Malcolm pensou: Sou capaz de apostar cinqüenta mex contra um dólar que eram nossos, de um jeito ou de outro. Ele estava a par de um dos maiores segredos da Struan: o tênue relacionamento de amigo-inimigo entre a Casa Nobre e os mercadores marítimos Wu Chois do Lótus Branco, iniciado pelo avô e mantido por seu pai. E o que eu farei em relação a eles? — perguntou-se Malcolm, subitamente cansado de Iocoama, e ansioso em assumir o manto e os segredos do avô... e confrontar a mãe.



— Daqui a uma semana ou por aí — murmurou ele.





— Como, tai-pan?



— Nada. O que mais, Jamie?



McFay passou a falar sobre a queda dos preços das mercadorias que vendiam e a escalada dos preços das mercadorias que tinham de comprar, as demandas de crescentes salários de risco para os marujos, muitos dos quais eram de descendência anglo-americana, e não gostavam de ser atacados por navios de guerra do Norte e do Sul.



— Eu poderia continuar para sempre. A Rússia e a França parecem ansiosas por uma guerra e, por isso, a Europa se transformou num barril de pólvora. Por toda a índia, muçulmanos e hindus estão se matando, incendiando as colheitas. O mundo inteiro enlouqueceu. — Ele hesitou. — Mais urgente, o Victoria Bank escreveu de novo sobre o empréstimo. As promissórias vencem...



— Já sei de tudo a respeito; eles que se danem. O banco é controlado pelos Brocks e nos deixou na mão, ao financiar o açúcar havaiano para eles. Estão querendo nos levar à bancarrota. Que se danem. — A voz de Malcolm engrossara. Pontadas de dor se irradiavam da barriga. — Acho que vou terminar minha correspondência, caso o Witch parta à noite. Por que ele vai voltar tão depressa?



Depois de um momento, Jamie deu de ombros.



— Não sei, mas concordo num ponto: qualquer notícia relacionada com a Brock é má notícia.











A reunião no clube logo degringolara para os gritos e imprecações habituais, os homens furiosos, muita bebida, todo mundo falando ao mesmo tempo e ninguém escutando, com um único tema unindo a todos:



— Que Deus amaldiçoe todos os governos, todos os coletores de impostos e todos os almirantes e generais, gordos peidorrentos que não conhecem seu lugar, não fazem o que deveriam fazer, que é ouvir a comunidade dos negócios e cumprir o que a gente mandar!



— É isso mesmo, Lunkchurch. Eu proponho...



O que quer que o homem pretendia propor se perdeu no tumulto, enquanto vários gritavam:



— Vamos tirar Wee Willie do cargo!



Exasperado, Norbert abriu caminho pela multidão, saindo do canto do bar, onde iniciara a reunião, e se encaminhou para Malcolm Struan, sentado ao lado da porta, junto com Jamie. Dmitri gritou:



— Nenhuma conclusão, Norbert?





— O que você esperava? Cabe aos tai-pans, como sempre. Jamie, você e... Norbert já ia espicaçar Malcolm, chamando-o de jovem Struan, mas recordou a ameaça brusca e incisiva de Sir William para não provocá-lo, em público ou em particular. Além disso, podia sentir a carta de Tyler Brock ardendo em seu bolso. Olhou para Malcolm e acrescentou, polido:



— Vocês dois poderiam fazer o favor de me acompanhar... para uma conversa particular? E você também, Dmitri?



Malcolm imaginara que Norbert passaria por ele apenas com um breve aceno de cabeça.



— Claro. Onde? Lá fora?



— No meu escritório, se não se incomodam. Os três seguiram-nos. Todos de guarda.



— O Ocean Witch vai zarpar com a maré cheia? — perguntou Malcolm.



— Vai, sim. Dmitri indagou:



— Por que a repentina mudança de planos, Norbert?



— Ordens de Tyler.



Norbert notou a súbita sombra que passou pelo rosto de Malcolm e sorriu para si mesmo.



Seu escritório temporário era no térreo, enquanto se efetuavam os reparos nos estragos causados pelo incêndio lá em cima. A escada central ficara enegrecida, havia buracos no telhado, cobertos por pedaços de lona.



— Uma coisa terrível, o fogo, mas acontece com todo mundo de vez em quando. Por sorte, como eu disse, o cofre não foi atingido, nem os livros e o armazém. — Ele apontou para poltronas de couro. — Sentem-se, por favor.



Havia copos e bebidas no aparador, uísque, conhaque, gim, vinhos, champanhe já no gelo. Seu criado número um chinês esperava para servir. A cautela de todos aumentou.



— Qual é seu prazer?



— Champanhe — respondeu Malcolm, acompanhado pelos outros.



Ele sentia-se bem agora, o elixir o estimulando, como sempre, a se sentir íntegro, além de atenuar a dor. Depois que todos os copos estavam cheios, Norbert sacudiu o polegar para o criado, que fez uma reverência e se retirou.



— Saúde!



Todos responderam ao brinde. Ele sentou-se à beira da mesa, alto, esguio e confiante.



— Estamos a salvo de ouvidos bisbilhoteiros aqui. Primeiro, nós, representando as três maiores companhias, devemos escrever em conjunto uma queixa a Wee Willie, não que vá adiantar grande coisa, e ao almirante... todos concordamos que ele é um estorvo. Não há motivo para que você deixe de participar nisso, Dmitri, pois a Cooper-Tillman também tem muito a perder aqui, tanto quanto nós. Ao mesmo tempo, devemos promover uma campanha no Parlamento, a Struan e nós, para resolver o problema do Japão de uma vez por todas... ou esmagamos os japas e os colocamos em seu lugar, ou vamos embora.



— Não vamos deixar o Japão — declarou Malcolm, fazendo McFay relaxar um pouco.



— Nem nós — disse Norbert. — É apenas uma manobra para persuadir aqueles desgraçados no Parlamento.



Ele pegou uma pasta na mesa arrumada, tirou uma folha de papel.



— Tenho aqui um despacho secreto de Londres, de um dos nossos observadores, trazido pelo Ocean Witch, datado de 16 de setembro.



— Chegou bem depressa — comentou Jamie, por todos.





— Nós sempre nos mantemos em dia, Jamie. Tyler mandou partilhar a informação com vocês três. Vou ler: O primeiro-ministro e o ministro das finanças concordaram ontem, numa reunião particular, aumentar o imposto sobre o chá para quatro pence por libra, um penny no quartilho de cerveja, um xelim em todo o conhaque e vinhos importados, dobrar a taxa do tabaco... — Todos estavam aturdidos. —... dobrar a taxa de importação do algodão...



— Essa não! — explodiu Dmitri. — É uma loucura! O algodão e o tabaco são as únicas colheitas que temos no Sul para nos render algum dinheiro! Se fizerem isso, o que vai acontecer com a nossa guerra, e com as tecelagens de vocês em Lancashire?



— Nós não temos tecelagens de algodão, mas a Struan tem. Há mais: Para conter certas facções poderosas nos dois lados do Parlamento, eles vão ordenar, ainda, que todas as plantações de ópio em Bengala sejam queimadas e as plantações de chá...



— Oh, Deus! -— Struan estava transtornado, Jamie roxo e Dmitri em choque. — Como vamos negociar com a China? Ópio por prata, e...



— O Parlamento não se importa com o nosso triângulo celestial — comentou Norbert, sombrio. — Não se interessa pela Ásia, a China ou o comércio, só se preocupa em permanecer no cargo. Querem replantar toda a área com chá.



Ele tornou a guardar o papel na pasta, sentou de novo à mesa, sabendo que os outros adorariam conhecer a veracidade do documento e o que mais continha.



— O velho mandou dizer a vocês que temos um informante próximo do gabinete do primeiro-ministro, que suas revelações sempre se mostraram autênticas no passado, e essa é a verdade de Deus. Declarou também que temos de afastar essa dupla, e depressa. Dmitri, você deve pressionar pelo seu lado. Tyler garante que faremos tudo o que for necessário, e pede a vocês para agirem da mesma forma. Concordam?



— Claro que concordo — respondeu Dmitri. — Não dá para acreditar.



— Eu também concordo. — Struan ergueu seu copo, especulando onde estaria a armadilha de Tyler Brock. — Que eles venham a arder no inferno.



Solenes, os outros beberam junto com ele. Norbert tornou a encher os copos. Seu rosto se contraiu ao focalizar Struan.



— O próximo assunto: todos estão a par do nosso duelo. Não preciso de padrinhos e marcamos para o amanhecer de quarta-feira. Sinto muito, mas parto no Ocean Witch esta noite, por ordem de Tyler. Portanto, a quarta-feira está cancelada. Sugiro...



— Por que adiar, se ainda resta bastante claridade agora?



As palavras saíram antes que Malcolm pudesse contê-las e ele sentiu-se satisfeito por ter reagido com tanta rapidez e firmeza, embora tivesse a súbita impressão de que o cérebro se dilatara. Jamie empalideceu, o silêncio prolongou-se.



— Não agora. — Os olhos faiscando, escondendo seu divertimento, Norbert virou-se para Jamie e Dmitri, os padrinhos formais de Malcolm. — Sugiro que adiemos, num acordo de cavalheiros, até meu retorno, daqui a umas três semanas, está bem? Poderá então ser no dia seguinte, ou em qualquer outra data que escolherem.





— Acho melhor assim — disse Jamie. — Concorda, tai-pan? Depois de um momento, a pressão na cabeça de Struan se dissipou.



— Concordo.



Ele não se sentia satisfeito, nem desapontado, apenas contente por haver reiterado o desafio. Não notou que Jamie e Dmitri disfarçavam seu alívio. Terminaram seus drinques e se retiraram.





Assim que ficou a sós, Norbert pegou a carta de Tyler Brock e releu-a, as palmas suadas. A primeira parte versava sobre as informações do espião e finalizava assim: “Leve o seu rabo para o Ocean Witch e parta com a primeira maré cheia, só você, sem outros passageiros. Traga seus livros, o contrato de exploração de ouro com os japas e todos os lingotes em seu poder. Vamos nos encontrar em Xangai, em segredo. — é o primeiro porto de escala do Witch, embora o manifesto diga que seguirá direto para Hong Kong —, Morgan, eu e você, o mais depressa possível, sem que ninguém saiba. Quando voltar a Iocoama, talvez passe a dormir no quarto de Malcolm Struan, é isso mesmo, com a língua de sua prostituta babando em você, se isso for do seu agrado... pois muito em breve ela também estará à venda. Acabamos de saber que o pai dela fugiu de Bangkok, como já havia fugido de Hong Kong, após cometer mais fraudes e trapaças. Desta vez são as autoridades franceses que estão à sua procura. E vão capturá-lo, julgá-lo e depois a guilhotina... os franceses não são como os nossos peelers, sempre delicados. Missus manda lembranças.”




30







QUIOTO







Domingo, 16 de novembro:









Muito depois do escurecer, Yoshi e sua guarda, em silêncio e disfarçada com roupas de soldados comuns, seguiam cansados pelas ruas desertas da cidade adormecida, a antiga capital, onde os imperadores e a corte imperial haviam vivido por séculos.





A cidade fora construída ao estilo chinês, com ruas retas, as ruas transversais formando ângulos retos, com o vasto palácio proibido e seus jardins na área central. Apenas os telhados podiam ser avistados por trás dos muros altos... com seis portões. Yoshi evitou-os com o maior cuidado, querendo se esquivar às patrulhas de Ogama e aos samurais que guardavam os portões. Ao chegar ao complexo do xogunato, sem ser anunciado, ele foi direto para seus aposentos, e logo afundou agradecido num banheira fumegante, em que oito pessoas caberiam com a maior facilidade.



— Quantos guerreiros tenho em Quioto, Akeda? — perguntou ele, as dores dos dias de marcha forçada começando a desaparecer.



Com expressão sombria, o velho general arriou na água, com apenas um metro de profundidade, ao seu lado. A casa de banho situava-se no reduto interior, todas as criadas haviam sido dispensadas, e sentinelas postadas nos acessos.



— Oitocentos e dois, dos quais oitenta estão doentes ou se recuperando de ferimentos, todos jurados a você, todos de confiança, todos montados. Mais os dezoito que você trouxe.



No momento em que Yoshi chegara, Akeda dobrara a guarda. Era um hatomoto vigoroso, de uma família que servia há gerações ao clã Toranaga, e agora comandava sua guarnição em Quioto.



— Não é o suficiente para protegê-lo — acrescentou ele, em sua voz rouca.



— Estou seguro aqui.





Pela lei do legado, aquele era o único complexo defensável em Quioto, capaz de alojar cinco mil homens, se fosse necessário, todos os outros daimios restritos a um máximo de quinhentos homens — com não mais que dez daimios juntos em Quioto em qualquer momento, suas idas e vindas controladas com rigor. O tempo e o fraco Conselho de Anciãos reduziram o efetivo do xogunato a menos de mil.



— Duvida disso, Akeda?



— Dentro dos nossos muros, não. Referia-me ao exterior.





— Aliados? Com quantos daimios posso contar?



Akeda deu de ombros, irritado.



— Foi um grande erro se sujeitar a tamanho risco, viajando com poucos guardas, e ainda mais perigoso vir para Quioto. Se eu tivesse sido avisado antes, poderia sair para encontrá-lo com um destacamento e escoltá-lo até aqui. Se seu pai estivesse vivo, teria proibido essa...



— Mas meu pai não está vivo. — Os lábios de Yoshi se contraíram numa linha dura. — Aliados?





— Se erguesse seu estandarte em Quioto, Sire, seu estandarte pessoal, a maioria dos daimios e a maioria dos samurais correriam para o seu lado, aqui e por toda a terra, mais do que o suficiente para impor qualquer coisa que quisesse.



— Isso pode ser interpretado como traição.





— Sinto muito, mas a verdade é, em geral, traiçoeira no seu nível, lorde... e muito difícil de se encontrar. — O rosto velho e enrugado se desmanchou num sorriso. — A verdade: se erguer a bandeira do xogunato, não terá o apoio de quase nenhum dos daimios daqui contra Ogama de Choshu, não enquanto ele controlar os portões.





— Quantos samurais Ogama mantém aqui?





— Dizem que mais de dois mil, homens escolhidos a dedo, todos em casas de guarda fortificadas ao redor do palácio, perto dos guardas nominais em nossos portões. — Akeda tornou a sorrir, sem humor, ao ver os olhos de Yoshi se contraírem. — Todo mundo sabe que é contra a lei, mas ninguém lembrou a ele, ninguém resistiu. Ogama vem trazendo seus homens em grupos de dez e vinte desde que expulsou a raposa velha do Sanjiro, com Katsumata e seus Satsumas. Já sabe que eles escaparam de barco para Kagoshima?



Akeda arriou ainda mais na água, antes de acrescentar:





— Correm rumores que Ogama tem mais dois a três mil samurais de Choshu numa distância de dez ri.



— É mesmo?





— Seu controle sobre Quioto aumenta mais um pouco a cada dia, suas patrulhas dominam as ruas, exceto pelos bandos ocasionais de shishi, que lutam com qualquer um que eles imaginem que não respeita Sonno-joi, nós em particular, e todos os aliados do xogunato. São tolos, porque também nos opomos aos gai-jin e seus nefandos tratados, queremos que sejam expulsos.





— Os shishi estão muito fortes aqui?



— Estão, sim. Circulam rumores de que se preparam para algum golpe grande. Há cerca de uma semana alguns deles atacaram uma patrulha de Ogama, chamando-o abertamente de traidor. Ogama ficou furioso e, desde então, vem caçando-os. Há...



Uma batida na porta interrompeu-o. O capitão da guarda abriu a porta.



— Com licença, lorde Yoshi. Um emissário de lorde Ogama está no portão, solicitando uma audiência.



Os dois homens ficaram surpresos. Yoshi disse, irritado:



— Como ele descobriu que cheguei? Percorremos disfarçados as últimas cinqüenta ri. Esperei nos arredores de Quioto até escurecer, contornamos as barreiras, e não deparamos com nenhuma patrulha. Deve haver um espião aqui.





— Não há espiões aqui dentro — garantiu Akeda. — Juro por minha cabeça, Sire. Lá fora, há legiões, por toda parte, espiões de Ogama, os shishi, e outros... e não é um homem que consegue se disfarçar com facilidade, Sire.



Yoshi tomou uma decisão.



— Capitão, diga a ele que estou dormindo e não posso ser incomodado. Peça-lhe para voltar pela manhã, quando será recebido com todas as honras.



O capitão fez uma reverência, já começava a se retirar quando Akeda acrescentou:



— Ordene um alerta total para a guarnição inteira!



Assim que voltaram a ficar a sós, Yoshi disse:



— Acha que Ogama ousaria me atacar aqui? Seria uma declaração de guerra.



— Não estou interessado no que ele pode ousar, Sire, mas apenas na sua segurança. É minha responsabilidade agora.



O calor da água se infiltrava agora pelas articulações de Yoshi e ele se recostou, deixando que a sensação agradável o envolvesse, contente por Akeda estar no comando, tranquilizado por sua presença, embora não se influenciasse por suas opiniões. Não previra ser descoberto tão depressa. Ora, não importa, pensou ele, meu plano ainda é bom.



— Quem é o adepto subserviente de Ogama, seu intermediário na corte?



— O príncipe Fujitaka, primo em primeiro grau do imperador... o irmão de sua esposa é o camareiro imperial.



Yoshi soltou um assovio, e o general acenou com a cabeça, sombrio.



— Muito difícil romper um vínculo assim, a não ser com uma espada.



— Impensável! — sentenciou Yoshi, que pensou: a menos que seja possível. De qualquer forma, era uma estupidez dizer algo assim em voz alta, mesmo em particular. — Quais são as notícias sobre o xógum Nobusada e a princesa Yazu?



— São esperados dentro de uma semana e... Yoshi levantou os olhos abruptamente.



— Eles não deveriam chegar por mais duas ou três semanas.



A voz do velho soou ainda mais rouca:





— A princesa Yazu ordenou que a comitiva voltasse à Tokaidô e continuasse pelo caminho mais curto, sem dúvida ansiosa em ver o irmão, levar o marido para demonstrar sua submissão, contra toda a tradição... e acabar com o xogunato o mais depressa possível, entregar o comando a Ogama.



— Mesmo aqui, velho amigo, deve tomar cuidado com o que diz.



— Estou muito velho para me preocupar com isso agora... agora que seu pescoço se encontra entre as garras de Ogama.



Yoshi chamou as criadas para que trouxessem toalhas e enxugassem os dois, ajudando-os a vestir yukatas limpos. Pegou suas espadas e disse, por fim:



— Desperte-me ao amanhecer, Akeda. Tenho muito o que fazer.





Pouco antes do amanhecer, nos subúrbios ao sul, onde o rio fazia uma curva para o sul, na direção de Osaca e do mar, a vinte e tantas ri de distância, onde os caminhos, ruas e vielas eram irregulares e tortuosos, tão diferentes da rigidez das linhas retas da parte central da cidade, onde era intenso o cheiro de fezes, lama e vegetação em decomposição, Katsumata, o líder dos shishi de Satsuma e confidente de lorde Sanjiro, acordou de repente, saiu de baixo das cobertas e ficou de pé no aposento escuro, escutando com o máximo de atenção, a espada de prontidão.



Nenhum som de perigo. Lá de baixo vinham os sons abafados das criadas e servos, acendendo os primeiros fogos do dia, cortando legumes, preparando os alimentos. Seu quarto era no segundo andar, sob as vigas, na Estalagem dos Pinheiros Sussurrantes. Um cachorro latiu à distância.



Há alguma coisa errada, pensou ele.





E foi abrir a porta, sem fazer barulho. Havia mais quartos ao longo do corredor, três ocupados por outros shishi, dois em cada um. O último era para as mulheres da estalagem.



Num lado, havia uma pequena janela, dando para o pátio. Nada se mexia lá embaixo. Mais uma vez, seus olhos esquadrinharam a área, o portão, a rua além. Nada. De novo. Nada. E, de repente, um brilho, mais sentido do que visto. No mesmo instante, Katsumata abriu as portas e sussurrou a palavra código. Os seis homens levantaram-se de um pulo, o sono se dissipando por completo, e correram atrás dele, empunhando suas espadas. Desceram pela escada precária, atravessaram a área da cozinha, saíram pela porta dos fundos. Pularam a cerca para o jardim ao lado, numa retirada ensaiada com extremo cuidado, passaram para o jardim seguinte, e mais outro, até alcançarem a viela. Seguiram por ali, mas logo se desviaram por uma passagem entre duas choupanas. Na extremidade daquele beco sem saída, ele virou à esquerda e abriu uma porta. A lança do guarda alerta ameaçou sua garganta.



— Katsumata-san! O que aconteceu?





— Alguém nos traiu — sussurrou Katsumata, ofegante, e gesticulou para um jovem de Choshu, também esguio, duro como aço, mas com metade de sua idade, dezenove anos. — Dê a volta, veja tudo e volte. Não se deixe observar, nem ser apanhado!





O jovem desapareceu. Os outros seguiram Katsumata para o interior da choupana. Havia vários cômodos lá dentro, a construção ligada às outras nos lados, abrigando mais shishi. Vinte, no total, todos armados, capitães de células de shishi na maior parte, agora alertas, prontos para o combate ou a retirada... inclusive Sumomo, a irmã de Shorin, noiva de Hiraga. Todos se agruparam em silêncio, aguardando as ordens.





Quando eles escapavam da estalagem, nenhum dos servidores ou criadas deu atenção à partida abrupta, continuando a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Todos ficaram paralisados alguns segundos mais tarde, quando uma patrulha de Ogama entrou pela porta da frente e começou a revistar os quartos, acordando hóspedes, as mulheres e a mama-san, enquanto outros subiam a escada para vasculhar os aposentos do segundo andar. Gritos de surpresa, medo e protesto, lamentos das mulheres que agora ocupavam os quatro quartos que antes alojavam os shishi... tudo parte do meticuloso planejamento de Katsumata.





No tumulto subsequente, aos berros e indignação da mama-san, o enfurecido oficial de Ogama perguntou para onde tinham ido os proscritos ronin, chegou a esbofetear alguns criados, foi tudo em vão. Todos tremiam, alegando inocência:





Ronin? — bradou a mama-san. — Em minha respeitável casa, que nunca deixou de cumprir a lei? Jamais!





Assim que a patrulha se retirou e todos se encontravam seguros, a mama-san praguejou, os criados praguejaram, todos amaldiçoaram o espião que os traíra.





— Katsumata-san, quem foi?— indagou Takeda, um jovem de Choshu, vinte anos, corpulento, quase sem pescoço, parente de Hiraga, o coração ainda disparado da fuga por um triz.



Katsumata deu de ombros.





— Karma se o descobrirmos, karma se não descobrirmos. Prova apenas o que incuto em vocês: estejam preparados para a traição, a fuga a qualquer instante, a luta a qualquer instante, não confiem em homem ou mulher, exceto num shishi e em Sonno-joi.



Todos no pequeno aposento apinhado acenaram com a cabeça.



— E o que nos diz de lorde Yoshi? Quando vamos atacá-lo?



— Quando ele estiver fora dos muros.



A notícia da súbita chegada de Yoshi viera durante a noite, tarde demais para interceptá-lo.



— Mas temos partidários lá dentro, sensei — insistiu Takeda. — Seria o lugar certo para surpreendê-lo, aproveitar que ele se sente seguro, deixa a guarda relaxar.



— A guarda de Yoshi nunca relaxa. Jamais se esqueçam disso. Quanto ao nosso pessoal com ele, dentro dos muros, suas ordens são para permanecerem quietos e ocultos, já que sua presença e informações são valiosas demais para se arriscar. No evento improvável do xógum Nobusada escapar à nossa emboscada, eles se tornarão ainda mais necessários.





Muitos sorrisos sinistros, mãos apertando o punho da espada. A emboscada fora planejada para o anoitecer, dali a cinco dias, em Otsu, a última estação de posta antes de Quioto. Havia apenas umas poucas estalagens na estrada do norte e na Tokaidô consideradas lugares de descanso apropriados para pessoas tão augustas, com seus inúmeros guardas, criadas e servidores. Assim, era fácil conhecer as paradas noturnas e postar espiões nelas.





Dez shishi haviam sido designados para a missão suicida e já se encontravam em Otsu, preparando-se para o ataque. Cada um dos cento e sete shishi reunidos em várias casas seguras de Quioto suplicara sua inclusão na emboscada. Por sugestão de Katsumata, haviam tirado a sorte. Três Choshus, três Satsumas e quatro Tosas conquistaram a honra, já instalados perto do alvo, na Estalagem das Muitas Flores.





— Mais cinco dias apenas e, depois, Sonno-joi será uma realidade! — sussurrou Sumomo, excitada. — O Bakufu nunca vai se recuperar desse golpe.



— Nunca mesmo!





Katsumata sorriu para ela, apreciando-a, a melhor de todas as suas discípulas — como Hiraga era o melhor entre os homens, atrás apenas de Ori —, admirando sua bravura, determinação e habilidades. Ela também se oferecera para a emboscada, mas Katsumata proibira, considerando-a uma arma valiosa demais para desperdiçar numa iniciativa de alto risco. Ele sentia-se contente por ter ordenado que Sumomo esperasse aqui, prevalecendo sobre a ordem de Hiraga, que a mandara voltar para a casa do pai dele. Sumomo trouxera as últimas informações de Iedo: a confirmação dos rumores sobre uma trégua negociada entre o Bakufu e os gai-jin, o fracasso do ataque ao ministro-chefe Anjo, mas o êxito no assassinato de Utani, com o incêndio de sua mansão. E, mais importante ainda, a confirmação da divergência entre Anjo e Yoshi Toranaga.





— Não sei de onde veio essa informação — sussurrara ela para Katsumata —, mas a mama-san disse que era da fonte que você conhece.





Sumomo também relatara os fatos da morte de Shorin. Mas não sabia mais nada sobre Ori ou Hiraga, a não ser que o ferimento de Ori estava sarando, ambos se escondiam na colônia em Iocoama, junto com Akimoto, e Hiraga se tornara, por algum milagre, confidente de um dos líderes dos gai-jin.





— Tem toda razão, Sumomo, o Bakufu nunca vai se recuperar — concordou Katsumata. — Nosso próximo golpe encerrará o xogunato de Toranaga para sempre.





Logo depois da bem-sucedida eliminação do xógum Nobusada — deixando a princesa Yazu ilesa, a qualquer custo —, os shishi desfechariam um ataque em massa contra o quartel-general de Ogama, para assassiná-lo; ao mesmo tempo, Katsumata e outros capturariam os portões, hasteando o estandarte de Sonno-joi, declarando que o poder voltava ao imperador, a quem todos os verdadeiros daimios e samurais se apresentariam para prestar obediência.





Sonno-joi — murmurou ela, exultante, como todos os outros. Exceto Takeda, um dos shishi de Choshu. Ele mudou de posição, inquieto.





— Não tenho certeza sobre o assassinato de Ogama. Ele é um bom daimio, um bom líder... impediu que Sanjiro tomasse o poder, impediu que Tosa tomasse o poder, é o único daimio a cumprir a ordem do imperador de expulsar os gai-jin. Afinal, não foi Ogama quem determinou o fechamento dos estreitos de Shimonoseki? Só nossos canhões se opõem aos navios gai-jin... apenas as forças de Choshu se mantêm na linha de frente, não é mesmo?





— É verdade, Takeda — disse um renomado shishi de Satsuma. — Mas o que sensei Katsumata sempre nos lembrou? Que Ogama mudou, agora que roubou o controle. Se ele respeitasse o imperador, seria muito simples, agora que controla os portões, declarar Sonno-joi e devolver todo o poder ao imperador. E isso o que faremos quanto tivermos os portões.



— Eu sei, mas...



— Muito simples para ele, Takeda. Mas o que Ogama fez? Apenas usou o poder para manipular a corte em seus caprichos. Quer ser o xógum. Nada menos.



Soaram murmúrios de concordância e depois Sumomo declarou:





— Por favor, Takeda, desculpe-me, mas Ogama é uma grande ameaça. Todos sabem que sou uma Satsuma, assim como o sensei Katsumata, concordamos que Sanjiro tem feito algumas coisas boas, mas nada por Sonno-joi. Por isso, ele deve renunciar ao poder, de bom grado ou pela força, e é o que vai acontecer. O mesmo se aplica a Ogama. Reconheço que ele fez algumas coisas boas, mas agora está errado. A verdade é que nenhum daimio com o controle dos portões, tão perto de se tornar o xógum, renunciará ao poder de bom grado.



— E se pedíssemos a Ogama? — sugeriu Takeda.





— Desculpe-me, por favor, mas tal petição não teria o menor valor. Quando tomarmos posse dos portões, a fim de evitar a guerra civil e a possibilidade de algum daimio se sentir tentado outra vez, devemos ir além e solicitar ao imperador a abolição do xogunato, do Bakufu e de todos os daimios.



Em meio a comentários surpresos diante de proposta tão radical, Takeda explodiu:





— Mas isso é uma loucura! Sem o xogunato e sem os daimios, quem vai governar? Haverá o caos! Quem paga nossos estipêndios? Os daimios! Os daimios possuem todos os koku de arroz...



Katsumata interveio:



— Deixe-a concluir, Takeda, e depois poderá dizer o que quiser.





— Sinto muito, Takeda, mas essa é uma idéia de Hiraga-san, não minha. Hiraga disse que, no futuro, os daimios serão apenas chefes nominais, e só os bons, que o poder será exercido por conselhos de samurais, de todos os níveis, baseados na igualdade, e esses conselhos decidirão tudo, dos estipêndios a que daimio é digno, e quem o sucederá.



— Nunca dará certo — insistiu Takeda. — É uma péssima idéia.



Muitos discordaram, a maioria apoiou Sumomo, mas Takeda ainda não se convencera. Ao final, ela perguntou:



— Sensei, é uma péssima idéia?





— É uma boa idéia, se todos os daimios concordarem — respondeu Katsumata.





Ele sentia-se satisfeito por constatar que seus ensinamentos davam frutos, que os shishi queriam chegar ao futuro pelo consenso. Como os outros, Katsumata estava acocorado, falando pouco, sua mente concentrada na traição, fervendo de raiva por aquele novo atentado contra a sua vida, e a fuga por um triz.





Por bem pouco desta vez, pensou ele, o gosto de bílis outra vez na boca. O cerco se aperta. Quem é o traidor? Só pode estar aqui. Nenhuma das outras unidades de shishi sabia que eu passaria a noite na estalagem dos Pinheiros Sussurrantes. O traidor se encontra aqui. Quem é ele... ou ela? Quem?



— Continue, Sumomo.





— Eu só queria acrescentar... Takeda-san, você é Choshu, assim como Hiraga-san, há outros de Tosa, o sensei, eu e muitos mais de Satsuma, inúmeros dos outros feudos, mas acima de tudo somos shishi, com deveres que prevalecem sobre a família, sobre o clã. Na Nova Ordem, esta será a lei... a primeira lei para todo o Nipão.



— Se essa vai ser a lei... — murmurou um dos homens, coçando a cabeça. — Sensei, quando o filho do céu recuperar o poder, o que iremos fazer, todos nós?



Katsumata olhou para Takeda.



— O que você acha?





— Não estarei vivo e, assim, isso não tem a menor importância. Sonno-joi é suficiente, a única coisa que me interessa.



— Alguns de nós devem sobreviver para participar da nova liderança — disse Katsumata. — Mais importante por enquanto: Yoshi Toranaga. Como eliminá-lo?



— Quando ele sair de seu refugio, devemos estar preparados — propôs alguém.



— Isso é claro — disse Takeda, irritado. — Mas ele estará cercado por guardas; duvido muito que consigamos sequer nos aproximar de sua pessoa. O sensei disse que não podemos acionar nossos homens lá dentro. Portanto, terá de ser no lado de fora, mas será muito difícil.



— Meia dúzia de nós, com flechas, nos telhados?



— Uma pena não termos um canhão — comentou outro. Continuaram ali, à claridade crescente, cada um imerso em seus pensamentos, visando Yoshi como o troféu maior. Mas os cinco dias de expectativa eram mais importantes, depois o ataque a Ogama... a única maneira de conquistar os portões.



— Talvez seja mais fácil para uma mulher se infiltrar no bastião de Toranaga, neh? — sugeriu Sumono. — E uma vez lá dentro...



Ela sorriu, sem concluir a frase.













Nuvens cobriam o céu agora. A tarde era sombria. Mesmo assim, as ruas largas nos arredores do quartel do xogunato estavam apinhadas de moradores da cidade, comprando e vendendo no mercado em frente à entrada principal, junto com sacerdotes budistas vestidos de laranja, as inevitáveis tigelas de esmolas estendidas, samurais desfilando de um lado para outro, sozinhos ou em grupos. As patrulhas de Ogama eram proeminentes, cada homem com a insígnia do feudo bordada na roupa. Katsumata, Sumomo e meia dúzia de shishi circulavam entre a multidão, disfarçados, usando enormes chapéus cônicos. Donas de casa, criadas, servos, varredores de rua, coletores de adubo noturno, carregadores e vendedores ambulantes, emprestadores de dinheiro, escritores de cartas, adivinhos, palanquins e pôneis para samurais e bem-nascidos, mas nunca, em parte alguma, um veículo com rodas.



Todas as pessoas que passavam pelos portões do xogunato, abertos agora, mas com uma forte guarda, faziam uma reverência polida, de acordo com as respectivas posições, e seguiam adiante, apressadas. A notícia de que o guardião do herdeiro chegara, sem qualquer pompa, o que era inacreditável, correra num instante por toda a cidade... e isso, somando-se aos rumores sobre a iminente visita, sem precedentes na memória histórica, do próprio xógum, árbitro da Terra, personagem aterrador, envolto por mistério, quase tanto quanto o filho do céu, e até casado, segundo se dizia, com uma das irmãs da divindade, era quase demais para se suportar.





Os samurais, preocupados, começaram a verificar a prontidão de suas armas e armaduras, os daimios e seus conselheiros de confiança tremeram com a notícia, avaliando suas posições, o que fazer, e como evitar qualquer ação decisiva, quando ocorresse o inevitável, a confrontação entre lorde Yoshi e lorde Ogama.





A atividade na rua diante dos portões do quartel do xogunato cessou no momento em que um cortejo armado saiu, com os estandartes de Yoshi à frente, soldados cercando um palanquim fechado, mais soldados na retaguarda. No mesmo instante, todos nas proximidades se ajoelharam, encostaram a cabeça no chão, os samurais permaneceram imóveis, fazendo uma reverência profunda, até o cortejo passar. Só depois que Yoshi e seus homens desapareceram é que ressurgiu um arremedo de normalidade. A não ser pelo fato de Katsumata e seus companheiros seguirem o cortejo, com extrema cautela.





A menos de um quilômetro dali, similar cortejo armado também deixou o quartel principal de Choshu, com os estandartes de Ogama à frente, e sob demonstrações de submissão ainda maiores. Há dias que ele fora alertado sobre a chegada de seu inimigo, assim como vinha monitorando o progresso do xógum Nobusada. Seus conselheiros haviam recomendado que emboscasse e destruísse Yoshi nos arredores de Quioto, mas Ogama não acatara a sugestão.



— É melhor que ele se torne meu peão. Depois que estiver aqui, onde poderá se esconder, para onde poderá fugir?



Os detalhes para a reunião urgente solicitada por Ogama haviam sido acertados pelos conselheiros de ambos. Deveria ocorrer no pátio vazio de um quartel neutro, eqüidistante dos dois quartéis-generais. Cada um levaria cem guardas. Apenas vinte estariam montados. Ogama e Yoshi iriam em palanquins blindados e protegidos. Um conselheiro para cada um. Chegariam ao mesmo tempo.





Em poucos momentos, espiões levaram a notícia para o palácio, para grupos de shishi e para os daimios, informando que os dois homens mais perigosos do Nipão haviam saído para as ruas em colunas armadas, no mesmo instante, por mais espantoso que isso pudesse parecer. Um espião logo encontrou Katsumata e sussurrou o local do encontro; quando os samurais de Ogama e Yoshi passaram pelos portões neutros, Katsumata e trinta homens se encontravam postados nas proximidades... para o caso de surgir a oportunidade de um ataque suicida.



O pátio tinha cem metros quadrados, com paredes de madeira leves, fáceis de romper, o alojamento de um só andar e o estábulo também eram de madeira, escurecida pelo tempo. Guardas dos dois lados ocuparam posições opostas e outros levaram quatro cadeiras dobráveis para o centro do pátio.





Os dois homens saíram juntos dos palanquins, encaminharam-se para as cadeiras e sentaram-se. Depois, o general Akeda e Basushiro, o principal conselheiro de Ogama, sentaram-se ao lado deles. Basushiro estava na casa dos quarenta anos, um samurai de olhos estreitos, estudioso, de uma família de chefes hereditários da burocracia de Choshu há gerações. Houve reverências formais, e em seguida os olhos dos dois líderes se encontraram.



Yoshi era dois anos mais moço que Ogama — vinte e seis anos — e alto, enquanto o outro era baixo e corpulento. Yoshi tinha o rosto raspado, em contraste com a barba cerrada negro-azulada de Ogama. A linhagem de Yoshi era mais nobre, embora a de Ogama fosse igualmente antiga, também renomada, os dois se equilibrando em determinação implacável, ambição e dissimulação.



Sem pressa, dispensaram o tempo necessário aos cumprimentos obrigatórios e perguntas polidas, com esquivas e evasivas, esperando pelo início... as mãos nos punhos das respectivas espadas.



— Sua vinda é uma agradável surpresa, lorde Yoshi.



— Tinha de vir para verificar pessoalmente que os rumores delirantes que ouvi não eram verdadeiros.



— Que rumores''





— Entre vários, o de que as forças de Choshu impedem os representantes do xogunato, os representantes legais, de assumirem suas posições em torno dos portões.



— Uma medida necessária para proteger a divindade.



— Desnecessária e contra a lei.



Ogama riu.





— A divindade prefere minha proteção ao traiçoeiro Conselho de Anciãos, que assinou os tratados com os gai-jin contra seu desejo e continua a negociar com eles contra sua vontade, em vez de expulsá-lo, como ele pediu. — Ele fez um sinal para Basushiro. — Por favor, mostre a lorde Yoshi.





O pergaminho, assinado pelo imperador, solicitava “ao lorde de Choshu para assumiro comando dos portões, até que seja resolvida a lamentável questão dos gai-jin”.



— Não é da competência da divindade decidir sobre problemas temporais. Esta é a lei... e devo lhe pedir que se retire.



— Lei? Está se referindo à lei de Toranaga, a lei do xogunato imposta à força pelo primeiro de sua linhagem, e que repudiou o direito antigo de o imperador governar, concedido pelo céu.



Os lábios de Yoshi contraíram-se numa linha fina e dura.



— O céu concedeu ao imperador o direito de interceder entre nós, mortais, e os deuses, em todas as questões espirituais. As questões temporais sempre estiveram na esfera de competência de mortais, de xóguns. O imperador concedeu ao xógum Toranaga e seus descendentes o direito perpétuo de cuidar de todas as questões temporais.



— Repito que o imperador foi forçado a concordar...



— E eu repito que esta é a lei da terra, que nos manteve em paz por dois séculos e meio.



— Não é mais válida. — Ogama acenou com o papel. — O que um imperador anterior foi obrigado a conceder, este imperador cancelou, por sua livre e espontânea vontade.



A voz de Yoshi tornou-se mais suave, mais perigosa:



— Um equívoco temporário. É evidente que o filho do céu recebeu conselhos indevidos de descontentes interesseiros, como em breve vai compreender.



— Está me acusando?



Os quatro homens apertaram o punho de suas espadas.



— Apenas ressalto, lorde Ogama, que seu pedaço de papel foi obtido por falsas informações e não está de acordo com a lei. A presença é e sempre foi cercada por homens ambiciosos... e mulheres também. Foi por isso que ele concedeu direitos perpétuos ao xógum Toranaga e ao xogunato para orientá-lo em todas as questões...





Uma gargalhada interrompeu-o e deixou todos os samurais ao longo dos muros ainda mais nervosos.





— Orientar? Orientar, você disse? A divindade ser orientada por Anjo Nori, Toyama, Adachi, e agora aquele retardado do Zukumura? Por tolos incompetentes, que prevalecem sobre você quando querem, fazem acordos estúpidos com os infames gai-jin, contra os conselhos de todos os daimios, acordos que expõem a terra dos deuses e todos nós à destruição? — O rosto de Ogama contraiu-se em raiva. — Ou ele deve esperar a orientação do menino Nobusada sobre a melhor maneira de tirar castanhas do fogo?



— Você e eu, Ogama-dono, não precisamos esperar — disse Yoshi, suavemente, sabendo que sua maior força era se manter calmo. — Vamos discutir isso em particular... só nós dois.



— Quando?



— Agora.



Desconcertado por um instante, Ogama hesitou. Olhou para Basushiro. O homenzinho sorriu apenas com o rosto.



— Eu diria que assuntos importantes devem ser discutidos em aberto, Sire, não que meus pobres conselhos sejam de algum valor. Os acordos particulares podem às vezes ser mal interpretados, por qualquer dos lados... esta era a regra de seu honrado pai.



Os olhos de Ogama tornaram a se fixar em Yoshi.



— A visita do xógum ao imperador, para demonstrar sua submissão, “pedir conselho”, pela primeira vez em todo o período Toranaga, isso nega a própria essência de sua estrutura Toranaga, não é mesmo? Pior ainda, prejudica qualquer futuro acordo entre o filho do céu e... futuros líderes, pois é claro que mortais governarão, não é mesmo?



— Em particular, Ogama-dono.



Ogama hesitou de novo, os olhos escuros se contraindo no rosto curtido. Contra a sua vontade, apesar de saber que aquele homem era o único que tinha o potencial de mobilizar oposição suficiente para impedi-lo de alcançar o prêmio que procurava, ele gostava da confrontação, do encontro cara a cara. Acenou com a mão, dispensando Basushiro, que obedeceu no mesmo instante, embora com uma desaprovação ostensiva. Akeda fez uma reverência e também se afastou, ainda mais vigilante pela esperada traição, sobre a qual fora alertado.



— So ha?



Yoshi inclinou-se um pouco para a frente, manteve a voz baixa, os lábios mal se mexendo, para o caso de Basushiro, que se postara além da possibilidade de ouvir, conhecer leitura labial:



— A votação do conselho foi de quatro a um a favor da visita do xógum. Fui o único contra. Claro que a visita é um grande erro, mas Anjo não pode e não quer compreender isso. O atual conselho votará como ele quiser, sobre qualquer assunto. Nobusada é um títere, até completar dezoito anos, daqui a dois, quando poderá formalmente promover muitas mudanças e criar diversos problemas, se assim desejar. Isso responde a todas as suas perguntas?



Ogama franziu o rosto, atônito com a franqueza do oponente.



— Disse “em particular”, Yoshi-dono, e o que me disser em particular relatarei mais tarde para meus conselheiros, e você fará a mesma coisa.



— Alguns segredos ficam mais bem guardados entre líderes do que... — Yoshi fez uma pausa, antes de acrescentar, incisivo: —... do que entre certos servidores.



— E o que isso significa?



— Você tem espiões... servidores... dentro dos meus portões, neh? De que outra forma poderia saber tão depressa da minha chegada? Não pensa que não tenho homens aqui e espiões dentro dos seus muros, não é mesmo?



A expressão de Ogama se tornou mais sombria.



— Que segredos?



— Segredos que devemos guardar. Por exemplo, Anjo está muito doente, e morrerá em um ano... ou no mínimo terá de renunciar.— Yoshi percebeu o lampejo imediato de interesse, que Ogama não foi capaz de ocultar. — Se quer uma prova, posso lhe dizer como seus espiões devem fazer para confirmar.



— Seria ótimo, obrigado — disse Ogama, registrando a informação para ação imediata, sem esperar por orientação. — Claro que eu gostaria de ter meios de confirmar uma notícia tão agradável. E daí?



Yoshi baixou a voz ainda mais:



— Durante esse ano... se fôssemos aliados... seria fácil garantir a sua designação para ancião. E depois, juntos, aprovaríamos os outros três.



— Duvido muito que pudéssemos concordar, Yoshi-dono — disse Ogama, com um sorriso irônico — nem sobre um conselho, nem sobre qual dos dois seria o tairo, o líder.



— Mas eu votaria em você.



— Por que seria tão estúpido? — indagou Ogama, impassível. — Deve saber que eu trataria de destruir seu xogunato, o mais depressa possível.





— Na forma como ele existe agora, concordo que devemos mesmo destruí-lo. Eu bem que gostaria de fazê-lo agora. Se tivesse o poder, já o teria feito, promovido reformas, aproveitando as sugestões de um conselho de todos os daimios, inclusive os lordes exteriores.



Ele percebeu o espanto de Ogama aumentar e compreendeu que estava prevalecendo.



— Mas não posso fazer nada agora, devo esperar que Anjo renuncie ou morra.



— Por que não mais cedo em vez de mais tarde, hem? Se ele é a pústula que o incomoda, fure-a! Não estão juntos no castelo em Iedo?





— Isso precipitaria a guerra civil que não quero, que não interessa a nenhum daimio. Concordo que o xogunato e o Bakufu devem ser reorganizados de uma maneira radical... suas opiniões e as minhas são bastante similares. Sem o seu apoio, eu não poderia efetuar as reformas. — Yoshi deu de ombros. — Pode ser difícil acreditar, mas isto é uma oferta.



— Com Anjo fora do caminho, você poderia fazer qualquer coisa que quisesse. Poderia atrair Sanjiro e o tolo de Tosa, talvez os dois juntos, não é mesmo? Se vocês três se aliassem contra mim, eu poderia me considerar um homem morto e meu feudo acabar. Depois, você os divide, e assume o poder total. — Os lábios de Ogama se contraíram num sorriso que não era um sorriso. — Ou, o que é mais provável, eles permanecem unidos contra você.



— Muito mais provável. Assim sendo, por que não ficar com o poder para nós, em vez de deixar para eles? Primeiro, juntos, esmagamos Tosa.



Outra vez a risada curta e ríspida.





— Não seria fácil, não com Sanjiro e suas legiões de Satsuma prontos para partirem em socorro de Tosa... ele nunca permitiria que esmagássemos Tosa, pois ficaria isolado e seria nosso alvo seguinte. Nem sequer permitiria que eu sozinho destruísse Tosa, o que poderia fazer, no momento oportuno, muito menos aceitaria uma aliança entre nós. Não é possível separá-los, embora se odeiem mutuamente. Ao final, conseguiríamos derrotá-los, mas não temos condições de manter uma guerra prolongada... ainda mais com os gai-jin em nossas praias, ansiosos em nos explorar.





— Vamos deixar os gai-jin de lado por enquanto, exceto para dizer que me oponho aos tratados, quero que todos os gai-jin sejam expulsos, quero... com todo o meu empenho... cumprir o desejo do imperador, quero que os anciãos sejam substituídos e a maioria do Bakufu dispensada.



Ogama deixou que seu espanto prevalecesse, mais uma vez, incapaz de acreditar nos próprios ouvidos.



— Tais pensamentos particulares, pensamentos letais, expressos com tanta franqueza, não permanecerão em segredo por muito tempo. Se forem verdadeiros.





— São verdadeiros, mas apresentados em particular, entre nós. Eu me arrisco com você, sem dúvida. Mas há um propósito: o Nipão. Proponho uma aliança secreta: juntos, podemos controlar todo o poder. Você é um bom líder, domina os estreitos de Shimonoseki. Mas seus canhões não podem deter os navios gai-jin até conseguirmos comprar ou construir uma esquadra igual, além de modernizar nossos exércitos... navios, canhões, fuzis dos gai-jin, tudo o que precisarmos. E você é bastante forte e bastante inteligente para perceber os problemas com que nos defrontamos.



— Quais são esses problemas?





— Os cinco principais: um xogunato fraco, estúpido e ultrapassado, apoiado por um Bakufu ainda mais estúpido; segundo, a nação está dividida; terceiro, os gai-jin e nossa necessidade de modernizar, antes que seus navios, canhões e rifles nos escravizem, como fizeram com a China; quarto, como eliminar todos os shishi, cuja influência cresce, apesar de ainda serem poucos; e quinto, a princesa Yazu.



— Concordo com os quatro primeiros. Mas por que ela é um problema?



— Nobusada é um menino, impertinente e simplório, e creio que continuará assim. Por outro lado, ela é forte, instruída e astuciosa... uma astúcia além dos seus anos.



— Mas é uma mulher — interrompeu-o Ogama, irritado. — Não tem exército, não tem recursos e depois que se tornar mãe todas as suas energias serão consumidas com os filhos. Está vendo fogo numa tigela com água.



— Mas digamos que o marido dela seja impotente.



— Como?



— É isso o que os médicos dele me contam. E digamos que ele esteja totalmente sob o encantamento da mulher... acredite em mim, a princesa possui toda a astúcia e insídia de uma mulher-lobo! Esta visita é idéia dela, o início de seu plano, de submeter o marido e, por seu intermédio, todo o xogunato às garras dos sicofantas da corte, que não têm qualquer experiência temporal, dariam conselhos errados à divindade e arruinariam a todos nós.





— Ela jamais conseguiria isso, por mais esperta que seja — declarou Ogama. — Nenhum daimio aceitaria tamanha loucura.



— Primeiro passo: a visita. Segundo passo: o xógum fixa residência permanente no palácio. Daí por diante, com o apoio dos pedidos do imperador, irmão dela, as decisões são tomadas por todos os amigos da princesa, um dos quais é seu príncipe Fujitaka.



— Não acredito nisso!



— Claro que ele nunca vai admitir. Posso lhe apresentar provas, dentro de algum tempo, de que ele na verdade não trabalha por você, mas sim contra você. — Yoshi continuava a falar em voz baixa, impregnada de sinceridade. — Depois que Nobusada ficar para sempre dentro dos muros, ela é quem vai governar. É por isso que constitui um problema.



Ogama suspirou, recostou-se, avaliando mais uma vez as palavras de seu adversário, muitas das quais eram verdadeiras, especulando até que ponto podia confiar nele. Sem a menor dúvida, uma aliança secreta oferecia boas possibilidades, se o preço obtido fosse bastante alto.



— A solução para ela é romper o casamento — murmurou ele. — Foi pedida a aprovação do imperador para o casamento, não é? Talvez o imperador tenha o maior prazer em solicitar a anulação. Assim, você a neutraliza e recupera o apoio dos muitos que detestam a ligação com Toranaga como uma grosseira impertinência... o que não é minha opinião.



Ele acrescentou a última frase ao perceber um súbito rubor em Yoshi. Não queria um choque ostensivo por enquanto, ainda restava muito para ouvir e decidir. Depois de um momento, Yoshi acenou com a cabeça.



— Uma boa idéia, Ogama-dono. Não havia me ocorrido. — E não ocorrera mesmo. Quanto mais pensava a respeito, mais atraentes pareciam as possibilidades. — Isso deve ter prioridade. Excelente.



No outro lado da praça, um cavalo relinchou, irrequieto, empinou. Os dois observaram, enquanto o soldado acalmava o animal. Ogama especulou, em seu coração mais secreto, se depois que eliminasse Yoshi, em seguida Nobusada, o resto dos Toranagas e seus aliados, tornando-se o xógum, deveria herdar também a princesa imperial. Nenhuma mulher jamais seria um problema para mim, ela geraria filhos tão depressa que até os deuses sorririam.



— Qual é sua proposta? — perguntou ele, a cabeça fervilhando com os caminhos espetaculares que uma aliança temporária lhe abririam.





— Fazemos um acordo secreto a partir de hoje, para juntar forças, exercer influência e formular planos: primeiro, para esmagar os shishi; segundo, para neutralizar Anjo e Sanjiro de Satsuma; terceiro, para um ataque de surpresa a Tosa, como prioridade. No momento em que Anjo morrer ou renunciar, proporei seu nome para substituí-lo como ancião e garanto sua escolha. Ao mesmo tempo, Zukumura renuncia e poremos em seu lugar alguém que escolheremos de antemão. Três a dois. Conservo Toyama e Adachi é substituído por seu indicado. Eu voto para que você seja o líder do conselho.



— Com o cargo de tairo.



— Para ser ministro-chefe do conselho, já é suficiente.



— Talvez não. Em troca de quê?





— A partir de hoje, os feudos de Tosa e Satsuma são considerados inimigos. Você empenhará todas as forças necessárias para um ataque conjunto a Tosa, assim que for viável. Dividimos o feudo.



— Como ele é um lorde exterior, suas terras devem ir para para um lorde exterior.





— Talvez sim, talvez não — disse Yoshi, tranquilo. — Você concorda que nunca vai se aliar com Tosa e Satsuma contra mim, nem contra o xogunato. Se por acaso Tosa ou Satsuma o atacarem, juntos ou separados, eu me comprometo a apoiá-lo de imediato, com uma força maciça.



— O que mais? — indagou Ogama, impassível.



— Você concorda que não vai tomar partido contra mim, assim como eu concordo que não tomarei partido contra você.



— O que mais?



— De hoje em diante, discretamente, cada um à sua maneira, trabalhamos para anular o casamento.



— O que mais?



— Por último: os portões. Você concorda que forças legais e legítimas do xogunato recuperem o controle, a partir do alvorecer de amanhã.



Ogama amarrou a cara.



— Já lhe mostrei que sou o representante legal e legítimo da divindade.



— Já ressaltei que, embora o documento tenha sido assinado de forma correta, a assinatura foi lamentavelmente obtida por meios indevidos.



— Sinto muito, mas a resposta é não.



— Os portões devem retornar ao controle do xogunato.



— Neste caso, não temos mais nada a conversar.



Yoshi suspirou, os olhos contraídos.



— Neste caso, lamento dizer, haverá novo pedido do imperador... para você deixar os portões e abandonar Quioto, com todos os seus homens.



Com a mesma frieza, Ogama sustentou o olhar de Yoshi.



— Duvido.



— Eu, Yoshi Toranaga, garanto isso. Daqui a seis ou sete dias, o xógum Nobusada e sua esposa estarão dentro do palácio. Como guardião, tenho acesso imediato a ele... e a ela. Ambos aceitarão a correção dos meus argumentos... sobre os portões e muitas outras coisas.



— Que outras coisas?



— Os portões não deveriam ser um problema para você, Ogama-dono. Eu daria garantias de que não alardearia isso em seu detrimento, aceitando “agradecido o seu generoso convite para assumir o controle” e não os fortificaria contra você. O que é tão difícil assim? Os portões, de modo geral, não passam de um símbolo. Advirto-o formalmente: para manter a paz e garantir a ordem na terra, até a morte ou renúncia de Anjo, o xogunato deve ter o controle dos portões.



Ogama hesitou, num dilema. Yoshi podia facilmente providenciar outra “solicitação” do imperador, que ele teria de aceitar.



— Eu lhe darei uma resposta dentro de um mês.



— Sinto muito, mas o limite é daqui a seis dias, ao meio-dia.



— Por quê?



— Nobusada chega a Otsu daqui a cinco dias. Ao anoitecer do sexto dia, Nobusada passará pelos portões. Exijo a posse, mesmo que seja temporária, antes disso.



Yoshi falou com a maior gentileza, uma polidez extrema. Seus olhos tornaram a se encontrar. Em voz neutra, mas também polida, Ogama disse:



— Pensarei a respeito de tudo isso, Yoshi-dono.



Depois, ele fez uma reverência, Yoshi retribuiu, os dois foram para seus palanquins, e todos na praça suspiraram de alívio, porque a provação terminara e o esperado banho de sangue não se consumara.




31







Sexta-feira, 21 de novembro:









A estação de posta de Otsu estivera movimentada durante o dia inteiro, num crescendo de excitamento, a expectativa acompanhada pelo medo, nos preparativos finais para a escala naquela noite dos augustos visitantes, o xógum Nobusada e a princesa Yazu. Há semanas que os cidadãos varriam as ruas, limpavam todas as habitações e privadas externas... telhados, paredes, poços, jardins, novos ladrilhos, shojis, tatames. A estalagem das Muitas Flores, a melhor e a maior de Otsu, ainda se encontrava num estado de quase pânico.



Começara no momento em que se soubera que os abençoados visitantes haviam declinado a hospedagem no castelo próximo de Sakamoto, pertencente ao xogunato, que ornamentava a região antes mesmo de Sekigahara, preferindo a estalagem.



— Tudo deve ser perfeito! — gemia o proprietário, extasiado, mas ao mesmo tempo apavorado. — Qualquer coisa que não estiver perfeita valerá a degola ou no mínimo uma surra de chicote, quer seja homem, mulher ou criança! A história da honra que nos foi concedida nesta única noite será lembrada pelos tempos afora... o nosso sucesso ou fracasso! O lorde xógum em pessoa? Com toda a sua glória? E a esposa, uma irmã da divindade? Oh ko...



Ao final da tarde, velado, cercado por guardas e conselheiros, a salvo de qualquer observador, o xógum Nobusada deixou apressado seu palanquim e atravessou os portões para a área isolada da estalagem que lhe fora reservada, acompanhado pela princesa imperial e sua comitiva de guardas pessoais, servidores, damas de companhia e criadas. Havia quarenta bangalôs tradicionais, cada um com quatro cômodos, em torno do santuário interior dos aposentos e casa de banho do xógum. Muitos tinham varandas interligadas, num labirinto de agradáveis caminhos, pontes sobre laguinhos e regatos, que desciam das colinas, tudo cercado por uma sebe espessa e aparada.



O quarto era aconchegante e impecável, com novos tatames e braseiro polidos. Nobusada tirou o chapéu velado e as roupas externas, cansado e irritado. Como sempre, o palanquim fora desconfortável e houvera solavancos.



— Já detesto este lugar — disse ele a seu camareiro, cuja cabeça encostava no chão, ao lado de uma fileira de criadas. — É muito pequeno e fedorento. Sinto todo o corpo dolorido. Já aprontaram o banho?



— Já, sim, Sire, tudo como determinou.



— Otsu finalmente, Sire — disse a princesa Yazu, o tom jovial, entrando junto com algumas damas de companhia. — Amanhã chegaremos a casa e tudo será maravilhoso.



Ela tirou também o enorme chapéu velado e as roupas externas, jogando tudo ao chão. As criadas se apressaram em recolhê-las.



— Amanhã estaremos em casa! Em casa, Sire! Valeu a pena seguir pelo caminho mais rápido, neh?



— Claro que sim, Yazu-chan — murmurou Nobusada, sorrindo, contagiado pela exuberância da esposa.



— Vai conhecer todos os meus amigos, primos, tias, tios, irmã mais velha e irmã mais nova, meu querido meio-irmão Sachi, ele tem nove anos... — Ela rodopiou, na maior felicidade. —... e centenas de outros parentes. Dentro de poucos dias conhecerá o imperador, que o receberá como se fosse um irmão também, e resolverá todos os nossos problemas. Depois, poderemos viver em tranquilidade para sempre. Faz frio aqui. Por que não está tudo pronto? E o banho?



O camareiro, corpulento e grisalho, de cinqüenta anos, com poucos dentes e enorme papada, chegara um dia antes, com um grupo de criadas e cozinheiros, a fim de aprontar os aposentos e preparar os alimentos e frutas, com uma abundância de arroz polido, para o delicado estômago do xógum, e que a princesa exigia. Havia magníficos arranjos de flores, feitos por um mestre de ikebana. Mais uma vez, o camareiro fez uma reverência, enquanto a amaldiçoava no íntimo.



— Os braseiros extras já estão prontos, alteza imperial. O banho também, assim como a refeição leve que pediu, junto com o xógum Nobusada. O jantar já foi preparado, será suntuoso...



— Emiko! Nosso banho!



No mesmo instante, a principal dama de companhia se adiantou e levou-a pelo corredor, cercada pelas outras e por várias criadas, como a rainha que era. Nobusada lançou furioso olhar para o camareiro e bateu com o pé, bem pequeno.



— Por que me deixam esperando? Mostre-me o banho e mande chamar a massagista. Quero uma massagem nas costas agora. E providencie para que não haja qualquer barulho... proíbo o barulho!



— Pois não, Sire. O capitão dá essa ordem todos os dias. Mandarei a massagista para a casa de banho. Sako estará...



— Sako? Ela não é tão boa quanto Meiko... Onde está Meiko?



— Sinto muito, Sire, mas ela ficou doente.



— Diga a ela para melhorar até o pôr-do-sol! Não é de admirar que ela esteja doente, pois eu também me sinto mal! Que viagem horrível! Baka! Quantos dias na estrada? Deve ter sido no mínimo cinqüenta e três, e menos do que... por que toda a pressa...



O capitão da escolta esperava pelo camareiro no jardim. Era barbudo, experiente, na casa dos trinta anos, um mestre renomado com a espada. Seu aiudante de ordens se aproximou.



— Está tudo em ordem, senhor.



— Ótimo. Já deve ser rotina, a esta altura. — A voz soou cansada e nervosa. Ambos usavam armaduras leves de viagem, chapéu e duas espadas, por cima da túnica do xogunato. — Só mais um dia... e depois nossos problemas vão piorar. Ainda não posso acreditar que o conselho e o guardião tenham permitido uma viagem tão perigosa.



O ajudante-de-ordens ouvira o mesmo protesto todos os dias.



— Tem razão, capitão. Mas pelo menos estaremos em nosso quartel, com mais centenas de homens.



— Não é suficiente, nunca é suficiente. Não deveríamos ter partido. Mas aconteceu e karma é karma. Inspecione o resto dos homens e verifique se é correta a escala dos guardas. E mande o mestre dos cavalos dar uma olhada em minha égua, acho que o casco esquerdo partiu... — Ferrar cavalos era algo desconhecido no Japão na ocasião. — Ela quase refugou ao passar pela barreira, mas depois se recuperou. Volte para me apresentar um relatório.



O homem se afastou, apressado. O capitão sentia-se mais satisfeito do que o habitual. A inspeção da estalagem e do terreno, dentro das altas cercas de bambu do perímetro externo, e daquele setor em particular, cercado por sebes, com um único portão, deixara-o convencido de que o conjunto de bangalôs do xógum seria fácil de defender. A estalagem fora vedada a quaisquer outros viajantes naquela noite, as sentinelas conheciam a senha e todos se mantinham em alerta máximo. Ninguém podia se aproximar a menos de cinco metros do xógum e sua esposa sem permissão e ninguém, jamais, com qualquer arma... exceto o guardião, os anciãos do conselho e ele próprio, com os guardas que o acompanhassem. A lei era bastante conhecida, a punição para uma aproximação armada era a morte, tanto para o homem armado quanto para os guardas desatentos... a menos que fossem perdoados pelo xógum pessoalmente.



— Ah, camareiro! Houve alguma mudança de planos?



— Não, capitão. — O velho suspirou, coçou a testa, a papada tremendo. — Os augustos estão se lavando, como sempre; depois descansarão, como sempre; depois irão para o banho real e receberão uma massagem ao pôr-do-sol, como sempre; depois jantarão, como sempre; jogarão Go, como sempre, e irão se deitar. Tudo em ordem?



— Por aqui, sim.





O capitão tinha um destacamento de cento e cinqüenta samurais dentro do conjunto, que media cerca de duzentos metros quadrados. Uma unidade de dez homens guardava a única entrada, uma ponte sobre um regato, que levava aos portões ornamentados. Ao longo de toda a sebe do perímetro, havia samurais postados a intervalos de dez passos. Seriam substituídos por unidades dos seiscentos samurais nos alojamentos junto ao portão principal ou instalados em estalagens próximas. Patrulhas vasculhavam o jardim e a cerca, com extrema discrição, já que qualquer barulho e a presença óbvia de samurais irritavam a princesa e, em conseqüência, seu marido.



Acima deles, as nuvens pareciam engrossar, o sol enevoado ainda não alcançara o horizonte. Um vento alto tangia as nuvens. Fazia frio e tudo indicava que esfriaria ainda mais. Os servos acendiam lanternas entre os arbustos, a luz já refletida nos laguinhos, brilhando nas pedras umedecidas um momento antes para se obter esse efeito.



— É lindo — murmurou o capitão. — De longe a melhor, embora a maioria das outras estalagens também fosse boa.



Era a primeira vez que ele realizava uma viagem assim. Durante toda a sua vida estivera dentro ou nos arredores do castelo de Iedo, com Nobusada ou nas proximidades, ou junto do xógum anterior.



— Não resta a menor dúvida de que é lindo, mas eu preferia ter o lorde xógum e sua esposa no castelo Sakamoto. Você deveria ter insistido.



— Bem que tentei, capitão, mas... mas ela decidiu.



— Ficarei mais contente quando estivermos em nosso quartel e eles dentro dos muros do palácio... e ainda mais contente quando voltarmos, sãos e salvos, ao castelo em Iedo.



— Eu também — disse o camareiro, em particular cansado do xógum e da princesa, sempre encontrando defeitos, impertinentes e petulantes. Ainda assim, pensou ele, as costas doendo, querendo também um banho e uma massagem, e as atenções de seu jovem amigo, acho que eu seria igual, se fosse tão exaltado quanto eles, tão mimado, e tivesse apenas dezesseis anos. — Posso perguntar qual é a senha, capitão?



— Até a metade da noite será “arco-íris azul”.





A duzentos metros dali, na margem leste da aldeia, havia uma velha casa de camponeses, meio em ruínas, ao final de uma viela, não muito longe da Tokaidô e da barreira de Otsu. Lá dentro, o líder do grupo de ataque dos shishi, um jovem de Choshu chamado Saigo, olhava ameaçador para o camponês, sua esposa, quatro filhos, pai e mãe, irmão e uma criada, ajoelhados num canto, apavorados. Aquele era o único cômodo, e servia tanto como área de comer quanto para dormir. Umas poucas galinhas esqueléticas, numa gaiola de ripas, cacarejavam nervosas.



— Lembrem-se do que eu disse. Vocês não sabem de nada, não viram nada.



— Sim, lorde, claro, lorde — balbuciou o velho.



— Cale-se! Fiquem de costas, virados para a parede, e fechem os olhos, todos vocês! Cubram os olhos com suas faixas!



Todos obedeceram no mesmo instante.





Saigo tinha dezoito anos, era alto e forte, com um rosto bonito e rude, usava uma túnica escura curta e calça iguais às dos samurais na estalagem, duas espadas, sandálias de vime, sem armadura. Após se certificar de que os camponeses se encontravam bem vendados, além de dóceis, foi sentar-se ao lado da porta, espiou pelos rasgões no papel da parede, e pôs-se a esperar.



Podia avistar a barreira e as casas da guarda com toda a nitidez. Ainda não era o pôr-do-sol, por isso a barreira continuava aberta para os retardatários. Ele e seus homens haviam levado vários dias para encontrar aquele lugar, ideal para seus propósitos. A porta dos fundos dava para um labirinto de vielas e passagens, perfeito para uma retirada súbita. Naquela tarde, no momento em que a comitiva do xógum passara pela barreira, ele tomara posse da casa.





Passos. Sua mão ajeitou a espada, depois relaxou. Outro jovem entrou, em silêncio, seguido por mais um, de uma direção diferente. Logo havia mais sete lá dentro. Um permanecia de guarda lá fora, outro na esquina da viela com a Tokaidô, com um outro escondido na aldeia, para atuar como mensageiro e partir a galope, a fim de transmitir a boa notícia do êxito do atentado a Katsumata, em Quioto, o que seria o sinal para atacar Ogama e os portões. Eram jovens determinados, vestidos como ele, sem armadura ou identificação, antigos goshi — o grau mais baixo de samurai — e agora ronin, todos mais ou menos da mesma idade, de dezenove a vinte e dois anos. Apenas Saigo, com dezoito anos, e Tora, com dezessete, o segundo no comando, eram mais novos. A aragem que entrava pelas frestas da janela fazia-os estremecer... isso e mais a tensão.



Através de sinais, ele indicou que todos deveriam verificar suas espadas, shuriken e outras armas letais... não havia necessidade de palavras durante toda a operação. Todo o planejamento fora definido ao longo de vários dias. Haviam concordado que o ataque deveria ser desfechado em silêncio. Um olhar pela janela. O sol encostava no horizonte, o céu ainda era claro. Chegara o momento.



Solene, Saigo fez uma reverência para seus companheiros, que retribuíram. Ele tornou a se virar para os camponeses.



— Três homens estarão lá fora — avisou, em tom ríspido. — Qualquer sussurro de vocês, até eu voltar, e eles incendiarão tudo.



Outra vez o velho balbuciou um assentimento.



Saigo gesticulou para os outros. Todos o seguiram, inclusive o guarda lá fora, e o que se postava na esquina. Não era mais possível voltar atrás. Os que eram budistas murmuraram uma prece final diante de um santuário, enquanto os xintoístas acendiam um último bastão de incenso, juntando seus espíritos ao filete de fumaça, que representava a fragilidade da vida. Todos haviam escrito seus poemas de morte, que estavam nos bolsos das túnicas. Orgulhosos, indicaram seus feudos corretos, apenas os nomes eram falsos.



Na viela, dividiram-se em duplas, seguindo por caminhos separados. Logo assumiram suas posições, agachados entre o mato alto junto acerca do perímetro, nos fundos da estalagem, à vista uns dos outros, Saigo no canto sudeste. A cerca tinha três metros de altura, resistente, de bambus gigantes, com espigões no topo. Àquela altura, as sombras começavam a perder as formas face ao crepúsculo que se adensava.



Esperando. Coração batendo forte dentro do peito, palmas suadas, atentos ao menor ruído de uma patrulha inimiga. Um gosto estranho e forte em cada boca.



Pontadas de dor nas virilhas. Em algum lugar nas proximidades, um grilo iniciou seu chamado urgente de acasalamento, lembrando Saigo de seu poema de morte:



Um grilo com seu canto alegre,



Mesmo assim morre num instante,



Melhor partir alegre do que triste.



Ele sentiu os olhos se enevoarem, da mesma forma que acontecia com o céu. Era lindo experimentar tamanha felicidade e, ao mesmo tempo, uma tristeza tão profunda.





Podiam ouvir vozes no outro lado da cerca, servos, criadas, samurais ocasionais, o retinir de pratos de metal, pois a cozinha não era muito distante. Esperando. O suor escorria pelo rosto de Saigo. De repente ele ouviu o farfalhar quase imperceptível de um quimono e uma moça sussurrar:



— Arco-íris azul... Arco-íris azul.



Silêncio. E outros sons da estalagem. Saigo gesticulou para Tora, ao seu lado. O jovem se encaminhou apressado para as outras unidades, sem fazer qualquer barulho, transmitiu a senha e voltou. A um sinal de Saigo, cada dupla pegou a escada feita com antecedência, camuflada e escondida na vegetação, e a encostou na cerca. Saigo tornou a observar o céu. No momento em que a última réstia do sol desapareceu, outro sinal, e todos subiram, passaram por cima da cerca ao mesmo tempo, pularam para o chão no outro lado e ficaram agachados, imóveis, entre os arbustos bem cuidados, mas prontos para um ataque frontal imediato.



Por milagre, nenhum alarme ainda. Levantaram os olhos, cautelosos. À frente, a sessenta metros de distância, ficava a seção reservada ao xógum, os telhados de colmo aparecendo por cima das sebes altas e cerradas, os telhados dos aposentos e casas de banho centrais um pouco mais elevados. A entrada principal situava-se um pouco longe, as portas ainda abertas. Tudo exatamente como esperavam. Exceto pelos guardas, muito mais numerosos do que fora previsto. A bílis subiu a cada boca.



À direita ficava a cozinha principal, com enormes caldeirões fumegantes e uma concentração de servidores... com mais guardas ali. À esquerda e ao redor do conjunto havia diversos bangalôs de hóspedes, em outros jardins, com regatos e pontes, cada um com seu caminho de entrada bem cuidado, serpeando entre os arbustos. Silêncio ali, sem luzes no interior, apenas uma lanterna acesa na varanda da frente. Mais angústia, pois esperavam que aqueles bangalôs estivessem ocupados, para servir como cobertura e diversão necessária.



Karma, pensou Saigo. Mesmo assim, nossas posições foram bem previstas, assim como as do inimigo, o plano é bom, e conhecemos a senha. Durante as duas semanas anteriores, disfarçado como samurai comum a viajar, ele encontrara a cortesã apropriada e se insinuara em suas emoções, fazendo com que o conduzisse por uma excursão secreta pelo terreno... até mesmo aos lugares em que os augustos viajantes deveriam repousar.



— Por que não? — sussurrara ele. — Quem vai saber? Eles só chegarão daqui a alguns dias... ah, você é tão bela! Vamos nos unir onde um xógum e uma irmã do filho do céu vão deitar... será uma coisa que contaremos para nossos netos. Acho que nunca a deixarei...





Fora também fácil descobrir uma criada da casa de banho, que era adepta secreta dos shishi, e persuadi-la que não haveria risco em escutar e sussurrar umas poucas palavras para a noite.



Ele sentiu Tora tocar em seu braço. Ansioso, o jovem apontou. Uma patrulha passara pelos portões. Começava a circular pelos jardins. Pequenas poças de luz brilhavam sob as lanternas. Era inevitável que a patrulha viesse para aquele lado, passasse muito perto. O sinal de Saigo, o pio de uma ave noturna, deu a ordem.



No mesmo instante, todos abaixaram-se ainda mais entre as folhagens, cabeças curvadas, mal respirando. A patrulha aproximou-se e logo passou, sem avistá-los... como Katsumata previra, ao sugerir o plano de ataque:



— Inicialmente, será fácil passarem despercebidos no escuro. Nunca esqueçam que a surpresa está do lado de vocês. Sua infiltração será inesperada. Quem ousaria atacar o xógum, quando ele se encontra cercado por tantos homens? E numa estação de posta? Impossível! Lembrem-se de que num ataque furtivo, de surpresa e veloz, dois ou três de vocês alcançarão a parte central... e um só é suficiente.



Saigo observou o inimigo se afastar. Uma exultação maravilhosa dominou-o, toda a sua confiança voltou. Outra curta espera, até a patrulha inimiga sumir de vista, e ele gesticulou a fim de que os grupos de ataque se deslocassem para as posições predeterminadas. Protegidos pelos arbustos, quatro homens se esgueiraram para a sua direita, dois para a esquerda. Assim que todos se postaram nos lugares certos, ele respirou fundo, para ajudar a diminuir as batidas do coração. O sinal, outra vez o pio de uma ave noturna, deu a ordem para começar.



No mesmo instante, a dupla na extrema direita saiu dos arbustos para o caminho, ajustando os cordões das calças, e começou a se afastar, de braços dados, como amantes. Momentos depois, foram notados pelos guardas no ponto mais próximo da sebe.



— Alto, vocês dois!



Os dois jovens obedeceram e um deles gritou:



— Arco-íris azul, Arco-íris azul, lorde sargento.



Ambos riram, simulando constrangimento por serem vistos, e continuaram a andar, de mãos dadas.



— Alto! Quem são vocês?



— Ah, sinto muito, apenas amigos, num passeio noturno — disse o jovem, em sua voz mais suave e gentil. — Arco-íris azul. Esqueceu a senha?





Um dos samurais soltou uma risada e comentou:



— Se o capitão os apanhar “passeando” pelas moitas por aqui, terão mais que um arco-íris azul e receberão outro tipo de carícias!



Mais uma vez, os dois jovens fingiram rir. Sem pressa, continuaram a andar, ignorando gritos mais estridentes para que parassem. O sargento acabou berrando:



— Vocês dois, venham até aqui imediatamente!



Eles fitaram-no por um momento, murmurando queixosos que não havia mal nenhum no que faziam. Saigo e os outros, aproveitando a manobra diversionária, deslocaram-se para as posições finais. Tensos no excitamento de não terem sido notados, descansaram por um segundo, sabendo que aquela diversão estava quase encerrada. O pio de ave noturna que Saigo emitiu desta vez foi bastante alto para alcançar os dois jovens.



Sem hesitação, eles fingiram rir e saíram correndo, joviais, para longe dos guardas, de mãos dadas, como se estivessem empenhados numa brincadeira. Passaram por um ponto de luz, o que permitiu que fossem vistos com clareza, pela primeira vez. Com um grito de raiva, o sargento e quatro homens partiram em seu encalço. Sentinelas no portão principal esquadrinharam a escuridão, para descobrir o que estava acontecendo, e os guardas ao longo da sebe, que podiam ver a cena, gritaram para outros, todos entrando em alerta.





Os dois shishi foram logo cercados. Costas contra costas, as espadas em posição, permaneceram em silêncio, sob uma barragem de perguntas; não havia nada de efeminado agora em suas posturas, ou na maneira como os lábios eram repuxados, deixando os dentes à mostra.





Enfurecido, o sargento deu um passo à frente. O jovem diante dele se preparou. A mão direita entrou pela manga, saiu com um shuriken e, antes que o sargento pudesse se esquivar, o círculo de aço de cinco pontas cravou-se em sua garganta. Ele caiu, sufocado no próprio sangue a borbulhar. Os dois shishi partiram para o ataque, mas não podiam romper o cerco, e embora lutassem bravamente, ferindo três samurais, não tinham como resistir aos outros, que queriam desarmá-los, capturá-los vivos, mas não conseguiram.



Um dos jovens recebeu um golpe de espada na parte inferior das costas e soltou um grito, ferido gravemente, mas não o suficiente para uma morte imediata. O outro virou-se para ajudá-lo e, nesse instante, sofreu um golpe fatal, caindo no chão, agonizante.





Sonno-joi — balbuciou ele.



Transtornado, o outro ouviu-o, fez uma última e impotente tentativa de se atracar com um atacante e depois, abruptamente, virou a ponta de sua espada para si mesmo e tombou por cima.



— Chamem o capitão! — ofegou um samurai, o sangue escorrendo de um corte de espada no braço.



Outro samurai saiu correndo, enquanto os demais se agrupavam em torno dos corpos, o sargento ainda a gotejar sangue, embora morresse depressa.



— Nada podemos fazer por ele. Nunca vi um shuriken ser lançado tão depressa.



Alguém virou os dois corpos de barriga para cima.





— Olhem só, poemas de morte! São shishi... e ambos Satsumas! Devem ter enlouquecido...





Sonno-joi! — murmurou outro. — Isso não é loucura.





— É loucura dizer em voz alta — advertiu-o um ashigaru de rosto calejado. — Se um oficial o ouvisse...



— Esses cães sem mãe sabiam a senha! Há um traidor aqui!





Todos se entreolharam, ainda mais nervosos. À direita, o pessoal da cozinha estava paralisado, sem saber o que acontecia. Muitos samurais haviam deixado seus postos na sebe e olhavam aturdidos para os corpos, proporcionando a oportunidade que Katsumata e Saigo haviam planejado.





Saigo fez outro sinal. Seus dois guerreiros mais fortes deixaram as moitas na extrema direita e correram para o canto sudeste. Foram avistados quase que no mesmo instante. Praguejando, os dois samurais mais próximos correram para interceptá-los, enquanto outros partiam em sua ajuda. E começou um violento combate corpo a corpo, a escuridão auxiliando os atacantes. Um defensor soltou um grito e caiu, com o braço quase todo cortado. Mais samurais foram atraídos da sebe, bem na frente de Saigo. Pouco antes que os samurais subjugassem os dois guerreiros, eles interromperam o combate, numa manobra coordenada, e fingiram correr em desordem para a cerca, perto da cozinha, afastando-se do local em que se encontravam Saigo e as outras três duplas. Enquanto corriam, desenrolaram cordas que levavam na cintura, com ganchos na extremidade. Ao se aproximarem da cerca, arremessaram as cordas para o alto, com extrema habilidade, prendendo os ganchos no topo. Começaram a subir, com os perseguidores redobrando seus esforços.





A esta altura, toda a atenção se concentrava naqueles dois. Os guardas perto da entrada e no outro lado do complexo do xógum, ainda sem saber exatamente o que acontecia, exceto que havia dois ronin à solta na área, e agora tentando escapar por cima da cerca, correram para interceptá-los. Outros também dispararam pelo lado de fora da cerca, a fim de esperá-los ali.





Um dos shishi alcançou o alto da cerca, mas antes que pudesse transpô-la, uma faca empalou-o, e ele caiu para trás, entre as moitas. O outro homem abandonou sua corda, saltou para o lado do amigo e apenas teve tempo de vê-lo enfiar a própria faca na garganta, para evitar a captura vivo, antes de tombar sob uma chuva de golpes. Virou-se e lutou com extraordinária força, mas foi logo desarmado e imobilizado no chão por quatro samurais.



— Quem são vocês? — indagou um samurai, esbaforido. — Quem são vocês e o que pretendiam fazer?





Sonno-joi... obedeçam a seu imperador — balbuciou o homem, e tentou de novo se desvencilhar das mãos que o seguravam, mas não conseguiu.



Outros se agrupavam ao seu redor e ele sentiu-se confiante de ter cumprido seu papel no ataque, satisfeito por ser capaz de continuar a manobra diversionária por mais algum tempo, sem medo da captura, pois tinha um frasco com veneno na gola do quimono, ao alcance dos dentes.



— Sou Hiroshi Ishii, de Tosa, e exijo falar com o xógum!



Do lugar em que se escondiam, Saigo e seus outros cinco homens podiam ouvir o companheiro, mas a atenção deles se concentrava na sebe em frente e na entrada no outro lado. Os poucos guardas remanescentes haviam se afastado para o cerco ao homem condenado, e agora, finalmente, o alvo se encontrava aberto.



— Atacar!





Os seis homens se levantaram de um pulo e avançaram, Saigo e Tora na vanguarda. Haviam percorrido talvez a metade da distância quando soou um grito de advertência e os samurais cercando os corpos da primeira dupla correram de volta para interceptá-los. No mesmo instante, Ishii redobrou os esforços para escapar, gritando e se debatendo, para distrair aqueles que o seguravam, mas um punho cerrado acertou-o, lançando-o na inconsciência.



— Vocês dois fiquem aqui! — balbuciou o samurai, lambendo os dedos esfolados. — Não matem o filho de um cão. Vamos precisar dele vivo.



Ele se levantou, com alguma dificuldade, claudicou atrás dos outros, com um profundo corte de espada na coxa.





Alguns defensores estavam quase alcançando os seis shishi, que ainda corriam direto para a sebe.



— Agora! — ordenou Saigo.





No mesmo instante, a dupla à sua direita se virou, assumindo posições defensivas, com shurikens nas mãos. Cautelosos, os samurais reduziram o ritmo da corrida, desviando-se para a esquerda e direita, efetuaram fintas e depois atacaram, os shurikens encontrando alvos, mas sem ferir com maior gravidade, e logo outro combate começou, seis samurais contra os dois.





Reforços corriam do portão principal, outros do primeiro ponto de diversão, e todos, defensores e atacantes, convergindo para a estrela-guia — o portão para o refúgio do xógum. Quando os homens do portão principal da estalagem perceberam, horrorizados, que as sebes e a entrada haviam ficado completamente desguarnecidas — embora as portas estivessem fechadas —, com Saigo e os outros três correndo depressa, não muito longe da sebe, desviaram o curso, para se posicionarem entre os shishi e a entrada, deixando aos outros o encargo de atacá-los. Frenéticos, correram para proteger o portão. Por trás de Saigo e Tora, os dois guerreiros atacavam, recuavam, ainda cobrindo sua retaguarda. Ambos haviam sofrido ferimentos, mas dois samurais se contorciam de dor no chão. Quatro contra dois, com outros não muito longe.



— Agora! — ordenou Saigo.





A dupla à sua esquerda desviou-se para a entrada. Era certo que a alcançariam antes dos defensores, e isso fez com que outros avançando para Saigo também mudassem de direção, seguindo para a entrada. No mesmo instante, Saigo e Tora se viraram e foram se juntar ao combate logo atrás. A carga impetuosa derrubou dois dos quatro samurais restantes e ajudou a eliminar o resto do contingente inimigo... apenas Saigo e Tora, embora ofegantes, continuavam ilesos. No mesmo instante, Saigo ordenou:



— Agora!





Os dois homens entoaram “Sonno-joi!” e correram para apoiar o ataque à entrada, atraindo mais samurais, e deixando Saigo e Tora para retomar a carga na direção da sebe.





A primeira dupla de shishi atacando o portão alcançou a trilha estreita, correu para as portas. Um deles começou a abri-las. Nesse instante uma flecha se cravou na madeira e, logo em seguida, os dois atacantes foram atingidos, crivados de flechas disparadas por arqueiros entre os reforços. Gritaram, tentaram continuar, impotentes, e morreram de pé. A segunda dupla chegou ao caminho. Um correu para o samurai mais próximo entre os que se aproximavam, o outro para o portão, tropeçou nos cadáveres dos companheiros e morreu com quatro flechadas. Apenas uns poucos minutos haviam transcorrido desde o início.



O acesso ao caminho se encontrava aberto agora. Dentro em pouco, o mais veloz dos defensores alcançaria a entrada e, então, não haveria a menor possibilidade de que Saigo e Tora, quase ao final de sua corrida para a sebe, e devendo se desviar para o portão a qualquer instante, atingissem o seu objetivo. Por isso, os defensores diminuíram o ritmo, os arqueiros miraram sem pressa, confiantes na vitória. Para espanto de todos, no entanto, Saigo e Tora, em vez de correr ao longo da sebe, continuaram em linha reta e se lançaram contra a sebe, lado a lado.



O impulso fez com que passassem por ela, assim como a precisão do salto. Nos dias anteriores, Saigo descobrira que os galhos se entrelaçavam, mas os troncos eram separados por cerca de meio metro, e concluíra que um bom impulso, se efetuado no ponto correto, permitiria a passagem para o outro lado.



E foi o que conseguiram, embora os galhos os deixassem com o rosto e braços ensangüentados. Os dois se encontravam no ponto exato que Saigo planejara — o caminho sinuoso ao lado da varanda, que levava à casa de banho. Por um momento, não havia ninguém à vista, e depois vários servos e criadas apavoradas os contemplaram de uma porta, para desaparecer em seguida. Saigo seguiu à frente na corrida silenciosa pelo caminho, subiram os degraus, contornaram o canto da varanda. Dois homens ansiosos surgiram do nada, desarmados e despreparados, um deles o camareiro. Saigo golpeou os dois, o camareiro sofreu morte instantânea, o outro ficou ferido, e ele continuou a avançar. Tora acabou de liquidar o segundo homem, pulou sobre os corpos e foi em seu encalço.





Avançaram pela varanda, contornaram o canto, arremeteram pela tela leve de shoji para entrar na casa de banho. Criadas seminuas olharam para eles, em pânico: espadas ensangüentadas, os rostos cortados e pingando sangue, quimonos rasgados. O ar era quente, úmido, com uma suave fragrância.



Saigo soltou um berro de raiva. A banheira rasa e fumegante, alimentada por uma fonte de água quente, estava vazia, assim como as quatro caixas de vapor feitas de madeira e as mesas de massagem, exceto uma. Ele absorveu no mesmo instante cada detalhe da moça pequena e nua estendida ali, os olhos chocados, a boca entreaberta, dentes enegrecidos, os cabelos pretos torcidos numa toalha branca, mais toalhas por baixo do corpo, seios diminutos, mamilos de um marrom escuro, as curvas sedutoras, a pele dourada agora rósea do calor do banho, oleosa e fragrante... e a massagista cega, seminua, de pé ao seu lado, imóvel, a cabeça inclinada, escutando com total concentração.



Seria muito fácil matar a moça e todas as outras, mas suas ordens eram para não atacar a princesa, a qualquer custo. Mesmo assim, sua fúria por ter sido enganado — o momento que escolhera fora perfeito, as informações eram perfeitas, e o padrão do xógum nunca variava — fez com que sua cabeça parecesse que iria explodir. A fúria se transformou em desejo, e ele estremeceu, querendo aquela mulher, agora, depressa, brutalmente, de qualquer maneira, a esposa antes do marido, a morte para ambos, mas só depois de possuí-la.





Os lábios se afastaram dos dentes, e ele arremeteu pela distância que os separava. As criadas se dispersaram, uma desmaiou, a princesa ofegou, permaneceu imóvel, apavorada. Mas a obsessão pelo xógum prevaleceu, e Saigo passou por ela, continuou até a porta de shoji, contra a qual se lançou, e continuou a correr, determinado, com Tora logo atrás, por outras varandas, a caminho dos aposentos de sua presa, os jardins à direita, cômodos à esquerda — não era mais um homem racional, mas sim um animal enfurecido, empenhado em matar. Portas de shoji foram abertas, rostos apareceram. Criadas, damas de companhia e servos, atraídos pela comoção, vestidos ou semidespidos para a noite, a cama ou o banho, olharam aturdidos para eles.



Não havia guardas naqueles cômodos. Ainda.



Nem qualquer oposição. Ainda.



Mais alguns cômodos para ultrapassar, portas, rostos, e depois ele viraria o último canto, a última varanda. A expectativa de Saigo aumentou ainda mais, pois o caminho era coberto e magnífico, jardins à direita e esquerda, sem ter mais de se preocupar com outros cômodos e guardas à espera, e ao final os aposentos do xógum, onde ele próprio deitara em segredo, com sua cortesã.



Todos os sentidos alertas para o perigo esperado, Tora poucos passos atrás, correndo na mesma velocidade, os sons de inimigos se aproximando. Passaram por outro cômodo. Só mais uma porta, o derradeiro perigo. Rostos na porta, um médico e um jovem tossindo, fitando-os chocados, depois ele virou a curva e iniciou a carga final, junto com Tora.





Os dois homens estacaram abruptamente. Seus corações pararam. Diante deles, um oficial e três samurais saíram pela porta do santuário, empunhando suas espadas, à espera. Uma hesitação mínima e depois Saigo correu para a morte, a sua ou a deles, Tora com o mesmo empenho, pois apenas aqueles quatro homens se interpunham entre eles e o xógum que protegiam.





Sonno-joi!





O capitão sustentou a primeira carga, aparou o golpe, as espadas se juntaram, e depois ele virou a sua, atacou Saigo, enquanto dois outros samurais avançavam para Tora, o último permanecendo de reserva, como fora ordenado. Outra sucessão de violentos golpes e contragolpes, Saigo com uma confiança absoluta, tão perto do sucesso, pressionando no ataque, sentindo-se um super-homem, e sua lâmina parecendo imbuída de vontade própria, procurando a carne inimiga, como destruiria, dentro de mais alguns segundos, o menino xógum...



Houve um clarão ofuscante por trás de seus olhos, o latejar na cabeça aumentou, e ele viu de repente o médico e o menino, lembrou que alguém lhe dissera que havia um rumor de que o xógum sofria de uma tosse seca constante... não havia retratos dele, é claro, e nenhum dos shishi jamais o vira.



— Se não o encontrarem na casa de banho — dissera Katsumata, — poderão reconhecê-lo pelos dentes enegrecidos, a tosse, a proximidade da princesa, a qualidade de suas roupas... e lembrem-se de que tanto ele quanto a princesa detestam guardas por perto.



Com uma força tremenda, aumentada ao máximo, uivando como uma besta selvagem, Saigo atacou o capitão, que escorregou no chão envernizado e por um instante ficou desamparado. Mas Saigo não desfechou o golpe fatal; em vez disso, virou-se para o menino... e o último samurai encontrou a oportunidade por que esperava, segundo as ordens. Sua espada penetrou fundo no flanco de Saigo, que nada sentiu, e golpeou impotente o fantasma do xógum à sua frente, várias vezes, resvalou para o chão ainda atacando, já morto, mas sem o saber.



O capitão levantara-se de um pulo e correu para atacar Tora, acertou-o em cheio e depois, guerreiro experiente, retirou a espada e decapitou-o de um só golpe.



— Façam a mesma coisa com ele — balbuciou o capitão, apontando para Saigo.



Seu peito arfava, enquanto tentava recuperar o fôlego. Correu de volta pela varanda. Encontrou ali homens que vinham da entrada, liderados por seu segundo no comando. O capitão xingou-o, empurrou-o para o lado, seguiu em frente, dizendo:



— Cada homem neste turno deve se apresentar na praça diante da estalagem, desarmado e de joelhos! Você também!



O coração batendo forte, ele sentia uma fúria intensa, ainda não controlara seu pânico. Pouco antes do pôr-do-sol, Nobusada mandara chamá-lo e dissera, impertinente:



— Tire todos os guardas do lado interno da sebe. É um absurdo tê-los aqui. Os aposentos são pequenos e horríveis. Será que você é tão impotente e inepto que nem é capaz de garantir a segurança nesta estalagem pequena e sórdida? Temos de nos banhar com guardas, dormir com guardas, comer com eles nos olhando? Quero que se retirem. Esta noite proíbo todos os guardas aqui!



— Mas devo insistir, Sire...



— Não vai insistir em nada. Não haverá guardas no lado de dentro da sebe esta noite. A reunião está encerrada!



Não havia nada que o capitão pudesse fazer, mas também não havia necessidade de se preocupar. Claro que tudo estava seguro.



Ao ouvrir os primeiros ruídos distantes e abafados do ataque, ele efetuava um circuito final e satisfatório pelo lado interno da sebe, acompanhado por quatro homens — a sebe também funcionava como uma barreira para o som. Ao chegar à entrada, ele ficara consternado ao ver quatro homens correndo para a sebe, e dois para o portão. Seu primeiro pensamento fora o xógum, e partira para a casa de banho, encontrando no caminho o camareiro, que lhe perguntara:



— O que está acontecendo?



— Alguns homens nos atacam! Tire o xógum do banho!



— Ele foi falar com o doutor...



Outra corrida em pânico, passando pela casa de banho, até os aposentos, para descobri-los vazios, uma criada assustada informando que o lorde xógum se encontrava num dos aposentos ao lado da varanda, e depois a saída para o corredor, deparando com dois homens atacando, sem meios de proteger o xógum, mas concluindo que se os atacantes corriam para cá é porque talvez tivessem perdido seu suserano...



O capitão sabia agora que não sobreviveria se não encontrasse o xógum vivo. O que não demorou a acontecer. Nobusada tossia e tremia, ainda assustado, cercado por várias pessoas, que aumentavam o tumulto. O capitão logo verificou que a princesa estava ilesa, embora também histérica. Seu pânico se dissipou. Ignorou o acesso de raiva de Nobusada e disse, numa voz gelada, que intimidou todos os soldados nas proximidades:



— Mandem um mensageiro e quatro homens a toda velocidade para levarem um relatório antecipado. Exceto pelos homens deste turno, todos os guardas entram de serviço agora, dentro do conjunto, cinqüenta homens em torno dos aposentos, dois homens no canto de cada varanda. E dez homens sempre à vista do lorde xógum, até que ele esteja são e salvo dentro dos muros do palácio.











No meio da manhã seguinte, dentro dos muros do palácio, Yoshi atravessava apressado o círculo exterior de jardins, sob uma chuva leve. O general Akeda caminhava ao seu lado.



— É perigoso demais, Sire — disse ele, com medo que cada moita, por mais bem cuidada que fosse, pudesse esconder um inimigo.





Os dois usavam armaduras leves e espadas, um fato raro ali, onde todos os samurais e todas as armas eram proibidos, exceto pelo xógum no poder e uma guarda imediata de quatro homens, o líder dos anciãos e o guardião do herdeiro.



Era quase meio-dia. Os dois estavam atrasados e nem notaram a beleza ao redor, lagos e pontes, arbustos floridos, árvores podadas e cuidadas ao longo dos séculos. Sempre que um jardineiro os via, fazia uma reverência e se mantinha na posição até que sumissem de vista. Usavam mantos de palha por cima das armaduras, para se protegerem da chuva. Uma chuva intermitente caíra durante toda a manhã. Yoshi acelerou os passos.





Não era a primeira vez que ele se encaminhava apressado para uma reunião clandestina na área do palácio... seguro, mas nunca totalmente seguro. Era muito difícil ter uma reunião com segurança absoluta em qualquer parte — sempre havia o receio de uma emboscada, veneno, arqueiros escondidos ou inimigos armados com mosquetes. O mesmo se aplicava a todos os outros daimios. Ele sabia que seu fator de segurança era bastante baixo. Tio baixo, na verdade, que seu pai e avô haviam-lhe ensinado a aceitar o fato de que a morte de velhice não tinha lugar no karma da família.



— Estamos tão seguros quanto em qualquer outro lugar do mundo — comentou ele. — Seria inconcebível romper uma trégua aqui.



— A não ser por Ogama. É um mentiroso e impostor, deveria servir de alimento para os abutres, a cabeça espetada num chuço.





Yoshi sorriu e sentiu-se melhor. Desde que chegara a notícia assustadora do ataque shishi, no meio da noite, ele estivera mais nervoso do que nunca... mais do que na ocasião da morte do tio, quando fora preterido na escolha do novo xógum, com a indicação de Nobusada, mais do que na época em que o tairo Li o prendera, ao pai e toda a família, mantendo-os cativos em sórdidos aposentos. Providenciara o envio de duzentos homens para receber a comitiva na barreira de Quioto, e ao amanhecer despachara Akeda em segredo para relatar a Ogama o que acontecera, e por que tantos homens equipados para a guerra deixavam sua estacada.



— Transmita a Ogama todas as informações que recebemos e responda às suas perguntas. Não quero erros, Akeda.



— Não haverá nenhum da minha parte, Sire.



— Ótimo. Depois, entregue a carta e solicite uma resposta imediata. Yoshi não revelara a Akeda o que a carta continha, nem seu general perguntara.



Assim que Akeda voltara, Yoshi pedira:



— Conte-me exatamente o que ele fez.



— Ogama leu a carta duas vezes, cuspiu, praguejou, passou-a a seu conselheiro, Basushiro, que leu também, mantendo impassível aquela sua cara bexiguenta e repulsiva, sem nada deixar transparecer, e depois disse: “Talvez devêssemos conversar sobre isto em particular, Sire.” Eu lhes disse que esperaria. Depois de algum tempo, Basushiro voltou e declarou: “Meu lorde concorda, mas irá armado, e eu também.” O que está acontecendo, Sire?



Yoshi contou e o velho se mostrou espantado.



— Pediu para se encontrar com ele a sós? E eu serei o único guarda? É uma loucura! Só porque ele disse que irá apenas com Basu...



— Chega!





Yoshi sabia que os riscos eram enormes, mas tinha de jogar mais uma vez, precisava de uma resposta para a sua proposta sobre os portões; quando se preparava para sair, um dos muitos espiões do xogunato relatara certas conversas entre o shishi Katsumata e os outros na Estalagem dos Pinheiros Sussurrantes, deixando-o exultante por ter pedido o encontro.



— Lá está ele!



Ogama se encontrava parado sob uma árvore de galhos enormes, onde fora marcado o encontro, com Basushiro ao seu lado. Ambos estavam visivelmente desconfiados, esperando uma traição, mas não pareciam tão nervosos quanto Akeda. Yoshi propusera que Ogama entrasse pelo portão sul, ele usaria o portão leste, deixando seu palanquim e os guardas do lado de fora, com o salvo-conduto garantido. Depois da reunião, todos os quatro sairiam juntos pelo portão leste.



Como antes, os dois adversários se adiantaram, para conversarem a sós. Akeda e Basushiro ficaram observando, muito tensos.





— Mas que coisa! — exclamou Ogama, depois dos cumprimentos formais. — Uns poucos shishi atacam através de centenas de guardas, como uma faca passando pela bosta, e quase alcançam o banheiro de Nobusada, a esposa nua e o leito, antes de serem apanhados. Dez homens, você diz?





— Três eram ronin de Choshu, os dois que passaram pela sebe eram Choshus, um deles o líder.



Yoshi ainda não superara seu susto pelo ataque e especulou se ousaria desembainhar a espada naquela excepcional oportunidade de desafiar Ogama sozinho, já que Basushiro não representava nenhuma ameaça física, com ou sem Akeda.





Preciso de Ogama morto, de um jeito ou de outro, pensou ele, mas não agora, não quando dois mil Choshus ocupam os portões e me mantêm imobilizado.





— Todos morreram sem causar maiores danos, exceto a alguns guardas, os sobreviventes não continuarão neste mundo por muito mais tempo. É verdade o que dizem, que você ofereceu anistia a todos os ronin de Choshu? — Havia algum nervosismo em sua voz, e Yoshi especulou de novo se Ogama tivera alguma participação secreta no planejamento, que fora impecável, e que deveria ter tido êxito, a se dizer a verdade. — Quer fossem shishi ou não?





— É verdade — respondeu Ogama, apenas a boca sorrindo. — Todos os daimios deveriam fazer a mesma coisa, uma maneira simples e rápida de controlar os ronin, quer sejam ou não shishi. Eles constituem uma pestilência que deve ser contida.





— Concordo. Só que a anistia não vai detê-los. Posso perguntar quantos dos seus ronin aceitaram a oferta?



Ogama soltou uma risada.





— Com toda certeza, não os que participaram do ataque! Um ou outro até agora, Yoshi-dono. Quantos são, no total? Uma centena? Não devem chegar a duzentos, dos quais vinte ou trinta podem ser de Choshu. Mas não importa se são Choshus ou não. — O rosto endureceu. — Não planejei o ataque, se é isso o que está pensando, nem sabia a respeito.



O sorriso sombrio ressurgiu.





— É inadmissível acalentar um pensamento tão traiçoeiro, não é mesmo? Seria fácil acabar com os shishi, se você e eu quiséssemos... mas o lema deles não é tão fácil de se suprimir, se é que deve ser suprimido. O poder deve voltar ao imperador, os gai-jin devem ser expulsos. Sonno-joi é um bom lema, não concorda?



— Eu poderia dizer muitas coisas, Ogama-dono, mas aliados não devem se provocar. Somos aliados? Você concorda?



Ogama acenou com a cabeça.



— Em princípio, sim.



— Ótimo. — Yoshi disfarçou o espanto por Ogama ter concordado com suas condições. — No prazo de um ano, você será o chefe dos anciãos. A partir de meio-dia, minha guarnição assume os portões.



Ele virou-se para ir embora.



— Tudo como disse. Exceto os portões.



A veia na testa de Yoshi saltou.



— Mas expliquei que preciso dos portões.





— Sinto muito. — A mão de Ogama não segurara o punho da espada, embora os pés assumissem uma posição melhor para o combate. — Aliados secretos, sim, guerra com Tosa, sim, com Satsuma, sim, os portões, não. Sinto muito.



Por um momento, Yoshi Toranaga não disse nada. Fitou Ogama, que sustentou seu olhar, sem medo, esperando, pronto para lutar, se fosse necessário. Depois, Yoshi suspirou, removeu as gotas de chuva da beira do chapéu de aba larga.



— Quero que sejamos aliados. E aliados devem se ajudar mutuamente. Talvez eu chegue a um acordo, mas primeiro lhe darei algumas informações especiais: Katsumata está aqui, em Quioto.



O sangue afluiu ao rosto de Ogama.



— Não é possível. Meus espiões teriam me avisado.



— Ele está aqui e há algumas semanas.



— Não há homens de Sanjiro em Quioto, muito menos esse. Meus espiões teriam...





— Sinto muito — insistiu Yoshi, a voz insinuante —, mas ele se encontra aqui em segredo, não como batedor e espião de Sanjiro, pelo menos não abertamente, Katsumata é shishi, um sensei de shishi, e o líder dos shishi aqui, com o codinome de Corvo.



Ogama estava aturdido.





— Katsumata é o líder shishi?





— Isso mesmo. E um pouco mais. Pense por um momento: ele não é o conselheiro e tático mais antigo e de maior confiança de Sanjiro? Não o enganou, por conta de Sanjiro, com seu falso pacto e a manobra para frustrá-lo em Fushimi, permitindo que Sanjiro escapasse? Isso não significa que Sanjiro de Satsuma é secretamente o verdadeiro líder dos shishi, e que todos os assassinatos fazem parte de seu plano geral de derrubar a todos nós, a você em particular, para se tornar o xógum?





— Esse sempre foi o objetivo de Sanjiro, não resta a menor dúvida — murmurou Ogama, confuso, percebendo que muitas ocorrências até então inexplicadas agora se ajustavam nos lugares devidos. — Se ele controla também todos os shishi...



Ogama fez uma pausa, subitamente furioso por Takeda nunca lhe ter contado. Afinal, Takeda não é meu espião, um verdadeiro vassalo secreto?



— Onde está Katsumata neste momento?



— Uma de suas patrulhas quase o emboscou na Estalagem dos Pinheiros Sussurrantes, há poucos dias.



A cor voltou ao rosto de Ogama.





— Ele se encontrava ali? Fomos informados que alguns shishi dormiam ali, mas eu nunca soube...





Mais uma vez, ele quase sufocou de raiva por Takeda não ter avisado que seu odiado inimigo estava ao seu alcance. Por quê? Ora, não importa, seria fácil cuidar de Takeda. Primeiro, porém, Katsumata. Não esqueci que Katsumata frustrou meu ataque de surpresa a Sanjiro. Se não fosse por Katsumata, Sanjiro teria morrido, eu me tornaria o lorde de Satsuma e não haveria a menor necessidade de conversar com Yoshi Toranaga... ele se poria de joelhos diante de mim.



— Onde ele está neste momento? Sabe o local?





— Sei onde é a casa segura em que ele esteve ontem à noite, onde talvez apareça também esta noite. — Uma pausa, e Yoshi acrescentou, a voz bem suave:— Há mais de cem shishi em Quioto. Eles já planejam um ataque em massa contra você.



Ogama sentiu um calafrio, sabendo que não existia nenhuma defesa eficaz contra um fanático assassino que não tinha medo de morrer.



— Quando?



— Deveria ser amanhã, ao crepúsculo... se o ataque contra o xógum fosse bem-sucedido. Depois que você morresse, com a ajuda de partidários entre suas tropas, eles tomariam os portões.



Ogama precisou recorrer a todo seu controle para não revelar a Yoshi que deveria ter uma reunião secreta com Takeda, no dia seguinte, ao crepúsculo, momento perfeito para um ataque de surpresa.



— E agora que foi um fracasso?



— A informação que recebi foi de que os líderes se reunirão esta noite para decidir. Agora, formalmente, você se encontra no topo da lista, logo depois do meu nome e de Nobusada.





— Por quê? — indagou Ogama, veemente. — Eu apoio o imperador, apoio a luta contra os gai-jin.



Yoshi absteve-se de sorrir, sabendo o que era melhor.



— Vamos juntar nossas forças esta noite. Sei onde fica o ponto de reunião, onde Katsumata e a maioria dos líderes devem se encontrar esta noite... há um toque de recolher do amanhecer ao anoitecer naquela parte da cidade.



Ogama exalou.



— E o preço?



— Primeiro, tenho mais uma informação que afeta bastante a nós dois.



Aumentando a apreensão de Ogama, Yoshi relatou os detalhes da reunião dos anciãos com Sir William e os outros ministros, falou de seu espião Misamoto, da ameaça de Sir William de efetuar em breve uma incursão armada a Quioto, assim que sua esquadra voltasse, e como a ameaça e o pagamento haviam sido protelados por um estratagema.



— A esquadra deles não passará por Shimonoseki... se eu assim ordenar.



— Podem fazer o percurso mais longo, contornando a ilha do Sul.



— Percurso mais longo, percurso mais curto, não faz diferença. Se desembarcarem em Osaca, ou nas proximidades, eu... ou nós vamos destruí-los.





— Na primeira vez. Com grandes perdas, mas conseguiremos, os gai-jin serão rechaçados. Há dois dias, no entanto, recebi um relatório secreto do departamento do Bakufu que lida com as informações da China. — Yoshi estendeu o pergaminho. — Leia você mesmo.



— O que diz? — perguntou Ogama, bruscamente.



— Que a esquadra de Iocoama, enviada para punir o afundamento de um único navio britânico, devastou vinte léguas da costa da China, ao norte de Xangai, incendiando todas as aldeias, afundando todas as embarcações.



Ogama cuspiu.



— Piratas. Ninhos de piratas.





Ele sabia bastante sobre a região. No passado, fora uma política histórica embora secreta de Choshu — e também de Satsuma — enviar atacantes à costa da China para saquear implacavelmente, de Xangai, para o sul, além de Hong Kong, até o estreito de Taiwan. Os chineses chamavam-nos de wako, piratas, odiando-os e temendo-os tanto que por séculos os imperadores da China haviam proibido que qualquer japonês desembarcasse em suas praias; todo o comércio entre as duas terras era conduzido apenas por não-japoneses.





— Piratas, sim, mas aquela escória nada tem de covarde. Não faz muito tempo, um exército desses mesmos gai-jin humilhou toda a China, pela segunda vez, incendiou o palácio de verão do imperador e Pequim a seu capricho. Suas esquadras e exércitos possuem tremendo poder.





— Estamos no Nipão, não na China. — Ogama deu de ombros. Não se sentia disposto a revelar seus planos para a defesa de Choshu. E pensou: minhas costas são escarpadas, infestadas de rochedos, difíceis de invadir, bastante defensáveis, muito em breve se tornarão inexpugnáveis, assim que todas as fortificações ficassem prontas e seus guerreiros ocupassem seus postos. — E nós não somos chineses.





— Minha opinião é de que precisamos de paz entre todos os daimios para ganhar tempo, manipular os gai-jin, descobrir tudo sobre seus canhões secretos, armas secretas, navios secretos, saber como o povo de uma ilha tão pequena e repulsiva, menor que a nossa terra, tornou-se o mais rico do mundo e domina a maior parte.



— Mentiras, mentiras espalhadas para assustar os covardes aqui.



Yoshi sacudiu a cabeça.



— Não acredito nisso. Primeiro, devemos aprender, depois poderemos destruí-los, o que é impossível agora.





— Não é, não. Esta é a terra dos deuses. Tenho uma fábrica de canhões em Choshu, em breve haverá outras. Satsuma tem três pequenos navios a vapor, o início de um estaleiro; logo terá outros. — O rosto de Ogama se contraiu. — Podemos destruir Iocoama e essa esquadra, e estaremos preparados quando os outros voltarem.



Yoshi ocultou sua surpresa pela veemência e intensidade do ódio, secretamente exultante por ter descoberto outra arma que podia usar.



— Concordo. É esse o meu objetivo. Como pode ver, Ogama-dono — disse ele, como se estivesse bastante aliviado —, pensamos da mesma maneira, embora talvez de pontos de vista diferentes. Vamos destruí-los, mas no momento certo, o momento que escolhermos, após extrairmos os seus conhecimentos, depois que nos derem os meios para frustrarmos seus planos e partirmos suas cabeças.



Uma pausa, e Yoshi acrescentou, a voz firme:



— Dentro de um ano, você e eu controlaremos o conselho e o Bakufit. Em três ou quatro anos, podemos comprar muitos fuzis, canhões e navios.





— Pagos como? Os gai-jin são gananciosos.



— Um meio é carvão para seus navios. Outro é ouro. Yoshi explicou seu esquema de exploração.





— Muito esperto — murmurou Ogama, os lábios se contraindo num estranho sorriso. — Temos em Choshu carvão, ferro e árvores para navios.



— E já uma fábrica de armamentos.



Ogama riu, uma boa risada, e Yoshi riu também, sabendo que conseguira uma abertura.



— É verdade, e minhas baterias aumentam a cada mês. — Ogama ajeitou o manto, sob a chuva crescente, e acrescentou, incisivo: — Assim como minha determinação em disparar contra os navios inimigos, no momento em que desejar. São essas todas as suas informações, Yoshi-dono?



— Por enquanto. Posso aconselhá-lo a relaxar um pouco a pressão no estreito... de qualquer forma, é seu para fazer o que bem quiser. Isso é tudo, por enquanto, mas como aliado você receberá todos os tipos de informações sigilosas.



— Como aliado, eu esperaria as informações sigilosas.



Ogama balançou a cabeça, meio para si mesmo. Olhou para Basushiro, depois mudou de idéia sobre consultá-lo. Yoshi tem razão, pensou ele, os líderes devem ter segredos.



— Já falamos o suficiente. Katsumata: perguntei o preço. Um ataque conjunto esta noite.



— O que um aliado muito importante ofereceria?



Ogama esticou-se para aliviar a tensão no pescoço e ombros, esperando por essa indagação... pois apesar de toda a sua bravata, nada tinha de tolo. Haveria tempo suficiente para mudar uma oferta, pensou ele, embora nenhum de nós dois jamais perderia a honra barganhando como os desprezados mercadores de arroz de Osaca.



— Você pode guarnecer os portões por um mês, apenas vinte homens em cada um dos seis portões, com duzentos de meus homens estacionados nas proximidades... — Ogama sorriu —... mas não bastante perto para embaraçá-lo. Qualquer pessoa entrando ou saindo receberá permissão de seu oficial nos portões, como é correto... depois de uma prévia e discreta consulta ao meu... ao meu oficial de ligação.



— Consulta?



— Consulta, como é de praxe entre aliados sigilosos, para que se possa chegar a um consenso sem maiores dificuldades. — O sorriso desapareceu. — Se mais de vinte de seus homens aparecerem, os meus homens recuperam a posse e todos os acordos são cancelados. Concorda?



Os olhos de Yoshi se tornaram impassíveis. Não havia necessidade de ameaças, pois era óbvio que qualquer manobra escusa de um dos lados cancelaria todos os acordos.



— Prefiro quarenta homens em cada portão... podemos aceitar sem problemas os detalhes da mudança da guarda... e eu guarneço os portões enquanto o xógum Nobusada e a princesa Yazu permanecerem lá dentro.



Ogama percebera a mudança.



— O xógum Nobusada, sim, mas não a princesa, que... que pode continuar lá dentro para sempre, não é mesmo? Quarenta? Está certo, quarenta em cada portão. E é claro que o irmão dela, o filho do céu, não revogará seu memorial, sua solicitação para que eu vigie os portões contra seus inimigos.



— O filho do céu é o filho do céu, mas duvido que haja cancelamento enquanto as forças do xogunato estiverem exercendo seus direitos históricos.





— Vamos esquecer essa conversa polida e falar às claras: aceitarei um artifício para salvar as aparências nos portões, em troca de Katsumata e todo o resto... seus homens se tornam a guarda de honra, seus estandartes podem ficar lá. Concordo com muito do que você disse, isso mesmo, com muita coisa, mas não renuncio à minha oposição aos “direitos históricos”, ao xogunato e ao Bakufu...



Ogama fez uma pausa; e porque queria de fato o que lhe era oferecido, fez outra concessão:





—... ao atual xogunato e Bakufu, Yoshi-dono. Por favor, desculpe minha franqueza. Seria ótimo se pudéssemos ser aliados. Eu não imaginava que seria possível, nem que pudesse concordar com qualquer coisa.



Yoshi acenou com a cabeça, ocultando seu júbilo.



— Sinto-me feliz por podermos concordar, e digo com franqueza que se podemos concordar em grandes mudanças, também chegaremos a um acordo nas pequenas. Por exemplo, se tal memorial viesse do imperador, seria uma falsificação.



O sorriso de Ogama agora foi genuíno, e ele achou que chegara a um acordo perfeito.



— Ótimo. Agora, vamos cuidar de Katsumata.





O ataque ao esconderijo dos shishi começou poucas horas antes do amanhecer. A surpresa foi perfeita. Katsumata, todos os sublíderes e muitos outros se encontravam no local. Inclusive Sumomo.





O primeiro momento em que os dois vigias perceberam o perigo foi quando uma das choupanas, quase no final da viela, lamacenta da chuva, irrompeu em chamas, aos gritos abafados de alarme dos ocupantes e vizinhos próximos. No mesmo instante, esses homens e mulheres — todos infiltrados em segredo pelo Bakufu —, saíram para a viela, num pânico simulado, a manobra diversionária ajudando a encobrir a aproximação furtiva da força atacante. Quando as sentinelas foram investigar, flechas zumbiram pela noite e as liquidaram. Um dos homens ainda gritou em advertência antes de morrer.



A força principal surgiu da noite para cercar toda aquela área de habitações miseráveis. A maioria dos homens era de Ogama, a seu pedido. Yoshi concordara, dizendo que enviaria uma tropa simbólica, de homens escolhidos a dedo, sob o comando de Akeda.



Num instante, muitos dos atacantes acenderam tochas, que iluminaram parcialmente a cabana que era o alvo principal, por trás e pela frente. Uma saraivada de flechas penetrou por todas as aberturas e pontos fracos. Depois, num movimento inesperado, os quatro homens de Yoshi armados com fuzis ocuparam suas posições, dois atrás do conjunto de cabanas, dois na frente, e dispararam várias rajadas, através das paredes de papel.





Por um momento, houve um silêncio atordoado — samurais, shishi e todos os moradores igualmente chocados —, pois o som de tiros em rápida sucessão era algo sem precedentes. O silêncio logo foi rompido, enquanto todos, menos os atacantes, dispersavam-se em busca de cobertura, e os feridos lá dentro soltavam gritos de dor. Uma cabana ao lado da primeira que se incendiara também pegou fogo, as chamas se espalharam depressa para a casa ao lado, para outra e mais outra, até que os dois lados da extremidade da viela se transformaram num inferno, com muitas famílias acuadas.





O capitão de Ogama que liderava o ataque não deu a menor atenção a esse perigo, que ameaçava apenas os habitantes. Ordenou a primeira onda de ataque, ignorando o conselho de Yoshi para atear fogo às cabanas, e deixar que seus homens com rifles liquidassem os shishi, à medida que saíssem em busca de cobertura. Quatro atacantes de Ogama tombaram sob uma impetuosa incursão de shishi, pela porta da frente e janelas laterais. Começou uma luta generalizada, tanto ali como nos fundos, enquanto outra incursão furiosa era contida, homens se debatendo, estorvados pelo espaço restrito, a lama e a semi-escuridão. Dois homens ultrapassaram o cerco, só para serem retalhados por outros, esperando em emboscada. Outra rajada contra a cabana foi seguida por mais uma tentativa de fuga, por parte de um grupo frenético de shishi, numa missão impossível, já que outro círculo de samurais os aguardava mais além, e depois um terceiro. A fumaça dos incêndios começou a atrapalhar os atacantes e atacados.





Uma ordem de Akeda. Seus homens com tochas aproximaram-se correndo das cabanas e as arremessaram nos telhados e através das paredes de shoji, recuando apressados, em seguida, para oferecer uma área desimpedida aos seus companheiros com fuzis. Mais disparos, mais mortes, enquanto outro bando de shishi saía correndo para se juntar ao confuso combate. O cheiro de fumaça, lixo, sangue, fogo, carne queimada e morte impregnava a noite úmida. A chuva virou uma garoa.





Protegidos por guardas pessoais, Ogama e Yoshi observavam de um posto de comando, longe do fogo e do combate. Ambos usavam armaduras e espadas; Yoshi tinha seu fuzil pendurado no ombro. Havia alguns representantes do Bakufu ao lado deles. Na confusão furiosa, ficaram surpresos ao avistar um shishi romper o círculo de atacantes, correr pela viela e se esgueirar por um caminho transversal, evitando os samurais de Choshu.



— Aquele é Katsumata? — gritou Ogama.



Suas palavras foram abafadas no momento em que Yoshi, sem a menor hesitação, mirou o fuzil, atirou, tornou a carregar, disparou de novo. O homem caiu, gritando. Ogama e todos ao redor recuaram, pois não esperavam que Yoshi se envolvesse pessoalmente. Sem pressa, Yoshi apontou mais uma vez para o homem, que se contorcia na lama, impotente. Abala arremessou o corpo para trás. Um uivo final e torturado e o homem ficou inerte.



— Não é Katsumata — murmurou Yoshi, desapontado.



Ogama soltou uma imprecação, pois sua visão noturna não era muito boa. Desviou os olhos do corpo para fixá-los no fuzil, folgado nas mãos de Yoshi, reprimindo um tremor.



— Usa isso muito bem.



— É fácil aprender, Ogama-dono, bastante fácil. — Com uma despreocupação cuidadosa, Yoshi pôs outra bala na culatra, convencido de que aquele era o primeiro fuzil que Ogama via. Trouxera os homens com os fuzis deliberadamente, para impressioná-lo, mantê-lo hesitante, fazer com que se tomasse mais cauteloso em qualquer tentativa de assassinato. — Matar assim é repulsivo, covarde, desonroso.



— É mesmo. Posso examinar a arma, por favor?



— Claro. — Yoshi puxou a trava de segurança. — É um fuzil americano... o último modelo de carregar pela culatra. Receberei cinco mil em breve.



Ele exibiu um sorriso fugaz, recordando que se apropriara da encomenda de Ogama, antes de acrescentar:





— Meu ancestral foi sábio ao proibir todas as armas de fogo... qualquer pessoa pode usar uma dessas para matar, de perto ou a distância, daimio, mercador, assaltante, ronin, camponês, mulher, criança. Meu ancestral foi muito sábio. É uma pena que não possamos fazer a mesma coisa, mas os gai-jin tornaram isso impossível.



O fuzil pareceu estranho para Ogama, mais pesado do que uma espada, oleado e mortífero, e isso aumentou o excitamento do ataque, as mortes, os gritos, a batalha, saber que Katsumata se encontrava de fato lá dentro, como seus espiões haviam informado, e que muito em breve a cabeça de seu odiado inimigo estaria em exposição. Tudo se somava para deixá-lo com uma incômoda náusea.



Era bom matar assim, sem correr qualquer perigo pessoal, pensou ele, os dedos acariciando o cano, mas Yoshi tem razão, mais uma vez. Nas mãos erradas... todas as outras mãos seriam erradas. Cinco mil? Isso tornaria muito difícil um combate. Encomendei apenas duzentos e cinqüenta... de onde ele tira o dinheiro, já que suas terras se acham tão endividadas quanto as minhas... ah, sim, esqueci, negociando concessões de mineração. Muito esperto. Farei a mesma coisa. Esta noite ele trouxe quarenta homens. Por que quarenta? Para me lembrar que concordei com uma guarnição de quarenta em cada portão? Quarenta homens com fuzis poderiam dizimar meus duzentos, a menos que estivessem igualmente armados.



— Tem mais fuzis aqui? — indagou ele.



Yoshi decidiu ser franco.



— Não, por enquanto.





Pensativo, Ogama devolveu o fuzil e concentrou sua atenção nas cabanas. Os sons da batalha diminuíam, o ruído dos incêndios aumentava, mais e mais habitantes tentavam apagá-los, em fileiras, passando baldes com água. Os telhados e as paredes das cabanas principais ardiam agora. Houve outro combate desesperado, corpo a corpo, enquanto mais shishi deixavam as cabanas em chamas, muitos já feridos.



— Katsumata não está entre eles — disse Yoshi.



— Talvez ele tenha tentado escapar pelos fundos.





Ali, fora das vistas dos dois, já havia cinco shishi mortos no chão de terra, junto com oito samurais de Ogama, e seis feridos. Outra batalha entre três shishi e dez samurais de Ogama se aproximava de sua conclusão inevitável. Um brado final de “Sonno-joi!” e os três homens correram para a morte. Trinta samurais de Choshu aguardavam a próxima tentativa de fuga. Saía fumaça pelas aberturas nas paredes de shoji. Um cheiro de carne queimada impregnava o ar. Nenhum movimento no interior. Um oficial gesticulou para um samurai.



— Relate ao capitão o que aconteceu aqui e pergunte se devemos esperar ou entrar.



O homem saiu correndo.





A escaramuça terminou, como todas as outras. Os três shishi morreram bravamente. Havia mais doze mortos, dezessete samurais de Choshu e um dos homens de Yoshi. Quatorze feridos, três shishi impotentes, desarmados, ainda vivos. O capitão ouviu o relatório.



— Diga ao oficial para esperar e matar quem tentar sair. — Ele chamou um grupo mantido em reserva. — Esvaziem as cabanas enquanto ainda há tempo. Matem qualquer um que não se render, menos os feridos.



No mesmo instante, os homens encaminharam-se para a porta. Lá dentro, soaram gritos e depois houve silêncio. Um dos homens saiu, o sangue escorrendo de um talho profundo na coxa.



— Meia dúzia de feridos, muitos cadáveres.



— Traga-os para fora antes que o telhado desabe.





Os cadáveres e os feridos foram alinhados diante de Yoshi e Ogama, com os representantes do Bakufu logo atrás. As tochas projetavam estranhas sombras. Vinte e nove mortos. Onze feridos impotentes. Katsumata não se encontrava entre eles.



— Onde ele está? — berrou Ogama para seu capitão, furioso.



Yoshi também se sentia irritado, sem saber exatamente quantos inimigos havia lá dentro ao começar a batalha.



— Sire, juro que ele estava lá dentro antes de começar e não saiu — respondeu o capitão, caindo de joelhos.





Ogama aproximou-se do mais próximo shishi ferido.



— Onde ele está?



O homem lançou-lhe um olhar furioso, através da dor.



— Quem?



— Katsumata! Katsumata!





— Quem? Não conheço... nenhum Katsumata. Sonno-joi, traidor! Mate-me, acabe logo com isso!



— Daqui a pouco — disse Ogama, através dos dentes semicerrados. Todos os feridos foram interrogados. Ogama examinou cada rosto — Katsumata não estava ali. Nem Takeda.



— Matem todos.





— Deixe-os morrer honrosamente, como samurais — sugeriu Yoshi.



— Está bem.



Ambos se viraram para ver o desabamento do telhado e das paredes da cabana, numa chuva de fagulhas, arrastando as cabanas adjacentes. A chuva fina recomeçara.



— Capitão! Apague o incêndio. Deve haver um porão, um esconderijo, se esse monte de bosta não é um tolo incompetente.



Ogama se afastou, dominado pela raiva, pensando que fora enganado, de alguma forma. Um oficial aproximou-se de Yoshi, bastante nervoso.



— Com licença, Sire — murmurou ele. — A mulher também não está aqui. Devia haver...



— Que mulher?





— Ela era jovem. Uma Satsuma. Estava com eles há algumas semanas. Achamos que era a companheira de Katsumata. Lamento dizer que também não encontramos Takeda.



— Quem?





— Um shishi de Choshu que temos vigiado. Talvez ele fosse espião de Ogama... foi visto se esgueirando furtivo para o quartel-general de Ogama no dia anterior ao fracasso de nosso outro ataque a Katsumata.



— Mas Katsumata e esses outros dois não estavam lá dentro?



— Com toda certeza, Sire. Todos os três.



— Então há um porão ou um caminho secreto de fuga.



Descobriram ao amanhecer. Um alçapão sobre um túnel estreito, com espaço apenas suficiente para se rastejar até a outra extremidade, a uma boa distância, num jardim coberto pelo mato de uma casa vazia. Furioso, Ogama chutou a entrada camuflada.



— Baka!



— Vamos oferecer uma recompensa pela cabeça de Katsumata — propôs Yoshi. — Uma recompensa muito especial.



Ele também sentia-se furioso. Era óbvio que o fracasso afetava o relacionamento manipulado e iniciado com tanta dificuldade. Mas Yoshi era astuto demais para mencionar Takeda ou a mulher... ela não tinha a menor importância.





— Katsumata deve ter permanecido em Quioto. O Bakufu vai ordenar que ele seja procurado, capturado e que nos tragam sua cabeça.



— Meus partidários farão a mesma coisa.



Ogama ficou um pouco apaziguado. Também estivera pensando em Takeda, especulara se sua fuga era um bom ou mau presságio. Ele olhou para o capitão que se aproximara.



— Oque é?



— Deseja ver as cabeças agora, Sire?



— Claro. Yoshi-dono?



— Eu também quero ver.





Os shishi feridos haviam recebido permissão para morrer honrosamente, sem mais dor. Foram decapitados de acordo com o ritual, as cabeças lavadas e agora alinhadas. Quarenta. Outra vez esse número, pensou Ogama, apreensivo. Será um presságio? Mas ele escondeu sua inquietação e não reconheceu nenhum dos homens.



— Já os vi — declarou ele, formalmente, no amanhecer chuvoso.



— Já os vi — acrescentou Yoshi, com a mesma solenidade.



— Ponham as cabeças em chuços, vinte diante dos meus portões, vinte diante do quartel-general de lorde Yoshi.



— E o cartaz, Sire? — indagou o capitão.



— O que sugere, Yoshi-dono?



Depois de uma pausa, sabendo que era outra vez submetido a um teste, Yoshi disse:





— Os dois cartazes podem avisar o seguinte: Estes proscritos, ronin, foram punidos por crimes contra o imperador. Que todos tenham cuidado com seus atos iníquos. Acha satisfatório?



— Acho. E a assinatura?





Ambos sabiam que isso era muito importante, uma questão de difícil solução. Se Ogama assinasse sozinho, seria uma indicação de que tinha a posse legal dos portões; se fosse Yoshi, indicaria que Ogama se encontrava subordinado a ele, o que era verdade, em termos legais, mas inadmissível. O sinal do Bakufu insinuaria a mesma coisa. Um sinal da corte representaria uma intromissão indevida em assuntos temporais.



— Talvez estejamos dando importância demais a esses tolos — comentou Yoshi, simulando desprezo.



Seus olhos se contraíram quando, por cima do ombro de Ogama, avistou Basushiro e alguns guardas dobrarem a esquina da viela enlameada e se aproximarem correndo. Ele tornou a fitar Ogama.



— Por que não deixar suas cabeças em chuços aqui? Por que lhes conceder a honra de um cartaz? Aqueles que quiserem saber o que aconteceu aqui logo tomarão conhecimento de tudo... e ficarão intimidados. Neh?



Ogama sentiu-se satisfeito com a solução diplomática.



— Excelente! Concordo. Vamos nos encontrar de novo ao pôr-do-sol, e... Ele parou de falar, ao perceber a aproximação apressada de Basushiro, suado e ofegante. Foi ao seu encontro.



— Mensageiro de Shimonoseki, Sire — balbuciou Basushiro.



O rosto de Ogama tornou-se uma máscara. Ele pegou o pergaminho, foi até uma tocha. Todos o observavam enquanto abria a mensagem... e Basushiro segurava um guarda-chuva sobre sua cabeça.



A mensagem era do capitão que comandava a guarnição no estreito, datada de oito dias antes, despachada com o máximo de presteza, os homens galopando dia e noite, com a mais alta prioridade:



Sire, ontem a esquadra inimiga retornou, consistindo em nave capitânia e mais sete navios de guerra, todos a vapor, alguns rebocando barcaças com carvão, entraram no estreito. Seguindo suas instruções, de que não deveríamos atacar navios de guerra inimigos sem suas ordens por escrito, deixamos passar.



Depois da passagem da armada, uma fragata a vapor, com a bandeira francesa, voltou, numa demonstração de arrogância, e disparou sucessivas cargas de artilharia contra nossas quatro baterias na extremidade leste do estreito, destruindo-as, antes de tornar a se afastar. Mais uma vez, abstive-me de retaliar, cumprindo suas ordens. Se atacado no futuro, solicito permissão para afundar o atacante.





Morte a todos os gai-jin, Ogama sentiu vontade de gritar, cego de raiva por toda uma esquadra inimiga ter passado ao seu alcance, como Katsumata, mas acabasse escapando à vingança... como Katsumata. Salpicos de saliva espumante surgiram nos cantos de seus lábios.



— Prepare novas instruções: ataque e destrua todos os navios de guerra inimigos.



Basushiro, ainda tentando recuperar o fôlego, murmurou:



— Permite-me sugerir, Sire, que considere “se mais de quatro ao mesmo tempo”? Sempre quis manter a surpresa.



Ogama limpou a boca, acenou com a cabeça, o coração batendo forte ao pensamento de tantos navios que poderia ter destruído. A chuva aumentara e tamborilava no guarda-chuva. Além de Basushiro, ele avistou Yoshi e diversos oficiais, esperando, observando-o, e avaliou se deveria tratar Yoshi como inimigo ou aliado, as implicações da esquadra, sua arrogância, e a própria impotência sufocando-o.



— Yoshi-dono!



Ele fez um sinal para Yoshi, e os dois, juntamente com Basushiro, afastaram-se para um ponte mais isolado.



— Leia; por favor.



Yoshi leu rapidamente. Apesar de todo o seu controle, a cor se esvaiu do rosto.



— A esquadra seguia para o mar interior, na dkeção de Osaca? Ou ia para o sul, na direção de Iocoama?



— Para o sul ou não, os próximos navios de guerra que passarem por minhas águas serão afundados! Basushiro, mande homens imediatamente para Osaca...



— Espere um instante, Ogama-dono — murmurou Yoshi, querendo tempo para pensar. — Basushiro, qual é a sua sugestão?



O homenzinho respondeu sem hesitar:



— Sire, no momento presumo que o destino é Osaca e que devemos nos preparar, juntos, para defendê-la. Já enviei espiões urgentes para descobrir o curso da esquadra.





— Ótimo. — Com a mão trêmula, Ogama limpou a chuva do rosto. — Toda a esquadra gai-jin em meu estreito... eu deveria estar lá!



Basushiro declarou:



— É mais importante que proteja o imperador contra seus inimigos, Sire, e seu comandante agiu certo ao não disparar contra um único navio. Com toda certeza, era um estratagema para verificar sua força. Ele tinha razão ao não revelar suas defesas. Agora que a armadilha está preparada, deseja acioná-la. Como apenas um navio de guerra inimigo voltou para bombardear algumas posições mais fracas e depois partiu às pressas, presumo que o comandante da esquadra estava com medo, não se encontrava preparado para um ataque total ou para desembarcar tropas, iniciando uma guerra que nós terminaremos.



— É verdade. Um estratagema? Concordo. Yoshi-dono — disse Ogama, decidido —, devemos iniciar logo a guerra. Um ataque de surpresa a Iocoama, quer eles desembarquem ou não em Osaca.





Yoshi não pôde responder de imediato, quase tonto com uma súbita apreensão, que tentava ocultar. Oito navios de guerra? Quatro a mais do que haviam partido para a China, o que significava que os gai-jin haviam reforçado sua esquadra. Por quê? Para retaliar pelos ataques de Satsuma e ainda pelos ataques de Ogama a seus navios. E agirão como fizeram na China. O navio gai-jin foi afundado no estreito de Taiwan, mas eles devastaram a costa chinesa, a centenas de léguas de distância.



Qual é o alvo mais fácil para eles no Nipão? Iedo.





Ogama compreendeu isso e seu plano secreto é justamente provocar os gai-jin. Se eu fosse o líder gai-jin, destruiria Iedo. Eles não sabem, mas Iedo é indivisível do nosso xogunato. Se Iedo acabar, o xogunato Toranaga também acaba, e a seguir a terra dos deuses ficará exposta a toda e qualquer violação.



Portanto, isso deve ser evitado, a qualquer custo.





Pense! Como conter os gai-jin, e também Ogama, cuja solução é oferecer nossas cabeças ao carrasco... mas não a dele?



— Concordo com seu sábio conselheiro, devemos nos preparar para defender Osaca — disse Yoshi, o estômago revirado. Depois, sua ansiedade pela segurança de Iedo prevaleceu. — Quer o destino seja Osaca, agora ou mais tarde, o fato é que uma esquadra de guerra voltou. A menos que tenhamos muito cuidado, a guerra será inevitável.





— Já chega de sermos cautelosos. — Ogama inclinou-se para Yoshi. — Eu digo que não importa se eles vão ou não desembarcar suas tropas em Osaca, devemos extirpar a pústula que tanto nos incomoda e exterminar Iocoama. Agora! Se você não quiser fazer isso, sinto muito, eu farei.


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