— Jamie, eu gostaria de ter uma cópia desta lista, por favor. Você é obrigado a manter esses documentos em salvaguarda.
O advogado estendeu a mão para a meia dúzia de cartas, mas Jamie se antecipou.
— Eu diria que estas eram particulares.
— Particulares para quem, Jamie?
— Para ele.
— Obterei uma ordem judicial para vê-las e mandar copiá-las, se considerar que são importantes.
— Pode fazer isso — respondeu Jamie, rangendo os dentes, furioso consigo mesmo por ter concordado em abrir o cofre, antes de pedir o conselho de Sir William.
Angelique interveio:
— Posso vê-las, Jamie, por favor? Creio que são parte dos pertences de meu marido. No momento, parecem bem poucos.
A voz era tão gentil, tão triste, sem qualquer insinuação de súplica, que ele. suspirou, e disse a si mesmo: Rapaz, já está todo encrencado, não faz mais diferença. Sir William decidirá sobre a legalidade. E, de repente, ele voltou ao anoitecer do dia anterior, no cais, os três alegres e descontraídos, rindo, confiantes, as futuras nuvens de tempestade em Hong Kong parecendo muito distantes, e depois os dois no cúter, a caminho da noite de núpcias, com Malcolm dizendo:
— Obrigado, meu bom amigo. Guarde a nossa retaguarda, pois vamos precisar. Promete?
Ele prometera, jurara que faria isso, e também protegeria Angelique, desejando a ambos uma vida longa e feliz, acenara em despedida, o último na praia. Como Malcolm estava certo! Tivera uma premonição?
— Tome aqui — disse ele, gentilmente.
Sem olhar para as cartas, Jamie largou as cartas no colo de Angelique, que cruzou as mãos, tornou a ficar imóvel. Uma brisa agitou uma mecha de cabelos, perto da têmpora. Afora isso, ela parecia uma estátua.
O tinido de moedas atraiu a atenção de Jamie. Skye abrira a bolsinha de camurça. Continha guinéus de ouro e notas do Banco da Inglaterra. Ele contou, em voz alta. Os olhos de Angelique não se desviaram do cofre.
— Duzentos e sessenta e três guinéus. — Skye guardou tudo de volta na bolsinha. — Este dinheiro deve ser entregue imediatamente à Sra. Struan... ela dará um recibo, é claro.
Jamie disse:
— Talvez seja melhor que nós... eu e você, Heavenly... procuremos Sir Willian. Nunca estive envolvido em nada assim antes, estou fora da minha experiência... pode compreender, não é, Angelique?
— Também estou fora da minha experiência, jamie, à deriva. Sei que me Malcolm era seu amigo e que você era amigo dele, e meu também. Foi o que ele me disse, muitas vezes. Por favor, faça o que julgar melhor.
— Vamos falar com ele agora, Jamie — propôs Skye. — Quanto mais cedo, melhor. Ele pode decidir sobre a propriedade do dinheiro. Enquanto isso...
Ele se adiantou para entregar a bolsinha a Angelique, mas ela disse:
— Levem com vocês, levem tudo, isto também. — Ela estendeu as cartas — Basta me deixarem a fotografia. Obrigada, Sr. Skye. E agradeço a você também meu caro Jamie. Tornaremos a falar quando voltarem.
Os dois esperaram que ela se levantasse, mas Angelique não fez qualquer movimento.
— Não vai continuar aqui, não é?—indagou Jamie, perturbado, pois parecia macabro.
— Claro que vou. Passei tanto tempo aqui, nesta sala, que é... é acolhedora para mim. A porta para a minha suíte está aberta, se eu... se eu precisar descansar Mas, por favor, tirem Ah Tok daqui, a pobre coitada, e digam a ela para não voltar A pobre mulher precisa de ajuda. Peçam ao Dr. Hoag para vê-la.
— Quer que fechemos a porta?
— A porta? Não importa... podem fechar, se quiserem.
Eles o fizeram e entregaram Ah Tok aos cuidados de Chen, que ainda se encontrava transtornado, em lágrimas. Saíram para a High Street, os dois aliviados por estarem outra vez ao ar livre, mas absortos em seus pensamentos. Skye planejava, analisava os atoleiros pela frente. Jamie sentia-se incapaz de planejar qualquer coisa, o cérebro consumido pela tragédia e preocupação com o futuro da Casa Nobre, sem saber por quê.
Seria por ela? — perguntou a si mesmo, alheio ao passeio, ao vento forte, as ondas quebrando na praia de seixos, ao cheiro de algas em decomposição. A tristeza lhe convém. Seria possível que...
Ela é uma mulher agora! É essa a diferença, possui uma profundidade e equilíbrio que não existiam antes. É uma mulher, não mais uma moça. É por causa da catástrofe ou porque deixou de ser virgem... a mudança mística que dizem que ocorre ou se supõe que acontece na transmutação? Ou as duas coisas, talvez com o dedo de Deus ajudando-a a se ajustar?
— Por Deus — disse ele, incapaz de se conter, pensando em voz alta — o que acontece se ela tiver um filho?
— Pelo bem dela, rezo para que isso aconteça — arrematou o advogado.
Assim que eles se retiraram, Angelique fechou os olhos, respirou fundo. Logo recuperou o controle, levantou-se, foi trancar a porta, e depois abriu a que dava para sua suíte. Sua cama estava feita, havia flores frescas num vaso, na penteadeira. Ela voltou à suíte de Malcolm, trancou sua porta, tornou a sentar na cadeira.
Só então olhou para a fotografia... a primeira dos pais de Malcolm que já vira. No verso, havia a data, 17 de outubro de 1861. No ano passado, Culum Struam parecia muito mais velho que sua idade, quarenta e dois anos, enquanto Tess não parecia velha nem jovem, os olhos claros fixados em Angelique, a linha fina dos lábios dominante.
Tess tinha trinta e sete anos. Como vou parecer quando chegar à sua idade, daqui a dezenove anos, mais do que o dobro da minha idade hoje? Terei a mesma expressão dura, que proclama um casamento sem amor, e opressivos fardos de família.— odiando seu pai e os irmãos, eles também a odiando, os dois lados tentando se arruinar mutuamente —, que no seu caso começaram de maneira tão romântica, fugindo para casar no mar, como nós fizemos... mas, por Deus, que diferença!
Ela olhou pela janela, para a baía e os navios, um vapor mercante deixando o porto... capitão e oficiais na ponte de comando, o navio de correspondência cercado por tênderes, o cúter da Struan junto ao Prancing Cloud. Elegante, ansioso por levantar âncora, içar as velas, enfrentar os ventos mais furiosos. Era o que Malcolm sempre dizia sobre seus clíperes, pensou ela, aqueles clíperes velejam com os ventos mais fortes.
Angelique fechou os olhos, esfregou-os, tornou a olhar. Não havia equívoco. Durante o dia inteiro seus olhos haviam demonstrado inesperada e supreendente lucidez de visão. Percebera-o no momento em que despertara naquela manhã, todos os detalhes do quarto em foco, as cortinas, as flores mortas no vaso, moscas circulando, quatro moscas. Segundo depois, ouvira uma batida na porta, e a voz de Ah Soh:
— Miss? O homem da medicina quer ver a miss.
Sua audição também parecia mais intensa, o som dos passos leves de Ah Soh arrancando-a do sono.
Ainda mais estranho era a lucidez de sua mente, todo o peso parecia ter se dissolvido, não a tristeza, a maneira objetiva com que considerava problema após problema, sem consternação, sem jamais misturá-los, sugerindo soluções, sem o medo habitual, nem mesmo um pouco. A preocupação, sim, mas isso era apenas sensatez, mas não mais o pânico nauseante, a indecisão.
Podia agora recordar aquele dia e aquela noite em todos os detalhes, sem uma pressão opressiva, inumana e insensata. Tornei-me insensível? Para sempre? É correto o que o Dr. Hoag disse esta manhã?
— Não se preocupe, você está curada de qualquer problema. Desde que possa chorar de vez em quando, e não ter medo de voltar no tempo, se é isso o que sua mente deseja, então sua vida correrá bem, melhor a cada dia. Tem juventude e saúde, a vida se estende à sua frente...
Mon Dieu, quantos chavões os médicos dizem! Depois de Hoag, Babcott. Mais da mesma coisa. Ele se mostrara gentil e terno, uma ternura que poderia se transformar em ardor, se ela permitisse. Mas chega de paixão, pensou ela, pelo menos enquanto eu não estiver livre. E segura. Segura e livre.
Seu corpo estava repousado. Não havia dor de cabeça lancinante, nem mesmo pequena, nenhum clamor interior. Sabendo de imediato onde se encontrava, quem era e por que se achava ali, por que sozinha, e o que acontecera. Experimentando de novo, observando a si mesma no pesadelo desperta, consciente de tudo, mas não envolvida, não envolvida de fato: observando a si mesma sendo acordada pelo grito estridente de Chen, arrancada do sono, vendo a si mesma em pânico, sacudindo Malcolm para acordá-lo também, vendo o sangue em suas pernas, horrorizada por um momento, com medo de ter se cortado demais, depois compreendendo que era o sangue dele, que ele estava morto, morto, morto.
Saltando da cama nua, sem percebê-lo, apavorada, gritando, não acreditando no que olhos e ouvidos lhe diziam, rezando para que fosse um sonho, outras pessoas entrando correndo no camarote, Ah Soh, Ah Tok, alguém cobrindo-a, vozes, gritos, perguntas e mais perguntas, até o camarote sufocá-la na escuridão e terror. Depois, na ponte de comando, congelando e ardendo, perguntas sem respostas, sua boca trancada, a cabeça em fogo, o cheiro de sangue, o gosto de sangue, sangue em sua virilha, sangue nas mãos, nos cabelos, o estômago se rebelando.
Ah Soh ajudando-a a entrar num banho, a água fria, nunca bastante quente para limpá-la, até sua morte, mais náusea, e depois o veneno ofuscante a dominá-la, a afogá-la, até que se vira gritando para Hoag, uma imagem de feiúra, feio demais.
Ela estremeceu. Terei essa aparência quando ficar velha? Quão velha é ser velha? Não muito, com certeza. O que exatamente dissera a Hoag não podia recordar, nem mesmo agora, apenas que o veneno fora expelido, e com a torrente viera o sono bom.
Tenho muito que agradecer a Hoag, e muito para detestar em Babcott... pois sua poção para dormir começou a me mergulhar no desespero. Não tenho mais medo, não estou mais desesperada, não compreendo por que, mas é verdade... graças a Malcolm e a Hoag, àquele pequeno advogado fedorento, com um hálito insuportável, e a André. André ainda é sensato, ainda é meu confidente, e assim permanecerá, contanto que eu lhe pague. Ele é um chantagista, sem dúvida. Mas isso não importa. Para ajudar a si mesmo, ele tem de me proteger, e no final das contas há um Deus no céu, e os caminhos de Deus podem ser lentos, mas não falham.
Posso tratar da minha vida agora, eu acho, se for cuidadosa.
Madona, concordamos há muito tempo que eu tinha de ajudar a mim mesma, não podia ser dependente de um homem, ou homens, como o resto das minhas pobres irmãs. Sei que sou uma pecadora. Malcolm foi de fato o único que já conheci que desejei de verdade, amei de verdade, com quem quis casar, amei como só uma adolescente tola pode amar. O primeiro amor é o verdadeiro amor? Ou o amor é uma emoção adulta? Sou adulta agora. Meu amor por Malcolm era adulto. Acho que sim e espero que sim.
Mas meu querido morreu. Aceito isso. E agora?
Tess? Hong Kong? André? Gornt? O lar? Tess?
Uma coisa de cada vez.
Primeiro, meu querido deve ser posto para repousar. De forma apropriada.
Ela olhou para o cofre, a porta fechada, mas não trancada. Levantou-se, abriu toda a porta, estendeu a mão, comprimiu uma pequena e oculta depressão no funo. Parte da parede da esquerda se abriu. Na cavidade, havia alguns papéis, outro sinete pessoal, outra bolsa com moedas e notas. Um vidro do medicamento dele. Uma caixa pequena. Uma semana antes, Malcolm lhe mostrara a cavidade secreta, sorrindo.
— Não há muita coisa para esconder por enquanto, pois todas as coisas importantes ficaram em Hong Kong, com a mãe, os documentos sobre ser o tai-pan, uma cópia do testamento do pai, o testamento da mãe, o sinete do tai-pan, assim por diante. Isto... — Ele dera de ombros, os olhos brilhando. — ...é para miudezas, os presentes secretos que eu possa lhe dar, se for muito boa, e me amar até a loucura...
Angelique abriu a caixa. Um anel de ouro, com rubis. Não muito valioso, mas o suficiente. Os documentos eram dos negócios, listas de números, que ela não entendia.
E nada de testamento.
Droga, pensou ela, sem raiva. Tornaria o futuro mais simples. Fora o que André ressaltara.
Ele fora chamado por Vargas naquela manhã, a seu pedido, da lista de pessoas que haviam comparecido e deixado cartões.
— Monsieur Vargas, primeiro meu alfaiate, preciso de roupas de luto com urgência. Depois, monsieur André e o Sr. Skye... não há necessidade de incomodar o Sr. McFay, até eu mandar chamá-lo. Para qualquer outra pessoa, estou descansando. — Uma pausa, e ela acrescentara, com o maior cuidado: — E, monsieur, cuide disso tudo com a discrição que meu marido disse que possui. Receberei a todos na sala do tai-pan.
Ela percebera um brilho nos olhos de Vargas ao “tai-pan”, mas ele nada dissera, e por isso não houvera necessidade de ser mais firme. A sala fora escolhida com todo cuidado, e quando o velho alfaiate chegara, com Vargas, Angelique dissera:
— Por favor, pergunte quanto tempo levaria para fazer um vestido de luto, preto, como este.
O que ela usava era de mangas compridas, gola alta, azul marinho.
— Ele diz que três dias. Luto, senhora? A cor para o luto na China é branco.
— Eu quero preto. De seda. E amanhã.
— Três dias.
— Se ele levar meu outro vestido, o azul claro que fez para mim, e tingi-lo de preto, quanto tempo?
— Ele diz que dois dias.
— Diga a ele que a viúva do tai-pan da Casa Nobre exige um vestido preto amanhã. Amanhã de manhã.
O velho chinês suspirara, fizera uma reverência e se retirara. Depois, Vargas anunciara André Poncin.
— Olá, André.
— Olá. Nunca a vi mais linda.
Era uma declaração, não um galanteio.
— Preciso de conselho, depressa, e confidencial. Devemos ser rápidos e sensatos. Meu casamento é legal?
— Achamos que sim, segundo a lei naval britânica. Não temos certeza sob a lei francesa. Ambas são áreas meio indefinidas.
— Não entendi.
— Sujeitas a contestações. Se houvesse uma disputa entre advogados franceses e britânicos, a lei britânica prevaleceria. O fato de ele ser um menor, os dois para ser mais preciso, embora neste caso ele seja mais importante, somado à sua desobediência às determinações por escrito da tutora legal, significa que a cerimônia de casamento provavelmente será contestada.
— Onde? Aqui? Por quem?
— Por Tess Struan. Quem mais? — dissera André, zombeteiro.
— A morte de Malcolm não tem o menor significado para você, não é?
— Ao contrário, complicou demais a minha vida, madame — respondera ele, usando o título pela primeira vez. — É uma complicação séria para nós dois.
Angelique resolvera sentar por trás da mesa de Malcolm, na sala de Malcolm, pois seu futuro estava em jogo, e precisava ter cem por cento da astúcia daquele homem, e mais ainda. Em sua suíte, poderia se sentir menos confiante, embora costumasse se apresentar da melhor forma possível em seu boudoir. É por isso que os homens têm escritórios, e as mulheres ficam limitadas à chaise e à feminilidade de um semiquarto?
— E como se pode descomplicar a situação, André?
— Já descomplicou a primeira complicação.
Quando ela fugira em desespero para a legação, André a interceptara, quase a arrastara para seu escritório, critidando-a assim que a porta fora fechada, sacudindo-a, furioso, e dizendo: Sua idiota, você enlouqueceu? Volte para a casa dele e fique lá! Não pode se esconder aqui ou vai se arruinar! Volte para lá, sua tola! Conversaremos mais tarde e, pelo amor de Deus, não assine coisa alguma, não concorde com nada! Vamos, vá logo!
— Você tinha toda razão, André — dissera ela, sem qualquer ressentimento contra sua veemência, compreendendo tudo agora. — Obrigada por me falar de maneira que eu pudesse entender, penetrando minha angústia. Essa foi a primeira complicação. Qual é a seguinte?
As rugas na testa de André se aprofundaram. Aquela era uma nova Angelique, uma quantidade desconhecida, inesperada. Ele testemunhara uma mudança assim duas vezes antes, em homens, nunca em uma mulher. Ambos eram espiões inimigos, libertados após extrema tortura. Os médicos não tinham outra explicação que não dizer que os homens não mais sentiam medo, não mais temiam a tortura nem a morte. Haviam sido arrastados à beira do abismo, sobreviveram, e agora estavam convencidos, acima e além de qualquer dúvida, que sobreviveriam de novo, independente do que lhes fizessem, ou morreriam, e isso já não importaya mais. Os médicos disseram que a própria morte nada significaria, até o dia, semanas, meses ou anos depois, em que o terror tornasse a erguer sua vil cabeça, como era inevitável.
Pobre Angelique, sentada ali, tão confiante, tão pretensiosa... Virá o dia em tudo vai transbordar e destruí-la. Vai conseguir se sobrepor ou acabará num hospício?
Pessoalmente, ele poderia apostar que tantas calamidades seriam demais para uma jovem assim: a fuga do pai, o roubo de seu dote, o estupro e a gravidez, a morte do estuprador, e agora essa nova e terrível morte, cujos detalhes ele e toda a colônia conheciam. André e Seratard haviam esperado que a mente de Angelique se dissolvesse, há meses, ainda esperavam que isso acontecesse, nenhum dos dois acreditando em Hoag, quando o interrrogaram.
Se Hoag pôde realizar esse milagre, pensou ele, irritado, por que os médicos não podem curar a maldita doença inglesa? Não é justo.
— A vida não é justa, não é?
— Não — concordou Angelique —, nem um pouco.
— Ele deixou um testamento, indicando-a como sua herdeira?
— Não sei. Malcolm nunca me falou a respeito.
— Angelique, no futuro, refira-se a ele como seu marido e a si mesma como a viúva.
— Por quê?
— Para ajudar a firmar sua pretensão à herança.
Ele a vira acenar com a cabeça e se impressionara com seu controle. É um ato de Deus que ela possa parecer tão tranqüila?
— Se não houver testamento, isso faz alguma diferença?
— É o que estamos tentando descobrir. Seria melhor se houvesse um testamento designando-a como herdeira. Agora, você deve voltar com... com os restos mortais para Hong Kong. Esteja preparada para a hostilidade da mãe... em público, tente se mostrar amiga. Deve comparecer ao funeral, vestida corretamente, é claro. — Depois, ele acrescentara: — Talvez Henri possa lhe dar uma carta para o nosso embaixador. Já o conhece?
— Já, sim. Monsieur De Geroire. Henri “poderia”? Que tipo de carta ele Poderia escrever para mim?
— Se fosse possível persuadir Henri, com sua recomendação você poderia ficar sob a proteção de De Geroire, como uma tutelada do Estado. Estou convencido de que é legalmente a viúva do falecido tai-pan, Malcolm Struan. Se Henri nos apoiasse com vigor, essa poderia se tornar uma política de Estado.
— Quer dizer que preciso de uma grande proteção?
— Eu tenho certeza disso, o que já não acontece com Henri.
Angelique suspirara. Fora isso também o que ela concluíra. Mas política de Estado? Era uma idéia nova, uma possibilidade em que não pensara. Política de -Estado representaria a proteção da França. Qualquer coisa valeria isso... não, não qualquer coisa.
— O que eu poderia fazer para persuadir Henri?
— Posso fazer isso por você. Ou pelo menos tentar.
— Pois então comece logo. E me avise esta noite o que posso fazer em retribuição. Antes do jantar seria conveniente ou amanhã de manhã... como você preferir.
Não houvera necessidade de dizer mais. Amanhã seria melhor, André informara, retirando-se em seguida. Antes da chegada da pessoa seguinte na lista, Skye, ela se recostara na cadeira, sorrira para o teto, especulando sobre o preço.
Tutelada do Estado francês? Gostava da idéia, pois sabia que precisaria de toda a ajuda que pudesse obter para combater a ogra de Hong Kong...
E agora, enroscada na outra cadeira de Malcolm, na suíte do tai-pan, a porta trancada por dentro, ela apreciou a idéia ainda mais, e outra vez especulou sobre o preço. Seria alto. As moedas de ouro secretas serão o suficiente para começar, depois o anel de rubis, e agora tenho um sinete, o sinete de Malcolm.
Ela guardou tudo de volta, fechou o compartimento secreto.
Contente com o progresso efetuado no primeiro dia de sua nova vida, fechou os olhos e mergulhou num sono sem sonhos, até que uma batida na porta a despertou. Eram quase quatro e meia.
— Quem é, por favor?
— Jamie, Angelique.
Uma corrente de expectativa a percorreu. Mantenha a calma, advertiu a si mesma, enquanto destrancava a porta, o gelo que você atravessa é extremamente fino e as águas por baixo são letais.
— Entre, por favor, meu caro Jamie. — Outra vez Angelique sentou na cadeira do marido, gesticulando para que ele se instalasse na cadeira que ela sempre ocupara antes. A mudança agradou-a. — Você parece muito aflito, triste demais.
— Ainda não consegui me acostumar à idéia... nem com as mudanças, Angelique.
— Posso compreender. É mesmo muito difícil.
— Você também mudou. Posso... posso dizer como parece maravilhosa, tão forte... ora, sabe como é.
— É justamente esse o problema, meu caro Jamie, não sei. Só sei o que aconteceu, e posso aceitar, já aceitei. Minhas lágrimas... creio que devo ter derramado todas as lágrimas da minha vida. Por isso, pelo menos no momento-não há mais lágrimas. Conversaram com Sir William?
— Conversamos. Skye disse que voltaria por volta das seis horas, se for conveniente para você.
Ele a viu balançar a cabeça, distraída.
— Não gosta dele, não é, Jamie?
— Não gosto de nenhum advogado. Eles sempre criam problemas, embora Skye não seja um mau sujeito. E creio que a servirá direito. Mas se ficar preocupada, trate de me avisar. Mal... Malcolm gostava dele, e você precisava de alguém para representá-la.
— Também é difícil para mim dizer o nome dele, Jamie. “Marido” é igualmente difícil. Ainda mais difícil. Não se sinta embaraçado.
Jamie balançou a cabeça, desolado, tirou as cartas do bolso.
— Sir William disse que as cartas fazem parte do espólio, como o dinheiro. Não pode decidir sobre as questões legais... vai enviar uma carta urgente ao procurador-geral em Hong Kong... mas não vê motivo para que você não fique com as cartas, se prometer não destruí-las. Quanto aos soberanos, você deve recebê-los... expliquei a ele que achava que você não tinha qualquer dinheiro seu no momento... mas ele pede, por favor, que lhe dê um recibo.
— Não tem problema. Ele leu as cartas?
— Não, ninguém leu. — Hesitante, Jamie largou-as em cima da mesa. — Há mais algumas coisas... fizemos uns acertos... gostaria que eu lhe dissesse agora, ou... posso voltar mais tarde.
— Não, estou bem. Que acertos, Jamie?
Ele respirou fundo, detestando ter de contar tudo, mas era seu dever.
— Em conferência com Sir William, Babcott e Hoag, acertamos que o corpo será despachado de volta a Hong Kong amanhã, para ser sepultado. Todos concordamos que seria o melhor. Estamos tomando todas as providências para tomar as coisas mais fáceis para você e a viagem tão tolerável quanto possível. O Dr. Hoag irá junto, para cuidar que não haja problemas.
O sorriso de Jamie era vazio, seu rosto um espelho de infelicidade.
— Não posso deixar de dizer como tudo isso me deixa triste. Ah Soh pode arrumar sua bagagem, no momento devido, Chen ajudará, se for necessário, e embalará as coisas que seguirão no navio, que zarpará com a maré noturna. Até lá, se precisar de alguma coisa, basta me avisar.
Jamie viu-a baixar os olhos para as mãos, os dedos virando o anel de sinete de Malcolm no dedo. Pobre Angelique, nem mesmo tem uma aliança de casamento.
— Bom, isso é tudo, no momento... gostaria de companhia no jantar esta noite?
— Obrigada, mas não. Comerei aqui, na sala de jantar, ou em meus aposentos. Mas, por favor, sente-se. Desculpe, mas isso não é tudo no momento. Meu marido não será levado de volta a Hong Kong para sepultamento. Quero que seja sepultado aqui. Nem eu nem meu marido jamais tornaremos a embarcar no Prancing Cloud.
Ela viu a expressão de Jamie, mas não se desviou do que decidira naquela manhã: a confrontação deveria ocorrer à primeira menção dos arranjos deles.
— Gostaria que eu lhe dissesse as disposições para o funeral agora ou prefere deixar para mais tarde?
— Mas já está tudo acertado! Todos achamos que seria melhor assim... sabemos que seria o melhor para você e todo mundo. A Sra. Struan certamente aprovaria, e gostaria que ele fosse sepultado em Hong...
— Sra. Struan? Eu sou a Sra. Struan. Está se referindo à outra Sra. Struan, Tess Struan? — Angelique falava sem qualquer emoção. — Ela não tem precedência neste caso. Sou a viúva e tenho precedência sobre a mãe.
— Por Deus, Angelique, só porque Skye diz que você é...
— Isso nada tem a ver com o Sr. Skye, Jamie. Não foi ele quem sugeriu nem o consultei. Ainda. Mas conheço os meus direitos, e os desejos de meu marido que serão cumpridos.
— Mas... mas... — O choque de Jamie era tão intenso que por um momento ele não conseguiu falar, mas depois as palavras saíram num fluxo rápido.— ...mas não pode prevalecer sobre o que Sir William, Babcott, Hoag e eu achamos que é melhor para você e para ele, o que temos certeza que é melhor para você e para todos. Está nervosa demais neste momento, Angelique. É o melhor, Angelique pode ter certeza de que é o melhor.
— Nervosa? Eu? Não diga bobagem, Jamie. — Ela se permitiu um pequeno sorriso glacial. — Não estou nem um pouco nervosa. Apenas pretendo cumprir os desejos de meu marido.
— Mas já foi tudo acertado, o Prancing Cloud está pronto para zarpar e... já foi tudo combinado.
— Fico contente em saber que o clíper está pronto para partir. Pois despachem-no imediatamente, a mãe deve ser informada da terrível notícia o mais depressa possível... e você mesmo deve cuidar disso, Jamie, siga no Prancing Cloud, é o mais alto funcionário da companhia aqui, tem esse dever. Peço-lhe que não espere até amanhã. Parta esta noite. Pode lhe transmitir a notícia terrível; isso vai atenuar um pouco a dor. Você tem essa obrigação.
— Claro que farei isso, se for necessário — murmurou ele, detestando a idéia. — Mas isso é um absurdo, Angelique, você não pode estar falando sério, deve compreender o que é melhor! Por Deus, Angelique, deve saber que isso é...
— O melhor para você e os outros, talvez, mas não para meu marido, e, portanto, não para mim. Ele tem o direito de ser sepultado como...
— Deve nos permitir fazer o que é o melhor! Seu corpo...
— O corpo de meu marido não vai, de jeito nenhum, embarcar naquele navio, nem eu — declarou ela, a voz calma. — Diga-me, meu amigo, se eu embarcasse no navio, como sugere, onde ficaria? No camarote principal?
Jamie fitou-a, surpreso, pois tal problema não lhe ocorrera.
— Não, claro que não. Poderia escolher qualquer outro camarote, e garanto que tudo...
— Pois eu garanto que tudo, até os mínimos detalhes, será feito de acordo com os desejos de meu marido.
Jamie limpou o suor da testa, a mente funcionando como nunca antes, um pouco nauseado, atordoado, pois era evidente que ela assumira o controle agora. Uma súbita idéia.
— Talvez você tenha razão. O Prancing Cloud seria um equívoco. Fretaremos outro navio... espere, o navio de correspondência deve zarpar depois de amanhã. Providenciaremos espaço a bordo para você, Hoag e... e ele. Além disso, persuadirei o capitão a partir antes. Amanhã... Isso resolveria tudo, não é?
— Não. — Angelique suspirou, cansada. — Desculpe, Jamie, mas não resolveria.
Havia agora uma ligeira irritação em sua voz, que se tornou mais incisiva:
— Por favor, Jamie, compreenda. A resposta é não. Ele será sepultado aqui, como desejava. Depois de amanhã.
— Não pode fazer isso! A Sra. Struan deve... isto é, Tess Struan precisa de mais tempo. Mandaremos o Prancing Cloud buscá-la, ela gostaria de comparecer ao funeral, deve estar presente.
— Você pode fazer o que quiser, mas meu marido será sepultado depois de amanhã, como queria... não creio que haveria tempo para o que você sugere. Mas não vou discutir. Desculpe, velho amigo, mas é você quem está nervoso e posso compreender. Por favor, peça a Sir William e ao Sr. Skye para virem falar comigo, juntos, o mais depressa possível, e acertarei a questão formalmente.
— Pelo amor de Deus! A cripta da família em Happy Valley é o lugar em que estão sepultados o avô, o pai, os irmãos e irmãs!
— Jamie, estou me cansando de repetir. Por favor, peça a Sir William e ao Sr. Skye para virem até aqui o mais depressa possível. Juntos.
Ele não sabia o que fazer, por isso deu de ombros, impotente, e se retirou.
Durante alguns minutos, Angelique permaneceu imóvel na cadeira, respirando fundo. Não fora tão ruim assim, pensou ela, depois esticou-se, levantou-se, foi para seu quarto. Havia um vestido limpo separado, austero, cinza escuro, estendido na cama. O vento sacudia as janelas, mas não lhe provocou nenhum calafrio. O espelho a chamava. Examinou-se. Em termos críticos. Sem sorriso. Ficou satisfeita com o que viu. A nova pessoa em que se transformara também a agradava. Era como se ajustar a um novo vestido... não, a uma nova pele.
— Espero que dure — disse ela a seu reflexo. — Devemos nos empenhar para que dure. Esta minha personalidade é melhor do que a outra.
E ela pegou a primeira das cartas. As cartas de Tess Struan. Queria deixar a de Malcolm para o fim.
Sir William mantinha-se impassível. O mesmo acontecia com Jamie. Hoag e Babcott franziam o rosto. Heavenly Skye tinha um brilho divertido nos olhos, Todos sentavam em cadeiras diante da mesa de Malcolm. Angelique fitava-os de sua cadeira alta, pequena, mas segura ali. O vestido mais escuro do que antes, mangas três-quartos, decote quadrado, costas empertigadas, penteado impecável. Sem maquilagem, com uma aparência imponente.
— Depois de amanhã? — disse Sir William.
— Isso mesmo — confirmou Angelique. — Meu marido não deve ficar exposto por tempo demais para as pessoas prestarem sua última homenagem. Três dias não é o prazo normal, doutor?
— É, sim, Angelique, o normal — respondeu Hoag. — Mas já tomamos todas as providências para a preservação do corpo na viagem de volta a Hong Kong Tudo correrá bem, não precisa se preocupar. — Uma pausa, e ele acrescentou gentilmente: — Ele deve ser sepultado lá. Todos concordamos que é o melhor
— Já o embalsamaram?
Os homens se mexeram em suas cadeiras, apreensivos. Hoag disse:
— Não, pois não é o que se costuma fazer. Usamos... ahn... usamos gelo para garantir a preser...
— Gostaria de ser empacotado em gelo e despachado para Hong Kong como uma carcaça de carneiro da Austrália?
A tensão na sala disparou, os homens ainda mais embaraçados do que antes. A voz de Angelique permanecia serena, firme e cordial, o que tendia a enfurecê-los mais ainda. Exceto por Skye, para quem ela adquiria uma nova dimensão.
— Não é essa a questão, madame — disse Sir William. — Achamos que, por ele e pela família, o sepultamento em casa é o mais sensato.
— Ele admirava o avô, o tai-pan, não é mesmo?
— É, sim. — Abruptamente, Sir William relaxou, não mais preocupado, pois agora tinha a solução para o enigma, independente do que ela pudesse dizer. — Todos sabem disso. Por quê?
— Muitas vezes, em várias palavras, Malcolm disse que queria viver como ele, ser lembrado como ele, e sepultado como ele. E é assim que será.
— Correto e muito sensato. — Sir William acrescentou, incisivo: — O avô está sepultado na cripta da família, no cemitério em Happy Valley. Angelique, concordo que deve ser assim com Malcolm. Compreendo agora...
— Mas Dirk Struan não foi sepultado em Hong Kong — declarou ela, surpreendendo a todos. — Sei que seu nome foi esculpido na lápide, mas ele foi sepultado no mar. Meu marido será sepultado no mar, da mesma maneira.
— Desculpe, Angelique, mas você se engana — interveio Jamie. — Eu estava presente, tinha acabado de ingressar na Struan, como um aprendiz de mercador na China, recém-chegado da Inglaterra, e compareci ao funeral. Foi imponente, com a presença de todos em Hong Kong. Houve até uma procissão imensa e separada em Chinatown, organizada por Gordon Chen.
— Desculpe, Jamie, mas é você quem se engana. Puseram um caixão vazio na cripta. Ele foi sepultado no mar, junto com sua amante, May-may, em águas internacionais, ao largo de Hong Kong. — Ela sentiu as lágrimas se aproximarem. Nada de lágrimas, ordenou a si mesma. Ainda não. — Ele foi sepultado no mar. Houve um serviço cristão, celebrado da maneira correta, como ele desejava, e as testemunhas foram Culum e Tess Struan, Gordon Chen e Aristotle Quance.
— Não é possível! — protestou Jamie.
— É, sim, e foi o que aconteceu. A hierarquia de sua Igreja recusou-se a permitir que eles fossem sepultados juntos, recusou-lhes um sepultamento cristão no campo consagrado de Happy Valley.
— Mas eu assisti ao funeral, Angelique! Ele foi sepultado ali. Não sei onde May-may foi sepultada, mas concordo que não estava com ele.
— Você testemunhou uma impostura, Jamie. O caixão estava vazio.
— Isso é bobagem — disse Sir William.
— A hierarquia foi intransigente na proibição a que fossem sepultados juntos — continuou Angelique, como se ele não tivesse falado. — Seria uma coisa sem precedentes. Sentiam-se escandalizados com Dirk Struan por muitas razões, como sabe muito bem, Sir William, e essa idéia era demais para eles. Em seu testamento, a parte que é transmitida de tai-pan para tai-pan, escrevera duas semanas antes de sua morte que se morresse junto com May-may deveriam ser sepultados juntos, já que tinha a intenção de casar com ela, e...
— Ele escreveu mesmo isso? Pretendia casar com ela? — Sir William mostrava-se chocado, tanto quanto os outros, pois mesmo hoje o casamento com uma chinesa era inadmissível... o ostracismo seria permanente, até mesmo para Dirk Struan. — Ele escreveu mesmo isso?
— Escreveu — confirmou Angelique, percebendo que Hoag era o único que não partilhava a consternação de Sir William.
Os ingleses, os britânicos em geral, são pessoas horríveis, pensou ela. Hipócritas, fanáticos, bárbaros, diferentes de nós, sempre manifestando seu antagonismo ao casamento entre protestantes e católicos, detestando ainda mais o casamento inter-racial com povos de seu Império.
Por que considerar o casamento inter-racial um pecado hediondo, ela teve vontade de gritar, já que vocês sempre têm amantes nativas, e filhos com elas, abertamente? Quanta hipocrisia! Nunca foi assim entre nós, em nossas colônias, no império francês. Se um francês casa com uma nativa, ela se torna não apenas sua esposa, mas também francesa, com toda a proteção da lei francesa. Até encorajamos o casamento inter-racial, o que é correto. Um homem é um homem e uma mulher é uma mulher, qualquer que seja a cor de sua pele, mas não para vocês. Deus me guarde de me tornar inglesa. Graças a Deus que nunca poderei renunciar à minha cidadania francesa, não importa com quem case...
Mas o que estou pensando? — ela perguntou a si mesma, com um sobressalto, obrigando-se a retornar à sala, a enfrentar aqueles inimigos de seu marido. — Teria tempo suficiente para tais devaneios mais tarde.
— Acho difícil compreender algumas atitudes britânicas, Sir William, sobre o casamento inter-racial, mas também sou francesa. Entretanto, deixando isso de lado, posso dizer que houve um impasse no funeral do avô de meu marido: sua Igreja ficou indignada, não queria concordar que os dois fossem sepultados juntos. O novo tai-pan, o filho dele, Culum, insistia nisso... qualquer outra coisa que não um sepultamento cristão apropriado para Dirk Struan era inconcebível. Culum Manteve uma posição mais firme do que Tess, perturbada pelos desejos de Dirk, com seu escárnio às convenções, que eram os alicerces de todas as convicções dela. Seu pai, Tyler Brock, agora o mais poderoso mercador na ilha, opunha-se, com veemência, assim como a mãe, e a maioria dos mercadores, publicamente, independentemente do que sentissem em particular. O governador apoiou a Igreja.
— É verdade — murmurou Sir William.
— Se Hong Kong fosse católica, minha Igreja também se mostraria hostil. O escândalo ameaçava a colônia, e era uma ocasião em que a maior parte de Hong Kong se encontrava em ruínas, depois do tufão... e sem gelo.
Todos se remexeram em suas cadeiras, exceto Skye, que arriou ainda mais na sua, com o mesmo tênue sorriso. Babcott disse, gentilmente:
— É a prática médica normal e correta para pessoas importantes, nessas circunstâncias, Angelique. Seu marido era e ainda é importante para nós. Deve acreditar nisso.
— Acredito. — Ela desviou os olhos dele, fitou Sir William, como antes continuando a falar no mesmo tom tranquilo: — Para romper o impasse, chegou-se a um acordo. Foi proposto por Gordon Chen e Aristotle Quance, verbal, nada por escrito. Discretamente... seria melhor falar em segredo, pois foi assim... os corpos foram levados para o China Cloud. A cerimônia da igreja anglicana foi oficiada pelo capelão naval e o capitão Orlov. Foi um sepultamento cristão correto. Dirk Struan e sua amante, May-may Sheng, foram sepultados juntos, como ele desejava.
— Se foi tão secreto assim, como pode saber que isso é verdade?
— Ficou registrado no diário de bordo, Sir William, que foi imediatamente levado para o cofre particular do tai-pan. Todas as testemunhas, Culum e Tess Struan, Aristotle Quance, Gordon Chen e a tripulação mínima a bordo prestaram sagrado juramento de segredo. O capelão naval, não sei quem era, foi enviado de volta à Inglaterra logo em seguida. O outro funeral foi realizado com toda a pompa devida ao tai-pan da Casa Nobre.
O silêncio persistiu na sala, rompido apenas pelo barulho do vento contra as janelas, uma tarde de sol lá fora. Sir William perguntou:
— Viu o diário de bordo?
— Não, nem falei... com a mãe dele sobre isso.
Jamie disse:
— Tess Struan poderia confirmar, ou Gordon Chen... se concordassem em violar seu juramento... e se quisessem fazê-lo.
Skye empertigou-se em sua cadeira.
— Esta manhã a Sra. Struan me perguntou se era verdadeira essa história que seu marido lhe contara. Por sorte, pude confirmar alguns detalhes.
— E sabe que é verdade por causa disso?
— Conheci por acaso um dos tripulantes, menos suscetível ao juramento de sigilo do que os outros. Um marujo, Hennery Fairchild... não tenho a menor idéia se continua vivo ou se já morreu... mas assim que cheguei a Hong Kong, Sir William, tratei de descobrir tudo o que pudesse sobre a Casa Nobre, os Brocks, Quance, sobre a fundação de Hong Kong, e... as várias corrupções que ocorreram em altos postos.
Sir William balançou a cabeça, irritado, achando o mau hálito e os dentes podres do pequeno advogado mais repulsivos do que o habitual, a par de alguns dos sórdidos escândalos que haviam sido mantidos longe do conhecimento público, antes de sua vinda para a colônia.
— Tudo isso não passa de boato.
— Não teria muita influência num tribunal, Sir William, mas é verdade.
O que fazer?, pensou Sir William. Tenho de fazer a coisa certa. O julgamento de Páris? Não, tudo isso é apenas um tufão numa taça de vinho.
— Muito bem, madame, vamos respeitar os desejos dele. Jamie, envie o corpo imediatamente para Hong Kong, onde será sepultado no mar.
Ali chegando, pensou ele, Tess Struan pode cuidar do problema e se engalfinhar com Angelique Struan, que não vou mais me envolver. O que deu em Angelique? Nunca vi uma mudança tão grande!
— Posso compreender sua aversão ao Prancing Cloud. Providenciaremos a viagem no navio de correspondência.
— Obrigada, Sir William, mas não será assim — disse Angelique, sempre calma. — Meu marido não será enviado no gelo para Hong Kong, como uma carcaça. De jeito nenhum.
— Por Deus, madame, se eu ordenar, assim será feito.
— Tem razão, se ordenar. Mas, Sir William... — Ela olhou para Skye. — Qual é a situação legal?
— Legalmente, os desejos do marido, apoiados pela viúva, teriam precedência.
— Antes de eu responder a isso, onde há alguma prova? Não existe nenhuma. Quanto à precedência... sobre quem? — Sir William estava irritado agora. — Sobre a Sra. Struan, Tess Struan, é isso o que está querendo dizer? Devemos ignorar qualquer consideração com ela?
Skye fez menção de responder, mas Angelique gesticulou para que ele ficasse calado, e disse:
— Claro que não. Se o Prancing Cloud zarpar agora. Uma viagem rápida até Hong Kong dura dez dias, com outros dez para voltar, o tempo bom. Dr. Hoag, há tempo para o seu... o seu gelo preservar os restos mortais de meu marido de maneira apropriada durante esse período, para que sua mãe venha até aqui... se ela desejar vir?
Hoag pensava em Dirk Struan e sua lendária May-may, sua amada beldade, sobre o casamento inter-racial, como ele próprio desejava não ter matado sua esposa, o grande amor de sua vida.
Muitas vezes sentira que fora o culpado. Seu amor por ela deveria ter sido bastante grande para evitar o casamento, para não tirá-la de sua segura e serena vida indiana, levando-a para o desastre, que sabia ser o fado de ambos. E fora mesmo.
Mais uma vez, seu futuro se encontra na balança, Hoag, meu velho. Vai ajudar esta moça ou Tess Struan? Não se esqueça de que foi culpa sua que o maldito assassino sobrevivesse para assustá-la de novo, quase até a morte.
— Em termos médicos, é possível, mas aconselho contra — disse ele, lançando rápido olhar para Babcott, advertindo-o a não interferir. — A decisão, Sir William, é se ele deve ser enviado para Hong Kong ou não. Se não, acho que deve ser sepultado como... como sua esposa deseja.
Sir William hesitou, irritado porque sua solução não fora aceita.
— Angelique, porque se opõe a ir com o corpo para Hong Kong, se não no Prancing Cloud, então no navio de correspondência?
— Eu me oponho porque neste caso ele não será sepultado da maneira como deseja, como o avô... a mãe nunca admitiria a outra história, nem poderia. Sou a viúva e os desejos de meu marido são os meus desejos, com toda a força do meu coração.
Sir William não tinha certeza de sua base legal para concordar ou discordar e sentia a maior preocupação por Tess Struan, agora no comando de fato da Casa Nobre, por sua oposição por escrito ao casamento, e o que ela faria se o corpo não fosse enviado a Hong Kong.
Ficará furiosa, com toda certeza, pensou ele, sentindo um calafrio. É óbvio que ela haveria de querer que o sepultamento fosse lá, deve ser lá, no mar ou não, qualquer que seja a verdade ou inverdade da história, e cinqüenta libras contra um penny furado como ela tentará de qualquer maneira anular o casamento, com uma boa chance de conseguir. Ou seja, minha pobre dama, você se encontra numa situação crítica, quer goste quer não.
— Receio que esteja convertendo um acontecimento já trágico numa coisa ainda mais complicada do que precisa ser. O pobre coitado pode ser sepultado no mar tanto em Hong Kong quanto aqui. Assim, a melhor coisa...
— Perdoe-me por interrompê-lo, Sir William — disse Skye, para depois acrescentar, como faria um brilhante procurador da rainha —, mas a menos que esteja formalmente contestando a legalidade do casamento de minha cliente, ela possui certos direitos. Sendo assim, devo lhe pedir que aprove que os desejos de seu falecido marido e os dela prevaleçam nesta questão, e permita que ele seja sepultado aqui.
Logo em seguida, com a mesma eloquência de um procurador da rainha concluindo sua peroração, ele arrematou:
— Malcolm Struan era nosso, de Iocoama, tanto quanto deles. Sua tragédia começou aqui, e também deve terminar aqui.
Apesar de sua determinação, Angelique sentiu que as lágrimas começavam a escorrer. Mas não se permitiu qualquer som de choro.
47
Por uma hora depois que Sir William e os outros se retiraram, Skye e jamie argumentaram. Angelique apenas escutava. Nada do que dissessem faria qualquer diferença. Ela perdera. Depois do apelo veemente de Skye, Sir William proclamara:
— Lamento, mas nada do que ouvi aqui esta tarde pôde me fazer mudar de idéia. O corpo deve voltar a Hong Kong, onde será sepultado, no Prancing Cloud ou no navio de correspondência. Como preferir, madame. A reunião está encerrada.
Skye disse depois, amargurado:
— Se estivéssemos em Hong Kong, eu poderia entrar com um recurso judicial, por uma dúzia de motivos. Mas aqui Sir William é o tribunal, juiz e júri. Não há tempo suficiente para ir até lá e voltar, o que quer que resolvamos.
— Então não há mais nada que possamos fazer. — Jamie estava sombrio, abalado pela história que ela contara. — Tem de aceitar, Angelique. Não podemos fazer mais nada.
— Não posso ir para Hong Kong... e devo estar presente no funeral.
— Concordo — murmurou Skye, acenando com a cabeça.
— Por quê? — indagou Jamie. — O que a impede de ir?
— Tess Struan.
— O que ela pode fazer? Não pode impedi-la de comparecer ao funeral e não pode anular o casamento. O editorial desta tarde de Nettlesmith diz que é perfeitamente legal, embora os dois sejam menores. Siga com o navio de correspondência.
— Não, Jamie, sinto muito. O Sr. Skye já disse que o editorial é apenas uma opinião. Sei que Tess Struan não vai sepultá-lo no mar, como ele queria, tenho certeza. E vai me atacar por todos os meios que puder. Tome aqui, leia as cartas que ela escreveu para Malcolm.
Os dois ficaram impressionados com a intensidade do rancor. Skye comentou, contrafeito:
— É uma pena que não haja nada que pudéssemos levar aos tribunais. Ela alegaria que eram cartas particulares, de mãe para filho, alertando-o desesperada contra o casamento, como é seu direito, até proibindo-o... como é seu direito. E as ameaças contra você, como uma pessoa, Sra. Struan, não nos proporcionam uma base para processá-la.
— Isso não é justo — disse Angelique.
— Heavenly, o que me diz de “se essa mulher algum dia puser os pés em Hong Kong, eu providenciarei...” não é alguma coisa?
Não querendo magoar Angelique ainda mais, Jamie não leu tudo o que Tess Struan escrevera: ...providenciarei para que todas as pessoas decentes aqui conheçam sua história, de seu pai, seu tio, e que a tia era uma atriz numa companhia itinerante, de artistas, ciganos e saltimbancos, e sobre suas finanças pessoais.
— Não me envergonho do fato de que minha mãe era atriz — disse ela incisiva —, embora a maioria dos ingleses as considere rameiras. Ela não era, nunca foi. E a companhia não era de saltimbancos. Não sou responsável pelos pecados de meu pai... fiquei na miséria, ele roubou também todo o meu dinheiro não apenas o de outras pessoas.
— Sei disso. — Jamie se arrependeu de ter mencionado a carta. — Heavenly, pode obter alguma prova do sepultamento de Dirk com May-may?
— Claro, do compradore Chen e da própria Tess. Mas nenhum dos dois daria um depoimento voluntário, nem admitiria qualquer coisa, não é mesmo? Seríamos escarnecidos e não conseguiríamos uma ordem judicial para abrir a cripta da família.
Skye tossiu uma vez e depois outra.
— A Sra. Angelique Struan deve seguir com os restos mortais do marido: se não o fizer, vai prejudicar bastante sua posição, tanto em termos legais quanto públicos. Mas ir para Hong Kong? É perigoso.
Ele pedira a Babcott e Hoag que abrandassem a redação do atestado de óbito, mas fora informado, como já esperava, que não seria possível.
— Em minha opinião abalizada, a Sra. Angelique está certa ao não assumir o risco no momento, Jamie. Preocupo-me que ela se torne mais indefesa em Hong Kong do que aqui.
— Você iria também, e poderia proporcionar qualquer defesa necessária.
— É possível, mas o escândalo seria inevitável, e quero evitar isso a qualquer custo, para o bem de todos. Inclusive de Tess Struan. Ela não é tão ruim assim, se considerar sua posição do ponto de vista de uma mãe. Minha opinião abalizada e de que seria inevitável o mau cheiro... como evitá-lo ou atenuá-lo, essa é a questão.
— Talvez possa ser contido — disse Jamie. — Tess não é uma ogra, sempre foi justa, à sua maneira.
— Não será justa agora, não comigo — interveio Angelique. — Posso compreendê-la. Apenas uma mulher pode realmente compreender. Ela vai acreditar que roubei seu filho mais velho e o matei. Malcolm alertou-me contra ela.
— Para contê-la, precisamos de tempo — disse Skye. — Precisamos tempo para negociar e não haverá o suficiente antes de um sepultamento.
Quando os dois a deixaram, nada fora resolvido.
Não importa, pensou Angelique. Sepultarei meu marido como ele deseja, herdarei seus bens materiais, se há algum, vencerei Tess Struan. E serei vingada.
As cartas haviam-na magoado, mas não tanto quanto esperava. Suas lágrimas não eram lágrimas como antes. Não a abalaram como antes. E não sou mais como antes. Não posso entender. Estou realmente muito estranha. Será que vai durar? Espero que sim. Ah, Santa Mãe, como fui estúpida!
Pela janela, ela constatou que o dia logo viraria noite, avistou na baía as luzes dos navios, a bombordo e boreste, no alto dos mastros, piscando com o balanço das ondas. No braseiro, os carvões se ajustaram ruidosamente, as chamas se elevaram por um instante, atraindo sua atenção de volta ao problema. O que fazer?
— Miss?
Ah Soh entrou na sala.
— Tai-tai, Ah Soh! Você é surda?
Malcolm lhe explicara o que significava tai-tai e, em sua última noite, obrigara Ah Tok, Ah Soh e Chen a tratarem-na assim, em sua presença... e Skye também a lembrara de fazer os criados usarem o termo.
— Miss, quer que eu arrume as coisas?
— Tai-tai! Você é surda?
— Quer que eu arrume as coisas... tai-tai?
— Não. Amanhã, se der.
— Como, miss?
Angelique suspirou.
— Tai-tai!
— Miss tai-tai?
— Saia!
— Homem da medicina quer falar.
Ela já ia dizer “saia!” de novo, mas mudou de idéia.
— Que homem da medicina?
— O sapo, miss tai-tai.
Hoag. É verdade, ele parece um sapo, pensou Angelique, e se surpreendeu ao descobrir que estava sorrindo.
— Mande ele entrar.
Quando Hoag entrou, ela disse:
— Boa noite, doutor. Como tem passado? Estou bem agora, graças à sua ajuda.
— Está mesmo? — Ele tinha os olhos injetados de fadiga, o rosto pálido e amassado, como sempre, mas irradiava uma simpatia que era fascinante. Fitou-a nos olhos. — Tem razão, dá para perceber. Mas seja cautelosa, Angelique, não se exija demais, vá com calma. Use o bom senso.
— Prometo que farei isso.
— Foi maravilhosa esta tarde.
— Mas perdi.
— É verdade. George Babcott e eu lamentamos muito por isso, ficamos comovidos com a sua história, e o apelo de Heavenly. George vai jantar com Wee Willie e tentará de novo, mas eu... nós não temos muita esperança.
Ele a viu dar de ombros, apenas um gesto mínimo, e continuar a observá-lo, os olhos enormes na palidez de seu rosto.
— Precisa de alguma coisa? Para dormir ou se acalmar... não, posso ver que não precisa de nenhum calmante. Fico contente por isso, muito contente. Queria conversar um pouco com você... importa-se?
— Claro que não. Sente-se, por favor. Como foi a audiência? Ah, tem uísque e outras bebidas ali, se quiser.
— Obrigado.
No aparador, havia copos Waterford e garrafas de cristal, alinhadas como soldados, em descansos de prata georgiana, com rótulos também em prata pendurados no gargalo: Uísque, Conhaque, Xerez, Porto. Ele escolheu uísque, serviu-se de meio copo.
— A audiência transcorreu como se esperava, Edward Gornt foi absolvido de qualquer culpa e elogiado por sua bravura. O juiz sumariante, Skye, considerou que a morte de Greyforth foi acidental e Gornt perfeitamente correto ao tentar impedir o que poderia ter sido um assassinato brutal. Ficamos surpresos por ele ter usado palavras tão fortes, embora verdadeiras. — Hoag sentou na frente dela, ergueu o copo. — Saúde!
— Salut! Estou contente por Edward. Ele merece muitos louvores.
— E você também. Sua história me deixou profundamente comovido.
— E é verdadeira. Também não acredita em mim?
— Claro que acredito. E é sobre isso que queria conversar. E a compreendo muito bem.
Depois, com eloqüência, Hoag relatou sua própria história, o tempo que passara no exército indiano, como se apaixonara e casara, contra todas as convenções, o ostracismo imediato, terrível, o retorno à Inglaterra. E a situação não melhorara ali.
— Tornou-se até pior. Arjumand morreu, era esse seu nome, o mesmo da amada de Shah Jahan, que construiu o Taj Mahal. — Ele olhava para o fogo contando a história ao fogo também, vendo imagens de seu amor ali, os dois juntos, nos dias felizes antes do casamento. — Fiquei muito triste, mas ao mesmo tempo contente, por ela não sobreviver demais no ódio. Pegou uma gripe e morreu depressa, como uma gloriosa planta de estufa numa aragem gelada... e ela era isso, não pode imaginar como era refinada, assim como não posso acreditar que ela me amava... pois sei como sou feio. Eu a amava loucamente e a matei.
— Seu rosto muda quando fala sobre ela. Não a matou. Foi o destino. Você não foi culpado.
Essa palavra de novo, pensou Angelique.
— Fui, sim, ao casar com ela, levá-la para a Inglaterra. May-may morrido também, desamparada, solitária, desesperada de saudade de sua terra. Nem mesmo o grande Dirk Struan poderia resistir à opinião pública, se não se tivessem casado. Ambos tiveram sorte de morrer daquele jeito. Angelique observava-o, viu seus olhos úmidos.
— Malcolm teve sorte por ter morrido como morreu? Disse que ele estava muito sereno. Morreria de qualquer maneira?
— Receio que sim. Poderia ter morrido a qualquer dia, a qualquer hora. Vivia em tempo emprestado e acho que sabia disso. Isso a deixou arrepiada. — Por que ele não foi informado... por que não o avisou, a nós dois?
— Foi um ato de Deus... não sabíamos, não com certeza, como sabemos agora. Era impossível saber ou teríamos avisado.
— Não estou entendendo. Diga-me a verdade, por favor. Preciso compreender.
Hoag explicou, gentilmente:
— Suas entranhas, por baixo e ao redor do ferimento, se encontravam em pior situação do que imaginávamos. George não podia sondar muito em torno do ferimento, quando o levaram ao hospital, pois isso o teria matado na ocasião. A autópsia revelou que ele estava apodrecendo.
— A operação foi bem-feita?
— Foi, sim, um trabalho de primeira classe. A reparação realizada por George foi admirável, tão boa quanto qualquer outro poderia fazer — declarou ele e Angelique acreditou. — O problema é que não podemos substituir, apenas reparar, e havia bolsas de septice... o motivo de tanta dor, pobre coitado... e lesões graves, que o impediam de se empertigar.
Uma pausa e Hoag acrescentou, desolado:
— Ele estava no final de seu tempo emprestado. Mesmo assim, tenho certeza que você transformou seus últimos dias nos mais felizes que qualquer homem poderia desfrutar.
Um carvão caiu no braseiro. Os olhos de Angelique desviaram-se nessa direção. A chama se elevou, tremeu, extinguiu-se... como meu Malcolm, pobre coitado, pobre amor.
— Triste — murmurou ela para o fogo. — Muito triste.
Hoag a avaliava, avaliava a si mesmo, e à lembrança de Arjumand... que Angelique fizera renascer. Era fácil decidir agora, depois de partilhar Arjumand, Pesou ele. Nervoso, ele terminou o drinque.
— Posso?
— Claro. À vontade.
Hoag tornou a se servir, em quantidade menor.
— Mas eu queria realmente falar sobre o sepultamento. Ainda é possível fazer o que você e Malcolm queriam.
— Como?
Ele voltou a sentar diante de Angelique.
— Sepulte-o no mar, como o avô, como ele queria, como você quer. Posso ajudá-la.
— De que jeito?
Hoag enxugou o suor da testa.
— Procure Sir William, diga que se submete ao inevitável, por mais que deplore sua decisão, vai permitir que o corpo seja enviado para Hong Kong. Amanhã, nós, Babcott e eu, levaremos o caixão para bordo do Prancing Cloud, de Kanagawa, onde se encontra no momento. Você testemunha a partida do caixão oficialmente, alegando que não suportaria acompanhá-lo no Prancing Cloud, mas seguirá no dia seguinte, no navio de correspondência, quando zarpar para Hong Kong. Todos ficam satisfeitos.
— Mas o caixão segue vazio? — indagou Angelique, excitada.
Ele sacudiu a cabeça, a testa e as bochechas brilhando, à luz do fogo.
— Não. Haverá um corpo no caixão, mas não o dele. De um pescador coreano, que morreu em Kanagawa esta manhã, na clínica. Enquanto isso, o corpo de Malcolm fica em outro caixão, ainda em Kanagawa, secretamente. Se Jamie nos apoiar, poderia levar o cúter até lá amanhã, ao final da tarde. Sairemos para o mar, e se conseguirmos Tweet para oficiar a cerimônia, Malcolm poderá ser sepultado como você deseja. No dia seguinte, você embarca no navio de correspondência, sem que mais ninguém saiba... basta todos os envolvidos jurarem segredo.
— Há muitos “ses” — murmurou Angelique, o coração batendo forte.
— E outros ainda, nos quais ainda não pensei — disse Hoag, tornando a enxugar a testa, sentindo um aperto na garganta. — Foi apenas... A idéia me ocorreu há poucos minutos. Ainda não pensei em tudo, pode ser impossível, mas eu queria ajudar. Com ou sem George, posso fazer a primeira parte, trocar os corpos. Você tem de fazer o resto. Talvez eu possa ajudar, não sei. Não sou muito bom em guardar segredos. E temos de decidir agora, se... Eu teria de voltar a Kanagawa esta noite, enquanto George janta aqui. O que você acha?
Angelique levantou-se abruptamente, foi abraçá-lo, envolvendo-o com perfume e gratidão.
— Vamos tentar... e obrigada, muito obrigada.
— Queria me falar, madame? — disse Gornt.
— Queria, sim. Entre e sente-se, por favor.
Angelique sentava junto da janela grande do escritório do tai-pan, onde havia cadeiras de braços, uma mesa de carvalho e um aparador. Chen se encontrava de pé ali perto.
— Gostaria de dizer mais uma vez como lamento o que aconteceu. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, madame, basta pedir.
— Sei disso, e agradeço, Edward. E pode ajudar. Todos nós precisamos de amigos. Fico contente que a audiência tenha transcorrido sem problemas... deveria ganhar uma medalha. Foi muita bravura sua. Quero lhe agradecer por Jamie, pois não sei o que faria sem ele.
Um bom fogo ardia na lareira, as delicadas cortinas de seda tailandesa excluíam a noite. Chen encaminhou-se para o balde de gelo, onde havia uma garrafa aberta.
— Meu marido disse que gosta de champanhe.
— É verdade, madame, gosto mesmo.
Gornt pensava na audiência e no veredicto que encerrava para sempre o perigoso capítulo de Norbert. O juiz sumariante, Heavenly Skye, fora mesmo uma dádiva celestial, correspondendo a seu nome. Angelique gesticulou para que Chen servisse os dois copos altos.
— Doh jeh — obrigado, disse Gornt, aceitando seu copo.
Chen fitou-o boquiaberto, como se não tivesse entendido, desprezando ainda mais aquele impertinente demônio estrangeiro por ousar falar um dialeto civilizado.
— Espere lá fora, Chen—ordenou Angelique. — Se quiser chamá-lo, usarei o sino.
Ela indicou o sino de prata na mesinha lateral.
— Está bem, miss.
Angelique lançou-lhe um olhar furioso.
— Tai-tai!
— Pois não, miss tai-tai.
Chen retirou-se, satisfeito com as pequenas vitórias. Os criados haviam solicitado uma reunião, que ele presidira. Ah Tok, a mente divagando, queria que usassem um bruxo para pôr o mau olhado naquela “possuidora de um canal da morte”, mas ele dissera:
— Não, não podemos... e não foi isso. A morte do amo não foi culpa dela. O amo casou com ela, e nos obrigou a chamá-la de tai-tai, na sua presença. Nosso acordo é chamá-la primeiro de “miss “ e depois de “miss tai-tai”, até que a questão seja decidida pelo ilustre Chen, para quem meu relatório urgente e detalhado já foi despachado, e se encontra a bordo do Prancing Cloud.
Na sala, Angelique disse:
— Salut, Edward.
— À sua saúde, madame.
Ela tomou um gole mínimo, ele bebeu com satisfação.
— Champanhe é uma fonte de vida para mim — comentou Gornt, desejando mesmo instante não ter dito isso. — Nunca tive condições de beber, a não ser em ocasiões festivas.
— Também gosto de champanhe, só que não esta noite. Mas em breve você terá condições de tomar todo champanhe que quiser, não é mesmo? Meu marido me contou que seus negócios vão melhorar, e muito, e que tinha muitos segredos a partilhar com ele... em benefício mútuo.
— Ele contou? — Gornt foi apanhado desprevenido, pois combinara com Malcolm Struan que não revelariam nada a ninguém. Norbert? Norbert não contava, pois era parte do plano confundir o inimigo, e Norbert sempre fora inimigo. — Segredos, madame?
— Ele me disse que o apreciava e confiava em você, assim como eu, que era um homem capaz de guardar segredos, além de conhecê-los, e que compreendia o valor de velhos amigos... no sentido chinês.
— Essa parte é verdade. Eu também o apreciava, e confiava nele.
— Jamie disse que você reservou passagem no Prancing Cloud.
— É verdade, madame.
— Meu marido contou que você lhe daria informações especiais sobre a maneira de arruinar os Brocks. Falaria tudo ontem de manhã, depois... foi apenas ontem? Parece que tudo aconteceu há uma vida inteira... e para Malcolm foi mesmo, pobre Malcolm.
Gornt suspirou, triste por ela.
— Tem razão. Posso dizer que mudou, madame? Está diferente. Sem querer ser impertinente, ou insensível, permita-me dizer que a mudança lhe foi bastante favorável.
— Eu preferia dez mil vezes ter meu marido vivo e não ter mudado. — A franqueza a surpreendeu, embora sempre achasse fácil conversar com Gomt, como também acontecia com Malcolm. — Ainda não tenho certeza sobre a mudança, se me agrada. Crescer tão depressa é... não sei a palavra certa... angustiante, assustador.
Ela se levantou, serviu mais champanhe no copo de Gornt, pôs o balde com o champanhe na mesa, mais perto dele.
— Obrigado — murmurou Gornt, mais consciente da presença de Angelique do que nunca.
— Decidi não viajar para Hong Kong no clíper.
— Já ouvi um rumor, madame, que não queria ir a bordo daquele navio de novo... nem os restos mortais de seu marido... e seguiria pelo navio de correspondência. — Assim que ouvira isso, por precaução, ele procurara o agente para reservar passagem também no navio de correspondência, mas todos os camarotes já estavam ocupados. Contrariado, tentara falar com Jamie, mas não o encontrara. — Posso compreender que não queira embarcar nunca mais no Cloud.
As mãos de Angelique repousavam tranquilas em seu colo, a voz era suave e controlada.
— Esses segredos que contaria a meu marido... vai revelá-los a mim?
Gornt exibiu seu lindo sorriso, fascinado por ela, sacudiu a cabeça.
— Lamento, madame, mas não... mesmo que tivesse algum. Ela balançou a cabeça, sem se mostrar ofendida.
— Nem esperava que me contasse. Tenho certeza que nunca os entenderia, se me dissesse tudo, e também não teria condições de aproveitá-los, não é mesno?
Gornt sorriu e ela acrescentou:
— Mas Tess Struan pode aproveitá-los, não é?
— Como, madame?
— Meu marido disse que se alguma coisa lhe acontecesse, você partiria no mesmo instante para Hong Kong, a fim de negociar diretamente com sua mãe, e fazer com Tess Struan o mesmo acordo que tinha com ele. E acrescentou que agia assim porque odiava os Brocks... não me explicou por que os odiava. — Angelique estendeu a mão, ficou mexendo na haste de seu copo. — Tess Struan com certeza poderia aproveitar as informações, se o que você alega for verdade, não é? Isso foi na terça-feira, antes de casarmos.
Gornt tornou a avaliá-la, com uma expressão satisfeita em seu rosto bonito.
— Posso compreender por que meu marido gostava de você, Edward, por que seria um inimigo perigoso e um amigo ainda mais perigoso.
Isso o fez rir, e a tensão entre os dois se evaporou.
— Não para você, madame, nunca, eu juro. Nunca mesmo.
— Veremos. Temos muitas pontes a cruzar, você e eu, mas, por Deus, como diria meu marido, estou adotando suas esperanças e sonhos como meus: que você pode ajudar a Struan a destruir os Brocks, de uma vez por todas. Talvez seus sonhos e esperanças também.
— Meus?
Angelique abriu sua bolsa e tirou o papel que encontrara no compartimento secreto do cofre, levantou-o contra a luz e leu em voz alta:
— “Isto é o meu solene acordo com o Sr. Edward Gornt, cavalheiro, da Rothwell, em Xangai: se as informações que ele fornecer ajudarem a Struan a destruir a Brock and Sons, levando-os à ruína nos próximos seis meses, eu garanto, em nome da Struan, que ele receberá, da massa falida, os 50% de participação da Brock na Rothwell, de graça e sem qualquer condição, que o ajudaremos de boa fé, da melhor forma que pudermos, junto ao Victoria Bank, a fim de que levante o empréstimo necessário para a aquisição dos outros 50%, pertencentes a Jefferson Cooper, que a partir desta data, pelo prazo de vinte anos, a Struan lhe concede, ou a qualquer companhia que ele controlar pessoalmente, a posição de nação favorecida, em quaisquer operações comerciais de acordo mútuo.”
Ela estendeu o papel para que Gornt visse, mas não o entregou.
— A data é de anteontem, Edward, está assinado, mas sem testemunhas. Gornt não fizera qualquer menção de pegar o documento. Sua visão era ótima.
Enquanto Angelique lia, já reconhecera a assinatura. Sem as testemunhas, não tem valor real, pensou ele, sua mente se deslocando apressada de um plano para outro, de uma indagação a outra, para as respostas.
— E daí?
— Eu poderia testemunhar a assinatura de meu marido. Sua mente parou de girar, com um solavanco.
— De um modo geral, o testemunho da esposa à assinatura do marido não é válido.
— Digamos que eu testemunhasse no mesmo dia... antes do casamento.
De onde será que ela está tirando tudo isso?, especulou Gornt, frenético. De Jamie? De Heavenly? Ela até parece um dos novos rolos compressores de Stevenson.
— Mesmo assim, mesmo que o documento tivesse uma testemunha, não seria compulsório para a Casa Nobre.
— É verdade, mas teria muito peso com Tess Struan... seria um acordo com seu filho. Não serviria para confirmar que você trabalhava com meu marido clandestinamente, para realizar a maior ambição da vida de Tess Struan?
— É bem possível, madame. — Ele hesitou. — Jamie aprova o documento?
— Ele não sabe nada a respeito. Ninguém mais sabe, só eu.
Angelique acreditava nisso. Por que outro motivo Malcolm o esconderia?
Pensativo, Gornt serviu-se de mais champanhe... e notou que ela não bebera mais nada.
— Imagino que um favor assim exigiria outro em retribuição, madame.
— Gostaria que viajasse no Prancing Cloud, a toda velocidade, como planejava, para se encontrar com Tess Struan. E entregasse uma carta minha.
Os olhos de Gornt se arregalaram em incredulidade.
— Isso é tudo?
— Não exatamente. Quando chegar a Hong Kong... o clíper estará lá muito antes do navio de correspondência... deve procurá-la antes que ela tome conhecimento da trágica notícia da morte de meu marido por intermédio de qualquer outra pessoa. É essencial que você a alcance primeiro, diga que traz uma terrível notícia, mas também informações secretas, informações vitais que garantirão a ruína dos Brocks para sempre, que logo os porão para fora dos negócios para sempre. — Angelique respirou fundo. — É o que vai acontecer, não é?
— É, sim — respondeu ele, pois não havia mais necessidade de negar.
— Depois, diga a ela que os Brocks planejaram assassinar Malcolm, usando Norbert Greyforth. Terceiro, que...
— Eles o quê?
— Não é verdade? Isso não era parte do plano de Tyler Brock? Ou de Morgan? Jamie pensa assim... e seria capaz de jurar. O Sr. Skye me falou sobre o duelo, o resto arranquei de Jamie... por que haveria um duelo. Norbert não era apenas um peão para o assassinato?
— É possível — murmurou Gornt, impressionado. — Mais do que isso, bem provável. E depois?
— Depois... — A voz de Angelique tornou-se mais clara, e estranhamente mais incisiva. — Por favor, diga a ela que é por minha causa que está levando informações para destruírem os Brocks... deve realçar isso.
— Por sua causa?
— Por minha causa. Enfatize isso. É importante para mim, não e pedir demais, e você conseguirá o que quer, de qualquer maneira.
— Tem certeza?
— Tenho. Diga a ela que ia esquecer esse contrato escrito com seu filho achando que não tinha mais valor. Mas como eu pedi, até suplique que a procurasse, no lugar do filho, você decidiu seguir o mais depressa possível para Hong Kong. — Angelique inclinou-se para a frente. — As informações exigem urna ação rápida, não é mesmo?
— É, sim.
— Pois enfatize isso. Mas, acima de tudo, ressalte que fui eu quem o persuadiu a ir procurá-la, que minhas súplicas o convenceram a lhe entregar as informações para destruir os inimigos de Malcolm e dela... que eu lhe assegurei que ela cumpriria o contrato, ou lhe ofereceria outro equivalente. E é o que Tess Struan fará, posso garantir.
— Com sua assinatura?
— É a primeira coisa que ela vai notar, por isso deve mencioná-la antes. Diga que Malcolm me pediu para ser testemunha de sua assinatura, dizendo apenas que era um contrato de negócios entre vocês dois, e que eu assinei na sua presença, sem pensar... na segunda-feira, antes da festa. Por último, diga que tem uma carta urgente minha e entregue-a. — Angelique levantou seu copo. — Se ela ler na sua frente... o que não deve acontecer... mas se ela ler, eu gostaria de saber sua reação.
Angelique tomou agora um segundo gole de champanhe, recostou-se, esperando, os olhos fixados nos dele. Seu rosto nada deixava transparecer.
— O que tem na carta?
— Poderá ler, se assim desejar, antes de eu lacrá-la. — Uma pausa, e ela acrescentou, o tom suave, sem maldade: — Vai lhe poupar o trabalho de abri-la.
A mente de Gornt ponderava sobre o enigma que era aquela mulher à sua frente.
— E a notícia da morte de Malcolm... do casamento e morte... como devo transmitir isso e o resto?
— Não sei, Edward. Você saberá como fazê-lo.
Ele soltou um grunhido, atônito com a desfaçatez, não, não desfaçatez, era mais astúcia. Não restava dúvida de que o objeti vo de Angelique era se insinuar no favor de Tess, superando a hostilidade atual, e prevenindo qualquer ação judicial, cível ou criminal, que uma mãe como Tess Struan, dilacerada pela agonia de sua perda, poderia desencadear contra ela... e as apostas no momento eram de cinco contra um como Tess o faria, e de dois contra um como ganharia.
Mas isso não importava, pois aquela estratégia poderia levar Angelique ao círculo dos vencedores... poderia. Com cuidado, não de todo como Angelique sugeria, mas com muito mais sutileza, ele poderia fazer o que ela propunha sem prejudicar sua própria posição, e fecharia o acordo com Tess Struan, que com certeza lhe daria tudo o que queria... depois que o choque pela morte do filho diminuísse e pudesse avaliar a enormidade do que era oferecido.
É melhor para mim livrar Angelique da ira de Tess Struan, muito melhor. E o que devo pedir em troca? Sua assinatura, é claro, mas o que mais? O que mais desejo dela? Há vários tipos de manobras que eu poderia...
Angelique estendia a mão cara a pena. Sua expressão era solene quando assinou como testemunha, pondo a data de anteontem. Sem dizer nada, ela enxugou a tinta, soprou o excesso de talco e estendeu o documento, ainda com os olhos abaixados.
— Independente do que decida, isto é seu agora, de graça — declarou ela apostando no apregoado senso de honra de Gornt.—Quanto ao resto, se me ajudar Edward...
Ela fez uma pausa, levantou os olhos agora, e alguma coisa no íntimo de Gornt se agitou, cheio de expectativa.
— ...teria também minha gratidão eterna.
Na casa do shoya, Jamie sentava sobre o tatame, de pernas cruzadas, sem sapatos, Hiraga à sua frente. O shoya sentava à cabeceira da mesa, onde havia saquê e chá.
Durante uma hora ou mais, Jamie respondera e fizera perguntas, Hiraga traduzindo, hesitando nas palavras estranhas, pedindo explicações adicionais para compreender com clareza. Jamie sentia-se cansado, não por causa do tempo ali consumido, uma trégua fascinante e bem-vinda em todos os seus outros problemas, mas porque parecia não haver solução para eles. Ficara transtornado com a recusa de Sir William em mudar de idéia sobre o sepultamento, embora compreendesse muito bem... ele faria a mesma coisa se estivesse na posição de Sir William. Pobre Angelique, pobre Malcolm, pobre Casa Nobre. Até mesmo pobre Tess.
Algo tem de ceder. Não será Wee Willie. Só pode ser Angelique... não há nada que ela ou qualquer outro possa fazer. Acho que desta vez ela vai quebrar.
Com toda a simplicidade possível, ele expusera sua idéia para um empreendimento conjunto, o shoya e seus contatos fornecendo as mercadorias em consignação que eles combinassem, Jamie entrando com o know-how europeu, um prazo de seis meses para pagamento, o que daria tempo para que os produtos fossem vendidos e o dinheiro voltasse, ou fosse reinvestido em artigos de produção em massa, que aconselhariam o empreendimento conjunto a importar. Isso levou a uma discussão sobre quantidades e depois a métodos de produção em massa que poderiam enriquecer a todos.
— Shoya pergunta: Quanto custa sua máquina de massu produk’shun?
— Depende do que as máquinas vão produzir — respondeu Jamie.
— Jami-sama, ele pedir, por favor, dizer que produtos fazer para vender na Inglaterra? Não agora, em três dias, por favor. Se shoya concordar, talvez fazer sociedade anônima e trazer máquina de massu produk’shun para Nipão.
Jamie sorriu.
— A produção em massa é inicialmente dispendiosa para se instalar, com máquinas e a fábrica. Não é como o empreendimento conjunto que sugeri. Não tenho a menor possibilidade de levantar tanto dinheiro.
— Jami-sama, não se preocupar, não se preocupar com dinheiro. Gyokoyama pode comprar Iedo, se quiser. — Hiraga sorriu, sombrio, e Jamie piscou, aturdido — Shoya agradecer e eu agradecer. Por favor, em três dias, dizer o que fazer e preço. Eu levar em casa.
— Não precisa, obrigado.
Hiraga fez uma reverência, o shoya fez uma reverência, Jamie retribuiu e saiu para o ar noturno.
— Chá, Sire? — indagou o shoya.
Hiraga recusou com a cabeça, preparando-se para sair também, precisando de um banho e massagem, mas satisfeito consigo mesmo, tudo consumado agora, exceto a cobrança dos supostos honorários de três koku pedidos por Jami Mukfey. O shoya pediu chá fresco e disse, depois que a criada se retirou:
— Tenho algumas notícias, que chegaram por pombo-correio, Otami-sama, sobre lorde Yoshi e sobre os shishi. Talvez queira ouvi-las.
— Pare com esse jogo! Claro que quero ouvir. — Agora que se encontrava a sós com o shoya, Hiraga tornou-se autoritário e samurai, sem sequer percebê-lo. — Quais são as notícias?
— Houve outro atentado contra lorde Yoshi.
— Ele morreu? — indagou Hiraga, esperançoso.
— Não, Otami-sama. Tome aqui. Leia você mesmo, por favor.
Com uma subserviência simulada, o shoya estendeu um papel, o mesmo que mostrara antes a Raiko e Meikin: Uma tentativa de assassinato contra lorde Yoshi, ao amanhecer, na aldeia Hamamatsu, fracassou. A assassina shishi solitária foi morta por ele. A dama Koiko também morreu na luta. Comunique nossa grande tristeza à casa da Glicínia. Mais informações assim que for possível. Hiraga ficou atordoado ao ler.
— Quando aconteceu?
— Há cinco dias, Otami-sama.
— E não teve mais notícias?
— Ainda não.
Lendo a mensagem, sua dor de cabeça se tornara ainda maior, os pensamentos confusos. Koiko morta, outra shishi morta! Quem? Se ela morreu, o que aconteceu com Sumomo?
— Já comunicou à casa da Glicínia?
— Já, sim, Otami-sama.
— O que Meikin disse?
Ficou transtornada, Otami-sama, como não podia deixar de ser.
— O que mais sabe, shoya?
— Já disse o que sei que pode afetá-lo e aos shishi.
— O que sabe sobre Katsumata e Takeda?
— A notícia, Sire, é de que eles ainda viajam para cá, assim como, supostamente, lorde Yoshi.
— Quando ele chega de volta? Mudou seus planos agora?
A mente de Hiraga era um turbilhão. Se Koiko morrera na luta, teria sido por acidente ou Yoshi descobrira que ela estendia seus tentáculos até nós, como Meikin?
— Não sei. Talvez em oito dias, Otami-sama.
O shoya percebeu a preocupação de Hiraga, e achou que era normal, pois era óbvio que ele corria um grande perigo... mas como é valioso! Concordo que ele é um tesouro nacional ou deveria ser. Empreendimento conjunto... uma idéia caída do céu! Meu filho trabalhará com esse gai-jin Jami, a partir de amanhã, para aprender as coisas dos bárbaros, depois não precisarei de Hiraga, que nada representa, a não ser problemas para mim, diretamente. Por mais que eu lamente, ele é um homem condenado. Como todos nós, se não tomarmos cuidado.
— Otami-sama, há muitos movimentos de tropas ao nosso redor.
— Hem? Que tipo de movimentos?
— O Bakufu reforçou as três estações de posta mais próximas de nós. E há ainda quinhentos samurais vigiando a estrada, ao norte e ao sul daqui. — Uma gota de suor escorreu pela face do shoya. — Estamos numa emboscada do tairo Anjo?
Hiraga praguejou; também podia sentir a crescente pressão.
— O que soube, shoya? Ele está planejando nos atacar aqui?
— Eu bem que gostaria de saber, Otami-sama. Talvez falar a Taira sobre as tropas possa ajudar a descobrir qual é o plano dos gai-jin.
— Eles vão bombardear Iedo, qualquer idiota sabe disso. — Hiraga sentiu intensa angústia ao pensamento da inevitável vitória dos gai-jin, embora isso fosse servir a sonno-joi mais do que qualquer outra coisa. — Não há nada que o tairo possa fazer para evitar...
Seu coração saltou uma batida, ele parou de falar.
— Exceto o quê, Otami-sama?
— Exceto a resposta da história, a solução habitual: um ataque de surpresa, súbito e brutal, para destruir a base da esquadra.
Hiraga espantou-se por ter partilhado seu pensamento tão francamente com uma pessoa inferior, embora o shoya fosse inteligente, um aliado valioso, e muito em breve um parceiro nos negócios.
E ele pensou, em meio às vibrações da cabeça latejando, há muita coisa que não compreendo, o mundo está virando pelo avesso, tudo é diferente, eu me tornei diferente, não sou mais samurai, não totalmente samurai. É culpa desses repulsivos gai-jin, com suas idéias sórdidas, gananciosas... e tentadoras. Eles devem ser expulsos — sonno-joi, sonno-joi, sonno-joi — mas ainda não. Antes, massu produk’shun e, primeiro, fabricar fuzis.
— Shoya, mande espiões espreitarem, caso seja esse o plano de Anjo.
— Espiões, Otami-sama?
— Já é tempo de parar com os jogos, shoya. Está me entendendo? Nada mais de jogos!
— Obedeço em tudo, Otami-sama. Como sempre, como...
— Saiu-se muito bem esta noite, shoya. Assim que tiver mais notícias sobre Yoshi ou os shishi, mande me avisar, por favor.
Hiraga acrescentou o “por favor” como uma grande concessão.
— Tão depressa quanto uma ave marinha pescadora, Sire.
— Boa noite então... Ah, desculpe, já ia me esquecendo dos honorários do gai-jin. Ele me pediu para lembrar-lhe.
O shoya sentiu o estômago embrulhado. Tirou da manga uma pequena bolsa... teria sido uma grosseria a entrega direta a Jami-sama.
— Aqui tem o equivalente em oban de ouro a um koku e meio, Otami-sama, O resto dentro de dez dias.
Hiraga deu de ombros, guardou a bolsa em sua manga, como se fosse uma coisa irrelevante, mas se espantou com o peso e alegria que lhe proporcionou.
— Avisarei a ele e o trarei aqui dentro de três dias.
— Obrigado, Otami-sama. Esses movimentos de tropas me deixam muito preocupado. A guerra é iminente. Meus superiores dizem que se pudessem ter um aviso antecipado sobre os planos dos gai-jin... ficariam profundamente agradecidos por qualquer ajuda. Talvez o seu Taira-sama...
Esperançoso, o shoya deixou o nome ressoando no ar. Ele recebera hoje outra mensagem do escritório central em Osaca, mais urgente do que a anterior. Como se eu não soubesse ler?, pensou o shoya, irritado, como se fosse negligente e desleal. Faço tudo o que posso. O problema é daquelas mama-sans desgraçadas. Dois dias, e ainda não tive nenhuma notícia delas!
Antes de deixar Raiko e Meikin, ele ressaltara a necessidade urgente de saber tudo o que elas sabiam, ou pudessem descobrir, o mais depressa possível. Sua raiva começou a aumentar, não apenas porque as duas mulheres haviam fingido que não sabiam de nada, por mais que as adulasse, muito embora tivesse certeza de que elas estavam a par de alguma coisa, mas também porque seus preciosos oban de ouro se encontravam na manga daquele ganancioso samurai, para pagamento a um ganancioso gai-jin, mesmo que os honorários fossem bem merecidos. E onde vão terminar todos os meus adoráveis oban? Com toda certeza, na ravina de ouro de alguma prostituta.
— Muito obrigado, Otami-sama — disse o shoya, untuoso, enquanto Hiraga se retirava.
Ele manteve a cabeça no tatame para esconder o rilhar dos poucos dentes quebrados restantes, querendo humilhar Hiraga, fazê-lo suar, contando tudo, sem o menor remorso: Ah, sinto muito, sua falecida prostituta Koiko estava implicada na conspiração, assim como sua assassina treinada e ex-futura esposa, Sumomo, que também teve a cabeça cortada, e sua partidária dos shishi, Meikin, mama-san dos homens mais importantes de Iedo — até mesmo líderes da Gyokoyama — não continuará neste mundo por muito mais tempo, pois presumimos que Yoshi também sabe de tudo a seu respeito.
E apesar de você ser o mais esperto entre todos os samurais que já conheci, também está condenado... e ainda assim meus ilustres superiores esperam que eu o trate como um tesouro nacional e o mantenha vivo. Oh ko!
Esta noite vou me embriagar, mas não antes de me dar os parabéns pela eminente formação da Ryoshi Joint-u Vem’shur Stoku Kompeni! Ah, uma idéia digna dos deuses!
Voltando para casa, Jamie McFay abriu a sobrecasaca, embora o ar da noite fosse frio. Sentia bastante calor. O conhecimento adquirido era substancial e sua concentração relegara todas as preocupações a segundo plano. Era tudo muito interessante, refletiu ele, mas nenhum daqueles dois tem a menor idéia dos custos iniciais da produção em massa. E, no entanto, a maneira como Nakama disse que a Gyokoyama podia comprar e vender Iedo, se assim quisesse, por um momento acreditei realmente nisso. O shoya entrará num empreendimento conjunto, uma joint venture, tenho certeza.
Seus passos eram rápidos e cumprimentava as pessoas por que passava na High Street. Subiu os degraus do prédio da Struan, entrando em seu domínio. É meu de novo, pensou, com orgulho. Talvez Tess mude de idéia agora... ela não é nenhuma tola e fiz um bom trabalho.
Vargas estava esperando.
— Boa noite, Vargas. Hora de fechar?
— Isso mesmo. Antes, senhor, queria lhe entregar estas cartas que chegaram pela correspondência de ontem e que, de alguma forma, foram parar na minha bandeja de entrada.
As duas cartas tinham a indicação de Pessoal e Confidencial, e eram endereçadas a ele. A primeira tinha a letra de Tess Struan. Jamie sentiu um frio no estômago. A outra era de Maureen Ross, sua ex-noiva. Sua apreensão dobrou.
— Obrigado — murmurou ele.
Apesar de sua determinação em esperar, não pôde se conter e abriu a carta de Tess. Esta é para lhe comunicar formalmente que o Sr. Albert MacStruan foi transferido de Xangai e chegará pelo vapor Wayfong, no dia 17. Por favor, ponha-o a par de todas as operações japonesas. Na dependência de seu não-atendimento às cartas anteriores, ele assume o controle ao final de dezembro.
Sua dispensa da Casa Nobre, agora que fora consumada, não o enfureceu como esperava. Na verdade, sentiu-se aliviado. Estranho, há poucos momentos pensei que era meu... Ele levantou os olhos para deparar com Vargas a observá-lo atentamente.
— O que mais, Vargas?
Jamie dobrou a carta, largou-a na mesa, junto com a outra.
— A Sra. Angelique está no gabinete do tai-pan. Perguntou se o senhor poderia ir vê-la por um momento.
— Qual é o problema agora?
— Nenhum, ao que eu saiba, senhor. A noite foi tranqüila. Chegou uma mensagem de sua Nemi, indagando se a visitaria mais tarde. Mais um outro assunto, o capitão Strongbow tornou a pedir suas ordens para zarpar. Eu lhe disse para ser paciente. Será na maré noturna?
— Acho que sim. Mande um aviso para Nemi: Talvez.
— Pois não, senhor. Então está decidido? O corpo do tai-pan seguira no Cloud? E a senhora também?
— Ou no clíper ou no navio de correspondência, um ou outro.
Jamie afastou-se pelo corredor, foi bater na porta. Angelique sentava na cadeira de Malcolm, que Jamie já começava a pensar como dela, lendo o Guardian, à luz de um lampião a óleo.
— Olá, Jamie.
— Boa noite. Decidi acompanhá-la no navio de correspondência. — Ele fez um esforço para não parecer muito brusco. — É obrigação minha explicar tudo a Tess Struan. — Tendo falado, Jamie sentiu-se melhor, e acrescentou: — É meu dever e acho que Mal... acho que ele gostaria que eu fizesse isso e a poupasse um pouco.
— Sei disso. — Angelique exibiu um doce sorriso. — Tenho certeza de que ele gostaria mesmo. Feche a porta, Jamie, e sente-se por um momento.
Depois que ele obedeceu, Angelique baixou a voz, e relatou o plano de Hoag.
— Pode levar o cúter até Kanagawa amanhã, com o resto de nós, ao final da tarde?
Ele a fitava atordoado. Fora apanhado de surpresa.
— Você está louca. Esse plano é absurdo.
— Não é, não. O Dr. Hoag acha...
— Ele também enlouqueceu... nunca escapariam impunes.
— Por quê? — indagou ela, calmamente.
— Por cinqüenta razões... tantas razões que nem vou mencionar nenhuma. Toda a idéia é ridícula, insana, Willie vai prender todo mundo.
— O Sr. Skye diz que não há nenhuma lei contra o que faríamos. O sepultamento seria legal, ele garante.
— O Sr. Sabe-Tudo diz isso, hem? E o que mais Heavenly vai fazer... levantar a gola e oficiar o serviço religioso?
— O Sr. Skye acha que podemos persuadir o reverendo Tweet a fazer isso — disse Angelique, como se ele fosse uma criança num acesso de raiva.
Jamie ergueu as mãos.
— Vocês dois estão loucos, e Hoag é um diabo, perdeu o juízo ao sugerir isso. Partiremos no navio de correspondência, você, eu e ele.
Ele encaminhou-se para a porta.
— Jamie, você pode manobrar o cúter sozinho ou precisaremos de uma tripulação?
Ele virou-se, espantado. Angelique sorriu, determinada, mas insinuante.
— Precisaríamos de uma tripulação?
— Dois homens no mínimo. O contramestre e o engenheiro, pelo menos.
— Obrigada. Se você não quiser ajudar, posso pedir ao contramestre?
— Parece que não consegui fazê-la entender. A idéia é temerária, absolutamente temerária.
Angelique acenou com a cabeça, tristemente.
— É bem provável que você esteja certo, e não consigamos nada, mas vou tentar e tentar de novo. Parece que também não consigo fazer com que você entenda, meu querido Jamie. Prometi amar, respeitar e obedecer a meu marido e seu amigo, pois ele era seu amigo, e sinto que não me separei dele, ainda não nem você. Tess Struan não vai cumprir o desejo dele, não é mesmo?
Durante todo o tempo, Jamie estivera fitando-a, sem vê-la, e ao mesmo tempo vendo cada detalhe, recordando todos os anos de Tess Struan, e o que ela e Culum haviam significado para ele, o que Malcolm significara, o que Dirk Struam significara, o que a Casa Nobre significara. E tudo acabara, tudo definhara, tudo se desperdiçara, nossa Casa Nobre não é mais nobre, não é mais a primeira na Ásia. Isto é, nem tudo desperdiçado, nem tudo acabado, mas a glória passou, meu amigo morreu, e isso é um fato. Eu era seu amigo, mas ele era meu? Deus Lá em Cima, o que não fazemos em nome da amizade!
— Tess não o sepultaria como ele queria. Suponho que é o mínimo que um amigo pode fazer. Providenciarei o cúter.
Jamie saiu. No silêncio cada vez mais denso da sala, Angelique suspirou, pegou o jornal e recomeçou a ler.
Naquela noite, quando o Dr. Hoag chegou à legação em Kanagawa, parte do templo budista, foi recebido por Towery, sargento no comando, elegante em seu uniforme da guarda, túnica escarlate, calça branca, botinas pretas.
— Não o esperava até de manhã, doutor.
— Precisava verificar se estava tudo pronto. Queremos partir cedo.
Escoltando-o até a parte do templo usada como necrotério, Towery riu.
— Se o deixou pronto, doutor, ele continua pronto, porque não saiu para dar uma voltinha.
Ele abriu a porta. A sala era grande, o chão sujo, com um acesso ao jardim por portas de veneziana. Towery farejou o ar.
— Eles ainda não fedem. Nunca gostei de cadáveres. Quer uma ajuda?
— Não, obrigado.
Os dois caixões estavam sobre cavaletes, as tampas ao lado, havia outros, encostados na parede. Os corpos se encontravam estendidos em mesas de mármore, cobertos por lençóis. Havia enormes barricas no outro lado, contendo gelo. A água vazava das barricas para o chão de terra batida.
— O que me diz do nativo? Por quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— Até amanhã.
Hoag sentiu uma súbita vertigem, lembrando que, pelo costume, o corpo seria reivindicado para cremação, segundo o ritual xintoísta, mas agora não haveria corpo...
— Qual é o problema, doutor?
— Nada, apenas um... obrigado, Sargento.
Seu coração recomeçou a bater ao recordar que o homem era coreano, um dos pescadores de um barco naufragado, levando uma existência patética, sem meios de voltar para sua terra, indesejado e desprezado pelos locais. Babcott concordara cremar o corpo no crematório budista.
— Na verdade, sargento, poderia me dar uma ajuda.
O cadáver de Malcolm fora limpado e vestido, depois da necropsia, pelos assistentes japoneses. Com a ajuda do sargento, que pegou os pés, eles o puseram no caixão.
— Ele parece muito bonito para um cadáver — comentou o sargento, pois o rosto de Malcolm era sereno na morte. — Vamos fazer a mesma coisa com o outro, doutor. Não vai querer ficar com uma hérnia, não é? É verdade que este sujeito não deve pesar muito.
— É melhor envolvê-lo com o lençol.
O coreano era só pele e ossos. A disenteria o matara. Juntos, levaram-no para o caixão.
— Obrigado. Vou terminar de arrumar tudo aqui, e depois irei me deitar.
— Certo, doutor. Cuidarei para que seu quarto esteja arrumado.
Assim que ficou sozinho, Hoag trancou a porta. Com a concordância de Angelique, haviam decidido que não haveria a tradicional exposição, com o caixão aberto, para que as pessoas prestassem a última homenagem ao falecido. Com todo cuidado, ele ajustou a tampa no lugar. Não demorou muito para pregá-la.
Agora, o outro. Haveria uma grande diferença no peso. O que usar para compensar? Terra. Havia uma pá que pertencia aos coveiros num lado... nem todos os corpos eram cremados. Lá fora, a terra era mole, a noite fria, com um vento ameno, que fazia a vegetação sussurrar. Ele cavou depressa, entrando com a pá cheia, espalhando aterra por cima e em torno do cadáver, compactando-a. Uns poucos galhos preencheram os espaços vazios. Satisfeito, ele baixou a tampa, martelou os pregos. Encostou-se no caixão, ofegante, suado e sujo, ainda mais preocupado do que no momento em que começara. Heavenly tem razão, pensou ele, enquanto lavava as mãos num balde, nunca escaparemos impunes a uma coisa assim.
— Perdeu o juízo por completo, doutor — dissera Skye, com sua tosse seca. — Ela também, e até eu, porque vou entrar nessa. Wee Willie vai subir pelas paredes, mas não importa, cuidaremos de tudo amanhã de noite.
Haviam conversado no clube, poucas horas antes, o ambiente enfumaçado e barulhento, como sempre.
— Toma outro uísque, doutor?
— Não, obrigado. Prefiro um café e depois acho melhor ir embora.
— A história dela me lembrou da minha Nellie, doutor. Casei quando era um aprendiz, tinha dezesseis anos, ela quinze, pelo menos fingíamos que éramos casados, vivíamos numa mansarda perto da Fleet Street, não muito longe do Old Cheshire Cheese Pub, o lugar de Sam Johnson. Ela morreu no parto, a criança teria sido um menino, morreu também.
Ele oferecera um charuto, acendera outro para si mesmo, antes de continuar:
— Cova rasa, umas moedas para o coveiro noturno, traga logo seus mortos, e foi o fim dos dois. O cólera foi terrível naquele ano, a disenteria também, os cemitérios transbordavam. — Heavenly cuspira na escarradeira. — Há anos que não pensava na pequena Nellie. Já foi casado, doutor?
— Uma vez. Ela morreu em Londres também.
— Outra coincidência, hem? Nunca mais tive vontade de casar depois de Nellie... jurei que nunca mais seria tão pobre assim de novo, não importava o que tivesse de fazer... sempre andando, viajando demais. Tive uma porção de mulheres mas nunca peguei a sífilis. Pegou, doutor?
— Não. — Hoag cruzara os dedos. — Ainda não.
— Ei, também é supersticioso, como eu?
— Sou, sim. Tem certeza de nossa posição legal neste caso?
— Tanta certeza quanto se pode ter, tanto quanto merda... mas se Wee Willje quiser, pode inventar uma dúzia de acusações, não se preocupe. Mas o que quer que aconteça, Tess Struan vai ter um ataque, cortará seu estipêndio, e vai se descobrir no meio do rio sem um remo.
— Nada disso. Voltarei à índia...
É estranho como o mal leva ao bem, ou o bem ao mal. Tudo isso realmente me decidiu. Voltarei desta vez, para Cooch Behar, em Bengala, onde servia, e de onde ela saiu. Procurarei sua família, e... veremos o que acontece depois. Tenho dinheiro suficiente para isso, e me restam uns poucos anos, nosso filho e nossa filha estão crescidos agora, parte da vida de Londres, educados da melhor forma que eu podia, minha irmã e seu marido são os verdadeiros pais... ambos o que de melhor existe na Inglaterra.
Sou um bom médico, e Deus sabe como precisam de médicos na índia, até os ruins. Assim, quem sabe, talvez eu possa encontrar um pouco de felicidade... Nem sequer espero isso, apenas um pouco de paz, do horror de tê-la matado.
Exausto agora, ele examinou os dois caixões. Um último olhar para confirmar que tudo estava como deveria. Pegando o lampião a óleo, Hoag saiu e trancou a porta.
Uma lua fúnebre projetava uma sombra pelas janelas abertas. Em silêncio, outra sombra se moveu. O sargento Towery deu uma espiada no necrotério. Estava perplexo. Por que Doc Hoag chegaria no meio da noite, e depois por que escavaria no jardim, como um ladrão de sepulturas, para encher de terra o caixão do nativo?
A curiosidade matou o gato, meu caro, mas não no meu caso, não quando estou no comando. Amanhã você vai verificar tudo direitinho, antes de o bom doutor acordar, e antes do senhor-deus-todo-poderoso Pallidar chegar para a inspeção. Ele pode encontrar a resposta.
48
KANAGAWA
Sexta-feira, 12 de dezembro:
Pallidar disse, a voz fria:
— E então, doutor?
Hoag acabara de ser chamado. Sentava na beira da cadeira, contrafeito e pálido. Empertigado, de uniforme, Pallidar era imponente, embora estivesse com um forte resfriado. Na mesa estava seu chapéu emplumado, a espada ao lado. A primeira claridade da manhã refletia-se nos alamares. Por trás dele se postava o sargento Towery. Os sinos do templo ressoaram, ominosos. Hoag deu de ombros.
— Lastro.
— Pelo amor de Deus, doutor, isto não é uma corte marcial, e pessoalmente não me importo se enche os caixões com bosta de vaca. Por favor, diga-me por que fez o que fez na noite passada.
— Eu... achei que era uma boa idéia.
— Quero saber, agora...
Um acesso de tosse interrompeu-o. Exasperado, Pallidar assoou o nariz, tossiu, limpou a garganta, tossiu de novo. Hoag disse, animado:
— Eu... nós temos uma mistura nova e especial para a tosse na clínica. Vai livrá-lo desse resfriado num instante. Tem quinino e ópio também. — Ele começou a se levantar. — Vou buscar...
— Sente-se! O caixão, pelo amor de Deus, não meu resfriado! O sargento viu e me contou, como era seu dever. E agora me diga: por quê?
Hoag se contorceu todo, mas sabia que se encontrava acuado. Amaldiçoando o sargento no íntimo, ele murmurou:
— Posso... posso lhe falar a sós, Settry, por favor?
Pailidar lançou-lhe um olhar furioso.
— Está certo. Sargento!
Towery bateu continência e se retirou.
— E então?
— É que... entende...
Hoag decidira lhe dizer que não se metesse no que não era da sua conta, que não estava mais sujeito à disciplina militar, graças a Deus, vocês, oficiais, já me intimidaram antes, e agora não vão fazê-lo outra vez... mas descobriu-se de repente a contar toda a história, em detalhes, e concluiu:
— Como pode compreender, Settry, havia o problema do peso, a diferença no peso, e a terra era perfeita... Escute, George Babcott deve chegar a qualquer momento, ele não deve saber, ninguém deve saber... você não sabe de nada apenas enviamos o caixão errado... o caixão certo... a bordo do clíper, e esta noite quando o cúter chegar, se Deus quiser, nós o sepultamos como ele queria, como Angel quer.
Hoag abanou-se, sentindo-se melhor, ao mesmo tempo com uma vertigem de culpa.
— Você não sabe de nada. Agora, vou pegar aquele xarope para a tosse.
— Vai continuar sentado aí! — disse Pailidar, ríspido. — Você não passa de um idiota. Primeiro: já olhou pela janela?
— Como? — Hoag obedeceu. As janelas davam para o mar, que estava cinzento, encapelado, nuvens escuras cobrindo o sol, dominando o céu. — Oh!
— Isso mesmo, oh! Haverá uma tremenda tempestade antes do anoitecer; assim não teremos nenhum sepultamento no cúter, mesmo que isso fosse possível. Como sabe, Sir William ordenou o sepultamento em Hong Kong e é lá que terá de ser.
— Mas, Settry, não...
— Nem por você, nem por Angelique, nem por qualquer pessoa... — Pailidar parou de falar, dominado por um novo acesso de tosse, depois acrescentou, a voz rouca: — Sir William está no comando, tomou uma decisão, e ponto final. Entendido?
— Entendido, mas...
— Não tem nenhum mas! Por favor, vá buscar o xarope para a tosse e fique longe do necrotério. Sargento!
Towery estendeu a cabeça pela porta.
— Pois não, senhor?
— Ponha uma sentinela no necrotério. Ninguém entra sem a minha aprovação. Não quero que os caixões sejam tocados.
Hoag saiu, praguejando contra si mesmo por ter revelado a decisão de Sir William, contra Pallidar, contra o sargento intrometido, mas acima de tudo contra si mesmo. Merda, pensou ele. Meti os pés pelas mãos. Na clínica, encontrou o xarope, sentiu-se tentado a acrescentar um pouco de óleo de rícino, mas não o fez.
— Tome aqui, Settry. Isto vai resolver seu problema.
Pallidar tomou um pouco, engasgou.
— Mas que porcaria horrível! Tem certeza que não deu uma mijada nisto só por maldade?
— Bem que me senti tentado. — Hoag sorriu. — Desculpe por ter bancado o idiota rematado. Mas você ainda pode fechar os olhos e sabe disso. Foi o que Nelson fez.
— Acontece que Nelson era da marinha e nós, os outros, temos de cumprir os regulamentos.
— Por favor, Settry...
Pensativo, Pallidar tomou outro gole do xarope.
— Devem se submeter à ordem de Sir William, é o melhor, a longo prazo. Seriam apanhados, inevitavelmente. E as coisas estão engrossando.
— É mesmo? — A atenção de Hoag focalizou as linhas de preocupação no rosto bonito. — Qual é o problema?
— Comigo, nenhum, exceto este maldito resfriado e a tosse. Mas tem muita coisa acontecendo na colônia.
— O que houve agora?
— Nos últimos dias, muita movimentação do inimigo ao nosso redor, patrulhas de samurais, a maioria disfarçada... só por precaução, estamos patrulhando até a Tokaidô e os limites da colônia, e por onde os avistamos. Vindo para cá, encontrei em alguns pontos grandes concentrações de samurais. Não interferiram conosco, a não ser pelo palavrório habitual. Contei quase quatrocentos miseráveis armados.
— O tairo Anjo tenta nos assustar?
— É bem provável. — Pallidar tossiu, tomou outro gole do xarope. — Isto é horrível, já me sinto pior. Vou recomendar a retirada de todo o pessoal daqui por algum tempo.
Hoag assoviou.
— Não gostaríamos de fechar a clínica.
— E eu não gostaria de vê-los mortos sem um caixão. Esses desgraçados adoram ataques de surpresa. Como o que aconteceu com o pobre Malcolm. Alguém terá de pagar por ele.
Hoag balançou a cabeça.
— Concordo.
Ele olhou na direção de Iocoama, os campos planos e desinteressantes no inverno — detesto o frio, sempre detestei, e sempre vou detestar. Seus olhos o levaram até o Prancing Cloud, o navio de correspondência a vapor, os navios mercantes, navios de guerra, tênderes, todos movimentados, preparando-se para a tempestade iminente, ou preparando-se para zarpar. Os navios de guerra tinham filetes de fumaça saindo pela chaminé — ordens do comando da esquadra, bem divuladas, para que o Bakufu e seus espiões soubessem que todos os navios podiam zarpar em condições de combate no prazo de uma hora.
Era uma estupidez, toda aquela perspectiva de matança, mas também o que podemos fazer? Os responsáveis devem pagar. Depois ele avistou a fumaça do cúter a vapor da Struan, avançando pelas ondas, os borrifos levantados pela proa molhando o vidro da ponte de comando e a cabine principal. Sua ansiedade atingiu o ponto máximo.
— Settry, não acha...
Ele suspendeu a súplica fervorosa, compreendendo de repente que mesmo que fosse impossível o sepultamento naquela noite, com um pouco de sorte ainda poderia cumprir a primeira parte do plano, e despachar o caixão errado para o Prancing Cloud.
Sou o único que sabe que caixão é de quem, com exceção talvez do sargento e tenho a impressão de que ele não vai perceber a diferença. Ninguém pode, à menos que um caixão seja aberto.
— Não acha que a vida em Iocoama é mais esquisita do que em outros lugares, já que vivemos num barril de pólvora?
— É a mesma coisa por toda parte, exatamente a mesma coisa — disse Pallidar, pensativo, observando-o.
IOCOAMA
Jamie, Angelique e Skye se agrupavam diante da janela grande no escritório do tai-pan. A chuva batia no vidro. Era quase meio-dia.
— Esta noite será perigoso demais.
— Quer dizer que teremos uma tempestade, Jamie?
— Isso mesmo, Angelique. O suficiente para nos deter.
— O Cloud ainda partirá esta noite, conforme o planejado?
— Claro. Nenhuma tempestade pode detê-lo aqui. O cúter já seguiu para Kanagawa, a fim de buscar o outro caixão. Ainda quer que seja embarcado no Cloud, e não no navio de correspondência?
— A ordem é de Sir William, não minha — disse ela, a voz firme. — Ele quer despachar meu marido contra os desejos dele e os meus, diz que deve ir o mais depressa possível, e assim tem de ser pelo clíper. E um caixão partirá como ele quer. Jamie, nosso ardil... acho que nosso ardil é justo. Quanto à tempestade, será pequena. Se não pudermos sepultar meu marido esta noite, tentaremos amanha. Ou no dia seguinte.
— O navio de correspondência partirá amanhã, por volta de meio-dia.
— Não pode retardar um pouco?
— Acho que sim. Pelo menos tentarei. — Jamie pensou por um momento — Falarei com o capitão. O que mais?
Angelique sorriu, triste. _
— Primeiro, temos de verificar se o Dr. Hoag foi bem-sucedido. Se não talvez eu deva seguir no clíper, no final das contas.
— É mais do que provável que Hoag volte com o cúter, então poderemos decidir. — Jamie fez uma pausa e acrescentou, sem acreditar: — De alguma forma, tudo acabará dando certo. Não se preocupe.
— O que acha de pedir a Edward Gornt para se juntar a nós? — indagou Angelique.
— Não — respondeu Jamie. — Nós três somos suficientes, junto com Hoag. Arrumei lugares no navio de correspondência para Hoag, você e eu.
Skye interveio:
— Angelique, é muito mais sensato para você permanecer aqui. Todos aqui sabem que Wee Willie tomou a decisão contra os seus desejos e isso alivia um pouco a pressão sobre você.
— Se não pudermos sepultar Malcolm, então eu irei. Não posso deixar de estar presente em seu funeral. — Ela suspirou. — Precisamos ter um capitão em nossa empreitada. Jamie, deve ser você.
— Concordo — declarou Skye. — Enquanto isso, esperamos por Hoag.
Jamie fez menção de falar, mudou de idéia, acenou com a cabeça, e foi para sua sala. Havia uma pilha grande de correspondência à espera de ação. Começou a despachá-la, trabalhando com diligência, mas sua concentração era perturbada pela gaveta. Fora ali que guardara a carta de Maureen. Por fim, largou a pena, pegou a carta e releu-a. Não havia necessidade, pois já a lera vinte vezes antes.
A parte fundamental era a seguinte: Como não houve resposta aos meus fervorosos pedidos e orações para que você voltasse, e retomasse uma vida normal em casa, decidi depositar minha confiança no Criador, e me arriscar em uma viagem a Hong Kong, ou até o Japão, onde quer que você esteja. Meu amado pai nos adiantou o dinheiro, que tomou emprestaao contra uma hipoteca de nossa casa em Glasgow — por favor, deixe uma mensagem para mim com a Cook‘s, em Hong Kong, pois parto amanhã, na segunda classe, no Eastern Mail, da Cunard...
A data era de dois meses e meio atrás.
Jamie soltou um grunhido. Ela estará em Hong Kong a qualquer dia agora. Minha carta chegou tarde demais. O que vou fazer agora? Sorrir? Esconder-me? Fugir para Macau, como o velho Aristotle Quance? De jeito nenhum. É a minha vida, e não posso de jeito nenhum sustentar uma esposa, não quero uma esposa... mas não posso escrever a mesma carta de novo, e enviá-la para Hong Kong. Terei...
Uma batida na porta interrompeu seus pensamentos.
— O que é? — berrou ele.
Hesitante, Vargas esticou a cabeça pela porta.
— Posso lhe falar por um momento, senhor?
— Claro. O que é?
Vargas informou, com uma repulsa evidente:
Há um homem aqui que deseja vê-lo, um certo Sr. Corniman... ou algo parecido.
O nome nada significava para Jamie. Vargas entreabriu a porta. O homem era baixo, parecia um furão, vestia-se de maneira estranha, parte em roupas europeias, parte japonesas. Camisa, calça e um casaco grosso, rosto raspado, cabelos limpos amarrados num rabo-de-cavalo, uma faca no cinto, botinas bastante gastas. Jamie não o reconheceu, mas aqui os estranhos não eram muitas vezes o que pareciam. Num súbito impulso, ele disse:
— Entre e sente, por favor. — Depois, ele recordou o navio de correspondência. — Vargas, peça ao capitão Biddy para me procurar, está bem? Ele deve estar no clube. Sente-se, Sr. Corniman... é esse o seu nome?
— Está grogue, companheiro?
— Quem é você e o que quer?
— Johnny Cornishman, lembra? Estive aqui com você e o tai-pan, eu e meu companheiro, Charlie Yank. Somos garimpeiros, lembra?
— Garimpeiros? Ah, sim, lembro dos dois agora.
O homem estava limpo e arrumado, quando antes era um vagabundo cabeludo, sujo e fedorento. Os olhinhos malignos e furtivos não haviam mudado.
— Fizemos um acordo, mas vocês preferiram acertar tudo com a Brock, nos traindo.
— É verdade, foi o que fizemos. Mas somos homens de negócios. Norbert ofereceu mais dinheiro, não é? Mas esqueça, ele está morto. Primeiro, tem um trago? Conversamos em seguida.
Jamie não deixou transparecer seu interesse. Um homem como aquele não o procuraria sem ter alguma coisa para negociar. Ele abriu o armário, serviu meio copo de rum.
— Descobriram alguma coisa?
O homenzinho tomou a metade do rum, engasgou, exibiu as gengivas, desdentadas, a não ser por dois dentes marrons e tortos.
— Rum é melhor do que saquê, mas não importa, porque as tais gueixas compensaram a falta de um trago de verdade. — Ele arrotou, sorriu. — Desde que você vomite. Jesus, como elas são esquisitas com água e limpeza, mais do que na nossa Yoshiwara. Mas depois que você está limpo, elas sacodem o rabo até a chegada ao reino dos céus!
Ele caiu na gargalhada de sua própria piada e depois acrescentou, a voz mais dura:
— Temos o carvão de melhor qualidade para vapor, companheiro, o suficiente para abastecer toda a porra da sua frota. Pela metade do preço de Hong Kong, na tonelada.
— Onde? Entregue onde? — indagou Jamie, animando-se. — O carvão para as máquinas a vapor era extremamente valioso, mas escasso, ainda mais para frota. Um fornecedor local seria uma dádiva divina, além de uma constante fonte de receita. Mesmo ao dobro do preço de Hong Kong ele poderia vender tudo que obtivesse, e ainda mais pela metade. — Entregue onde?
— Aqui mesmo, em Yokopoko. Mas seis pence por tonelada você deposita no banco em nome de Johnny Cornishman. — Ele tomou o resto do rum. — Tem de pagar em mex de ouro ou prata, e fará o pagamento a este sujeito.
O garimpeiro entregou um pedaço de papel. A escrita péssima dizia: Aldeia Iocoama, Shoya Ryoshi, mercador da Gyokoyama.
— Esse sujeito sabe o que fazer, já conhece tudo. Sabe quem é ele?
— Sei, sim. É o chefe da aldeia.
— Ainda bem. Meu chefe disse que você devia conhecê-lo.
— Quem é o seu chefe?
Cornishman sorriu.
— Lorde Mandachuva em pessoa. Você não precisa de nomes. E não vamos perder tempo. O negócio está fechado, sim ou não?
Depois de um momento, Jamie perguntou:
— Onde fica a mina?
— Fui eu quem descobriu, companheiro, não você. — O homenzinho riu, impertinente. — Fica perto, mas em terras inimigas. Escute, o primeiro veio que encontrei era numa montanha de carvão aqui perto, com mil desses amarelos para escavar, o suficiente para vinte frotas, durante vinte anos.
— E por que me procurou? Por que me pede para fazer o negócio com você?
— Porque Norbert morreu e porque você é quem manda aqui, agora que o tai-pan morreu. As coisas aqui por Yokopoko andam meio perigosas, hem? — Cornishman estendeu o copo. — Eu gostaria de tomar mais um trago, se não se incomoda, mister todo-poderoso da Struan.
Jamie tornou a servi-lo e voltou à cadeira. Cornishman notou que a dose era pela metade e resmungou:
— Só isto?
— Pagaremos um quinto do preço de Hong Kong, menos as taxas, o carvão entregue aqui, a primeira entrega dentro de trinta dias. Nenhum acordo por fora.
Os olhos do homenzinho esquadrinharam a sala, como os de um rato.
— Qualquer taxa você é quem paga, companheiro. E meu acordo por fora continua. Vamos fazer uma coisa: depois de amanhã, você me manda uma barcaça para as proximidades de Iedo, o lugar que eu indicar. Depois de amanhã. Vamos encher a porra da barcaça, você paga apenas um quinto, traz aqui para Yoko, paga o resto a esse sujeito, o que está aí no papel. Seis pence por tonelada no banco em meu nome, Johnny Cornishman. Não podia ser mais justo, hem? Recebe o carvão antes de pagar, e pela metade do preço em Hong Kong.
— Um quinto do preço total de Hong Kong.
O rosto do homenzinho se contorceu em raiva.
— Pela metade do preço de Hong Kong você já estará tendo um tremendo lucro, pelo amor de Deus! E o carvão aqui não é como a porra do carvão de lá. Poupa o custo do transporte, o seguro e só Deus sabe o que mais... não somos uns merdas, isso é um negócio respeitável!
Jamie riu.
— Já sei o que vamos fazer: na primeira barcaça, pago um terço do preço de Hong Kong. Se a qualidade for mesmo o que você diz, e garantir a entrega de uma barcaça por semana, ou qualquer coisa parecida que conseguir, aumentarei ao longo do ano para a metade do preço de Hong Kong, menos quinze por cento. Três pence por tonelada para você por fora. E o que me diz de seu sócio... como é mesmo o nome dele? Charles Yank?
— Seis pence ou nada. — Outra vez os olhos correram pela sala e voltaram a se fixar em Jamie, faiscando. — Ele está morto, como seu tai-pan, mas não morreu como aquele sujeito de sorte.
— É melhor tomar cuidado com o que diz sobre o nosso tai-pan.
— Não enche, companheiro. Não houve desrespeito. Todos nós gostaríamos de ir ao encontro do sujeito lá em cima com uma xoxota na ponta do nosso pau — Ele terminou de tomar o rum e levantou-se. — Daqui a dois dias, ao meio-dia Pegue o carvão aqui.
Ele estendeu um pequeno mapa. O X era na costa, alguns quilômetros ao norte de Kanagawa, ao sul de Iedo.
— Leve seus tênderes e a gente entra com a mão-de-obra.
— Não pode ser daqui a dois dias, pois cai num domingo. Vamos passar para a segunda-feira.
— Está certo. O dia do Senhor é o dia do Senhor. Três dias.
Jamie estudou o mapa. Uma barcaça de carvão desprotegida, com tênderes e tripulantes, podia ser um alvo tentador.
— Como a barcaça poderia ser naval e o carvão para a marinha, imagino que eles vão mandar uma fragata para montar guarda ao largo.
— Podem mandar toda a porra da esquadra, pelo que me importo. — Cornishman tentou parecer distinto. — Fiz uma grande descoberta, e estamos num negócio honesto.
— Fico contente em saber disso.
— Seis pence por tonelada ou nada feito!
— Quatro.
Cornishman cuspiu.
— Seis pence, por Deus! Conheço o valor do carvão, sei o quanto vale para a porra da esquadra, e o lucro que você pode conseguir. Talvez eu faça um acordo direto.
— Pode tentar — disse Jamie, arriscando. — Vamos fazer o seguinte: quatro pence nas primeiras dez barcaças, seis no resto.
O homenzinho ficou ainda mais furioso.
— Agora sei por que vocês são a porra da Casa Nobre! — Ele estendeu a mão calosa. — Sua palavra como um cavalheiro da Struan.
Trocaram um aperto de mão e depois Cornishman perguntou:
— Por acaso você tem algum mercúrio?
Isso despertou no mesmo instante o interesse de Jamie. O mercúrio era usado na extração de ouro.
— Tenho, sim. Quanto vai precisar?
— Não muito, para começar. Pode pôr na conta?
— Claro. Vai ficar no Yokohama Arms?
— Nada disso... não quero saber da cidade dos bêbados — respondeu Cornishman, desdenhoso. — Vou voltar com classe e você vai manter tudo em segredo, mnguém deve saber do nosso negócio... não quero nenhum filho da puta me atacando pelas costas para me roubar.
Ele começou a se retirar.
— Espere um pouco! Para onde vai? Como posso entrar em contato com você?
— Voltarei para pegar o que é meu, companheiro. — O garimpeiro tornou a mostrar as gengivas, em seu sorriso insidioso. — Meus samurais e meu palanquim estão esperando lá fora, junto ao portão norte. Vim para cá sozinho, na maior discrição. Mas na próxima vez que voltar, será como um cavalheiro, e não quero mais saber da porra da cidade dos bêbados. Não terá mais nenhum contato comigo, acertará tudo com esse sujeito do papel. Sou agora um mercador respeitável, caso tenha esquecido. Não deixe de mandar o mercúrio na barcaça.
Ele saiu. Por um longo tempo, Jamie ficou olhando para as paredes, analisando a conversa. Um suprimento confíável de carvão seria maravilhoso, mas acabaria quando a esquadra bombardeasse Iedo. E por que o mercúrio? Será que o patife acertou na sorte grande? E quem é o verdadeiro chefe? Por falar nisso, quem é o meu chefe?
A chuva tamborilava na janela. Ele se levantou, correu os olhos pela baía, numa avaliação crítica. O mar exibia um cinza mais sujo do que antes, as nuvens estavam mais baixas. Não restava a menor dúvida de que a tempestade seria ruim para o cúter, mas não para um navio. Ah, lá está ele!
O cúter da companhia se encontrava a cerca de duzentos metros do cais, avançando contra as ondas, alguma água passando por cima das amuradas, mas não muito, os borrifos levantados pela proa substanciais, a bandeira da Struan a meio mastro... como estivera a bandeira por cima do prédio desde a morte do tai-pan. Ele deixara o binóculo no peitoril da janela. Pegou-o, focalizou o cúter, avistou Hoag e Pallidar na cabine, o caixão coberto por uma bandeira, preso a um dos bancos, como ordenara. Experimentou uma pontada de angústia ao ver o leão e o dragão entrelaçados em torno do caixão de Malcolm... uma cena que nunca imaginara que contemplaria. E depois se lembrou de que não era o caixão de seu amigo, mas sim de algum nativo desconhecido ou, pelo menos, era o que esperava.
— Vargas!
— Pois não, senhor?
— Leve esta correspondência, copie e lacre... despacharei o resto esta tarde.
— O capitão Biddy não estava no clube, senhor, mas era esperado. Deixei um recado.
— Obrigado.
Sem pressa, Jamie pôs o casaco e o chapéu e saiu para a rua, inclinando-se inclinando-se contra o tangido pela chuva. Era praticamente a única pessoa na High Street. Não avistou Cornishman na área do portão norte. Uns poucos guardas samurais se agrupavam ao abrigo do prédio da alfândega. Alguns mercadores seguiam apressados para o clube e um almoço tardio. Uns poucos acenaram. Um deles parou, urinou na sarjeta. Ao sul, a cidade dos bêbados parecia ainda mais miserável sob o céu nublado. Este não é um lugar para uma mulher, pensou ele.
— Ei, Jamie! — gritou Hoag, do cúter.
— Olá, doutor, olá, Settry.
Eles subiram para as tábuas alcatroadas, as estacas cravadas no leito do mar rangendo ao impacto das ondas. Um olhar para Hoag foi o suficiente para saber que a troca fora consumada, por mais que o atarracado médico simulasse indiferença. Portanto, estamos agora comprometidos. Pallidar teve um acesso de tosse.
— Settry, é melhor você dar um jeito nisso, antes que se transforme em coisa pior.
— Já tentei. Esse suposto médico me deu uma poção que deve me matar. — Pallidar teve outro acesso de tosse. — Doutor, se eu piorar, você vai se danar.
Hoag soltou uma risada.
— Uma dose dupla de grogue quente hoje, e amanhã você estará tão bom quanto a chuva. Tudo bem por aqui, Jamie?
— Tudo.
— Estou lhe entregando a responsabilidade sobre o caixão, Jamie — disse Pallidar. — Vai seguir logo para bordo do Cloud?
— Dentro de meia hora. Angelique queria... se despedir. O reverendo Tweet acrescentará algumas palavras.
— Quer dizer que ela não vai mesmo viajar no clíper?
— Não sei, Settry, não com certeza. Pela última informação, ela partiria no navio de correspondência, mas sabe como são as mulheres.
— Não a culpo. Voltar para aquele clíper também me deixaria arrepiado. — Pallidar assoou o nariz, aconchegou-se ainda mais no sobretudo. — Se quiser, posso pedir a Sir William para enviar o caixão pelo navio de correspondência, e assim chegariam juntos.
— Não! — exclamou Hoag, com veemência demais, na opinião de Jamie, mas logo recuperou o controle. — Não, meu caro Settry, eu não recomendaria isso, por razões médicas. É melhor manter os arranjos atuais, o caixão no Prancing Cloud. Angelique está bem agora, mas um choque súbito poderia empurrá-la de volta a um pesadelo. É melhor ela seguir no navio de correspondência e o caixão no clíper.
— Como quiser. Jamie, vou recomendar a William para fecharmos Kanagawa imediatamente. Foi por isso que voltei.
— Mas por quê?
Pallidar falou sobre as patrulhas e os numerosos samurais ao redor.
— Não há motivo para preocupação. Podemos liquidar todos eles. Se permitissem que o cúter me levasse de volta, pouparia um bom tempo.
— Por que não vai também na ida até o Prancing Cloud? Depois, o cúter levaria direto. Vai passar a noite em Kanagawa?
— Não. Já vi o suficiente e quero apenas buscar meus homens — informou Pallidar, para alívio dos dois. — Os escriturários e demais guardas podem sair de fános próximos dias. Até mais tarde.
Ele se afastou, tossindo. Mal deixara a distância de ouvir quando Hoag anunciou:
— Tudo transcorreu sem problemas, Jamie.
— Não agora, pelo amor de Deus!
Apesar do frio e umidade, Jamie suava bastante. Seguiu na frente pela High Street, parou ao abrigo de um bangalô, a salvo de outros ouvidos.
— O que aconteceu?
— Saiu tudo perfeito. Esta manhã, assim que o cúter chegou, nós fomos para o necrotério e...
— Nós quem?
— Settry, o sargento Towery, o contramestre, e dois tripulantes. Estendemos e prendemos a bandeira no caixão e eles o levaram para o cúter. O outro nos espera esta noite ou mais tarde... supostamente à espera para a cremação. — Hoag olhou para o mar, contra a chuva. — Não há a menor possibilidade esta noite, não é mesmo?
— Não. Mas acho que a tempestade já terá passado pela manhã.
— Ainda bem. — Hoag esfregou as mãos, contra o frio. — Tudo correu como um sonho. Só houve um problema, o nativo era pequeno, pele e ossos, por isso enchi o caixão de terra, para compensar a diferença no peso.
— Oh, Deus, eu tinha esquecido isso! Agiu muito bem.
— Fiz isso na noite passada, sem problemas... ninguém disse nada quando levaram o caixão para o cúter.
— Essa história toda é muito arriscada — murmurou Jamie, apreensivo. — Como vamos tirar o outro caixão da legação, com os funcionários e os guardas ainda ali?
— Já cuidei disso. — Hoag soltou uma risada. — Mandei nossos assistentes japoneses levarem o caixão para o barracão ao lado do nosso cais em Kanagawa. Não fica muito longe do crematório. Eles podem fazer isso sem despertar suspeitas. George me disse que põe os caixões e cadáveres ali, quando tem um excesso. É rotina.
— Ótimo! Fica muito longe do cais?
— Uns cinqüenta metros. Três homens podem carregar o caixão sem maiores dificuldades, e contamos com a ajuda do contramestre, não é?
— É, sim. Trabalhou muito bem. — Jamie olhou para a chuva, os olhos contraídos. — É uma pena que não possamos ir esta noite, e acabar logo com isso.
— Não tem importância. Amanhã tudo será resolvido.
Hoag sentia-se muito confiante e satisfeito com o elogio de Jamie. Não havia ecessidade de contar que fora visto, nem relatar a conversa com Pallidar. Esta manhã, ao comerem o desjejum juntos, ele dissera:
— Settry, sobre ontem à noite...
Pallidar não o deixara continuar:
— Esqueça, doutor, esqueça. É o melhor que pode fazer.
É mesmo melhor, refletiu ele, radiante, esquecer que jamais aconteceu.
— Vamos buscar Angelique? Como ela está?
Uma hora depois, todos se encontravam reunidos ao lado do cúter. A chuva mais forte, o vento aumentara. Os borrifos caíam sobre parte do cais. O cúter havia atracado, subia e descia com as ondas, os cabos rangendo. Angelique vestia-se de preto, uma capa preta sobre o vestido tingido de preto, chapéu preto, com um véu preto, e guarda-chuva. O guarda-chuva era azul celeste, um contraste surpreendente.
Era cercada por Jamie, Skye, Dmitri, Tyrer, Sir William e os outros ministros o capitão Strongbow, Gornt, Marlowe, Pallidar, Vargas, André, Seratard, o reverendo Tweet e muitos outros, todos agasalhados contra a chuva. O padre Leo postava-se mais atrás, desolado, as mãos enfiadas nas mangas, espiando por baixo do capuz. Jamie chamara Tweet para dizer uma bênção, explicando:
— Pareceria estranho se não fizéssemos isso, Angelique. Cuidarei para que não haja um serviço de verdade, nem discursos, o que não seria correto. Apenas uma bênção.
O tempo inclemente ajudou a tornar a bênção breve. Por uma vez, Tweet mostrou-se inesperadamente eloqüente. Quando ele terminou, todos olharam para Angelique, constrangidos. Lá em cima, as gaivotas gritavam, empurradas pelo vento, flutuando nas correntes de ar com a maior alegria. Sir William disse:
— Mais uma vez, madame, minhas profundas condolências.
— Obrigada. — Ela empertigou-se, a chuva respingando do guarda-chuva. — Protesto por não me permitirem realizar o sepultamento de meu marido como ele e eu desejávamos.
— Seu protesto está registrado, madame.
Sir William levantou o chapéu. Os outros desfilaram diante de Angelique, apresentando suas condolências, erguendo o chapéu ou batendo continência, os que vestiam uniforme. Strongbow bateu continência e embarcou no cúter, seguido por Pallidar. Marlowe parou diante de Angelique, ainda transtornado.
— Lamento profundamente — murmurou ele, bateu continência e se afastou. O padre Leo foi o último. Sombrio, fez o sinal-da-cruz, murmurou as palavras latinas, a maior parte do rosto oculta.
— Mas ele não é católico, padre — comentou Angelique, gentil.
— Creio que era um dos nossos, senhora, no fundo de seu coração, sotaque do padre Leo era acentuado pelo pesar, a noite passada em orações; indagando o que deveria fazer, se comparecia ou não. — Teria visto a luz e você o ajudaria. Tenho certeza. In nomine Patri...
Desolado, ele se afastou. Agora, apenas Jamie, Hoag e Skye continuavam com ela, no cais.
— E agora, Jamie? — indagou Angelique, dominada por uma profunda melancolia.
— Esperemos um minuto.
Como os outros, ele sentia que era parte de uma trapaça, mas ao mesmo tempo experimentava uma profunda emoção, dizendo a si mesmo que não era uma trapaça. Estou apenas ajudando um amigo, pensou ele. Prometi que guardaria sua retaguarda, e é o que estou fazendo. Mas também estou trapaceando, e detesto isso. Esqueça, você é o líder, tem de agir como tal.
— Capitão Strongbow, pode partir. Deus o acompanhe.
— Obrigado, senhor.
O cúter afastou-se, mergulhando entre as ondas, adquiriu velocidade. As gaivotas gritavam em sua esteira. Os quatro ficaram observando.
— Parece tão estranho — murmurou Angelique, chorando silenciosamente.
— É e não é. Não estamos errados, não é?
Mais uma vez, Jamie tomou a decisão por todos:
— Não, não estamos.
Ele pegou o braço de Angelique e levou-a para casa.
Pouco antes do anoitecer, Vargas bateu na porta da sala do tai-pan.
— O Sr. Gornt deseja vê-la, senhora. Monsieur André deixou um recado, avisando que monsieur Seratard se sentiria honrado se jantasse com ele.
— Agradeça, mas diga que não posso, talvez amanhã. Olá, Edward. Entre. Angelique foi sentar de novo numa das cadeiras de braço ao lado da janela, o dia lá fora escuro e chuvoso. Havia um vinho branco aberto, esperando no gelo, com um copo virado ao contrário no balde, gelando.
— Por favor, Sirva-se. Vai embarcar agora?
— Vou, sim. O tênder já está esperando. À sua saúde, madame.
— E à sua. É o único passageiro?
— Não sei, — Ele hesitou. — Tem uma aparência maravilhosa, madame, etérea e inacessível.
— Lamentarei a sua partida. Talvez tudo esteja melhor quando voltar — murmurou Angelique, apreciando-o como antes. — Pretende retornar logo ou irá antes a Xangai?
— Saberei quando chegar a Hong Kong. Onde vai se hospedar lá? No Peak ou na Casa Grande dos Struans?
— Ainda não decidi... nem mesmo se irei.
— Mas... não vai ao funeral? — perguntou ele, confuso.
— Decidirei amanhã. — Ela queria deixá-lo em suspense, assim como a todos os outros, até mesmo Jamie. — O Sr. Skye me aconselha a permanecer aqui e não me sinto bem.
Angelique deu de ombros e reiterou:
— Decidirei amanhã. Tenho uma passagem reservada. Gostaria muito de estar com ele, preciso acompanhá-lo, mas se não for sepultado como desejava, como eu queria, então... então fracassei.
— Não fracassou para ele, madame. Todos sabem disso.
— E você também não vai me falhar, não é, Edward? Entregará minha carta a ela, fará tudo o que combinamos?
— Claro. Uma promessa é uma promessa. Uma questão de honra, madame.
Ele fítou-a nos olhos.
— E eu também fiz uma promessa, não é? Uma questão de honra. Amizade eterna.
A maneira como ela pronunciou as duas palavras era uma promessa e ao mesmo tempo, não era. Nem por sua própria vida, Gornt era capaz de interpretá-la agora, como fazia antes. No passado, saberia até que ponto aquela promessa o levaria. Agora, no entanto, havia uma barreira. Fico contente, pensou ele, pois se há uma barreira para mim, haverá também para todos os outros homens. Seis meses não constituem muito tempo para esperar e o momento será perfeito. Mas talvez ela não vá para Hong Kong. Como isso me afeta?
— Meus planos, madame? Vão depender de Tess Struan. — Ele tinha vontade de contar a Angelique seu verdadeiro plano, mas era astuto demais para revelá-lo mesmo que de forma indireta. — Espero que ela aja com base nas minhas informações. O que levaria um mês, no mínimo. Se ela assim desejar, esperarei por esse mês, e ajudarei... pois ela vai precisar de ajuda, madame. Tudo depende dela. Se viajar no navio de correspondência, poderemos conversar mais em Hong Kong. Se não, posso lhe escrever?
— Claro que sim, por favor. Eu bem que gostaria. Em todas as correspondências. Prometo que o manterei a par de meus planos.
Angelique abriu uma gaveta, tirou um envelope, endereçado à Sra. Tess Struan. Não estava lacrado.
— Pode ler.
— Obrigado, madame, mas não é necessário.
Ela pegou o envelope de volta, mas não o lacrou, apenas enfiou a aba para dentro.
— Isso lhe poupará o trabalho de pôr no vapor para abrir, Edward.
Gornt riu.
— O que a leva a ter tanta certeza de que eu faria isso?
— Eu faria. Seria uma tentação grande demais. Mas, por favor, lacre o envelope antes de entregá-lo.
Ele acenou com a cabeça.
— Disse uma ocasião que sabia por que seu marido gostava de mim, porque eu seria um inimigo perigoso e um amigo ainda mais perigoso. Talvez isso se aplique também a você, Angelique.
— É possível. Estou tateando meu caminho neste novo mundo, Edward. Está repleto de dificuldades, de areia movediça. Mas vai me descobrir muito confiave depois que eu der minha palavra, como fiz neste caso. Não esqueça que sou francesa. — Um rápido sorriso. — Leia.
A carta dizia:
Prezada Sra. Struan:
A esta altura já tomou conhecimento da terrível notícia sobre Malcolm... lamento não poder lhe contar pessoalmente, mas fui aconselhada pelo Dr. Hoag a não viajar no Prancing Cloud, nem no navio de correspondência.
Não tenho palavras para lhe descrever como me sinto transtornada. Deixe-me dizer apenas que eu o amava, com toda a força do meu coração, e tentei fazer o melhor que podia, enquanto ele era vivo, e também depois de sua morte, tentando desesperadamente sepultá-lo como desejava, no mar, assim como seu adorado avô. Mas isso me foi proibido. Por favor, eu lhe suplico, por favor, faça por ele o que eu não consegui fazer.
Mas não lhe falhei num outro dever. O portador desta carta era amigo de seu filho. Leva informações da maior importância... que ele prometera transmitir a Malcolm, no dia de sua morte. O próprio Malcolm tencionava partir às pressas no Prancing Cloud, para lhe contar: os meios para destruir seus eternos inimigos, Tyler e Morgan Brock. O Sr. Gornt me jurou que lhe revelará tudo, até os últimos detalhes. Eu lhe suplico que aja de acordo, se for verdade o que ele alega. A conclusão vitoriosa dessa rivalidade, com a eliminação dessa agonia de sua cabeça, como sei muito bem, é todo o epitáfio que Malcolm desejaria.
Ela datara e assinara, Angelique Struan, Iocoama. Havia um P.S.: Estranho, não é, que tenhamos tanta coisa em comum — também odeio meu pai, ele também tentou me destruir — e estejamos tão apartadas, desnecessariamente.
Edward Gornt lacrou o envelope, pensativo. Guardou-o no bolso, levantou seu copo.
— Uma vida longa... e quero dizer que é uma mulher extraordinária, mas muito extraordinária.
— Como assim?
— Não pede nada, dá tudo — comentou ele, com genuína admiração.
Mas não acrescentou: E não menciona os trinta dias, o prazo em que as duas, como mulheres, pensarão acima de tudo... pois se estiver esperando uma criança de Malcolm, o império Struan se tornará em grande parte seu, quer seja menino ou menina, embora um filho seria perfeito! E mesmo que não esteja esperando uma criança, uma reivindicação imodesta à fortuna dos Struans também seria procedente e incontestável. Seja como for, você ainda vai casar comigo!
— É uma grande mulher — acrescentou ele, calmamente. — Espero que me permita partilhar uma amizade eterna.
Ele se levantou, beijou a mão de Angelique, num gesto galante, que não se prolongou além do necessário.
Sozinha outra vez, Angelique balançou a cabeça para si mesma, contente, depois serviu vinho no copo de Gornt... havia outros copos ao seu fácil alcance mas ela escolheu o dele de propósito, tomou um gole, com um prazer adicional. Ergueu o copo na direção do mar e murmurou:
— Vá com Deus, Prancing Cloud.
Outro gole. E ela sorriu.
— Phillip!
— Pois não, Sir William?
— Leve isto. Já aprontou o resto dos nossos despachos?
— Já, sim, senhor. Tirei cópias extras das duas audiências, dos atestados de óbito etcetera. Pegarei no cofre o seu “particular e confidencial” para o governador, e isso é tudo. Será melhor eu levá-los pessoalmente para o Cloud.
— Tem razão, é o mais sensato. Tenho mais uma carta. Dê-me alguns minutos.
Cansado de tanto escrever e da tensão dos últimos dias, consciente do perigo a que Iocoama se achava exposta, Sir William ignorou a dor de cabeça, pensou por um momento, certificou-se de que a pena estava limpa, escolheu o papel com o cabeçalho mais oficial, e escreveu:
Prezada Sra. Struan:
Estou enviando esta por despacho especial, através do Prancing Cloud, por motivos especiais, tanto formais quanto pessoais.
Primeiro, gostaria de apresentar minhas mais profundas condolências pelo lamentável falecimento de seu filho, a quem incluía entre os meus amigos, além de colega. Segundo, as circunstâncias e fatos de seu casamento e morte foram determinados sob juramento num inquérito oficial e, em anexo, envio uma cópia das conclusões da audiência.
Pela melhor da minha convicção, o casamento a bordo é legal, mas pedi uma decisão formal ao procurador-geral.
Pela melhor da minha convicção, a Sra. Angelique Struan nada teve a ver com a morte de seu marido, e não foi sob nenhum aspecto responsável — fato confirmado pelos depoimentos médicos dos doutores Hoag e Babcott (parte dos documentos do inquérito), que sem dúvida lhe serão também encaminhados.
Pela melhor da minha convicção, seu filho morreu em decorrência dos ferimentos recebidos durante o injustificado ataque na Tokaidô, e foi, para todos os efeitos, assassinado nessa ocasião. O rei, ou daimio, que ordenou esses ataques ainda não foi levado à justiça. Posso lhe garantir que ainda o será.
Pela melhor da minha convicção, e observação pessoal, seu filho estava apaixonado por mademoiselle Richaud, ao ponto da obsessão, e pressionou-a ao casamento por todos os meios que podia conceber. Ela retribuía às suas afeições de maneira exemplar, como uma dama. É uma jovem admirável e qualquer coisa em contrário são mentiras espalhadas por canalhas.
Por último, pela melhor da minha convicção, seu filho queria ser sepultado no mar, como o avô. Seu...
Sir William hesitou por um instante, sabendo que devia tomar todo cuidado na escolha das palavras. Organizou seus pensamentos e continuou, com a mão firme e forte: Sua viúva suplicou com veemência que isso fosse realizado aqui, querendo atender a seu desejo (ainda não encontramos nenhum testamento, nem uma carta formal nesse sentido), e estou convencido de que era isso mesmo o que ele queria. Indeferi o pedido da viúva e decidi que o corpo deve ser enviado a Hong Kong, aos seus cuidados. Ele tornou a hesitar, enquanto variações se apresentavam, e depois escreveu: Recomendo com empenho que esse pedido seja atendido. Seu servidor obediente, madame.
Ele refletiu por um momento, depois foi até o aparador, serviu-se de um conhaque, bebeu, tornou a sentar. Leu a carta de novo, com o máximo de atenção. Duas vezes.
Fez uns poucos cortes e alterações, reescreveu tudo, assinando como o ministro de sua majestade britânica para o Japão. Releu mais uma vez. E agora ficou satisfeito. As principais mudanças haviam sido as seguintes: depois de É uma jovem admirável, ele cortara e qualquer coisa em contrário são mentiras espalhadas por canalhas, pois isso convidaria à indagação “que mentiras?” Acrescentara em seu lugar e a recomendo com vigor à sua benevolência. Depois de sepultado no mar, eliminara o como o avô, sem saber a verdade de tal alegação.
— Muito melhor — disse ele, em voz alta. — Tira toda a mordacidade.
Prefiro assim, eu a recomendo à sua benevolência, pensou ele, embora só Deus saiba o que essas duas acabarão fazendo uma à outra. Uma semana atrás eu teria apostado que Angelique não daria nem para a saída, mas agora não tenho certeza.
Satisfeito, ele abriu seu diário, e acrescentou o nome de Tess Struan à longa lista de cartas despachadas naquele dia pelo Prancing Cloud. Um registro na terça-feira, dia 9, atraiu sua atenção: “Malcolm Struan casou com Angelique Richaud a bordo da Pearl com a conivência de Ketterer.” Estava escrito em russo, assim como todo o diário — hábito de uma vida inteira, exigido por sua mãe russa — para mantê-lo desconhecido da maioria dos olhos, mas também para não perder a fluência. Isso o lembrou de uma coisa. Abriu o novo diário, para 1863, e fez um ponto de interrogação em 11 de janeiro, acrescentando uma anotação: Já devemos saber a esta altura se A está esperando ou não. Uma criança de Malcolm facilitaria bastante a vida de Angelique, pensou ele.
Decidira fazer o que pudesse para ajudá-la, por causa da dignidade que demonstrara no dia anterior, e no cais hoje, e também por causa do prazer que lhe proporcionara com todas as danças, risadas e jovialidade que trouxera para Iocoama, e porque era francesa, com a exuberância latente que as francesas possuíam, acima de todas as outras mulheres.
Sir William sorriu. Você é mesmo francesa, Angelique. E nós somos brirtânicos, mas não somos tolos... e é por isso que somos nós que dominamos o mundo, não os franceses.
— Phillip!
Seratard e André se encontravam na janela. O Prancing Cloud desfraldara os traquetes, as velas de mezena, os joanetes e os sobrejoanetes, e agora, com o vento de popa, disparava pelo estreito. Muitos outros também observavam, invejando o clíper, com ciúme, querendo navegar, possuir ou comandar um navio assim. Muitos especulavam sobre sua carga, sobre a moça que partiria no dia seguinte. Angel, um verdadeiro anjo, como a vida seria sem ela, e sobre o destino das cartas a bordo.
— O embaixador De Geroire vai concordar, Henri? — perguntou André.
— Vai, sim. Ele me deve muitos favores, nossa missão aqui se torna mais eficaz a cada dia, e o encontro particular com Yoshi, que você prometeu, e eu garanti a ele, está acertado. Ou não está?
— Deram-me a garantia — respondeu André, sentindo de repente a garganta ressequida. Raiko jurara que podia contar com isso, que os planos de batalha secretos que ele entregara já se encontravam nas cabeças de intermediários de confiança em Iedo, para negociação e recompensas. — Primeiro, Yoshi tem de voltar, Henri, depois podemos marcar uma data. Prometeram-me que ele fará uma visita à nave capitânia. Tenho uma reunião esta noite e o pagamento inicial acertará tudo.
— Mudei de idéia sobre o adiantamento do dinheiro. É melhor... — Seratard alteou a voz, pois André fez menção de protestar. — ...é melhor esperar. Já decidi que é melhor esperar!
Ele foi sentar à sua mesa, e gesticulou para que André sentasse no outro lado, não com raiva, mas com uma suavidade que não admitia oposição.
— Assim que eu tiver certeza que ele voltou, você pode pagar a esses... esses intermediários.
— Mas prometi que levaria o dinheiro esta noite e você concordou!
— Explique que não confio neles — disse Seratard, com um sorriso desdenhoso. — Deixe que provem sua boa fé. Eu estava falando que De Geroire a fará uma tutelada do Estado, André, assim o seu problema se torna uma questão de política de Estado.
Naquela noite André odiava Seratard, odiava-o porque era um homem perigoso, insidioso, sabia demais, recordava demais, e não tinha qualquer sentimento. Percebera que Seratard o observava atentamente, naquela manhã, ao desjejum.
— O que é, Henri?
— Nada. Há uma mancha em seu pescoço que não existia antes e me pergunto... Como se sente, André?
Isso o levara em pânico ao espelho de seu quarto, apavorado com a possibilidade de o primeiro sinal da doença ter se manifestado. Desde que iniciara a acão com Hinodeh, tornara-se sensível demais à menor marca, pontada de dor e febre. Quase todas as noites ela o despia na luz, comentando o quanto gostava de contemplá-lo, tocando-o, massageando-o ou acariciando-o, os dedos e as mãos sempre sensuais, mas ainda assim tinha certeza de que ela procurava por sinais denunciadores.
— Nada ainda, nenhum sinal, graças a Deus! — murmurara ele para seu reflexo, os olhos úmidos de alívio ao constatar que a marca era apenas a picada de um inseto.
— André — acrescentou Seratard agora —, esta noite, ao jantar, devemos fazer planos com ela. Recomendei que ela, depois de se tornar tutelada do Estado, deve ficar na embaixada, e...
Uma batida na porta interrompeu-o.
— O que é?
Vervene abriu a porta.
— Uma mensagem de Vargas. Madame Struan lamenta, mas não se sente bastante bem para vir ao jantar.
Seratard disse, em tom ríspido:
— Se ela estava bastante bem para se despedir de um caixão, poderia pelo menos nos poupar o tempo. Obrigado, Vervene. — Para André, ele acrescentou: — Precisamos conversar com ela antes de sua partida.
— Eu a procurarei pela manhã. Não se preocupe. Mas há rumores de que ela pode adiar a partida. Hoag teria aconselhado a não fazer uma viagem marítima, por motivos médicos, e Heavenly Skye não esconde de ninguém sua oposição.
Seratard contraiu os lábios.
— Detesto aquele homem. Ele é vulgar, grosseiro e repulsivo, um típico britânico.
Angelique observava a partida do clíper da suíte do tai-pan, no segundo andar. Uns poucos transeuntes avistaram-na na janela, e seguiram adiante, apressados, molhados, gelados, especulando sobre o que lhe aconteceria. Um deles era Tyrer, que voltara ao cais, depois de entregar os despachos. Ela parecia muito solitária ali, fúnebre em seu vestido preto, nunca tendo usado preto antes, apenas as cores da primavera. Ele parou por um instante, tentado a procurá-la, a indagar se podia ajudar de alguma forma, mas decidiu não fazê-lo, ainda tinha muito trabalho pela frente, antes de seu encontro com Fujiko, um pagamento mensal a Raiko por “serviços passados na dependência da conclusão do contrato”, e ainda sua aula com Nakama, que tivera de ser adiada por causa de suas obrigações com Sir William.
Tyrer soltou um grunhido ao pensamento de todas aquelas frases e palavras que ainda queria traduzir, e a nova mensagem para Anjo, que Sir William deliberadamente mandara Nakama verter, não por confiar nele, mas para avaliar a reação de um japonês ao comunicado anglo-saxão, brusco, sem nada de diplomático. Ainda pior, estava atrasado em seu diário, e não tivera tempo de escrever a carta semanal para a família. Tinha de despachá-la pelo navio de correspondência, não importava o que acontecesse.
Na última correspondência, recebera uma carta da mãe, informando que o pai estava doente:
...nada grave, Phillip querido, apenas um fluxo no peito, que o doutor Feld trata da maneira habitual, com sangrias e purgativos. Lamento dizer que, como sempre, essas coisas só parecem enfraquecê-lo ainda mais. Seu pai sempre detestou camomila e sanguessugas.
Ah, os médicos! Doença e agonia parecem seguir na esteira deles. Sua prima Charlotte foi para a cama dar á luz há quatro dias, tão saudável quanto jamais poderia estar. Já arrumáramos a parteira, mas o marido insistiu em chamar o médico para fazer o parto, e agora ela tem febre puerperal e não se espera que sobreviva. O bebê também está doente. É muito triste, uma moça tão simpática, ainda nem completou dezoito anos...
Notícias de Londres: A nova ferrovia subterrânea, outra coisa que é a primeira no mundo, será inaugurada dentro de quatro ou cinco meses! Os bondes puxados por cavalos são a sensação por aqui e a temporada do Natal promete ser a melhor de todas, embora tenham ocorrido distúrbios em algumas cidades industriais. O Parlamento está debatendo e vai aprovar uma lei proibindo que as carruagens sem cavalos andem a mais de três quilômetros por hora e devem ter um sinaleiro andando na frente!
O sarampo está em toda parte, com muitas mortes, mas o tifo não é tão terrível este ano. O Times informa que o cólera está grassando de novo em Wapping e nas áreas do porto, trazido por um navio mercante da índia.
Phillip, espero que você esteja se agasalhando direito, usando roupas de baixo de algodão, mantendo as janelas fechadas, contra os fluxos que abundam no ar da noite. Seu pai e eu gostaríamos que voltasse para a sensata Inglaterra, embora por suas cartas pareça estar satisfeito com seu progresso na língua do Japão. O correio (que alegria!) também funciona para vocês do Japão, assim como para nós daqui?
Seu pai diz que este governo está arruinando nosso país, nosso moral e nosso glorioso império. Já lhe contei que há agora mais de dezoito mil quilômetros de linhas de trem na Grã-Bretanha? Em apenas quinze anos, as diligências desapareceram...
A carta continuava assim por páginas, com todos os tipos de notícias que ela achava interessantes, e eram mesmo. O que era maravilhoso para Phillip, permindo-lhe manter-se em contato com as coisas de sua terra. Nas entrelinhas, porém, ele lera que a doença do pai não era tão fácil assim. E sua ansiedade aumentara. Por tudo o que sei, ele pode já estar morto, pensou Phillip, na maior preocupação.
Parado ali, no passeio, sob a chuva, ele sentiu repentina pontada de dor se irradiar do estômago. O suor molhou sua testa, mas talvez fosse a chuva, não sabia com certeza, só tinha certeza de que estava febril. Talvez eu tenha contraído alguma coisa... a sífilis ou algo parecido! Oh, Deus, talvez Babcott esteja enganado, e não seja apenas o fardo do homem branco... alguma doença corriqueira, um pouco de catarro. Oh, Deus, embora André tenha jurado por tudo o que é sagrado, e Raiko também, que Fujiko era mais pura do que pura, talvez ela não seja!
— Ora, Phillip, pelo amor de Deus, pare com isso! — dissera Babcott naquela manhã. — Você não tem sífilis, apenas comeu ou bebeu alguma coisa ruim. Tome um pouco da tintura do Dr. Collis. Isso vai curá-lo até amanhã... e se não curar, não precisa se preocupar, nós lhe providenciaremos um bom enterro. Quantas vezes tenho de lhe dizer para só beber água fervida ou chá?
Ele enxugou a testa, a claridade se desvanecendo, mas o vento sem amainar. Sentia-se melhor, sem dúvida, do que durante a noite, quando evacuara sem parar. Se não fosse por Babcott, ou pela magia de Collis, eu teria perdido o funeral... não, não o funeral, a partida do corpo de Malcolm. Que coisa terrível! Pobre coitado! Pobre Angelique! O que acontecerá agora?, especulou ele, perturbado, desviando os olhos de Angelique e se encaminhando apressado para a legação.
Angelique o vira. Quando o clíper foi tragado pela escuridão, ela fechou as cortinas e foi sentar à mesa. Seu diário estava aberto ali. Havia três cartas lacradas, prontas para seguirem pelo navio de correspondência: para a tia, tendo em anexo uma ordem de pagamento à vista, contra o Banco da Inglaterra, no valor de cinqüenta guinéus, a segunda para Colette, com uma ordem de pagamento de dez guinéus, as duas ordens providenciadas por Jamie, usando parte do dinheiro que Sir William lhe permitira manter. Pensara em usar uma das promissórias de Malcolm que encontrara na escrivaninha, pondo uma data anterior, e aproveitando O sinete no cofre, mas julgou que seria uma insensatez, pelo menos por enquanto. O dinheiro para a tia era apenas para ajudá-la e o de Colette serviria para comprar os melhores medicamentos para o momento do parto.
Posso ou não chegar lá a tempo, refletiu ela. Espero que sim.
A última carta deveria ser entregue em mãos. Dizia: Prezado almirante Ketterer: Sei que nos casamos graças à sua bondade. Agradeço do fundo do meu coração e juro que, qualquer que seja o poder que esta pobre mulher venha a ter no futuro, será usado para acabar com o comércio de ópio por parte da Struan e também para suspender a infame venda de armas para os nativos, como meu marido jurara fazer. Mais uma vez, agradeço, com toda a minha afeição sincera, Angelique Struan.
Assinar Angelique Struan muito a agradara. Os dois nomes harmonizavam-se com perfeição. Foi ótimo praticar a assinatura, a curva do “S” ajudando-a de certa forma a pensar.
Meu esquema com Edward... de onde saíram todas aquelas idéias sensacionais? É excelente... se ele fizer como eu quero. Deve convencer Tess de que não sou uma inimiga. Mas seu filho era seu filho, e eu não perdoaria, não se fosse meu filho, acho que não perdoaria.
O caminho à sua frente estaria coalhado de infortúnios, tanta coisa errada, tanta coisa podendo sair errada, André ainda é um cão subserviente, esperando para ser amordaçado ou repelido — na verdade, também há muitas coisas que podem sair certas —, o caixão correto se encontra a caminho, o de Malcolm pronto e à espera de amanhã, ainda posso viajar para Hong Kong pelo navio de correspondência, se quiser, tenho certeza que Edward quer casar comigo, pois ele, entre todas as pessoas, compreende que uma esposa rica é melhor que uma pobre, tenho as promissórias em branco de Malcolm, e o sinete de que ninguém mais sabe... e vinte e oito dias para esperar, não como da última vez, Santa Mãe, graças a Deus misericordioso... e como rezo por essa criança.
Ah, Malcolm, Malcolm, que vida boa teríamos, e eu cresceria sem precisar de momentos tão horríveis, juro que conseguiria.
Fazendo um esforço, ela se desvencilhou da melancolia e tocou a sineta em cima da mesa. A porta foi aberta sem uma batida polida, sem qualquer batida.
— Miss?
— Tai-tai, Ah Soh!
— Miss tai-tai?
— Mande Chen vir até aqui, depressa.
— Comer aqui, lá embaixo, miss... miss tai-tai?
Angelique suspirou pelas manobras a que Ah Soh podia recorrer para não chamá-la diretamente de tai-tai.
— Escute, seu monte de bosta de burro — disse ela, suavemente —, sou mais forte do que você, em breve estarei pagando as contas, e vai sofrer então.
Ela sentiu-se feliz por ver a irritação nos olhos escuros. Como Malcolm explicara, falar com Ah Soh em inglês correto, que ela não entendia, em vez de pidgin, levava a criada a perder a pose. Ah, que lógica distorcida a dos chineses, pensou Angelique.
— Chen, depressa!
Ah Soh retirou-se, mal-humorada. Quando Chen entrou, Angelique comunicou que tinha uma carta para ser entregue na embaixada britânica. Ele acenou com a cabeça, sem comentários.
— Chen, Ah Tok doente, não doente, hem?
— Ah Tok doente, Ah Tok ir Hong Kong. — Chen apontou na direção do mar. — Junto com amo.
— Ahn...
Angelique experimentou um profundo alívio, desejou ter pensado nisso antes. Por várias vezes vira Ah Tok espreitando das sombras, os olhos escuros transbordando de ódio, a saliva escorrendo pelos cantos da boca. Ela entregou a carta para Ketterer.
— Vá Casa Grande, agora.
Ele olhou para o nome, fingindo ser capaz de ler a escrita dos bárbaros.
— Comer este lugar mesmo, hem?
— Tai-tai comer este lugar mesmo, hem? Tai-tai!
Os olhos de Chen faiscaram. A boca sorriu.
— Tai-tai, comer este lugar mesmo, hem? Tai-tai miss?
— Você também é um monte de bosta de burro. Talvez eu o dispense... não, isso seria gentileza demais. Pensarei a seu respeito mais tarde. — Ela sorriu. — Comer lá embaixo. Que comida ter?
— O que querer, tai-tai miss, miss tai-tai!
Isso a fez rir, e ela sentiu-se melhor.
— Miss tai-tai, tai-tai miss, tudo mesma coisa. Que comida? Sua comida, comida chinesa — disse Angelique subitamente, sem saber por quê. — Mesmo que você, Chen. Comida da China, comida número um. A melhor, hem?
Chen ficou aturdido. Aquilo era bastante inesperado. No passado, ela apenas comia os patos que o amo apreciava, para agradá-lo, e preferia os pratos europeus, carnes, batatas, tortas, pão, os alimentos que ele e todos os chineses consideravam apropriados apenas para animais.
— Comida do amo, hem? — disse ele, especulativo.
— Comida do tai-pan para tai-tai do amo!
Autoritária, imitando Malcolm, ela acenou para que Chen se retirasse e virou as costas. Inquieto, Chen saiu, murmurando:
— Mesma coisa tai-pan, miss tai-tai.
Devo desenvolver o gosto pela comida chinesa, compreendê-la melhor, pensou Angelique, absorvendo uma nova idéia. Caso eu fique parte do ano. Jamie disse que gosta da comida chinesa de vez em quando, Phillip é entusiasmado, e Edward sempre a come...
Ah, Edward, Edward de tantas caras, de tantas possibilidades. Não tenho certeza a seu respeito. Se...
Se eu gerar um filho, ficarei feliz por ter uma parte de Malcolm para sempre. Voltarei a Paris, pois até lá já terei muito dinheiro, mas muito mesmo. Tess Struan se sentirá contente por nos ver partir, e nosso filho será criado em parte como francês, em parte como britânico, e será digno de seu pai. Se for uma filha, eu partirei também, com menos, mas será mais do que suficiente. Até encontrar um título que valha a pena, um homem que valha a pena.
Se não tiver sorte, e não houver nenhuma criança dentro de mim, então posso considerar Edward, ao mesmo tempo em que negocio com aquela mulher por minha migalha de viúva, tudo isso dependendo de Heavenly Skye estar enganado.
Enganado sobre o quão vingativa e implacável é aquela mulher.
49
Sábado, 13 de dezembro:
No dia seguinte o mar continuava do mesma cinza, o céu também, mas a tempestade já passara. A chuva cessara. Angelique, Skye e Hoag esperavam na cabine do cúter, ainda atracado no cais da Struan, e há muito atrasado na partida para Kanagawa. Além da baía, podiam avistar as ondas com as cristas brancas. A semi-escuridão, agravada pelo vento forte e úmido, tornava a espera mais difícil. Jamie e o reverendo Tweet já deviam ter chegado há meia hora.
— Eu gostaria que eles se apressassem — murmurou Angelique, o nervosismo começando a abalar sua determinação. — O que os está retardando?
— Não teremos de ir muito longe, assim não deverá haver problemas — comentou Skye, inquieto.
O cúter balançava gentilmente. Os homens usavam cartola, suéter e sobrecasaca, Angelique o seu traje de montaria verde-escuro e botas, o mais apropriado para uma viagem de barco.
Por cima da cabine ficava a pequena e envidraçada casa do leme. O contramestre apoiava-se no peitoril de uma das janelas abertas, fumando um cachimbo, um homem com bastante experiência no mar para não fazer perguntas. Jamie McFay limitara-se a lhe dizer:
— Quero o cúter no cais bem cedo, com uma carga completa de carvão, apenas você e um foguista de confiança.
Era o suficiente para ele. O resto saberia em breve, por que pessoas sensatas queriam sair ao mar num dia como aquele, quando os marujos sensatos preferiam ficar em terra.
— Lá está ele! — gritou Skye, soltando uma imprecação, sem perceber que o fazia.
Jamie estava sozinho, aproximava-se apressado pela High Street. Os transeuntes o cumprimentavam, franziam o rosto, seguiam adiante. Ele entrou no cúter. Fechou a porta da cabine.
— Tweet mudou de idéia — anunciou ele, o peito arfando.
— Mas que desgraçado! Ele não havia concordado?
Skye estava revoltado. Junto com Jamie, haviam concluído que a melhor história a contar era a de que um pescador cristão morrera em Kanagawa, depois de pedir para ser sepultado no mar, numa cerimônia que ele oficiaria. O resto poderia ser revelado mais tarde. E haveria uma contribuição por seus transtornos.
— Ele disse que não com este tempo — explicou Jamie, ofegante da pressa e frustração. — Tentei por todos os meios convencê-lo, mas ele se manteve intransigente: “O sujeito está morto, amanhã ou depois não será problema para ele, faz um tempo horrível, provavelmente não conseguiríamos voltar antes do escurecer... e eu tinha esquecido o jantar de Lunkchurch. Amanhã, depois do serviço, ou ainda melhor, na segunda-feira.” Que desgraçado!
Jamie respirou fundo outra vez.
— E nós já tínhamos combinado tudo! Angelique sentiu uma vertigem de desapontamento.
— Padre Leo! Vou pedir a ele. Tenho certeza que me atenderá.
— Não há tempo, Angelique, não agora. Além do mais, Malcolm não era católico, não seria apropriado.
— Maldito Tweet! — disse Hoag, furioso. — Teremos de adiar. O mar está perigoso, talvez seja melhor assim. Não podemos tentar amanhã?
Todos olharam para Angelique. Jamie disse:
— Tweet não é confiável, pode querer adiar até segunda-feira... e de qualquer maneira há o problema do navio de correspondência, que não esperará além de meio-dia.
Ele pedira ao comandante para protelar a partida, mas o navio já tinha algum atraso, e Biddy dissera que era o máximo que podia fazer.
— Temos de embarcar, não pode haver a menor dúvida quanto a isso — declarou Hoag. — Angelique deve comparecer ao funeral em Hong Kong.
— Eu me oponho — interveio Heavenly. — Mas se ela for, irei também.
— Padre Leo — insistiu Angelique. — Falarei com ele.
— Não seria conveniente — protestou Jamie. — Há uma outra solução, Angelique. Um sepultamento no mar não exige um capelão. Um capitão de navio pode celebrar o serviço, assim como Marlowe oficiou seu casa...
Ela recuperou a esperança.
— Pediremos a John! Depressa, vamos...
— Não será possível. Já verifiquei. Ele está na nave capitânia, reunido com Ketterer. Angelique, sou o capitão desta embarcação, tenho uma carta de navegador, embora antiga, e já testemunhei inúmeros sepultamentos no mar para saber o que fazer. Nunca fiz isso antes, mas não importa. Temos testemunhas. Se você quiser, posso oficiar... seria legal.
Ele viu a confusão de Angelique e olhou para Skye.
— Heavenly, não é legal? Pelo amor de Deus, é ou não é?
— Seria legal.
O nervosismo de Skye aumentou, quando uma onda, maior do que as outras, bateu no lado da embarcação. Hoag também estava assustado. Jamie tornou a respirar fundo.
— Angelique, toda essa idéia do sepultamento é bizarra, para dizer o mínimo e um pouco mais não fará mal nenhum a Malcolm. Trouxe uma Bíblia e o exemplar dos regulamentos navais. Tive de ir buscá-los, foi por isso que me atrasei. O que diz?
Em resposta, ela abraçou-o, as lágrimas escorrendo pelas faces.
— Vamos começar. Por favor, Jamie, depressa.
Jamie McFay apertou-a, achando muito agradável a proximidade. Skye indagou:
— E o contramestre e o foguista?
Jamie respondeu rispidamente:
— Já disse que cuidarei deles!
Ele desvencilhou-se, com toda gentileza, abriu a porta da cabine e gritou:
— Contramestre, vamos zarpar! Siga para Kanagawa!
— Pois não, senhor.
Contente por uma decisão ter sido tomada, o contramestre levou a embarcação para o mar, seguindo para o norte, a caminho da praia no outro lado. As ondas balançavam o cúter, desviavam-no do curso, mas não muito, o vento ainda dentro dos limites razoáveis, o céu prometendo não se tornar pior do que antes. Cantarolar uma canção do mar fê-lo se sentir melhor. Jamie logo foi ao seu encontro.
— Siga para o cais da legação. Vamos trazer um caixão para bordo... — Ele viu o contramestre morder com força o cachimbo. — Um caixão. Depois, sairemos pelo mar por uma légua, até águas profundas, e o sepultaremos. Teremos uma cerimônia, e você vai participar, junto com seu foguista. Alguma pergunta?
— Eu, senhor? Nenhuma.
Jamie acenou com a cabeça, tenso, e tornou a descer. Os outros não disseram nada, observando a linha da costa, com Kanagawa bem na frente.
Na casa do leme, o contramestre pegou o tubo de comunicação de metal, ao lado do timão, e berrou para o foguista lá embaixo, na casa de máquinas:
— Toda força à frente, Percy!
O barracão ficava no lugar que Hoag indicara, a fácil alcance do cais. O caixão fora deixado num banco de madeira. Skye, Hoag, o contramestre e o foguista levantaram-no com facilidade, cada um pegando num canto. Depois que eles saíram, Jamie fechou a porta e seguiu-os. Achara que era melhor para Angelique permanecer na cabine. Uns poucos pescadores e aldeões passaram por eles, fizeram reverências e se afastaram apressados, não querendo qualquer proximidade com os gai-jin. Foi mais difícil manobrar o caixão para bordo. O convés subindo e descendo, escorregadio da água do mar, era perigoso.
— Esperem um pouco — balbuciou o foguista. — Deixem-me embarcar primeiro.
Ele era baixo, usava um gorro de lã esfiapado, ombros largos, antebraços enormes. Passando para o convés, firmou-se com os pés bem abertos, agarrou o caixão pelo meio, puxou-o para bordo, em parte por dentro da cabine, quase que sozinho. O esforço, dilatando as veias, levou-o a soltar um peido, involuntário e estrondoso.
— Peço perdão a todos — resmungou ele, depois puxou o caixão para um ponto ainda mais seguro.
Uma extremidade entrava na cabine, a outra se projetava para a popa.
— Vamos amarrá-lo assim — disse Jamie.
— Certo, senhor.
— Boa tarde, Dr. Hoag.
A voz era severa. Surpresos, todos se viraram. O sargento Towery e outro soldado observavam-nos, ameaçadores.
— Ahn... boa tar... olá, sargento — disse Hoag, a voz estrangulada.
Ele ficou imóvel, assim como os outros. Towery adiantou-se, examinou o caixão.
— Mas o que temos aqui? Levando o sacana... peço perdão, madame... levando o caixão para Iocoama, hem?
— Nós... ele pediu para ser sepultado no mar, sargento — disse Hoag. — O Sr. McFay gentilmente emprestou o cúter e aqui estamos.
— No mar, hem? — O sargento Towery fitou-os, um de cada vez, como se quisesse gravar seus rostos na memória. — Muito louvável, eu diria.
Outra espera, enquanto eles morriam mais um pouco. Depois, o sargento acrescentou:
— No mar, hem? Melhor não perderem tempo ou também servirão de comida para os peixes. Madame...
Polidamente, ele bateu continência e se afastou, acompanhado pelo soldado. Ninguém se mexeu por um momento.
— Oh, Deus! — murmurou Hoag.
— O que acha disso? — perguntou Jamie.
— Encrenca, senhor.
Trêmulo, o contramestre tomou um trago de rum do frasco que levava na cintura, passou para Jamie, que também bebeu, Hoag sacudiu a cabeça, assim como Angelique. O foguista foi o último. Para desgosto do contramestre, ele tomou quase tudo e arrotou em seguida.
— Desculpem.
O estômago de Jamie estava embrulhado.
— O homem surgiu do nada, como se estivesse nos esperando. Alguém viu-o se aproximar? — Todos sacudiram a cabeça e ele acrescentou: — É melhor partirmos logo.
Enquanto amarravam o caixão, o contramestre levou o cúter para o mar. O arco deslizava muito bem sobre as ondas, apenas os borrifos se lançando para bordo, mas o suficiente para incomodar as pessoas no convés. Lá embaixo, a cabine era barulhenta, mas aconchegante, o ar puro e bem ventilado, mantendo fora o cheiro da fumaça do motor alimentado por carvão. À frente, para leste, na direção das águas mais profundas, o céu parecia mais ameaçador... e nada mais havia entre aquele ponto e a América.
— Melhor nos apressarmos, senhor — disse o contramestre a Jamie, na casa do leme. — Não nos resta mais que uma ou duas horas de claridade.
— Sente alguma coisa, contramestre?
— Melhor nos apressarmos, senhor.
Jamie tornou a olhar para leste. O céu parecia ainda mais escuro.
— Concordo. Mantenha o curso. Ele virou-se para sair.
— Senhor, o sargento vai nos delatar, certo?
— Vai, sim.
— Vamos fazer um funeral, certo?
— Isso mesmo.
— O que há de tão importante ali... — O contramestre sacudiu o polegar caloso na direção do caixão. — ...para nos arriscarmos a tudo o que tem ali?
Ele apontou para o tempo.
— Vamos sepultar o tai-pan, Malcolm Struan.
O velho soltou uma risada.
— O caixão está a bordo do Prancing Cloud, senhor, ambos sabemos disso.
— Tem razão, ambos sabemos disso. Mas é... um sepultamento simbólico, uma simulação, para atender aos desejos dele... e aos desejos da viúva... de ser sepultado no mar. Ela acha que isso não acontecerá em Hong Kong.
Jamie sabia do risco que estava assumindo, mas não havia outro jeito. Até agora, fora capaz de dizer a verdade.
— Uma simulação, senhor?
— Isso mesmo. Mais nada. Não temos o que esconder, não há o que recear. O contramestre balançou a cabeça, sem estar convencido, e pensou: Há um corpo lá dentro, tem de haver, com tanto peso. Mas não comece a fazer perguntas idiotas, pois pode não gostar das respostas. Quanto menos souber, melhor, e vamos torcer para que o tempo continue nos ajudando, e não se transforme na merda como cheira.
— Obrigado, senhor,
Jamie olhou para a baía, agora bem atrás.
— Basta sair da vista de terra, contramestre.
Uma última olhada na bússola e ele retornou à cabine para anunciar:
— Não falta muito agora. Angelique inclinou-se em sua direção.
— O que aquele soldado vai fazer?
— Denunciar-nos, é inevitável. Mas não importa.
— Não podem fazer nada conosco, não é, Sr. Skye?
— Não tenho como prever o que Sir William pode ou não fazer — respondeu Skye, com um frio no estômago, sentindo o convés subir e descer.
Jamie abriu um dos armários, tirou a bandeira inglesa que guardara ali, junto com a bandeira do leão e dragão. Ajudado por Hoag, prendeu as duas em torno do caixão. O cúter subia e mergulhava ainda mais do que antes, e todos tinham de se segurar para não cair. Angelique sentou perto da porta aberta. O ar era úmido e frio. Ela sentiu as lágrimas começarem a escorrer, deixou o véu cair, e fingiu olhar para a terra.
— Não falta muito agora — repetiu Jamie.
Quando a terra era apenas uma linha no horizonte, ainda havia alguma claridade, o mar se tornara mais encapelado, as ondas com cristas brancas, o vento mais intenso, mas tudo dentro de limites suportáveis. Sem chuva. Jamie gritou:
— Contramestre, pode diminuir a velocidade, apenas pelo tempo suficiente para nos permitir fazer o que temos de fazer!
— Certo, senhor.
A redução dos motores criou uma súbita poça de quase silêncio, agradável a seus espíritos, um alívio bem-vindo ao ruído ensurdecedor e à apreensão de se encontrarem tão longe... embora Hoag e Skye se sentissem cada vez mais nauseados. Só havia agora o zunido do vento, o barulho do mar e o ronco baixo e confortador do motor, sentido através do convés mais do que ouvido, só o suficiente para manter a proa contra o vento. E o vento era firme, soprando de leste, do oceano, mais forte que antes. Jamie respirou fundo.
— É melhor começarmos.
— Tem razão — disse Angelique. — O que faremos?
— Vamos para a popa, mas segurem-se firmes. Contramestre venha até a popa, o foguista também.
— Melhor eu ficar no leme, senhor, com a sua permissão. — Ele berrou pelo tubo de comunicação: — Percy, para a popa!
O frio aumentara. Eles se agruparam da melhor forma possível, apoiando-se onde podiam. Jamie postou-se de costas para a popa, os outros de frente para ele.
— Tirem os chapéus — ordenou ele, tirando o seu primeiro.
Skye, Hoag, o foguista e o contramestre obedeceram. Ele abriu o livro dos regulamentos navais, na página marcada. Lendo e improvisando, Jamie disse:
— Estamos aqui reunidos à vista de Deus para lançar os restos mortais de nosso amigo Malcolm Struan, marido de Angelique Struan, tai-pan da Casa Nobre, nas profundezas, concedendo-lhe o sepultamento no mar que ele desejava, assim como sua esposa, agindo como amigos devem agir...
A menção do nome, os olhos do foguista se arregalaram e ele lançou um olhar para o contramestre, que sacudiu a cabeça, advertindo-o a ficar calado. Murmurando para si mesmo, detestando funerais, ele se aconchegou ainda mais em seu casaco, contra o frio do vento, querendo descer para sua quente casa de máquinas. O vento aumentou um nó. Todos perceberam a mudança. Jamie hesitou, e depois continuou:
— Agora, digamos a oração do Senhor. Pai nosso...
Cada um orou à sua maneira, murmurando as palavras, o movimento aumentado do convés predominando em suas mentes. Concluída a oração, Jamie olhou para o livro por um momento, não que precisasse, pois lera o serviço antes na casa do leme, mas necessitando de tempo para acalmar seu coração, e afastar seus pensamentos do mar. Enquanto os outros fechavam os olhos, ele mantinha os seus abertos. Assim como o contramestre, vira a linha da tempestade se aproxirnando por trás deles, as ondas maiores, ameaçadoras.
— Como capitão do cúter Cloudette, da Struan, — disse ele, um pouco mais alto do que antes, para se sobrepor ao vento —, é meu dever e honra encomendar o espírito deste homem à guarda de Deus Todo-Poderoso, pedindo a Deus Todo-Poderoso que o perdoe por seus pecados, não que conhecêssemos algum, não pecados de verdade, lançando-o às profundezas de onde... de onde viemos para cá, desde a Inglaterra, do nosso lar, através dos mares. Ele era um homem de bem. Malcolm Struan foi um homem de bem, e nós o perdemos, sentimos saudade dele agora e sentiremos no futuro...
Ele olhou para Angelique, que segurava um espeque com as duas mãos, as articulações esbranquiçadas. Uma rajada de vento a atingiu, comprimindo o véu contra o rosto.
— Quer dizer alguma coisa, madame?
Ela sacudiu a cabeça, lágrimas silenciosas escorrendo. Os borrifos vinham de boreste, um pouco mais baixo, por causa do peso de todos e do caixão.
Desconsolado, Jamie fez um sinal para Skye e o foguista. Meio desajeitados, com um equilíbrio precário, eles soltaram as cordas que prendiam o caixão ao banco, empurraram-no com dificuldade para a amurada de boreste, a fim de lançá-lo ao mar. Jamie ajudou-os. Quando o caixão balançava na amurada, ele disse em voz alta, dominado por sua infelicidade:
— O pó voltará ao pó, o mar e o céu reivindicam o que é seu, e os ventos hão de sussurrar uns para os outros que este extraordinário jovem foi ao encontro de seu Criador cedo demais, cedo demais...
Com os outros dois homens, ele deu o empurrão final no caixão, que se inclinou e caiu no oceano.
O cúter adernou, corrigindo a perda de peso, uma rajada de vento atingiu o casco exposto, inclinando-o ainda mais. A amurada de bombordo alcançou o mar. Todos se seguraram, menos o contramestre e o foguista, que acompanharam o movimento. Angelique, fraca de tanto chorar, não conseguiu mais se segurar e escorregou. Já estava quase caindo ao mar quando Jamie a agarrou, puxando-a de volta, frenético, se segurando num apoio com a outra mão. O vento arrancou seu chapéu e o véu. O foguista, as pernas fortes de marujo, deslizou ao seu encontro, levantou-a, arrastou-a para a segurança da cabine, cambaleando por trás dela.
A temperatura caiu. A chuva começou. A tempestade desabou sobre o cúter. Jamie gritou:
— Contramestre, vamos voltar!
— Melhor ficar aí embaixo, senhor!
O contramestre já decidira o que fazer e como fazer. Esperou até que o foguista, soltando imprecações silenciosas, descesse pela escotilha para a casa de máquinas, fechando-a, e que Jamie, Hoag e Skye se encontrassem sãos e salvos na cabine. A chuva se tornou enviesada. O mar era mais violento.
O contramestre sinalizou “devagar, à frente”, virou o leme para bombordo, atenuando o impacto do vento. A proa desceu numa onda de rebentação. O cúter livrou-se bravamente, a água passando pelo convés para bater no vidro da cabine e casa do leme. Continuou a fazer a volta, enquanto o contramestre murmurava, com o cachimbo apertado na boca:
— Calma aí. Somos amigos, pelo amor de Deus, apenas viemos lhe entregar o neto do Demônio de Olhos Verdes.
Não foi fácil fazer a volta. As ondas empurradas pelo vento adernavam o cúter, e por mais que tentasse corrigir a posição, não lhe davam trégua, e arrastavam-no para mais longe ainda. Na cabine, os quatro se seguravam da melhor forma que podiam, qualquer coisa solta caindo. Angelique tornou a perder o equilíbrio, mas os outros a seguraram. No momento, ninguém pensava em qualquer outra coisa que não a tempestade. Hoag estava cinzento. Com um gemido cheio de bílis, ele estendeu-se no chão da cabine.
— É apenas a volta! — gritou Jamie, por cima do barulho e do vento, o cúter serpenteando, Angelique comprimindo a cabeça contra seu ombro, apavorada. — Já vai melhorar!
Ele constatou que o mar estava ruim, mas não agitado demais. Ainda não. Além disso, tinha confiança absoluta no contramestre e na embarcação... desde que o motor continuasse a fornecer potência.
— Não se preocupem!
O contramestre também já chegara a essa conclusão e decidira cair para sotavento, com bastante tempo para isso, se fosse necessário, e fazer a volta contra o vento, lançar uma âncora de tempestade — um balde na extremidade de uma corda, para manter a proa a favor do vento — e agüentar firme.
— Se ele resistir, vamos escapar — murmurou o contramestre, lutando com O leme contra a pressão das ondas.
O cúter completou a volta e se aprumou. A proa mergulhou, enquanto a onda seguinte passava, acelerada pelo vento, depois a embarcação subiu, vertiginosamente, alcançou a crista, e caiu no cavado. Todos a bordo estremeceram. Outra vez a mesma coisa, outra vez a descida estonteante, com muita água a bordo agora. Escendo e descendo, depois subindo e subindo, cada vez mais alto, a queda, a água espumante passando pelas janelas, cobrindo o convés. Angelique deixou escapar um pequeno gemido. Jamie tinha um braço em torno dela, a outra mão gurava uma alça. A chuva batia nas janelas da popa e na porta. Encolhido num canto Skye mantinha a cabeça baixa, vomitando. Hoag, estendido de bruços, também se encontrava desamparado.
Lá em cima, na casa do leme, o contramestre balançava de um lado para o outro, equilibrando-se no convés inclinado com alguma facilidade. A chuva e os borrifos eram intensos nas janelas, mas ele podia ver o suficiente e não permitia que as ondas atingissem o cúter diretamente pela popa, virando-o um pouco, a fim de que as subidas e descidas não acompanhassem toda a força do mar, fazendo-deslizar ao máximo possível... o que era terrível para os passageiros, “mas eles estão sãos e salvos, não é?” Ele estava radiante, divertindo-se, já vencera muita tempestades, haveria tempo suficiente para sentir medo quando estivesse em terra diante de um fogo alegre, tomando dois ou três grogues quentes, daqui a uma ou duas horas. Feliz, ele retomou seu canto jovial. E, de repente, seu coração pulou uma batida.
— Deus Todo-Poderoso! — exclamou ele.
O caixão se encontrava a boreste, ainda flutuando, na superfície, subindo e descendo com o cúter, as duas bandeiras ainda presas. Da cabine, Jamie também viu e compreendeu, igualmente chocado, que se uma onda grande alterasse o curso poderia jogar o caixão de volta a bordo, ou pior ainda, usá-lo como um aríete contra a frágil superestrutura, ou talvez, o pior de tudo, abrir um buraco no casco desprotegido.
Quanto mais o contramestre procurava se desviar, mais o caixão se aproximava. Chegou a bater no lado, depois se afastou, girando como uma piorra, mas permanecendo paralelo. Jamie praguejou por não ter se lembrado de aumentar o peso com uma corrente de âncora; o ar ou a flutuabilidade da madeira mantinha-o à tona.
Era difícil para Jamie observar, ao mesmo tempo em que amparava Angelique. Mas sentiu-se contente por ela estar com a cabeça comprimida contra o ombro de sua sobrecasaca. Ele tornou a virar o pescoço e avistou o caixão de novo, agora um pouco além da popa, boiando na água, dando a impressão de ser a embarcação macabra de uma mente doentia. O vento ou uma correnteza virou-o e agora, paralelo às ondas, começou a rolar, mas logo se endireitou, permaneceu estável por três ou quatro ondas, até que outra o virou e afundou-o, para alegria de Jamie. Ele voltou a respirar, concluindo que desaparecera para sempre, mas logo o caixão aflorou à superfície, a onda espumante seguinte envolveu-o, levantou-o, arremessou-o direto para cima do cúter. Numa reação involuntária, Jamie se abaixou. O caixão não caiu a bordo, apenas bateu de lado contra o casco, soando como se tivessem atingido um recife.
Por um momento, Hoag levantou a cabeça. O cérebro girava em seu crânio, pior do que o barco, e por isso ele nada viu, caiu de volta, gemendo, no miasma do enjoo. Angelique também olhou, mas Jamie a manteve apertada, afagando seus cabelos, para dissipar o medo.
— Apenas fragmentos flutuando, não há com que se preocupar...
Seus olhos continuavam fixados no caixão, a uns poucos metros de distância, paralelo ao cúter, as linhas definidas e letais, como um torpedo, as duas bandeiras ainda intactas. Ele se encolheu quando uma onda enorme se aproximou, e passou por cima do caixão. Depois que a onda se foi, o caixão desaparecera.
Ofegante, Jamie esperou, esquadrinhando o mar. Nada. Mais espera. Ainda nada. A tempestade amainou um pouco, o vento não mais uivava em torno da cabine. As ondas ainda eram altas e violentas, mas o contramestre fazia um trabalho magistral, recorrendo a toda à sua habilidade de marujo para atenuar a ameaça, o motor gritando estridente, enquanto o hélice saía da água de vez em quando.
— Vamos — murmurou Jamie —, continue assim, fácil e tranqüilo.
E depois seus olhos focalizaram. O caixão se encontrava a cinqüenta metros de distância, um pouco à popa, a frente pontuda apontada para o cúter. Acompanhava-os, subindo e descendo, como se ligado por algum cabo de reboque invisível. Horrendo e mortífero. Ele contou seis ondas, sem qualquer variação. E depois apareceu a sétima onda.
Era maior do que as outras. Pegou o caixão, transformou-o num míssil e arremessou-o para o cúter. Jamie percebeu que o ponto de impacto seria o meio do cúter, no lado de boreste, e que a inclinação exporia o casco ao dano máximo. E parou de respirar.
O contramestre devia ter chegado à mesma conclusão, pois no último momento o cúter desviou-se frenético, virando ligeiramente para boreste, a água passando agora por cima da amurada, e o violento caixão-míssil subiu na onda, projetou-se por cima da proa e foi se emaranhar nos cabos do gurupés, pendendo ali, meio dentro, meio fora da água, puxando a embarcação contra o leme.
O contramestre puxava o timão com toda a sua força, mas as ondas e o vento usavam o caixão para manter a embarcação instável. Em minutos, o contramestre compreendeu que iam afundar. Não havia mais nada que pudesse fazer para evitar. O tubo de comunicação soou, estridente. Com dificuldade, ele respondeu:
— O que é, Percy?
Mas sua voz foi abafada pelas imprecações do foguista, indagando que diabo ele estava fazendo lá em cima. O contramestre bateu com o tubo no suporte e redobrou seu esforço no timão, enquanto a proa era inexoravelmente forçada ao desastre.
Foi nesse instante que ele viu a porta da cabine se abrir. Jamie saiu para o convés aberto. Segurando-se onde podia, por sua vida, ele avançou pouco a pouco. O contramestre esticou a cabeça pela janela mais próxima, gritando e apontando:
— O machado de incêndio, o machado de incêndio...
Como se estivesse num sonho, Jamie ouviu-o, avistou o machado no suporte vermelho, no teto da cabine. O convés se inclinava e estremecia, a alma do barco sabendo que se encontrava num espasmo mortal. Um pé escorregou, mas ele colidiu com a amurada, descobriu que tinha o machado numa das mãos e estava seguro por enquanto. A água passou por cima da proa e engolfou-o. Outra vez ele sobreviveu, mas a onda deixou em sua esteira uma nauseante premonição. Numa reação involuntária, o estômago teve um espasmo e o vômito saiu por sua boca. Ele ficou estendido ali, no embornal, gelado e apavorado, segurando um espeque, e logo mais água o engolfou. Quando conseguiu respirar, tossiu, cuspiu a água salgada da boca e narinas, e isso o ajudou a passar do choque para a ação.
À frente, o bico do caixão estava preso pelo emaranhado de cabos, o resto jogado de um lado para outro, empurrado ou sugado pelas ondas. Ele contraiu os olhos para fitar o contramestre, contra o vento e a chuva, viu-o fazer o gesto de cortar.