— Mas para as nossas damas do mundo do salgueiro, as que servem aos gai-jin, não há futuro, a não ser abrir outra casa aqui, tomar saquê e empregar outras moças. Mon Dieu, trate-as muito bem, porque depois que elas vêm para cá, ficam poluídas, aos olhos de todos os outros japoneses.



— Eu não sabia. Isso é horrível.



— Também acho. Ninguém compra...



Gargalhadas embriagadas dos homens ao redor abafaram sua voz por um momento. O clube estava cheio, ruidoso, impregnado de fumaça.



— Posso lhe dizer que esses cretinos não se importam, nem se preocupam, nenhum deles. A exceção era Canterbury. Ele se importava. — André levantara os olhos da borra em seu copo. — Você é jovem, ainda não foi conspurcado, parece disposto a aprender, e foi por isso que pensei... há muito o que aprender.



E, subitamente, ele fora embora.



Na noite seguinte, ao passarem pelos portões de Yoshiwara, André tirara do bolso sua pequena pistola.



— Você está armado, Phillip?



— Não.



André entregara a pistola ao untuoso atendente, que lhe dera um recibo e guardara a arma junto com outras.





— Não é permitido usar armas dentro da cerca... e o mesmo acontece em todas as Yoshiwaras. Até os samurais são obrigados a entregar suas espadas. On yva!





À frente deles, nos dois lados da rua larga, assim como nas vielas transversais, havia fileiras de casas pequenas e impecáveis, muitas oferecendo comida ou apenas pequenos bares, todas construídas de madeira, com varanda e biombo, o shoji, de papel oleado, acima do solo, sobre estacas baixas. Por toda parte, havia uma profusão de cores e flores, vozes e risos, lanternas, velas e lampiões a óleo.



— O fogo é um risco imenso, Phillip. Todo este lugar foi destruído por um incêndio no primeiro ano, mas uma semana depois já voltara a funcionar.





Todas as casas exibiam placas individuais. Algumas tinham as portas abertas e janelas corrediças de shoji. Podia-se ver muitas jovens nelas, vestidas de maneira vistosa ou recatada, em quimonos dequalidades variáveis,dependendo da posição da casa. Outras mulheres passeavam pela rua, algumas com sombrinhas coloridas, algumas acompanhadas por criadas, prestando pouca ou nenhuma atenção aos homens boquiabertos. Havia também vendedores de todos os tipos, e enxames de criadas, apregoando as virtudes das casas, em versões vigorosas e estridentes de pidgin, e acima de tudo prevaleciam as vozes felizes dos clientes em potencial, a maioria dos quais era reconhecida, e já tinha seus lugares prediletos. Não se viam japoneses, além dos guardas, servidores, carregadores e massagistas.



— Nunca se esqueça de que as Yoshiwaras são um lugar para a alegria, os prazeres da carne, e também para se comer e beber, e que não existe a noção de pecado no Japão, de pecado original, ou de qualquer outro tipo.



André rira e seguira na frente, através das multidões comportadas, exceto por umas poucas brigas de bêbados, que eram separados no mesmo instante, sem violência, por imensos e experientes guardas, que os sentavam em bancos, para receberem mais saquê, servidos por criadas sempre atenciosas.



— Os bêbados são bem-vindos aqui, Phillip, porque perdem a conta de seu dinheiro. Mas nunca puxe uma briga com um desses guardas, pois eles são fantásticos no combate desarmado.



— Em comparação com a nossa cidade dos bêbados, este lugar é muito disciplinado, tanto quanto o Regents Promenade, em Brighton.



Uma criada efusiva pegou Tyrer pelo braço e tentou puxá-lo por uma porta.



— Saquê? Tem coisa boa aqui...



— Iyé, domo, iyé — balbuciara Tyrer, não, obrigado, não. Ele se afastara apressado, para alcançar André.



— Por Deus, tive de dar um puxão para conseguir me desvencilhar!



— Esse é o trabalho delas.



André deixara a rua principal, através de uma passagem entre casas, e fora parar diante de um portão carcomido, numa cerca alta, com uma placa encardida por cima. Tyrer reconhecera os caracteres que André escrevera antes para ele: Casa das Três Carpas. À batida de André no portão, uma pequena grade se abrira. Olhos espiaram. O portão fora aberto, e Tyrer ingressara numa terra de maravilhas.





Um pequeno jardim, lanternas a óleo, luz de velas. Um caminho de pedras cinzentas e reluzentes, cercadas de musgo verde, arbustos floridos, muitos bordos pequenos — as folhas de vermelho sangue contra mais verde —, uma claridade alaranjada clara saindo pelo shoji entreaberto. Uma pequena ponte sobre um regato em miniatura, uma cascata perto. Uma mulher de meia-idade estava ajoelhada na varanda, a mama-san, com um lindo traje, um penteado elaborado.





Bon soir, monsieur Furansu-san — dissera ela, encostando as palmas no chão da varanda e fazendo uma reverência.



André retribuíra com uma reverência.





— Raiko-san, konbanwa. Ikaga desu ka ? Boa noite, como tem passado? Kore wa watashi no lomodachi desu, Tyrer-san. Este é meu amigo, sr. Tyrer.





Ah so desu ka? Taira-san?



A mulher fizera uma reverência solene, meio desajeitada, Tyrer respondera da mesma forma, e em seguida ela fizera um sinal para que a seguissem.



— Ela disse que Taira é um nome japonês famoso. Você tem sorte, Phillip. Quase todos nós somos conhecidos apenas por apelidos. Eu sou Furansu-san... o mais próximo que eles podem chegar de Francês.





Tirando os sapatos, para não sujarem o tatame limpo e elegante, sentaram meio sem jeito no meio da sala, de pernas cruzadas. André explicara a takoyama, uma área recuada na sala, onde era pendurado um pergaminho especial, com arranjos de flores, mudados todos os dias, e chamara sua atenção para a qualidade do shoji e das madeiras.



Fora servido o saquê. A criada era uma criança, talvez com dez anos, não muito bonita, mas hábil e silenciosa. Raiko despejara o saquê nas taças, primeiro para André, depois para Tyrer, e por último para si mesma. Ela tomara um golpe, André esvazia sua pequena taça, estendera-a, pedindo mais. Tyrer fizera a mesma coisa, descobrindo que o sabor da bebida quente não era desagradável, mas insípido. As duas taças foram enchidas, esvaziadas, enchidas de novo. Mais bandejas, mais frascos.



Tyrer perdera a conta, mas logo se sentira envolvido por um calor agradável, esquecera o nervosismo, observara e escutara, sem compreender quase nada que os outros diziam, apenas uma palavra aqui e ali. Os cabelos de Raiko eram pretos, lustrosos, ornamentados com várias travessas, o rosto coberto por pó-de-arroz branco, nem feio, nem bonito, apenas diferente, o quimono de seda rosa, com carpas verdes bordadas.





— Uma carpa é koi, em geral um sinal de sorte — explicara André antes. — A amante de Townsend Harris, a cortesã Shimoda, que o Bakufu providenciou para distraí-lo, chamava-se de Koi, mas isso não lhe trouxe sorte.



— É mesmo? O que aconteceu?



— A história contada pelas cortesãs daqui é de que ele a adorava e deu-lhe dinheiro ao partir, o suficiente para que se instalasse por conta própria... ficaram juntos por dois anos. Pouco depois que Harris voltou para a América, ela desapareceu. Provavelmente se embriagou até a morte ou cometeu suicídio.



— Ela o amava tanto assim?





— Dizem que, no início, quando o Bakufu lhe apresentou a proposta, ela recusou, categórica, a união com um estrangeiro... uma aberração sem precedentes. Não se esqueça de que ele foi o primeiro a ter permissão para viver de fato no território japonês. Ela suplicou ao Bakufu que escolhesse outra, que a deixasse viver em paz, disse que se tornaria uma monja budista, até jurou que se mataria. Mas eles também se mostraram intransigentes, insistindo que ela os ajudasse a resolver o problema daquele gai-jin, pressionando por semanas para que se tornasse a consorte, assediando-a por meios que não conhecemos. Ela acabou concordando, e todos se mostraram gratos por isso. Mas quando Harris foi embora, viraram-lhe as costas, o Bakufu, todo mundo: Ah, lamentamos muito, mas uma mulher que deitou com um estrangeiro está maculada para sempre.



— Que coisa terrível!



— Tem razão, em nossos termos, uma história muito triste. Mas lembre-se de que esta é a terra das lágrimas. Agora ela virou uma lenda, honrada pelas companheiras e por todos que lhe viraram as costas, por causa de seu sacrifício.



— Não entendo.



— Nem eu, nem qualquer de nós. Mas os japoneses entendem.





Era muito estranho, pensara Tyrer. Como aquela pequena casa, aquele homem e aquela mulher, conversando meio em japonês, meio em pidgin, rindo um com o outro, uma madame e um cliente, ambos fingindo serem outra coisa. Mais e mais saquê. Depois de algum tempo, a mulher fizera mais uma reverência, levantara e se retirara.





Saquê, Phillip?



— Obrigado.



— Não acha bastante agradável aqui?



Um momento de silêncio e André comentara:



— Você é a primeira pessoa que trago aqui.



— É mesmo? Por que logo eu?



O francês girara a pequena taça de porcelana entre os dedos, bebera a última gota, servira-se de mais e se pusera a falar, em francês, a voz suave, o tom afetuoso:



— Porque você é a primeira pessoa que conheci em Iocoama... porque você fala francês, é culto, tem a mente como uma esponja, é jovem, não tem a metade da minha idade, não é mesmo? Tem vinte e um anos e é diferente dos outros, ainda não ficou maculado, como acontecerá dentro de poucos anos.



André sorrira, apertando ainda mais a teia, dizendo apenas parte da verdade, moldando-a à sua vontade.





— Para dizer a verdade, você é o primeiro que já conheci, alors, embora seja inglês, um inimigo da França, mas é o único que parece merecer o conheciento que adquiri. — Um sorriso embaraçado. — É difícil explicar. Talvez porque sempre desejei ser um mestre, talvez porque nunca tive um filho, jamais casei, talvez porque em breve terei de voltar a Xangai, talvez porque tenhamos inimigos demais, e talvez... talvez porque você possa se tornar um bom amigo.



— Eu me sentiria honrado em ser seu amigo — assegurara Tyrer, no mesmo instante, envolvido pelo encantamento do francês. — E acho, juro que sempre pensei assim, que deveríamos ser aliados, ingleses e franceses, não inimigos, e...





O shoji fora aberto. Raiko, de joelhos, fizera um sinal para Tyrer. O coração dele disparara. André Poncin sorrira.



— Basta segui-la, e não se esqueça do que falei.





Como num sonho, Phillip Tyrer se levantara, meio trôpego, e seguira a mulher por um corredor, entrando num cômodo, atravessando-o, passando por uma varanda, entrando em outro cômodo. Raiko gesticulara para que ele ficasse ali e se retirara, fechando o shoji.





Um lampião a óleo com uma copa. Um braseiro de carvão para proporcionar calor. Sombras e trevas, manchas de luz. Futons — pequenos colchões quadrados — estendidos no chão, como uma cama. Uma cama para dois. Colchas felpudas. Dois yukatas, o traje de algodão, estampado, com mangas largas, para se dormir. Uma pequena porta para a sala de banho, iluminada por velas, uma tina alta de madeira, cheia de água fumegante. O cheiro agradável de sabonete. Um banco baixo, de três pernas. Toalhas mínimas. Tudo como André descrevera.





O coração de Tyrer passara a bater ainda mais depressa, e ele forçara a mente a recordar as instruções de André, através do nevoeiro de saquê.





Metodicamente, ele começara a se despir. Casaco, colete, gravata, camisa, camiseta de lã, cada peça dobrada de forma impecável e ajeitada numa pilha, num processo cada vez mais nervoso. Tyrer sentara, contrafeito, tirara as meias, depois a calça, com alguma relutância, e tornara a se levantar. Só ficara com a ceroula de lã. Hesitara por um instante, dera de ombros e tirara a ceroula, dobrando-a com um cuidado ainda maior. Sentindo apele toda arrepiada, fora para a sala de banho. Ali, pegara água da tina, com as mãos em concha, seguindo as instruções, e a derramara sobre os ombros, sentindo um agradável calor. Repetira o gesto, e nesse instante ouvira o shoji sendo aberto. Olhara para trás e murmurara:



— Deus Todo-Poderoso!





A mulher era corpulenta, com antebraços enormes, o yukata sumário, sem nada por baixo, exceto uma tanga. Avançara para ele, determinada, com um sorriso fixo, e gesticulara para que se agachasse no banco. Em total embaraço, Tyrer obedecera. A mulher notara de imediato a cicatriz ainda avermelhada em seu braço e sugara a respiração, dizendo alguma coisa que Tyrer não entendera. Ele forçara um sorriso.





Tokaidô.



— Wakarimasu. Eu compreendo.



E depois, antes que Tyrer pudesse impedi-la, ela despejara água sobre sua cabeça — o que era inesperado, não fora incluído em suas instruções — e passara a ensaboá-lo, lavando os cabelos compridos, o corpo em seguida, com dedos firmes, eficientes e insistentes, mas tomando cuidado para não machucar o braço. Pernas, braços, na frente, atrás, e depois lhe oferecera o pano, apontara para a virilha. Ainda em choque, Tyrer limpara essas partes e devolvera o pano, submisso.



— Obrigado — murmurara ele. — Oh, desculpe, domo.



Mais água enxaguou o resto de espuma e a mulher apontara para a tina.



— Dozo! Por favor. André explicara:



— Deve se lembrar, Phillip, que ao contrário de nós, você tem de se lavar e se limpar antes de entrar no banho, a fim de que outras pessoas possam usar a mesma água... o que é bastante sensato, já que a lenha é muito cara, e demora muito para se esquentar a água o suficiente. Assim, não deve urinar na água. Também não pense nela como uma mulher, enquanto estiver na sala de banho, apenas como uma ajudante. Ela o limpa por fora, e depois por dentro, entende?



Tyrer se acomodara na tina. A água estava quente, mas não demais, e ele fechara os olhos, não querendo observar a mulher aprontar o banho. Oh, Deus, pensara ele, angustiado, nunca serei capaz de fazer qualquer coisa com essa mulher! André cometera um grave erro.



— Mas... ahn... não sei quanto pagar... e devo dar o dinheiro a ela antes ou depois?





Mon Dieu! Nunca deve dar dinheiro a qualquer garota, em qualquer lugar, seria o cúmulo da grosseria. Pode negociar de forma implacável com a mama-san, às vezes com a própria garota, mas só depois do chá ou saquê. Ao ir embora, deixe o dinheiro, discretamente, num lugar que ela possa ver. Na Casa das Três Carpas, porém, você não dá dinheiro. É um lugar especial... e há outros assim... apenas para clientes especiais, um dos quais sou eu. Mandarão uma conta para você, duas ou três vezes por ano. Mas preste atenção: antes de irmos para lá, quero que você jure por Deus que pagará a conta no momento em que for apresentada, e que nunca, mas nunca mesmo, levará outro homem ao local, nem falará a respeito.



Assim, Tyrer prometera e jurara, com vontade de perguntar muitas coisas, mas não ousando.



— Essa... ahn... conta, quando será apresentada?





— Quando a mama-san quiser. Já lhe disse, Phillip, você pode ter prazer a crédito durante o ano inteiro, nas circunstâncias certas... mas é claro que sou seu fiador...



O calor do banho quente o envolvera por completo. Mal percebera o barulho da mulher se retirando, para voltar logo em seguida.



— Taira-san?



— Hai? Sim?





Ela segurava uma toalha. Estranhamente letárgico, ele saíra do banho, os músculos entorpecidos pela água, e deixara que a mulher o enxugasse. Mais uma vez, cuidara ele próprio das partes especiais, fazendo-o com mais descontração agora. Um pente para seus cabelos. Uma yukata seca, engomada, e a mulher gesticulara para a cama.



Outra vez o pânico o dominara. Trêmulo, forçara-se a deitar. Ela o cobrira puxara a outra colcha e tomara a se retirar.





O coração de Tyrer batia forte, mas a sensação de deitar era maravilhosa, colchão macio e imaculado, com um cheiro agradável, e ele se sentira mais limpo do que em qualquer outra ocasião em muitos anos. Logo ficara mais calmo depois o shoji fora aberto e fechado. Tyrer experimentara um intenso alívio, mas a calma desaparecera. A jovem apenas entrevista era pequena, esguia, usando uma yukata amarela, os cabelos compridos, caindo em cascata. Ajoelhara-se ao lado da cama.





Konbanwa, Taira-san. Ikaga desu ka? Watashi wa Ako. Boa noite, Sr. Taira. Está se sentindo bem? Eu sou Ako.



— Konbanwa, Ako-san. Watashi wa Phillip Tyrer desu. Ela franzira o rosto.



— F... urri... f.



Tentara dizer Phillip várias vezes, mas não conseguira, soltara uma risada alegre, murmurara alguma coisa que ele não entendera, concluindo com Taira-san.



Tyrer sentara, observando-a, o coração batendo forte, desamparado, sem sentir qualquer atração pela moça, que apontara para o outro lado da cama.



— Dozo? Posso, por favor?



— Dozo.



À luz de vela, ele não podia vê-la com nitidez, apenas o suficiente para saber que era jovem, fazer uma estimativa sobre sua idade, constatar que o rosto era liso, branco de pó-de-arroz, dentes brancos, lábios vermelhos, cabelos lustrosos, nariz quase aquilino, os olhos formando estreitas elipses, o sorriso gentil. Ela se metera na cama, acomodara-se, virara-se para observá-lo. Esperando. A timidez e inexperiência paralisavam Tyrer.



Por Deus, como vou explicar a ela que não a quero, não quero ninguém agora, que não posso, sei que não posso, nem vou tentar, não esta noite, não conseguiria, seria uma desgraça para mini, e também para André... André! Como poderei lhe explicar? Serei o alvo dos risos de todo mundo, oh, Deus, por que concordei?



A moça estendera a mão, tocara em seu rosto. Involuntariamente, ele estremecera.



Ako sussurrara ternas palavras de encorajamento, mas por dentro sorria, sabendo o que esperar daquele menino-homem, bem preparada por Raiko-san:



— Ako, esta noite é um raro momento em sua vida, e deve se lembrar de cada detalhe para nos regalar à primeira refeição. Seu cliente é um amigo do Francês, e único em nosso mundo... pois ele é virgem. O Francês diz que ele é tão tímido que você nem vai acreditar, que ficará assustado, provavelmente vai chorar quando sua honorável arma falhar, pode até molhar a cama, em seu excitamento frustrado, mas não se preocupe, minha cara Ako, o Francês me assegura que você pode lidar com ele à maneira normal, e que não precisa se preocupar com nada.





— Acho que jamais serei capaz de compreender os gai-jin, Raiko-san.



— Nem eu. Não resta a menor dúvida de que são esquisitos, uns bárbaros mas felizmente a maioria tem bastante dinheiro; e já que é o nosso destino estar aqui, devemos tirar o máximo de proveito. Muito importante, o Francês diz que este homem aqui é um inglês num alto cargo, um cliente a longo prazo em potencial, e por isso você deve fazê-lo experimentar as nuvens e a chuva, de um jeito ou de outro, mesmo que... mesmo que tenha de usar o supremo.



— Ohko!



— A honra da casa está em jogo.



— Eu compreendo. Neste caso... De alguma forma, haverei de conseguir.



— Tenho toda confiança em você, Ako-chan. Afinal, tem quase trinta anos de experiência no mundo do salgueiro.



— Acha que ele é parecido com o Francês em seus gostos?



— Quer saber se ele gosta que sua parte posterior seja acariciada e, de vez em quando, as Pérolas do Prazer? Talvez você deva estar preparada, mas perguntei diretamente ao Francês se o jovem tinha propensão para gostar de homens e ele me garantiu que não. É curioso que o Francês tenha escolhido nossa casa para iniciar um amigo, em vez das outras que ele agora freqüenta.



— A casa nunca foi culpada. Por favor, não pense mais nisso, Raiko-chan. Sinto-me honrada por ter sido escolhida, e farei tudo o que for necessário.





— Sei disso. Quando se pensa que os talos fumegantes dos gai-jin são, em geral, muito maiores que os dos homens civilizados, que a maioria dos gai-jin fornica de maneira satisfatória, embora sem o vigor, a classe e o ímpeto de ultrapassar os limites dos japoneses, à exceção do Francês, era de se esperar que seriam fornicadores felizes, como os homens normais. Mas não são. Têm tantas teias de aranha em suas cabeças que, de certa forma, a fornicação não é o nosso prazer mais celestial, mas sim uma espécie de mal secreto, religioso. É muito estranho.



Experimentando agora, Ako chegara mais perto, acariciara o peito de Tyrer, e depois baixara a mão. Tivera de fazer um tremendo esforço para não soltar uma risada, quando o homem reagira com um sobressalto de pavor. Levara um longo momento para se controlar, antes de murmurar:



— Taira-san?



— Ahn... hai, Ako-san?





Ela pegara a mão de Tyrer, enfiara por dentro da yukata, até seu seio, enclinara-se, beijara-o no ombro, alertada para tomar cuidado com o ferimento no braço, infligido por um bravo shishi. Não houvera reação. Ela chegara ainda mais perto. Sussurrando como ele era bravo, como era forte e viril, como a criada o descrevera e a seu fruto. E durante todo o tempo, paciente, acariciando o peito de Tyrer, sentindo-o estremecer, mas ainda sem paixão. Minutos passaram. Ainda nada. A preocupação de Ako aumentara. Dedos suaves como borboletas e, ainda assim, ele permanecera inerte... mãos, lábios, tudo. Carícias gentis, tomando cuidado para circular, ainda sem maior intimidade. Mais minutos. Ainda nada. A consternação de Ako crescia. O medo de que pudesse fracassar prevaleceu sobre a consternação. A língua fazendo contato com o ouvido dele.





Ah, uma recompensa mínima: o nome dele sussurrado, em tom gutural, e os lábios do homem beijando seu pescoço. Ela relaxara, encostara os lábios no mamilo de Tyrer. Agora, é apenas uma questão de tempo para explodir sua virgindade para o céu, e depois poderei pedir um saquê, dormir até o amanhecer esquecer que estou com quarenta e três anos, sem filhos, e apenas recordar que Raiko-san me salvou da casa de sexta classe a que fora relegada por minha idade e falta de beleza.





Sem nada para fazer, Tyrer observava os samurais na praça diante da legação, o sol quase encostando no horizonte, a mente absorvida em Ako, e duas noites mais tarde, Hamako.



E depois... Ela.



Fujiko. Na noite antes da última.



Sentiu que endurecia, e ajeitou essa parte do corpo de maneira mais confortável, sabendo que agora se encontrava inexoravelmente enleado naquele mundo, o mundo flutuante, onde a vida era apenas para o momento, como André lhe dissera, para o prazer, à deriva, sem qualquer preocupação, como uma flor na correnteza de um rio sereno.



— Nem sempre é calmo assim, Phillip. Como Fujiko é?



— Ahn... quer dizer que não a conhece? Nunca a viu?



— Não. Só fui informado por Raiko-san de que era o tipo de garota que você poderia apreciar, com ênfase no “dicionário de cama”. Como ela foi?



Tyrer soltara uma risada, para encobrir seu profundo constrangimento e inquietação, diante de uma pergunta tão pessoal, tão direta. Mas André lhe proporcionara tanto que ele resolvera ser “francês”, absolutamente franco. Por isso, pusera de lado as apreensões, o sentimento arraigado de que um cavalheiro não deveria discutir nem revelar tais informações pessoais.



— Ela... é mais jovem do que eu, pequena, talvez mesmo diminuta, não é bonita, não em nossos termos, mas espantosamente atraente. Creio que a entendi dizer que era nova ali.



— Estou querendo saber como ela foi na cama. Melhor do que as outras?



— Hum... não há como comparar.



— Ela foi mais vigorosa? Mais sensual?



— Hum.. .foi, sim. Vestida ou despida, incrível. Especial. Mais uma vez, devo dizer que não tenho palavras para agradecer por tudo o que fez por mim.





De rien, mon vieux.



— É verdade. Na próxima vez... na próxima vez você vai conhecê-la.





Mon Dieu, não, essa é a regra. Nunca apresente sua “especial” a ninguém, muito menos a um amigo. Não se esqueça de uma coisa: até que a instale em sua própria casa, com você pagando todas as contas, ela é disponível a qualquer um que tenha dinheiro... se ela quiser, é claro.



— Eu tinha esquecido — murmurara Tyrer, escondendo a verdade.



— Mesmo que se torne teúda e manteúda, ela ainda pode ter um amante secreto. Quem pode saber?



— Tem razão. Mais angústia.



— Não se apaixone, meu amigo, não por uma cortesã. Considere-as pelo que são, mulheres do prazer. Desfrute-as, goste delas, mas não as ame... e nunca deixe que se apaixonem por você...



Tyrer estremecera, odiando a verdade, odiando a idéia de Fujiko ir para acama com outro homem, como fizera com ele, odiando que fosse por dinheiro, odiando a ânsia que sentia entre as pernas. Por Deus, ela era mesmo especial, adorável, uma doce tagarela, gentil, tão jovem, há bem pouco tempo na casa. Devo sustentá-la? Não devo, mas posso? Tenho certeza que André montou uma casa, com sua amiga especial, embora nada comente a respeito, nem eu perguntaria. Oh, Deus, quanto custaria? Só pode ser mais do que tenho condições de gastar...



Não pense sobre isso agora! Nem nela.





Com um esforço, ele concentrou sua atenção no jardim lá embaixo, mas a ânsia persistiu. Parte do destacamento de Highlanders entrava em formação em torno do mastro, o corneteiro e quatro tambores, para o abaixamento da bandeira. Rotina. Os jardineiros se concentravam junto aos portões, para serem contados, e depois dispensados. Deixaram a legação, passaram entre os samurais e desapareceram. Rotina. Sentinelas fecharam e trancaram os portões de ferro. Rotina. Os tambores e a corneta soaram, enquanto a bandeira inglesa era lentamente abaixada... nenhum sol se põe sobre a bandeira britânica, essa era a lei no mundo inteiro. Rotina. A maioria dos samurais começou a se retirar, deixando apenas uma força simbólica para a noite. Rotina.



Tyrer estremeceu.



Se tudo é rotina, por que me sinto tão nervoso?











Os jardineiros da legação entraram em sua choupana-dormitório, que ficava no outro lado do templo budista. Nenhum deles enfrentou o olhar de Hiraga. Todos haviam sido advertidos de que suas vidas, assim como as vidas de todas as suas gerações, dependiam da segurança de Hiraga.





— Tomem cuidado ao falar com estranhos — dissera-lhes Hiraga. — Se o Bakufu descobrir que me deram abrigo, terão a mesma recompensa, só que serão crucificados, em vez de terem uma morte lenta.



Apesar de todos os protestos submissos de que ele se encontrava a salvo, de que podia confiar neles, Hiraga sabia que nunca deveria se sentir seguro. Desde a eniboscada contra Anjo, dez dias antes, passara a maior parte do tempo no refúgio em Kanagawa, a estalagem das Flores da Meia-Noite. O fracasso do ataque, com a morte de todos os seus companheiros, à exceção de um, era karma, nada mais.





Recebera no dia anterior uma carta de Katsumata, o líder clandestino dos shishi de Satsuma, que agora se encontrava em Quioto: Urgente: dentro de poucas semanas, o xógum Nobusada criará um precedente, ao vir para cá numa visita oficial ao imperador. Todos os shishi devem se concentrar aqui imediatamente fim de planejar como interceptá-lo e, depois, nos apoderarmos dos portões do palácio. Katsumata assinara com seu codinome: Corvo.





Hiraga discutira o que fazer com Ori e depois decidira retornar a Iedo, decidido a agir sozinho para destruir a legação britânica, furioso porque o Conselho dos Anciãos parecia ter sido enganado e neutralizado pelos gai-jin.





— Quioto pode esperar, Ori. Temos de atacar os gai-jin. Devemos enfurecê-los, até que bombardeiem Iedo. Outros podem cuidar do xógum e de Quioto.



Ele gostaria de levar Ori, mas o companheiro estava impotente, o ferimento pior, sem qualquer ajuda médica.



— Como está seu braço?





— Quando se tornar insuportável, cometerei seppuku — respondera Ori, a voz engrolada do saquê que tomara para amortecer a dor. — Não se preocupe.





Os três, Hiraga, Ori e mama-san, beberam juntos.



— Não há nenhum outro médico, em quem possamos confiar?





— Não, Hiraga-san — dissera a mama-san, Noriko. Era uma mulher pequena, de cinqüenta anos, a voz suave. — Até chamei um acupuntor e um herbanário coreanos, ambos amigos, mas os cataplasmas não têm nenhum valor. Poderíamos chamar o gigante gai-jin...





— Não seja estúpida! — berrara Ori. — Quantas vezes tenho de lhe dizer? O ferimento é de bala, uma das balas dos gai-jin, e eles me viram em Kanagawa!





— Por favor, desculpe — murmurara a mama-san, humilde, encostando a cabeça no tatame. — Por favor, desculpe esta pessoa estúpida.





Ela fizera outra reverência e se retirara, mas no fundo do coração censurava Ori por não ser um verdadeiro shishi, deixando de cometer seppuku enquanto Hiraga se achava presente, o mais perfeito padrinho que um homem podia desejar. Se ele assim fizesse, reduziria o perigo que a ameaçava e à sua casa. A notícia do destino sofrido pela estalagem dos Quarenta e Sete Ronin percorrera cinqüenta ri e além — uma retaliação ultrajante, matar todos os clientes, cortesãs e servidores, e exibir a cabeça da mama-san na ponta de um chuço.





Monstruoso, pensara ela, revoltada. Como uma casa pode proibir a entrada de qualquer samurai, shishi ou não? Nos tempos antigos, os samurais matavam muito mais do que hoje, sem dúvida, mas isso fora séculos antes, e quase sempre quando as vítimas mereciam mesmo morrer, não mulheres ou crianças. Naquele tempo, a lei da terra era justa, o xógum Toranaga era justo, seu filho e neto eram justos, antes que a corrupção e o desregramento se tornassem um modo de vida para os xóguns descendentes, assim como para os daimios e os samurais, que há mais de um século nos impõem seus tributos como pus! Os shishi são a nossa única esperança! Sonno-joi!





— Anjo deve morrer antes de nós — dissera ela, fervorosa, quando Hiraga voltara, são e salvo, dois dias depois do ataque.— Ficamos todos aflitos, pensando que você podia ter sido preso e queimado junto com os outros. Foi tudo feito por ordem de Anjo, Hiraga-san. Na verdade, ele voltava da estalagem quando o atacaram, perto dos portões do castelo. Foi ele quem ordenou tudo e acompanhou essoalmente as execuções, deixando homens ali, em emboscada, para o caso de algum shishi retornar.



— Quem nos traiu, Hiraga? — indagara Ori.





— Os samurais de Mori.



— Mas Akimoto diz que os viu serem cercados e mortos.



— Deve ter sido um deles. Mais alguém escapou?



— Akimoto... ele se escondeu em outra estalagem por um dia e uma noite.



— Onde ele está agora?



— Ocupado — respondera Noriko. — Devo mandar chamá-lo?



— Não. Falarei com ele amanhã.



— Anjo deve pagar com sangue pela estalagem... foi um ato contra todos os costumes!





— Ele pagará, e os roju também. Assim com o xógum Nobusada, e até Yoshi.











Em seus aposentos particulares, no alto da torre do castelo, Yoshi compunha um poema. Usava um quimono de seda azul, sentava-se à mesa baixa, com um lampião a óleo e folhas de arroz, pincéis de espessuras diferentes, água para amolecer o bloco de tinta preta, que tinha agora uma poça pequena e convidativa na depressão no centro.



O crepúsculo transformava-se em noite. Do exterior, vinha o zumbido do milhão de almas de Iedo, sempre presente. Umas poucas casas em chamas, também como sempre. Lá de baixo, dentro do castelo, o barulho abafado e confortador dos soldados, cascos nas pedras do calçamento, uma ocasional risada gutural elevando-se com a fumaça e com os cheiros de comida, passando pelas aberturas ornamentadas para os arqueiros, nas vastas paredes, ainda não fechadas contra o frio da noite.





Aquele era seu santuário pessoal. Espartano. Tatames, um takoyama, a porta de shoji à sua frente, posicionada e iluminada de tal forma que ele podia divisar os contornos de qualquer vulto no outro lado, mas ninguém podia percebê-lo lá dentro.





Além daquele cômodo, havia uma ante-sala maior, de onde saíam corredores para os quartos, vazios naquele momento, exceto pelos servidores, criadas e Koiko, sua favorita especial. A família — esposa, dois filhos e uma filha, a consorte e seu filho — se encontrava em segurança, sob forte guarda, no castelo-fortaleza hereditário, o Dente do Dragão, nas montanhas, cerca de vinte ri para o norte. Além daquela ante-sala, havia guardas, outros cômodos com mais guardas, todos tendo prestado um juramento de serviço pessoal.



Yoshi mergulhou um pincel na poça de tinta. A ponta pairou por um instante sobre o delicado papel de palha de arroz, e depois ele escreveu, com firmeza:







Espada de meus antepassados



Quando em minhas mãos



Se contorce irrequieta







O texto saiu em três linhas verticais de caracteres, curtas, fortes onde assim deveriam ser, e suaves quando a suavidade realçaria a imagem que os caracteres transmitiam — nunca havia uma possibilidade de refinar, mudar ou corrigjr sequer a menor falha, pois a textura do papel de arroz sugava a tinta no mesmo instante, fazendo com que dele se tornasse parte indelével, variando o preto para cinza, dependendo da maneira como o pincel era usado e da quantidade de água.



Com absoluta frieza, Yoshi examinou o que fizera, a disposição do poema, e toda a imagem que as tonalidades de caligrafia preta formavam no espaço branco, a fluidez e clareza de seus caracteres.



Está bom, concluiu ele, sem vaidade. Não posso fazer melhor no momento... este é quase o limite de minha capacidade, se não mesmo o limite. E o significado do poema, como deve ser interpretado? Ah, essa é a questão importante, por isso é que é bom. Mas vai alcançar o que desejo?





Essas indagações levaram-no a avaliar a lamentável situação, em Iedo e em Quioto. Poucos dias antes chegara a notícia de que ocorrera um golpe súbito e sangrento, mas vitorioso, desfechado por tropas de Choshu, expulsando as forças de Satsuma e Tosa, que nos últimos seis meses vinham mantendo o poder, numa trégua instável. Lorde Ogama, de Choshu, agora dominava os portões do palácio.



Numa reunião do conselho, convocada às pressas, os ânimos estavam exaltados, Anjo quase espumando de fúria.





Choshu, Satsuma e Tosa! Sempre os três! São cães que devem ser esmagados! Sem eles, teríamos tudo sob controle!



— É verdade — concordara Yoshi. — E repito que devemos ordenar que nossas tropas em Quioto entrem em ação, a fim de acabar com a rebelião imediatamente... a qualquer custo!



— Não. Devemos esperar, pois nossas forças ali são insuficientes. Toyama, o velho, coçara o queixo coberto por uma barba grisalha e dissera:





— Concordo com Yoshi-dono. A guerra é o único meio, e temos de declarar que Ogama de Choshu é um fora-da-lei!





— Impossível! — protestara Adachi, lamuriento, por si mesmo e pelo último ancião. — Concordamos com Anjo. Não podemos correr o risco de ofender todos os daimios, encorajando-os a se unirem contra nós.



— Temos de agir sem demora! — insistira Yoshi. — Devemos ordenar que nossas tropas retomem os portões e sufoquem a rebelião!



— Nossas forças são insuficientes — dissera Anjo, obstinado. — Vamos esperar. Este não é o momento.



— Por que não escutam meu conselho?





Àquela altura, Yoshi sentia-se tão furioso que sua raiva quase aflorara. Tratou de se controlar, com o maior esforço, sabendo que se enfurecer e perder a caligrafia seria um erro fatal, pois faria com que todos se virassem contra ele, para sempre. Não era o mais moço, o menos experiente, embora o mais qualificado, com mais influência entre os daimios, o único dos anciãos que podia, se assim desejasse, erguer seu estandarte e lançar todo o país na guerra civil, como ocorrera por séculos, antes do xógum Toranaga? Todos os outros não haviam se mostrado invejosos e desdenhosos quando ele fora designado guardião e ancião, por “solicitação” imperial, sem consultá-los, por quem manipulava o filho do céu?





— Sei que estou certo. Não estava certo em relação aos gai-jin? Pois estou certo neste caso também.





O plano que ele concebera para afastar os gai-jin e sua esquadra de Iedo, a fim de se ganhar tempo para resolver os problemas internos, tivera um êxito absoluto. Fora bastante simples.





— Com grande cerimônia e humildade simulada, demos aos gai-jin uma indenização insignificante, propusemos uma futura reunião com o conselho, que será adiada e adiada ou mesmo cancelada, talvez até encenada com fantoches, se for necessário, para se insinuar no último momento, quando a paciência deles estiver quase esgotada, que será providenciada uma reunião com o xógum, quando ele voltar... o que também pode ser adiado, renegociado, protelado, e nunca vai acontecer ou mesmo que venha a ocorrer, no futuro distante, nada produzirá que não desejarmos. Ganhamos assim uma parte do tempo de que necessitamos, e descobrimos uma maneira permanente de lidar com essa gente: usar a impaciência dos gai-jin contra eles, oferecer “promessas”, muita sopa sem peixe ou no máximo uns poucos pedaços podres, de que não precisamos nem queremos. Eles ficaram satisfeitos, sua esquadra partiu com a tempestade, talvez tenha afundado. Até agora, nenhum dos navios voltou.



O velho Toyama dissera:



— Os deuses nos ajudaram com aquela tempestade, enviando de novo seu vento divino, o vento camicase, como aconteceu contra as hordas invasoras de Kublai Khan, há muitos séculos. Quando os expulsarmos, a mesma coisa ocorrerá outra vez. Os deuses nunca nos abandonarão.



Adachi se empertigara, vaidoso.





— É verdade que executei nosso plano com perfeição. Os gai-jin se mostraram tão dóceis quanto uma cortesã de quinta classe.





— Os gai-jin são uma ferida que nunca vai curar, enquanto formos mais fracos em poderio militar e riqueza — protestara Anjo, irritado, retorcendo as mãos. — São uma ferida que não vai curar... não sem ser cauterizada, e ainda não podemos fazer isso, enquanto não tivermos meios de construir navios e fabricar canhões. Não podemos nos desviar do objetivo, e ordenar que nossas tropas retomem os portões, pelo menos por enquanto. Os Choshus não são nossos inimigos imediatos, mas, sim, os Sonno-joi e os cães shishi.



Yoshi notara o quanto Anjo mudara desde o atentado contra sua vida: mostrava-se agora muito mais irascível, obstinado, sua determinação enfraquecida, embora a influência que exercia sobre os anciãos não houvesse diminuído.



— Não concordo, mas se você acha que nossas forças são insuficientes, posso ordenar mobilização geral, acabar com os lordes exteriores e todos os que se aliarem a eles!



Toyama dissera:





— A guerra é o único caminho, Anjo-sama. Esqueça os shishi, esqueça os gai-jin, pelo menos por enquanto. Os portões... primeiro, devemos retomar nossos direitos hereditários.



Anjo proclamara:



— É o que faremos, no momento oportuno. Agora, a visita do xógum deve ser realizada de acordo com o planejado.



Apesar dos protestos adicionais de Yoshi, Anjo mais uma vez ganhara na votação, três a dois, e em particular acrescentara, insidioso:





— Como eu lhe disse, Yoshi-dono, eles sempre votarão comigo. Os shishi nunca terão êxito contra mim, nem contra você, nem contra ninguém.



— O xógum Nobusada também não terá êxito?



— Ele... ele não é um inimigo, e acata meus conselhos.



— E a princesa Yazu?



— Ela obedecerá... obedecerá a seu marido.



— Ela obedecerá a seu irmão, o imperador, até o dia de sua morte.



Yoshi ficara chocado quando Anjo dissera, com um sorriso insinuante:



— Propõe um acidente, hem?



— Não proponho nada desse tipo.



Yoshi sentira um calafrio, temeroso de que o homem estivesse se tornando perigoso demais para continuar vivo, já poderoso demais para ser neutralizado, arguto demais, contando com o apoio de um enxame de bandos à disposição, sempre prontos a se submeterem à sua vontade...



Uma silhueta se aproximou da porta, quase silenciosa. Sem sequer pensar, Yoshi estendeu a mão direita para a espada comprida, no chão, ao seu lado, embora reconhecesse a silhueta. O vulto se ajoelhou. Uma batida delicada.



— Oque é?



Ela abriu a porta, sorrindo, fez uma reverência, e esperou.



— Entre, por favor, Koiko — murmurou Yoshi, satisfeito com a visita inesperada, todos os seus demônios desaparecendo.



Ela obedeceu, fechou aporta, correu para ele, o quimono estampado comprido farfalhando, tornou a se ajoelhar, comprimiu o rosto contra a mão de Yoshi, ao mesmo tempo em que notava o poema.



— Boa noite, Sire.



Ele riu, abraçou-a com ternura.



— A que devo este prazer?



— Senti saudade. Posso ver seu poema?



— Claro.



Enquanto Koiko estudava o poema, Yoshi a contemplava, um prazer constante para ele, nos trinta e quatro dias em que ela se encontrava no castelo. Roupas extraordinárias. A pele mais pura, como casca de ovo, cabelos pretos reluzentes, que desciam até a cintura quando eram soltos, nariz delicado, os dentes tão brancos quanto os de Yoshi, em vez de escurecidos, como era a moda na corte.



— Uma estupidez! — dissera-lhe o pai, assim que ele tinha idade suficiente para compreender.— Por que deveríamos escurecer nossos dentes só porque é um costume da corte, iniciado há séculos por um imperador que tinha dentes velhos e podres, e por isso determinou que ter dentes pintados era superior a ter dentes como os dos animais? E por que usar tinta em nossos lábios e faces, como alguns ainda fazem, porque outro queria ser mulher, não homem, e assim fingia, sendo imitado pelos cortesãos, que queriam conquistar seus favores?



Koiko tinha vinte e dois anos, Tayu, o mais alto grau possível de gueixa no mundo do salgueiro.





Tendo ouvido comentários a seu respeito, alguns meses antes, Yoshi sentira-se curioso, mandara chamá-la, desfrutara sua companhia e depois, há meses, ordenara que a mama-san de Koiko apresentasse uma proposta para seus serviços permanentes. Como era correto, a proposta fora encaminhada à esposa de Yoshi, que cuidaria do assunto. Ela lhe escrevera do Dente do Dragão, o castelo da família:



Amado marido: Concluí hoje um acordo satisfatório com a mama-san para a Tayu Koiko, da Casa da Glicínia. Senhor, consideramos que é melhor ter sua exclusividade do que uma primeira opção para seus serviços, e também mais seguro, já que se encontra cercado por inimigos. A seu critério, o contrato é renovável todos os meses, o pagamento será mensal, ao término de cada período, para garantir que os serviços serão mantidos no nível mais elevado, como deve esperar.



Sua consorte e eu nos sentimos satisfeitas por ter decidido contratar uma diversão, pois estávamos e continuamos muito preocupadas com sua saúde e segurança. Permita-me cumprimentá-lo por sua escolha, pois corre o rumor de que Koiko é de fato extraordinária



Seus filhos estão bem e felizes, assim como sua filha e eu. Enviamos nossa eterna lealdade e ansiamos por sua presença. Por favor, mantenha-me informada sobre como devo orientar nosso Pagador para reservar recursos...



Corretamente, a esposa não mencionara a quantia, nem isso seria de seu initeresse, pois se tratava de uma função básica dela, administrar e guardar a riqueza da família, pagar todas as contas. Koiko levantou os olhos.



— Seu poema é impecável, Yoshi-chan — murmurou ela, batendo palmas, o chan um diminutivo íntimo.



— Você é impecável — disse Yoshi, disfarçando seu prazer por aquele Julgamento.



Além dos excepcionais atributos físicos, Koiko tinha renome em Iedo por sua caligrafia, a beleza de seus poemas e a astúcia na arte e política.



— Adoro a maneira como você escreve, e o poema é magnífico. Adoro a complexidade de sua mente, em particular porque escolheu “quando”, e não talvez “agora”, e “contorce”, quando um homem inferior poderia usar “mexe”, ou o mais clamoroso “ergue”, o que daria uma conotação sexual. Mas a disposição da palavra final, “irrequieta”... ah, Yoshi-chan, como foi hábil ao usar essa última palavra, que é perfeita! Sua criação é excelente, e pode ser interpretada de uma dúzia de maneiras diferentes.



— E o que você acha que estou dizendo?



Os olhos de Koiko faiscaram.



— Primeiro, diga-me se tenciona guardar o poema... guardar abertamente em segredo, ou destruí-lo.



— Qual é a minha intenção? — indagou ele, adorando a conversa.



— Se guardar o poema abertamente ou simular escondê-lo ou simular que é secreto, planeja que seja lido por outros, que informarão a seus inimigos, de um jeito ou de outro, como deseja.



— E o que eles pensarão?



— Todos, à exceção dos mais sagazes, vão presumir que sua determinação está enfraquecendo, seus medos começam a dominá-lo.



— E os outros?



Os olhos de Koiko não perderam nada da expressão divertida, mas ele percebeu que adquiriam um brilho adicional.



— De seus principais adversários, o xógum Nobusada interpretaria como um sinal de que você, em sua mente interior, concorda com ele, que não é bastante forte para constituir uma ameaça concreta, e passaria a considerar, na maior felicidade, que se tornará mais e mais fácil eliminá-lo quanto mais esperar. Anjo se roeria de inveja por sua proeza como poeta e calígrafo, e desdenharia do “irrequieta”, achando ser uma palavra indigna, mal escolhida, mas o poema o deixaria obcecado, preocupado, ainda mais se for encarado como um documento secreto, até que ele teria quarenta e oito interpretações, todas as quais aumentariam sua implacável oposição.



A franqueza de Koiko impressionou-o.



— E se eu guardar em segredo?



Ela riu.



— Se quisesse guardá-lo em segredo, então teria de queimá-lo agora mesmo, sem nunca mostrá-lo para mim. É triste destruir tanta beleza, muito triste, Yoshi-chan, mas um ato necessário para um homem na sua posição.



— Por quê? É apenas um poema.



— Creio que este é especial. É bom demais. Uma arte assim só pode provir das profundezas interiores. Revela muito. E a revelação é o propósito da poesia.



— Continue.



Os olhos de Koiko pareceram mudar de cor, enquanto ela especulava até que ponto ousaria ir, sempre testando os limites intelectuais... para entreter e excitar quem a contratara, se era o que ele desejava. Yoshi notou a mudança, mas não discerniu o motivo.



— Por exemplo — continuou ela, descontraída —, poderia ser interpretado, pelos olhos errados, como uma manifestação de seu espírito mais profundo: “O poder do meu ancestral homônimo, xógum Toranaga Yoshi, se acha ao meu alcance, suplica para ser usado.”



Observando-a, Yoshi não conseguiu ler seus olhos. Todos os seus sentidos bradavam perigo. Sou tão evidente assim? Talvez esta dama seja perceptiva demais para continuar viva.



— E o que pensaria a princesa Yazu?



— Ela é a mais esperta entre todos, Yoshi-chan. Mas já sabe disso. Ela perceberia o significado no mesmo instante... se é que tem algum significado especial.



Mais uma vez, a expressão dos olhos que Yoshi não pôde entender.



— E se eu lhe desse o poema de presente?



— Esta indigna pessoa transbordaria de alegria por receber tamanho tesouro... mas ficaria numa situação difícil, Yoshi-chan.



— Como assim?



— É muito especial, para dar ou receber.



Yoshi desviou os olhos da mulher e contemplou sua obra, com toda atenção. Era tudo o que ele desejara, nunca poderia duplicá-la. Depois, considerou Koiko, com a mesma determinação. Observou seus dedos pegarem o papel e estenderem para ela, fechando a armadilha.



Reverente, Koiko recebeu o poema com as duas mãos, inclinando a cabeça. Tornou a examiná-lo, com o máximo de atenção, querendo gravar tudo na memória, de uma forma tão indelével quanto a tinta no papel. Um suspiro profundo. Com extremo cuidado, ela aproximou o canto do papel da chama do lampião.



— Com sua permissão, Yoshi-sama, por favor? — murmurou Koiko, formal, fitando-o nos olhos, a mão firme.



— Por quê? — indagou ele, atônito.



— É perigoso demais para você deixar tais pensamentos vivos.



— E se eu recusar?



— Neste caso, peço que me desculpe, mas terei de decidir por você.



— Pois então decida.



No mesmo instante, ela encostou o papel na chama. Pegou fogo. Com habilidade, Koiko foi virando-o, até que só restava um pequeno pedaço ainda adendo, a cinza inteira, equilibrada de modo precário. O fogo se extinguiu. Os Qedos de Koiko eram longos e delicados, as unhas a própria perfeição. No silêncio, dobraram o papel sobre o qual as cinzas foram depositadas, fazendo um ogami, dobrado sobre a mesa. O papel parecia agora com uma carpa.



Quando ela levantou o rosto, tinha os olhos cheios de lágrimas, e Yoshi sentiu uma profunda afeição.



— Peço que me perdoe, por favor — balbuciou ela, a voz trêmula. — Mas era perigoso demais para você... é triste destruir tanta beleza, eu queria muito guardar o poema. É triste, mas também seria perigoso demais...



Enternecido, Yoshi tornou a abraçá-la, sabendo que o ato de Koiko era a única solução para ele e também para ela, impressionado por tamanha percepção sobre sua intenção original: planejara de fato esconder o poema, mas deixar que fosse descoberto, e chegar ao conhecimento de todas as pessoas que ela indicara, em particular da princesa Yazu.



Koiko tem razão, posso perceber agora.Yazu discerniria minha trama e leria meus verdadeiros pensamentos: que sua influência sobre Nobusada deve acabar ou posso me considerar um homem morto. Não há outra maneira de interpretar “O poder de meu ancestral”... Por ela, minha cabeça já estaria espetada na ponta de um chuço!



— Não chore, minha criança — sussurrou ele, convencido agora de que podia confiar em Koiko.



E enquanto se permitia ser acariciada, depois excitada, passando por sua vez a excitá-lo, Koiko pensava com seu terceiro coração, seu coração mais secreto — o primeiro para que todo o mundo visse, o segundo aberto apenas à família mais íntima, o terceiro nunca revelado a ninguém —, e nesse lugar secreto deixou escapar um suspiro silencioso de alívio, por ter passado em outro teste, pois sem dúvida fora um teste.



Seria perigoso demais para ele manter viva tamanha traição, porém ainda mais perigoso para mim tê-la em meu poder. É isso mesmo, meu belo amo, é fácil adorá-lo, rir e me divertir em sua companhia, simular êxtase quando me penetra... e é divino recordar que, ao final de cada dia, ganhei um koku. Pense nisso, Koiko-chan! Um koku por dia, todos os dias, por participar do jogo mais emocionante do mundo, com o nome mais elevado do mundo, um homem belo e espantoso, de grande cultura, cujo talo é o melhor que já experimentei... e, ao mesmo tempo, ganhar com isso uma riqueza maior do que em qualquer outra ocasião anterior.



As mãos, lábios e corpo de Koiko reagiam de um modo adequado, fechando, abrindo, abrindo ainda mais, recebendo-o, orientando-o, ajudando-o, um instrumento de absoluta sintonia que ele podia tocar à vontade, enquanto ela simulava um êxtase total, fingia mergulhar e se abandonar, mas nunca se largando por completo — era muito importante conservar suas energias e controle, pois Yoshi era um homem de muitos apetites —, desfrutando a competição, nunca se apressando, mas sempre avançando, ora cambaleando à beira do abismo, deixando-o despencar, só para puxá-lo de volta, permitindo a arremetida final, numa explosão de alívio.





Quieto agora. Seu peso dormindo não chegava a ser tão desagradável, suportado com estoicismo, com o maior cuidado para não se mexer, a fim de não perturbar sua paz. Satisfeita com sua arte, como sabia que Yoshi ficara com a dele. E o último pensamento de Koiko, o mais secreto, exultante, antes de resvalar para o sono, foi: Eu me pergunto como Katsumata, Hiraga e seus amigos shishi vão interpretar “Espada de meus antepassados...”




14







QUIOTO







Segunda-feira, 29 de setembro:









Alguns quilômetros ao sul de Quioto, ao crepúsculo, ocorria um violento combate de retaguarda, entre as tropas de Satsuma em fuga e as forças de Choshu, de lorde Ogama, que pouco antes haviam capturado os portões do palácio. O mestre espadachim de Satsuma, Katsumata, um líder secreto dos shishi, apoiado por uma centena de samurais montados, comandava a batalha, para proteger a fuga de lorde Sanjiro e o grosso das forças de Satsuma, que se encontravam a uns poucos quilômetros de distância, para o sul. Lutavam em grande inferioridade numérica. O local era campo aberto, o vento estava impregnado pelo mau cheiro de esterco humano das plantações e havia no céu um acúmulo ameaçador de nuvens escuras.





Mais uma vez, Katsumata liderou uma carga furiosa, que rompeu as fileiras de vanguarda do inimigo, na direção do estandarte do daimio de Choshu, Ogama, também montado. Mas os samurais de Satsuma foram rechaçados, com grandes baixas, e reforços correram para proteger seu líder.



— Todas as tropas devem avançar! — gritou Ogama.



Ele tinha vinte e oito anos, um homem corpulento e irado, usando uma armadura leve de bambu e metal, com capacete de guerra, a espada desembainhada e ensangüentada.



— Contornem esses cães! Sigam em frente! Quero a cabeça de Sanjiro! No mesmo instante, ajudantes partiram em disparada pará transmitir suas ordens a todos os comandantes.



A cinco ou seis quilômetros dali, lorde Sanjiro e os remanescentes de suas forças seguiam apressados para a costa e Osaca, a trinta e tantos quilômetros de distância, a caminho das embarcações que os levariam para seu território, a ilha meridional de Kyushu, e para a segurança de sua capital, Kagoshima, seiscentos quilômetros para oeste.



No total, havia cerca de oitocentos guerreiros, bem equipados, samurais fanáticos, ansiosos em voltar para a luta, ainda amargurados pela derrota, pela expulsão de Quioto, uma semana antes. Ogama desfechara um inesperado ataque noturno, cercando seu acampamento e incendiando os prédios, repudiando os acordos solenes que haviam celebrado.





Com grandes baixas, os Satsumas lutaram para sair da cidade, até a aldeia de Fushimi, onde Sanjiro reagrupara suas forças, frenético, sempre atacados por destacamentos Choshus.



— Estamos acuados!



Um dos seus comandantes dissera:



— Lorde, proponho um contra-ataque imediato, na direção de Quioto. Ao que Katsumata respondera, enfático:





— Seria perigoso demais, pois são muitas as tropas contra nós, e poderão nos esmagar. Sire, alienaria assim todos os daimios, e deixaria a corte ainda mais assustada. Proponho que ofereça uma trégua a Ogama... se ele permitir uma retirada ordenada.



— Sob que alegação?



— Como parte da trégua, aceita que suas forças serão guardiães dos portões... as forças dele, não as de Tosa, e isso vai semear ainda mais divergência entre eles.



— Não posso aceitar isso — protestara Sanjiro, tremendo de raiva por ter sido enganado por Ogama. — E mesmo que eu concordasse, ele rejeitaria a proposta. Por que deveria aceitar? Nós é que estamos em desvantagem. Pode urinar em cima de todos nós. Se eu estivesse em seu lugar, trataria de nos atacar aqui, antes do meio-dia.





— É o que ele fará, lorde... a menos que o impeçamos. Podemos conseguir isso por uma artimanha, já que ele não é um guerreiro tão capaz quanto meu lorde... e suas tropas não têm o mesmo denodo, não são tão bem treinadas. Ele só conseguiu nos derrotar porque atacou à noite, numa sórdida traição. Lembre-se de que a aliança de Ogama com Tosa é precária. Ele precisa consolidar a posse dos portões e suas tropas são insuficientes para enfrentar todos os problemas durante as próximas semanas. Tem de se organizar e providenciar reforços, sem provocar qualquer oposição. E muito em breve o Bakufu deve retornar com todas as suas forças, para retomar os portões, como é seu direito.





Pelo édito de Toranaga, todos os daimios em visita a Quioto só podiam levar quinhentos guardas, todos os quais tinham de se manter sob severas restrições, dentro dos acampamentos de seus feudos, construídos sem defesas. O mesmo édito permitira que as forças do xogunato fossem mais numerosas do que todas as outras juntas. Ao longo de séculos de paz, o Bakufu deixara que tais leis definhassem. Em anos recentes, os daimios de Tosa, Choshu e Satsuma — dependendo da força pessoal — haviam ludibriado a burocracia para aumentar seus efetivos, até serem obrigados a enviar os guerreiros em excesso de volta para suas terras.



— Ogama não é um tolo, nunca me deixará escapar — dissera Sanjiro. — Eu espetaria sua cabeça na ponta de um chuço, se conseguisse acuá-lo.





— Ele não é um tolo, mas pode ser manipulado. — Katsumata baixara a voz para acrescentar: — Além da promessa sobre os portões, também poderia concordar que, se ou quando houver uma convenção de daimios, apoiaria suas reivindicações a ser chefe do Conselho de Anciãos.



— Nunca! — explodira Sanjiro. — Ele não pode deixar de saber que eu jamais concordaria com isso. Por que acreditaria em tamanho absurdo?





— Porque ele é Ogama. Porque fortificou seu estreito de Shimonoseki com dezenas de canhões de sua fábrica de armas não tão secreta, construída pelos holandeses, e por isso acredita, com toda razão, que pode impedir a passagem dos navios dos gai-jin, a seu capricho, e mesmo assim continuar a salvo de um ataque deles. Porque pensa que é o único que pode pôr em prática o desejo do imperador de expulsar os gai-jin, que somente ele pode restaurar o aparato de poder do imperador... por que ele não deveria reivindicar o maior de todos os prêmios, ser o tairo, ditador?



— A Terra terá um banho de sangue antes que isso aconteça.



— O último motivo pelo qual ele poderia aceitar uma trégua, Sire, é o fato de que nunca antes controlou os portões... não passa de um arrivista, um usurpador, e sua linhagem é vulgar — acrescentara Katsumata, com imenso desdém —, não tão antiga e elevada quanto a sua. Uma razão adicional: ele aceitará a trégua porque será oferecida como permanente.



Em meio aos protestos atônitos e furiosos, Sanjiro fitara seu conselheiro com o maior espanto, surpreso pela extensão das concessões que Katsumata propunha. Sem compreender, mas conhecendo Katsumata muito bem, ele tratara de dispensar os outros.





— O que há por trás de tudo isso? — indagara, impaciente, assim que ficaram a sós. — Ogama não pode deixar de saber que qualquer trégua só valerá até eu me encontrar seguro por trás de minhas montanhas, onde mobilizarei todos os homens de Satsuma, e depois marcharei para Quioto, a fim de recuperar meus direitos, vingar os insultos e cortar sua cabeça. Por que tamanho absurdo de sua parte?



— Porque corre um perigo mortal, Sire, como nunca antes. Está acuado. Há espiões entre nós. Preciso de tempo para organizar os barcos em Osaca e formular um plano de batalha.



Sanjiro acabara concordando:



— Muito bem, pode negociar.



As negociações haviam se prolongado por seis dias.



Durante esse tempo, Sanjiro permanecera placidamente em Fushimi, mas despachara espiões para todas as estradas de Quioto. Como medida de confiança mútua, Sanjiro consentira em se deslocar para uma posição menos defensável e Ogama retirara todas as suas forças do caminho de fuga, à exceção de um destacamento simbólico. Depois, ambos ficaram esperando que o outro cometesse um erro.





Com o poder supremo em Quioto, mesmo que precário, Ogama, apoiado por mais de mil samurais, parecia se contentar em reforçar seu domínio sobre os portões, cultivando os outros daimios, e em particular os cortesãos que se mostravam simpáticos à sua causa. Ogama os persuadira a abordar o imperador e pedir que “solicitasse” a imediata renúncia de Anjo e do Conselho de Anciãos, convocasse uma convenção de daimios, que teria o poder de designar um novo Conselho de Anciãos — no qual ele seria o tairo —, que governaria até o xógum Nobusada alcançar a maioridade, substituindo todos os partidários de Toranaga no Bakufu.





Para intensa satisfação de Ogama, os cortesãos lhe informaram que seus disparos de canhão contra os navios dos gai-jin haviam agradado bastante ao imperador. Isso e mais a trégua proposta por Sanjiro, com extraordinárias concessões, reforçavam ainda mais sua influência sobre a corte.



— A trégua é aceita — declarara ele a Katsumata, pomposo, no dia anterior. — Ratificaremos o acordo daqui a sete dias, em meu quartel-general. Depois, vocês podem se retirar para Kagoshima.



Mas, naquela manhã, chegara a notícia surpreendente da proposta da visita do xógum Nobusada. No mesmo instante, Sanjiro mandara chamar Katsumata.



— O que deu em Anjo e Yoshi para concordar? Enlouqueceram? Qualquer coisa que venha a acontecer, eles saem perdendo.



— Concordo, Sire, mas isso lhe deixa em uma posição ainda mais perigosa. Com Ogama controlando os portões, e dessa forma o acesso ao imperador, qualquer inimigo seu é também um inimigo do imperador.



— Óbvio! O que posso fazer? O que você sugere?





— Envie imediatamente uma carta a Ogama, sugerindo uma reunião dentro de três dias, para discutir os desdobramentos da visita... ele deve estar tão espantado quanto todos os outros daimios. Enquanto isso, esta noite, depois do escurecer, executamos o plano de batalha.



— Não podemos escapar sem Ogama saber. Há espiões por toda a parte, e suas tropas podem nos alcançar com facilidade. No momento em que souber que levantamos acampamento, ele nos atacará.



— Tem toda razão, só que deixaremos o acampamento exatamente como está, levando apenas nossas armas. Eu o conheço bem, e tenho certeza de que poderemos enganá-lo.



Furioso, Sanjiro indagara:



— Se é assim, por que não previu seu ataque de surpresa?





Mas eu previ, Katsumata poderia dizer, só que me era mais conveniente que Ogama ficasse com o controle temporário dos portões. Não escapamos de sua armadilha sem maiores dificuldades? Ogama nunca será capaz de lidar com a corte, os daimios hostis, Tosa, a visita do xógum Nobusada, ou a princesa Yazu. Se Nobusada não chegar a Quioto, Ogama será responsabilizado por sua morte.



— Sinto muito, Sire — murmurara ele, simulando humildade. — Estou descobrindo por que seus espiões falharam, e posso garantir que cabeças vão rolar.



— Cuide disso.





Pouco depois do escurecer, Katsumata enviara homens especialmente treinados para dizimar os Choshus que os espionavam, e que morreram sem desconfiar de nada. Depois, seguindo o plano de batalha de Katsumata, que só abria exceção para o próprio e uma centena de guerreiros a cavalo, Sanjiro e o regimento partiram para o sul. A cada três ri, cem homens ficariam esperando por Katsumata, recuando junto com ele. Confiante, Katsumata montara uma emboscada na estrada de Quioto. Tinha certeza de que se pudessem sobreviver até o amanhecer, atraindo os homens de Choshu para uma batalha em movimento, era bem provável que a maioria suspendesse o combate, retornando a Quioto, a fim de reforçar a posição ali, deixando apenas uma força simbólica na perseguição. Havia muitos rumores de que as alianças de Ogama já começavam a desmoronar, a dissidência aumentando com as mentiras espalhadas pelos aliados secretos de Katsumata.



Mas ele se surpreendera ao descobrir Ogama no comando da perseguição, e ainda mais com a rapidez com que foram alcançados. Karma.



— Atacar! — berrou Katsumata.



Ele tornou a virar seu cavalo, interrompendo a fuga simulada. No mesmo instante, sua cavalaria, aparentemente dispersa, reagrupou-se em falanges furiosas, investindo contra os oponentes, que recuaram em desordem, o ar frio e úmido, impregnado pelo cheiro de suor, medo e sangue, ardendo em suas narinas. Homens morriam à esquerda e à direita, de ambos os lados, mas Katsumata foi avançando, pouco a pouco, até que o caminho para Ogama se tornou quase desimpedido. Uma vez mais, no entanto, ele foi rechaçado e tratou de fugir — agora uma fuga para valer —, sendo seguido pelos que continuavam vivos. Dos cem homens com os quais iniciara o combate, restavam apenas vinte.



— Chamem nossas reservas! — gritou Ogama. — Quinhentos koku pela cabeça de Katsumata, mil pela cabeça de lorde Sanjiro.



— Sire!



Um dos seus comandantes mais experientes apontou para cima. Sem que ninguém percebesse, no alvoroço da batalha, as nuvens de tempestade haviam ocupado a maior parte do céu e começavam a cobrir a lua.



— Sinto muito, mas a estrada de volta a Quioto é difícil, e não sabemos se àqueles cães astutos nos armaram outra emboscada.



Ogama pensou por um momento.



— Cancele a ordem de combate para a reserva! Pegue cinqüenta guerreiros a cavalo e os pressione até a morte. Se me trouxer qualquer das duas cabeças, eu o promoverei a general, com dez mil koku. Vamos suspender a batalha.



No mesmo instante, os comandantes se afastaram apressados, gritando ordens. Sombrio, Ogama esquadrinhou a escuridão cada vez mais intensa por onde Katsumata e seus homens haviam desaparecido.





— Por meus ancestrais — murmurou ele —, quando eu me tornar tairo Satsuma será um protetorado de Choshu, os tratados serão cancelados, e nenhum navio gai-jin jamais passará por meu estreito!



Depois, ele virou seu cavalo e partiu, acompanhado por seus guardas pessoais a caminho de Quioto. E ao encontro de seu destino.













Nessa mesma noite, na legação francesa em Iocoama, a festa e o recital promovidos por Seratard, em homenagem a Angelique, foram um grande sucesso. O cozinheiro se superara: pão fresco, travessas com ostras temperadas, lagosta fria camarões pequenos e grandes, peixe cozido, temperado com gengibre e alho, e servido com alho-poró de sua própria terra, além de tarte au pomme, as maçãs secas vindas da França, que só eram usadas em ocasiões especiais. Champanhe, La Doucette, e um Margaux de sua aldeia natal, do qual ele muito se orgulhava. Depois do jantar e charutos, aplausos estrondosos anunciaram a apresentação de André Poncin, um pianista refinado, embora relutante, mais aplausos depois de cada peça, e agora, quase meia-noite, após três bis, houve uma ovação de pé, enquanto definhavam os últimos acordes maravilhosos de uma sonata de Beethoven.



— Magnífico...



— Extraordinário...



— Oh, André! — balbuciou Angelique, em francês, de seu lugar de honra, perto do piano, a mente libertada pela música da angústia em espreita permanente. — Foi lindo! Muito obrigada!



Seu leque adejou de uma forma encantadora, os olhos e o rosto uma perfeição, uma crinolina sobre as anáguas, decote profundo, ombros à mostra, a seda verde delicada caindo em cascatas, formando camadas, acentuando ainda mais a cintura estreita.





Merci, mademoiselle. — Poncin levantou-se, ergueu seu copo, com uma expressão velada nos olhos. À toi!





Merci, monsieur.



Em seguida, mais uma vez, ela virou-se para Seratard, cercada por Norbert Greyforth, Jamie McFay, Dmitri e os outros mercadores, todos vestidos a rigor. camisas de seda com rufos, coletes vistosos e gravatas — alguns trajes novos, mas quase todos velhos, amarrotados, passados às pressas, porque Angelique estaria presente. Havia também alguns oficiais franceses, do exército e marinha, uniformes com alamares, a espada de gala aumentando o esplendor a que não estavam acostumados, além de militares britânicos, igualmente adornados como pavões.



Duas das três outras mulheres da colônia se encontravam ali, na sala iluminada por velas e lampiões a óleo, Mabel Swann e Victoria Lunkchurch. Ambas corpulentas, com vinte e poucos anos, sem filhos, esposas de mercadores, ambas transbordando de ciúme, os maridos detidos a seu lado, encharcados de suor.



— Já chega, Sr. Swann — disse Mabel, com uma fungadela desdenhosa. — Vamos para a cama, com uma boa xícara de chá inglês.



— Se está cansada, minha cara, você e Vic...



— Nós dois vamos embora! E agora!



— Você também, Barnaby — disse Victoria Lunkchurch, o sotaque de Yorkshire tão grande quanto os quadris. — E trate de tirar esses pensamentos sujos da cabeça, antes que eu dê um jeito em você!



— Quem, eu? Que pensamentos?



— Esses pensamentos com aquela Sirigaita francesa, que Deus a perdoe! — acrescentou Victoria, com mais veneno ainda. — Vamos embora!



Ninguém sentiu falta deles, nem percebeu que haviam se retirado. Todos se concentravam na convidada de honra, tentando chegar mais perto; ou se já se encontravam no círculo, tentando impedir que outros os afastassem.



— Uma esplêndida noite, Henri — disse Angelique.



— Só por sua causa. Ao nos honrar com sua presença, faz com que tudo pareça melhor.



Seratard murmurava esses chavões galantes enquanto pensava: É uma pena que você ainda não seja casada, portanto madura para uma ligação com um homem refinado. A pobre moça tem de suportar um escocês imaturo e bovino, embora rico. Eu bem que gostaria de ser o seu primeiro amante de verdade... seria uma alegria lhe ensinar as coisas.



— Você sorri, Henri? — murmurou ela, subitamente consciente de que seria melhor tomar cuidado com aquele homem.



— Pensava apenas em como seu futuro será perfeito e isso me deixou feliz.



— Ah, quanta gentileza!



— Acho que...



— Miss Angelique, se me permite a ousadia, vamos ter uma corrida no sábado — interveio Norbert Greyforth, furioso por Seratard monopolizar a moça, irritado pela grosseria do homem em falar francês, uma língua que não entendia, detestando-o e a tudo que era francês, à exceção de Angelique. — Será uma corrida nova... ahn... em sua homenagem. Decidimos chamá-la de Copa Angel, não é mesmo, Jamie?



— É, sim — confirmou Jamie McFay, os dois diretores do Jóquei Clube, ambos sob o encantamento de Angelique.— Resolvemos que será a última corrida do dia, e a Struan vai oferecer o prêmio em dinheiro, de vinte guinéus. Poderia entregar o prêmio, Miss Angelique?



— Claro que sim. Será um prazer, se o Sr. Struan aprovar.



— Ficaremos esperando.



McFay já pedira a permissão de Struan, mas ele e todos os homens ao redor especularam sobre as implicações do comentário, embora todas as apostas contra um noivado estivessem suspensas. Mesmo em particular, Struan não lhe dera a menor indicação, apesar de McFay se sentir na obrigação de relatar os rumores.



— Isso não é da conta de ninguém, Jamie. Absolutamente ninguém.





Ele concordara, mas sua inquietação aumentara. O comandante de um navio mercante que entrara no porto, um velho amigo, lhe entregara uma carta da mãe de Malcolm, pedindo um relatório confidencial: Desejo saber tudo o que tem acontecido desde que essa mulher Richaud chegou a Iocoama, Jamie. Tudo mesmo, rumores, fatos, intrigas, e não preciso ressaltar que isso deve permanecer como um segredo absoluto entre nós.





Mas que droga!, pensou Jamie. Estou comprometido por um juramento sagrado a servir ao tai-pan, quem quer que ele seja, e agora sua mãe me pede mas, por outro lado, uma mãe tem direitos, não é mesmo? Não necessariamente, mas a Sra. Struan tem, porque é a Sra. Struan, e ainda por cima você já se acostumou a fazer o que ela manda. Não vem se submetendo há anos às suas ordens, pedidos e sugestões?



Pelo amor de Deus, Jamie, pare de tentar enganar a si mesmo; no fundo, não é ela quem vem controlando Culum e dirigindo a Struan há anos, e nem você, nem qualquer outro, jamais quiseram encarar o fato abertamente?



— Isso é mais do que certo — murmurou ele.



Sentia-se chocado pelo pensamento, que sempre receara escancarar. Subitamente contrafeito, ele se apressou em cobrir o lapso, mas todos ainda se concentravam em Angelique.



A exceção de Norbert.



— O que é certo, Jamie? — indagou ele, sob o burburinho da conversa, com um sorriso indecifrável.



— Tudo, Norbert. Grande noite, hem?



Para seu grande alívio, Angelique atraiu a atenção de ambos.



— Boa noite, boa noite, Henri, senhores — disse ela, sob protestos gerais. — Sinto muito, mas preciso ver meu paciente, antes de me recolher.



Ela estendeu a mão. Com uma elegância experiente, Seratard beijou-a, Norbert, Jamie e os outros fizeram a mesma coisa, embora desajeitados. Antes que qualquer outro pudesse se oferecer como voluntário, André Poncin disse:



— Talvez eu possa escoltá-la até sua casa?



— Claro. Por que não? Sua música me deixou extasiada.



A noite estava um pouco fria e nublada, mas ainda assim bastante agradável, o xale de lã ornamentando os ombros de Angelique, o babado na bainha da saia-balão se arrastando na poeira da calçada de madeira... tão necessária durante as chuvas de verão, que transformava todos os caminhos em atoleiros. Apenas uma pequena parte da mente de Angelique focalizava o momento.



— André, sua música é maravilhosa, e não pode imaginar como eu gostaria de tocar assim — comentou ela, com sinceridade.



— É apenas uma questão de prática, mais nada.



Seguiram para o prédio Struan, todo iluminado, falando em francês, descontraídos, André consciente dos olhares invejosos dos homens a caminho do clube — efusivo, apinhado e convidativo —, atraído por ela, não com desejo ou paixão. Apenas por sua companhia, por seus comentários tão felizes que mal exigiam uma resposta.





Na noite anterior, no jantar “francês” de Seratard, numa sala particular do hotel Iocoama, ele sentara ao lado de Angelique e achara sua juventude e aparente frivolidade revigorantes, e seu amor e conhecimento de Paris, os restaurantes, teatros, as conversas de seus jovens amigos, os risos e relatos de passeios pelo Bois e toda a emoção do segundo império haviam-no deixado com a maior nostalgia, lembrando os dias da universidade e o quanto também sentia saudade de sua terra.



Anos demais na Ásia, na China e aqui.



É curioso que esta moça seja tão parecida com minha própria filha. Marie tem a mesma idade, as duas fazem aniversário no mesmo mês, julho, os mesmos olhos, a mesma cor...





Ele se corrigiu: Talvez como Marie. Quantos anos já se passaram desde que rompi com Françoise, deixei as duas na pensão da família, perto da Sorbonne, e parti? Dezessete anos. Quanto tempo desde que as vi pela última vez? Dez anos. Merde, eu nunca deveria ter casado, Françoise grávida ou não. O tolo fui eu, não Françoise, pelo menos ela casou de novo, e agora dirige a pensão. E Marie?



O som das ondas desviou sua vista para o mar. Uma gaivota planava lá no alto. Não muito longe da praia, avistou as luzes da nave capitânia francesa ancorada, e isso rompeu seu encantamento, fazendo com que tornasse a se concentrar.



Era irônico, aquela moça agora se tornava um peão no grande jogo, França contra Inglaterra. Podia ser irônico, mas era a vida. Deixo para amanhã, para depois de amanhã, ou jogo logo as cartas como combinamos, Henri e eu?



— Ah, André — dizia Angelique —, eu me sinto muito feliz esta noite. Sua música me deixou enlevada, levou-me de volta à Opera, de tal forma que posso até sentir o perfume de Paris...



Contra a vontade, ele se sentia fascinado. Por ela ou porque me faz pensar no que Marie poderia ter sido? Não sei e também não importa. Esta noite, Angelique, eu a deixarei em seu balão de felicidade. Haverá tempo suficiente amanhã.





Depois, as narinas de André aspiraram uma insinuação do perfume que ela usava, Vie de Camille, fazendo-o recordar o frasco que mandara vir de Paris, com tanta dificuldade, para sua musume, Hana — a Flor —, e uma raiva repentina acabou com o impulso para a gentileza.



Não havia ninguém bastante perto para ouvir, a High Street se encontrava quase vazia. Mesmo assim, ele falou baixo:



— Lamento ter de lhe contar, mas tenho algumas notícias confidenciais que precisa saber. Não há uma maneira fácil de explicar e, por isso, serei brusco: seu pai visitou Macau há algumas semanas, jogou pesado e perdeu.



Poncin percebeu a palidez súbita. Sentiu um aperto no coração, mas continuou assim mesmo, como planejara com Seratard.



— Sinto muito.



— Jogou pesado, André? O que isso significa?



As palavras saíram quase inaudíveis e ele viu-a de olhos arregalados.



— Ele perdeu tudo, seus negócios, os recursos que você tinha deixado com ele.



Angelique soltou uma exclamação atordoada.



— Tudo? Meus recursos também? Mas ele não podia fazer isso!



— Sinto muito, ele podia, e fez. Está dentro da lei, você é sua filha, solteira além de menor, ele é seu pai, com jurisdição sobre você e tudo o que possui. Mas é claro que você já sabe de tudo isso. Sinto muito. Tem mais algum dinheiro?



Antes mesmo de perguntar, Poncin já sabia que ela não tinha mais nada.



— Sente muito?



Angelique estremeceu, fez um esforço para manter a lucidez, sabendo agora que o segundo de seus grandes terrores se tornara uma realidade, o conhecimento comum rompendo o casulo que formara com tanto cuidado.



— Como soube de tudo isso? — balbuciou ela, com alguma dificuldade para respirar. — Aqueles recursos eram só meus... ele prometeu.



— Seu pai mudou de idéia. E Hong Kong é uma aldeia... não há segredos em Hong Kong, Angelique, e aqui também não. Chegou hoje uma mensagem de Hong Kong, enviada por um associado. Ele descreveu os detalhes... visitava Macau na ocasião e testemunhou o desastre.



Poncin manteve a voz cordial e preocupada, assumindo a atitude de um bom amigo, mas revelando apenas a metade da verdade.



— Ele e eu, nós, nós temos algumas promissórias de seu pai, empréstimos do ano passado, que ainda não foram pagos.



Outro medo abalou Angelique.



— Meu pai... não paga suas contas?



— Infelizmente, não.



Angustiada, ela pensou na carta da tia e teve certeza, agora, de que o empréstimo do tio também não fora pago, e que ele fora para a cadeia porque... talvez por minha causa, ela quis gritar, tentando manter o controle, desejando que tudo não passasse de um sonho. Oh, Deus, o que vou fazer?



— Quero que saiba que se precisar de minha ajuda, basta dizer.



Abruptamente, a voz de Angelique se tornou estridente.



— Ajuda? Você destruiu minha paz... se é mesmo verdade o que diz. Ajudar-me? Por que me disse isso logo agora, quando eu me sentia tão feliz?



— É melhor saber logo, e é melhor que seja eu a lhe contar, em vez de um inimigo.



O rosto de Angelique se contraiu.



— Inimigo? Que inimigo? Por que eu haveria de ter inimigos? Nunca fiz nada a ninguém, absolutamente nada...



As lágrimas começaram a se derramar. Apesar de sua determinação, ele abraçou-a por um momento, compadecido, depois pôs as mãos em seus ombros, sacudiu-a de leve.



— Pare com isso! — disse ele, permitindo que a voz se tornasse um pouco brava. — Por Deus, pare com isso! Será que não entende que estou tentando ajudá-la?



Alguns aproximavam-se pelo outro lado da rua, mas Poncin percebeu que tinham os passos trôpegos e se concentravam apenas em si mesmos. Não havia mais ninguém por perto, apenas homens se encaminhando para o clube, mais atrás, e os dois se encontravam protegidos pela sombra do prédio. Ele tornou a sacudi-la e Angelique protestou:



— Está me machucando!



Mas as lágrimas cessaram e ela recuperou o controle. André Poncin pensou, friamente, que aquele mesmo processo já fora repetido uma centena de vezes antes, com graus variados de verdade distorcida e violência, com outros inocentes que ele precisara usar em proveito da França, os homens mais fáceis de manipular do que as mulheres. Aos homens, bastava chutá-los nos colhões, ameaçar cortá-los, enfiar agulhas... E as mulheres? Era bastante desagradável tratar as mulheres dessa maneira.



— Está cercada por inimigos, Angelique. Há muitos que não querem que você case com Struan. A mãe dele lutará por todos os meios que...



— Eu nunca disse que íamos casar... não passa de um rumor, apenas um rumor, mais nada!





Merde! Claro que é verdade! Ele a pediu em casamento, não é? — Poncin tornou a sacudi-la, os dedos rudes. — Não pediu?



— Está me machucando, André. É verdade, pediu, sim.



Ele entregou-lhe o lenço, deliberadamente mais gentil.



— Enxugue os olhos. Não resta muito tempo.



Submissa, Angelique obedeceu, recomeçou a chorar, mas logo se controlou.



— Por que você se comporta de uma maneira tão horrível?



— Sou o único amigo de verdade que tem aqui... estou realmente do seu lado, pronto para ajudá-la, o único amigo em quem pode confiar... o seu único amigo sincero, juro, o único que pode ajudá-la.



Normalmente, ele teria dito, com todo fervor, juro por Deus, mas calculou que já a dominara, e reservaria isso para mais tarde.



— É melhor você saber da verdade secretamente. Assim, terá tempo para se preparar. A notícia só vai chegar ao conhecimento de todos aqui dentro de uma semana, o que lhe proporciona o tempo necessário para tornar seu noivado solene e oficial.



— Como?



— Struan não é um cavalheiro? — Poncin teve de fazer um esforço para encobrir o desdém. — Um inglês... isto é, um escocês, um cavalheiro britânico. Eles não se orgulham de sua palavra? Hem? Depois que a promessa se tornar pública, ele não poderá retirá-la, quer você seja ou não uma indigente, independente do que seu pai possa ter feito, independente do que a mãe dele diga.



Eu sei, eu sei, Angelique teve vontade de gritar. Mas sou uma mulher, e tenho de esperar, fiquei esperando, e agora é tarde demais. Bendita Maria, ajude-me!



— Eu não... não acredito que Malcolm me culpe pelo que meu pai fez, nem que dê ouvidos à mãe.





— Infelizmente, Angelique, ele terá de fazê-lo. Está esquecendo que Malcolm Struan ainda é menor de idade, embora seja o tai-pan. Só vai completar vinte e um anos em maio do ano que vem. Até lá, a mãe pode lhe impor todos os tipos de restrições legais, até mesmo um noivado de um ano, de acordo com a lei inglesa.



Poncin não tinha certeza absoluta disso, mas parecia razoável, e era verdadeiro pela lei francesa.



— Ela pode impor restrições a você também, talvez mesmo levá-la aos tribunais — acrescentou ele, com tristeza. — A Struan é uma companhia poderosa na Ásia, que é quase o seu domínio. Ela pode arrastá-la a um tribunal, você sabe o que dizem a respeito dos juizes, todos os juizes, não é mesmo? Pode acusá-la de ser uma coquete, uma impostora, de estar querendo apenas o dinheiro de seu filho ou até pior. Pode descrevê-la de uma maneira terrível para o juiz, você no banco dos réus, indefesa, seu pai um jogador, na bancarrota, um homem que nunca desfrutou de qualquer prosperidade, seu tio na prisão dos devedores, e você sem dinheiro, uma aventureira.



Ela empalideceu.



— Como sabe de tio Michel? Quem é você?



— Não há nenhum segredo, Angelique. Quantos cidadãos franceses existem na Ásia? Não são muitos, não há ninguém como você, e as pessoas adoram futricar. Eu sou apenas André Poncin, mercador na China, mercador no Japão. Nada tem a temer de mim. Não quero nada além de sua amizade e confiança. E quero ajudá-la.



— Como? Estou além de qualquer possibilidade de ajuda.



— Não está, não — murmurou ele, observando-a com toda atenção. — Você o ama, não é mesmo? E seria a melhor esposa que um homem poderia ter, se tivesse a oportunidade, não é mesmo?



— Claro que sim...



— Neste caso, trate de pressioná-lo, suplique, persuada, por todos os meios que puder, para fazer com que o noivado se torne público. Talvez eu possa orientá-la.



Agora, finalmente, ele percebeu que Angelique o escutava para valer, que o compreendia; e foi com extrema gentileza que desfechou o golpe de misericórdia:



— Uma mulher inteligente... e você é inteligente, além de bonita... trataria de casar depressa. Bem depressa.











Struan estava lendo, o lampião a óleo na mesa ao lado da cama proporcionando claridade suficiente, a porta para o quarto de Angelique entreaberta. Sua cama era confortável, e ele se absorvera na história, o camisolão de seda realçando a cor de seus olhos, o rosto ainda pálido e encovado, sem nada da força anterior. Na mesa, havia também uma poção para dormir, cachimbo, tabaco e fósforos, um jarro com água temperada com um pouco de uísque.



— É ótimo para você, Malcolm — garantira Babcott. — É o melhor medicamento que poderia ter na hora de dormir, só que a dose deve ser bem fraca. Melhor do que a tintura.



— Sem isso, passo a noite inteira acordado, e me sinto horrível.



— Já se passaram dezessete dias desde o acidente, Malcolm, e é hora de parar.



Nunca é bom depender de um medicamento para dormir. É melhor parar de vez.



— Tentei uma vez antes, e não deu certo. Pararei dentro de um ou dois dias... As cortinas haviam sido fechadas para a noite, o quarto era aconchegante, o tique-taque do ornamentado relógio suíço era tranquilizador. Era quase uma hora da madrugada, e o livro, Os Assassinatos na Rua Morgue, fora-lhe emprestado naquela manhã por Dmitri, que comentara:



— Acho que você vai gostar, Malc. É o que chamam de história de detetive... e Edgar Allan Poe é um dos nossos melhores escritores. É uma pena que ele tenha morrido em quarenta e nove, o ano seguinte à corrida do ouro. Tenho uma coleção de seus contos e poemas, se você gostar deste livro.



— Obrigado, Dmitri. É muita gentileza sua. Não pode imaginar como me sinto grato por me visitar com tanta freqüência. Mas por que parece tão sombrio hoje?



— As notícias que recebi de casa não são nada boas. Minha família... a situação é terrível, Malc, tudo misturado e confuso, primos, irmãos, tios lutando por lados diferentes. Mas você não está interessado nessas coisas. Tenho uma porção de outros livros, uma biblioteca inteira, para ser mais preciso.



— Continue a falar de sua família, por favor — pedira ele, começando a sentir a dor que experimentava durante o dia. — Eu gostaria de ouvir.



— Está bem. Quando meu avô e sua família emigraram da Rússia, da Criméia, para ser exato... já contei que nossa família era de cossacos?... foram se instalar num lugar chamado Far Hills, em Nova Jersey, e ali cultivaram a terra até a guerra de 1.812... meu avô morreu nela. É também um ótimo lugar para se criar cavalos, e a família prosperou. Quase todo mundo permaneceu em Nova Jersey, mas dois filhos de meu avô se mudaram para o sul, foram viver em Richmond, Virgínia. Quando estive no exército, há mais de quinze anos... Naquele tempo, era apenas o exército da União, não havia essa história de Norte e Sul. Entrei na Cavalaria e fiquei por cinco anos, passei a maior parte do tempo no sudoeste, lutando nas guerras índias, se é que se pode chamá-las assim. Passei parte do tempo no Texas, quando ainda era república, ajudando a combater os índios ali, e mais dois anos depois que o Texas ingressou na União, em quarenta e cinco, estacionado nos arredores de Austin. Foi lá que conheci minha esposa, Emilie... ela também era de Richmond, filha de um coronel da intendência. É um lugar lindo, a região em torno de Austin, mas Richmond é ainda mais bonito. Emilie... quer que eu vá lhe buscar alguma coisa?



— Não, obrigado, Dmitri. A dor já vai passar. Continue, por favor... ouvi-lo me ajuda bastante.



— Tudo bem. Minha Emilie... Emilie Clemm era o seu nome, prima distante da esposa de Poe, Virgínia Clemm, o que só descobri mais tarde, mas é por isso que tenho uma coleção de suas obras. — Dmitri rira. — Poe era um grande escritor mas um bêbado ainda maior. Parece que todos os escritores são vagabundos bêbados e/ou fornicadores... veja o caso de Melville... talvez seja isso que os torna escritores. Pois eu não consigo escrever uma carta sem suar frio. E você?



— Oh, posso escrever cartas... tenho de fazê-lo, e também mantenho um diário, como a maioria das pessoas. Mas estava me falando sobre o tal de Poe...



— Ia lhe contar que ele casou com Virgínia Clemm quando ela tinha treze anos... era também sua prima, imagine só!... e viveram felizes para sempre, mas não muito, se era verdade o que os jornais noticiavam e os futriqueiros diziam... Poe era um tremendo filho da puta em matéria de mulheres, mas ela parecia não se importar. Minha Emilie não tinha treze anos quando casamos, mas dezoito, e era uma beldade sulista, como jamais houve outra igual. Já éramos casados quando deixei o exército e entrei na Cooper-Tillman, em Richmond... eles queriam se expandir em armamentos e munição, exportando para a Ásia, um lugar sobre o qual eu aprendera muita coisa, além de matar índios e negociar cavalos. O velho Jeff Cooper achava que armas de fogo e outras mercadorias, despachadas de Norfolk, Virgínia, teriam uma boa aceitação, junto com o ópio, na costa da China, os navios voltando a Norfolk com prata e chá... mas conhece Jeff. A Cooper-Tillman e a Struan são velhas amigas, não é mesmo?



— E espero que assim permaneçam. Continue.



— Não aconteceu muito mais coisa... ou aconteceu tudo. Ao longo dos anos, outros da família foram para o sul e se espalharam. Minha mãe era do Alabama, tenho dois irmãos e uma irmã, todos mais moços do que eu. Billy está agora com o Norte, no primeiro regimento de cavalaria de Nova Jersey... e meu irmão caçula, Janny... recebeu o nome de meu avô, Janov Syborodin... Janny também está na cavalaria, só que no terceiro regimento da Virgínia. É tudo uma loucura... aqueles dois não sabem nada sobre guerra e combate e vão acabar se matando.



— Você... pretende voltar?



— Não sei, Malc. Durante o dia inteiro penso que sim, à noite também, mas de manhã é não, pois não quero começar a matar gente da família, o que terei de fazer em qualquer lado por que lutar.



— Por que saiu dos Estados Unidos e veio para esta terra esquecida de Deus?



— Emilie morreu. Teve escarlatina... houve uma epidemia e ela foi uma das desafortunadas. Isso aconteceu há nove anos... no momento em que íamos ter nosso filho.



— Mas que coisa terrível!



— Tem razão. Você e eu já tivemos a nossa quota...











Struan se encontrava tão concentrado no livro de mistério que não ouviu a porta externa da suíte ser aberta e fechada, suavemente. Também não escutou os passos leves de Angelique, nem percebeu que ela o espiou por um instante, para depois desaparecer. Um momento mais tarde, houve um estalido quase imperceptível, quando ela fechou a porta de ligação entre os dois quartos.



Ele levantou os olhos e prestou atenção. Angelique dissera que daria uma olhada para ver como ele estava, mas não o incomodaria se o encontrasse dormindo. Ou se estivesse cansada, iria direto para a cama, silenciosa como um camundongo, e só o veria pela manhã.



— Não se preocupe, querida — dissera ele, feliz. — Trate apenas de se divertir. Tornarei a vê-la no desjejum. Duma bem, e saiba que eu a amo.



— Também amo você, chéri. Duma bem.



O livro ficara em seu colo. Com esforço, Struan sentou na cama, estendeu as pernas pelo lado. Essa parte ainda era suportável. Mas não levantar-se, o que estava além de sua capacidade. O coração disparou, ele sentiu-se nauseado e recostou-se. Tenho de insistir, não importa o que Babcott diz, pensou ele, sombrio, esfregando a barriga. Amanhã tentarei de novo. Três vezes. Talvez seja melhor assim. Eu gostaria de ficar com ela. E é o que eu faria se pudesse, que Deus me livre.



Quando se sentiu melhor, ele retomou a leitura, só que agora a história não o absorveu tanto como antes, a atenção divagou, a mente se pôs a misturar o relato no livro com imagens de Angelique sendo assassinada, cadáveres por toda parte, ele correndo para protegê-la, tendo outros vislumbres, cada vez mais eróticos.



Ao final, ele largou o livro, marcando o lugar com uma folha de papel que Angelique lhe dera, de seu diário. Fico imaginando o que ela escreve ali, sendo tão diligente. Sobre eu e ela? Ela e eu?



Muito cansado agora. Estendeu a mão para baixar o pavio do lampião e se deteve no meio do gesto. O pequeno copo de vinho com o medicamento parecia chamá-lo. Seus dedos tremeram.



Babcott tem razão, não preciso mais.



Decidido, ele apagou o lampião, ajeitou-se, fechou os olhos, rezando por ela e por sua própria família, para que a mãe lhes desse a bênção, e depois por si mesmo. Ó, Deus, ajude-me a melhorar... tenho medo, muito medo.





Mas o sono não veio de imediato. Virar-se ou tentar encontrar uma posição mais confortável sempre doía, fazendo-o lembrar da Tokaidô e de Canterbury. Meio adormecido, meio acordado, a mente fervilhava com a história do livro, os detalhes macabros. Como acabaria? Todos os tipos de imagens aflorando. Algumas terríveis, outras belas, algumas vívidas, cada pequeno movimento em busca de conforto fazendo desabrochar as flores da dor.



O tempo passou, outra hora, talvez minutos, e depois ele tomou o elixir, relaxou, contente, sabendo que em breve estaria flutuando no sono, a mão de Angelique em seu corpo, sua própria mão a explorando, nos seios, por toda parte, ela também o acariciando, na maior felicidade, num contato que não se limitava às mãos.




15







Sexta-feira, 3 de outubro:









Logo depois do amanhecer, Angelique saiu da cama, sentou à penteadeira, diante das janelas da sacada que dava para a High Street e a enseada. Sentia-se muito cansada. Seu diário estava na gaveta trancada. A capa era de couro vermelho, opaco, e também tinha um cadeado. Ela pegou a pequena chave no esconderijo, abriu o diário, mergulhou a pena na tinta e começou a escrever, mais como se fosse de uma amiga para outra... e o diário parecia agora sua única amizade, a única coisa com que se sentia segura:



“Sexta-feira, dia 3: outra noite péssima, e me sinto horrível. Já se passaram quatro dias desde que André me deu a terrível notícia sobre o pai. A partir de então, tenho sido incapaz de escrever qualquer coisa, de fazer qualquer coisa, venho trancando as portas e ‘ficado de cama’, simulando uma febre, levantando-me apenas uma ou duas vezes por dia para visitar meu Malcolm, atenuar sua ansiedade. Fecho a porta a todo mundo, à exceção de minha criada, a quem odeio, e concordei em receber Jamie uma vez, e também André.



Pobre Malcolm, ficou fora de si de preocupação no primeiro dia em que não apareci, nem abri minha porta, e insistiu em ser carregado numa maca até meu boudoir, para me ver... mesmo que tivessem de arrombar a porta. Consegui evitar que isso acontecesse forçando-me a visitá-lo, dizendo que estava bem, apenas sentia uma dor de cabeça, que não precisava dos cuidados de Babcott, e ele não precisava se preocupar com minhas lágrimas. Em particular, disse-lhe que era apenas ‘aquela época do mês’, e às vezes o fluxo era muito intenso, e meus dias eram irregulares. Ele ficou embaraçado de maneira inacreditável por eu ter mencionado meu período! Inacreditável! Quase como se nada soubesse sobre essa função feminina. Às vezes não consigo entendê-lo nem um pouco, embora ele seja gentil e atencioso, como jamais conheci outro igual. Mais uma preocupação: a verdade é que o pobre coitado não parece muito melhor, e todos os dias sente tanta dor que tenho vontade de chorar.”



Bendita Mãe, dê-me forças!, pensou ela. E há outro problema. Tento não me preocupar, mas estou frenética. O dia se aproxima. Quando chegar, ficarei livre daquele terror, mas não da penúria.



Ela recomeçou a escrever.



“É muito difícil ter alguma privacidade no prédio da Struan, por mais confortável e agradável que seja. Além disso, a colônia é uma coisa pavorosa. Não há nenhuma cabeleireira, nenhuma costureira para mulheres (embora conte com os serviços de um alfaiate chinês que é muito hábil em copiar o que já existe), nenhuma chapeleira — ainda nem experimentei o sapateiro, pois não há nenhum lugar para ir, nada para se fazer —, ah, quanta saudade tenho de Paris. Mas como poderei voltar a viver lá agora? Malcolm aceitaria a mudança para Paris, se casarmos? Nunca. E se não casarmos... como poderei sequer pagar a passagem de volta para casa? Como? Já me fiz essa pergunta mil vezes, e não consegui encontrar uma resposta.”



O olhar de Angelique deixou o papel, desviou-se para a janela e os navios na enseada. Gostaria de estar em um deles, voltando para casa, gostaria de nunca ter vindo para cá. Odeio este lugar... E se... Se Malcolm não casar comigo, terei de casar com algum outro, mas não tenho dote, absolutamente nada. Oh, Deus, não era isso que eu esperava! Se conseguisse voltar para casa, ainda assim continuaria sem dinheiro, os pobres tio e tia arruinados. Colette não tem nenhum para emprestar, não conheço nenhuma pessoa bastante rica ou famosa para casar, ou para subir na sociedade, e me tornar uma concubina, numa posição de segurança. Poderia ir para o teatro, mas é essencial contar com um patrono para subornar gerentes e autores, pagar todas as roupas, jóias, carruagens, uma mansão para os saraus... é claro que se tem de ir para a cama com o patrono, ao capricho dele, não o seu, até se tornar bastante rica e famosa, o que leva tempo, e não disponho das ligações, nem de amigos que as tenham. Oh, Deus, estou tão confusa! Acho que vou chorar de novo...



Ela baixou o rosto para os braços, as lágrimas se derramando, tomando cuidado para não fazer muito barulho, pois a criada poderia ouvir, e começar a gemer, criando uma cena, como acontecera no primeiro dia. Sua camisola era de seda creme, um chambre verde claro cobria os ombros, os cabelos desgrenhados, o quarto masculino, a cama de baldaquino, esta suíte muito maior que a de Malcolm. Num lado, ficava a ante-sala, pela qual se tinha acesso ao quarto dele. Havia também uma sala de jantar, que podia acomodar vinte pessoas, com sua própria cozinha. Mas essas portas estavam trancadas. A penteadeira era a única frivolidade, ela mandara fazer uma cortina de cetim rosa.



Quando as lágrimas cessaram, Angelique enxugou os olhos, estudou em silêncio seu reflexo no espelho de prata. Não havia rugas, apenas insinuação de fieiras, o rosto um pouco mais fino do que antes. Nenhuma mudança exterior. Deixou escapar um suspiro profundo e voltou a escrever:



“Apenas chorar não ajuda em nada. Hoje DEVO conversar com Malcolm. De qualquer maneira. André me avisou que o navio de correspondência já está atrasado um dia, e a notícia da minha catástrofe chegará com ele, é inevitável... por que os ingleses chamam um navio de ela”? Sinto-me apavorada com a possibilidade de a mãe de Malcolm estar a bordo... as notícias sobre o ferimento do filho devem ter chegado a Hong Kong no dia 24, o que lhe daria tempo suficiente para embarcar no navio de correspondência. Jamie duvida que ela possa viajar num prazo tão curto, não com seus outros filhos lá, o marido morto há apenas três semanas, e ainda de luto fechado, pobre mulher.



Quando Jamie esteve aqui, a primeira vez em que realmente conversamos a sós, contou-me histórias sobre os outros Struans — Ema tem dezesseis anos, Rose, treze, e Duncan, dez — quase todas histórias tristes. No ano passado, dois outros irmãos, os gêmeos, Robb e Dunross, com sete anos de idade, morreram afogados num acidente de barco, ao largo de um lugar em Hong Kong chamado Shek-O, onde os Struans possuem terras e uma casa de veraneio. E anos atrás, quando Malcolm tinha sete anos, outra irmã, Mary, então com quatro anos, morreu da febre de Happy Valley. Pobre coitada! Chorei a noite inteira por ela e pelos gêmeos. Tão jovens!



Gosto de Jamie, mas ele é muito insípido, sem nada de civilizado — isto é, Jamie é gaúche, mais nada —, nunca esteve em Paris, só conhece a Escócia, os Struans e Hong Kong. Eu me pergunto se poderia insistir se... Ela riscou isso, e mudou para ‘quando casarmos...’ A pena hesitou. Malcolm e eu passaremos umas poucas semanas em Paris todos os anos... e as crianças serão criadas lá, como católicas, é claro.



André e eu conversamos sobre isso ontem, sobre ser católico — ele é muito gentil, afasta meus pensamentos dos problemas, como sua música também sempre consegue fazer — e como a Sra. Struan era uma protestante calvinista, e o que dizer caso esse assunto seja abordado algum dia. Conversávamos em voz baixa — ah, como sou afortunada por tê-lo como amigo, por ele ter me alertado sobre o pai — e de repente ele levou os dedos aos lábios, foi até a porta e abriu-a abruptamente. Aquela velha megera, Ah Tok, a amah de Malcolm, estava com o ouvido grudado na porta e quase caiu. André fala um pouco de cantonês e mandou que ela fosse embora.



Quando tornei a ver Malcolm, nesse mesmo dia, mais tarde, ele se desmanchou em desculpas. Não tem a menor importância, eu disse, a porta estava destrancada, minha criada se encontrava no quarto, como era correto, mas se Ah Tok quer me espionar, por favor diga a ela para bater e entrar. Confesso que me mostrei distante e fria com Malcolm e ele se empenhou ao máximo para ser agradável, para me acalmar, mas é assim que me sinto, embora deva reconhecer que André me aconselhou a me comportar assim, até que nosso noivado se torne público.



Tive de pedir a André, e o fiz com o maior medo, mas tive de pedir um empréstimo... e me senti horrível. Foi a primeira vez que tive de fazer isso, mas precisava desesperadamente de algum dinheiro. Ele foi gentil e concordou em me trazer vinte luíses amanhã, contra a minha assinatura, o suficiente para as eventualidades por uma ou duas semanas. Malcolm parece nem perceber que preciso de dinheiro e eu não queria pedir a ele...



Tenho agora uma dor de cabeça quase permanente, tentando encontrar um meio de sair do pesadelo. Não há ninguém em quem possa realmente confiar, nem mesmo André, embora até agora ele tenha provado seu valor. Com Malcolm, cada vez que inicio o discurso que ensaiei, sei que as palavras soarão forçadas e horríveis, antes mesmo de começar, e por isso acabo não dizendo nada.



‘O que é, querida?’, ele sempre me pergunta.



‘Nada’, respondo. Depois que o deixo e tranco minha porta, desato a chorar contra o travesseiro. Acho que vou enlouquecer de tanta angústia... como meu pai pôde mentir e trapacear, roubar o meu dinheiro? E por que Malcolm não pode me dar uma bolsa sem eu ter de pedir, ou oferecer alguma coisa que me permita simular uma recusa, para depois aceitar com a maior satisfação? Não é esse o dever de um marido ou noivo? Não é o dever de um pai proteger sua filha amada? E por que Malcolm continua a esperar para tornar público o nosso noivado? Será que ele mudou de idéia? Ó, Deus, não permita que isso aconteça...”



Angelique parou de escrever, as lágrimas recomeçando. Uma caiu no papel. Ela enxugou os olhos, tomou um gole de água e depois continuou:



“Hoje falarei com ele. Tenho de fazê-lo hoje. Uma boa notícia é que a nave capitânia inglesa voltou ao porto, sã e salva, há poucos dias, para regozijo geral (estamos de fato indefesos sem os navios de guerra). O navio estava avariado, perdera um mastro, e foi seguido de perto por todas as outras embarcações, à exceção de uma fragata de vinte canhões chamada Zephyr, com mais de duzentos tripulantes a bordo. Talvez esteja segura, pelo menos é o que espero. O jornal daqui diz que cinqüenta e três outros marujos e dois oficiais morreram na tempestade, o tufão.



Foi terrível, o pior que já vi. Fiquei apavorada de dia e de noite. Pensei que todo o prédio ia desabar, mas é tão sólido quanto Jamie McFay. A maior parte do setor nativodesapareceu e houve muitos incêndios. A fragata Pearl sofreu avarias e também perdeu um mastro. Ontem, recebi uma mensagem do comandante Marlowe: Acabo de saber que está doente, apresento minhas mais profundas e sinceras condolências, etc.



Acho que não gosto dele, é altivo demais, embora seu uniforme o faça parecer atraente e acentue sua virilidade... como aquela calça justa deve fazer, da mesma forma que as mulheres se vestem para exibir os seios, a cintura e os tornozelos. Outra carta chegou na noite passada, de Settry Pallidar, a segunda, mais condolências, etc.



Acho que detesto os dois. Cada vez que penso neles, lembro-me daquele inferno chamado Kanagawa, e que não cumpriram o seu dever de me proteger. Phillip Tyrer ainda está na legação em Iedo, mas Jamie disse que fora informado que Phillip deve voltar amanhã ou depois. O que será ótimo, pois assim que ele chegar, tenho um plano para...”



O troar de um canhão provocou-lhe um sobressalto e atraiu sua atenção para a enseada. Era um sinal. Lá longe, num ponto distante do mar, outro canhão respondeu. Angelique olhou além da esquadra, para o horizonte, e divisou a fumaça indicadora saindo pela chaminé do navio de correspondência.











Jamie McFay, a pasta pesada de correspondência debaixo do braço, conduziu um estranho pela escada do prédio da Struan, o sol passando pelas janelas de vidro altas e elegantes. Ambos estavam de cartola e sobrecasaca de lã, embora o dia fosse quente. O estranho carregava uma pequena bolsa. Era atarracado, barbudo, feio, na casa dos cinqüenta anos, uma cabeça mais baixo do que Jamie, embora com ombros mais largos, os cabelos grisalhos compridos e desgrenhados se projetando debaixo da cartola. Seguiram pelo corredor. McFay bateu de leve na porta.





Tai-pan?



— Entre, Jamie, a porta está destrancada.



Assim que os dois entraram, Struan olhou aturdido para o homem atarracado e perguntou no mesmo instante:



— Mamãe também veio, Dr. Hoag?



— Não, Malcolm.



O Dr. Ronald Hoag percebeu o alívio imediato e se entristeceu, embora pudesse compreender o motivo. Tess Struan fora veemente em sua condenação à “Sirigaita estrangeira” que, tinha certeza, fisgara seu filho. Escondendo sua preocupação pela perda de peso e palidez de Malcolm, ele pôs a cartola e a bolsa em cima da cômoda.



— Ela me pediu para vir vê-lo — disse ele, a voz profunda e gentil —, descobrir se posso fazer alguma coisa para ajudá-lo e escoltá-lo de volta para casa... se precisar de uma escolta.



Há quase quinze anos que ele era o médico da família Struan em Hong Kong e fizera os partos dos últimos quatro irmãos e irmãs de Malcolm.



— Eu... O Dr. Babcott vem cuidando de mim. Estou bem. Obrigado por ter vindo. É um prazer vê-lo de novo.



— Também me sinto satisfeito por estar aqui. George Babcott é um ótimo médico, não poderia ter outro melhor.



Hoag sorriu, os olhos pequenos de topázio fixados num rosto curtido e enrugado, e continuou, jovial:



— Uma viagem horrível, fomos atingidos pela cauda do tufão e quase naufragamos. Passei a maior parte do tempo cuidando de marujos e dos poucos passageiros. Braços e pernas quebrados, na maioria dos casos. Perdemos dois homens que caíram ao mar, um chinês, passageiro de terceira classe, e um estrangeiro, nunca descobrimos quem ele era. O capitão disse que o homem se limitara a murmurar um nome qualquer ao pagar a passagem, em Hong Kong. Passava quase todo o tempo no camarote e, no dia em que resolveu sair para o tombadilho, foi apanhado por uma onda e ponto final. Malcolm, você parece melhor do que eu esperava, depois de todos os rumores que chegaram a Hong Kong.



— Acho melhor deixar vocês dois a sós — disse Jamie, pondo uma pilha de cartas na mesinha-de-cabeceira. — Aqui está sua correspondência pessoal, Malcolm. Trarei seus livros e jornais mais tarde.



— Obrigado. Alguma coisa importante?



— Duas cartas de cima. Deixei por cima.



O Dr. Hoag enfiou a mão num bolso volumoso e tirou um envelope todo amassado.



— Aqui tem mais uma carta dela, Malcolm, escrita depois das outras. É melhor lê-la primeiro, e depois vou examiná-lo, se me permitir. Jamie, não se esqueça de Babcott.



Jamie já o informara que Babcott se encontrava em Kanagawa e que mandaria o cúter buscá-lo depois que falassem com Malcolm.





— Até mais tarde, tai-pan.



— Espere mais um pouco, Jamie.



Struan abriu o envelope que Hoag lhe entregara e começou a ler a carta.



Quando Jamie subira a bordo do navio de correspondência, encontrara o Dr. Hoag à sua espera. O médico lhe dissera que já separara toda a correspondência da Struan; podiam desembarcar logo. Depois, para alívio de Jamie, respondera à sua pergunta premente:



— Não, Jamie, a Sra. Struan não veio, mas eu trouxe uma carta dela para você. Dizia apenas: Jamie, faça tudo o que o Dr. Hoag pedir, e me envie relatórios confidenciais detalhados por todos os navios de correspondência.



— Sabe o que diz a carta, doutor?



— Sei, sim, e acho que nem haveria necessidade, mas você conhece a dama.



— Como ela está?



Hoag pensara por um momento.



— Como sempre: imperturbável por fora, um vulcão por dentro. Um dia tem de explodir... ninguém pode manter tanta tristeza reprimida, tantas tragédias. Absolutamente ninguém. Nem mesmo ela.



Ele acompanhara Jamie pela rampa de desembarque, os olhos se virando para todos os lados.



— Devo dizer que me sinto satisfeito pela oportunidade de visitar o Japão... Você está muito bem, Jamie. Não resta a menor dúvida de que este posto combina com você. Já se passou quase um ano desde a sua última licença, não é? E agora conte, conte tudo, primeiro sobre o ataque mortal... e depois sobre a Srta. Richaud.



Ao alcançarem a praia, o Dr. Hoag já estava a par de tudo o que Jamie sabia.





— Mas, por favor — acrescentara ele, apreensivo —, não mencione a Malcolm o que lhe contei sobre Angelique. Ela é uma pessoa maravilhosa e também passou por momentos terríveis. Não creio que já tenham deitado juntos, o noivado secreto é apenas um rumor, mas ele está mesmo apaixonado... não que eu o culpe por isso, ou a qualquer outro homem na Ásia, diga-se de passagem. Detesto a idéia de mandar relatórios secretos para a Sra. Struan, por motivos óbvios. De qualquer forma, já tenho um escrito, uma versão atenuada, e será despachado quando o navio voltar. Minha lealdade deve ser para Malcolm em primeiro lugar, acima de tudo, pois ele é o tai-pan.



Agora, observando Malcolm Struan deitado ali, lendo a carta que Hoag lhe entregara, vendo o rosto pálido e o corpo debilitado, ele começou a ter dúvidas.



Struan levantou o rosto, os olhos contraídos.



— O que é, Jamie?



— Queria que eu fizesse alguma coisa.



Depois de uma pausa, Malcolm disse:



— Isso mesmo. Mande um recado para a legação francesa... Angelique está lá, disse que ia esperar por sua correspondência... avise que um velho amigo chegou de Hong Kong e que eu gostaria que ela o conhecesse.



McFay balançou a cabeça e sorriu.



— Está bem. Basta me chamar quando precisar de qualquer coisa.



Ele se retirou. Inquieto, Struan ficou olhando para a porta. O rosto de Jamie fora franco demais. Tentando recuperar o controle, ele voltou a se concentrar na carta:



Malcolm, meu pobre e querido filho. Só uma mensagem curta, escrita às pressas, enquanto Ronald Hoag se prepara para embarcar no navio de correspondência, cuja partida retardei, para que ele pudesse viajar e lhe oferecer os melhores cuidados. Fiquei transtornada ao saber que fora atacado por aqueles porcos. Jamie informa que esse tal de Dr. Babcott teve de fazer uma operação... por favor, escreva para mim, e despache por qualquer meio expresso disponível, e volte para cá o mais depressa possível, afim de ter o melhor tratamento. Envio meu amor e orações, assim como Emma, Rose e Duncan. P.S. Eu amo você.



Ele levantou os olhos.



— E agora?



— Diga-me a verdade, Malcolm. Como você está?



— Eu me sinto horrível e tenho medo de morrer.



Hoag sentou na cadeira de braços e uniu as pontas dos dedos, as mãos erguidas.



— A primeira coisa é compreensível, a segunda não é necessariamente acurada, embora seja muito fácil acreditar nisso... e também muito perigoso. Os chineses podem provocar a própria morte, ao pensarem que vão morrer, mesmo quando estão saudáveis... já vi acontecer.



— Mas eu não quero morrer. Tenho tudo por que viver. E não há palavras para expressar o quanto quero viver. Mas todas as noites, todos os dias, em algum momento, o pensamento me ocorre... me atinge como se fosse um golpe físico.



— Que medicamento está tomando?



— Só uma coisa... acho que é láudano... para me ajudar a dormir. A dor é terrível e não consigo me acomodar.



— Todas as noites?



— Isso mesmo. Ele quer que eu pare de tomar, diz que tenho... que devo parar.



— Já tentou?



— Já.



— E não conseguiu?



— Ainda não. Minha vontade parece ter me abandonado.



— É um dos problemas da vontade... por mais valiosa e bela que seja. — Ele sorriu. — Láudano foi o nome primeiro dado por Paracelso a essa panaceia. Conhece Paracelso?



— Não.



— Nem eu. — Hoag soltou uma risada. — Seja como for, transferimos o nome para essa tintura de ópio. É uma pena que todos os derivados sejam criadores de hábito. Mas você sabe disso.



— Sei, sim.



— Podemos livrá-lo. Não é problema.



— Claro que é um problema, e sei disso também, como ainda sei que não aprova o nosso comércio de ópio.



Hoag sorriu.



— Estou contente que você tenha feito uma declaração, não uma pergunta. Mas sei que você também não aprova, nenhum mercador na China aprova, mas estão todos acuados. Agora, Malcolm, vamos deixar de lado a economia e a política. Podemos conversar sobre a Srta. Richaud?



Struan sentiu o sangue afluir para o rosto.



— Quero que me escute com atenção, de uma vez por todas: não importa o que a mãe diga, já tenho idade suficiente para pensar por mim mesmo e posso fazer o que bem quiser. Entendido?



Hoag tornou a sorrir, afável.



— Sou seu médico, Malcolm, não sua mãe. E também sou seu amigo. Alguma vez lhe falhei ou a qualquer pessoa de sua família?



Com esforço visível, Struan conteve a raiva, mas não pôde fazer a mesma coisa com o coração disparado.



— Desculpe, mas eu... — Ele deu de ombros, desamparado. — Desculpe.



— Não precisa pedir desculpas. Não estou tentando interferir em sua vida particular. Sua saúde depende de muitos fatores, e parece que ela é um dos principais. Daí a minha pergunta, que tem razões médicas... não de família. O que me diz da Srta. Angelique Richaud?



Struan queria parecer calmo e firme, mas não foi capaz de controlar a frustração, e explodiu:



— Quero casar com ela e está me levando à loucura ter de ficar deitado aqui, Como um... deitado aqui na total impotência. Pelo amor de Deus, não posso nem ao menos sair da cama, não posso mijar... não posso fazer absolutamente nada, mal consigo beber ou comer ou fazer qualquer outra coisa, sem sentir uma dor terrível. Estou enlouquecendo, e por mais que tente, parece que nada melhora.



Ele continuou a se lamentar, até se sentir fraco. Hoag limitou-se a escutar. Struan finalmente parou, murmurando outro pedido de desculpas.



— Posso examiná-lo agora?



— Pode... claro.



Com extremo cuidado, Hoag examinou-o, encostou o ouvido no peito para escutar o coração, verificou a boca, a pulsação, espiou o ferimento, cheirou-o. Os dedos sondaram a barriga, procurando pelos órgãos por baixo, avaliando a extensão dos danos.



— Aqui dói... e aqui... fica melhor assim?



Cada pressão provocava um gemido de Malcolm. Hoag encerrou o exame depois de um longo momento. Struan rompeu o silêncio:



— E então?



— Babcott fez um bom trabalho com o que já teria matado, a esta altura, um homem normal. — As palavras de Hoag eram medidas, transbordando de confiança. — Agora, vamos fazer uma experiência.



Gentilmente, ele pegou as pernas de Struan, e ajudou-o a sentar na beira da cama. Depois, passou o braço de Malcolm por seus ombros e sustentando a maior parte do peso, com uma força surpreendente, ajudou-o a levantar.



— Cuidado!



Struan não podia se manter de pé sozinho, mas teve a impressão de que era capaz, e isso o encorajou. Depois de um momento, Hoag tornou a arriá-lo na cama. O coração de Struan batia descompassado da dor, mas ele se sentia bastante satisfeito.



— Obrigado.



O médico recostou-se na cadeira, enquanto recuperava a própria força.



— Vou deixá-lo agora, para arrumar minhas coisas. Gostaria que você descansasse. Voltarei a vê-lo depois de conversar com Babcott. É bem provável que venhamos visitá-lo juntos. Combinado?



— Claro. E... obrigado, Ronald.



À guisa de resposta, Hoag apertou o braço de Struan, antes de pegar seus pertences e se retirar.



Sozinho de novo, Struan deixou que as lágrimas felizes escorressem por seu rosto e as lágrimas o embalaram ao sono. Sentia-se descansado quando acordou, pela primeira vez revigorado, e permaneceu imóvel, regozijando-se pelo fato de ter-se levantado... com ajuda, é verdade, mas ficara de pé, era um começo, e agora contava com um aliado de verdade.



Do lugar em que se encontrava, um pouco virado para a esquerda, podia olhar pela janela, na direção do mar. Amava o mar e também o odiava, nunca se sentiu à vontade nele, temendo-o porque era incontrolável e imprevisível, como no dia ensolarado em que os gêmeos e o contramestre se distanciaram da praia num bote por uma centena de metros, uma onda súbita virara a embarcação, e uma correnteza os arrastara, todos bons nadadores, os gêmeos nadavam como os peixes, mas mesmo assim se afogaram, só o marujo se salvou. O choque deixara-o arrasado e quase matara seu pai. A mãe entrara num de seus comas ambulantes, dizendo a todo instante:



— É a vontade de Deus. Devemos continuar.



Não vou pensar em meus irmãos, nem em Dirk Struan, disse ele a si mesmo, contente por se encontrar em terra, são e salvo. Mas nosso passado está ligado ao mar, de uma forma inexorável, e nosso futuro também. É a nossa força suprema, nos clíperes e vapores... e na China.





O Japão é um pequeno mercado, interessante, mas pequeno, nunca poderá se comparar com a China. Podemos ganhar dinheiro aqui, sem dúvida — com armamentos e navios. A habilidade britânica com certeza proporcionará altos lucros. Direi a Jamie para aceitar a encomenda de Choshu. Vamos deixar que eles se matem, quanto mais depressa melhor. A hesitação de Sir William, esperando pela aprovação de Londres para a guerra, é uma estupidez. Se dependesse de mim, ordenaria a eles que entregassem os assassinos e pagassem a indenização imediatamente, ou amanhã haveria um estado de guerra entre nós, e o primeiro ato seria a destruição de Iedo. Nunca perdoarei os desgraçados!



O horizonte chamava. Muito em breve, terei de voltar a Hong Kong para assumir o comando. Daqui a uma semana ou por aí. Não há pressa. Disponho de tempo suficiente.



Que horas são agora?



Não havia necessidade de se virar para olhar o relógio. O ângulo do sol indicava que era mais ou menos meio-dia, e Malcolm pensou que normalmente pediria um belo e excelente rosbife, pastelão de Yorkshire, com molho de carne e batatas cozidas, uma ou duas tigelas de cubos de galinha assada e arroz misturado com legumes, e outros pratos chineses que Ah Tok prepararia, e ele adoraria... por mais que sua mãe, o irmão e as irmãs os desdenhassem como insossos, sem nada de nutritivos, talvez venenosos, e apropriados apenas para pagãos...



Um som de leve. Angelique se achava encolhida na poltrona, ofuscada por seu tamanho, o rosto molhado de lágrimas, e mais infeliz do que ele jamais a vira.



— Por Deus, o que aconteceu?



— Estou arruinada!



As lágrimas recomeçaram a escorrer.



— Mas do que está falando?



— Recebi isto pela correspondência!



Ela se levantou, entregou-lhe uma carta, tentou falar, não conseguiu. O movimento súbito de Struan para pegar a carta provocou-lhe uma dor intensa, e só com muito esforço é que pôde evitar um grito.



O papel era verde, como o envelope, a carta datada de 23 de setembro, Hong Kong, o cabeçalho da Guy Richaud, Richaud Frères, e escrita em francês, que Struan podia ler muito bem:







Querida Angelique: Às pressas. O negócio sobre o qual lhe escrevi antes não correu muito bem, meus sócios portugueses de Macau me enganaram, e perdi muito. Todo o meu capital atual desapareceu, e você pode ouvir mentiras espalhadas por inimigos, de que me encontro incapaz de obter novos acertos bancários, e por isso a companhia se encontra agora nas mãos dos credores. Não acredite neles, o futuro é promissor, não precisa ter medo, está tudo sob Controle. Esta carta segue pelo navio de correspondência de amanhã. Hoje, tenho uma passagem reservada no vapor americano Liberty, para Bangkok, onde me prometeram um novo financiamento, de fontes francesas. Escreverei de lá, e continuo sempre como seu devotado pai.



P.S. A esta altura, você já deve estar a par da triste mas esperada notícia sobre Culum Struan. Acabamos de ser informados sobre o vil ataque dos japoneses a Malcolm. Espero que ele não tenha ficado gravemente ferido. Por favor, transmita-lhe meus votos de felicidade, e minha esperança de que tenha uma rápida recuperação.







A mente de Struan virou um turbilhão.



— Por que está arruinada?



— Ele perdeu todo o meu dinheiro — choramingou Angelique. — É um ladrão; agora não tenho mais nada no mundo. Ele roubou tudo o que eu tinha... Oh, Malcolm, o que vou fazer?



— Angelique, Angelique, escute! — Ela parecia tão desamparada, tão melodramática, que Struan quase riu. — Pelo amor de Deus, escute! Não tem problema. Posso lhe dar qualquer dinheiro que qui...



— Não posso aceitar seu dinheiro! — balbuciou ela, entre os soluços. — Não é direito!



— Por que não? Casaremos em breve, não é mesmo?



O choro cessou.



— Nós... é mesmo?



— É, sim. Faremos o anúncio hoje.



— Mas meu pai é... — Angelique fungou, chorosa, como uma criança. — André me disse que tinha certeza de que nenhum negócio havia em Macau, ou em qualquer outro lugar, e nunca houve. Parece que o pai era um jogador e deve ter perdido tudo no jogo. Ele tinha prometido a Henri... Henri Seratard... que pararia de jogar e pagaria suas dívidas... Todos sabiam, menos eu. Oh, Malcolm, eu rne sinto tão horrível que poderia até morrer! O pai roubou meu dinheiro, depois de jurar que o guardaria em segurança!



Outro acesso de choro, ela saiu correndo, ajoelhou-se ao lado da cama, comprimindo o rosto contra a colcha. Com extrema ternura, Struan acariciou seus cabelos, sentindo-se forte, no comando da situação. A porta foi aberta nesse instante, e Ah Tok entrou.





— Saia! — berrou Struan. — Dew neh loh moh!



Ela se retirou no mesmo instante. Genuinamente assustada, Angelique se comprimiu ainda mais contra a colcha. Nunca testemunhara antes a ira de Malcolm, que continuou a acariciar seus cabelos.



— Não se preocupe, minha querida. Não se preocupe com seu pai. Verei o que posso fazer para ajudá-lo mais tarde, mas agora não deve se preocupar, pois cuidarei de você.



A voz era cada vez mais terna. Os soluços de Angelique foram se desvanecendo, um vasto peso saindo de seus ombros, agora que lhe contara a verdade, dera a notícia antes que ele a ouvisse de outra pessoa... e ele parecia não se importar!



André é um gênio, pensou ela, exausta de alívio. Jurou que assim seria a reação de Malcolm:



— Basta ser franca, Angelique. Conte a verdade a Malcolm, que não sabia que seu pai era um jogador, que só agora tomou conhecimento, e que ficou chocada, sem palavras, que seu pai roubou todo o seu dinheiro... é importante usar as palavras roubou e ladrão... diga a verdade, mostre a carta, e com a quantidade certa de lágrimas e ternura isso o ligará a você para sempre.



— Mas não posso mostrar a ele a carta do pai, André! — murmurara ela, angustiada. — Não ousaria... o pós-escrito é tão horrível...



— Sem a segunda página, o pós-escrito diz apenas minha esperança de que tenha uma rápida recuperação. Perfeito! A segunda página? Que segunda página? Pronto, está rasgada, nunca existiu.











Os dedos hábeis de André colaram no lugar o último fragmento da segunda página rasgada da carta.



— Tome aqui, Henri — disse ele, empurrando-a por cima da mesa. — Leia você mesmo.



Não levara muito tempo para reconstituir a página dos fragmentos jogados na cesta de papel com aparente indiferença.



Estavam na sala de Seratard, a porta trancada. A página dizia:







...e também continuo a acalentar a esperança de que você, como combinamos, possa providenciar o mais depressa possível o noivado e o casamento, por quaisquer meios necessários... Ele é o grande partido do ano, e vital para o nosso futuro, o seu em particular. A Struan resolverá os problemas da Richaud Frères em caráter permanente. Não importa que ele seja britânico, jovem demais, ou qualquer outra coisa; é agora o tai-pan da Struan, epode assegurar um futuro maravilhoso para nós dois. Seja adulta, Angelique, faça qualquer coisa necessária para pendê-lo a você, porque seu futuro esta por um fio.



— Não é tão terrível assim — comentou Seratard, inquieto — apenas o conselho de um pai em pânico, procurando por uma tábua de salvação. Struam? Sem dúvida um grande e maravilhoso partido para qualquer moça, e quem pode culpar um pai?



— Depende do pai. Esta página, se usada da maneira correta na hora oportuna é outra arma sobre Angelique e, com isso, sobre a Casa Nobre.



— Acha então que a pobre moça terá êxito?



— Devemos trabalhar para que isso aconteça. Agora que temos esta prova para usar, se houver necessidade, devemos ajudá-la por uma questão de honra. — Os lábios de André se contraíram numa linha fina e fria. — E não acho que seja uma pobre moça. Não foi ela quem preparou a armadilha para capturá-lo usando quaisquer meios necessários?



Seratard recostou-se na cadeira de couro vermelho. Sua sala era de mau gosto exceto por uns poucos óleos de pintores; franceses modernos, pouco conhecidos entre os quais Manet, que ele comprava mais barato, de vez em quando, através de um agente em Paris.



— O que ela está fazendo, a não ser reagir ao amor de um rapaz? — Ele empurrou o papel de volta. — Não gosto desses métodos, André. São repulsivos. Você encorajou a moça com um emaranhado de meias verdades, ao lhe dizer para mostrar apenas a metade da carta.





— Maquiavel escreveu: “É necessário para o Estado operar com mentiras e meias verdades, porque as pessoas são constituídas de mentiras e meias verdades. Até os príncipes.” E, com certeza, por pricípio todos os embaixadores e políticos. — André deu de ombros e dobrou a carta com cuidado. — Talvez não precisemos usar isto, mas é bom ter, porque representamos o Estado.



— E como usaríamos?



— O fato de que ela rasgou e...



— Mas não foi ela! — protestou Seratard, chocado.



— Claro que não — disse André, friamente.— Mas seria sua palavra contra a minha. Quem ganharia a disputa? O fato de que ela rasgou a segunda página, e só mostrou a primeira a Struan, seria o suficiente para condená-la aos olhos dele. Isso lhe daria um pretexto perfeito para anular qualquer promessa de casamento, já que foi enganado. A mãe de Struan? Se tivesse conhecimento dela, faria todos os tipos de concessões para se apoderar desta página, caso o filho insista em casar contra o seu conselho.



— Não gosto de chantagem.



André corou.



— Não gosto de muitos métodos que sou obrigado a usar para os nossos, e ressalto os nossos... propósitos. — Ele guardou a carta no bolso. — Mostrado á sociedade ou publicado, com os detalhes, este documento destruiria Angelique. Talvez apenas mostre a verdade: que ela não passa de uma aventureira, em conspiração com o pai, que é a menor das hipóteses um jogador, e em breve estará na bancarrota, como o tio. Ouanto a encorajá-lo, limito-me a dizer o que ela quer saber e ouvir. Para ajudá-la. O problema é dela, não meu... ou nosso.



Seratard suspirou.



— É muito triste que ela esteja em tamanha embrulhada.





— Tem razão, mas isso resulta em nosso proveito, não é mesmo? — Os lábios de André sorriam, mas não os olhos. — E no seu pessoalmente, não é mesmo, monsieur? Usada de maneira judiciosa, esta carta garantiria a presença de Angelique em sua cama, se o seu charme indubitável falhasse, o que duvido.



Seratard não sorriu.



— E você, André? O que pretende fazer com Hana, a Flor? André levantou os olhos abruptamente.



— A Flor morreu.



— Sei disso... e em circunstâncias muito estranhas.



— Não houve nada de estranho — disse André, os olhos frios como os de um réptil. — Ela cometeu suicídio.





— Foi encontrada com a garganta cortada... por sua faca. A mama-san diz que você passou a noite com ela, como sempre.



André tentava entender por que Seratard fazia aquela sondagem agora.



— É verdade, mas isso não é da sua conta.





— Receio que seja. O representante local do Bakufu apresentou um pedido formal de informações ontem.



— Diga a ele para se matar também. Hana, a Flor, era especial, sem dúvida, e era minha. Paguei o mais alto preço por ela, mas ainda assim continuava a fazer parte do mundo dos salgueiros.



— Como você disse, com toda razão, as pessoas são constituídas por mentiras e meias verdades. A queixa enuncia que você teve uma violenta briga com ela. Porque ela tomara um amante.



— Tivemos uma briga, é verdade, e admito que senti vontade de matá-la, mas não por esse motivo — murmurou André, meio engasgado. — A verdade... a verdade é que ela tinha alguns clientes. Três... na outra casa, mas isso foi antes de ela se tornar minha propriedade. Um deles... um deles a deixou com sífilis, que ela passou para mim.



Seratard ficou consternado.





Mon Dieu, sífilis?



— Isso mesmo.





Mon Dieu, tem certeza?



— Tenho.



André levantou-se, foi até o aparador, serviu-se de um conhaque, bebeu.



— Babcott confirmou há um mês. Sem qualquer possibilidade de equívoco. Só pode ter sido ela. Quando a interroguei a respeito, ela...



Ele a viu de novo, na casinha dentro dos muros da casa das Três Carpas no pequeno franzido no rosto oval perfeito. Ela tinha apenas dezessete anos e pouco mais de um metro e meio de altura.





Hai, gomen nasai, Furansu-san, mancha, como a sua, mas ano passado minha sukoshi, pequena, hai, pequena, Furansu-san, sukoshi, não ruim, sumiu — dissera ela, gentilmente, com seu sorriso meigo, na habitual mistura de japonês e fragmentos de inglês. — Hana dizer mama-san. Mama-san dizer ver médico, ele dizer não ruim. Não ruim porque eu só começava, ainda pequena. Doutor diz orar santuário e tomar remédio horrível. Mas tudo sumiu poucas semanas.



Uma pausa, e ela acrescentara, feliz:



— Tudo sumiu um ano atrás.



— Não sumiu coisa nenhuma!



— Por que raiva? Não preocupe. Oro no santuário xintoísta como doutor diz, dou dinheiro sacerdote, como... — Seu rosto se contraíra numa risada. —... como remédio gosto horrível. Poucas semanas tudo sumiu.



— Não sumiu. Nem vai sumir. Não tem cura. Ela o fitara de uma maneira estranha.





— Tudo sumiu, você vê eu, meu corpo, tudo, muitas vezes, neh? Claro tudo sumiu.



— Pelo amor de Deus, não sumiu!



Ela franzira o rosto outra vez, dera de ombros.



— Karma, neh?



André explodira. Ela ficara tão chocada que baixara a cabeça para o tatame e começara a suplicar perdão, desesperada.



— Não ruim, Furansu-san, sumiu, doutor diz, sumiu. Vai mesmo doutor, tudo some logo...





Além das paredes de shoji, André ouvira passos e sussurros.



— Você tem de procurar o médico inglês!



Seu coração trovejava nos ouvidos e ele tentava falar de forma coerente, sabendo que procurar um médico, qualquer médico, era inútil, e que embora às vezes se conseguisse deter os estragos, nem sempre, também era certo, tão inevitável quanto o sol nascer no dia seguinte, que os estragos um dia se manifestariam com uma violência total.



— Será que você não compreende? — gritara ele. — Não há cura!



Ela se limitara a fazer uma reverência, tremendo como um cachorrinho maltratado, e repetira, em tom monótono:



— Não ruim, Furansu-san, tudo sumiu...



Com esforço, André recuperou o controle e fitou Seratard.





— Quando a interroguei a respeito, ela disse que ficara curada, há cerca de um ano. E é claro que acreditava nisso, acreditava que tivera uma cura completa. Dei alguns gritos, perguntei por que não contara a Raiko-san, e ela murmurou alguma coisa a respeito, que não havia o que dizer, o médico garantira que não era nada, e sua mama-san teria contado a Raiko-san, se fosse importante.



— Mas isso é terrível, André! Babcott a examinou?



— Não.



Outro gole de conhaque, que não lhe proporcionou o prazer habitual, e ele acrescentou, num fluxo rápido, ansioso em finalmente contar tudo a alguém:



— Babcott me disse que a sífilis... disse que uma mulher que contraiu sífilis antes pode ficar sem qualquer marca, que nem sempre vai transmiti-la, não todas as vezes que deita com um homem, só Deus sabe por que, mas é inevitável que ela acabe passando a doença, se o homem continuar a deitar com ela, e depois que uma ferida aparecer, ele está perdido, mesmo que depois de um mês ou por aí a ferida ou feridas desapareçam, e ele pense que está seguro, mas não está!



Agora, a veia no meio da testa de André se tornara saltada, escura, pulsando com intensidade.



— Semanas ou meses depois, surge uma erupção, que é o segundo estágio. Pode ser forte ou fraca, dependendo só Deus sabe do quê, e às vezes é acompanhada por hepatite ou meningite, e persiste ou desaparece, só Deus sabe por quê. O último estágio, o estágio do horror, aparece a qualquer momento, de uma hora para outra, até meses depois, talvez trinta anos depois.





Seratard tirou um lenço do bolso, enxugou a testa, rezando para ser poupado, e pensando nas frequentes ocasiões em que visitara a Yoshiwara, sobre sua própria musume, que agora era o único a desfrutar, embora nunca pudesse ter a certeza de que ela não tinha outro amante. Como provar ou refutar, se houver conluio com a mama-san, já que elas só estão interessadas em explorá-lo?





— Você tinha o direito de matá-la — murmurou ele, sombrio. — E matar também a mama-san.



— Raiko não foi responsável. Eu lhe dissera que não queria nenhuma das mulheres em sua casa, nenhuma em qualquer lugar da Yoshiwara. Queria uma jovem, especial, uma virgem ou quase isso. Supliquei que me encontrasse uma flor, expliquei exatamente o que queria, e ela me atendeu. Hana-chan era tudo o que eu desejava, a perfeição. Vinha de uma das melhores casas de Iedo. Não pode imaginar como ela é linda... era...



André recordou como seu coração disparara na primeira vez em que Raiko a mostrara, conversando com outras moças, na sala ao lado.



— Aquela ali, Raiko, a de quimono azul claro.



— Aconselho-o a ficar com Fujiko ou Akiko, ou uma de minhas outras damas — dissera Raiko, que falava um bom inglês, quando queria. — Com tempo, eu lhe encontrarei outra. Veja a pequena Saiko. Dentro de um ou dois anos...



— Aquela, Raiko. É perfeita. Quem é ela?





— Seu nome é Hana, a Flor. Sua mama-san diz que a coisinha bonita nasceu perto de Quioto, foi comprada por sua casa quando tinha três ou quatro anos, a fim de ser treinada para gueixa. — Raiko sorrira. — Por sorte, ela não é gueixa... Se fosse gueixa, não estaria em oferta. Uma pena.



— Porque eu sou gai-jin.



— Porque gueixa é para entreter, não para se levar para a cama. Não sendo japonês, desculpe dizer, Furansu-san teria muita dificuldade para apreciá-la. As mestras de Hana foram pacientes, mas ela não foi capaz de desenvolver a habilidades de gueixa, e por isso foi treinada para a cama.



— Eu a quero, Raiko.





— Há cerca de um ano, ela alcançou a idade mínima para começar. Sua mama-san arrumava os melhores preços, mas só depois que Hana aprovava o cliente, é claro. Três clientes apenas a desfrutaram, sua mama-san garante que ela é uma excelente discípula, e que só ia para a cama com um deles duas vezes por semana. A única marca contra ela é o fato de ter nascido no ano do cavalo do fogo.



— E o que isso significa?



— Sabe que contamos o tempo em ciclos de doze anos, como os chineses cada ano com um nome de animal, dragão, serpente, galo, touro, cavalo e assim por diante. Mas cada ano também tem um dos cinco elementos, fogo, água, terra, ferro, madeira, que variam, ciclo por ciclo. As mulheres nascidas no ano do cavalo, com o signo do fogo, são consideradas... desafortunadas.



— Não acredito em superstições. Por favor, diga o preço.



— Ela é uma Flor na cama de preço inestimável.



— O preço, Raiko.





— Para a outra casa, dez koku, Furansu-san. Para esta casa, dois koku por ano, e o preço de sua casa, dentro dos meus muros, duas criadas, todas as roupas que ela quiser e um presente de despedida de dois koku, quando você não desejar mais seus serviços, quantia a ser depositada com o nosso banqueiro-mercador de arroz em Gyokoyama, a juros que serão seus, até o momento da despedida... tudo por escrito, assinado e registrado com o Bakufu.





A quantia era imensa, pelos padrões japoneses, extravagante, pelos europeus, considerando-se até mesmo a taxa de câmbio, que tanto favorecia os europeus. Por uma semana, ele barganhara, e só conseguira reduzir o preço em uns poucos sous. Mas todas as noites sonhava com Hana e, por isso, acabara concordando. Com o ritual devido, sete meses atrás, ela lhe fora apresentada formalmente. Aceitara-o formalmente. Os dois assinaram o contrato formalmente. Na noite seguinte, foram juntos para a cama e ela se mostrara tudo o que André imaginara. Risonha, feliz, vibrante, terna, amorosa.



— Ela foi um presente de Deus, Henri.





— Ou do demônio. A mama-san também.



— A culpa não foi sua. Um dia antes de eu receber Hana, Raiko me declarou, formalmente... o que também fazia parte do acordo de pagamento... que o passado era o passado, prometeu cuidar de Hana como sua filha e se certificar de que Hana nunca receberia outros homens, seria só minha, daquele dia em diante.



— E depois ela a matou?



André serviu-se de mais conhaque.



— Pedi a Hana para me dar os nomes dos três homens, um deles é o meu assassino, mas ela não podia... ou não queria dizer. Bati em seu rosto, a fim de arrancar os nomes, mas ela apenas gemeu, não chorou. Tive vontade de mata-la admito, mas a amava muito... e fui embora. Sentia-me como um cão raivoso, já eram três ou quatro horas da madrugada a esta altura, e fui andando pelo mar adentro. Talvez quisesse me afogar, não sei, não me lembro exatamente, mas a água fria me fez recuperar o controle. Quando retornei à casa, Raiko e as outras se encontravam em estado de choque, incoerentes. Eu deixara Hana prostrada ao sair e a encontrei numa poça de sangue, com minha faca na garganta.



— Quer dizer que ela cometeu suicídio?



— Foi o que Raiko disse.



— Mas você não acredita?



— Não sei em que acreditar — respondeu André, angustiado. — Sei apenas que tinha voltado para dizer que a amava, a sífilis era karma, não culpa sua, que me arrependia das coisas que dissera e fizera, que tudo voltaria a ser como antes... até o momento em que se tornasse patente, quando então nos mataríamos juntos...





Henri tentava pensar de maneira objetiva, seu cérebro também confuso. Nunca sequer ouvira falar da casa das Três Carpas até que os rumores sobre a morte da moça circulassem pela colônia. André sempre tivera um comportamento reservado, pensou ele, o que era um direito seu, isso não era da minha conta... até que o Bakufu tornara o caso oficial.



— Os três homens... Raiko sabe quem eram?



Atordoado, André balançou a cabeça.





— Não, não sabe, e a outra mama-san não quis lhe dizer.





— Quem é ela? Qual é o seu nome? Onde podemos encontrá-la? Vamos denunciá-la ao Bakufu, que lhe arrancará os nomes.





— Eles não se importariam; por que deveriam? A outra casa... era um ponto de encontro de revolucionários, a estalagem dos Quarenta e Sete Ronin... foi incendiada há cerca de uma semana, a mama-san teve a cabeça cortada e espetada na ponta de um chuço. Santa Mãe de Deus, Henri, o que vou fazer? Hana está morta e eu continuo vivo...




16









No início daquela tarde, o Dr. Hoag estava no cúter, seguindo para o cais da legação, em Kanagawa. Babcott mandara o aviso de que não podia se ausentar de Kanagawa, já que tinha de trabalhar na clínica ali, mas voltaria o mais depressa possível... lamento, mas não poderá ser antes de tarde da noite, mais provavelmente não antes de amanhã de manhã. Será bem-vindo se quiser vir se encontrar comigo aqui, mas esteja preparado para passar a noite, já que o tempo pode mudar...



Hoag encontrou no cais, à sua espera, um granadeiro e Lim, que usava um casaco branco, calça preta larga, sandálias e um pequeno solidéu. Assim que ele desembarcou, Hoag fez uma indolente e simbólica reverência.



— Ei, amo, Lim, garoto número um.



— Vamos esquecer essa conversa de cule em pidgin, Lim. — disse Hoag, num cantonês passável, fazendo com que os olhos do chinês se contraíssem. — Sou o Doutor em Medicina Sábio Duminado.



Esse era o nome chinês de Hoag — o significado dos dois caracteres mais próximos do som cantonês de “ho” e “ag”, selecionado entre dezenas de possibilidades por Gordon Chen, o compradore da Struan, um de seus pacientes.





Lim fitou-o fixamente, fingindo não entender, a maneira usual e mais rápida de fazer um demônio estrangeiro perder a compostura, um demônio que tivera a impertinência de aprender umas poucas palavras da língua civilizada. Aiê, pensou ele, quem é esse fornicador astuto, esse pútrido demônio vermelho comedor de mãe, com o pescoço de touro, esse macaco de cara de sapo, que tem a desfaçatez de falar a nossa língua com uma superioridade tão repulsiva...





Aiê — murmurou Hoag —, também tenho muitas e muitas palavras sórdidas para descrever a mãe de um fornicador e suas partes putrefatas, se um homem de uma aldeia de mijo de cachorro, monte de estrume, tenta me esnobar... fingindo que não me entende.





— Doutor em Medicina Sábio Iluminado? Aiê, é um bom nome! — Lim soltou uma risadinha. — Há muitos anos que não ouço um demônio estrangeiro falar tão bem.



— E em breve ouvirá mais, se eu for chamado outra vez de demônio estrangeiro. Foi Chen da Casa Nobre quem escolheu meu nome.





— Chen da Casa Nobre? — Lim ficou espantado. — Ilustre Chen, que tem mais sacos de ouro do que um boi tem pêlos? Aiê, que privilégio!



— Concordo — declarou Hoag, para logo acrescentar uma afirmação que não estava longe da verdade:— E ele também me disse que se eu tivesse problemas com qualquer pessoa do reino médio... quer fosse alta ou baixa... ou que não prestasse de imediato os serviços que um amigo seu deveria esperar, que lhe mencionasse o nome do vil fornicador de mãe ao voltar.





Oh ko, Doutor em Medicina Sábio Iluminado, é de fato uma honra tê-lo em nossa humilde casa.





O Dr. Hoag sentiu que alcançara a grandeza, abençoando seus mestres, em particular os pacientes agradecidos, que haviam lhe ensinado as palavras realmente importantes, e como lidar com certas pessoas e situações no reino médio. O dia era quente e agradável, a aparência da pequena cidade atraente, com templos que podia divisar acima dos telhados, pescadores em atividade nas águas próximas da terra, camponeses por toda parte nos arrozais, pessoas circulando de um lado para outro e o inevitável movimento intenso na Tokaidô, mais além. Ao chegarem à legação, com o apoio exageradamente atencioso de Lim, Hoag já tinha uma boa noção da situação em Kanagawa, o número de pacientes de Babcott hoje, e o que podia esperar.





George Babcott estava na sala de cirurgia, ajudado na operação por um acólito japonês, um aprendiz designado pelo Bakufu para estudar a medicina ocidental, a ante-sala apinhada de aldeões, homens, mulheres e crianças. A operação era complicada, uma amputação de pé.





— O pobre coitado é um pescador, ficou com a perna presa entre o barco e o cais, o que nunca deveria ter acontecido, acho que tomou saquê demais. Assim que eu acabar aqui, poderemos conversar sobre Malcolm. Já o viu?



— Já, sim. Não tem pressa. É um prazer tornar a vê-lo, George. Posso ajudar em alguma coisa?



— Eu agradeceria. Está tudo bem aqui, mas não poderia peneirar a multidão lá fora? Os que são casos urgentes, os que podem esperar. Trate de qualquer um que quiser. Há outra “sala de cirurgia” ao lado, embora seja pouco mais que uma enfermaria. Mura, passe o serrote.



Ele fez o pedido ao assistente, num inglês lento e incisivo, recebeu o serrote e começou a usá-lo.



— Sempre que tenho uma cirurgia aqui, o movimento parece aumentar. Ali naquele armário vai encontrar os placebos comuns, iodo, etc, os medicamentos usuais, analgésicos, xaropes amargos para as doces velhinhas e xaropes doces para as tosses violentas.



Hoag deixou-o e foi examinar os homens, mulheres e crianças à espera, impressionado com sua disciplina e paciência, as mesuras e a ausência de barulho. Logo constatou que nenhum tinha varíola, lepra, catapora, tifo, cólera ou qualquer das outras doenças infecciosas e contagiosas que eram endêmicas na maior parte da Ásia. Mais do que um pouco aliviado, ele começou a interrogá-los individualmente e deparou com a mais profunda desconfiança. Por sorte, havia ali um ido escritor de cartas e adivinho itinerante que era cantonês, Cheng-sin, e que também falava um pouco de japonês. Com a ajuda dele — e depois de ser apresentado como o Mestre do Gigante Curandeiro, e com a promessa de um medicamento novo e muito bom para aliviar sua tosse seca — o Dr. Hoag começou a receber os pacientes na segunda sala de cirurgia.



Alguns tinham apenas problemas menores. Uns poucos eram casos mais sérios. Febres, disenteria e assim por diante. Ele conseguiu diagnosticar alguma doenças, outras não foi possível. Membros fraturados, ferimentos de espadas e facas, úlceras. Uma jovem em adiantado estado de gravidez sentia dores intensas.



A experiência do Dr. Hoag indicou que o parto, o quarto da mulher, seria difícil, e que a maior parte do problema derivava de ter casado muito cedo, trabalhar nos campos por tempo demais e carregar um excesso de peso. Ele deu à moça um vidro de extrato de ópio.



— Diga a ela que se a dor for muito forte, quando chegar o momento, para tomar uma colher.



— Uma colher? De que tamanho, Honorável Sábio Iluminado?



— Uma colher do tamanho normal, Cheng-sin. A mulher fez uma reverência.





Domo arigato gozaimashita — murmurou ela, ao se retirar, patética em seus agradecimentos, as duas mãos tentando sustentar o peso da barriga.





Crianças com febre, resfriado e lombrigas, ferimentos diversos, mas nada tão grave quanto ele imaginara. Nenhum caso de malária. Os dentes bons e fortes, de um modo geral, olhos claros, nada de piolhos... todos os pacientes surpreendentemente limpos e saudáveis, em comparação com aldeões similares na China. Nenhum viciado em ópio. Depois de uma hora, Hoag se absorvera por completo no trabalho, bastante satisfeito. Acabara de pôr no lugar um braço quebrado quando a porta foi aberta, e uma moça atraente e bem vestida entrou, hesitante, fez uma reverência. Seu quimono de seda era estampado em azul, a obi verde, o cabelo preso por travessas. Sombrinha azul.



Hoag notou que os olhos de Cheng-sin se estreitavam. Ela respondeu às perguntas do chinês, falando de uma forma ainda mais persuasiva, a voz suave, embora fosse evidente que estava bastante nervosa.



— Doutor em Medicina Sábio Iluminado. — disse Cheng-sin, a fala pontuada pela tosse seca permanente que Hoag já diagnosticara como tuberculose terminal —, esta dama diz que seu irmão precisa de ajuda importante, quase morte. Suplica que a acompanhe... sua casa fica perto.



— Diga a ela para trazê-lo até aqui.



— Infelizmente, tem medo de movê-lo.



— O que há com ele?



Depois de mais perguntas e respostas, que para Hoag pareciam mais uma barganha do que qualquer outra coisa, Cheng-sin disse:



— A casa fica uma ou duas ruas lá fora. Seu irmão está... — Ele tossiu, enquanto procurava pela palavra. — Dorme como morto, mas vivo, com delírio e febre.



Cheng-sin fez uma pausa, e sua voz se tornou ainda mais insinuante quando acrescentou:



— Ela tem medo de mexer no irmão, Honorável Doutor em Medicina Sábio Iluminado. Seu irmão samurai, ela diz que pessoas muito importantes muito felizes se ajudasse seu irmão. Acho que ela fala verdade.





Pelos jornais de Hong Kong, Hoag tinha conhecimento dos samurais como a classe dominante absoluta no Japão e sabia que qualquer coisa que conquistasse a confiança deles, e com isso sua cooperação, ajudaria a influência britânica. Ele estudou a moça, que no mesmo instante baixou os olhos. Seu nervosismo aumentou. Parecia ter quinze ou dezesseis anos, e suas feições a tornavam bem diferente dos aldeões, a pele adorável. Se o irmão é samurai, então ela também é, pensou Hoag, intrigado.



— Como ela se chama?



— Uki Ichikawa. Por favor, tenha pressa.



— Seu irmão é um samurai importante?



— É, sim — garantiu Cheng-sin. — Eu vou junto, não tenha medo.



Hoag riu.



— Medo? Eu? De jeito nenhum! Espere aqui.



Ele foi para a outra sala de cirurgia, abriu a porta sem fazer barulho. Babcott se concentrava em extrair um dente com abscesso, o joelho no peito do rapaz, a mãe transtornada retorcendo as mãos, falando sem parar. Hoag decidiu não incomodá-lo.



Nos portões, o sargento da guarda deteve-os, com toda polidez, e perguntou aonde Hoag ia.



— Mandarei dois dos meus homens acompanhá-lo. É melhor ter segurança em excesso do que se arrepender depois.



A moça ainda tentou dissuadi-los de levar os soldados, mas o sargento se mostrou intransigente. Ela acabou concordando e conduziu-os pela rua, cada vez mais nervosa, entraram por uma viela, depois outra, e mais outra. Os aldeões por que passavam no caminho desviavam os olhos e se afastavam apressados. Hoag levava sua maleta de médico. Por cima dos telhados, ainda podia avistar o templo, e sentiu-se seguro, contente pela companhia dos soldados, sabendo que seria uma terneridade sair sem eles. Cheng-sin seguia a seu lado, um cajado alto na mão.



Essa moça não é o que finge ser, pensou Hoag, um tanto excitado pela aventura.



Entraram em outra viela. A moça parou diante de um portão em uma cerca alta e bateu. Uma grade pequena foi aberta, depois o portão. Quando o corpulento criado viu os soldados, fez menção de fechar de novo, mas a moça lhe ordenou autoritária, que desistisse.





O jardim era pequeno, bem cuidado, mas não extravagante. Nos degraus para a varanda de uma pequena casa de shoji, ela tirou os sapatos de madeira e pediu-lhes que fizessem a mesma coisa. Era difícil para Hoag, pois usava botas de cano alto. A moça mandou que o criado o ajudasse e ele obedeceu no mesmo instante.



— É melhor vocês dois ficarem de guarda aqui — disse Hoag aos soldados embaraçado pelos buracos em suas meias.



— Certo, senhor. — Um dos soldados verificou seu fuzil. — Vou dar uma olhada nos fundos. Se houver algum problema, basta gritar.





A moça puxou a porta de shoji da casa. Ori Toyama, o shishi do ataque na Tokaidô, estava deitado sobre futons, o lençol encharcado de suor, abanado por uma criada. Ela arregalou os olhos ao deparar com Hoag, e não o Honorável Curandeiro Gigante da Medicina, como esperava, e recuou quando ele entrou.





Ori se encontrava inconsciente, em coma... suas espadas estavam numa prateleira baixa próxima, um arranjo de flores no takoma. Hoag agachou-se ao seu lado. O rapaz tinha a testa muito quente, o rosto afogueado, com uma febre perigosamente alta. A causa logo ficou evidente, quando Hoag removeu a bandagem que cobria o ombro e a parte superior do braço.



— Oh, Deus! — murmurou ele, ao constatar a extensão da inflamação inchada e purulenta, o cheiro revelador e a carne preta do tecido morto, gangrenado, em torno do ferimento a bala.



— Quando ele levou o tiro?



— Ela não sabe direito. Duas ou três semanas.



Mais uma vez, Hoag examinou o ferimento. Depois, alheio a todos os olhos que o focalizavam, foi sentar-se na varanda, o olhar perdido no espaço.



Tudo o que preciso agora é de meu excelente hospital em Hong Kong, com os melhores equipamentos de cirurgia, e minhas maravilhosas enfermeiras de Nightingale, junto com muita sorte, para salvar esse pobre rapaz. Malditas armas de fogo, malditas guerras, malditos políticos...



Pelo amor de Deus, venho tentando curar ferimentos de bala durante toda a minha vida profissional, e fracassando na maioria das vezes — seis anos com a Companhia das índias Orientais, na sangrenta Bengala, quinze anos em Hong Kong, e anos na guerra do ópio, um ano como voluntário na Criméia, o pior de tudo. Essas miseráveis armas de fogo! Por Deus, quanto desperdício!



Depois de descarregar sua raiva, ele acendeu um pequeno charuto, tragou, apagou o fósforo, jogou-o ao chão. No mesmo instante, o chocado criado se adiantou apressado e recolheu o objeto ofensivo.



— Desculpe — murmurou Hoag, sem ter notado antes a limpeza impecável do caminho e da área ao redor.



Ele aspirou fundo a fumaça e depois removeu tudo de sua mente, exceto o rapaz. Acabou tomando uma decisão. Ia jogar o charuto ao chão, mas entregou-o ao criado, que fez uma mesura e se afastou para enterrá-lo.



— Cheng-sin, diga a ela que sinto muito, mas que eu opere ou não, acho que seu irmão vai morrer. Sinto muito.



— Ela diz: “Se morrer é karma. Se não ajudar, ele morre hoje, amanhã. Por favor, tente. Se ele morrer, karma.” Ela pede ajuda. — Uma pausa, e Cheng-sin acrescentou, suavemente: — Doutor em Medicina Sábio Iluminado, este jovem importante. Importante tentar, hem?



Hoag olhou para a moça. Ela sustentou seu olhar e murmurou:





Dozo, Hoh Geh-sama. Por favor.



— Está bem, Uki. Cheng-sin, diga a ela outra vez que não posso prometer coisa alguma, mas vou tentar. Precisarei de sabão, muita água quente em tigelas, lençóis limpos, panos limpos rasgados em tiras, muito sossego e alguém com estômago forte para me ajudar.



A moça apontou para si mesma.





Soji shimasu. Eu ajudarei. Hoag franziu o rosto.



— Avise a ela que será bastante desagradável, muito sangue, muito mau cheiro, uma coisa horrível.



Ele a viu escutar o chinês com uma atenção total e depois declarar, com evidente orgulho:





Gomen nasai, Hoh Geh-san, wakamarisen. Watashi samurai desu.



— Ela diz: “Por favor, desculpe, eu compreendo. Sou samurai.”





— Não sei o que isso significa para você, minha jovem, e não imaginava que mulheres podiam ser samurais, mas vamos começar.





Hoag não demorou a descobrir que uma das características dos samurais era a coragem. A moça não fraquejou em nenhum momento, durante a operação de limpeza, o corte do tecido infeccionado, a liberação do pus fétido, o sangue pulsando de uma veia parcialmente cortada, até que ele conseguiu estancar a hemorragia, usando várias mechas. As mangas enormes do quimono de criada que ela vestira estavam enroladas e amarradas para não atrapalharem e, assim como o lenço com que cobrira os cabelos, logo ficaram sujas e malcheirosas.



Hoag trabalhou durante uma hora, murmurando de vez em quando, os ouvidos fechados, as narinas fechadas, numa concentração absoluta, repetindo uma operação que já realizara mil vezes. Cortar, costurar, limpar, enfaixar. E depois ele terminou.



Sem pressa, esticou os músculos com cãibras das costas, lavou as mãos e tirou o lençol agora ensangüentado que usara como avental. Ori se encontrava na beira da varanda, numa mesa improvisada, e Hoag de pé no jardim.



— Não dá para trabalhar ajoelhado, Uki — explicara ele.



Tudo o que ele pedira, a moça fizera sem a menor hesitação. Não houvera necessidade de anestesiar o homem que ela dissera se chamar Hiro Ichikawa, pois seu coma era profundo. Uma ou outra vez, Ori gritara, mas não de dor, apenas porque algum demônio o atormentara em seu pesadelo. E se debatera, mas sem força.



Ori deixou escapar um suspiro profundo. Preocupado, Hoag verificou sua pulsação. Era imperceptível, assim como a respiração.



— Não importa — murmurou Hoag. — Pelo menos ele ainda tem uma pulsação.





Gomen nasai, Hoh Geh-san — disse a voz suave da moça —, anata kangaemasu, hai, iyé?



— Ela diz: “Desculpe, Honorável Sábio Iluminado, acha sim ou não?” Cheng-sin tossiu. Passara todo o tempo longe da varanda, de costas para eles.



Hoag deu de ombros, observando-a, especulando a seu respeito, de onde vinha tanta força, onde ela morava, o que aconteceria agora. Uki estava muito pálida, o rosto abalado, mas ainda dominada por uma vontade de ferro. Os olhos do médico contraíram-se num sorriso.



— Não sei. Depende de Deus. Uki, seu número um. Samurai.



— Domo... domo arigato gozaimashita. Obrigada.



Ela se inclinou para o tatame. Seu verdadeiro nome era Sumomo Anato, a prometida de Hiraga e irmã de Shorin, não de Ori.



— Ela pergunta o que deve fazer agora.



— Por seu irmão, nada no momento. Diga à criada para pôr toalhas frias na testa dele e manter as bandagens encharcadas com água limpa, até a febre baixar. Se a... depois que a febre baixar, e espero que isso aconteça antes do amanhecer, o rapaz viverá. Talvez.



E quais são as chances, essa era a pergunta seguinte habitual. Só que não aconteceu desta vez.



— Tenho de ir agora. Diga a ela para mandar alguém me buscar amanhã de manhã...



Se ele ainda estiver vivo, pensou Hoag, mas preferiu não dizê-lo. Enquanto Cheng-sin traduzia, Hoag começou a lavar seus instrumentos. A moça chamou o criado, murmurou-lhe algumas palavras.





Hai — disse o homem e se afastou apressado.



— Doutor em Medicina Sábio Iluminado, antes de partir, dama diz que vai querer um banho. Sim?



O Dr. Hoag já ia dizer que não, mas descobriu-se a acenar com a cabeça em aceitação. E sentiu-se contente por isso.











Ao crepúsculo, Babcott sentava-se na varanda da legação, saboreando um uísque. exausto, mas satisfeito com seu trabalho naquele dia. Havia um agradável cheiro de maresia na brisa que soprava pelo jardim. No momento em que seus olhos desviaram-se, involuntariamente, para os arbustos em que o assassino vestido de preto fora surpreendido e morto, três semanas antes, o sino do templo começou a repicar, e o canto distante dos monges ressoou por toda parte:



— Ommm mahnee padmee hummmmm...



Babcott virou a cabeça, de uma forma abrupta, quando Hoag se aproximou.



— Pelo bom Deus!





Hoag vestia um yukata estampado, com faixa na cintura, sapatos-meias nos pés e tamancos japoneses. Tinha os cabelos e a barba lavados e escovados. Carregava debaixo do braço um barril de saquê envolto por palha e exibia um sorriso radiante.



— Boa noite, George!



— Parece muito satisfeito consigo mesmo. Onde esteve?



— A melhor parte foi o banho.



Hoag pôs o barril num aparador e serviu-se de uma dose de uísque puro. — Por Deus, o melhor banho que já tive! Nem posso acreditar o quanto me sinto bem até agora!



— Como era ela? — perguntou Babcott, secamente.





— Não houve sexo, meu caro, apenas fui bastante esfregado, mergulhado em água quase fervendo, apertado e massageado, e depois me deram este traje para vestir. Enquanto isso, todas as minhas roupas foram lavadas e passadas, limparam as botas, trocaram as meias. Maravilhoso! Ela me deu o saquê, e isto...



Hoag tirou da manga, e mostrou a Babcott, duas moedas de formato oval e um pergaminho coberto de caracteres.





— Por Deus, foi muito bem pago! Essas moedas são oban de ouro... e dão para mantê-lo com champanhe pelo menos por uma semana! O sargento me disse que você foi chamado para uma visita domiciliar.



Ambos riram e depois Babcott indagou:





— Era um daimio?



— Acho que não. Era um jovem, um samurai. Não creio que o tenha ajudado muito. Pode ler o pergaminho?



— Não, mas Lim pode. Lim!



— Pois não, amo?



— O que diz o papel?



Lim pegou o pergaminho. Seus olhos se arregalaram, ele releu com cuidado, antes de dizer a Hoag, em cantonês:





— Diz aqui: “Doutor em Medicina Sábio Iluminado prestou um grande serviço. Em nome dos shishi de Satsuma, dêem-lhe toda ajuda que ele precisar.” Lim apontou para a assinatura, com um dedo trêmulo. — Desculpe, lorde, mas nâo consigo ler o nome.



— Por que está tão assustado? — perguntou Hoag, também em cantonês.



Lim respondeu com evidente apreensão:





— Os shishi são rebeldes, bandidos caçados pelo Bakufu. São maus, lorde, apesar de samurais.



Impaciente, Babcott interveio:



O que diz o documento, Ronald?



Hoag relatou o que o chinês lhe dissera.



— Um bandido? O que aconteceu?



Sedento, Hoag serviu-se de mais uísque e começou a descrever em detalhes a mulher, o rapaz e o ferimento, como cortara o tecido morto.



— ...parece que o pobre coitado foi baleado há duas ou três semanas...



— Deus Todo-Poderoso!



Babcott levantou-se de um pulo, ao constatar que tudo se ajustava, surpreendendo Hoag, que derramou o uísque.



— Ficou maluco? — resmungou Hoag.



— Pode encontrar o caminho de volta à casa?



— Ahn... acho que sim, mas...



— Vamos até lá, depressa! Babcott saiu da sala, gritando:



— Sargento da guarda!



Desceram por uma viela, Hoag na frente, ainda de yukata, mas agora calçando as botas, Babcott logo atrás, o sargento e dez soldados em seguida, todos armados. Os poucos pedestres, alguns carregando lanternas, tratavam de sair da frente. Havia uma lua cheia lá em cima.



Ainda mais depressa agora. Uma curva errada. Hoag praguejou, voltou, orientou-se, encontrou a entrada meio oculta da viela correta. E seguiram em frente. Outra viela. Ele parou, apontou. O portão, vinte metros adiante.



No mesmo instante, o sargento e os soldados passaram por ele. Dois ficaram de costas contra o muro, montando guarda, quatro arremeteram de ombro contra o portão, arrancando-o das dobradiças, e passaram pela abertura, Hoag e Babcott em seu encalço... ambos empunhando rifles emprestados com a maior facilidade, peritos em seu uso, uma habilidade comum e uma necessidade para todos os civis europeus na Ásia.



Atravessaram o jardim. Subiram os degraus. O sargento abriu aporta de shoji. O aposento estava vazio. Sem a menor hesitação, o sargento passou para o cômodo seguinte, e o outro. Nenhum sinal de qualquer pessoa nos cinco cômodos interligados, na cozinha ou na privada externa de madeira. Todos saíram para o jardim.



— Espalhem-se! — ordenou o sargento. — Jones e Berk, sigam por aquele lado, vocês dois por ali, vocês dois pelo outro lado, e vocês dois ficam de guarda aqui; e pelo amor de Deus, mantenham os olhos bem abertos!



Os soldados aprofundaram-se pelo jardim, em duplas, um protegendo o outro. a lição do primeiro assassino devidamente aprendida. Procuraram por todos os cantos. Nada. O sargento suava quando voltou.



— Não vimos nada, senhor. Nem mesmo um sussurro, absolutamente nada. Tem certeza de que foi aqui mesmo, senhor?



Hoag indicou uma mancha escura na varanda.



— Foi ali que operei.



Babcott praguejou, olhou ao redor. Aquela casa era cercada por outras, e apenas os telhados apareciam por cima dos muros e nenhuma janela dava para aquele lado. Não havia nenhum lugar para se esconder.



— Eles devem ter partido no momento em que você foi embora.





Hoag removeu o suor da testa, secretamente contente pelo fato de a moça ter escapado. Depois de sair para o banho, não tornara a vê-la, um fato que lamentara. A criada lhe entregara o dinheiro e o pergaminho, ambos embrulhados de maneira meticulosa, além do barril de saquê, e lhe dissera que sua ama enviaria um guia para buscá-lo na manhã seguinte e transmitia seus agradecimentos.



Sobre o irmão, Hoag se sentia agora ambivalente. O rapaz era apenas um paciente, ele era médico, e queria ter êxito em seu trabalho.



— Nunca me ocorreu que o rapaz pudesse ser um dos assassinos. É verdade que não faria qualquer diferença, não para a operação. E pelo menos agora sabemos seu nome.





— Mil oban contra um botão quebrado como era falso. Nem sequer sabemos se o rapaz era mesmo irmão dela. Se ele era um shishi, como diz o pergaminho, só pode ser falso. Além do mais, a impostura é um antigo costume japonês. — Babcott suspirou. — Também não tenho certeza se era o demônio da Tokaidô. Apenas um pressentimento. Quais são as chances dele?



— A saída daqui não ajudou em nada.



Hoag pensou por um momento, um homem atarracado, parecendo um sapo, em contraste com a enorme altura de Babcott, embora nenhum dos dois se desse conta da diferença.



— Tornei a examiná-lo pouco antes de ir embora. A pulsação era fraca, mas firme. Creio que removi a maior parte do tecido gangrenado, mas... — Ele deu de ombros. — Sabe como são essas coisas... “Você entra com seu dinheiro e corre os riscos.” Eu não apostaria muito na sua possibilidade de sobreviver. Mas, por outro lado, quem pode saber, não é mesmo? E agora me conte sobre o ataque. Quero saber todos os detalhes.



Durante a volta, Babcott relatou tudo o que acontecera. E falou sobre Malcolm Struan.



— Ele me preocupa, mas Angelique é a melhor enfermeira que poderia ter.



— Jamie disse a mesma coisa. Concordo que não há nada como uma linda jovem à cabeceira de um doente. Malcolm perdeu muito peso... e ânimo... mas é jovem e sempre foi o mais forte da família, depois da mãe. Deve ficar bom, desde que os pontos resistam. Tenho absoluta confiança em seu trabalho, George, embora seja uma lenta recuperação para o pobre coitado. Ele está mesmo apaixonado pela moça, não é?



— É, sim, e a recíproca é verdadeira. Um sujeito de sorte. Caminharam em silêncio por algum tempo, rompido por Hoag, com evidente hesitação:



— Presumo que você já sabe que a mãe se opõe terminantemente a qualquer forma de ligação com a moça.



— Já tinha ouvido falar. Isso cria um problema.



— Acha então que as intenções de Malcolm são sérias?



— Mais do que sérias. Ela é uma moça extraordinária.



— Você a conhece?



— Angelique? Não muito bem, não como paciente, embora já a tenha observado sob uma terrível pressão. E você?



Hoag sacudiu a cabeça.



— Só a encontrei em festas, nas corridas, socialmente. Desde que ela chegou há três ou quatro meses, foi o centro das atenções nos bailes, com toda razão Nunca como paciente, pois existe agora um médico francês em Hong Kong imagine só! Mas concordo que ela é deslumbrante. Não necessariamente a esposa ideal para Malcolm, se é essa a sua intenção.



— Porque ela não é inglesa? Nem rica?



— As duas coisas, e mais ainda. Sinto muito, mas não consigo confiar nos franceses, uma raça ruim... é da natureza deles. O pai de Angelique é um perfeito exemplo, encantador, galante na superfície, mas um canalha logo abaixo, e até o fundo. Lamento, mas eu não escolheria a filha de um homem assim para casar com meu filho.



Babcott se perguntou se Hoag sabia que ele estava a par do escândalo: enquanto trabalhava na Companhia das índias Orientais, em Bengala, há mais de vinte e cinco anos, o jovem Dr. Hoag casara com uma indiana, contra todas as convenções e os conselhos de seus superiores, e por isso fora dispensado, enviado de volta à Inglaterra em desgraça. Tiveram uma filha e um filho, e depois ela morrera, o frio, a umidade e o nevoeiro de Londres quase uma sentença de morte para alguém de herança indiana.



As pessoas são muito estranhas, refletiu Babcott. Aqui está um bravo e íntegro inglês, um excelente médico, com filhos que são meio indianos — e, por isso, não aceitáveis socialmente na Inglaterra —, queixando-se da herança de Angelique. Quanta estupidez... e é uma estupidez ainda maior se esconder da verdade.



É verdade, mas você também não se esconde da verdade? Tem vinte e oito anos, ainda lhe sobra bastante tempo para casar, mas conseguirá algum dia encontrar uma mulher mais excitante do que Angelique, em qualquer lugar, ainda mais na Ásia, onde passará o resto de sua vida profissional?



Não, não encontrarei, tenho certeza. Sorte de Struan, que provavelmente casará com ela. E eu o apoiarei, sem a menor hesitação.





— Talvez a Sra. Struan esteja apenas sendo protetora, como qualquer mãe — comentou ele, sabendo como era importante a influência de Hoag sobre os Struans —, e apenas se opõe a Malcolm se amarrar muito cedo. O que é compreensível. Afinal, ele é o tai-pan agora e isso vai consumir todas as suas energias. Mas não me entenda errado, Ronald. Acho que Angelique é uma moça extraordinária, corajosa, a melhor companheira que um homem poderia desejar... e para fazer um bom trabalho, Malcolm vai precisar de todo apoio que puder obter.



Hoag percebeu a paixão por trás, registrou a informação e deixou o assunto por aí, sua mente subitamente de volta a Londres, onde a irmã e o marido criavam sua filha e seu filho, como sempre odiando a si mesmo por ter deixado a índia, submetendo-se às convenções e assim matando-a, Arjumand, a adorável.



Eu devia estar louco ao levar minha amada para aqueles invernos insuportáveis, despedido, quebrado, sem emprego, tendo de começar tudo de novo. Oh, Deus, deveria ter ficado, lutado contra a Companhia; minha competência como médico acabaria obrigando-os a me aceitarem de volta, o que nos salvaria...



As duas sentinelas deixadas no prédio bateram continência quando eles entraram. O jantar fora posto para dois.



— Scotch ou champanhe? — perguntou Babcott, para gritar em seguida: —



Lun!



— Champanhe. Quer que eu abra?



— Pode deixar comigo.



Babcott abriu a champanhe, que esperava num balde de gelo de prata georgiano.



— Saúde! LUN!



— E felicidade! Retiniram os copos.





— Perfeita! — exclamou Hoag. — Como é seu chef?



— De razoável para horrível, mas a qualidade de nossos frutos do mar é excelente, camarões, ostras, e dezenas de peixes diferentes. Onde será que Lun se meteu? — Babcott suspirou. — Aquele desgraçado precisa de uma surra. Grite com ele, está bem?



Mas a copa, onde o mordomo costumava ficar, estava vazia. Lun também não se encontrava na cozinha. Acabaram por encontrá-lo no jardim, ao lado de um caminho. Fora decapitado, a cabeça jogada para o lado. Em seu lugar, havia a cabeça de um macaco.













— Não, senhora — murmurou a mama-san, apavorada, — não pode deixar Ori-san aqui amanhã. Tem de partir ao amanhecer. Sumomo declarou:



— Sinto muito, mas Ori-san ficará até...





— Também sinto muito. Desde o ataque ao ministro-chefe Anjo, a caçada aos shishi é intensa, as recompensas por informações vão até o céu, com a pena de morte... para qualquer pessoa numa casa que os abrigue.



— Essa ordem é para Iedo, não prevalece aqui em Kanagawa — insistiu Sumomo.





— Sinto muito, mas alguém falou — disse a mama-san, os lábios contraídos. Seu nome era Noriko e as duas estavam a sós em seus aposentos particulares, na estalagem das Flores da Meia-Noite, ajoelhadas sobre almofadas púrpuras, o cômodo iluminado por velas, uma mesa baixa com chá entre elas. Noriko acabara de voltar de uma furiosa reunião com o mercador de arroz que emprestava dinheiro. Ele aumentara os juros sobre sua hipoteca de trinta para trinta e cinco por cento, alegando a situação perigosa no reino. Cão sem mãe, pensou ela, fervendo de raiva, para depois isolar o caso, e se concentrar no problema mais imediato que tinha pela frente.



— Esta manhã soubemos que os vigilantes...



— Quem?





— Os vigilantes? São patrulhas especiais de interrogatório do Bakufu, homens sem misericórdia. Chegaram durante a noite. Espero receber uma visita Sinto muito, mas ele deve partir ao amanhecer.



— Vai mantê-lo aqui até que ele fique bom.





— Mas não posso! Não depois do que aconteceu na estalagem dos Quarenta e Sete Ronin. Os vigilantes são impiedosos. Não quero esta cabeça espetada na ponta de um chuço.



— Isso foi em Iedo e estamos em Kanagawa. Esta é a estalagem das Flores da Meia-Noite. Lamento, mas Hiraga-san exigiria.



— Ninguém exige nada aqui, senhora — proclamou Noriko, a voz estridente.



— Nem mesmo Hiraga-san. Tenho que pensar em meu próprio filho e na minha casa.



— Faz muito bem. E eu tenho de pensar no amigo de meu irmão e aliado de Hiraga. Também devo lembrar do rosto de meu irmão. Estou autorizada a acertar suas dívidas.



Noriko se mostrou surpresa.



— Todas as dívidas de Shorin?





— Metade agora, a outra metade quando Sonno-joi prevalecer.



— Negócio fechado — disse Noriko, tão atordoada com a sorte inesperada, por um dinheiro que nunca imaginara que viria a receber, que cedeu na barganha.





— Mas nada de médicos gai-jin e apenas por uma semana.



— Combinado.



No mesmo instante, a moça enfiou a mão na manga, a fim de pegar a bolsa, escondida num compartimento secreto. Noriko prendeu a respiração ao ver tantas moedas de ouro.



— Aqui estão dez oban. Vai me dar um recibo, junto com sua conta detalhada, a metade da dívida, como combinamos, no momento em que formos embora. Onde Ori-san pode ficar em segurança?





Noriko se censurou por ter sido tão precipitada, mas já que concordara, agora era uma questão de honra. Enquanto considerava o que fazer, estudou a jovem a sua frente, Sumomo Anato, irmã mais nova de Shorin Anato, o shishi, o selvagem, o menino que ela iniciara no mundo dos homens, há tantos anos. Ah, quanto desejo. Que vigor para alguém tão jovem, pensou ela, com uma saudade agradável, embora imprópria. E que memorável cortesã aquela moça daria. Juntas, poderiam ganhar uma fortuna; em um ou dois anos ela casaria com um daimio e, se ainda for virgem, que preço eu poderia obter! Ela é tão bonita quanto Shorin disse, uma Satsuma clássica... segundo ele, samurai sob todos os aspectos. Linda da cabeça aos pés.



— Quantos anos tem, senhora?



Sumomo surpreendeu-se com a pergunta.



— Dezesseis.



— Sabe como Shorin morreu?



— Sei. Serei vingada.



— Hiraga lhe contou?



— Você faz perguntas demais — protestou Sumomo, a voz ríspida.



Noriko achou engraçado.





— No jogo em que nos empenhamos, você e eu, embora seja uma samurai e eu uma mama-san, somos irmãs.



— Acha mesmo?



— Acho, sim. Por isso, neste jogo tão sério de dar cobertura a nossos homens, protegê-los de sua bravura... ou estupidez, dependendo do lado em que a gente se encontra, arriscando nossas vidas para resguardá-los de seus próprios méritos, devemos ter confiança uma na outra. Confiança de irmãs de sangue. Assim, torno a perguntar: Hiraga lhe falou de Shorin?



Sumomo sabia que sua posição era delicada.



— Falou.



— Hiraga é seu amante?



Os olhos de Sumomo se contraíram.





— Hiraga é... era meu noivo, antes de... antes de partir para servir Sonno-joi.





A mama-san piscou.





— Um samurai de Satsuma permite que sua filha fique noiva de um samurai de Choshu... quer seja shishi ou não, ronin ou não?



— Meu pai não aprovou. Nem minha mãe. Mas Shorin aceitou. E eu não aprovei a escolha que eles fizeram para mim.



— Ah, sinto muito. — Noriko ficou triste, sabendo muito bem o que significava a pressão incessante, o confinamento em sua própria casa ou até pior. — Foi proscrita de sua família?



Sumomo permaneceu imóvel, a voz se manteve calma:





— Há poucos meses, decidi seguir meu irmão e Hiraga-san, a fim de poupar meu pai dessa vergonha. Sou agora uma ronin.





— Enlouqueceu? Mulheres não podem se tornar ronin.



— Noriko — disse Sumomo, resolvendo assumir um risco —, concordo que devemos ser irmãs de sangue.



Um estilete apareceu em sua mão. Noriko piscou outra vez, aturdida, pois não vira de onde saíra o estilete. Observou Sumomo espetar seu dedo e lhe oferecer a lâmina. Sem hesitação, fez a mesma coisa. Encostaram os dedos, misturando o Sangue, e depois fizeram uma reverência solene.





— Sinto-me honrada. Obrigada, Sumomo. — Sorrindo, a mama-san devolveu o estilete. — Agora sou um pouquinho samurai, não é?



O estilete foi guardado de volta na bainha da manga.



— Quando o imperador recuperar todo o seu poder, ELE promoverá a samurais todos aqueles que merecem. Pediremos por você, Hiraga-san, Ori e eu.



Noriko fez outra reverência em agradecimento, adorando a idéia, mas convencida de que se situava além de qualquer possibilidade e de que nunca viveria para ver o inconcebível acontecer: o xogunato Toranaga cessar de existir.





— Em nome de toda a minha linhagem, obrigada. Agora... Saquê!





— Não, obrigada. Lamento muito, mas Sensei Katsumata fez com que as mulheres em sua turma renunciassem ao saquê, dizendo-nos que embotaria para sempre nossa habilidade e prejudicaria nossa mira. Por favor, onde está Hiraga-san?



Noriko observou-a, escondendo seu sorriso.



— Katsumata, o grande senseil Estudou com ele? Shorin nos contou que você sabia usar a espada, a faca e o shuriken. É verdade?



Com surpreendente rapidez, Sumomo enfiou a mão na obi, tirou um shuriken e arremessou o pequeno círculo de aço, com cinco lâminas, muito afiadas, através da sala, cravando-o no centro exato de um poste. Mal se mexera.



— Por favor, onde está Hiraga-san? — indagou ela, gentilmente.




17







IEDO









Naquela noite, hiraga comandou o ataque silencioso, passando por cima da estacada do palácio de um daimio, no segundo círculo, fora das muralhas do castelo. Correram pelo jardim para a entrada dos fundos da mansão, a noite iluminada por uma lua fria. Todos os seis homens usavam o mesmo quimono curto, preto, o traje de combate noturno, sem armadura, para não prejudicar a velocidade e o silêncio. Todos levavam espadas, facas e garrotes. Todos eram ronin de Choshu, convocados por Hiraga com urgência de Kanagawa, para o ataque daquela noite.





Em torno da mansão, havia alojamentos, estábulos e aposentos para os criados, onde normalmente deveriam estar instalados quinhentos guerreiros, a família e os criados do daimio. Só que agora se encontravam vazios. Apenas duas sentinelas sonolentas se postavam na porta dos fundos. Viram os atacantes tarde demais para darem o alarme e morreram. Akimoto tirou o uniforme de uma sentinela, vestiu-o, arrastou os corpos para as moitas e foi se juntar aos outros na varanda. Esperaram, imóveis, escutando com toda atenção. Não ouviram gritos de alerta, o que os levaria a desistir do ataque no mesmo instante.



— Não tem importância se tivermos de bater em retirada — explicara Hiraga, ao crepúsculo, quando os outros chegaram a Iedo.— Já é suficiente conseguirmos nos infiltrar tão perto do castelo. O objetivo desta noite é o terror, matar e semear o terror, para fazê-los acreditar que ninguém e nenhum lugar se encontram além do nosso alcance e de nossos espiões. O terror, entrar e sair depressa, com o máximo de surpresa e sem baixas. Esta noite é uma oportunidade excepcional. Ele sorrira, antes de acrescentar: — Quando Anjo e os anciãos cancelaram o sankin-kotai, escavaram a sepultura do xogunato.



— Vamos incendiar o palácio, primo? — perguntara Akimoto, feliz.



— Depois de matar.



— E quem é ele?





— É velho, cabelos grisalhos, baixo e magro, Utani, o ancião roju. Todos se mostraram espantados.





— O daimio de Watasa?



— O próprio. Infelizmente, nunca o vi. Alguém sabe como ele é?





— Acho que posso reconhecê-lo — dissera o jovem de dezoito anos, com uma cicatriz horrível estendendo-se pelo lado do rosto. — É esquelético, como uma galinha doente. Vi-o uma ocasião em Quioto. Quer dizer que esta noite vamos despachar um ancião para o outro mundo, nem... um daimio? Mas isso é sensacional!





Ele sorrira, coçara a cicatriz, um legado da malsucedida tentativa Choshu de capturar os portões do palácio, em Quioto, na primavera passada, antes de acrescentar:



— Utani não correrá mais para lugar nenhum depois desta noite. É louco por dormir fora das muralhas e deixar que se saiba disso! E sem guardas? Que estúpido!



Joun, de dezessete anos, sempre o cauteloso, comentara:



— Desculpe, Hiraga-san, mas tem certeza de que não é uma armadilha, preparada com uma falsa informação? Yoshi é conhecido como raposa, Anjo é ainda pior. Há altas recompensas por nossas cabeças, não é? Concordo com meu irmão: como Utani pode ser tão estúpido?



— Porque ele tem um encontro secreto. É um pederasta. Todos o fitaram, aturdidos.



— Por que ele haveria de manter isso em segredo?



— O rapaz é um dos íntimos de Anjo.





So ka! — Os olhos de Joun faiscaram. — Neste caso, acho que eu também manteria em segredo. Mas porque um rapaz bonito haveria de se entregar a alguém como Utani, quando já conta com um protetor poderoso?



Hiraga dera de ombros.





— Por dinheiro, o que mais? Nori é um avarento, Utani generoso... Os camponeses de Anjo não são os mais tributados em todo o Japão? As dívidas dele não sobem até o céu? Ele não é conhecido por consumir moedas de ouro como se fossem grãos de arroz? Muito em breve, de um jeito ou de outro, Anjo deixará este mundo. Talvez esse rapaz bonito pense que Utani sobreviverá a ele e que o risco vale a pena. Afinal, Utani tem influência na corte, não é? Koku! Por que não? Sua família deve ser miserável, afogada em dívidas... não é o que acontece com quase todos os samurais, abaixo da posição de hirazamurai, que vivem no nível de pobreza?



— Tem razão — concordaram todos.





— Isso é verdade desde o quarto xógum, há quase duzentos anos — comentara o jovem de dezoito anos, amargurado. — Os daimios ficam com todos o tributos, vendem cartas de samurais a mercadores sórdidos, mais e mais a cada ano, e ainda cortam nosso pagamento. Os daimios traíram a nós, seus leais seguidores!



— Você está certo — disse Akimoto, enfurecido.— Meu pai teve de oferecer seus serviços como um trabalhador nos campos, para alimentar meus demais irmãos e irmãs...

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