiantasse algum dinheiro por conta.



— Iedo fica mais perto do que Osaca, Otami-san.



— É verdade, mas Osaca é melhor para mim do que Iedo.





Hiraga não queria arriscar qualquer contato com Iedo, onde poderia haver vazamentos para o Bakufu. Notara a avaliação fria e sem medo do shoya e ocultara seu ódio, mas até mesmo os daimios tinham de ser cautelosos quando tratavam com a Gyokoyama ou seus agentes, inclusive lorde Ogama, de Choshu. Era do conhecimento geral que Ogama lhes devia muito dinheiro, com anos de receita futura já empenhados como garantia.



— Minha companhia sente-se honrada em servir velhos clientes. Por favor quanto tempo desejaria permanecer em minha casa?



— Uns poucos dias, se não lhe causasse muita inconveniência.



Hiraga falara sobre Tyrer e o problema dos soldados, apenas porque tinha a certeza que a notícia o precedera.



— Pode ficar pelo menos três dias, Otami-san. Sinto muito, mas deve estar preparado para ir embora depressa, no caso de um súbito ataque, de dia ou de noite.



— Eu compreendo. Obrigado.





— Por favor, peço que me desculpe, mas eu gostaria de ter uma ordem assinada por esse Taira ou, melhor ainda, pelo chefe dos gai-jin, determinando que eu lhe abra minha casa, para o caso de o Bakufu aparecer aqui.



— Providenciarei essa ordem. — Hiraga se inclinara em agradecimento encobrindo sua irritação pelas restrições. — Obrigado.





O shoya ordenara que uma criada trouxesse chá e os materiais de escrita e observara Hiraga redigir a nota de crédito, a ser deduzida da conta de Shinsaku Otami, o codinome secreto de seu pai. Ele assinara e lacrara com seu sinete o recibo para Ryoshi, que concordara em adiantar a metade da quantia, aos juros habituais de dois por cento ao mês, pelos três meses que seriam necessários para enviar o documento a Osaca e completar a transação.



— Quer a quantia em dinheiro?



— Não, obrigado, pois ainda me restam alguns oban — respondera Hiraga, exagerando, reduzido aos últimos dois. — Por favor, abra uma conta para mim, deduza os custos do meu quarto e comida. Também preciso de algumas roupas e espadas, e agradeceria se me providenciasse uma massagista.





— Claro, Otami-san. Quanto às roupas, o criado lhe mostrará nosso estoque. Escolha o que quiser. Quanto às espadas... — Ryoshi dera de ombros. —... as únicas que tenho aqui são imitações para os gai-jin e não valem grande coisa, mas pode ver tudo de que disponho. Talvez eu possa lhe arrumar espadas apropriadas. Agora, vou mostrar seu quarto, com uma entrada e saída particular... há um guarda aqui, de dia e de noite.



Hiraga o seguira. Ryoshi não fizera qualquer comentário sobre sua nudez e os machucados, nem lhe fizera perguntas.



— É bem-vindo aqui, uma honra para minha humilde casa — dissera ele, antes de deixá-lo.





Recordando agora a maneira como isso fora dito, Hiraga sentiu sua pele arrepiar... polida e solene, mas ameaçadora e mortífera por trás. É repulsa — pensou ele, lamentável que os samurais sejam mantidos na pobreza por daimios e xóguns corruptos, sem falar no Bakufu, sendo obrigados a tomar emprestado dessas zaibatsu de baixa classe, formadas por mercadores sórdidos e avarentos que agem como se o dinheiro lhes proporcionasse poder sobre nós. Por todos os deuses, quando o imperador recuperar o poder, haverá um ajuste de contas e todos os mercadores e as zaibatsu começarão apagar... Subitamente, ele sentiu que os toques da jovem paravam.



— O que é, lorde? — perguntou a massagista, assustada.



— Nada, nada. Por favor, continue.





Seus dedos obedeceram, mas o contato era diferente agora, havia tensão no ar. O recinto era espaçoso, com oito esteiras, os futons estofados com o tatame da melhor qualidade, os shojis recém-reformados, com um novo papel oleado. No nicho da Gyokoyama havia um lampião a óleo, um arranjo de flores e a pintura em pergaminho de uma vasta paisagem, tendo como única habitação uma pequena cabana num bambuzal, com uma mulher ainda menor na porta, parecendo desamparada, olhando para a distância... com um poema de amor ao lado.



Esperando, Escutando a chuva



Batendo na chuva



Solitária, mas transbordando de esperança pelo retorno de seu homem. Hiraga resvalava para o sono quando a porta corrediça foi aberta.



— Com licença, lorde. — O criado ajoelhou-se e acrescentou, apreensivo: — Sinto muito, mas há uma pessoa de baixa classe lá fora que alega conhecê-lo, pede para vê-lo, sinto muito incomodá-lo, mas ele é muito insistente e...



— Quem é ele? Qual é seu nome?





— Ele... não quis dar seu nome e também não falou em seu nome, lorde, mas disse: “Avise ao samurai que Todo é o irmão de Joun.”





Hiraga levantou-se no mesmo instante. Enquanto vestia a yukatta, pediu à massagista que voltasse no dia seguinte, na mesma hora, e dispensou-a em seguida. Aproximou-se das duas espadas que tomara emprestadas até que o shoya pudesse lhe providenciar melhores e ajoelhou-se numa posição de ataque e defesa, de frente para a porta.



— Mande-o entrar e mantenha todas as outras pessoas à distância.



O jovem camponês franzino e sujo, com um quimono esfarrapado, rastejou pelo corredor e ficou de joelhos fora da porta.



— Obrigado, lorde, muito obrigado por me receber. — O jovem levantou o rosto, com um sorriso vazio, os dentes da frente faltando. — Obrigado, lorde.



Hiraga lançou-lhe um olhar irritado e depois ofegou, em incredulidade.



— Ori? Mas... é impossível!



Ele observou com mais atenção e constatou que os dentes apenas haviam sido escurecidos, como parte do disfarce, criando uma ilusão perfeita. Mas não podia haver qualquer dúvida de que Ori não era mais um samurai ostensivo: o penacho fora cortado e todos os cabelos atrás e nos lados da cabeça aparados na mesma altura dos fios de duas semanas que cobriam o resto.



— Por quê? — indagou Hiraga, desolado.



Ori sorriu, foi sentar perto dele.





— O Bakufu procura por ronin, não é mesmo? — sussurrou ele, mantendo a voz baixa contra os ouvidos que ambos sabiam que podiam estar escutando.



— Não deixei de ser um samurai, mas agora posso passar por qualquer camponês.



O ar deixou a boca de Hiraga num silvo de admiração.





— Tem toda razão. É brilhante. Sonno-joi não depende de um corte de cabelo. Tão simples... mas eu nunca pensaria nisso.



— Ocorreu-me ontem à noite. Pensava em seu problema, Hiraga.



— Cuidado. Meu nome aqui é Nakama Otami.



— Ah, então é esse! Ótimo! — Ori sorriu. — Eu não sabia como chama-lo, por isso usei o código.



— Já encontraram Todo e os outros?



— Ainda não. Continuam desaparecidos. Devem estar mortos. Soube que Joun foi executado como criminoso comum, mas ainda ignoramos com Todo foi capturado.



— Por que veio aqui, Ori? É muito perigoso.



— Não deste jeito, nem à noite, e eu precisava testar o novo Ori, conversar com você. — Contrafeito, ele passou a mão pela cabeça, com os cabelos começando a crescer, coçou-a. Tinha o rosto raspado. — A sensação é horrível, parece suja, de certa forma obscena, mas não importa. Agora estou seguro, posso ir para Quioto. Partirei daqui a dois dias.



Hiraga olhava para sua cabeça, fascinado, ainda aturdido com a espantosa mudança.



— Se alguma coisa o torna mais seguro, não se deve hesitar, só que agora todos os samurais o tomarão por um homem comum. Como pode usar espadas?



— Quando precisar de espadas, usarei um chapéu. E quanto estiver disfarçado, tenho isto.



Ori enfiou a mão boa na manga e tirou uma pistola de dois tiros. O rosto de Hiraga tomou a se iluminar.



— Ei, brilhante! Onde conseguiu?



— Fujiko. Ela me vendeu, com uma caixa de balas. Um cliente deu a ela quando deixou Iocoama. Imagine só! Uma prostituta de baixa classe com um tesouro assim.



Hiraga pegou a pistola com o maior cuidado, sopesou-a, apontou-a, levantou para ver os dois cartuchos no bronze nos canos.



— Pode matar dois homens com isto, antes de ser morto, se estiver bastante perto.



— Um é suficiente para dar tempo de correr e pegar as espadas. — observou Hiraga.





— Ouvimos falar dos soldados. Eu queria verificar se estava bem. Baka! Iremos para Quioto juntos e deixaremos este lugar para os cretinos até podermos voltarmos com plena força.



Hiraga sacudiu a cabeça, relatou o que acontecera de fato, depois falou de Tyrer e a descoberta da hostilidade entre franceses e ingleses, para acrescentar excitado:



— É uma das cunhas que podemos cravar entre eles. Faremos com que lutem e vamos deixar que se matem uns aos outros por nós, hem? Devo ficar aqui, entende? É apenas o começo. Precisamos aprender tudo o que eles sabem, ser capazes de agir como eles, assim poderemos destruí-los.





Ori franziu o rosto, considerando as razões a favor e contra; embora não tendo perdoado Hiraga por obrigá-lo a se humilhar, removendo a cruz da mulher, mas tinha de proteger Sonno-joi.





— Neste caso, se vai ser nosso espião, terá de se tornar como eles sob todos os aspectos , grudar em sua sociedade como um percevejo, virar um amigo e até mesmo usar roupas de gai-jin. — Ao olhar impassível de Hiraga, ele completou: — Por que não? Isso o protegerá ainda mais e tornará mais fácil que eles o respeitem, neh?



— Mas por que eles deveriam me aceitar?



— Não deveriam, mas são tolos. Taira será sua ponta de lança. Pode dar um jeito, ordenar. Pode insistir.



— Por que ele faria isso?



— Use Fujiko.



— Como assim?





— Raiko nos deu a pista: os gai-jin são diferentes. Preferem ir para a cama com a mesma mulher. Ajude Raiko a envolvê-lo com uma rede e ele vai virar seu cão fiel, porque será o intermediário indispensável. Diga a Taira, mesmo que esteja furioso com os soldados, que a culpa não foi dele. Voltou à Yoshiwara apesar de todas as dificuldades e arrumou Fujiko para ele na noite de amanhã, “mas seria muito mais simples para mim, Taira-sama, arrumar esses encontros se tivesse roupas europeias para usar, a fim de passar pelas barreiras”, e assim por diante. Faça com que ora que ela se torne disponível, ora não, ponha-o na coleira, e aperte à vontade, entende?



Hiraga começou a rir, baixinho.



— Seria melhor você permanecer aqui, em vez de ir para Quioto. Seus conselhos são muito valiosos.





— Katsumata deve ser alertado. E a mulher gai-jin?



— Descobrirei onde exatamente ela se encontra.



— Ótimo. — O vento aumentava e uma rajada passou pela casa, fazendo o papel oleado estalar nas armações, pondo para dançar a chama do lampião. — Você a viu?



— Ainda não. Os criados de Taira, um bando de chineses asquerosos, não falam qualquer língua que eu possacompreender, por isso não consegui descobrir nada por intermédio deles. Mas o prédio maior na colônia pertence ao homem com quem ela vai casar.



— Ela vive lá?



— Não tenho certeza, mas... — Hiraga fez uma pausa, uma idéia aflorando em sua mente. — Se eu pudesse me tornar aceito, teria condições de ir a qualquer parte, descobriria tudo sobre suas defesas, seria capaz até de subir a bordo de seus navios...



— E numa certa noite — disse Ori no mesmo instante, antecipando-se, talvez pudéssemos capturar um dos navios ou afundá-lo.



— Isso mesmo.



Os dois se mostraram exultantes com a perspectiva, enquanto a vela se agita projetando sombras estranhas.





— Com o vento certo — murmurou Ori —, um vento sul, como esta noite com cinco ou seis shishi, uns poucos barris de óleo já colocados nos armazéns certos... mesmo que não seja necessário, podemos iniciar incêndios na Yoshiwara. O vento espalharia as chamas para a aldeia e, depois, para a colônia! Neh?



— E o navio?





— Na confusão, podemos remar até o maior. Seria fácil, neh?



— Fácil, não, mas que golpe!





Sonno-joi!




21







Quinta-feira, 16 de outubro:









Entre! Ah, bom dia, André. — O tom de Angelique era efusivo, e não combinava com sua ansiedade. — É muito pontual. Está tudo bem com você?





Ele acenou com a cabeça, fechou a porta da pequena sala no térreo, anexa ao quarto, que servia como o boudoir de Angelique, na legação francesa. Sentiu-se mais uma vez espantado por ela aparentar tanta calma e ser capaz de manter uma conversa descontraída. Polidamente, inclinou-se para beijar a mão de Angelique, depois sentou à sua frente. A sala era insípida, com cadeiras velhas, uma chaise longue, escrivaninha, paredes de reboco, com uns poucos óleos baratos de novos pintores franceses, Delacroix e Corot.



— O exército me ensinou. A pontualidade é quase a santidade.



Ela sorriu, amável.



— Não sabia que esteve no exército.



— Tive uma comissão na Argélia durante um ano, quando tinha vinte e dois anos, depois da universidade... nada de espetacular, apenas ajudar a esmagar uma das habituais rebeliões dos nativos. Quanto mais cedo exterminarmos todos os rebeldes, anexando por completo o norte da África, tornando-o território francês, melhor. — Ele afugentou as moscas, distraído, enquanto a estudava. — Você parece mais linda do que nunca. Seu estado lhe faz bem.



Os olhos de Angelique perderam a cor, tornaram-se duros. A noite anterior fora péssima, sua cama bastante desconfortável, no quarto desarrumado e andrajoso. No escuro, a ansiedade prevalecera sobre a confiança e se tornara cada vez mais nervosa por ter deixado de maneira tão precipitada a suíte confortável ao lado dos aposentos de Struan. A alvorada não melhorara seu humor; outra vez fora torturada pela idéia persistente: os homens causavam todos os seus problemas. A vingança será doce.

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