— Perdi dez libras na roleta e mais cinco nos dados. Não demorou muito para que começasse a maior briga do mundo, os mercadores contra o resto. Acho que ganhamos. E depois voltamos para casa... mas alguns preferiram fazer uma visitinha a Naughty Nellie.



— Você também?



— Hum... eu também, mas apenas para um último drinque, porque a champanhe que ela oferece é a melhor e a mais barata de Iocoama.



— E as mulheres?



McFay soltou outra risada.



— Nada como o Estabelecimento para Moças da Sra. Fortheringill em Hong Kong! Há cerca de uma dúzia de mulheres, a maioria do East End, via Hong Kong, umas poucas de Sydney, na Austrália, filhas de condenadas que cumpriram suas penas e continuaram por lá. Todas são um pouco porcas, não têm nada a ver com meu gosto. — Transbordando de bonomia, ele cumprimentou transeuntes e acrescentou, sem pensar: — Minhas necessidades são mais do que bem atendidas por Nemi.



Ele olhou para Struan, viu seu rosto tenso. Perdeu a jovialidade no mesmo instante e censurou-se por mencionar Nemi.





— Você está bem, tai-panl



— Claro — respondeu Struan, dominado por uma abrupta inveja da força e virilidade do outro homem, não o detestando por isso, mas apenas a si mesmo. — Não suporto mais continuar assim, Jamie. Não pode imaginar como detesto. É muito difícil ser paciente. Mas tenho que ser, sei disso.



Ele forçou um sorriso.





— Nemi? Ah, sim, ela parecia uma moça bastante simpática. E bonita.



Com tremendo esforço, Struan afastou a mente de Shizuka e seu fracasso, a necessidade frenética de ter êxito com Angelique, navegar pelas águas turbulentas à frente e enfrentar a tempestade que a mãe com certeza criaria. Uma coisa de cada vez. Agora, prepare-se para enfrentar a igreja, depois o resto do dia, até seis horas da tarde, quando Ah Tok trará o medicamento:





— Não gostaria de tomar um pouco antes de ir para o templo, meu filho?





— Não, obrigado, mãe. Uma vez por dia é suficiente. O doutor disse que eu deveria ter cuidado.





— O que os demônios estrangeiros sabem?





— Não se esqueça de que também sou um demônio estrangeiro.





— Pode ser, mas é meu filho...



Ah Tok é uma velha megera. Mas posso confiar nela. Não há nada de errado em tomar um pouco uma vez por dia. Posso parar a qualquer momento que quiser. Não preciso durante o dia, embora sempre ajude, é claro. Preciso decidir sobre a carta da mãe, tenho de escrever para ela, despachar pelo navio de correspondência que parte amanhã. É indispensável.





A carta da mãe fora trazida do navio de correspondência por um mensageiro especial, um inevitável parente do compradore, Gordon Chen. Mais uma vez, não tinha o “P.S. Eu amo você”. E também mais uma vez, a mensagem secreta o enfurecera:







Malcolm: você enlouqueceu por completo? Festa de noivado? Depois que eu o alertei? Por que ignorou totalmente minha carta e meu chamado urgente para voltar? Se não fosse pelo relatório médico do dr. Hoag, recebido hoje, com a notícia inacreditável, eu teria presumido que você sofreu ferimentos na cabeça também, além dos terríveis ferimentos de espada. Exigi que o nosso governador tome as mais rigorosas providências contra esses animais bárbaros e leve os culpados à justiça da rainha de imediato! Se ele não o fizer, adverti-o pessoalmente de que toda a força da Casa Nobre será mobilizada contra esta administração!





Mas já chega disso. É VITAL que você volte a Hong Kong o mais depressa possível, a fim de resolver três problemas. Claro que estou disposta a perdoar sua transgressão, pois ainda é bastante jovem, passou por uma experiência terrível e caiu nas garras de uma mulher muito astuta. Agradeço a Deus por você estar recuperando as forças a cada dia que passa. Pelo relatório do dr. Hoag, tenho certeza que estará em condições de viajar quando receber esta carta (instruí o dr. Hoag a voltar com você e o considero pessoalmente responsável por sua segurança). Reservei as passagem pra os dois no navio de correspondência... mas não para ela, uma atitude deliberada.



É essencial que você volte DEPRESSA E SOZINHO. Primeiro, para se tornar formalmente o tai-pan. Seu avô deixou instruções específicas, por escrito, e DEVEM ser cumpridas antes que você possa ser o tai-pan LEGAL da Struan, independente do que seu pai ou eu lhe deixemos em testamento. Antes de morrer, seu pai, como você estava ausente, fez-me jurar o que tinha de ser jurado e prometer que exigiria o seu juramento das mesmas condições. Isso deve ser feito sem demora.



Segundo: porque devemos decidir logo como combater o ataque que Tyler Brock desfechou contra nós — mencionei antes que ele conta com o apoio total do Victoria Bank, e hoje ameaça executar nossas notas promissórias, o que nos causaria a ruína, se for bem-sucedido. Gordon Chen sugeriu uma solução, mas é muito arriscada, não pode ser explicada por escrito, e exige a assinatura e participação do tai-pan. Meu meio-irmão, “Sir” Morgan Brock, acaba de chegar a Hong Kong e tem ostentado seu título, que só adquiriu ao persuadir o sogro sem herdeiros a adotá-lo, para logo depois, de uma forma bem conveniente, morrer.



O pobre coitado recebeu alguma assistência? Deus me perdoe, mas dá para duvidar. Tanto ele quanto Tyler Brock proclamam que até o Natal terão nos humilhado e estarão de posse de nosso camarote de organizador de corridas no hipódromo de Happy Valley. A votação para o novo organizador foi ontem. Pelos desejos de seu avô, como em seu nome, mais uma vez lhe dei a bola preta. Deus me perdoe, mas odeio tanto meu pai que isso quase me deixa louca.



Terceiro: a cilada em que você caiu! Não pude acreditar em meus ouvidos sobre essa “festa de noivado “até que a notícia foi confirmada. Torço para que, a esta altura, com a ajuda de Deus, seu bom senso tenha voltado e possa compreender o que lhe aconteceu. Por sorte, você não pode casar sem a minha aprovação, muito menos com a filha católica de um escroque fugitivo (há mandatos judiciais para prendê-lo por suas dívidas). Por uma questão de justiça, devo dizer que entendo a sua situação. Gordon Chen explicou como seria fácil para um jovem como você ser envolvido; portanto, não se desespere. Temos um plano que o arrancará das garras dessa mulher e provará sem a menor sombra de dúvida que ela não passa — sinto muito, meu filho, mas tenho de ser rude — de uma jezebel.



Quando você casar, sua esposa deve ser inglesa, temente a Deus, nunca uma herege, uma dama de boa família, bem-educada e à vontade na SOCIEDADE, digna de ser sua esposa, com um dote apropriado, e qualidades para ajudá-lo em seu futuro. Quando chegar o momento você poderá escolher entre muitas damas condizentes.



Pela mesma correspondência, escrevi para o Dr. Hoag, e também para McFay, expressando meu choque por ele ter permitido que esse noivado estúpido ocorresse. Aguardo ansiosa o momento de abraçá-lo de novo, dentro de poucos dias. Sua mãe afetuosa.







Quase que no mesmo instante, Jamie entrara correndo no quarto, o rosto branco.



— Ela já sabe!



— Também recebi uma carta. Mas não importa.



— Oh, Deus, Malcolm, você não pode se limitar a dizer que não importa! — balbuciara McFay, quase incoerente. Ele estendera a carta que tremia em sua mão. — Tome aqui. Leia você mesmo.



A carta, sem qualquer forma de cumprimento, tinha apenas a assinatura de Tess Struan:



A menos que tenha uma explicação satisfatória do motivo pelo qual permitiu que meu filho (embora ele seja o tai-pan, você deve saber que ainda é menor) se tornasse noivo, sem primeiro obter minha aprovação... a qual DEVE saber que nunca seria concedida, para uma união tão absurda, deixará de ser o chefe da Struan no Japão ao final do ano. Ponha o Sr. Vargas no comando por enquanto e volte com meu filho no navio de correspondência, para resolver essa questão.



Struan devolvera a carta, furioso.



— Não voltarei para Hong Kong agora... só irei no momento em que eu decidir.



— Por Deus, Malcolm, se ela nos ordena que voltemos, então é melhor obedecermos. Há motivos para...



— Não! — explodira ele. — Será que não entende? NÃO!



— Abra os olhos para a verdade! — gritara McFay também. — Você ainda é menor, ela dirige a companhia, há muitos anos. Estamos sob suas ordens e...



— Não estou sob as ordens dela, nem de ninguém! E agora saia!



— Não vou sair, não! Será que não pode perceber que é sensato o que ela pede, não tem nada de difícil? Podemos voltar para cá em duas ou três semanas. Você terá de obter a aprovação de sua mãe em algum momento e, certamente, melhor tentar agora. Abriria o caminho para você, tornaria o nosso trabalho muito mais fácil...





— Não! E... e estou cancelando as ordens dela. A partir de agora, terá de obedecer às minhas ordens. Sou o tai-pan da Struan!



— Deve saber que não posso ficar contra ela!











Struan quase tropeçou, a caminho da igreja, ao recordar a terrível pontada de dor nos lombos quando, sem pensar, levantara-se de um pulo e gritara para McFay:





— Tenho de lembrá-lo do seu juramento sagrado de servir ao tai-pan, ao TAI-PAN, pelo amor de Deus, quem quer que ele seja, não à porra da sua mãe? JÁ ESQUECEU?



— Mas você não...



— A quem você vai obedecer, Jamie? A mim ou à minha mãe?



Um vasto abismo abrira-se entre os dois, houvera mais raiva, mais palavras, mas ele acabara prevalecendo. Era uma batalha de cartas marcadas. A cláusula constava de todos os contratos de trabalho, as pessoas tinham de assinar e ainda jurar por Deus, de acordo com as instruções do fundador.



— Está bem, eu concordo! — dissera McFay, entre os dentes semicerrados. — Mas exijo... desculpe, solicito o direito de escrever para ela e comunicar minhas novas ordens.





— Faça isso e envie a mensagem pelo navio de correspondência. Aproveite para informar que o tai-pan ordenou que você permaneça aqui, que somente eu posso despedi-lo, e é o que farei, se tiver algum problema... e que se quero ficar noivo, menor ou não, a decisão cabe apenas a mim.



Depois, ele tornara a arriar na cadeira, quase dobrando de dor.





— Por Deus, tai-pan — balbuciara McFay —, ela vai me dispensar, quer você goste ou não. Estou perdido.



— Ela não pode dispensá-lo sem a minha concordância. Está em nossos estatutos.



— É possível. Mas quer você goste ou não, ela pode converter minha vida e a sua num inferno.



— Não, porque você está apenas fazendo o que eu quero. Encontra-se nos limites da lei de Dirk... e é isso o que a governa, acima de todo o resto.





Ele recordara as inúmeras ocasiões em que a mãe invocara o nome de Dirk Struan para seu pai, para ele, ou para seus irmãos e irmãs, numa questão de negócios, de moral ou da própria vida. E o pai e a mãe disseram mil e uma vezes que eu seria o tai-pan depois dele, e todos aceitaram, em particular tio Gordon. As formalidades podem esperar, ela apenas tenta usar um pretexto adicional para me controlar... afinal, fui preparado durante toda a minha vida para o cargo, sei como lidar com ela e sei qual é o problema aqui.





— Sou o tai-pan, e agora... agora, se me dá licença, tennho muito trabalho a fazer.



No instante em que ficara sozinho, ele gritara por Ah Tok.



Foi uma ocasião em que eu realmente precisava do medicamento, funcionava muito bem, salvou-me de toda aquela dor e angústia, proporcionou-me coragem de novo, e mais tarde um momento feliz com Angelique. Ah, meu anjo de volta à suíte ao lado da minha, graças a Deus, tão próxima, tão atraente, tão sedutora mas eu bem que gostaria que a ânsia não surgisse ao pensar nela, e que isso não levasse à dor mais intensa, com a manhã ainda nem atingindo a metade, um sermão interminável pela frente, um almoço para suportar... e mais de oito horas até o próximo...



— Desculpe por ontem — disse McFay. — Sinto muito.



— Não foi nada. Serviu para expor os problemas e acertá-los — respondeu Struan, com uma estranha força. — Agora a companhia tem um líder autêntico Admito que meu pai não era muito eficaz e passou a maior parte dos seus últimos anos embriagado, com a mãe fazendo o melhor que podia, mas que não foi suficiente para nos manter à frente da Brock... vamos ser francos e reconhecerque eles são mais fortes, mais ricos e mais sólidos do que nós e que teremos muita sorte se resistirmos à atual tempestade. Veja o caso do Japão... as operações aqui mal dão para pagar as despesas.



— Tem razão, a curto prazo, mas não podemos esquecer que serão bastante lucrativas a longo prazo.



— Não da maneira como você as tem dirigido até agora. Os japoneses não nos compram quaisquer mercadorias lucrativas. Nós compramos seda e bichos-da-seda, uns poucos objetos laqueados e o que mais? Nada de valor. Eles não têm indústrias e parecem não querer nenhuma.



— É verdade, mas devemos lembrar que a China demorou anos para se abrir. E ali temos o ópio, o chá e a prata.



— Tem razão, mas a China é diferente. Existe ali uma civilização antiga e refinada. Temos amigos na China e, também, como você costuma dizer, um padrão de comércio. Minha opinião é de que devemos acelerar as coisas aqui para sobreviver ou fecharmos.





— Assim que Sir William resolver o problema com o Bakufu...





— Que se dane isso! — exclamou Struan, a voz estridente.— Estou cansado de ficar empacado numa cadeira e ouvir as pessoas dizerem que devemos esperar até que Sir William ordene que a esquadra e o exército cumpram o seu dever. Quero estar presente na próxima reunião com o Bakufu... ou melhor ainda, arrumaremos uma reunião particular para mim primeiro.





— Mas, tai-pan...



— Cuide disso, Jamie. É o que quero. E providencie depressa.



— Não sei como é possível.



— Pergunte ao samurai domado de Phillip Tyrer, Nakama. Melhor ainda, promova um encontro secreto com ele, para que Phillip não fique comprometido.



McFay transmitira-lhe todas as informações fornecidas por “Nakama”.



— É uma boa idéia — declarou ele, com sinceridade, animado com o queixo erguido e fogo que ardia em Struan. Talvez, depois de muito tempo, pensou e haja alguém aqui que possa fazer com que as coisas aconteçam. — Falarei com Phillip logo depois da igreja.



— Quando parte o próximo navio para San Francisco?





— Dentro de uma semana, o mercante confederado Savannah Lady. — McFay baixou a voz, cauteloso, pois um grupo de mercadores passava por eles. — Nossa encomenda de Choshu segue nesse navio.



— Em quem podemos confiar para viajar no navio, numa missão especial? — perguntou Struan, pondo seu plano em execução.



— Vargas.



— Ele não, pois é necessário aqui.



Struan tornou a parar, as pernas doloridas, claudicou até o lado do passeio, onde havia um muro baixo, em parte para descansar, mas também para manter a conversa em particular.



— Quem mais? Tem de ser bom.



— O sobrinho dele, Pedrito... é um rapaz esperto, parece mais português do que Vargas, não tem nada de chinês em seu rosto, fala português, espanhol, inglês e cantonês... e é bom com os números. Seria aceitável, tanto no norte, quanto na confederação. O que tem em mente?



— Reserve passagem para ele nesse navio. Quero que ele siga com a encomenda, que vamos quadruplicar, e também pedir...



— Quatro mil fuzis? — murmurou McFay, espantado.



— Isso mesmo. Mande também uma carta para a fábrica, pelo navio de correspondência de amanhã, avisando que devem esperá-lo. O navio fará conexão com o vapor da Califórnia que zarpa de Hong Kong.



McFay ressaltou, apreensivo:



— Mas só recebemos uma entrada em ouro para cobrir duzentos... teremos de pagar toda a encomenda, pois essa é a política da fábrica. Não acha que seria um risco excessivo?



— Algumas pessoas podem pensar assim, eu não.



— Mesmo com um carregamento de dois mil... o almirante fica histérico com a importação de armas de fogo e ópio... sei que ele não pode fazer nada por lei — acrescentou McFay —, mas, se quiser, ainda pode confiscar uma carga sob a alegação de emergência nacional.



— Ele não descobrirá nada, até ser tarde demais... você será esperto o suficiente para enganá-lo. Prepare uma carta para acompanhar o pedido, enviando uma cópia pelo navio de correspondência... cuide disso pessoalmente, Jamie, em sigilo... solicitando à fábrica um serviço especial para essa encomenda e também que nos nomeie seus agentes exclusivos para a Ásia.





— É uma excelente idéia, tai-pan, mas aconselho com veemência a não aumentar a encomenda.



— Faça um pedido de cinco mil fuzis e enfatize que negociaremos um contrato ainda mais atraente. Não quero que Norbert se antecipe a nós nesse negócio.



Struan recomeçou a andar, a dor pior agora. Sem olhar para McFay, sabia o que o outro estava pensando e disse, irritado:



— Não há necessidade de confirmar com Hong Kong primeiro. Faça o que estou mandando. Assinarei o pedido e a carta.



Depois de uma pausa, McFay acenou com a cabeça.



— Como quiser.





— Ótimo. — Ele percebeu a relutância na voz de McFay e decidiu que aquele era o momento. — Estamos mudando nossa política no Japão. Eles gostam de matar por aqui, não é mesmo? Segundo esse Nakama, muitos de seus reis estão dispostos a se revoltarem contra o Bakufu, que sem dúvida não é nosso amigo Pois vamos ajudá-los a fazer o que querem. Venderemos o que pedirem: armamentos, alguns navios, até mesmo uma fábrica de canhões, talvez duas, tudo em quantidades crescentes... em troca de ouro e prata.



— E se eles voltarem as armas contra nós?



— Uma única vez será suficiente para lhes ensinarmos uma lição, como aconteceu em todas as outras partes do mundo. Venderemos mosquetes, alguns fuzis de carregar pela culatra, mas não metralhadoras, nem os canhões maiores, nem os navios de guerra mais modernos. Daremos ao freguês o que ele quer comprar.











Angelique ajoelhou-se diante da tela do pequeno confessionário, ajeitou-se da melhor forma que as saias volumosas permitiam e iniciou o ritual, as palavras em latim saindo quase unidas, como era normal para os que não liam nem escreviam a língua, mas haviam aprendido as obrigatórias orações e responsas desde a infância, pela constante repetição.



— Perdoe-me, padre, pois eu pequei...



No outro lado da tela, o padre Leo estava mais atento do que o habitual. Em circunstâncias normais, escutava com a metade de um ouvido, certo de que seus penitentes mentiam, os pecados inconfessos, o nível de transgressão elevado — mas não maior que nas outras colônias na Ásia —, e as penitências que ordenava eram cumpridas apenas de uma maneira superficial ou totalmente ignoradas.



— Muito bem, minha criança, você pecou — disse ele, em sua voz mais agradável, com um francês de forte sotaque. Tinha cinqüenta e cinco anos, era corpulento e barbudo, ordenado há vinte e sete anos, em grande parte satisfeito com as migalhas de vida que julgava que Deus lhe permitia. — Que pecados cometeu esta semana?



— Esqueci de pedir perdão à Madona em minhas orações uma noite — respondeu ela, com uma calma absoluta, cumprindo seu pacto. — Também tive muitos pensamentos e sonhos ruins e fiquei com medo, esqueci que me encontrava nas mãos de Deus...



Em Kanagawa, no dia seguinte àquela noite — depois de pensar numa saída para sua catástrofe —, Angelique ajoelhara-se chorando diante do pequeno crucifixo que sempre levava a toda parte.



— Mãe de Deus, não há necessidade de explicar o que aconteceu e de como pequei de forma terrível — soluçara ela, rezando com todo o fervor de que era capaz. — Também não preciso explicar que não tenho ninguém a quem recorrer, ou que preciso desesperadamente de sua ajuda, ou que é óbvio que não posso contar a ninguém, nem mesmo na confissão, não ouso confessar o que ocorreu. Isso destruiria minha única chance... E ela acrescentara:



— Assim, de joelhos, eu lhe suplico, por favor, que façamos um pacto: quando eu disser na confissão esqueci de pedir perdão à Madona em minhas orações uma noite, isso significa na verdade que estou confessando, contando tudo o que lhe falei, e que viu acontecer comigo, junto com as pequenas mentiras que terei de inventar para me proteger. Suplico perdão por pedir isso, mas preciso de sua ajuda, não tenho mais ninguém a quem possa recorrer. Sei que vai me perdoar, e sei também que vai compreender, porque é a Mãe de Deus e uma mulher... vai compreender, e tenho certeza que me absolverá...



Ela podia ver o perfil de padre Leo por trás da tela, sentir o cheiro de vinho e alho em sua respiração. Suspirou, agradeceu à Madona, com toda força de seu coração, por ajudá-la.



— Perdoe-me, padre, pois eu pequei.



— Esses pecados não parecem ser tão terríveis, minha criança.



— Obrigada, padre.



Ela reprimiu um bocejo, preparando-se para aceitar a modesta penitência habitual, depois persignar-se, ser absolvida, agradecer ao padre e se retirar. Almoço no clube com Malcolm e Seratard, sesta em minha linda suíte ao lado dos aposentos de Malcolm, jantar na legação Rus...



— Que tipo de maus pensamentos você teve?



— Ora, apenas impaciência — respondeu Angelique, sem pensar. — E também não me sinto contente por me entregar nas mãos de Deus.



— Impaciência com o quê?



— Ahn... impaciência com minha criada — murmurou ela, confusa, tomada de surpresa. — E também porque meu noivo não se encontra nas melhores condições físicas, como eu gostaria.





— Ah, sim, o tai-pan é um excelente rapaz, mas neto de um grande inimigo da verdadeira igreja. Ele lhe falou sobre seu avô, Dirk Struan?



— Algumas histórias, padre — respondeu Angelique, ainda mais perturbada. Sobre a minha criada, fiquei impa...



— Malcolm Struan é um bom rapaz, não como o avô. Pediu a ele para se tornar católico?



A cor se esvaiu do rosto de Angelique.



— Já conversamos a respeito, mas é uma questão muito delicada, e é claro que não pode ser precipitada.



— Tem razão. — O padre Leo ouvira-a respirar fundo, percebera sua ansiedade. — E concordo que é de extrema importância, para ele e para você.



O padre franziu o rosto, a experiência lhe dizendo que a moça escondia muita coisa... não que isso fosse algo fora do normal, refletiu ele.



Já ia deixar o assunto por aí, mas de repente compreendeu que se tratava de uma oportunidade concedida por Deus para salvar uma alma e ao mesmo tempo realizar um empreendimento valoroso. A vida em Iocoama, ao contrário do que acontecia em seu amado e feliz Portugal, era insípida, com pouco a fazer, exceto pescar, beber, comer e rezar. Sua igreja era pequena e pobre, seu rebanho escasso e ímpio, a colônia uma autêntica prisão.



— Tal conversa pode ser delicada, mas deve ser realizada. A alma imortal do seu noivo corre um risco total. Rezarei por seu sucesso. Seus filhos serão criados na Santa Madre Igreja... ele já concordou com isso, não é?



— Também já conversamos a respeito, padre — respondeu Angelique forçando um tom jovial. — Claro que nossos filhos serão católicos.



— Se não forem, você os lançará à danação eterna e sua alma imortal também correrá perigo. — Ele sentiu-se satisfeito ao ver Angelique estremecer. Ótimo, pensou, um golpe pelo Senhor, contra o anticristo. — Isso deve ser acertado formalmente antes do casamento.



O coração de Angelique disparara, a cabeça doía com a apreensão que tentou impedir que transparecesse na voz, acreditando absolutamente em Deus e no diabo, na vida eterna e na danação eterna.



— Obrigada por seu conselho, padre.



— Falarei com o Sr. Struan.



— Oh, não, padre, por favor, não! — suplicou ela, num súbito pânico. — Isso seria... sugiro que seria insensato.



— Insensato?



O padre contraiu os lábios, coçando distraído os piolhos que habitavam em sua barba, cabelos e batina velha, logo concluindo que o possível golpe da conversão de Struan era um prêmio pelo qual valia esperar, e que precisava de um cuidadoso planejamento.





— Rezarei pela orientação de Deus, e para que Ele a guie também. Mas não se esqueça de que é menor, assim como seu noivo. Suponho que, na ausência de seu pai, monsieur Seratard seria legalmente considerado como o tutor. Antes que qualquer casamento possa ser realizado ou consumado, a permissão deve ser concedida, e essas e outras questões resolvidas, para a proteção de sua alma.



Ele estava radiante, mais do que um pouco satisfeito.



— Agora, como penitência, diga dez ave-marias e leia as epístolas de são João duas vezes, até o próximo domingo... e continue a rezar pela orientação de Deus.



— Obrigada, padre.



Agradecida, Angelique persignou-se, inclinou a cabeça para a bênção.





In nomine Patri et Spiritu sancti, absolvo tuum. — O padre fez o sinal cruz sobre ela. — Reze por mim, minha criança.



O ritual estava encerrado, e o padre Leo já começava, em sua mente, com Malcolm Struan.





Ao crepúsculo, Phillip Tyrer sentava de pernas cruzadas, diante de Hiraga, numa pequena sala particular de um restaurante também pequeno, meio escondido ao lado da casa do shoya, o ancião da aldeia. Eram os únicos fregueses e aquela era a primeira refeição japonesa autêntica, com um anfitrião japonês, que Tyrer experimentava. Sentia fome, e estava disposto a provar tudo.



— Obrigado por me convidar, Nakama-san.



— O prazer é meu, Taira-san. Posso dizer que seu sotaque japonês está melhorando? Por favor, coma.





Sobre a mesa baixa, entre os dois, a criada pusera muitos pratos pequenos, com diferentes alimentos, alguns quentes, alguns frios, em bandejas decorativas laqueadas. Telas de shoji, tatames, pequenas janelas corrediças se abrindo para a escuridão crescente, lampiões a óleo irradiando uma luz agradável, arranjo de flores no canto. Havia ao lado outra sala particular e depois o resto do restaurante, não muito mais que um corredor, com janelas que davam para uma viela, que levava à rua — um braseiro para cozinhar, barris de saquê e cerveja, uma cozinheira e três criadas.



Hiraga e Tyrer usavam quimonos de dormir, com faixas folgadas. Tyrer desfrutava o conforto inesperado e Hiraga sentia-se aliviado por ter tirado os trajes europeus, que usara durante o dia inteiro. Os dois haviam se banhado e recebido massagens na casa de banhos próxima.



— Por favor, coma.



Desajeitado, Tyrer usou os pauzinhos. Em Pequim, a embaixada aconselhara a não aceitar alimentos chineses:



—... a menos que queira ser envenenado, meu caro. Esses patifes realmente comem cachorro, bebem bílis de cobra, empanturram-se com insetos, qualquer coisa, e possuem uma crença espantosa, mas universal, de que tudo sob o céu pode ser comido. Uma coisa horrível!



Hiraga corrigiu a maneira como ele usava os pauzinhos.



— Assim.



— Obrigado, Nakama-san. Muito difícil. — Tyrer soltou uma risada.— Não engordar vou comendo isto.



— Não vou engordar comendo isto — disse Hiraga, ainda não cansado de corrigir o japonês de Tyrer, pois descobrira que gostava de ensinar.



Tyrer era um discípulo capaz, com uma admirável memória e uma feliz disposição... e ainda mais importante para Hiraga, uma contínua fonte de informações.



— Ah, desculpe, não vou engordar comendo isto. Mas o que é esta comida?





— É o que chamamos de tempura, peixe frito na massa de farinha com ovos.



— Como é feito?



Tyrer escutou a explicação com absoluta atenção, perdendo muitas palavras, mas compreendendo o essencial, assim como sabia que o outro homem também perdia muitas palavras em inglês. Falamos mais inglês do que japonês, pensou ele, contrariado, mas não importa. Nakama é um grande mestre e parece que chegamos ao melhor acordo possível — sem ele, eu não estaria aqui, provavelmente já teria morrido, e com certeza nunca alcançaria o prestígio que adquiri com Marlowe Pallidar e Wee Willie Winkie, muito menos obteria as valiosas informações que me são fornecidas. Tyrer sorriu. Agradava-lhe ser capaz de pensar em Sir William agora pelo apelido, quando apenas poucos dias antes tinha pavor do homem.



— Ah, agora entendo! Também usamos uma massa assim!



— Essa comida a seu gosto, Taira-san? — perguntou Hiraga, passando para o inglês.



— Sim, obrigado. — Sempre que podia, Tyrer respondia em japonês.— Obrigado por tudo, massagem, banho, agora camo, desculpe, agora calmo e feliz.





Alguns dos alimentos ele achava saborosos, como tempura eyakitori, pedaços de galinha grelhados com um molho agridoce. Descobrira que anago era enguia grelhada com um molho doce-azedote, que apreciava bastante. Sushi, fatias cruas de peixe, de diferentes cores e texturas, sobre uma bola de arroz, fora difícil de engolir a princípio, mas tornava-se saboroso quando mergulhado num misterioso molho salgado, chamado soy ou soya. Afinal, pensou ele, o pai me aconselhou a experimentar tudo:



— Meu filho, já que insiste nessa idéia drástica de se tornar intérprete de japonês, então aconselho que mergulhe no modo de vida deles, seus alimentos, e assim por diante... sem esquecer que é um cavalheiro inglês, com suas obrigações, um dever cora a coroa, o império e Deus...



Ele se perguntou o que o pai diria a respeito de Fujiko. Ela é sem dúvida parte do modo de vida deles. Radiante, Tyrer apontou com um pauzinho.



— O que é isto?





— Oh, desculpe, Taira-san, mas é falta de educação apontar com a extremidade fina do rashi. Por favor, use a outra extremidade. Isto é wasabeh.



Antes que Hiraga pudesse detê-lo, Tyrer pegou o nódulo de pasta verde e pôs na boca. No mesmo instante, sua boca pegou fogo, ele ofegou, os olhos lacrimejando, quase cego. A ardência passou depois de algum tempo, mas deixou-o ofegante.



— Por Deus — disse Hiraga, copiando Tyrer, esforçando-se para não rir. — Wasabeh não se comer, apenas pôr um pouco no soy para torná-lo picante.



— Engano meu — balbuciou Tyrer, ainda meio sufocado. — Por Deus, isso é letal, pior do que pimenta! Próxima vez, eu cuidadoso.



— Muito bom para homem que começa, Taira-san. E aprender japonês bem depressa, muito bom.



— Domo, Nakama-san, domo.



O mesmo com você, em relação ao inglês. Satisfeito com o elogio, Tyrer concentrou-se em ser mais hábil. A próxima coisa que experimentou foi tako, tentáculo de polvo. Tinha um gosto de borracha, mesmo com soy e wasabeh.



— Isto é saboroso, gosto muito.



Estou faminto, pensou Tyrer. Gostaria de mais galinha, outra tigela de arroz, mais vinte camarões no tempura. Hiraga come que nem um bebé. Mas não importa. Tenho um samurai como anfitrião, não faz uma semana que ele nos ajudou a sair da legação em Iedo sem um incidente internacional, não se passaram seis semanas desde que conheci André e já sei falar um pouco de japonês, já sei mais sobre os seus costumes que a maioria dos mercadores, que aqui se encontram desde o início. Se puder continuar assim, serei promovido a intérprete oficial em poucos meses e ganharei um salário condizente... quatrocentas libras por ano! Hurra... ou Banzai, como dizem os japoneses. Na atual taxa de câmbio, posso muito bem comprar outro pônei, mas antes disso...



Seu coração se acelerou.



Antes disso, comprarei o contrato de Fujiko. Nakama prometeu ajudar e assim não terei problemas. Ele garantiu. Talvez possamos começar esta noite... graças a Deus, Fujiko voltou da visita à avó. Creio que não deveria, porque hoje é domingo, mas não importa. Karma.



Ele suspirou. Entre André e Nakama descobrira essa palavra e a maneira maravilhosa como se tomara uma panaceia para todos os acontecimentos, bons ou maus, sobre os quais não tinha controle.



— Karma!



— O quê, Taira-san?



— Nada. A comida é boa.



— A comida é boa — arremedou Hiraga. — Obrigado, eu satisfeito.





Ele pediu mais cerveja e saquê. A porta de shoji foi aberta e as bebidas apareceram, numa bandeja trazida por uma criada de rosto jovial, que ofereceu um sorriso radiante a Hiraga e outro tímido a Tyrer. Quase sem pensar, Hiraga acariciou sua bunda.



— Gostaria de experimentar Sobre a Montanha?



— Mas que homem terrível! Sobre a Montanha? Oh, não, não, para mim nem sob, mas posso tocar a flauta, por um oban de ouro!





Ambos riram, pois um oban de ouro era preço afrontoso, a taxa que uma cortesã de primeira classe poderia cobrar por um serviço assim. A criada serviu o saquê, encheu a caneca de Tyrer e se retirou.



— O que ela diz, Nakama-san?



Ele sorriu.



— Sinto muito, difícil explicar, ainda não ter palavras suficientes. Apenas gracejo, gracejo homem-mulher, entende?



— Wakarimasu. Igreja hoje, você gostar?



Com a aprovação de Sir William e o ansioso consentimento do reverendo Michaelmas Tweet, ele levara Hiraga para a galeria do coro. Vestindo as suas novas roupas ocidentais, aprontadas com a habitual e inacreditável rapidez pelo alfaiate japonês, Hiraga passava por eurasiano, mal sendo notado. A não ser por Jamie McFay, que piscara discretamente.



— Igreja boa, sua explicação também — respondeu Hiraga.





Por dentro, no entanto, ele ainda tentava colocar todas as informações de Tyrer na devida perspectiva, assim como a espantosa visão de todos aqueles homens adultos e duas mulheres de aparência repulsiva, cantando em uníssono, levantando, sentando, entoando solenes as orações, inclinando a cabeça, para o Deus muito estranho dos gai-jin, que era na verdade, como Tyrer explicara depois do serviço três pessoas ao mesmo tempo, o Pai, o Filho, que fora crucificado como um criminoso comum, e um kami.



— So ka? — dissera Hiraga, perplexo. — Assim, Taira-san, mulher nome Madona não deus tem filho Deus... mas ela não Deus... e ela deitar com kami que não Deus, mas como hatomoto de Deus com asa, que não marido, e marido que também não Deus, mas pai é, assim pai de seu filho ser avô, neh?



— Não, não houve travesseiro. Deve entender...



Ele tornara a escutar e acabara fingindo que compreendia, a fim de poder interrogar Taira sobre a hostilidade entre as duas igrejas, pois notara que a mulher de Ori não se encontrava presente ali, e perguntara por quê. Duas igrejas, igualmente poderosas, sempre em guerra! E Ori queria que eu renunciasse a essas informações. Baka!





E quando, a cabeça doendo de tanta concentração, ele descobrira a razão para o cisma — e a resultante escalada de ódio, matanças e guerras universais —, tivera certeza de que em algumas áreas os gai-jin eram totalmente loucos: a divisão ocorrera apenas porque um velho bonzo chamado Lutero, trezentos e tantos anos antes, apresentara uma interpretação diferente de alguma pequena questão de dogma, que havia sido inventada por outro bonzo quatorze ou quinze séculos antes dele. Esse homem, obviamente outro doido, determinara, entre outras coisas, que a pobreza devia ser procurada, e que não deitar com mulheres mandaria um homem, depois da morte, para um lugar chamado Paraíso, onde não havia saquê, nem comida, nem mulheres, e ele se transformava numa ave.



Os bárbaros estão além da compreensão. Quem poderia querer ir para um lugar assim? Qualquer um podia perceber que o velho bonzo era como qualquer outro tolo ambicioso e descontente, que apenas queria, depois de uma vida inteira fingindo ser casto, ter uma esposa ou concubina, como qualquer bonzo ou homem comum que tivesse um pouco de sensatez.





— Taira-san — murmurara ele, atordoado —, precisar banho, massagem, saquê, você também, depois comida. Vir comigo, por favor.





A princípio, ele se preocupara com o convite. O ancião da aldeia, o shoya, poderia assim descobrir que ele falava inglês.





— Ah, como é maravilhoso falar gai-jin, eu bem que gostaria, Otami-san! exclamara o shoya, com uma admiração evidente. — Posso lhe dizer mais uma vez que apoio Sonno-joi, e também que designei o mais esperto dos meus filhos para um bonzo gai-jin, com ordens para fingir que se converte às suas crenças ridículas, a fim de poder aprender a língua e os costumes deles.



— Pode cuidar para que os criados sejam seguros?



— Será protegido como se fosse da minha família. Como segurança extra, sugiro que reserve o restaurante inteiro e que mande esse Taira falar apenas japonês na casa de banho. Você diz que aprende depressa?



— E muito.





— Seus segredos estão seguros comigo. Sonno-joi!





Hiraga sorriu, ao recordar o fervor com que o shoya o apoiara, embora não acreditasse nele. Eu gostaria de saber o que ele faria se soubesse de nosso plano de incendiar Iocoama. Iria se cagar todo e, antes mesmo de se limpar, correria para o Bakufu, bateria com a cabeça no chão, em sua pressa de servi-lo, e me trairia.



Baka!





Tyrer continuava a comer, com a maior voracidade. Embora ainda estivesse com fome, Hiraga apenas remexia a comida, de acordo com o costume e treinamento japonês tradicional, de se disciplinar a ficar satisfeito com pouco, já que havia mais tempos de escassez que de abundância, a suportar o frio e a dor com fortaleza, já que havia mais dias ruins do que bons, mais frio do que calor, e por isso era melhor estar preparado. Menos é melhor do que mais. Exceto pelo saquê. E por fornicar. Ele sorriu.





Saquê! Taira-san, tampai!





Aquele frasco acabou num instante. Ele pressionava Tyrer a beber, fingindo que era um importante costume japonês brindarem um ao outro. Não demorou muito para que Tyrer, na maior felicidade, se pusesse a falar sobre as guerras dos gai-jin, a extensão do império britânico, as mercadorias que fabricavam e em que quantidades. Por causa da sinceridade de Tyrer — a possível sinceridade — e seu “Juro por Deus que é verdade!”, Hiraga decidiu aceitar as informações, mesmo que assustadoras ou absurdas, até ser provado que eram falsas. Uma hora a estudar o atlas escolar e os mapas de Tyrer deixara-o chocado.



— Mas, por favor, como pode país tão pequeno como Inglaterra dominar tantos?



— Há muitas razões. — Tyrer sentia-se relaxado, satisfeito consigo. Esquecendo por um momento de usar palavras e idéias simples, ele explicou, com toda ingenuidade: — Isso mesmo, são muitas as razões. Por causa de nossa educação superior... nosso aprendizado superior, entende?... uma herança superior, uma sábia e benevolente rainha, e nosso forma de governo, singular e especial, com o Parlamento, que nos proporciona leis e liberdades melhores. Ao mesmo tempo, somos abençoados, uma ilha-fortaleza, o mar nos protege, nossas esquadras controlam os caminhos marítimos para o comércio, por isso fomos capazes de desenvolver habilidades superiores na paz, de inventar e experimentar. Como comerciamos mais, temos mais capital, Nakama-san, mais dinheiro do que qualquer outro país... e somos muito hábeis em “dividir para dominar”, uma antiga lei dos romanos...





Ele riu, terminou de tomar o Saquê.



— E o mais importante de tudo, como já falei antes, temos o dobro de canhões, navios e poder de fogo dos dois países seguintes... metade dos navios do mundo é britânica, com tripulantes e artilheiros britânicos.



Há muitas palavras e idéias que não consigo entender, pensou Hiraga, a cabeça girando. Romanos? Quem são eles?



Se metade do que Taira diz é verdade, não, uma centésima parte, então levaremos décadas para alcançá-los. É isso mesmo, refletiu Hiraga, mas com tempo haveremos de alcançá-los. Também vivemos numa ilha. Melhor do que deles, esta é a terra dos deuses, homem por homem somos mais resistentes, mais fortes, melhores guerreiros, temos disciplina e mais coragem; acima de tudo acabaremos vencendo porque não temos medo de morrer!



Mesmo hoje, posso conceber meios de confundi-los que não seria capaz de imaginar há poucos dias.



— Honto — murmurou ele.



— “Honto”, Nakama-san? A verdade? O que é verdadeiro?



— Basta pensar no que você dizer. Tanta verdade. Por favor, dizer antes... Kampai!



— Kampai! É tempo visitarYoshiwara, neh?



Tyrer reprimiu um bocejo de satisfação, cansado de perguntas, mas sentindo-se muito bem.





— Eu não esquecer, Taira-san.— Hiraga ocultou um sorriso. Já combinara que Fujiko não estaria disponível naquela noite. — Terminar saquê, última pergunta, depois ir. Por favor, dizer antes sobre máquinas fazendo máquinas? Como ser possível?



Tyrer lançou-se em outra resposta entusiasmada, explicando que os britânicos eram os líderes no que fora apelidado de Revolução Industrial:



— O motor a vapor, ferrovias, navios de aço e ferro, teares, semeadoras automáticas, produção em massa, colheitadeiras, tudo isso é invenção nossa, canhões de sessenta libras, submersíveis, anestésicos, novos medicamentos, navegação... há quatro anos, estendemos o primeiro fio de telégrafo através do Atlântico, por uma distância de mil léguas ou mais. — Ele decidiu não mencionar que o cabo queimara em menos de um mês e tivera de ser substituído. — Inventamos os geradores elétricos, a iluminação a gás...



Hiraga logo ficou tonto do esforço de concentração e de seu desejo desesperado de compreender tudo, quando não conseguia entender quase nada, mas também porque achava incompreensível que uma autoridade tão importante quanto Taira respondesse a qualquer pergunta que um inimigo fizesse, pois sem dúvida eram inimigos.



Preciso aprender inglês mais depressa, de um jeito ou de outro. E vou aprender. Uma batida gentil na porta, que foi aberta em seguida.





— Por favor, desculpe interromper, Otami-san — disse a criada —, mas o shoya solicita um momento do seu tempo.





Hiraga acenou com a cabeça, disse a Tyrer que voltaria num instante e seguiu a criada para a viela, que estava vazia, e depois até a rua movimentada. Os pouco pedestres que notaram sua presença fizeram reverências polidas, como se dirigia a um mercador, não a um samurai, obedecendo às ordens do shoya. Ótimo.





O shoya esperava numa sala interna, ajoelhado por trás da mesa, o braço apoiado num descanso. Um gato enroscava-se ao seu lado. Ele fez uma reverência.





— Sinto muito incomodá-lo, Otami-san, mas achei que seria melhor falar aqui, caso o gai-jin compreenda nossa língua melhor do que finge.



Hiraga franziu o rosto, acocorou-se, respondeu à reverência, com uma atenção total.



— O que é, Ryoshi-san?



— Há várias coisas que deve saber, Otami-sama.





O homem de rosto forte serviu chá verde nas xícaras pequenas, de um bule de ferro em miniatura. O chá era magnífico, tão excepcional quanto as xícaras de porcelana fina, aromático e delicado. O pressentimento de Hiraga aumentou. O shoya tomou um gole, depois tirou um pergaminho da manga e abriu-o. Era outra cópia do cartaz: O Bakufu oferece uma recompensa de dois koku por este revolucionário assassino de muitos nomes, um dos quais é Hiraga...



Hiraga pegou o cartaz, fingindo que era a primeira vez que o via. Soltou um grunhido, numa atitude neutra, e devolveu o cartaz.



O homem mais velho encostou a ponta na chama da vela. Ambos observaram o papel se enroscar, virar cinza, ambos sabendo que o disfarce de Hiraga, com o novo corte de cabelo, crescendo depressa, era muito bom.





— O Bakufu tornou-se obcecado na perseguição aos nossos bravos shishi.





Hiraga acenou com a cabeça, mas não disse nada, esperando. Distraído, o shoya afagou o gato, que ronronou baixinho.





— Dizem que lorde Yoshi está enviando um emissário para negociar armas com o chefe gai-jin. Com toda certeza, um lorde de sua posição ofereceria preços mais altos do que... do que emissários de Choshu. — Uma pausa, e ele acrescentou: — Os gai-jin venderão a quem pagar mais.





Hiraga já ouvira falar dos samurais de Choshu que visitaram a Casa Nobre por intermédio de Raiko — quase todos na Yoshiwara estavam a par das negociações — e convencera-se de que, se soubesse seus nomes verdadeiros, haveria de conhecê-los pessoalmente, ou pelo menos suas famílias. Apenas um ano antes, um meio-irmão, que também cursara a escola de inglês em Shimonoseki, integrara a equipe enviada para comprar as primeiras cem armas de fogo. É curioso que seja na mesma companhia possuída pelo tai-pan que em breve estará morto, pensou Hiraga, tanto ele quanto sua mulher, e todos naquela cloaca do mal.





— Os gai-jin não têm honra.



— Repulsivo. — Outro gole de chá. — Há muita atividade no castelo em Iedo. Dizem que o xógum e a princesa imperial planejam partir para Quioto dentro de uma ou duas semanas.



— Por que fariam isso? — indagou Hiraga, simulando um desinteresse que não enganava a nenhum dos dois.



O homem mais velho riu.



— Não sei, Otami-san, mas é muito curioso que o xógum deixe seu covil neste momento para viajar por muitos quilômetros perigosos, a fim de visitar o covil de muitos inimigos, quando sempre mandou um lacaio, desde o início.





O gato esticou-se e o shoya coçou sua barriga, enquanto acrescentava pensativo:





— Os roju estão aumentando os tributos em todas as terras de Toranaga, para pagar por quaisquer quantidades de armas e canhões que possam ser compradas, exceto por Satsuma, Tosa e Choshu.





Hiraga sentiu a ira latente do shoya, embora nada transparecesse, nem mesmo seu divertimento: Para que servem os camponeses e mercadores, se não para pagar tributos?





— A menos que o filho do céu possa usar seu poder celestial, o Bakufu vai outra vez mergulhar o Nipão numa eterna guerra civil.



— Concordo.





Hiraga pensou: Até que ponto concorda realmente, velho? Ele pôs essa questão de lado, para ponderar sobre a melhor maneira de desviar o Bakufu e Yoshi Toranaga desse curso. Akimoto deveria partir de imediato para Iedo e a casa da Glicínia, pois há dias que não temos notícias de Koiko e sua mama-san... talvez devêssemos ir jun...





— Por fim, parece que seu amigo shishi, Ori-san, não foi para Quioto, como estava planejado — informou o shoya.





Os olhos de Hiraga tornaram-se frios, quase como os de um réptil. O shoya conteve um tremor. Alerta no mesmo instante, o gato se ergueu num movimento suave e observou, cauteloso. Hiraga rompeu o silêncio:



— Onde ele está?





— Naquela parte da colônia onde os gai-jin de baixa classe vivem, bebem e fornicam.













Perto da meia-noite, André Poncin bateu na porta da Casa das Três Carpas. O porteiro deixou-o entrar no mesmo instante. Raiko recebeu-o muito bem, e logo estavam tomando saquê, conversando sobre as últimas notícias da Yoshiwara e da colônia — ela era uma fonte de informações para André e vice-versa —, na mistura habitual de japonês e inglês.



—... e a patrulha de vigilantes revistou todas as casas, Furansu-san! Como se escondêssemos criminosos! É contra as regras da Yoshiwara. Sabemos como manter cheias nossas tigelas de arroz: promovendo a paz e evitando as encrencas. Os vigilantes continuam no portão principal, olhando furiosos para os transeuntes.





Raiko abanou-se, recordando sua fuga por um triz, e desejou nunca ter convidado os shishi para se refugiarem em sua casa. É tempo de todos irem para longe daqui, pensou ela, vigilantes e shishi, por mais que eu goste de Hiraga.



— Eu gostaria que eles fossem embora.



— Que criminosos procuram? — perguntou André.





— Traidores, em geral os ronin. Mas qualquer um contra eles é um traidor. Os ronin são as presas habituais.





— O Bakufu pode ser derrubado? Uma revolução?



Ela riu baixinho, esvaziou o frasco, pegou outro.





Bakufu é como piolhos numa prisão... você destrói mil e só faz abrir espaço para mais cem mil. Não, o Bakufu e o xogunato são o Nipão, conosco para sempre.



— Taira-san esta noite aqui?



Raiko sacudiu a cabeça.



— A mulher que ele queria não estava disponível. Ofereci outra, mas ele recusou e foi embora. Curioso, neh? Um jovem curioso, em muitas coisas, embora talvez um bom freguês. Obrigada por apresentá-lo à minha humilde casa.



— Esse japonês, sensei, o mestre, o samurai que Taira descobriu... quem é ele, Raiko?



— Não sei. Ouvi dizer que é um homem de Iedo e mora agora na colônia, na aldeia.



— Taira-san fala com Fujiko sobre ele?



— Ela nunca mencionou, mas também não perguntei. Talvez eu saiba alguma coisa na próxima vez, Furansu-san.



André não acreditava nela, mas também não tinha importância, pensou ele; quando estiver disposta, Raiko me contará tudo o que sabe.



— Arrumou o medicamento?



— Claro. Tudo o que eu puder fazer para ajudar um cliente predileto é meu propósito na vida.



Ele pôs na mesa o par de brincos de pérolas. Os olhos de Raiko faiscaram. Não fez qualquer movimento para pegá-los, mas André teve certeza que ela os avaliara mentalmente no mesmo instante, determinando a qualidade, o custo e o valor de revenda.



— Pediram-me que lhe desse isto como presente — comentou ele, jovial. Raiko sorriu, insinuante, fingiu estar emocionada, embora já soubesse que o pagamento seria em jóias, que não poderiam ser revendidas em Iocoama. Seus dedos tremiam quando estendeu-os para pegar os brincos. Mas André se antecipou, recolheu-os, simulou que os examinava com o máximo de atenção.



Seu plano para Angelique funcionara com perfeição. Criados da Casa Nobre haviam vasculhado as ruas em vão. A ansiedade e as lágrimas de Angelique foram genuínas e ela sussurrara em particular:



— Oh, André, fiz o que era certo? Malcolm ficou transtornado... eu não tinha idéia de que os brincos eram tão caros.



— Mas ele não disse para você assinar tudo o que quisesse? Não é culpa sua não ter perguntado o preço... e ele gostou das abotoaduras, não é?



— Gostou, sim, mas...



— Sobrará o suficiente para alguma necessidade... um crédito contra qualquer eventualidade, Angelique.



André sorriu para si mesmo e voltou a concentrar sua atenção em Raiko.



— Vale muitas vezes o custo do medicamento.



— O preço de compra, sem dúvida. Mas tenho de mandar para a Yoshiwara de Iedo ou de Nagasáqui. Uma venda difícil. Mas, por favor, não se preocupe. Ajudarei a se livrar de uma criança indesejada.



— Não é minha — protestou ele, um tanto brusco.



— Ah, por favor, desculpe. — Raiko acreditou nele e refletiu que era melhor assim, bastante aliviada, pois não queria mais complicações com aquele cliente.



— Não é da minha conta.



— Só estou ajudando a amiga de um amigo. Na cidade dos bêbados.



— Por favor, desculpe-me. Ele sorriu, sem qualquer humor.



— Conhece pérolas. Estas valem cinqüenta vezes o custo do medicamento Raiko manteve o sorriso, a voz suave, mas por dentro estava rangendo os dentes.



— Mandarei avaliar. Claro que valem mais que o custo do medicamento.



— Sei disso.



André estendeu a mão aberta, e ela pegou os brincos. As pérolas eram quase pretas. Pérolas da ilha do Sul. Raiko encostou-as nos dentes, para sentir se eram frias, mordeu-as com extremo cuidado, mas não ficaram marcadas. Convencida agora de que eram genuínas e preciosas, ela murmurou:



— O preço, caro amigo?



— O preço é todo o medicamento, mesmo que falhe na primeira vez. O que for necessário, se a poção não fizer efeito, entendido? O que for preciso... qualquer coisa... para tirar a criança. Certo?



— Certo — concordou Raiko, feliz, sabendo que era um grande negócio. — Uma garantia... da remoção, da eliminação.





— Mais vinte oban de ouro — acrescentou ele, deliciado ao ver o rosto de Raiko se contrair num horror sincero, embora ainda fosse menos de um terço do que conseguiria na venda... o engaste era de pouco valor, mas ele cuidara para que o joalheiro chinês usasse apenas as melhores pérolas. Ela se lamentou, praguejou, barganharam por algum tempo, ambos apreciando a confrontação, ambos sabendo que o verdadeiro custo do medicamento e do conselho médico não representavam muita coisa para uma mama-san de bordel. Logo estavam prestes a fechar o negócio e foi nesse instante que o ânimo de Raiko mudou abruptamente; ela fitou-o de maneira estranha, gostando dele, triste por seu destino, e pensou: Devo interferir com o karma?



— O que é? — indagou André, desconfiado.



— Deixe-me pensar por um momento, Furansu-san.



Depois, numa voz muito diferente, afetuosa e suave, como nos velhos tempos, quando ele fora seu primeiro freguês, e oferecia vinho e jantar a toda a casa, para comemorar a abertura, Raiko disse:



— Desde que nos conhecemos, muita água passou sob muitas pontes, houve tempos de prazer e riso em nosso mundo flutuante e também, como acontece nessa vida, de tristeza e um lago de lágrimas, mas não por opção minha. Lembrei de repente que a última vez em que barganhamos assim foi pelo contrato de Hana.



O rosto de André transformou-se numa máscara.



— Não vamos falar de Hana.



— Ah, sinto muito, mas eu gostaria, por favor, porque posso ter uma solução para ela.



— Não há nenhuma — protestou ele, irritado. — Não há cura, Hana morreu, e nada tem a ver com pérolas!



— Tem razão. Por favor, fique calmo e escute. Talvez eu possa encontrar outra Hana, parecida, mas que já tenha a doença chinesa.



— Não é possível! — exclamou André, chocado. — A doença é horrível.



— Pode ser, perto do fim — insistiu ela, paciente. — Muitas vezes nada aparece por anos. Você não é feio, nada aparece no seu rosto, Furansu-san... talvez se passem anos antes que a doença se manifeste. Depende do seu karma. Devo procurar uma jovem nessas condições?



Ele fez menção de falar, desistiu, sacudiu a cabeça.



— Se eu conseguisse encontrar uma nova Hana, Furansu-san, e se você...



— Não é possível.



—... se você a aprovasse, e ela também o aprovasse, poderiam ficar juntos até... até que você decida... — Raiko deu de ombros. — Nunca importa o futuro, hoje é hoje, e esta é a regra do nosso mundo flutuante. Manteria a moça aqui, eu providenciaria a construção de uma nova casa, pois a outra foi destruída, como não podia deixar de ser. Você a trataria como Hana, em todas as coisas, o mesmo preço de contrato, o mesmo dinheiro mensal para roupas e alojamento, e ela o servirá com exclusividade.



Os olhos de Raiko o fixavam, e André compreendeu que ela podia ver em sua alma, contemplá-lo a se contorcer numa esperança súbita e frenética, ansiando em aceitar o que o livraria do tormento — a notícia do seu karma viajara com a velocidade da luz e, agora, todas as casas vedavam o seu acesso, com extrema polidez, sem dúvida, mas ainda assim o impediam de chegar a qualquer travesseiro, o que só era possível na cidade dos bêbados — mas também seria uma eterna espada de Dâmocles pairando sobre sua cabeça. E, ainda pior, seu ímpeto sexual não diminuíra, ao contrário, aumentara, a obsessão maior do que antes, e que já o levara à insanidade de duas noites atrás, com Angelique, não que deixasse de desejá-la agora, ainda a queria, com mais intensidade do que nunca, e sabia que, sem um meio de descarregar, tentaria de novo, e não falharia na próxima vez. Mãe Abençoada, ajude-me, pensou ele, quase em lágrimas, pois não quero infeccioná-la também.



— Há outra possibilidade — continuou Raiko, com um olhar estranho. — Podemos conversar sobre isso depois. Agora, Hana.



— Não quero falar sobre Hana!



— Tenho de fazê-lo, Furansu-san. Agora. Queria saber como ela morreu, neh?



Ele focalizou os olhos, quase parou de respirar, enquanto ela acrescentava:





— Depois que você foi embora correndo, naquela noite, e ela me contou o motivo, chorando, também fiquei chocada. Mandei que deixasse a casa e insultei-a com veemência, embora fosse como uma filha para mim. Claro que você estava certo e deveria tê-la matado, não apenas agredido, antes de ir embora, e claro que a mama-san dela deveria ter me contato, e ela própria me avisado no mo...



— Fale devagar... mais devagar.



— Por favor, desculpe, mas é muito difícil devagar. Ela deveria ter me comtado no momento em que soube. Fiquei furiosa e deixei que ela tentasse alcançá-lo, o que não conseguiu. E foi então que uma das criadas... Mieko... veio me avisar que Hana tentara o haraquiri...





Raiko suava agora. Não fora a primeira tentativa de suicídio em que estive envolvida. Houvera dezenas em seus quarenta e cinco anos como aprendiz, cortesã e mama-san... afinal, ela nascera no mundo dos salgueiros, sua mãe uma cortesã especialista do segundo grau. Muitas tentativas tiveram êxito, poucas por faca, a maioria por veneno ou afogamento, alguns suicídios duplos, entre amantes, o homem sempre pobre, às vezes até samurai. Mas o de Hana fora o pior.



Quando entrara correndo no quarto, Raiko encontrara a jovem em agonia chorando, desamparada, o pescoço cortado várias vezes, mas sem nenhuma veia ou artéria rompida, e a traquéia apenas arranhada. Um pouco de ar borbulhava do corte, que sangrava bastante, mas não de forma letal. Ela estava arriada nos futons, a faca bem perto, mas a mão não conseguia empunhá-la, e cada vez que ela tentava erguê-la, escapulia de seus dedos, e durante todo o tempo Hana chorava, sufocava e vomitava, suplicando perdão, balbuciando... ajude-me... ajude-me... ajude-me...





— Ela se encontrava além de todo e qualquer desejo de vida, Furansu-san — comentou Raiko, com uma profunda tristeza.— Já vi muitas assim e tenho certeza. Se sobrevivesse, haveria de tentar de novo e de novo, sem desistir. Neste mundo, pelo menos no nosso, chega um momento em que é bom e sábio ir para o além. Acabamos com o sofrimento de animais... é certo proporcionar o mesmo alívio a uma pessoa. Por isso, nós a ajudamos. Tratamos de acalmá-la e limpá-la, ajudamo-la a sentar, ela teve tempo de dizer Namu Amida Butsu, e depois segurei a faca sob sua garganta, e Hana caiu por cima, serena. Foi assim que ela morreu.



— Você... em parte... a matou?





— Era meu dever, como sua mama-san.





Raiko tornou a hesitar, suspirando. Não havia necessidade de mais lágrimas. Há muito que foram derramadas. Não me restou mais nenhuma. Quantas vezes, quando tinha a idade de Hana, odiando minha vida e a maneira como tinha de ganhar meu arroz, não cogitei da mesma fuga, uma ocasião até cortei os pulsos, para ser socorrida e salva por minha mama-san, que me aplicou uma surra impiedosa, assim que fiquei boa. Mas ela estava certa, minha mama-san, assim como eu, porque sabia que minha intenção não era tão determinada quanto a de Hana, e agora não posso sequer recordar o rosto do rapaz que ela me proibira, só me lembro que era um poeta



— Antes de morrer, Hana pediu-me que lhe transmitisse seu pedido desculpas. Que suplicasse perdão por ela.



— Você... você perdoa?



Que estranha pergunta!, pensou Raiko, surpresa.



— Hana era como flor de cerejeira do ano passado, dispersa pelo vento, não há necessidade de perdoar ou deixar de perdoar. Apenas uma pétala do mundo dos salgueiros. Ela existiu, mas não existiu. Pode compreender?



Na maior confusão, André acenou com a cabeça, sem entender todas as palavras, mas compreendendo o que ela fizera e o motivo. Odiava-a e abençoava-a, sentia-se aliviado, triste, suicida, cheio de esperança.



— Três homens, três antes de mim. Quem?



— Não sei, sinto muito, exceto que eram japoneses. Verdade.





Raiko falou com os olhos limpos, os nomes gravados no seu coração mais secreto, esperando para usá-los se fosse necessário, a favor ou contra o Bakufu.



— Sobre isto... — Ela abriu a mão. As pérolas faiscaram à luz do lampião a óleo, sedutoras. — Vamos combinar que eu lhe darei um terço do que obtiver com a venda, mais todos os medicamentos, e o mais que for necessário. Um terço seria...



Ela parou de falar subitamente, quando amiga na cidade dos bêbados adquiriu a definição apropriada.





O medicamento é para a mulher que vai casar com o tai-pan, disse a si mesma, excitada. Afinal, foi ela quem teria perdido alguma jóia ontem e não pensei duas vezes a respeito. Só pode ser ela, as pérolas confirmam... e, se é ela, o aborto ser sem a aprovação ou conhecimento do tai-pan, caso contrário Jami-san seria o intermediário, não Furansu-san.



— Um terço seria justo — declarou Raiko.





Já ia acrescentar, presunçosa, “para a jovem gai-jin que vai casar com o tai-pan”, mas percebeu o olhar sombrio com que Furansu-san contemplava sua xícara e concluiu que não havia necessidade ainda de revelar que deduzira “quem”.





Esta noite foi muito lucrativa, pensou ela, exultante. O conhecimento de um aborto secreto por uma dama tão importante a ser guardado, ou revelado, pode ser extremamente valioso, para a própria dama, antes ou depois do casamento, ou para esse tai-pan, que é tão rico quanto Adachi de Mito, antes ou depois do casamento, ou até mesmo para um dos seus muitos inimigos.





Depois: através de Hiraga, tenho esse Taira preso com firmeza ao portão de jade de Fujiko... o que há nessa mulher para tanto atrair olhos redondos? E, por último, mas nem por isso menos importante, a solução para Furansu-san, meu precioso espião gai-jin, aflorou.



Raiko sentiu vontade de gritar de alegria, mas teve o cuidado de conservar sua expressão mais modesta e sincera.



— Um terço, Furansu-san?



Desolado, ele fitou-a, balançou a cabeça em concordância.



— Avisou à dama que há um risco?



— Que risco? Disse que o medicamento faz efeito na maioria das vezes.



— É verdade, na maioria das vezes. Mas se não der certo, nós... Ora, não vamos nos preocupar com isso agora. Vamos esperar que Buda sorria para ela e que seu karma seja ter uma libertação sem problemas, para depois aproveitar as coisas boas da vida. — Raiko fitou-o nos olhos. — E você também. Neh?



André sustentou seu olhar.




















24







Quinta-feira, 6 de novembro:









Sua queridíssima Colette: As semanas passaram correndo; amanhã é meu dia especial, escreveu Angelique, excitada de expectativa. Sinto-me tão bem que mal posso acreditar. Meu sono é maravilhoso, tenho as faces rosadas, todos me elogiam, e meu corpo está melhor do que nunca... Nenhum sinal, nada, pensou ela. Absolutamente nada. Os seios um pouco sensíveis, mas isso é apenas imaginação... e amanhã tudo estará acabado.



Ela sentava à escrivaninha, em sua suíte, de frente para a baía, a ponta da língua entre os lábios, cautelosa demais para escrever qualquer coisa que pudesse comprometê-la. É um presságio de sorte que seja o dia dele para assinalar meu novo começo.



Amanhã é dia de são Teodoro, o meu novo santo padroeiro. Afinal, Colette, pelo casamento eu me torno britânica (não inglesa, porque Malcolm é escocês, e em parte inglês), e são Teodoro é um dos poucos santos dos britânicos. Ele também se tornou britânico (era grego), há mil e duzentos anos, e foi arcebispo de Canterbury...



A pena com ponta de aço hesitou, já que esse nome trazia fantasmas das brumas, mas ela não os admitiu, e fez com que resvalassem de volta às profundezas.



...isso significa que ele foi como o papa das Ilhas Britânicas. Reformou a Igreja, afastou os malfeitores e acabou com os costumes pagãos, foi santo e generoso, em particular com as mulheres, viveu até a idade espantosa de oitenta e oito anos e se mostrou, em resumo, um maravilhoso homem da verdadeira Igreja. Vou celebrá-lo com um dia especial de jejum e, daqui a três dias, com uma festa! O padre Leo me falou sobre ele. Confesso que não gosto do padre Leo, pois ele é muito malcheiroso (tenho de usar um lenço perfumado no confessionário — ele faria você desfalecer, minha cara Colette). No domingo passado tive depressão, e certamente perderei a missa neste domingo também. Lembra como costumávamos fazer isso, no tempo da escola, embora eu creia que jamais saberei como evitávamos as repreensões.



Lembranças de Colette, a escola e Paris distraíram-na por um momento. Ela olhou pela janela para o oceano, de um cinza escuro, tempestuoso, um vento forte criando vagalhões, que corriam para desabar na praia, a uma centena de metros de distância, no outro lado do passeio — navios mercantes ancorados, pequenas embarcações carregando ou descarregando, o único navio de guerra — a fragata Pearl, esplendorosa com seu novo mastro e nova pintura, aproximando-se para atracar de volta de Iedo.



Mas Angelique não viu realmente nada disso, seus olhos concentrados no futuro róseo que a mente prometia. Ali, em sua suíte, fazia calor, reinava a calma, o vento não soprava, as janelas bem vedadas, um fogo ardendo na lareira, com Malcolm Struan cochilando confortável numa poltrona de veludo vermelho, jornais, cartas e faturas em seu colo e espalhados em torno dos pés. A porta de ligação entre as suítes estava aberta. A porta para o corredor da suíte de Angelique destrancada. Era o novo hábito dos dois. Mais seguro assim, haviam concordado, haveria bastante tempo no futuro para a privacidade.





Havia dias em que ele chegava cedo e conduzia os negócios do boudoir de Angelique, até o meio-dia, quando cochilava por alguns minutos, antes do almoço; em outros dias, ele permanecia em sua suíte; e havia ainda os dias em que descia claudicando para o escritório no térreo. Sempre dizia que ela seria bem-vinda ali, mas Angelique sabia que era apenas por polidez. Lá embaixo era o domínio dos homens. Ela sentia-se muito satisfeita por Malcolm estar trabalhando; McFay lhe dissera que desde que “o tai-pan assumiu o comando, tudo se tornou mais eficiente, temos grandes planos em preparativos, e nossa companhia se agita...”



Era o que também acontecia com ela. Sem medo pelo dia de amanhã. Ao contrário, aguardava ansiosa o encontro com André, à noite, na legação. Juntos, haviam imaginado uma desculpa e ela voltaria para lá amanhã, por três dias, enquanto seus aposentos aqui eram repintados, feitas novas cortinas para as janelas e a cama, com sedas que escolhera no armazém.



— Ora, Angel — protestara Struan —, só ficaremos aqui por mais umas poucas semanas e a despesa...



Uma risada e um beijo fizeram-no mudar de idéia. Ah, já começo a amá-lo, e adoro o jogo de impor minha vontade!



Angelique sorriu, e recomeçou a escrever:



Colette querida, tenho mais energia do que em qualquer outra ocasião anterior. Ando a cavalo todos os dias — nada de excursões, o que torna a colônia restritiva —, mas muitos galopes em torno da pista de corrida, com Phillip Tyrer, Settry (Pallidar), que é o melhor cavaleiro que já conheci, às vezes com oficiais de cavalaria franceses e ingleses, sem esquecer o pobre Marlowe, que vem se revelando um homem excepcional, mas infelizmente não é um cavaleiro. Todos partiram há três dias, numa viagem a Iedo, onde Sir William e os ministros estão tendo A REUNIÃO com o gabinete nativo e o rei deles, chamado XÓGUM.



Malcolm melhora a cada dia, mas muito devagar, ainda anda com dificuldade. Continua maravilhoso — exceto nos dias de correspondência (duas vezes por mês), quando se mostra furioso com tudo e com todos, até comigo. Isso acontece apenas porque sempre recebe cartas da mãe (começo a odiá-la), que reclama amargurada de sua permanência aqui, insiste em seu retorno imediato a Hong Kong. Três dias atrás foi pior do que o habitual. Um dos clíperes da Casa Nobre chegou, desta vez com outra carta e uma convocação verbal, transmitida pelo capitão, que disse: “Eu agradeceria, senhor, se pudesse vir para bordo no momento em que descarregarmos a carga especial. Nossas ordens são para escoltá-lo e ao Dr. Hoag até Hong Kong, o mais depressa possível...”



Nunca tinha ouvido uma linguagem assim, Colette! Pensei que o pobre Malcolm ia sofrer um ataque apoplético. O capitão ficou atordoado e se retirou apressado. Mais uma vez, implorei a Malcolm para fazermos o que ela quer, mas... ele se limitou a resmungar: “Partiremos quando eu decidir, e ponto final! Nunca mais torne a tocar nesse assunto!” Iocoama é muito TEDIOSA e eu gostaria muito de voltar a Hong Kong e à civilização.



Para passar o tempo, venho lendo tudo o que posso encontrar (os jornais, além das notícias sobre a moda e a vida em Paris, são de fato muito interessantes, como fiquei surpresa ao descobrir, o que me levou a compreender que tenho sido uma desmiolada).





Mas devo me preparar para todas as soirées que terei de oferecer por meu marido, recebendo seus convidados importantes... assim como suas esposas. Por isso, tenciono aprender sobre comércio, ópio, chá, algodão, bicho-da-seda... Mas é preciso tomar bastante cuidado. Na primeira vez em que tentei conversar sobre um artigo relatando a lamentável situação da indústria da seda francesa (e é por isso que os bichos-da-seda japoneses são tão valiosos), Malcolm disse: “Não preocupe sua linda cabecinha com essas coisas, Angel...” E NÃO consegui dizer uma única palavra, nem mesmo como um aparte. Para ser franca, ele ficou na maior irritação quando sugeri que a Struan poderia abrir uma fábrica de seda na França...



Ah, minha querida Colette, eu gostaria que você estivesse aqui, e assim poderia lhe contar tudo o que tenho guardado no coração... sinto muita saudade, mas muita mesmo...



A ponta de aço, montada num cabo de osso, começou a borrar o papel. Angelique enxugou-o com extremo cuidado e limpou a ponta, admirada por ser tão fácil, a ponta voltando a ser como nova. Até poucos anos antes, a pena de escrever era a mais comum, e ela teria de usar uma faca especial, cortar uma nova ponta, parti-la para durar mais uma ou duas páginas, enquanto que aquelas penas Mitchell, produzidas em massa em Birmingham, duravam por dias e dias, e eram vendidas em diversos tamanhos, para agradar à fantasia e caligrafia de cada pessoa.



Por trás dela, Struan remexeu-se, mas não acordou. Adormecido, ele tem um rosto impecável, pensou Angelique. Atraente e forte... A porta foi aberta, e Ah Soh entrou.



— Miss, almoço, querer aqui ou lá embaixo, hem?



Struan despertou no mesmo instante.



— Sua patroa vai comer aqui — disse ele, bruscamente, em cantonês. — Eu almoçarei lá embaixo, em nossa sala de jantar principal, e avise ao cozinheiro que é melhor a comida estar excepcional.





— Sim, tai-pan.



Ah Soh retirou-se, quase correndo.



— O que disse a ela, Malcolm?



— Apenas que você almoçaria aqui... vou comer lá embaixo. Convidei Dmitri, Jamie e Norbert. — Ele olhou para ela, delineada contra a luz. — Você está linda.



— Obrigada. Posso almoçar com vocês? Eu gostaria.



— Lamento, mas temos negócios a discutir.



Com um grande esforço, Struan levantou-se e ela entregou-lhe as duas bengalas. Antes de pegá-las ele abraçou-a e Angelique permitiu que seu corpo se comprimisse contra o dele, disfarçando a irritação por ter sido preterida mais uma vez... não tinha para onde ir, nada a fazer, exceto escrever, ler alguma coisa e esperar. Era uma vida muito maçante...



Lun Dois cortou a primeira das enormes tortas de maçã em quartos, que passou Para pratos de peltre, despejou o creme espesso por cima, em porções generosas, e serviu os quatro homens.



— Deus Todo-Poderoso, onde conseguiu isso? — indagou Norbert Grey-forth.



Dmitri acrescentou, com igual espanto:



— É inacreditável!





— O creme? — McFay arrotou. — Desculpem. Com os cumprimentos do Tai-pan.



Dmitri levou a colher cheia à boca.



— A última vez que comi creme foi em Hong Kong, há seis meses. Hum... este é maravilhoso. É uma nova exclusividade da Casa Nobre?



Malcolm sorriu.



— Nosso último clíper, que chegou há poucos dias, trouxe três vacas. Foram desembarcadas à noite e, com a ajuda do intendente do exército, ficaram escondidas entre os cavalos... não queremos que sejam sequestradas ou que a alfândega japonesa comece a fazer perguntas. As vacas são vigiadas dia e noite.



Ele não podia conter sua satisfação pelo efeito do creme, depois de uma lauta quantidade de carne, batatas assadas, legumes frescos, um pastelão do faisão local, queijos franceses e ingleses... tudo acompanhado por cerveja, Château Haut-Brion 1.846, um excelente Chablis e porto.



— Vamos iniciar um rebanho aqui, se elas se aclimatarem, e uma fábrica de laticínios... subsidiária da que temos em Hong Kong... foi uma idéia de Jamie, e é claro que a produção estará disponível para todos.



— Aos habituais preços “nobres”? — disse Norbert, sarcástico, numa irritação óbvia por não ter tomado conhecimento antes daquele novo empreendimento da Struan.



— Com lucro... mas razoável — declarou Struan. Ele ordenara que as vacas fossem trazidas de Hong Kong no momento em que chegara a Iocoama. — Mais, Dmitri?



— Obrigado. Uma torta deliciosa, Malc!



— Quais são as notícias de sua terra? — perguntou Jamie, para romper a tensão entre Struan e Norbert Greyforth.



— Horríveis. Não podiam ser piores. Os dois lados continuam a se engalfinhar, com fuzis e artilharia de longo alcance... as mortes são cada vez mais numerosas. É a loucura do Novo Mundo.



— O mundo inteiro enlouqueceu, meu caro amigo — disse Norbert. — Mas a guerra é um bom negócio, sem a menor dúvida, para os afortunados.



Uma pausa e ele acrescentou, só para provocar Struan:



— A Brock tem todo o açúcar havaiano que você precisar, a preços razoáveis.



— Seria uma mudança e tanto se qualquer coisa fosse razoável — comentou Dmitri, jovial.



Ele sabia de tudo sobre os imensos prejuízos que a Struan sofreria por causa do golpe de Tyler e Morgan Brock, mas deu de ombros para si mesmo. Não estou na guerra deles, já tenho a minha com que me preocupar. Deus do céu, como vai terminar?



— A guerra nunca é boa para o povo. O custo será tremendo... já souberam que Lincoln conseguiu fazer com que o Congresso aprovasse seu imposto de renda para pagar a guerra?



Todos os outros ficaram imóveis por um instante.



— Qual é a taxa?



— Três centavos por dólar — respondeu ele, com uma fúria intensa, o que fez com que todos rissem.



— Tem certeza?



— Recebi a informação hoje, por um mensageiro especial que chegou no Calif Belle.



— Três por cento? Vocês têm muita sorte, Dmitri — disse Jamie, seu prato quase vazio. — Eu esperava quinze.



— Ficou louco? Haveria uma revolução.



— Já estão metidos em uma. Seja como for, é a mesma coisa que nós, só que o de vocês será apenas por três anos, isso... ei, espere um pouco — disse Jamie, alteando a voz —, isso é o que Lincoln prometeu, jurou que seria apenas por três anos, segundo o último Frisco Chronicle, se o Congresso aprovasse. Três anos.



— É verdade, mas você conhece os desgraçados dos políticos, Jamie, depois que aprovam um imposto, no Congresso ou no Parlamento, nunca mais o revogam. São uns safados, todos eles. Três por cento é apenas o começo.



— Tem toda razão — interveio Norbert, também irritado, virando-se em seguida para Lun. — Vou querer outra fatia, com bastante creme. Tem toda razão sobre os impostos, Jamie. Bloody Pitt, o patife que inventou o imposto de renda, prometeu a mesma coisa e depois voltou atrás, como vai acontecer com Lincoln. Todos os políticos são mentirosos, mas Robert Peei devia ter sido açoitado.



— Robert Peei, o mesmo sujeito que criou uma força policial, os Peelers? — perguntou Dmitri, pegando outra colher de creme.



— O próprio. Os Peelers até que foram uma boa idéia... embora não fosse uma idéia só dele. Bem que poderíamos aproveitar alguns aqui, não resta a menor dúvida... mas imposto de renda? Uma coisa monstruosa!



Malcolm comentou:



— Peei foi um bom primeiro-ministro. Ele...



Norbert ignorou-o deliberadamente:



— Só tivemos esse maldito imposto por dois curtos períodos, durante as guerras napoleônicas, o que era bastante justo, mas foi rejeitado para sempre em 1.815, logo depois de Waterloo. Mas isso não impediu que Peei o trouxesse de volta em 1.841, a sete pence por libra, três por cento, como Jamie disse. E apenas por três anos. Mas ele não repudiou a promessa, com o apoio de todos os outros patifes? Vai permanecer para sempre, e aposto vinte guinéus contra um quarto de penny furado como Lincoln fará a mesma coisa. Vocês estão perdidos, Dmitri. Nós também, por causa do Peei, um desgraçado.



O tom era incisivo, para irritar Struan, embora ele concordasse, em particular, com a avaliação geral que o outro fizera de Peei. O bom humor de Struan se evaporava depressa.



— Conhaque, Lim, e depois feche a porta!



Lim serviu doses generosas e se retirou em seguida, junto com os outros quatro criados de libré. Norbert arrotou.



— O creme estava ótimo, jovem Malcolm. Agora, pode explicar a que devemos o prazer de tal banquete?



O ânimo à mesa grande mudou. Tomou-se mais sério.





— O que preocupa todos os mercadores. Sir William e a nossa exclusão da reunião com o xógum e o Bakufu.



— Concordo que o patife devia ser decapitado. Nunca ouvi falar de nada assim, em toda a minha vida!



— É verdade — disse Struan. — No mínimo, deveríamos ter um representante no encontro.



— Concordo — disse Dmitri, mais preocupado com os acontecimentos na América. Um irmão já morrera. Os distúrbios pela escassez de alimentos eram iminentes. — Nosso homem até que é um bom sujeito, mas é um ianque. Sugeri que me designasse para seu vice, mas ele recusou. O que tem em mente, Malc?



— Uma delegação conjunta, para garantir que isso nunca mais aconteça, um protesto ao governador e...



— Stanshope é um idiota, — interveio Norbert, com um sorriso insinuante —, mas fará o que sua mãe mandar.



— Ele não é nosso títere, se é isso o que deseja insinuar — declarou Struan, os olhos tão frios quanto a voz.



— Títere ou não, ele poderá dispensar Wee Willie? — indagou Dmitri.



— Não — respondeu Struan.— Essa decisão tem de partir de Londres. Minha idéia é que se William não concordar que devemos participar de quaisquer negociações no futuro, então vamos aconselhar Stanshope a adotar tal medida como política oficial... e ele pode fazer isso. Afinal, somos nós que pagamos os impostos, somos nós que negociamos com os chineses. Por que não acontece a mesma coisa aqui? Unidos, poderemos conseguir. Norbert?



— Aquele patife é capaz de concordar com qualquer coisa para tornar sua vida mais simples, só que não vai adiantar coisa alguma. — Norbert assumiu uma expressão sombria. — William não é todo o nosso problema. Temos o almirante. Precisamos de um novo almirante. É mais importante do que afastar William. É ele que não quer bombardear os miseráveis, como deveria fazer. É ele, não William... qualquer tolo pode perceber isso.



Norbert terminou o conhaque, tornou a encher o copo e acrescentou, fingindo não notar como sua intervenção abalara Struan e irritara McFay:



— Mais uma vez, meus cumprimentos pelo creme, mas o conhaque não está à altura. Posso lhe mandar um barril do nosso Napoleon?



Com algum esforço, Struan manteve o controle.



— Por que não? Talvez seja mesmo melhor. Mas a sua solução para o nosso problema também é melhor?





— Minha solução é bem conhecida — declarou Norbert, o tom ríspido. — Exigir que eles entreguem os assassinos de Canterbury e paguem a indenização. Se não houver qualquer ação, três dias depois arrasamos Iedo. Quantas vezes temos de dizer isso? Mas os idiotas que temos aqui não querem aplicar as represálias normais, a única ação que os nativos compreendem... ou qualquer outro jugo diga-se de passagem. E até que a marinha tome a iniciativa, todos nós corremos perigo.



O silêncio foi se tornando opressivo. McFay evitou que os pensamentos transparecessem em seu rosto, preocupado com a possibilidade de Struan ter uma confrontação com aquele homem muito mais velho e experiente. Também sentia-se contrariado por não ter sido informado do verdadeiro motivo para a reunião, carecendo assim da oportunidade de dar alguns conselhos antes.





— Seja como for, Norbert, concorda que você, Dmitri e o tai-pan, representando a maioria, devem procurar Wee Willie, assim que ele voltar?





— Claro que devemos procurá-lo, mas não vai adiantar nada. — Norbert tomou mais um gole de conhaque, sentindo-se melhor pela discussão. — Sei o que diriam o Sr. Brock, um autêntico tai-pan, e Sir Morgan. Tyler Brock diria, com muitas palavras rudes dos anglo-saxões, que o almirante é que estraga tudo, que William não passa de um miserável arrogante que não vai mudar, e que falará pessoalmente com Stanshope, que também é um tolo, e que pelo primeiro navio de correspondência escreverá para os nossos amigos no Parlamento, para que protestem com veemência.



Enquanto falava, ele acendeu um charuto e depois acrescentou, através da fumaça, a voz escarninha:



— E diria também que, embora nossos amigos sejam mais poderosos do que os seus, e farão mais do que os seus, a solução vinda de lá vai demorar pelo menos cinco ou seis meses, e por isso você deveria tirar o rabo da cadeira, já que é o responsável, e resolver logo o problema, ou virá ao Japão para quebrar algumas cabeças.



Struan sentiu a onda de raiva, assim como o fluxo de medo, coisas que sempre ocorriam à menção do nome de Tyler Brock, ou quando lia a seu respeito nos jornais, ou o via nas ruas de Hong Kong, ou nas corridas de cavalo.



— Então qual é a solução?



— Não tenho nenhuma. Se a tivesse, claro que já a teria posto em prática. — Norbert soltou um arroto. — Como o seu japonês secreto e a concessão de mineração, que nunca vai obter.



Struan e McFay ficaram aturdidos.





Duas semanas antes, Vargas sussurrara excitado que fora procurado por um dos seus fornecedores de seda, agindo como intermediário de um certo lorde Ota, que queria se encontrar com o tai-pan em segredo, “para negociar a concessão exclusiva à Struan da mineração de ouro em seus domínios, que incluíam a maior parte do Kwanto, a área abrangendo quase todas as planícies e montanhas em torno de Iedo, em troca do comércio de armamentos”.



— Sensacional! — exclamara Struan. — Se for de boa fé, pode ser uma grande abertura para nós. Não concorda, Jamie?



— Se for uma proposta genuína, claro que sim.



— Aqui está a credencial deles.



Vargas mostrara a folha de papel-de-arroz da melhor qualidade, com colunas de caracteres em estilo chinês, lacrada com requinte.





— Este lacre é de lorde Ota, e este aqui de um dos roju, lorde Yoshi. Há duas condições: que a reunião seja realizada em Kanagawa, e que tudo seja mantido em segredo do Bakufu.



— Por quê? E por que Kanagawa? Por que não aqui?



— Eles apenas disseram que é o lugar em que deve ser feita a reunião e que chegariam à noite na legação em Kanagawa. O encontro pode ocorrer ali.





— Pode ser uma armadilha, tai-pan — alertara Jamie. — Não se esqueça de que Lun foi assassinado na legação e os assassinos...



O excitamento de Malcolm murchara com a lembrança. Mas tratara de afastar essa possibilidade.



— Há soldados ali para nos protegerem.



— Eles garantiram que seus representantes estariam desarmados, senhor — ressaltara Vargas —, e insistiram na necessidade de sigilo.





— É arriscado demais para você, tai-pan — dissera Jamie. — Irei com Vargas, que pode servir como intérprete.





— Lamento, Sr. McFay, mas eles querem falar pessoalmente com o tai-pan — explicara Vargas. — E parece que não há necessidade de um intérprete... eles levariam alguém que sabe falar inglês.





— É perigoso demais, tai-pan.



— Pode ser, mas também é uma oportunidade boa demais para se perder, Jamie. Nada assim jamais foi oferecido a qualquer um de nós. Se pudéssemos fechar um negócio desses, e melhor ainda em segredo, daríamos um gigantesco passo à frente. Quais são as condições para o acordo, Vargas?





— Eles não disseram, tai-pan.



— Não tem importância. Aceite o convite e nos reuniremos o mais depressa possível. Uma condição: o Sr. McFay irá comigo. Jamie, seguiremos de barco. Providencie um palanquim para eu usar em Kanagawa.













A reunião fora rápida e inesperadamente direta. Dois samurais. Um, que dissera se chamar Watanabe, falava uma mistura de inglês e gíria americana, o sotaque americano:





— Lorde Ota quer dois mineiros. Expertos. Poderão ir a qualquer lugar em suas terras... com guias. Sem armas. Ele garante salvo-conduto, dá bons alojamentos, comida, com todo saquê que puderem beber e mulheres de sobra. Contrato de um ano. Vocês ficam com metade do ouro que eles encontrarem, fornecem de graça todos os equipamentos de mineração e capatazes para supervisionar seus homens, se descobrirem um veio. E cuidam das vendas. Se der certo, ele renova por um segundo ano e um terceiro, mais até... se a Casa Nobre agir direito. Concorda?



— Eles só vão procurar ouro?



— Claro que ouro. Lorde Ota diz que tem uma pequena mina, talvez mais nas proximidades. Vocês cuidam das vendas. Homens devem ser bons, devem ter experiência dos campos da Califórnia e Austrália. Concorda?



— Concordo. Levará algum tempo para encontrar os homens.



— Quanto tempo?



— Duas semanas, se houver algum na colônia... seis meses, se tivermos de trazê-los da Austrália ou América.



— Quanto mais cedo, melhor. Agora: quantos fuzis têm à venda neste momento?



— Cinco.





— Lorde Ota compra e também todos os fuzis de Choshu que combinaram, quando chegarem. Mesmo preço.



— Esses rifles já estão prometidos. Podemos fornecer outros.





— Lorde Ota quer fuzis de Choshu... quer todos. Paga mesmo preço. Todas as armas de Choshu, entende? E todas as outras que puder obter. Só vende a ele no Nipão, só a ele, entendido? Mesmo com canhões e navios... tudo que puder obter. Ele paga em ouro. Quanto mais descobrirem, mais terão.





Nem Malcolm Struan nem McFay conseguiram demover o homem de sua posição. Ao final, Struan concordara e marcaram outra reunião, um mês depois, quando a companhia apresentaria um contrato simples, especificando suas garantias, e também os dossiês dos dois homens. Depois que os samurais se retiraram, deram os parabéns um ao outro.



— Jamie, vá procurá-los na cidade dos bêbados. Pelo amor de Deus, apresse-se e tome todo cuidado, antes que Norbert descubra.



— Pode deixar comigo.



Em poucos dias, McFay descobrira dois homens qualificados, um americano e um cômico que era mineiro de estanho. Ambos haviam trabalhado nos campos de ouro perto de Sutter’s Mill, na Califórnia, e nas descobertas em Anderson’s Creek, na Austrália. No dia seguinte, os mineiros deveriam concluir a lista dos equipamentos que iriam precisar, e acertar os detalhes de seus contratos. Agora, consternados, Struan e McFay ouviram Norbert dizer:



— Já fechei esse negócio, jovem Malcolm. Está feito, pode esquecer. Levei a melhor e já despachei os dois para Iedo, ao encontro do samurai Watanabe. Onde será que aquele miserável aprendeu o inglês americano? Ele lhe contou? Ora, não importa. Meio a meio em qualquer ouro que descobrirmos é um bom negócio. — Sua risada se tornou ainda mais desdenhosa. — Quanto a William, eu o verei assim que ele voltar, não há problema. Dmitri, você me acompanha. Providenciarei tudo.



Ele fez uma pausa, olhando para Struan, os lábios se contraindo.



— Já que você não estará aqui, levarei Jamie comigo.



— Como?



Norbert tornou a arrotar.



— Não circulou a notícia de que sua mãe ordenou que voltasse a Hong Kong pelo próximo navio?



Jamie ficou vermelho.



— Escute aqui, Nor...



— Não se meta nisso, Jamie — gritou Struan. — Norbert, eu o aconselharia a escolher suas palavras com mais cuidado.



— É mesmo, meu jovem? Não ouvi direito que ela o quer de volta, mandou que embarcasse imediatamente, e seu capitão tem ordens para levá-lo de qualquer maneira?



— Isso não é da sua conta! Eu o aconselho...



— Tudo que acontece em Iocoama é da minha conta! — berrou Norbert. — E não aceitamos conselhos de ninguém da Struan, muito menos de um garoto que mal saiu das fraldas!



McFay levantou-se de um pulo, Struan pegou seu copo de conhaque e jogou o conteúdo na cara de Norbert.



— DeusTodo-Poderoso...



— Trate de se retratar, Norbert! — bradou Struan, com Dmitri e McFay estupefatos com a escalada da discussão. — Retire tudo o que disse ou exijo uma satisfação!



— Pistolas ao amanhecer? — escarneceu Norbert, a ação ainda melhor do que esperava. Abruptamente, ele puxou a metade da toalha da mesa, para enxugar o rosto, derrubando os copos. — Perdoem-me pela confusão, mas vocês dois são testemunhas de que eu disse apenas a verdade!



— Peça desculpas... sim ou não?



Norbert pôs as mãos na mesa, olhando furioso para Malcolm Struan, que sustentou seu olhar, com uma raiva intensa.



— Você recebeu a ordem de voltar, tem vinte anos e, assim, ainda é menor perante a lei, e pode-se dizer que mal deixou as fraldas. É a verdade, e aqui vai outra: eu poderia estourar seus miolos, ou cortá-los, com uma das mãos amarrada nas costas. Afinal, você nem sequer consegue ficar em pé direito para lutar, não é mesmo?



A voz era incisiva, impregnada de desprezo.





— Você é um aleijado, jovem Malcolm, e esta é a verdade de Deus! Outra verdade: sua mãe dirige a Struan, vem fazendo isso há anos, e está arrasando a companhia... pergunte a Jamie ou a qualquer outro que seja bastante honesto para lhe responder! Pode se intitular tai-pan, mas não é, não é um Dirk Struan, não é o tai-pan, e nunca será! Já Tyler Brock é o tai-pan e seremos a Casa Nobre antes do Natal. Duelo? Você está louco, mas se é isso o que quer, a qualquer momento!



Ele saiu, batendo a porta.



— Eu gostaria que vocês dois fossem meus padrinhos — murmurou Malcolm, tremendo de raiva.



Dmitri levantou-se, trêmulo.



— Malc, você está louco. Duelar é contra a lei, mas tudo bem. Obrigado pelo almoço.



Ele também saiu. Struan tentou recuperaro fôlego, o coração doendo. Olhou para McFay, que o fitava como se estivesse diante de um estranho.



— Tem razão, Jamie, é uma loucura, mas também Norbert é o melhor da Brock & Sons. Ele levou a melhor sobre você e...



— Lamento a...



— Também lamento. Mas a verdade é que eu não falei a ninguém sobre os mineiros, Vargas nada sabia a respeito, e portanto só pode ter vazado por seu intermédio. Você é o melhor que temos na companhia, mas Norbert vai acabar conosco aqui. Uma bala na cabeça do desgraçado é a melhor maneira de acabar com ele... ou qualquer dos malditos Brocks! Depois de uma pausa, McFay disse:



— Lamento ter falhado, lamento muito, mas... mas não quero ter parte em qualquer duelo, não quero me envolver na sua vendeta. É uma insanidade.



A palidez de Struan aumentou.



— Vamos falar de você. Ou mantém seu juramento sagrado de me apoiar ou está liquidado. Tem três dias para se decidir.











No início daquela manhã, Settry Pallidar e uma tropa de dragões montados seguiu à frente da procissão pela ponte sobre o primeiro fosso do castelo de Iedo.





Passaram entre fileiras de samurais uniformizados, impassíveis, ombro a ombro — milhares de outros haviam margeado todo o percurso —, atravessaram a ponte levadiça e cruzaram os portões de ferro maciço. À frente estavam seus guias, samurais carregando estandartes de três metros de altura, com as insígnias dos roju, três flores de cerejeira entrelaçadas.



Por trás dos dragões, havia meia centena de Highlanders, precedidos pela banda de vinte homens, com seu gigantesco mestre, gaitas de foles a emitir sons agudos, e depois o grupo de ministros, com seus assistentes, todos montados. Os ministros usavam trajes de corte, tricórnios, espadas cerimoniais, casaca ou sobrecasaca contra a brisa constante, à exceção do russo, que vestia um uniforme de cossaco, com capa, e montava o melhor cavalo que existia no Japão, um garanhão castanho, que contava com um bando de vinte cavalariços para cuidá-lo e protegê-lo com suas próprias vidas. Phillip Tyrer e Johann integravam a comitiva de Sir William, André Poncin acompanhava Henri Seratard. Uma companhia de soldados ingleses vinha na retaguarda.





Dois pequenos canhões puxados por cavalos, com suas carroças de carga e guarnições, permaneceram no outro lado da ponte. Isso fora o assunto de dias de discussão, Sir William insistindo que a presença do canhão cerimonial era uma cortesia costumeira à realeza, o Bakufu alegando que quaisquer armas gai-jin eram contra a lei, um insulto a seu reverenciado xógum. O acordo, depois de uma semana de negociações, fora de que o canhão ficaria fora da ponte, as salvas reais não seriam disparadas até que os roju concedessem a permissão formal por unanimidade.



— Nenhuma munição deve ser desembarcada, sinto muito...



Esse problema fora resolvido com a ajuda do almirante francês. Durante uma das intermináveis reuniões, ele aproximara sua nave capitânia de terra e disparara uma bordada de artilharia, sem muita precisão, as balas passando sobre a colônia para caírem, inofensivas, nos arrozais além, mas apavorando todos os japoneses que ouviram os tiros.



— Se não pudermos desembarcar munição — explicara Sir William, insinuante —, então teremos de disparar as salvas do mar desse jeito... pedimos que usasse tiros de pólvora seca, mas imagino que ele entendeu mal a mensagem problemas de linguagem... e sentiremos muito se atingirem sua cidade, mas a culpa será de vocês. Terei de explicar isso em detalhes a seu imperador Komei canhoneio e os rifles, pois constituem uma honra real, um símbolo de respeito para homenagear seu xógum. Explicarei tudo isso quando nos encontrarmos com seu imperador Komei, na visita a Quioto, que já adiei três vezes, a pedido de vocês e que marcarei quando a minha esquadra mais poderosa voltar do ataque a uma boa parte da costa da China, habitada por piratas miseráveis, que tiveram a ousadia de atacar um pequeno navio britânico!





A oposição do Bakufu ruíra por completo. Assim, todos os fuzis estavam carregados, e todos os soldados avisados de que poderia ocorrer uma luta, mas que em nenhuma circunstância, e sob pena da mais rigorosa punição, deveria haver provocações a algum japonês.



— E o que fará a fragata H.M.S. Pearl, Sir William? — indagara o general, na última reunião.



— Pode nos levar a Iedo, e depois voltar para cá, caso nossos anfitriões resolvam desfechar um ataque de surpresa contra a colônia durante nossa ausência... a Pearl daria cobertura a uma evacuação.



— Pelo bom Deus, senhor, se acha que há essa possibilidade, por que assume o risco? — dissera o general, preocupado. — Os outros ministros não seriam uma grande perda, mas haveria um incidente internacional se alguma coisa lhe acontecesse. Afinal, senhor, representa o império. Não deve arriscar sua pessoa.



— É parte do meu trabalho, meu caro general.



Sir William sorriu para si mesmo, ao recordar como mantivera a voz calma, falando como se fosse um gracejo. O general acenara com a cabeça, solene, acreditando que era verdade. O pobre coitado é um pateta, mas isso faz parte de suas funções, sem dúvida, pensou Sir William, jovial, para depois descartar tudo e se concentrar apenas no castelo e na iminente reunião, a culminação de meses de negociações, e que daria legalidade ao tratado e à abertura dos portos do tratado. E foram aqueles poucos disparos franceses que produziram o milagre, pensou ele, sombrio. Maldito Ketterer, mas graças a Deus que suas operações na China correram bem, segundo os últimos despachos, e ele voltará em breve. Se pôde bombardear a costa da China, por que não aqui... ora, ele que se dane!



E que se dane também este castelo.



De longe, não parecia muito imponente; quanto mais se aproximavam, porém, mais se tornava imenso, com oito círculos de estruturas que pareciam alojamentos como defesas externas. Depois, o castelo propriamente dito, elegante, com lindas proporções, pensou Sir William, o fosso com quase duzentos metros de extensão, as muralhas exteriores muito altas, com uns dez metros de espessura, feitas com enormes blocos de granito. Nem mesmo nossos canhões de sessenta libras poderiam destruí-las, concluiu ele, impressionado. E, lá dentro, só Deus sabe quantas fortificações cercam a torre central. E o acesso só é possível através do portão ou por cima das muralhas, num ataque frontal, que eu não gostaria de ordenar. Deixar o castelo à míngua? Só Deus sabe quantos depósitos de alimentos existem aqui... ou quantos soldados pode alojar. Milhares.



Além dos portões, o caminho se estreitava, numa área dominada por arqueiros, abrigados em fendas defensivas, ou em parapeitos dez metros acima do solo. O caminho levava a outro pátio confinado, com outros portões fortificados, outro pátio, mais portões, no que devia ser um labirinto de passagens, terminando na torre central, e sempre deixando uma força hostil à mercê dos defensores por cima.



— Desmontamos aqui, Sir William — anunciou Pallidar, parando o cavalo e batendo continência.





Ele era o comandante da escolta. Estava acompanhado por oficiais samurais, a pé, que apontaram para uma enorme porta, sendo aberta naquele momento.



— Está certo. Sabe o que tem de fazer?



— Claro. Mas não tenho a menor esperança de lhe dar cobertura, ou até sair daqui lutando, mesmo enfrentando arcos e flechas.



— Não planejo lutar contra ninguém, capitão.— Sir William sorriu. Virou-se na sela, fez sinal para todos desmontarem. — Um castelo e tanto, hem?



— Melhor do que qualquer outro sobre o qual já li ou ouvi falar — comentou Pallidar, apreensivo. — Superior a tudo que os cruzados enfrentaram. Faz com que pareça bem pequeno o enorme castelo dos Cavaleiros de são João, em Malta. Ótimo para se defender, mas eu detestaria ter de atacá-lo.



— Foi o que também pensei. Phillip! — chamou Sir William. — Pergunte a alguém onde se pode urinar por aqui.





Tyrer aproximou-se apressado de um dos oficiais samurais, fez uma reverência polida, e lhe sussurrou. O homem soltou um grunhido e acenou para um biombo.



— Há baldes ali, senhor, e creio que ele disse que há baldes também no canto da maioria dos cômodos, caso alguém sinta uma súbita necessidade.



— Ainda bem. É sempre melhor se aliviar antes de uma reunião... de qualquer maneira, uma bexiga forte é uma dádiva importante para um diplomata.



Depois que Sir William e os outros ministros urinaram, ele conduziu-os através da porta: Seratard, conde Zergeyev, von Heimrich, van de Tromp, Adamson e um recém-chegado, pelo último navio de correspondência, o burgomestre Fritz Erlicher, da Confederação Helvética — Suíça —, um gigante barbudo da capital, Berna, que falava francês, inglês, alemão, holandês e muitos dialetos alemães. Phillip Tyrer e Johann seguiam logo atrás, com André Poncin caminhando ao lado de Seratard.





A sala de audiências tinha quarenta metros quadrados, teto alto, vigas grossas, muito limpa, arejada, paredes de pedra com fendas para arqueiros como janelas. Havia samurais impassíveis postados ao longo das paredes. Duas fileiras de meia dúzia de cadeiras, de frente umas para as outras, na outra extremidade. Muitas Portas. Apenas criados presentes para recebê-los. Um funcionário do Bakufu, vestido com requinte, embora subalterno, apontou para as cadeiras, sem fazer reverência, enquanto criados traziam pequenas bandejas, dizendo em holandês:



— Por favor, sentem para o chá.



Sir William percebeu que Johann conversava com seu ministro suíço e disse irritado:





— Phillip, pergunte a esse sujeito onde está o Conselho de Anciãos, os roju .





Disfarçando seu nervosismo, consciente de que todos os olhos fixavam-se nele, e sentindo vontade de urinar outra vez, Phillip Tyrer aproximou-se do representante do Bakufu e ficou esperando que ele fizesse uma reverência. O homem não fez, apenas o fitou com firmeza, e por isso Tyrer disse, em tom ríspido:



— Onde estão suas maneiras? Faça uma reverência! Sou um lorde em meu país e represento estes altos lordes!



O homem ficou vermelho, fez uma reverência profunda, murmurou um pedido de desculpas. Tyrer sentiu a maior satisfação por ter tido a cautela de pedir a Nakama que lhe ensinasse algumas frases fundamentais. Interpelou o homem de uma forma ainda mais autoritária:





— Onde estão seus superiores, os roju?



— Ah, sinto muito, por favor, desculpe, lorde — balbuciou o homem.— Eles pedem que esperem aqui... ahn... descansando da viagem.



Tyrer não entendeu todas as palavras, mas captou a essência.



— E depois?



— Terei a honra de conduzi-los ao local da reunião — respondeu o homem, os olhos cautelosamente abaixados.



Mais uma vez, para seu enorme alívio, Tyrer compreendeu. Enquanto relatava a conversa a Sir William, podia sentir um suor frio nas costas e refletiu que tivera sorte até agora.



Sir William soltou um grunhido e inclinou-se para os outros.





— Acham que devemos esperar, senhores? Eles estão atrasados... tínhamos combinado que entraríamos direto na reunião... não quero esperar nem aceitar o chá como desculpa.— À aprovação geral, ele acrescentou:— Ótimo. Phillip, diga a esse sujeito que viemos aqui para falar com os roju. É o que queremos fazer. Agora.



— Até que ponto... hum... deseja que eu me mostre veemente, senhor?



— Pelo amor de Deus, Phillip, se eu quisesse que você fosse prolixo e diplomático, teria sido eu mesmo prolixo e diplomático. Afunção de um intérprete é traduzir exatamente o que foi dito, não dar a sua interpretação das palavras.





— O grande lorde diz: quer ver roju agora. Agora!





O funcionário do Bakufu ficou chocado pela falta de polidez, uma afronta inédita, e se descobriu num dilema. Suas instruções haviam sido claras: Os gai-jin ficarão esperando por um período apropriado para “perderem a pose”, cerca meia vela, quando enviaremos um aviso, e poderá conduzi-los à nossa presença. Ele se apressou em dizer:



— Claro que os levarei, assim que acabarem de tomar o chá e estiver tudo pronto para a recepção perfeita, mas sinto muito, não é possível agora, porque as augustas pessoas não vestiram ainda os trajes corretos, e assim não é possível atender ao pedido inconveniente de seu amo, intérprete-san.



— Por favor, fale de novo, não tão depressa — pediu Tyrer, angustiado.



Outro fluxo de japonês e ele disse:



— Sir William, acho que está dizendo que temos de esperar.



— É mesmo? Por quê?



— Meu amo diz, por que esperar?



Mais japonês, que Tyrer não entendeu, e por isso o homem passou para o holandês. Erlicher interveio na conversa, irritando ainda mais Sir William e os outros. Ao final, Erlicher disse:





— Parece, Sir William, que os roju não estão... como se diz... ah, sim... ainda não estão prontos, mas assim que estiverem seremos levados à sala de audiência.



— Por favor, diga a esse sujeito, com toda a rispidez necessária, para nos levar até lá imediatamente, que chegamos na hora marcada, e que as reuniões de alto nível sempre começam na hora, porque as duas partes têm outros importantes problemas de Estado a tratar, como já expliquei cinqüenta vezes! E diga a ele para se apressar!





Erlicher transmitiu a mensagem, com a maior satisfação; por mais que o homem se contorcesse, insistisse e até suplicasse, acabou fazendo uma reverência e depois, tão devagar quanto possível, levou-os por uma porta, através de um corredor... depois de enviar um mensageiro para alertar o conselho sobre a espantosa impertinência dos gai-jin.





Outro corredor, e na extremidade samurais abriram imensas portas, o funcionário caiu de joelhos, inclinou a cabeça até o chão. Quatro homens em trajes de seda requintados, espadas à cinta, sentavam em cadeiras no outro lado da vasta sala de audiência, numa plataforma. A cadeira central se achava vazia. Na frente, num nível mais baixo — o que todos os ministros perceberam no mesmo instante —, havia seis cadeiras para os representantes estrangeiros; entre as duas fileiras, ajoelhava-se o intérprete oficial. Cerca de cem oficiais samurais ajoelhavam-se num semicírculo, de frente para a porta; quando Sir William entrou, todos os samurais na sala se inclinaram. Os quatro roju permaneceram imóveis. Sir William e os outros fizeram uma reverência polida e depois foram ocupar seus lugares.



— Em nenhuma circunstância ministros de nações civilizadas ajoelham-se e inclinam a cabeça até o chão — declarara Sir William —, não importa quais sejam os costumes de vocês, se fazem isso ou não, e ponto final!



Phillip Tyrer, agora um conhecedor de reverências, graças a Nakama, notou que cada vez que um ancião inclinava a cabeça, era o gesto de um superior para um inferior. Não importa, pensou ele, intimidado e excitado, estamos agora no santuário interior. Quando o xógum virá ocupar a cadeira vaga? Um menino? Gostaria de saber como ele parece e o que...



Um ancião começou a falar. Com súbito sobressalto, Tyrer reconheceu-o como o jovem emissário que participara da reunião anterior na legação em Iedo Também reconheceu o homem nervoso e moreno sentado a seu lado, que se mantivera calado durante todo o tempo no encontro anterior, mas observara a tudo com a maior atenção, os olhos contraídos.



Por que dois anciãos foram se encontrar conosco sem anunciar suas posições? ele perguntou a si mesmo. Espere um pouco, o representante mais jovem não se apresentara como Tomo Watanabe, isso mesmo, e dissera ser “funcionário subalterno, segunda classe”. Um nome falso, era óbvio. Mas por quê? E por que o disfarce?



Apreensivo, Tyrer deixou o problema para ser resolvido mais tarde e concentrou-se no que o homem dizia, sem compreender quase nada, como fora avisado antes que aconteceria por Nakama, que lhe explicara que as palavras em voga na corte, as que deveriam ser usadas, tinham significados diferentes, até mesmo conflitantes, das palavras e frases do japonês comum.



Sua concentração vacilou. O terceiro ancião era rotundo, rosto balofo, mãos femininas, por fim, de fato, um ancião, cabelos brancos, rosto encovado, com enorme cicatriz na face esquerda. Todos tinham pouco mais de um metro e meio, os mantos pareciam asas, calças largas, chapéus laqueados, amarrados sob o queixo, bastante impressivos, acima de tudo por sua dignidade imóvel. O intérprete japonês falou em holandês:





— O roju, o Conselho de Anciãos do xogunato, dá as boas-vindas aos representantes estrangeiros, e deseja que apresentem seus documentos, como foi combinado.



Sir William suspirou, mesmerizado pela cadeira vazia.



— Muito bem, Johann, vamos começar. Pergunte a eles se não devemos esperar até que o xógum nos honre com a sua presença.



A indagação foi traduzida para o holandês, depois para o japonês, houve muita discussão, antes que o ancião mais jovem, Yoshi, fizesse um pronunciamento, traduzido de forma lenta e meticulosa para o holandês, e depois para o inglês.





— Basicamente, sem o palavrório habitual, Sir William, o porta-voz diz que o xógum não deve ser esperado nesta reunião, que será apenas com os roju. O xógum aparecerá mais tarde.



— Não foi isso o que combinamos e torno a informá-los de que credenciais ministeriais só são apresentadas a chefes de Estado, neste caso o xógum, e assim não podemos continuar a reunião.



Outras traduções e em seguida, para desprazer dos ministros:





— O ancião diz que o xógum teve de viajar para Quioto, com urgência, e lamenta não ter o prazer de encontrá-los, mas podem apresentar suas credenciais aos roju, já que eles têm autoridade para aceitá-las.



Novamente as traduções, a irritação de Sir William transformando-se numa raiva ostensiva, mais argumentos dos dois lados, mais tempo consumido, depoi um pergaminho, cheio de caracteres, com um lacre imponente, manipulado como se fosse o Santo Graal, foi apresentado a Sir William por um funcionário ajoelhado.



— Phillip, pode ler isto?



— Não, senhor. Sinto muito.



— Não precisa se preocupar.— Sr William suspirou, virou-se para os outros. — Isto é bastante impróprio.



— Também acho — declarou von Heimrich, friamente.



— Inaceitável — acrescentou o conde Alexi Zergeyev.



— Um precedente perigoso — comentou Adamson.



— Fora do comum, sem dúvida, pois eles prometeram a presença do xógum — disse Seratard, em francês. — Mas podemos, apenas para esta reunião, concordar com o pedido... o que acham, meus amigos?



Ele teve o cuidado de ocultar sua irritação e manteve a voz suave e gentil, como André Poncin, a seu lado, sugerira num sussurro cauteloso, ao entrarem na sala, acrescentando:





— Tome cuidado, Henri. O porta-voz dos roju é o mesmo funcionário do Bakufu que eu... a que fizemos a oferta depois da outra reunião, de visitar um navio de guerra, lembra? Mon Dieu, achei que ele era importante, mas nunca um dos anciãos! Se pudéssemos atraí-lo para o lado da França, seria um golpe maravilhoso...



O conde Zergeyev declarou:



— Concordar criará um deplorável precedente.



— Será apenas por esta reunião. Certo?



— Não importa, é como vento no rabo de uma vaca — interveio o suíço, Erlicher. — Vamos continuar.



Eles continuaram a discutir. Tyrer escutava, mas mantinha sua atenção nos anciãos, embora não de uma forma ostensiva, fascinado por eles, querendo aproveitar aquela oportunidade excepcional de aprender o máximo sobre o conselho, no mínimo de tempo. O pai lhe incutira desde cedo:



— Em qualquer reunião, sempre observe as mãos e os pés dos oponentes, pois são reveladores, assim como os olhos e os rostos, só que estes em geral podem ser controlados com facilidade. Concentre-se! Observe, mas com cautela, ou as indicações para lhe dizer o que a pessoa realmente pensa serão encobertas. Lembre-se, meu filho, de que todos exageram, todos mentem, em graus diversos.



As mãos e os pés do ancião moreno, de olhos irrequietos, se mexiam a todo instante, pequenos movimentos nervosos, enquanto os do ancião jovem se mantinham imóveis. De vez em quando, como na outra reunião, ele via o homem que apelidara de “Olhos Matreiros” sussurrar para o jovem ancião, o porta-voz... e só para ele. Por quê? — perguntou Tyrer a si mesmo. — E por que Olhos Matreiros nunca participa das conversas entre eles, aparentemente descartado pelos outros, mantendo os olhos fixados sempre nos ministros, nunca nos intérpretes? Abruptamente, Sir William apontou para a cadeira vazia.



— Se o xógum não era esperado nesta reunião, e há cinco anciãos no conselho, por que há uma cadeira vaga?



Outra vez as traduções, para um lado e outro, antes da resposta:



— Ele diz que o presidente do conselho, lorde Anjo, acaba de cair doente e não pôde comparecer, mas que isso não importa, porque eles têm autoridade para decidir. Por favor, continuem.



Von Heimrich disse, num francês impecável, como uma afronta a Seratard:



— Isso não invalida esta reunião, já que eles sempre ressaltaram a natureza “unânime” deste conselho? Cinco homens. Pode ser outra artimanha a ser usada no futuro, a fim de repudiar toda a reunião.



E começou outra discussão. Apenas Sir William permaneceu em silêncio. Conseguia evitar que a fúria e ansiedade transparecessem em seu rosto. É evidente que haviam sido enganados mais uma vez. O que fazer? E foi então que ele se ouviu dizer, em voz firme:



— Muito bem, aceitaremos a autoridade deles como um ato de boa fé de seu xógum, mas apenas para esta reunião. Comunicaremos a nossos governos que o acordo anterior não foi cumprido e seguiremos para Quioto, o mais depressa possível, afim de apresentarmos nossas credenciais ao xógum... e ao imperador Komei... com uma escolta mais do que apropriada.



Enquanto Johann começava a traduzir para o holandês, o conde Zergeyev murmurou:





— Bravo... é a única maneira de lidar com os matyeryebitzl



Von Heimrich e van de Tromp, o holandês, concordaram no mesmo instante, com as objeções de Seratard, Adamson, o americano, e Erlicher.





O intérprete japonês deixou escapar uma exclamação de espanto e disse em voz alta que tinha certeza que não entendera direito. Johann proclamou que não havia qualquer mal-entendido. Durante essa discussão, Sir William fechou os ouvidos a eles, observando com total atenção os rostos dos roju, enquanto ouviam seu intérprete. Em graus diversos, todos se mostraram apreensivos. Ótimo, pensou ele.



— Com o palavrório habitual, Sir William, mas com uma carga grande de desculpas polidas desta vez, ele diz que não será possível ver o xógum em Quioto, o tempo é inclemente nesta época do ano, mas nos asseguram que assim que ele voltar, etc.



Sir William sorriu, sem qualquer humor.



— Diga a eles o seguinte: Com o tempo inclemente ou não, visitaremos o imperador em futuro próximo. Ressalte isso, Johann. Só nesta base continuaremos a reunião.





Os roju receberam o aviso num silêncio impassível.





Depois, Sir William primeiro, os outros em seguida, levantaram-se, fizeram uma reverência, enunciaram seu posto e o país que representavam e apresentaram suas credenciais. Foram aceitas com dignidade. A cada vez, os roju retribuíam a reverência, respeitosos.





— Agora — disse Sir William, empinando o queixo — vamos passar para o segundo ponto da reunião. O governo de sua majestade real firma que na sexta-feira, dia 12 de setembro, no ano de Nosso Senhor de 1862, um cavalheiro inglês foi abominavelmente assassinado por samurais do contingente de Satsuma, sob o comando de seu rei, Sanjiro. Dois outros foram feridos. O governo de sua majestade exige que os assassinos sejam entregues, ou condenados em público, de acordo com a lei japonesa, que uma reparação de cem mil libras esterlinas em ouro seja paga de imediato, um pedido de desculpas publicado e a promulgação de uma garantia oficial de que isso não tornará a acontecer. E mais: o segundo e último pagamento de cinco mil libras esterlinas em ouro como reparação pelos assassinatos do sargento Gunne do cabo Roper, em nossa legação, no ano passado, com semanas de atraso, terá o pagamento efetuado em ouro dentro de três dias ou a quantia dobrará em cada dia subsequente...



Sir William deu tempo para que Johann traduzisse palavra por palavra, mas não permitiu qualquer discussão, até concluir a lista. Adamson também exigiu uma reparação pelo assassinato de um funcionário americano e, por último, o ministro russo se manifestou. As medalhas retinindo no uniforme de alamares dourados, o conde Zergeyev declarou:



— Um oficial e um soldado russos do nosso navio de guerra Gudenev foram retalhados até a morte em Iocoama, no dia 16 de fevereiro do ano passado. — Para consternação dos outros, ele acrescentou: — Como reparação, o czar de todas as Rússias, Alexandre II, exige as ilhas Kurilas.



Durante as traduções, Sir William inclinou-se e sussurrou em russo, num tom jovial:



— Uma boa pilhéria, conde Alexi, pois é claro que o governo de sua majestade nunca poderia concordar com tal intromissão em nossa esfera de influência.



— Talvez sim, talvez não. A guerra na Europa é iminente outra vez. Muito em breve teremos de definir quem são os nossos amigos e quem são os inimigos.



Sir William riu.



— O que é sempre um problema para determinados países. O Reino Unido não tem inimigos permanentes, apenas interesses permanentes.



— É verdade, meu caro amigo, mas esqueceu de acrescentar “não tem amigos permanentes”. Agora, com Vladivostok, também somos uma potência do Pacífico.



— O poder de mar a mar? O sonho dos czares, hem?



— Por que não? Melhor nós do que outros — disse o conde Alexi, incisivo, para depois dar de ombros. — As Kurilas? Se não elas, algumas outras ilhas... para proteger Vladivostok.



— Devemos discutir sua “curiosa” presença no Pacífico em condições mais adequadas. Meu governo está muito interessado.



Seratard, sem entender russo e furioso por sua exclusão dessa conversa, disse friamente, em francês:



— Espero que esteja mantendo em primeiro plano os interesses franceses, Sir.





— Como sempre, monsieur, os interesses dos bravos aliados ocupam um lugar de destaque no pensamento do Ministério do Exterior de sua majestade.



Johann interveio, cansado:





— Sir William, o ancião diz... apenas reitera a posição anterior, que eles não têm jurisdição sobre Satsuma, não sabem quem são os assassinos, e acham que qualquer reparação deve ser exigida de Satsuma, através dos canais competentes é claro.



— Que canais competentes?



As traduções, de novo.





— Por intermédio deles, que reapresentarão o pedido a Satsuma.



— Não é um pedido, por Deus! Vamos tentar pela última vez, ressalte isso Johann, por um caminho diferente. Pergunte se eles punem os assassinos e diga ao intérprete que exijo um sim ou não. Só isso.



As traduções.



— Ele diz, Sir William, que em algumas circuns...



— Assassinato! Sim ou não! Phillip, diga isso em japonês!



Tyrer sentiu o estômago embrulhar. Estivera observando o ancião moreno sussurrar mais uma vez, mas levantou-se de um pulo.



— Honrados lordes, por favor, perdoem meu péssimo japonês, mas meu superior pergunta se quando assassinato, vocês matam assassino, sim ou não, por favor.



Silêncio. Os anciãos olharam para Yoshi, que olhou para Tyrer, as mãos mexendo no leque. O homem ao seu lado sussurrou alguma coisa e ele acenou com a cabeça.



— A pena para assassinato é morte.



— Ele diz que sim, senhor. Para assassinato, a pena é de morte.



Tyrer aprendera essas palavras essenciais com Nakama, que também lhe explicara o código penal japonês e seu rigor.



— Diga-lhe obrigado.



— Meu superior diz obrigado, lorde.



— Agora, pergunte a ele: É correto exigir reparação por um crime assim, sim ou não?



— Lorde, por favor, desculpe, mas é... é.... eu... — Tyrer parou, com um súbito branco. — Desculpe, Sir William, mas não conheço a palavra para “reparações”.



André Poncin interveio:



— A palavra é bakkin, Sir William, pouco conhecida. Posso tentar, por favor?



— Claro.





— Honrados lordes — disse Poncin, com uma reverência profunda, deixando Tyrer agradecido por salvá-lo —, meu superior pergunta se correto, humildemente pede justiça e pagamento para família, por assassinato, uma multa contra Satsuma?





— Contra Satsuma, sim — respondeu Yoshi, com um sorriso fugaz. André deixou escapar um suspiro de alívio.





— Ele diz que sim, Sir William, mas a reparação deve ser exigida de Satsuma. Antes que Sir William pudesse formular outra pergunta, Poncin, em seu mais perfeito e ensaiado japonês, para surpresa de Tyrer, começou a oferecer a fórmula salvadora que imaginara:





— Honrado lorde, em nome de meu superior, humildemente sugiro que o roju talvez condere, ah, desculpe, talvez considere emprestar Satsuma primeiro pagamento, um quinto. Isto oferece agora, dá tempo Satsuma, cobra resto de Satsuma. Por favor?



Desta vez todos perceberam o interesse do jovem ancião. No mesmo instante, ele iniciou uma conversa sussurrada com os outros. André viu que Tyrer o fitava com o rosto franzido e sacudiu a cabeça de leve, num pedido silencioso para que não interferisse. Depois de um momento, Yoshi disse:





— Talvez seja possível oferecer um vigésimo, a ser pago em cem dias, contra a dívida óbvia de Satsuma.



— Honrados lordes...



— O que ele e o ancião estão dizendo, Phillip?



— Só um instante, Sir William — disse André, em tom amável, mas com vontade de esganá-lo. — Honrados lordes, meu superior recomendaria um décimo, em sessenta dias. Sinto muito, por favor, desculpem péssima pronúncia, mas humildemente, muito humilde, peço que sim.



Bastante aliviado, Poncin observou os anciãos iniciarem a discussão e tornou a arriscar:





— Desculpe, Sir William, mas como Phillip pode confirmar, sugeri que eles considerem o pagamento adiantado, em nome de Satsuma, que deve pagar, dizem eles, com toda razão, toda e qualquer reparação.



— É mesmo? E eles vão aceitar? — Sir William fitou-o surpreso, esquecendo o cansaço. — Bom trabalho... se eles aceitarem, então posso fazer concessões, hem? Vocês concordam?



Por uma questão de cortesia, ele virou-se para os outros, à espera de suas opiniões. Por trás dele, Tyrer assoviou baixinho, tendo compreendido a maior parte do que Poncin dissera em japonês e percebido a maneira como ele manipulava o ancião e o ministro, assim como a ligeira, mas importante diferença na tradução para o inglês. André é muito esperto, mas o que está tramando? A idéia é dele ou de Seratard? Outra vez Olhos Matreiros se pôs a sussurrar, em tom confidencial, para o jovem ancião, cuja atenção se concentrava nos ministros. É quase como...



Subitamente, foi como se cataratas tivessem sido removidas de seus olhos e pudesse enxergar com clareza de novo. Ainda mais do que isso, agora via os anciãos com olhos objetivos, não mais com a visão indireta e preconceituosa de um suposto homem civilizado, contemplava-os como pessoas também civilizadas, também simples ou complexas, mas pessoas, e não mais como exóticos, misteriosos ou estranhos “japos”, uma posição que despertava o ressentimento de Nakama, Fujiko e até mesmo André de diversas maneiras, e com toda razão.





Deus Todo-Poderoso, Olhos Matreiros entende o inglês, ele sentiu vontade de gritar, extasiado. Esta é a única explicação, ele é um espião do roju, é tão ancião quanto eu, e por esse motivo os outros não lhe dão a menor atenção em suas discussões. O que mais? Ele deve ser o espião de Watanabe, porque é o único para quem sussurrou até agora... preciso descobrir seus nomes verdadeiros e interrogar Nakama a respeito. Watanabe é o mais poderoso deste bando, o presidente em exercício. O presidente ausente? Preciso descobrir seu verdadeiro nome também O que mais? Onde André...



Ele se concentrou, enquanto Yoshi falava ao intérprete. Sua voz se tornara incisiva. O intérprete ficou ainda mais alerta, seu holandês foi vinte vezes mais sucinto. Johann traduziu, tentando conter seu espanto:





— O roju concorda que neste caso é correto pedir uma reparação, de Satsuma, que cem mil parece uma quantia razoável para um nobre, mas não podem dizer se o lorde Satsuma também vai considerar assim. Como um gesto de amizade para os britânicos e com as outras nações, o roju adiantará uma décima parte, em setenta dias, por conta de Satsuma... enquanto os pedidos formais britânicos são encaminhados a Satsuma. Em relação ao pedido do ministro russo, como acontece com a pátria dele, o território japonês é território japonês, e é... Imagino que a palavra seria inviolável ou inegociável.



Sem ser óbvio, Sir William pôs a mão sobre a do conde Alexi, a fim de impedir sua explosão, enquanto murmurava, em russo:



— Deixe como está, Alexi.



Depois, em voz alta, ele acrescentou para Johann, disposto a negociar um prazo menor e uma quantia menor:



— Excelente, Johann. Por favor, diga a eles... Ele parou de falar quando Tyrer sussurrou:



— Com licença, senhor. Sugiro que aceite de imediato, mas insista que precisa saber os nomes deles.



Foi quase como se Tyrer não tivesse falado, pois Sir William continuou sem pausa e sem mudança da expressão:



— Johann, por favor, diga a eles que a sugestão é aceitável para o governo de sua majestade, no mesmo espírito de amizade. Em relação ao ministro da corte de São Petersburgo, tenho certeza que ele consultará seu governo, que concordará, com toda certeza, que um acordo monetário será satisfatório.



Sem dar tempo ao conde Alexi de protestar, ele tratou de acrescentar:



— Em relação ao nosso outro problema premente, os estreitos de Shimonoseki: todos os governos estrangeiros protestam contra baterias de terra disparando sobre seus navios, ao passarem em paz por aquela área.



Sir William repetiu as datas e os nomes dos navios, coisas que já haviam sido o tema de uma correspondência veemente.





— Eles dizem que transmitirão a queixa, Sir William, com a alegação habitual, de que não têm controle sobre Choshu.





— Diga o seguinte, Johann: No espírito cordial desta reunião, permitam-me sugerir que é difícil, se não mesmo impossível, para os governos estrangeiros negociarem com o Bakufu, que parece não exercer qualquer autoridade sobre seus vários reinos ou Estados. Sendo assim, o que devemos fazer? Negociar diretamentete com o xógum, que assinou nossos tratados... ou com o imperador Komei?





— O governo legal do Nipão é o xogunato, o supremo soberano do xogunato é o xógum, que governa em nome do filho do céu, os roju são os supremos conselheiros do xogunato, e seus representantes constituem o Bakufu. Em todos os casos, os governos estrangeiros devem negociar diretamente com o xogunato.



— Sendo assim, como podemos garantir a travessia segura de todos os navios que passam por Shimonoseki?



Mais discussão exaustiva, e sempre variações da mesma resposta, que não chegava a ser uma resposta, por mais que Sir William tentasse esclarecê-la. As bexigas pareciam estourar outra vez, a impaciência era geral, a fadiga aumentava. Três horas haviam transcorrido desde o início da reunião. Sir William sorriu para si mesmo.





— Muito bem. Diga o seguinte: presumindo que não haverá novos ataques, e que nossos protestos veementes serão encaminhados ao daimio de Choshu imediatamente, aceitamos, no espírito desta nova cordialidade, a posição deles para uma nova reunião, daqui a cem dias.



Uma hora de manobras adicionais.





— O roju concorda com uma segunda reunião, dentro de cento e cinqüenta e seis dias, aqui em Iedo, e deseja declarar esta reunião encerrada.



— Ótimo — disse Sir William, reprimindo um bocejo. — Agora, gostaria por favor que eles nos dessem seus nomes, verbalmente, e depois por escrito, em caracteres, no documento formal que trocaremos daqui a três dias, confirmando os acordos.



Novas traduções, pequenos detalhes alterados, e finalmente:



— Sir William, ele diz que terá os papéis prontos em uma semana, o intérprete fornecerá seus nomes, e a reunião está encerrada.



A medida que cada um era apresentado, o ancião acenava com a cabeça, mantendo o rosto impassível.



— Lorde Adachi de Mito, lorde Zukumura de Gai, lorde Yoshi de Hisamatsu...



Tyrer ficou na maior satisfação ao constatar que Olhos Matreiros, o último na fila, suava bastante, remexendo os pés e as mãos, e que seu movimento de cabeça não tinha a mesma altivez dos outros:



— Lorde Kii de Zukoshi.



— Por favor, transmita a todos nossos agradecimentos. Como foi combinado antes, ordenarei agora as salvas reais.





— Lorde Yoshi diz que, infelizmente, um dos seus membros está ausente. Como ficou acertado antes, é necessária a aprovação unânime do roju para o disparo de qualquer canhão.



Abruptamente, o bom humor de Sir William se desvaneceu. Os outros ministros ficaram chocados.



— E os nossos acordos? — indagou ele, em tom brusco. — Também precisa de uma aprovação por unanimidade?



Mais discussão, em meio a muita tensão, advertências murmuradas entre ministros. Depois, Johann informou, contrafeito:



— Lorde Yoshi diz que esta reunião conta com a autoridade do xógum e do presidente para aceitar credenciais, escutar e recomendar. Vão recomendar os acordos por unanimidade. Como ficou combinado antes, a aprovação para disparar o canhão exige a unanimidade dos anciãos. Por isso, embora lamentando, eles não podem permitir.



O silêncio tornou-se opressivo, enquanto Sir William e os outros compreendiam a armadilha em que haviam caído. Não havia opção desta vez, pensou ele sentindo um frio no estômago.



— Capitão Pallidar!



— Pois não, senhor?



Pallidar adiantou-se, o coração disparado, sabendo também, como todos diante do conselho, que Sir William não tinha alternativa agora, a não ser dar a ordem para disparar as salvas, qualquer que fosse o custo, ou a mesma desculpa seria usada com certeza para repudiar o acordo.



Enquanto ele batia continência, Seratard interveio, com sua voz mais suave e diplomática:



— Sir William, tenho certeza que o acordo é de boa fé, será implementado, e deve ser aceito. Recomendo que faça isso... todos recomendamos, não é mesmo, senhores?



Houve um alívio geral pela sugestão que salvava as aparências, e o ministro francês tratou de acrescentar:



— Também recomendamos que, nas circunstâncias, as salvas podem ser ignoradas. Concorda, Sir William, em nosso nome?



Sir William hesitou, com uma expressão sombria. Para espanto de todos, Seratard declarou, altivo:



— André, diga a eles, em nome da França, que darei minha garantia pelo primeiro pagamento.



Antes que Sir William pudesse falarqualquer coisa, André se inclinou, edisse:





— Meu superior diz, honrados lordes, ele feliz roju dar papel uma semana, concordar emprestar Satsuma primeiro dinheiro, em setenta dias. Diz também que França, como amiga do Nipão, sente-se honrada dar garantia pessoal ao ministro britânico, contra primeiro pagamento. Também honrado receber todos ou todo roju, qualquer dia, pessoalmente, no navio ou outro lugar. Humildemente agradeço, honrados lordes.



Os olhos contraídos, Yoshi disse:



— Agradeça a seu amo. A reunião está encerrada.





Um oficial samurai gritou “Kerei!”— saudação —, e todos os outros fizeram uma reverência, mantendo essa posição enquanto os roju se levantavam e respondiam, com contida polidez. Não restava a Sir William e aos demais outra altenativa senão seguir o exemplo, enquanto Yoshi saía à frente por uma porta invisível atrás da plataforma. No mesmo instante os samurais se empertigaram e retomaram seu olhar firme e desconfiado.



— Muito satisfatório, Sir William — disse Seratard, expansivo, em francês, pegando-o pelo braço, ansioso em distraí-lo outra vez. — Agiu muito bem.



— Seus superiores no Élysée ficarão furiosos com você quando pedirmos as dez mil libras em ouro — comentou Sir William, um pouco contrariado, mas não muito, pois dera um gigantesco passo à frente, à exceção da salva de canhão. — Mas quer fiquem furiosos ou não, Henri, foi um gesto magnífico, embora dispendioso.



Seratard riu.



— Vinte guinéus dizem que eles vão pagar.



— Apostado. Jantará conosco na legação?



Eles começaram a sair, indiferentes aos olhares arrogantes e belicosos.



— Não, obrigado. Já que concluímos nossos negócios aqui, acho melhor voltar para Iocoama agora, em vez de esperar até amanhã. Há tempo suficiente, e o mar está calmo. Por que esperar pela Pearl? Junte-se a nós, em nossa nave capitânia, e poderemos jantar durante a viagem.



— Obrigado, mas prefiro esperar até amanhã. Quero me certificar de que todos os homens voltaram sãos e salvos para nossos transportes.



Por trás deles, despercebido na multidão, Tyrer esperou por André, que se ajoelhara para ajustar a fivela de um sapato. Sem notar que Tyrer o observava, ele iniciou uma conversa sussurrada com o intérprete japonês. O homem hesitou, depois acenou com a cabeça, fez uma reverência.



— Domo.



André virou-se e deparou com Tyrer a observá-lo. Por uma fração de segundo, ele se mostrou perplexo, depois sorriu e adiantou-se.



— E então, Phillip, não acha que tudo correu muito bem? Você se saiu muito bem, e posso dizer que ganhamos o dia.



— Eu não. Foi você quem salvou o dia... e livrou minha cara, pelo que agradeço. — Tyrer franziu o rosto, inquieto, acompanhando a procissão. — Mesmo assim, embora você tenha superado o impasse de maneira brilhante, o que disse em inglês e o que foi dito em japonês foram coisas diferentes, não é mesmo?





— Não tão diferente assim, mon ami, não o suficiente para ter alguma importância.



— Não creio que Sir William concordaria.



— Talvez sim, talvez não. Talvez você tenha se enganado. — André forçou uma risada. — Nunca é sensato provocar a irritação de um ministro, hem? Lembre-se de que em boca fechada não entra mosca.



— Na maioria das vezes, é isso mesmo. O que disse àquele intérprete?





— Agradeci a ele. Mon Dieu, minha bexiga está me matando... e a sua?



— A mesma coisa — concordou Tyrer, certo de que André mentia sobre o intérprete.



Mas também por que não o faria? — refletiu ele, com sua nova percepção. André é inimigo; se não inimigo, pelo menos oposição, e todas as nuanças foram para beneficiar Seratard, a França e André. Muito justo. O que ele poderia pedir em segredo? Transmitir uma mensagem, sem dúvida, mas qual? Que mensagem secreta? O que eu pediria secretamente?





— Pediu uma reunião particular com lorde Yoshi, hem? — sugeriu Tyrer arriscando um palpite. — Para você e monsieur Seratard.



A expressão de André Poncin não se alterou, mas Tyrer notou que ficaram brancas as articulações da mão direita, pousada na espada cerimonial.



— Phillip — murmurou ele —, tenho sido um bom amigo desde a sua chegada, ajudando-o a começar a aprender o japonês, apresentando-o às pessoas não é mesmo? Não interferi com seu samurai particular... Nakama... embora fosse informado de que ele tem outros nomes. Não...



— Que outros nomes?— indagou Tyrer, subitamente nervoso, sem saber por quê. — O que sabe sobre ele?



André continuou, como se Tyrer não tivesse falado:



— Não tentei interrogá-lo, nem a você sobre ele, embora o advertisse contra os japoneses, todos eles. Já é tempo de você me falar a respeito desse Nakama, como um amigo. Lembre-se, Phillip, de que estamos no mesmo lado. Somos servidores, não os chefes, somos amigos e estamos no Japão, onde os gai-jin devem se ajudar uns aos outros... como fiz ao apresentá-lo a Raiko, que o levou a Fujiko, não é? Boa moça, a Fujiko. É melhor ter um pouco do realismo gaulês, Phillip, é melhor manter as informações sigilosas em sigilo, é melhor tomar cuidado com seu Nakama, e não esquecer o que eu disse uma dúzia de vezes: no Japão, só há soluções japonesas.











Quase ao pôr-do-sol, nesse mesmo dia, Yoshi avançou por um corredor de pedra escuro e ventoso, na torre do castelo. Usava agora seu quimono característico, com duas espadas, e um manto de montaria com capuz por cima. A cada vinte passos havia tochas acesas, em suportes de ferro, ao lado de aberturas para arqueiros, que também serviam como janelas. Lá fora, o ar era frio. Havia uma escada circular à frente. Levava a seu estábulo particular, lá embaixo. Ele desceu correndo os degraus.



— Alto! Quem... ah, desculpe, lorde!



O samurai de sentinela fez uma reverência. Yoshi balançou a cabeça e seguiu em frente. Por todo o castelo, soldados, cavalariços e criados se preparavam para dormir, ou para os serviços noturnos, seguindo o costume universal de deitar ao cair da noite. Só os prósperos tinham luz à noite, para ver, ler ou se divertir.



— Alto! Ah, desculpe, Lorde.



A sentinela se inclinou e o mesmo fizeram as duas seguintes. No pátio do estábulo, concentrava-se uma guarda pessoal de vinte homens, junto a seus pôneis. Entre eles se encontrava Misamoto, o pescador, samurai e ancião de faz-de-conta. Agora, vestia-se pobremente, como um infante comum, desarmado e assustado. Havia também ali dois palanquins fechados, bastante leves, projetados para transporte rápido. Cada um se encaixava em duas hastes, com arreios para pôneis de sela nas extremidades. Todos os cascos estavam cobertos e tudo aquilo fazia parte de um plano formulado por Yoshi, junto com Hosaki, alguns dias antes.



A janela de um palanquim foi entreaberta. Ele viu Koiko espiar. Ela sorriu, acenou com a cabeça em cumprimento. A janela foi fechada. A mão de Yoshi apertou o cabo da espada. Ele foi abrir a porta do palanquim, o suficiente para se certificar de que era ela mesma, e que se encontrava sozinha. Quando era muito jovem, o pai lhe incutira com veemência, palavra por palavra, a primeira lei da sobrevivência:



— Se for apanhado desprevenido, traído desprevenido, morto desprevenido, é porque falhou em seu dever comigo e com você mesmo. A culpa será toda sua, porque deixou de verificar pessoalmente e de planejar contra qualquer eventualidade. Não há desculpa para o fracasso, exceto o karma... e os deuses não existem!



Um sorriso rápido para tranquilizá-la. Yoshi fechou a porta e foi verificar se o outro palanquim se achava desocupado, disponível para seu uso, caso precisasse. Satisfeito, deu o sinal para os homens montarem. Isso foi feito num silêncio quase total, o que também o agradou... ordenara que todas as armaduras e arreios fossem abafados. Uma última conferência silenciosa, mas ele não pôde sentir qualquer sinal de perigo. O fuzil novo estava num coldre na sela, a bolsa de munição cheia, as outras quatro armas penduradas nos ombros de seus atiradores de mais confiança. Sem qualquer barulho, ele subiu na sela. Outro sinal. A guarda avançada e o porta-estandarte partiram. Yoshi seguiu atrás, com os dois palanquins e os outros homens em sua esteira.



O progresso foi rápido e quase silencioso. Percorreram a passagem para a fortificação seguinte, longe dos caminhos e dos portões principais. Em cada posto de controle, as sentinelas gesticulavam para que passassem, sem qualquer dificuldade. Em vez de entrar no labirinto do castelo, foram para um prédio grande, no lado norte, junto a uma das maiores fortificações. Havia uma guarda enorme no lado de fora. No momento em que Yoshi foi reconhecido, as portas altas foram abertas, para deixá-lo passar. Lá dentro, havia um picadeiro grande, de terra batida, todo fechado, teto alto, em abóbada, com uma galeria para observadores. Umas poucas tochas, aqui e ali. As portas foram fechadas depois que eles entraram.



Yoshi trotou até a vanguarda da coluna e atravessou a arcada no outro lado, passando por baias e salas de arreios. Todas estavam vazias. Aquela área tinha um calçamento de pedra, o ar impregnado pelo cheiro de esterco, urina e suor. Mais além, recomeçava o chão de terra batida e havia outra arcada, dando para um picadeiro interno, bem menor. Terminava em mais uma arcada, mal iluminada. Yoshi esporeou seu pônei, mas parou subitamente.



A galeria em torno do picadeiro se encontrava repleta de arqueiros em silêncio. Nenhum tinha flechas em seus arcos, mas todos no picadeiro sabiam que morreriam... se fosse dada a ordem.



— Ah, Yoshi-sama. — A voz áspera de Nori Anjo veio da semi-escuridão por cima, e Yoshi teve uma dificuldade momentânea para localizá-lo. Depois o viu sem armadura, sentado no fundo da galeria, ao lado da escada. — Na reunião desta tarde, não nos disse que ia deixar o castelo com homens armados como... como o quê? Como ninja?



Um murmúrio de raiva espalhou-se pelos homens de Yoshi, mas ele riu, o que rompeu a tensão, em baixo e em cima.



— Não ninja, Anjo-sama, embora sem dúvida com o máximo de discrição possível. É uma boa idéia testar as defesas, sem avisar. Sou o guardião do castelo além de guardião do xógum. E você? A que devo este prazer?



— Está apenas testando nossas defesas?



— Matando três pombas com uma única flecha. — O humor desaparecera da voz de Yoshi, e todos sentiram um calafrio, especulando por que três, e o que isso significava. — E você? Por que tantos arqueiros? Para uma emboscada, talvez?



A risada rude ecoou pelo picadeiro, tornando-se ainda mais agressiva. Mãos apertavam armas, embora ninguém fizesse qualquer movimento ostensivo.



— Emboscada? Oh, não, não uma emboscada... uma guarda de honra. No momento em que fui informado que você planejava uma patrulha com os cascos abafados... estes homens estão aqui apenas para homenageá-lo e mostrar que nem todos nós dormimos, que o castelo se encontra em boas mãos e não há necessidade de um guardião.



Anjo gritou uma ordem. No mesmo instante, os arqueiros desceram a escada correndo e formaram duas filas, por toda a extensão do picadeiro, com Yoshi e seus homens no meio. Fizeram uma reverência formal. Yoshi e seus homens retribuíram, também formais. Mas nada mudara, a armadilha continuava pronta para ser acionada.



— Precisa de armas para testar as defesas?





— Nosso conselho aconselhou todos os daimios a se armarem com armas modernas — respondeu Yoshi, a voz calma, mas por dentro furioso por alguém ter revelado seu plano e por não ter previsto uma emboscada. — Estes são os primeiros dos meus novos fuzis. Desejo acostumar meus homens a carregá-los.



— Sensato, muito sensato. Mas vejo que carrega um. Lorde Yoshi também precisa se acostumar a andar com uma arma assim?



Fervendo de ódio pelo escárnio, Yoshi olhou para o fuzil no coldre, odiando todas as armas de fogo e abençoando a sabedoria de seu homônimo ao proibir a fabricação ou importação no dia em que se tornara xógum. E isso, mais do que qualquer outra coisa, garantiu a nossa paz por dois séculos e meio, pensou ele, sombrio. As armas de fogo são infames, covardes, dignas dos repulsivos gai-jin. Armas que podem matar a mil passos de distância, de tal forma que talvez você nunca possa ver quem mata, ou quem o matou, armas que qualquer idiota, maníaco, assaltante, homem ou mulher de baixa extração podem usar contra qualquer um, até mesmo o lorde mais elevado, com impunidade, capazes de liquidarem o mais experiente espadachim. E agora tenho de carregar um fuzil... os gai-jin nos forçaram a isso.



Com o escárnio de Anjo ressoando em seus ouvidos, ele tirou o fuzil do coldre, puxou a trava de segurança, como Misamoto mostrara, apontou, puxou o gatilho, as balas entrando na culatra automaticamente, cinco balas disparadas para as vigas do teto, com estampidos ensurdecedores, o fuzil quase escapulindo de suas mãos, com uma força inesperada. Todos se dispersaram, até mesmo seus homens, uns poucos derrubados pelos pôneis assustados que empinaram. Anjo e seus guardas se jogaram ao chão, antecipando mais disparos, letais desta vez, cada homem na sala apavorado com a rapidez dos tiros.



Em total silêncio, todos esperaram, prendendo a respiração, e depois, porque não houve seqüência, compreenderam que Yoshi apenas fizera uma demonstração do fuzil. Os arqueiros se apressaram em retornar suas posições, embora cautelosos, em torno dos homens de Yoshi, que também retomavam a ordem anterior. Anjo se levantou e gritou:



— Qual o significado disso?



Tão indiferente quanto podia aparentar, com o coração batendo forte, Yoshi continuou a acalmar seu pônei, puxou a trava de segurança e estendeu o fuzil no colo, disfarçando sua satisfação pelo sucesso da ação, tão impressionado quanto os outros pelo poder do fuzil — já disparara antes fuzil de carregar pelo cano e algumas antiquadas pistolas de duelo, contra alvos, mas nunca um fuzil de carregar pela culatra, com cartuchos.





— Eu queria lhe mostrar o valor de um desses. Em determinadas circunstâncias, são melhores do que espadas, em particular para os daimios. — Ele ficou contente ao constatar que sua voz soava calma. — Por exemplo, quando você foi emboscado, há poucas semanas, poderia ter usado um, neh?



Trêmulo, Anjo tratou de controlar sua ira, convencido agora de que corria grande perigo, sua vida sob ameaça, e também certo de que se ordenasse a prisão de Toranaga, como planejara, as balas crivariam seu corpo... em nome de todos os deuses, onde e como esse cão aprendeu a atirar, e por que não fui informado que ele se tornou um perito?





E ser lembrado do incidente com os shishi era um insulto público adicional, pois todos sabiam que não fora bastante bravo, fugira para a segurança, sem chegar a duelar uma única vez com os atacantes e ainda por cima, depois de os feridos serem capturados, ordenara que fossem executados de uma maneira desonrosa.



— Em algumas circunstâncias, Yoshi-sama, em algumas, mas duvido se sua arma ou quaisquer outras teriam algum valor esta noite. Duvido muito. Posso lhe perguntar seu propósito esta noite? Visitar nossas defesas externas e voltar? Ou uma de suas “pombas” está de partida para outro lugar?



Ambos sabiam que Yoshi não precisava justificar suas entradas ou saídas do castelo.



— Isso depende do que eu encontrar lá fora — disse ele, em tom brusco. — Posso decidir voltar ao meu domínio por um dia ou dois, talvez não... mas é claro que o manterei informado.



— O conselho sentiria falta de sua presença, mesmo que seja por uns poucos dias. Há muito a ser feito e teremos de tomar as decisões de qualquer maneira mesmo com sua ausência.



— Como concluímos esta tarde, não há nada de importante a ser decidido Além disso, felizmente, nada de grande monta pode ser resolvido sem a presença dos cinco anciãos.



— Há o problema do acordo com os gai-jin.



— Isso também ficou decidido esta tarde.











A reunião do conselho, depois da saída dos gai-jin, fora feliz e repleta de risos para variar, pela humilhação do inimigo, que mais uma vez fora logrado. Anjo, Toyama e Adachi haviam lhe dado os parabéns pela maneira hábil com que conduzira a confrontação, e por sua compreensão dos gai-jin, Zukumura pouco falando, limitando-se a alguns murmúrios de débil mental de vez em quando. Anjo comentara, rindo:





— Concordar em adiantar uma ninharia para afastá-los e a seus navios de Iedo, enquanto controlamos Satsuma, foi muito hábil, Yoshi-sama. Muito. Ao mesmo tempo, adiamos por tempo indefinido a ameaça de eles irem a Quioto e os fizemos concordar que a culpa toda é de Satsuma.



Toyama dissera:





— E agora declaramos guerra a Satsuma? Isso é ótimo!



— Não, não a guerra, pois há outros meios de submeter aquele cão. — Anjo sentia-se confiante com seu conhecimento recém-adquirido. — Você estava certo sobre os gai-jin, Yoshi-sama. Foi muito interessante constatar como a hostilidade entre eles se encontra bem perto de suas superfícies repugnantes.



Ele e Toyama haviam acompanhado a reunião por trás da plataforma, a parede ali lhes permitindo ver tudo, sem serem vistos.



— Isso mesmo, repugnantes. Pudemos até sentir o cheiro deles. Nauseante. Ordenei que a sala de audiência fosse lavada e destruídas as cadeiras em que eles sentaram.



— Excelente! — exclamara Adachi. — Fiquei arrepiado durante todo o tempo em que estive lá. Yoshi-sama, posso lhe perguntar sobre aquele macaco Misamoto, ele realmente contou tudo o que os gai-jin disseram? Não consegui ouvir uma só palavra.



— Nem tudo — explicara Yoshi —, mas o suficiente para me dar algumas indicações adiantadas, e apenas quando eles falavam inglês. Misamoto disse que na maior parte do tempo eles falavam outra língua, ele achou que era francês. Isso comprova outro pronto: precisamos de intérpretes de confiança. Proponho abrirmos uma escola de línguas para nossos filhos mais brilhantes imediatamente.



— Escola? — murmurara Zukumura. — Que escola? Ninguém lhe dera atenção.



— Discordo — declarara Toyama, a papada tremendo. — Quanto mais nossos filhos se aproximarem dos gai-jin, mais infectados se tornarão.





— Não — anunciara Anjo —, escolheremos pessoalmente os estudantes... devemos ter homens de confiança que conheçam as línguas dos bárbaros. Vamos votar. O Bakufu receberá a ordem de criar sem demora uma escola de línguas. Todos concordam? Ótimo. Agora, a carta dos gai-jin: vamos continuar na tática de Yoshi-sama, no dia anterior ao marcado para a entrega, diremos que ficará pronta “o mais depressa possível”? Todos concordam?



— Sinto muito, mas não concordo — dissera Yoshi. — Devemos fazer exatamente o oposto. Entregaremos a carta no prazo e também efetuaremos o segundo pagamento da chantagem na data marcada.



Todos se mostraram surpresos e Zukumura murmurara:



— Carta?



Yoshi expusera sua posição, com extrema paciência:



— Devemos manter os gai-jin desconcertados. Eles ficarão esperando uma protelação, o que não acontecerá. Assim, eles acreditarão que o prazo de cento e cinqüenta e seis dias também é certo, mas claro que não será. Vamos adiar e adiar, torcendo para que isso os deixe furiosos.



Todos riram com ele, até mesmo Zukumura, que não compreendia por que riam, mas rira assim mesmo... e ainda mais quando Yoshi relatara quantas vezes quase caíra na gargalhada durante a reunião, vendo como a impaciência dos gai-jin arruinava sua posição de barganha, já ilusória.



— Sem o cão matador, o amo é tão fraco quanto um filhote contra um homem com uma vara.



— Como? Um homem com uma vara? — indagara Zukumura, uma expressão aturdida nos olhos de peixe morto. — Que cão?



Muito do bom humor de Yoshi se desvanecera, ao lembrar que agora teria de suportar aquele débil mental para sempre. Mesmo assim, explicara que sem força para sustentar suas queixas, ou sem a determinação de usá-la, o inimigo era impotente.



— Força? Não compreendo, Yoshi-sama. Que força?



— O poder! — exclamara Anjo, impaciente. — O poder! Seus canhões e suas esquadras, Zukumura! Ora, não importa!



Toyama, o velho, declarara, com veemência:



— Enquanto eles estão sem sua esquadra, deveríamos destruí-los... são arrogantes demais, com uma atitude grosseira, e seu porta-voz... Estou contente por não ter participado da reunião, Yoshi-sama, pois acho que teria explodido. Vamos destruí-los agora.



— Quem? Destruir quem?



— Cale a boca, Zukumura — dissera Anjo, cansado —, e limite-se a votar quando eu mandar. Yoshi-sama, concordo com seu raciocínio. Enviaremos a carta no prazo, e a segunda parte do dinheiro da chantagem conforme o combinado. Todos a favor? Ótimo. Agora que já lidamos com os gai-jin, e o xógum e a princesa se encontram sãos e salvos viajando pela estrada do norte, não há muito o que fazer durante a próxima semana.



— Permitir a partida deles foi uma decisão equivocada que se voltará para nos atormentar — comentara Yoshi.





— Neste caso, você está errado. Por favor, prepare um plano, apresente suas idéias sobre a melhor maneira de subjugar o cão Sanjiro e Satsuma. Voto para nos reunirmos de novo daqui a duas semanas, a menos que surja uma emergência antes...











Mais tarde, retornando a seus aposentos, Yoshi não conseguira imaginar nenhuma emergência em potencial que exigisse sua presença em Iedo... nem mesmo o segundo convite, discreto e sussurrado, para visitar o navio de guerra francês, que ele não aceitara, nem recusara, mas deixara em aberto, pelas semanas subsequentes, já que não se tratava de um assunto urgente. Por isso, resolvera pôr em prática imediatamente o plano que formulara junto com a esposa, Hosaki. Agora, Anjo e seus arqueiros barravam seu caminho.



O que fazer?



— Boa noite, Anjo-sama — disse ele, tomando sua decisão. — Como sempre, eu o manterei informado.



Ocultando sua apreensão e sentindo-se exposto, Yoshi esporeou o pônei, encaminhando-se para a arcada no outro lado. Nenhum dos arqueiros se mexeu, esperando por uma ordem. Seus homens e os dois palanquins seguiram-no, todos se sentindo também indefesos.



Anjo observou-os se afastarem. Enfurecido. Se não fosse pelos fuzis, eu o prenderia, conforme o planejado. Sob que acusação? Traição, conspirar contra o xógum! Mas Yoshi nunca seria levado a julgamento, de jeito nenhum, sinto muito, meus amigos, ele foi morto quando tentava escapar à justiça.



Uma súbita pontada de dor nas entranhas fê-lo tatear à procura de um assento. Médicos baka! Deve haver uma cura, disse a si mesmo, e depois lançou mais imprecações contra Yoshi e seus homens, que haviam desaparecido sob a arcada distante.



Yoshi respirava melhor agora, não mais dominado pelo suor do medo. Continuar a avançar pelas fortificações, passando por corredores mal iluminados, por mais baias e salas de arreios, até alcançar o muro no outro lado, revestido de madeira. Alguns homens desmontaram e acenderam as tochas dos suportes na parede.



Com seu chicote, Yoshi apontou para o puxador em um lado. Seu ajudante desmontou, deu um puxão firme. Toda uma parte do muro se abriu, revelando um túnel, bastante alto e largo para que dois homens pudessem cavalgar juntos por ali, lado a lado. No mesmo instante, ele tornou a esporear o pônei. Depois que os palanquins e o último homem passaram, a porta foi fechada de novo e Yoshi deixou escapar um suspiro de alívio. Foi só então que guardou o fuzil no coldre.



Se não fosse por você, fuzil-san, pensou eie, afetuoso, eu poderia estar morto ou no mínimo seria um prisioneiro. Às vezes posso compreender que um fuzil era de fato, melhor do que uma espada. Merece ter um nome — era um antigo costume xintoísta dar nomes a espadas e outras armas especiais, até mesmo a pedras ou árvores. Vou chamá-lo de “Nori”, que também pode significar “alga marinha”, e é uma referência a Nori Anjo, para lembrar que me salvou dele, e que uma de suas balas pertence a ele, na cabeça ou no coração.



— Puxa, lorde, seus tiros foram um espetáculo maravilhoso para se contemplar — comentou seu capitão, aproximando-se.



— Obrigado, mas você e todos os homens receberam ordem de ficar em silêncio até eu permitir que falassem. Está rebaixado. Passe para a retaguarda.



Desolado, o homem se afastou, e Yoshi chamou o segundo no comando.



— Você é o capitão agora.



Ele virou-se na sela e continuou a seguir em frente, liderando a marcha. O ar no túnel era abafado. Era um dos muitos caminhos de fuga secretos do castelo. Com seus três fossos e imensa torre de menagem, o castelo levara quatro anos para ser construído — quinhentos mil homens, por sugestão do xógum Toranaga, e sem qualquer custo para ele, haviam trabalhado dia e noite, orgulhosos, até sua conclusão.



O chão do túnel descia um pouco, virando para um lado e outro, as paredes escavadas na rocha em alguns trechos, revestidas com tijolos em outros, o teto escorado aqui e ali, mas tudo em boas condições de conservação. Sempre descendo, mas sem perigo. Agora, a água vazava dos lados, o ar se tornou mais fresco, e Yoshi compreendeu que passavam sob o fosso. Aconchegou-se no manto, detestando o túnel, quase tonto de claustrofobia... um legado do tempo em que ele, a esposa e os filhos ficaram confinados por quase meio ano em cômodos que pareciam masmorras, por ordem do tairo Li, não fazia tanto tempo assim. Nunca mais ficarei confinado, jurara ele, nunca mais.



Não demorou muito para que o túnel começasse a subir e logo eles saíram na outra extremidade, numa casa. Era um lugar seguro, que pertencia a um leal vassalo do clã Toranaga, que fora avisado antes e os esperava. Aliviado não ter deparado com mais problemas, Yoshi gesticulou para que a guarda avançada partisse.





A noite era agradável e atravessaram a cidade por caminhos pouco conhecidos, até chegar aos arredores e encontrar a primeira barreira na Tokaidô. Ali, guardas hostis tornaram-se dóceis assim que viram o estandarte de Toranaga. Apressaram-se em abrir a barricada, fizeram suas reverências e tornaram a fechá-la, depois que todos passaram, curiosos, mas nenhum bastante estúpido para fazer perguntas.



A estrada se bifurcava pouco depois da barreira. Um dos caminhos seguia para o norte, pelo interior, na direção das montanhas; numa viagem normal, alcançariam o castelo de Yoshi, o Dente do Dragão, em três ou quatro dias. Satisfeita, a guarda avançada pegou essa estrada, voltando para sua terra... para seus lares, pois a maioria não via a família, noivas ou amigos há quase um ano. Meia légua adiante, ao se aproximarem de uma aldeia, onde havia uma boa aguada e uma fonte quente Yoshi gritou “guardas!”, fazendo sinal para que voltassem.



O novo capitão da escolta foi parar ao seu lado e quase disse “Sire?”, mas controlou-se a tempo e esperou. Yoshi apontou para uma estalagem, como se tomasse uma decisão repentina.



— Paramos ali. — O lugar era chamado de Sete Estações da Felicidade. — Não há necessidade de silêncio agora.





O pátio era limpo, calçado com pedras. No mesmo instante, o proprietário, criadas e criados saírem apressados, com lanternas, fazendo reverências, ansiosos em agradar, honrados com a importância do hóspede esperado. Criadas cercaram o palanquim, para cuidar de Koiko, enquanto o proprietário, um velho magro e calvo, asseado e bem arrumado, claudicando um pouco ao andar, conduzia Yoshi ao melhor e mais isolado bangalô. Era um samurai aposentado, chamado Inejin, que decidira raspar o penacho e se tornar um estalajadeiro. Secretamente, ainda era hatomoto — um samurai privilegiado —, um dos muitos espiões de Yoshi que se espalhavam pelos arredores de Iedo e por todos os acessos ao Dente do Dragão. O novo capitão, consciente de sua responsabilidade, acompanhou-o com quatro samurais, mais Misamoto e seus dois guardas.





O capitão se certificou de que o bangalô era seguro. Depois, Yoshi acomodou-se na varanda, sobre uma almofada, de frente para os degraus, o capitão e os outros samurais ajoelhados de guarda por trás. Ele notou que a criada que servia o chá tinha um rosto viçoso, fora bem escolhida, o chá parecendo mais saboroso por isso. Quando achou que já estava pronto, Yoshi acenou para que as criadas e servos se afastassem e ordenou:



— Por favor, traga-os para cá, Inejin.



Momentos depois, Inejin voltou, acompanhado pelos dois garimpeiros gai-jin. Um alto, o outro largo, ambos encovados, de aparência rude, barbudos, com roupas sujas, gorros ensebados. Yoshi estudou-os, curioso, com profunda aversão, considerando-os mais como criaturas do que como homens. Ambos estavam apreensivos. Pararam perto dos degraus, fitando-o, aturdidos. O capitão gritou:



— Curvem-se!





Como eles continuassem imóveis, apenas fitando-o, sem compreender, ele acrescentou para dois samurais:



— Ensinem-lhes as boas maneiras.



Em segundos, eles estavam de joelhos, a cara na terra, praguejando pela estupidez em aceitar um emprego tão perigoso.





— Mas que merda, Charlie — dissera o garimpeiro da Cornualha, na cidade dos bêbados, poucos dias antes, depois da conversa com Norbert Greyforth — O que temos a perder? Nada! Estamos passando fome, sem dinheiro, sem trabalho, sem crédito... não há um único bar em Yokopoko que nos sirva uma cerveja, ninguém que nos ofereça uma cama, um pedaço de pão, muito menos uma mulher. Nenhum navio nos dá passagem. Estamos empacados aqui e não demora muito para que os peelers da Austrália desembarquem aqui, ou os seus policiais de San Francisco, e nos meterão em correntes, enforcanao-me por esfaquear alguns garimpeiros sífilíticos que não respeitavam o terreno dos outros, e a você por roubar e atirar em alguns banqueiros desgraçados.



— Confia naquele miserável do Greyforth?



— Onde está sua honra, eu sou um velho galo de briga! Acertamos com ele, certo? Ele fez o que prometeu, certo? Deu vinte libras para a gente pagar o que devia e se livrar da cadeia, mais vinte para ficar no banco até a gente voltar, todas as picaretas, pólvoras e mercadorias de que precisamos, e mais um contrato jurado na frente do pregador, de que vamos ficar com duas partes de cada cinco mandadas para Yoko, certo? Tudo o que ele prometeu, certo? É um sujeito duro, mas todos os duros são trapaceiros.



Os dois haviam caído na gargalhada, com o outro dizendo:



— Você tem toda razão.



— Somos os garimpeiros, certo? Nós é que encontramos os veios, certo? Na terra dos japas, onde estamos sozinhos, certo? Podemos esconder uma parte, hem? E levar sem que ninguém saiba, certo? Todo o grude, bebida e mulher por um ano, uma vida e tanto na Yoshiwara, e a oportunidade de explorar uma mina de ouro? Eu entro nessa, mesmo que você não tope...



Agora, a situação era muito diferente.



— Façam com que sentem, sem machucá-los. Misamoto!



Misamoto caiu de joelhos no mesmo instante. Ao verem-no, os dois garimpeiros se mostraram um pouco menos preocupados.



— São esses os homens com quem se encontrou no cais ontem?



— Sim, Sire.



— Eles o conhecem como Watanabe?



— Sim, lorde.



— Ótimo. Eles não sabem nada sobre seu passado?



— Não, lorde. Fiz tudo como mandou, tudo...



— Disse que aprendeu inglês com marujos em Nagasáqui?



— Disse, lorde.



— Ótimo. Agora, diga primeiro que eles serão bem tratados e que não precisam ter medo. Como eles se chamam?



— Escutem, vocês dois, este é o chefe, lorde Ota — disse Misamoto, como fora instruído por Yoshi, seu sotaque americano compreendido sem dificuldade. — Falei que deviam se curvar ou seriam obrigados. Ele diz que serão bem tratados e quer saber seus nomes.



— Sou John Cornishman e ele é Charlie Yank, e até agora ainda não tivemos nada para comer ou beber.



Da melhor forma que podia, Misamoto traduziu os nomes.



— Não diga nada a meu respeito, nem o que você fez desde que o tirei da prisão... lembre-se, tenho ouvidos por toda parte, e saberei.



— Não falharei, lorde.



Misamoto fez uma reverência profunda, escondendo seu ódio, desesperado em agradar, apavorado com seu futuro.



— Muito bem.





Por um momento, Yoshi considerou-o. Em dois meses e pouco, desde que recrutara Misamoto para seu serviço, o homem mudara de uma forma radical, por fora. Agora, tinha o rosto raspado, a cabeça também raspada, com exceção do penacho, ao estilo dos samurais. Uma higiene forçada melhorara bastante sua aparência, e embora fosse deliberadamente mantido com os trajes da mais baixa classe de samurais, parecia um samurai agora, e usava as duas espadas como se lhe pertencessem. É verdade que as espadas eram falsas, apenas os cabos, sem lâminas dentro das bainhas.



Até agora, Yoshi estava satisfeito com seu desempenho, e ficara atônito ao vê-lo com os trajes e o chapéu de um ancião, sem reconhecê-lo. Uma boa lição a lembrar, pensara ele na ocasião: como é fácil parecer o que não se é!



— É melhor você não falhar mesmo — disse ele, olhando em seguida para os dois guardas de Misamoto. — Vocês são responsáveis pela segurança desses dois homens. A senhora Hosaki providenciará mais guardas e guias também, mas vocês são responsáveis pelo sucesso do empreendimento.



— Sim, lorde.



— E quanto a este falso Watanabe — acrescentou Yoshi, a voz suave, mas ninguém se iludiu com isso —, deve ser tratado como samurai, embora do grau mais baixo. Mas se ele desobedecer às ordens, ou tentar escapar, vão amarrar suas mãos e pés e arrastá-lo à minha presença. Vocês são os responsáveis.



— Sim, lorde.



— Não vou fracassar, lorde — murmurou Misamoto, o rosto pálido, uma parte do seu terror contagiando os garimpeiros.



— Diga a esses homens que eles estão seguros. E também que você será seu ajudante e mestre, não há necessidade de ficarem assustados, se obedecerem. Diga a eles que espero rápido sucesso na busca.



— O chefe diz que não precisam ter medo.



— Então por que você está se mijando de medo?



— Vá se foder. Eu... estou no comando e é melhor terem boas maneiras.



— Melhor é você tomar cuidado com a gente ou assim que ficarmos a sós vamos arrancar seus ovos e fritar. Onde estão a porra do grude, a bebida e as mulheres que nos prometeram?



— Terão tudo daqui a pouco, e acho melhor se mostrarem polidos... na presença desses sujeitos — advertiu Misamoto, cauteloso. — Eles podem ser como um gato com uma abelha no rabo. E o chefe diz que é melhor encontrarem o ouro bem depressa.





— Se houver ouro, vamos encontrá-lo, Wotinabey, seu velho sacana. Se não estiver lá, é porque não existe nada, certo, Charlie?



— Eles agradecem por sua bondade, lorde — disse Misamoto, já não tão assustado, pois compreendera que se os homens encontrassem ouro, ele seria o primeiro a saber, já que os acompanharia. — Prometem tentar encontrar tesouros o mais depressa possível. Respeitosamente perguntam se podem ter alguma coisa para comer e beber e quando podem começar a trabalhar.



— Explique a eles que compensa ser paciente, compensa ser polido e diligente. Ensine-lhes as maneiras corretas, como fazer reverências e assim por diante. Você é o responsável.



Enquanto Misamoto traduzia, Yoshi gesticulou para seu ajudante, que trouxe as duas capas curtas que Hosaki mandara fazer, como se fossem coletes, presas por laços. Na frente e atrás, havia caracteres escritos a tinta, que diziam: Este gai-jin é um servidor pessoal e garimpeiro, sob a minha proteção, e tem permissão, desde que acompanhado por guias oficiais, com os documentos corretos, para garimpar em qualquer parte dos meus domínios. Todos têm a obrigação de ajudá-lo nesse trabalho. Ao final, havia seu lacre pessoal.



— Diga a eles que devem usar isto sempre, que lhes dará salvo-conduto... explique o que está escrito.



Misamoto tornou a obedecer, sem pensar, e mostrou aos dois homens como vestir a capa. Agora cautelosos, simularam paciência e humildade que nada tinham a ver com sua natureza e criação.



— Charlie — sussurrou o cômico, ajustando os laços, mal mexendo os lábios para falar, como a maioria dos ex-condenados sabia fazer, pois passara quatro anos de trabalhos forçados no sertão australiano por se apoderar das concessões de garimpo de outros —, perdido por um penny, perdido pela porra de uma libra.



O americano sorriu, subitamente mais à vontade.



— Espero que valha mais do que uma libra, meu velho...



Yoshi observava-os. Depois de se sentir satisfeito, gesticulou para Misamoto.



— Leve-os com você e espere no pátio.



Depois que eles se retiraram, com as reverências apropriadas, desta vez sem qualquer ajuda, Yoshi mandou que todos se afastassem, à exceção de Inejin.



— Sente-se, velho amigo. — Ele indicou os degraus, onde o velho poderia sentar confortavelmente, já que tinha o quadril esquerdo arrebentado de uma queda de cavalo e era-lhe impossível ajoelhar. — Quais são as novidades?





— Tudo e nada, lorde. — Durante três séculos, Inejin e seus antepassados haviam servido àquele ramo dos Toranagas. Como um hatomoto, não tinha medo de dizer a verdade, mas a obrigação de fazê-lo. — A terra tem sido trabalhada com diligência, adubada da maneira correta, mas os camponeses dizem que este ano haverá fome, até mesmo aqui, no Kwanto.



— Até que ponto a fome será severa?



— Precisaremos este ano de arroz de outros lugares para ficarmos seguros e em outros lugares será ainda pior.



Yoshi recordou o que Hosaki já lhe dissera e sentiu-se contente pela previdência e prudência da esposa. Também sentia-se contente por ter um vassalo como Inejin — era muito raro encontrar um homem no qual se pudesse ter confiança total, e ainda mais raro encontrar alguém que falasse a verdade, baseada no conhecimento real, e não por razões de melhoria pessoal.



— O que mais?





— Todos os samurais leais estão fervendo de impaciência pelo impasse entre o Bakufu e os lordes rebeldes de Satsuma, Choshu e Tosa. Os samurais deles também estão descontentes, em grande parte por causa dos problemas habituais, as taxas de pagamento fixadas há um século causam dificuldades cada vez maiores e é cada vez mais difícil pagar os juros das dívidas crescentes e comprar arroz e outros alimentos, a preços cada vez maiores.





Inejin tinha consciência profunda do problema, já que a maior parte de sua família, espalhada por várias regiões, ainda na classe dos samurais, vinha sofrendo bastante. Depois de uma pausa, ele acrescentou:





— Os shishi conquistam adeptos todos os dias, se não abertamente, pelo menos em segredo. Os camponeses continuam dóceis, os mercadores nem tanto, mas todos, exceto a maioria dos mercadores de Iocoama e Nagasáqui, gostariam que os gai-jin fossem expulsos.





— E Sonno-joi?



Outra pausa e o velho respondeu:





— Como muitas coisas neste mundo, lorde, esse grito de batalha é em parte correto, em parte errado. Todos os japoneses detestam os gai-jin... são piores do que os chineses, piores do que os coreanos... todos querem que eles saiam daqui, todos reverenciam o filho do céu, e acham que o seu desejo de expulsá-los é a política certa. De seus vinte homens aqui esta noite, creio que os vinte apoiariam essa parte de Sonno-joi. Como o lorde também concorda, desde que seja o xogunato que exerça o poder temporal de executar os desejos do filho do céu, de acordo com os procedimentos fixados pelo xógum Toranaga.



— Tem toda razão — concordou Yoshi.



No fundo, porém, ele sabia que se tivesse o poder, nunca teria permitido o primeiro tratado, e assim não haveria necessidade de o imperador interferir nos assuntos do xogunato; também nunca permitiria que homens de mentalidade mesquinha cercassem o filho do céu para desorientá-lo.





Mesmo assim, contrário a Sonno-joi, agora convidaria alguns dos gai-jin a entrarem no país, enquanto houvesse tempo. Mas apenas em suas condições. E apenas para o comércio que desejasse. Será apenas com esquadras e canhões como os deles que poderemos lhes negar o acesso à nossa terra, pensou Yoshi, expulsá-los de nossos mares, e finalmente cumprir nosso destino histórico de pôr o imperador no trono do dragão da China. E quando isso acontecer, com todos os milhões de chineses e nosso bushido, todo o mundo dos gai-jin nos obedecerá.



— Continue, Inejin.





— Não há muito mais a dizer que já não saiba, lorde. Muitos receiam que o menino xógum nunca se tornará um homem, muitos se mostram perturbados por um conselho que não é tão sábio quanto deveria, muitos estão chocados porque seu prudente conselho contra a viagem dele a Quioto como um suplicante foi ignorado, muitos lamentam que não controle o roju para impor as mudanças necessárias: o Bakufu passando a ser incorruptível, hábil... e acabando com a podridão.



— O xógum é o xógum — declarou Yoshi, em tom brusco. — Todos devem apoiá-lo, e também a seu conselho. Ele é nosso suserano e por isso merece nosso apoio.





— Concordo inteiramente, Sire, apenas relato as opiniões dos samurais da melhor forma que posso. Poucos querem a queda do Bakufu e do xogunato. Apenas uns poucos tolos acreditam que o imperador pode governar o Nipão sem a ajuda do xogunato. Mesmo entre os shishi, poucos realmente acreditam que o xogunato deve ser extinto.



— E daí?



— A solução é óbvia: de alguma forma, mãos fortes devem assumir o controle, e governar como fez o xógum Toranaga. — Inejin ajeitou a perna de um jeito mais confortável. — Por favor, perdoe-me por falar tanto. Devo dizer que me sinto muito honrado por sua visita.





— Obrigado, Inejin — murmurou Yoshi, pensativo. — Não há notícias de daimios mobilizando forças contra nós?





— Não, lorde, não nesta área, embora eu tenha ouvido dizer que Sanjiro pôs Satsuma em pé de guerra.





— E Choshu?



— Ainda não, mas Ogama tornou a reforçar a guarnição que domina os portões e aumentou o número de baterias de terra em Shimonoseki.



— Hum... Seus armeiros holandeses?



Inejin confirmou com um aceno de cabeça.





— Espiões me dizem que eles treinam seus artilheiros e fabricam quatro canhões por mês, no novo arsenal de Choshu. Esses canhões são logo levados para os redutos. Muito em breve, os estreitos se tornarão inexpugnáveis.



O que é bom e mau ao mesmo tempo, pensou Yoshi — bom ter tal opção, mau que esteja em mãos inimigas.



— Ogama planeja intensificar os ataques aos navios?



— Fui informado que não, pelo menos por enquanto. Mas ele ordenou que suas baterias destruíssem todos os navios gai-jin e fechassem os estreitos em caráter permanente, quando lhes enviasse uma senha em código. — Inejin inclinou-se para a frente e sussurrou: — “Céu escarlate.”



Yoshi ficou aturdido.



— A mesma que o xógum Toranaga usava?



— É o rumor que está circulando.



A mente de Yoshi estava em turbilhão. Isso significa que Ogama, como o meu antepassado, pretende também desfechar um ataque de surpresa... poder supremo sendo o prêmio?



— Pode obter uma prova?



— Com o tempo. Mas essa é a senha atual. Quanto ao verdadeiro plano de Ogama... — Inejin deu de ombros. — Ele controla os portões agora. Se pudesse persuadir Sanjiro a lhe empenhar sua lealdade...



Houve um momento de silêncio, longo e opressivo.



— Fez um bom trabalho.



— Outro fato interessante, Sire. Lorde Anjo tem uma doença do estômago. — Os olhos de Inejin se iluminaram ao registrarem o interesse imediato de Yoshi. — Um amigo de um amigo em quem eu confio me diz que ele consultou em segredo um médico chinês. A doença é a da deterioração e não pode ser curada.



Yoshi soltou um grunhido, em parte de uma pontada gelada de ansiedade pela possibilidade de contrair a mesma doença — quem sabe como ou de onde — ou já tê-la em suas entranhas, esperando o momento de se manifestar.



— Quanto tempo ele viverá?



— Meses, talvez um ano, não mais. Mas deve se manter duplamente em guarda, Sire, porque meu informante diz que, enquanto o corpo se deteriora, sem qualquer sinal externo, a mente continua lúcida, apenas se distorce por caminhos perigosos e implacáveis.



Como a estúpida decisão de permitir que a princesa prevaleça, pensou Yoshi, a cabeça fervilhando com as novas informações.



— E que mais?





— Sobre os shishi que atacaram lorde Utani e seu amante, Sire. Foram liderados pelo mesmo shishi de Choshu que atacou lorde Anjo... Hiraga.



— Aquele cujo cartaz foi enviado a todas as barreiras?





— Isso mesmo, Sire, Rezan Hiraga. Pelo menos foi esse o nome indicado pelo shishi capturado, antes de morrer. Provavelmente é falso. Outro nome com que se apresenta é Otani.



— Conseguiram capturá-lo? — indagou Yoshi, esperançoso.



— Não, Sire, ainda não, e infelizmente perdemos todas as pistas. Assim, ele deve estar em outro lugar. Talvez em Quioto. — Inejin baixou a voz ainda mais.





— Correm rumores de que haverá outro ataque dos shishi em Quioto. Há indícios de que estão se concentrando ali. Em grande quantidade.



— Que tipo de ataque seria? Um assassinato?





— Ninguém sabe, por enquanto. Talvez outro atentado. O líder shishi com o codinome de “Corvo” teria determinado a convocação. Estou tentando descobrir quem ele é.





— Ótimo. De um jeito ou de outro, os shishi devem ser destruídos. — Yoshi pensou por um instante. — O veneno deles poderia ser dirigido contra Ogama ou Sanjiro, os verdadeiros inimigos do imperador?



— Seria muito difícil, Sire.





— Descobriu quem informou aos shishi sobre Utani? Sobre seu encontro amoroso?



Depois de uma pausa, Inejin respondeu:





— Foi a criada da dama, Sire, quem sussurrou para a mama-san, que sussurrou para eles.



Yoshi suspirou.



— E a dama?



— A dama parece ser inocente, Sire.



Yoshi tornou a suspirar, satisfeito por Koiko não estar envolvida, mas lá no fundo ainda não convencido.





— A criada está conosco agora... cuidarei dela. Providencie para que a mama-san nada desconfie. Acertarei as contas com ela quando voltar. Já descobriu quem é o outro espião, o que vem fornecendo informações para os gai-jin?





— Não com certeza, Sire. Fui informado que o traidor se chama Ori... ou esse é um pseudônimo... não sei o nome completo, um shishi de Satsuma, um dos homens de Sanjiro, um dos dois assassinos da Tokaidô.



— Foi inepto ao matar apenas um, quando os quatro constituíam um alvo fácil. Onde está o traidor agora?



— Em algum lugar da colônia de Iocoama, Sire. Ele se tornou um confidente secreto do jovem intérprete inglês e do francês de que me falou.



— Ah, ele também... — Yoshi ficou em silêncio por um momento, pensativo. — Silencie esse Ori imediatamente.



Inejin inclinou a cabeça, aceitando a ordem.



— O que mais?



— Isso encerra meu relatório.



— Obrigado. Trabalhou bem.



Yoshi acabou de tomar o chá, imerso em pensamento. O luar projetava estranhas sombras. O velho rompeu o silêncio:



— Seu banho está pronto, Sire, e imagino que tenha fome. Tudo se encontra à sua espera.



— Obrigado, mas faz uma noite tão boa que partirei agora mesmo. Há muito o que fazer no Dente do Dragão. Capitão!



Todos se reuniram num instante. Koiko e sua criada voltaram a vestir as roupas de viagem e ela entrou no palanquim. Com a devida deferência, Inejin, sua família, criadas e servidores saudaram o hóspede, no momento da partida.



— O que faremos com toda a comida que preparamos? — indagou hesitante a esposa, uma mulher pequena, de rosto redondo, também descendente de samurais.



Ela preparara as iguarias às pressas, mas com extremo cuidado, tudo comprado a um vasto custo, para conquistar o suserano naquela visita inesperada — mais de três meses de lucro investido em uma única refeição.



— Vamos comê-la — murmurou Inejin, observando o cortejo se afastar, através da aldeia adormecida, até desaparecer. — Foi muito bom tornar a vê-lo, uma grande honra.



— Foi, sim — murmurou ela, submissa, seguindo-o para o interior do prédio.





A noite era amena, com luar suficiente para se divisar tudo. Além da aldeia, a estrada de terra, a estrada seguia para o norte, sinuosa, com aldeias a intervalos de poucos quilômetros, todas as terras ao redor exploradas por Yoshi desde a sua infância. Reinava um silêncio profundo. Ninguém viajava àquela hora da noite a não ser os salteadores, os ronin e a elite. Vadearam um córrego, o terreno mais aberto naquele ponto. No outro lado, Yoshi parou e fez um sinal para o capitão.



— Pois não, Sire?



Sob o crescente excitamento de todos, Yoshi virou-se na sela e apontou para leste e para o sul, na direção da costa.





— Estou mudando meu plano — anunciou ele, como se fosse uma decisão repentina, e não uma coisa planejada por vários dias. — Agora vamos seguir por este caminho, até a Tokaidô, mas contornaremos as três primeiras barreiras, e em seguida voltaremos à estrada, pouco depois do amanhecer.



Não havia necessidade de perguntar para onde estavam indo.



— Marcha forçada, Sire?



— Isso mesmo. E agora chega de conversa. Vamos embora!



Cento e vinte léguas, dez ou onze dias, pensou Yoshi. E, depois, Quioto e os portões. Meus portões.




25







IOCOAMA









No final da tarde desse mesmo dia, Hiraga esgueirou-se para os fundos de um barraco, na beira da cidade dos bêbados, onde um marujo pequeno e imundo o esperava, bastante nervoso.



— Dê-me o dinheiro, companheiro — disse o homem.



— Sim. Revólver, por favor?



— Num dia você está grã-fino, no outro parece um pobre coitado bexiguento. — O homem tinha uma barba grisalha, um olhar desconfiado, com uma faca afiada na cintura, outra numa bainha no antebraço. Quando Hiraga o abordara pela primeira vez, na praia, usava as roupas que Tyrer providenciara. Hoje usava uma túnica encardida de trabalhador, calça puída e botinas surradas. — Qual é o seu jogo?



Hiraga deu de ombros, sem compreender.



— Revólver, por favor.



— Revólver, hem? Já sei que é isso o que quer.



Os olhos astutos esquadrinharam ao redor, pela área coberta de mato e com pilhas de lixo entre a cidade dos bêbados e a aldeia japonesa — um lugar chamado de terra de ninguém pelos moradores locais —, mas não avistou ninguém a espreitá-los.



— Onde está a grana? — indagou ele, irritado. — O dinheiro, pelo amor de Deus, os mexicanos!



Hiraga enfiou a mão no bolso da túnica, achando tudo desconfortável e estranho, as roupas compradas especialmente para o encontro. Três dólares de Prata mexicanos faiscaram em sua mão.



— Revólver, por favor.



Impaciente, o marujo meteu a mão por dentro da camisa e mostrou o Colt.



— Leva a arma quando me entregar o dinheiro.



— Balas, por favor?



O homem tirou do bolso da calça um pano imundo, com uma dúzia ou mais de cartuchos.



— Um negócio é um negócio, e minha palavra é minha palavra.



O marujo estendeu o braço para o dinheiro, mas antes que pudesse apanhá-lo Hiraga fechou a mão.



— Não roubado, sim?



— Claro que não foi roubado!



Hiraga abriu a mão. O homem pegou as moedas, na maior ganância, examinou-as com todo cuidado, para se certificar que não estavam lascadas, nem eram falsificadas, os olhos astutos se desviando para um lado e outro durante todo o tempo. Depois de se convencer que o dinheiro era genuíno, ele entregou o Colt e as balas e se levantou.



— Não seja apanhado com isso, companheiro, ou vai balançar na ponta de uma corda. Claro que é roubado.



O marujo soltou uma risada desdenhosa e se afastou apressado, como o rato com que se parecia.



Hiraga voltou meio agachado para a relativa segurança da aldeia japonesa... segura apenas pelo tempo em que a ralé e os bêbados não decidissem atacá-la. Não havia polícia ou sentinelas para proteger os aldeões. Apenas uma patrulha ocasional da marinha ou do exército passava de vez em quando pela rua principal, e os homens raramente tomavam o partido dos japoneses nos tumultos.



Hiraga levara vários dias para acertar a transação, pois é claro que não podia pedir a ajuda de Tyrer. Ninguém na Yoshiwara possuía uma arma de fogo. Raiko dissera, apreensiva:



— Só os gai-jin têm, Hiraga-san, sinto muito. É perigoso para uma pessoa civilizada ser apanhada com uma arma assim.



Akimoto interviera, ameaçador:



— Se meu primo quer uma arma assim, trate de arrumar logo para ele, Raiko! Você pode fazer qualquer coisa, neh? Como pagamento, eu a levarei para a cama de graça...



Ele se esquivara à almofada que Raiko lhe jogara, os dois rindo. Raiko acrescentara, abanando-se:



— Ah, Hiraga-san, sinto muito, mas suplico que tire esse homem horrível daqui. Duas das minhas garotas já exigiram um dia de folga para se aliviarem da investida do yang dele...



Quando ficaram a sós, Akimoto comentara, muito sério:



— Talvez seja melhor você mudar de idéia, esquecer essa arma. Deixe-me tentar persuadir Ori a se encontrar conosco aqui.



Hiraga sacudira a cabeça, satisfeito pela companhia do primo jovial.



— Ori tem uma pistola e vai usá-la no momento em que nos avistar. Já tentei por todos os meios atraí-lo para fora da cidade dos bêbados e não consegui. Se o emboscar com uma arma de fogo, vai parecer que foi um gai-jin. A qualquer dia ele vai tentar outra vez se encontrar com aquela mulher; estarei perdido aqui no instante em que isso acontecer.

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